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Internet e Saúde no Brasil: desafios e tendências

2021

A Internet e os dispositivos móveis estão cada vez mais presentes em diferentes aspectos de nosso dia a dia. Sua popularização apresenta novos desafios para profissionais de saúde, pacientes e cuidadores, bem como cria novas possibilidades para todos. As informações de saúde podem contribuir para a adesão ao tratamento, a autonomia dos sujeitos e a redução dos custos e do tempo no atendimento. Está cada vez mais difícil pensar em um cenário em que a saúde prescinda das Tecnologias de Informação e Comunicação em suas rotinas, ações e estratégias. Este livro é a versão em português do livro The Internet and Health in Brazil: Challenges and Trends, publicado em inglês em 2019 pela Editora Springer. Ele analisa como esse fenômeno social está transformando práticas e percepções de saúde no Brasil. Ele foi escrito de forma direta e compreensível para profissionais, pesquisadores, estudantes de comunicação e saúde, bem como para stakeholders e demais interessados em entender melhor as tendências e os diferentes desafios relacionados ao fenômeno social da internet em saúde. Ele está dividido em cinco partes, com um total de 22 capítulos e uma introdução. Eles oferecem uma visão atual sobre as experiências do Brasil com a Internet e analisam as tendências e os desafios existentes em sua relação com a saúde. Os autores são professores e pesquisadores de instituições acadêmicas brasileiras de excelência, de diferentes regiões do país

André Pereira Neto & Matthew B. Flynn Internet e Saúde no Brasil Desafios e Tendências Internet e Saúde no Brasil Desafios e Tendências Conselho editorial Ada Cristina Machado Silveira Celso Figueiredo Elen Cristina Geraldes Gutemberg Araujo de Medeiros Ieda Lebensztayn Jean Cristtus Portela Jefferson Agostini Mello Jefferson Oliveira Goulart Juçara Brittes Maria Berenice Machado Mariângela Machado Toaldo Paulo Henrique de Souza Freitas Ricardo de Souza Carvalho Ruth Reis Tatiana Gianordoli Vilma Ferreira André Pereira Neto Matthew B. Flynn (Organizadores) Internet e Saúde no Brasil Desafios e Tendências © 2021 André Pereira Neto & Matthew Flynn Cultura Acadêmica Praça da Sé, 108 01001-900 – São Paulo – SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 www.culturaacademica.com.br Foto da capa: Brasil 247/Ângelo Cavalcante Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD I61 Internet e saúde no Brasil [recurso eletrônico] : desafios e tendências / organizado por André Pereira Neto, Matthew B. Flynn. - São Paulo : Cultura Acadêmica Editora, 2021. 618 p. ; ePUB ; 5609 KB. Inclui bibliografia. ISBN 978-65-5954-057-0 (Ebook) 1. Internet. 2. Mídias Sociais. 3. Acesso à Informação On-Line. 4. Empoderamento. 5. Saúde Coletiva. 6. Tecnologias de Informação e Comunicação. 7. Saúde. 8. Brasil. I. Pereira Neto, André. II. Flynn, Matthew B. III. Título. 2021-1288 CDD 303.4833 CDU 316.422.44 Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410 Índice para catálogo sistemático: 1. Tecnologias de Informação e Comunicação 303.4833 2. Tecnologias de Informação e Comunicação 316.422.44 Sumário Prefácio da Edição Brasileira ................................................................................................... 8 André Pereira Neto, Leticia Barbosa e Matthew B. Flynn Prefácio da Edição Norte-Americana ................................................................................... 20 André Pereira Neto e Matthew B. Flynn Introdução ............................................................................................................................... 34 Monica Murero Parte I - A emergência e o desenvolvimento da Internet no Brasil 1. Introdução à história da internet: uma perspectiva brasileira...................................... 52 Dilton C. S. Maynard 2. Marco Civil: o pioneirismo brasileiro na governança da Internet ................................ 66 Rosemary Segurado 3. “Programa Piraí Digital”: um projeto pioneiro de inclusão digital ............................. 92 Wilson Couto Borges, Estélio Gomberg e Vânia Coutinho Q. Borges 4. Sociedade civil e participação cidadã on-line: o caso da rede “Nossas Cidades” .... 114 Claudio Luis de C. Penteado, Marcelo B. P. Santos e Rafael A. Araújo Parte II - Os públicos da Internet e saúde no Brasil 5. Internet, expert patient e empoderamento: perfis de atuação em comunidades virtuais de renais crônicos ................................................................................................... 146 André Pereira Neto, Julyane Felipette Lima, Leticia Barbosa e Eda Schwartz 6. Nativos digitais e a saúde: um estudo exploratório com jovens brasileiros de diferentes perfis socioeconômicos ..................................................................................... 177 André Pereira Neto, Leticia Barbosa, Larissa Barão e Stephanie Muci 7. Acesso e uso de Novas Tecnologias da Informação e Comunicação para a promoção do envelhecimento ativo: para quê? Para quem? ............................................................. 212 Wilson José Alves Pedro, Márcia Niituma Ogata, Heloísa Cristina Figueiredo Frizzo, Ariadne Chloe Furnival e Brunela Della Maggiori Orlandi 8. A saúde na rede social: um estudo exploratório da fanpage “Melhor com saúde” . 238 Denise Cristina Ayres Gomes Parte III - Internet e os desafios na saúde 9. Avaliação da qualidade da informação de saúde na internet: análise das iniciativas brasileiras .............................................................................................................................. 258 André Pereira Neto e Rodolfo Paolucci 10. Crianças e adolescentes na Internet: um perfil atual dos riscos no Brasil ............... 293 Evelyn Eisenstein e Eduardo Jorge Custódio da Silva 11. Bullying e cyberbullying: controvérsia conceitual no Brasil .................................... 313 André Pereira Neto e Leticia Barbosa 12. Medicamentos baseados da internet no Brasil e Estados Unidos ............................. 344 Matthew Brian Flynn, Tiago Coutinho e Vera Lucia Luiza Parte IV - Internet e educação na saúde 13. E-learning e pedagogias problematizadoras: uma experiência brasileira em ensino de Monitoramento e Avaliação ........................................................................................... 376 Elizabeth Moreira dos Santos, Gisela Cardoso e Dolores Abreu 14. Massive Open Online Courses (MOOC) no campo da saúde: iniciativas brasileiras ............................................................................................................................................... .403 Liara Saldanha Brites e Cristianne Maria Famer Rocha 15. Literacia Digital e interfaces com a saúde: uma revisão integrativa ....................... 422 Rosane Aparecida de Sousa, Kéllen Campos Castro Moreira, Marta Regina Farinelli, Claudia Helena Julião, Priscila Maitara Avelino Ribeiro e Luis Saboga-Nunes 16. Letramento digital: significados existentes e a proposição de um conceito .......... 445 Fernanda R. Rosa e Maria Carolina Nogueira Dias (in memoriam) 17. Inclusão digital de agentes de saúde de Goiás: relato de uma iniciativa pedagógica ................................................................................................................................................ 473 Ana Valéria M. Mendonça, Elizabeth Alves de Jesus Prado, Natália Fernandes Andrade, Donizete Moreira, João Paulo Fernandes da Silva e Maria Fátima de Sousa Parte V - Aplicações Práticas das tecnologias digitais na saúde 18. Mhealth: dispositivos vestíveis inteligentes e os desafios de um contexto refratário ................................................................................................................................................ 490 Thiago Augusto Hernandes Rocha, Núbia Cristina da Silva, Cyrus Elahi e João Ricardo Nickenig Vissoci 19. O uso das Tecnologias da Informação e Comunicação na promoção da saúde: iniciativas brasileiras ........................................................................................................... 517 André Pereira Neto, Celita A. Rosário, Zelia Andrade e Lise Renaud 20. Jogos e comunicação em saúde: o ponto de vista dos jogadores brasileiros ......... 552 Marcelo Simão de Vasconcellos e Flávia Garcia de Carvalho 21. "Basta mover para ser saudável": sensibilidade performativa e experiências corporais mediadas por dispositivos vestíveis no Brasil ................................................. 575 André Lemos e Elias Bitencourt 22. Modelos de inovação para promover a digitalização dos serviços de saúde .......... 600 Luís Velez Lapão 8 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Prefácio da Edição Brasileira Há décadas em que nada acontece. Há semanas que décadas acontecem. André Pereira Neto, Leticia Barbosa e Matthew B. Flynn Referência: PEREIRA NETO, A; BARBOSA, L; FLYNN, M. B. Prefácio da edição brasileira - Há décadas em que nada acontece. Há semanas em que décadas acontecem. In: PEREIRA NETO, A.; FLYNN, M. B. (orgs.). Internet e Saúde no Brasil: Desafios e Tendências. 1 ed. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2020. p. 7-18. Internet e Saúde 9 Este livro é a versão em português do livro “The Internet and Health in Brazil: Challenges and Trends”, originalmente publicado em inglês em 2019 pela Editora Springer. Quando assinamos o contrato, garantimos o direito de publicar uma edição em língua portuguesa. A Editora da UNESP foi a primeira opção escolhida por ser uma das mais importantes editoras universitárias do Brasil. No início de 2019, enviamos os capítulos originais para serem avaliados pelos pareceristas dessa editora. No final do mesmo ano, recebemos um e-mail informando que o livro não seria publicado apesar de sua qualidade atestada na apreciação dos avaliadores. Essa decisão nos pareceu contraditória. Respondemos perguntando se a razão da recusa estaria ligada a problemas de ordem orçamentária. Se fosse esse o caso, poderíamos fazer um financiamento coletivo com os autores e seus alunos: afinal são vinte e três capítulos que reúnem, em sua maioria, mais de dois autores cada. Com isso, esperávamos garantir a publicação de pelo menos 50% da tiragem. Dias depois a editora entrou em contato conosco perguntando o que achávamos de publicar este trabalho em formato e-book com acesso aberto no portal do selo editorial Cultura Acadêmica, vinculado à Editora da UNESP. Com isso, os custos de sua produção iriam cair bastante. A proposta nos pareceu ideal, pois passaríamos a ter nosso livro sobre Internet e Saúde disponível nas redes sociais, em acesso aberto. Esta proposição contou com a adesão de todos os autores. Imediatamente Leticia Barbosa começou a fazer o trabalho de revisão, edição e diagramação desta edição. *** Assim que iniciamos este trabalho de revisão, em abril de 2020, já havíamos sido surpreendidos com a pandemia da COVID-19. Em dezembro de 2019, o mundo foi alertado, pela primeira vez, sobre a existência de uma doença infecciosa causada por uma nova forma de coronavírus na China – posteriormente denominada como COVID-19. Com alta transmissibilidade, a nova doença apresentava sintomas de intensidades variadas em pacientes, incluindo o desenvolvimento de uma síndrome respiratória aguda grave. À época do primeiro alerta, era difícil imaginar que a disseminação da COVID-19 alcançaria um nível global em um pequeno intervalo de tempo, como efetivamente ocorreu. No primeiro trimestre de 2020, a doença já estava presente em diferentes regiões do mundo de forma súbita e inesperada, acumulando um número significativo de casos graves e muitos óbitos. Em março o contágio foi considerado global, levando a Organização Mundial da Saúde (OMS) a denominar essa enfermidade como uma pandemia: isto é, uma doença infecciosa e contagiosa que se espalha muito rapidamente e acaba por atingir uma região, um país, um continente ou até o mundo inteiro. Essa não foi a primeira pandemia na história da humanidade. Entretanto, esta foi a primeira pandemia causada por um coronavírus conforme declarou a Organização 10 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Mundial da Saúde (OMS). Também foi a primeira vez em nossas vidas que vimos o mundo parar – inesperadamente. Com a decretação do estado de pandemia, diversos países implantaram medidas de distanciamento e isolamento social, que incluíram a interrupção de atividades não essenciais, a suspensão de atividades educacionais presenciais, o fechamento de espaços de usos coletivos, a restrição na circulação em transportes e rodovias públicos e o cancelamento de eventos. Escrevemos essa introdução nos primeiros meses de 2021. Neste momento a pandemia está completando um ano. Infelizmente a situação está longe de ser solucionada. Em dezembro de 2020, determinadas vacinas contra a COVID-19 receberam autorização da OMS para uso emergencial em alguns países. Estudos abrangentes sobre o uso de várias vacinas têm relatado resultados preliminares encorajadores. Entretanto, a pandemia não para de ceifar vidas humanas. Até este momento, o mundo perdeu mais de dois milhões de vidas. Vivemos um período de profundas incertezas. Ninguém sabe exatamente o que irá acontecer com cada um de nós nem com a população do planeta nos próximos meses. Os estudos recentes indicam que outras cepas do coronavírus estão surgindo, colocando novos desafios para os cientistas, gestores e toda a população. No Brasil, o cenário, já complexo desde o início da pandemia, tem se agravado a cada dia, devido às posições políticas do Governo Federal contrárias à ciência e às orientações da Organização Mundial da Saúde. No momento estamos observando o aumento exponencial da pandemia em diferentes regiões do Brasil, totalizando mais de 8 milhões de casos acumulados, que levaram a mais de 230 mil óbitos. Apesar das orientações preventivas de uso de máscara e de distanciamento social, milhares de pessoas em muitas regiões do país se comportam como se nada estivesse acontecendo. O que nos parece claro, entretanto, é que a emergência e a disseminação da síndrome respiratória aguda grave (SARS) produziu profundos impactos em diversas esferas da sociedade, afetando direta ou indiretamente milhões de pessoas ao redor do mundo. No campo da saúde pública, têm sido enfrentados inúmeros desafios resultantes da pandemia, incluindo o colapso de sistemas de saúde, a implantação efetiva do distanciamento social e demais medidas preventivas. Devem ser destacadas ainda a vulnerabilidade dos profissionais de saúde, a busca pela identificação de tratamentos eficazes e a compra e distribuição de vacinas. No Brasil, apesar do cenário caótico e desanimador, cabe salientar o papel desempenhado pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Mesmo com o histórico subfinanciamento e sucateamento observado nos últimos anos, o sistema público de saúde comprovou sua importância. Fundamentado nos princípios da universalidade, integralidade e equidade, o SUS garantiu a milhões de pessoas acesso gratuito a serviços de saúde e recursos de baixa, média e alta complexidade. Sem dúvida, permanecem entraves e desafios na garantia do acesso efetivo ao sistema de saúde, sobretudo no atual contexto pandêmico. Entretanto, o usuário com suspeita ou diagnóstico de COVID-19 tem acesso a consulta em uma unidade básica de saúde e pode ter a sua disposição o Serviço Internet e Saúde 11 de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), para ser levado a uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) ou a um hospital ou serviço dedicado exclusivamente a pacientes com COVID. Esses serviços são oferecidos a todos de forma gratuita. O SUS é um dos maiores patrimônios do Brasil, fruto de uma luta história pelo direito universal à saúde. A pandemia de COVID-19 deixou claro o papel que ele possui na vida dos brasileiros e a importância de defendê-lo – principalmente diante das contínuas estratégias neoliberais de desmontá-lo. O SUS não se ocupa apenas da assistência e do cuidado à saúde. Ele também inclui os laboratórios farmacêuticos. No caso da COVID-19 estamos presenciando a proeminência de dois laboratórios públicos ligados ao SUS: o O Instituto Butantan, do Governo do Estado de São Paulo, e o Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (BioManguinhos), unidade da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), vinculada ao Ministério da Saúde. O Instituto Butantan é responsável por grande porcentagem da produção de soros hiperimunes e grande volume da produção nacional de antígenos vacinais, que compõem as vacinas utilizadas no Programa Nacional de Imunizações (PNI) do Ministério da Saúde. Bio-Manguinhos é a unidade da Fiocruz responsável pela produção de vacinas, reativos e biofármacos voltados para atender prioritariamente às demandas da saúde pública nacional. O Complexo Tecnológico de Vacinas (CTV) de Bio-Manguinhos é um dos maiores centros de produção da América Latina. Ele está instalado no campus da Fiocruz e garante a todos os brasileiros autossuficiência em vacinas essenciais para o calendário básico de imunização do Ministério da Saúde (MS). Estes são os laboratórios que irão produzir as vacinas que irão prevenir a contaminação pelo coronavírus. Além da importância do SUS, a pandemia reiterou também a centralidade que as Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTICs) possuem na atualidade. Afinal, como seria vivenciar o isolamento social sem a Internet, o smartphone ou as mídias sociais? Até então as NTICs estavam imbricadas a quase todos os aspectos da vida humana. A realidade da pandemia e do isolamento social impôs que todos nós fôssemos obrigados a ter acesso na Internet às inúmeras fontes de informação, sejam elas nacionais ou internacionais, tradicionais ou alternativas, pagas ou gratuitas. Fomos forçados a saber utilizar aplicativos e programas disponíveis na Web para conseguir sobreviver durante todo esse tempo. Como afirmou Silvio Meira, em uma palestra virtual organizada pelo Museu do Amanhã, disponível no Youtube, “as pessoas, porque não tinham acesso físico ao mundo ao seu redor, tiveram que ir para o mundo digital e aprenderam na velocidade da necessidade. Não foram porque queriam. Não foram por diletantismo. Não foram porque alguém pediu que elas fizessem isso. Mas foram porque a forma de sobreviver passou a ser digital”. Se antes precisávamos nos deslocar ao restaurante para realizar uma refeição, com a pandemia tivemos que aprender a pedir comida com o auxílio de aplicativos. Se antes as 12 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) aulas eram presenciais, com a pandemia fomos obrigados a lidar com programas de videotelefonia. Se antes íamos fisicamente ao teatro para assistir um espetáculo, com a pandemia as lives se tornaram cada vez mais comuns. Museus disponibilizaram visitas virtuais a seus acervos como uma forma de driblar a ausência da visitação física aos seus espaços. Festas e reuniões passaram a ser cada vez mais frequentes através das mídias digitais. Era comum ligarmos a televisão à noite para assistirmos o noticiário e obtermos as principais notícias do país e mundo. Com a pandemia multiplicaram-se infinitamente o número de sites, blogs e canais no Youtube que oferecem informações atualizadas e apresentam visões de formadores de opinião destinados a públicos cada vez mais específicos. Com mais pessoas em casa, o consumo de serviços de streaming, como Netflix, despontaram, pois aumentou o número de assinantes e a duração de tempo despendida por cada usuário nessas plataformas. Os sites de relacionamento também foram bastante utilizados. Muitas vezes eles conseguiram transpor as barreiras físicas de contato, reduziram a sensação de solidão em um contexto de isolamento social. O Tinder, líder de mercado, está chegando a ter mais de 50 milhões de usuários ativos. O Happn, outro aplicativo nesse segmento, conseguiu atrair em 2020 3,5 milhões de usuários só no Brasil. Com os bares fechados, sem festas e na lógica do distanciamento social, é praticamente impossível conhecer alguém de forma convencional. Se por um lado as lojas fechadas e a recomendação de permanecer em casa afetaram negativamente os pequenos e médios negócios físicos, o comércio on-line despontou na pandemia tornando-se um caminho sem volta. A pandemia levou as salas de reuniões e a aula para o Zoom, a academia para o YouTube, o shopping para a Amazon e o amor para os aplicativos de encontros. O home office gera uma economia enorme para as empresas. Ele também beneficia o empregado, que pode trabalhar com mais conforto e estabelecer um ritmo próprio pra sua atividade. Entretanto, entre tantas questões, muitos empregados não têm espaço adequado em casa e o acesso à internet é lento. Além disso, as famílias com filhos pequenos dentro de casa têm tido enormes dificuldades em se adaptar a essa nova realidade em que a vida profissional se mistura com a vida doméstica e privada. O isolamento social tem aumentado o número de divórcios e a quantidade de denúncias de mulheres vítimas de violência doméstica. Dados recentes do Pag Seguro indicam que o faturamento em e-commerce brasileiro chegou a 273 bilhões de reais entre fevereiro e maio de 2020. Esse faturamento é 71% maior do que aquele observado no mesmo período em 2019. A maioria dos brasileiros está comprando em lojas virtuais, e 80% deles estão satisfeitos com essa forma de atividade econômica. Muitos não querem voltar aos shoppings centers. O aumento das desigualdades sociais é uma das consequências da pandemia. A desaceleração da economia empobrece os mais pobres. Enquanto isso, as fortunas dos mais ricos aumenta. Jeff Bezos, fundador e presidente da Amazon, tornou-se a primeira pessoa a ter um patrimônio líquido Internet e Saúde 13 superior a 200 bilhões de dólares em agosto de 2020. Com isso houve um aumento de mais de 80% desde o início do ano. O novo normal, que viveremos com o esmorecimento da pandemia, dificilmente irá dispensar o uso das NTICs em nossas rotinas, ações e estratégias nos mais diferentes campos da vida humana. Lenin, referindo-se à Revolução Russa, teria dito que “há décadas em que nada acontece, e há semanas em que décadas acontecem”. Polêmicas à parte sobre a genealogia dessa frase, nos últimos meses, imersos na pandemia, fomos forçados a incorporar as NTICs em nosso cotidiano de forma irreversível. Assim NTICs nos foram impostas como a única forma de sobreviver. Elas estão provendo inúmeras oportunidades para diferentes setores e atividades da sociedade, incluindo economia, comércio, comportamento e educação. O campo da saúde não está alheio a esse cenário. Uma das transformações vivenciadas nesse campo está relacionada com a produção, o acesso e o compartilhamento de conteúdo on-line. Inúmeras fontes de informação sobre saúde, de diferentes origens, estão prontamente disponíveis na Internet àqueles que desejem ou necessitem saber mais sobre o tema. Elas são acessíveis por meio de diferentes dispositivos. Também cresce, entre os indivíduos que possuem quadros clínicos similares, seus parentes, cuidadores e amigos, o hábito de pesquisar e compartilhar on-line informação sobre saúde, sobretudo quando enfrentam alguma doença ou possuem uma determinada condição crônica. Por meio de diversas ferramentas e plataformas on-line, pessoas podem interagir entre si e estabelecer redes sociais, mesmo que estejam geograficamente distantes. Com isso elas conseguem conversar e compartilhar experiências sobre uma determinada doença ou condição de saúde. As mídias digitais aumentaram o senso de pertencimento e possibilitaram a formação de grupos que no passado eram inviáveis de se organizar em tempo real. Antigamente esses grupos se reuniam presencialmente ou dependiam do envio de correspondências que demoravam muito tempo para ir e voltar. Com a Internet, foi criada uma conexão em tempo real deslocalizada. O smartphone possibilitou uma quantidade inimaginável de oportunidades de interação e pertencimento entre pares, com seus interesses, em tempo real, distantes fisicamente. Essa realidade que vivemos dificilmente poderia ser imaginada há 20 anos. Entretanto, essa condição cria a possibilidade de grupos de pessoas ficarem ainda mais isolados em suas bolhas. Têm sido constituídas as chamadas “câmaras de eco”. Essa expressão refere-se a como os algoritmos fornecem informações que confirmam as visões e preferências das pessoas. Elas recebem os mesmos pontos de vista e informações que refletem seus valores, mesmo quando procuram pontos de vista alternativos. A Internet tem o potencial de oferecer mais pontos de vista, mas as pessoas acabam em sites e mídias sociais que são “câmaras de eco”, onde ouvem, assistem e veem suas opiniões ressoar nas telas. Assim, a Internet cria as condições para que os grupos se fragmentem em segmentos cada vez mais isolados, mesmo quando procuram se ramificar. 14 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Além da pesquisa de informação on-line e da formação de redes sociais digitais entre pacientes, familiares e cuidadores, as NTICs também têm trazido oportunidades e transformações na prática clínica, na formação de profissionais de saúde, na organização de serviços, nas práticas de autocuidado e nas estratégias de prevenção e promoção da saúde. Isso pode ser observado no aumento da telemedicina e demais formas de mediação tecnológica na assistência, na prevenção e na promoção da saúde; na crescente digitalização dos serviços de saúde; na utilização de mídias sociais, aplicativos em smartphones e vídeo games para ações de prevenção e educação em saúde; na aplicação da Internet das Coisas para fins de saúde, tanto a nível institucional quanto individual; entre outros. As tecnologias digitais também favoreceram a troca de informação científica sobre a nova doença, permitindo que achados de pesquisa sobre transmissão, sintomas, diagnóstico, tratamento, prevenção, fatores de risco da doença, entre outros, fossem rapidamente compartilhados em diferentes regiões e contextos do mundo. Houve ainda a utilização de aplicativos relacionados à Internet das Coisas para monitoramento, diagnóstico, tratamento e as ações de telemedicina relacionados à COVID-19 que diminuíram os custos e o tempo no atendimento. Nesse contexto ocorrem disputas políticas na medicina, saúde e tecnologia. Parece ser cada vez mais difícil pensar, de agora em diante, em um cenário no qual o campo da saúde, em suas diferentes dimensões, não seja afetado ou prescinda do uso das NTICs em suas rotinas, ações e estratégias. Isso foi comprovado, sobretudo, no contexto pandêmico configurado em 2020. As informações disponíveis na Internet se tornaram imprescindíveis e levaram algumas pessoas a ter sintomas de nomofobia, ou seja, medo de ficar sem acesso as redes sociais digitais por meio do smartphone ou ser incapaz de usá-lo por algum motivo, como a ausência de um sinal, o término do pacote de dados ou a carga da bateria. As mídias digitais também continuam servindo como uma importante ferramenta para denúncias e incentivo a diferentes movimentos sociais. A morte de George Floyd, em maio de 2020 nos Estados Unidos, pode servir de exemplo nesse sentido. Aquelas cenas terríveis poderiam cair no esquecimento, como ocorreu com milhões de vidas que foram ceifadas pelo sistema racista que predomina nos Estados Unidos e em diversos outros países do mundo, incluindo o Brasil. No caso de Floyd, um transeunte com um celular em suas mãos gravou o momento que o policial pressionou seu joelho contra o pescoço do homem negro, imobilizado contra o chão, por oito minutos, ignorando seus pedidos de ajuda. Ele o sufocou de tal forma que Floyd veio a óbito. O vídeo, com poucos minutos de duração, foi largamente compartilhado por meio das mídias sociais, provocando manifestações antirracistas em diferentes lugares dos Estados Unidos e do mundo. No Brasil ocorreu algo semelhante. No final de 2020, João Alberto, um homem negro, foi imobilizado e espancado por seguranças de um supermercado. Sua morte, também gravada por um celular, ganhou reconhecimento do público por meio das mídias Internet e Saúde 15 sociais, impulsionando, além de uma investigação criminal, protestos e represálias à rede de supermercado. A pandemia evidenciou a centralidade e onipresença das tecnologias digitais na atualidade. No entanto, explicitou também velhos problemas associados ao acesso e uso das NTICS. Se houve mudança, também podem ser percebidas continuidades, presentes desde o início do processo de emergência e disseminação das NTICs. Elas se tornaram ainda mais evidentes durante a pandemia. Uma delas refere-se à exclusão digital. Apesar do barateamento dos serviços de conexão à rede nas últimas décadas, associado a popularização dos dispositivos móveis, indivíduos com condições socioeconômicas mais baixas e/ou precário letramento digital ainda enfrentam dificuldades para acessar à rede e fazer uso crítico e criativo delas. Pesquisas recentes do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) indicam que as classes D/E possuem menos usuários de Internet, sobretudo quando comparadas às classes A/B. O local de residência também contribui para situações de exclusão digital. Moradores de zonas rurais enfrentam dificuldades no acesso devido à ausência ou ineficiência da infraestrutura na região que residem. A exclusão digital também pode estar relacionada à idade. Pessoas mais velhas em geral não são usuárias das NTICs. Indivíduos mais pobres geralmente acessam a Internet exclusivamente pelo celular. Há ainda indivíduos que, embora consigam adquirir os dispositivos móveis e ter acesso à infraestrutura para conexão, não possuem as competências necessárias para manusear as tecnologias. Eles não realizam um conjunto diversificado de atividades ou não transformam seu uso em benefícios para sua vida – estando inseridos, portanto, em outras situações de exclusão digital. Esse problema impede que muitos cidadãos de baixa renda não consigam, por exemplo, obter o auxílio emergencial oferecido pelo governo ou fazer matrícula do filho na escola. Muitos desses serviços só são possíveis por meio da Internet. Se o usuário não souber utilizar as ferramentas de forma correta, não conseguirá obter o benefício esperado. No contexto pandêmico, a exclusão digital e as nuances de suas desigualdades foram explicitadas, por exemplo, na implantação de aulas remotas. Crianças, adolescentes e adultos que estavam em ensino presencial foram repentinamente compelidos a educação à distância, sem necessariamente haver um preparo para a transição. Além disso, uma parcela significativa de estudantes não possuía os recursos financeiros necessários para participar sistematicamente de aulas on-line. Esse fato levou órgãos e instituições públicas a comprar ou oferecer auxílios para alunos adquirirem dispositivos eletrônicos e serviços de conexão à Internet. Professores que nunca trabalharam com ensino remoto passaram a fazê-lo durante a pandemia. Para alguns, a produção e compartilhamento on-line de conteúdo audiovisual tornou-se parte de sua rotina de trabalho de forma inédita e inesperada. Entretanto, é provável que muitos profissionais não tivessem desenvolvido previamente as competências tecnológicas necessárias para lidar com as diferentes dimensões que compõem a educação à distância. Também é provável que uma parcela dos 16 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) professores impelidos ao ensino remoto não dominasse, assim como alunos, as tecnologias necessárias para realizar as aulas a partir de sua casa. Outro velho problema escancarado pela pandemia refere-se à circulação de notícias falsas – ou fake news. Nos últimos anos, a circulação de conteúdo propositalmente falso, com objetivo de enganar ou fraudar, tem se tornado uma prática – e uma problemática – cada vez mais presente no cenário atual, sendo impulsionada pela rapidez e capilaridade das mídias digitais. Na saúde, notícias falsas adquirem uma singularidade, uma vez que podem prejudicar o bem-estar do indivíduo. Ao longo da pandemia, foram disseminadas inúmeras notícias falsas sobre a doença. Entre elas, estão incluídas as notícias falsas revelando a ineficácia e os supostos perigos do isolamento social e do uso de máscaras; a divulgação de medicamentos não comprovados para o tratamento e prevenção da COVID-19 e as teorias conspiratórias associando a expansão da pandemia com uma estratégia do governo chinês. Tais notícias falsas, disseminadas em larga escala, sobretudo por meio das mídias sociais, comprometeram o contexto já complexo de pandemia. Por exemplo, em abril de 2020, familiares de mortos por COVID-19 em Manaus abriram caixões lacrados para se certificarem de que não estavam vazios – conforme alegava uma notícia falsa, compartilhada inclusive por uma deputada federal conservadora. O fechamento com lacre dos caixões foi uma medida sanitária implantada pelo poder público para reduzir o contágio. Sua abertura, portanto, colocaria em risco a vida dos familiares em uma cidade que já enfrentava o colapso no sistema de saúde devido aos casos de COVID-19. Outro exemplo dos efeitos das notícias falsas na pandemia foi a prescrição e a automedicação com fármacos sem eficácia para COVID-19, como comprovaram vários estudos. Com a disseminação da notícia de que a cloroquina combatia a COVID-19, pacientes passaram a ingerir o medicamento sem orientação médica ao apresentarem sintomas característicos da doença. Apesar de evidências de sua ineficácia no tratamento de COVID-19, tal medicamento ainda é prescrito por médicos, inclusive sob aval e propaganda do presidente da república brasileiro, Jair Bolsonaro, para fazê-lo. O Conselho Federal de Medicina (CFM) reforçou seu entendimento de que não há evidências sólidas de que cloroquina e hidroxicloroquina tenham efeito confirmado na prevenção e tratamento covid-19. No entanto, diante da excepcionalidade da situação e durante o período declarado da pandemia de COVID-19, o CFM entende ser possível a prescrição desses medicamentos de acordo com a decisão do médico. Este posicionamento do CFM revela a adesão da direção dessa entidade à visão defendida pela Presidência da República. Na verdade, o Palácio do Planalto tem empenhado seus esforços institucionais na condenação das práticas e procedimentos recomendados pela OMS em todas as esferas, desde o Ministério da Saúde até o CFM.As notícias falsas não foram inauguradas pela pandemia. Elas a antecederam e provavelmente a procederão. Porém, em um contexto pandêmico inédito, incerto e perigoso, seus efeitos podem ter consequências devastadoras a nível individual e coletivo. A Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou que, Internet e Saúde 17 concomitante à pandemia da COVID-19, há uma “infodemia”, isto é, uma epidemia de informação falsa, que dificulta o controle da nova doença. Nesse contexto, a circulação de notícias falsas torna-se um ato irresponsável, leviano e danoso para a coletividade. Ao abordar a questão da fake news, achamos impossível deixar de mencionar a célebre frase de Umberto Eco quando afirmou que as redes sociais digitais estariam dando o “direito de falar a uma legião de idiotas”. Antes eles só falavam em um bar, sem prejudicar tanto a humanidade. Com a Internet, estaríamos vivendo uma “invasão dos imbecis”. O problema não são as imbecilidades que viralizam, e sim as pessoas que recebem e compartilham essas informações acreditando que elas são verdadeiras. No fundo, as mesas de bar estão nas mídias digitais. Muitas pessoas desconfiam das informações recebidas, e outras só acreditam nas informações que confirmam suas crenças pré-estabelecidas. Outro problema que se tornou ainda mais evidente está associado à questão da privacidade. Ao falar de privacidade dois aspectos merecem ser lembrados. Por um lado, os dados e informações que oferecemos gratuitamente nas mídias digitais se tornam commodities que geram lucros astronômicos a poucas plataformas gratuitas como o Facebook, WhatsApp, Instagram e Youtube. Por outro, esses mesmos dados que disponibilizamos diariamente servem para agências de informação públicas e privadas controlarem nossa vida e saberem exatamente onde estamos, o que fazemos, com quem interagimos e o que pensamos. Vejamos o primeiro ponto. Como as plataformas gratuitas transformam os dados que oferecemos em negócios? Tudo começa quando criamos uma conta para ter acesso a esses serviços gratuitos. Nós oferecemos nosso nome, data de nascimento, e-mail e local de residência. Com o tempo, elas sabem o que postamos e curtimos. Elas conhecem nossos interesses, hábitos e comportamentos. Com esses dados nas mãos, elas constroem um perfil para cada um de nós. Elas sabem, por exemplo, quem são as pessoas que têm o hábito de tomar vinho. Essas pessoas já postaram nessas plataformas comentários sobre vinhos, já compraram vinhos, já fotografaram reuniões brindando com a bebida. As plataformas vendem essa informação para as empresas produtoras e distribuidoras de vinho para que elas saibam onde estão os consumidores de seus produtos. Esse é um exemplo simples de como a informação de cada um de nós se transforma em milhões de dólares. Esse método é chamado de “segmentação”. Enquanto os anúncios classificados num jornal em papel impactam da mesma forma leitores com interesses diferenciados, a publicidade no Facebook e nas demais plataformas gratuitas se dirige a quem o algoritmo considere ser o usuário mais provável de consumir aquele produto. Muitos autores afirmam que os dados e informações que disponibilizamos na Internet são o novo petróleo. O caso de Snowden pode servir de exemplo para o segundo ponto. 18 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Edward Joseph Snowden nasceu em 1983 nos Estados Unidos. Ele é um analista de sistemas que trabalhou na Agência Central de Inteligência (Central Intelligence Agency - CIA) e na Agência de Segurança Nacional (National Security Agency - NSA). Essas instituições são responsáveis por investigar e fornecer informações que afetam a segurança nacional. Para tanto, realizam atividades secretas, coleta de dados e contrainteligência. Em 2013, Snowden deu várias entrevistas aos jornais The Guardian e The Washington Post revelando detalhes sobre como essas agências governamentais investigam, se apropriam, utilizam os dados disponibilizados por cada um de nós e vigiam a nossa vida, mesmo sem nossa autorização ou vontade. Esse escândalo foi exibido no filme Citizenfour, ganhador do Oscar na categoria de melhor documentário (2015), e no filme Snowden: Herói ou Traidor, dirigido por Oliver Stone (2016). Esses filmes mostram como Snowden conseguiu divulgar a jornalistas uma série de documentos sigilosos do governo estadunidense que comprovam atos de espionagem praticados pelos Estados Unidos contra cidadãos comuns e lideranças internacionais. Snowden encontra-se atualmente exilado na Rússia. Em 2014, ele foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz. Ao abordar a questão da privacidade, temos a impressão de que estamos em uma armadilha. Como assim? A maioria dos serviços obtém nossas informações sem que tenhamos autorizado. Por outro lado, nós, para utilizamos esses serviços, somos obrigados a oferecer essa informação. Por exemplo: como solicitar um serviço de transporte via aplicativo sem acionar o localizador no smartphone? Se acionarmos as plataformas de informação, saberão onde estamos, para onde vamos, o caminho que trilhamos e quanto tempo demorou nossa viagem. Quando compramos um pão na padaria, um número grande de sistemas sabe onde você está, o que você comprou, quanto custou, como você pagou. Como não usar o Waze para orientar o melhor caminho a seguir quando dirige? Os sistemas de informação, que foram criados para facilitar o funcionamento de redes gratuitas de usuários conectados via Internet, capturam as informações e os dados que cada um de nós libera para gerar renda. Existe um aparato tecnológico, que pode ser público ou privado, que busca obter informações do cidadão para agir e prever ações. Estamos vivendo cada vez mais numa sociedade do controle. Porém, as pessoas continuam postando sistematicamente nas mídias digitais o que fizeram e consumiram ontem em fotos e depoimentos. Quando se fala de Novas Tecnologias de Informação e Comunicação só temos uma certeza: tudo ainda é muito impreciso. As peças estão entrando agora em um tabuleiro sem que as antigas tenham saído completamente do jogo. Outras peças entrarão. O jogo continuará sendo jogado assim? Quem pode prever? Estamos convencidos que, nesses doze meses de pandemia, as mídias digitais passaram a ocupar uma centralidade absurda na vida de todos os habitantes do planeta. A velocidade da mudança foi enorme. Sucumbiu quem não conseguiu ou não soube se adaptar. Foram semanas que pareceram décadas. *** Internet e Saúde 19 Ao apresentar a versão brasileira desse livro cabem alguns comentários. Em primeiro lugar, sugerimos a leitura do prefácio da edição estadunidense que está incluída nesse livro. Como na versão em inglês, os capítulos da edição brasileira estão agrupados em cinco partes: A emergência e o desenvolvimento da Internet no Brasil; Os públicos da Internet e saúde no Brasil; Internet e os desafios na saúde; Internet e educação na saúde; Aplicações práticas das tecnologias digitais na saúde. Porém, há modificações nos capítulos. Os autores foram convidados a rever seus textos e atualizá-los, caso considerassem necessários. Desse modo, os textos publicados aqui apresentam diferenças em relação àqueles em inglês. Além disso, diferente da edição da Springer, o capítulo sobre educação interativa digital, assinado por Lung Wen Chao e Maíra Chao, não faz parte desta versão, por uma opção dos autores. Em seu lugar, convidamos novos pesquisadores, não presentes no livro “The Internet and Health in Brazil”, para contribuir nesta versão. Um dos capítulos inéditos é de autoria de Fernanda Rosa e Maria Carolina Nogueira Dias (in memoriam). Rosa, da University of Pennsylvania, que trabalha com temas como governança da Internet e infraestruturas de comunicação. Sua tese de doutorado recebeu menção honrosa no “Best Dissertation Award” da Association of Internet Researchers (AoIR) em 2020. Entramos em contato com ela para convidá-la a participar da edição brasileira. O capítulo publicado nesse livro foi extraído de sua dissertação de Mestrado. O outro capítulo novo possui a participação de Luis Saboga Nunes, da Universidade Nova de Lisboa, e da equipe de professoras do Grupo de Pesquisa em Promoção em Comunicação, Educação e Literacia para a Saúde no Brasil (ProLiSaBr), vinculado ao Departamento de Serviço Social da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Um de seus principais temas de pesquisa é literacia em saúde. Ambos os textos compõem a seção “Internet e educação na saúde”. A organização de um livro voltado especificamente para o debate sobre os usos, oportunidades e desafios da Internet para a saúde parece-nos inédita. Desse modo, esperamos que sua publicação possa contribuir para o debate brasileiro sobre o tema no campo da saúde. Diante da onipresença das NTICs no cotidiano e do mundo que se forma a partir da pandemia da COVID-19, é imprescindível e urgente refletir sobre as possibilidades e desafios que as tecnologias digitais implicam na assistência, na prevenção, na promoção da saúde, no autocuidado e, sobretudo, no acesso efetivo e integral ao direito à saúde. Rio de Janeiro, fevereiro de 2021. 20 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Prefácio da Edição Norte-Americana Internet e saúde no Brasil: desafios e tendências André Pereira Neto e Matthew B. Flynn Referência: PEREIRA NETO, A; FLYNN, M. B. Prefácio da edição norte-americana Internet e saúde no Brasil: desafios e tendências. In: PEREIRA NETO, A.; FLYNN, M. B. (orgs.). Internet e saúde no Brasil: desafios e tendências. 1 ed. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2020. p. 19-32. Internet e Saúde 21 As Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTICs) estão cada vez mais presentes em nosso dia a dia. Nos últimos anos, elas convergiram para um só lugar: passaram a ficar alojadas em um telefone celular. Até pouco tempo atrás, esse aparelho servia apenas para uma pessoa falar com outra. Aos poucos, ele passou a ter inúmeras funcionalidades. Com ele, você envia e recebe mensagens por correio eletrônico. Se instalar um aplicativo de comunicação como WhatsApp, você pode enviar mensagens de texto e imagens, ou ainda falar com outra pessoa em qualquer lugar do mundo sem custo adicional. Você também pode fotografar e filmar. Em seguida, poderá enviar este material audiovisual para quem quiser em qualquer lugar do mundo, sem ter que pagar nada a mais por isso. Você pode, ainda, ouvir música e assistir um filme. O celular serve ainda para te despertar pela manhã e para agendar um compromisso. Com auxílio de um buscador, você poderá visitar uma biblioteca ou fazer uma pesquisa. Se estiver perdido em uma cidade, você poderá se localizar e será orientado a seguir o caminho mais rápido para chegar ao seu destino. Você poderá receber as notícias que te interessem. Esse aparelho serve para você entrar nas redes sociais e compartilhar informações, experiências e conhecimentos com muitas pessoas que você conhece pessoalmente ou não. Com todas estas funcionalidades este aparelho passou a ser denominado smartphones: telefone inteligente. Na prática eles são pequenos computadores de bolso com acesso sem fio (WiFi). A tendência é que ele comporte vários aplicativos que irão atender aos mais diferentes interesses. O acesso a esses serviços ocorre em frações de segundo. A distância espacial pouco importa. Você pode obter ou enviar uma informação independente do local em que esteja, graças à mobilidade inerente ao smartphones e à infraestrutura em rede. Assim, o celular serve, atualmente, para inúmeras atividades, inclusive para falar no telefone. Essas mudanças ocorreram em um tempo muito curto. Quem nasceu antes de 1970 acompanhou de perto essa transformação. Ninguém imaginava, há 50 anos, que teria, na palma da mão, um aparelho com tais funcionalidades. Nesse pequeno lapso de tempo, ele passou a ter progressivamente mais memória e a operar com maior velocidade. O mais impressionante é que, a cada novo aparelho lançado, a memória, a velocidade e as funcionalidades são ainda maiores. Todas essas inovações estão sendo acompanhadas pela baixa progressiva do preço do aparelho. Não nos surpreenderemos se, brevemente, o número de celulares disponíveis for maior do que o de pessoas no mundo. No Brasil este índice já foi alcançado! De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existiam em 2017 194,4 milhões de celulares em funcionamento em um país com 185,7 milhões de habitantes. Os dados de 2017 indicam que o Brasil ocupa a quarta posição no ranking global das nações que mais possuem consumidores de games on-line. Michael Haneke, de 76 anos, aclamado diretor e roteirista austríaco, ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro em 2013, afirmou recentemente que o smartphone passou a ser uma extensão de nossos corpos. A visão de Haneke foi reiterada com os resultados da pesquisa “The Phone-Life Balance Study” (ETCOFF, 2018), realizada entre 22 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) os dias 30 de novembro e 26 de dezembro de 2017. Tal pesquisa visava reunir informações sobre o comportamento dos usuários de telefones celulares. A pesquisa envolveu 1.100 usuários entre 16 a 65 anos em quatro países, a saber: Brasil, França, Índia e Estados Unidos. Os resultados sugerem tendências. Um terço (33%) das pessoas ouvidas, por exemplo, respondeu que prefere utilizar seu celular a prestar atenção às pessoas que estão à sua volta. Mais da metade dos entrevistados (53%) descreve o smartphone como seu “melhor amigo”. Apenas 48% dos brasileiros acham que precisam ter uma vida separada do smartphone, contra 62% dos franceses, 60% dos indianos e 69% dos norte-americanos. Outro dado que nos chamou a atenção está relacionado com o sentimento que os usuários têm quando pensam que perderam o aparelho celular: 56% dos brasileiros entram em pânico, contra 59% dos franceses, 66% dos americanos e 77% dos indianos. Como mencionamos anteriormente, a presença dos smartphones na nossa vida é relativamente recente. Vivemos ainda uma época em que nativos digitais se misturam com aqueles que nasceram antes da internet e dos computadores. Padrões de comportamento e percepções sociais nas relações dos cidadãos com as Novas Tecnologias de Comunicação e Informação se misturam em um emaranhado que merece ser compreendido em profundidade. Essas NTICs, que convergiram para o aparelho celular, são diferentes dos tradicionais meios de comunicação? Nós acreditamos que sim. Vejamos por quê. Na televisão, no rádio e na mídia impressa, existe um centro que produz informação. Seguindo esse modelo de comunicação, o papel do usuário se restringe a receber esta informação. Os proprietários dos meios de comunicação decidem o que os usuários devem ou não devem saber. Nas novas mídias, esse poder passou a estar nas mãos de cada um de nós. Somos nós que resolvemos o que queremos saber e ver! Se entrarmos no YouTube decidiremos o filme que pretendemos assistir. Os canais voltados para interesses específicos nessas plataformas se multiplicam incessantemente. A mídia tradicional passou a ser chamada de mídia com função massiva, pois se direciona a um conjunto populacional indefinido (LEMOS, 2007). Em contraste, as mídias com função pósmassiva, como as existentes na internet, lidam com nichos, fragmentando o tradicional mercado midiático de massa em audiências cada vez mais segmentadas. Além disso, os meios de comunicação massivos são limitados, por mais que existam centenas de canais a cabo ou emissoras de rádio. Na internet, esse número é incomensurável. Além disso, os usuários digitais não são apenas participantes passivos de fluxos de informação. Eles comentam, produzem e compartilham conteúdo. Eles podem dominar, em tese, todo o processo criativo, construindo sua comunidade de usuários, estabelecendo vínculos abertos entre eles, neutralizando a intermediação inconveniente ou desagradável e interagindo diretamente com um mercado repleto de nichos. Essas são algumas diferenças que nos levam a concluir que as mídias massivas são bem diferentes das mídias pós-massivas. No Brasil usamos o verbo navegar quando nos referimos a entrar na internet e ficar procurando algo ou tentando se comunicando com alguém. Para os brasileiros, a internet Internet e Saúde 23 se parece com o mar. Em 1997 o cantor e compositor Gilberto Gil anunciava em sua canção “Pela internet”1 que ele gostaria de “criar seu web site”, fazer sua homepage para ter “um barco que veleje por esse infomar”: uma palavra criada por ele da junção das palavras ‘info’, de informação e ‘mar’. Ele queria entrar na “rede e promover um debate”. Queria juntar, via internet “um grupo de tietes de Connecticut” e enviar um “e-mail até Calcutá”. Ele tinha a esperança de, por meio da rede, “contatar os lares do Nepal e os bares do Gabão”. Essa foi a primeira música transmitida ao vivo pela internet, por streaming, do Brasil. Em 2018, vinte e um anos depois da primeira edição, Gil lançou uma segunda versão com a mesma melodia, mas com outra letra2. Antes de iniciar sua apresentação por um canal do YouTube, o compositor, nascido em 1942, afirmou: “é assim: A gente vai ficando velho e o mundo vai ficando novo”. Ele admitiu na nova composição que na internet “é tudo muito bem bolado”! Na letra de 1997, ele afirmava que com 5 gigabytes ele conseguiria criar um barco que velejasse pelo “infomar”. Agora, vinte e um anos depois, sua nova fanpage necessita um terabyte3. “Cada dia é uma nova invenção” – diz o compositor. As estatísticas sugerem que o desejo de navegar no “infomar” não se restringe ao compositor. Há 15 anos, a internet possuía apenas 400 milhões de usuários, ou seja, 6,5% da população mundial. Em 2015, segundo a União Internacional das Telecomunicações (UIT) - órgão vinculado à Organização das Nações Unidas-, o número de internautas no mundo já atingia 3,2 bilhões de cidadãos, representando 43% da população mundial. A proporção de casas com conexão à rede chegou a 46% naquele ano. A UIT também divulgou dados referentes à internet móvel. Ela informa que, em 2000, existiam 738 milhões de assinaturas de conexão móvel em todo o mundo. Em 2015 o celular passou a ser usado por 4,4 bilhões de pessoas (STATISTA, 2018). Gilberto Gil e Michael Haneke têm razão: as Novas Tecnologias de Informação e Comunicação estão se tornando cada dia mais pervasivas. Isso porque elas tendem a se espalhar, infiltrar, propagar ou difundir por toda parte da vida humana. Nas palavras do poeta, elas nos enlaçam. Elas integram diferentes dimensões da vida do cidadão do planeta. Gil revela seu sentimento afirmando: “estou preso na rede, que nem peixe pescado”. A sensação que temos é de que vivemos em outro mundo. Um mundo onde todas ou quase todas as atividades econômicas, sociais, políticas e culturais se desenvolvem por meio das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação. Em termos políticos, podemos mencionar o Movimento Cinco Estrelas, na Itália, o Podemos na Espanha e o En Marche! na França. Ideologicamente distintos, os três têm em comum o fato de terem realizado suas campanhas baseadas principalmente na comunicação digital. Em 2009, os jovens iranianos tomaram as ruas se organizando pelo 1 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2ZZ-LSIwKYc. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=pGONgrm3mEU. 3 Terabyte é a unidade de medida utilizada para armazenamento de dados na área da informática, equivalente a 1.024 gigabytes. 2 24 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) bluetooth dos celulares. Em 2010 e 2011, foi a vez da Primavera Árabe se organizar via Twitter. Em 2013 foi a vez do Brasil. Castells (2015) e muitos outros autores no mundo enfatizaram as singularidades dos movimentos sociais via internet. As redes digitais afetam não apenas a mobilização política, mas também geram novas oportunidades econômicas. A lista de bilionários da Forbes (2018) pode servir de parâmetro para medir a importância econômica das Novas Tecnologias de Comunicação e Informação. Quem é o cidadão mais rico do mundo? Jeff Bezos, nascido em 1964. Ele é dono de uma indústria? É um fazendeiro? Não. Ele é dono da Amazon – a empresa líder em comércio eletrônico no mundo. Ele se tornou o homem mais rico do mundo, ultrapassando Bill Gates, fundador da Microsoft, porque conseguiu que as ações de sua empresa subissem 59% em 2017. Sua fortuna passou de 72,8 bilhões de dólares para 112 bilhões de dólares. Outro exemplo pode ser identificado no financiamento coletivo. O crowdfunding tem se transformado em uma alternativa viável para o financiamento e para o sucesso de empreendimentos. Empresas construídas com financiamento coletivo asseguram uma grande parcela de novos empregos gerados todos os anos. Esse modelo de financiamento não só criou um mercado global bilionário, como também tem agregado valor a projetos, por aproximar ainda mais empresa ao consumidor. A empresa passa a conhecer os gostos e necessidades de seu cliente em primeira mão. Muitas vezes ela convida seu potencial cliente para participar no desenvolvimento de um novo projeto. O cliente torna-se um colaborador e um investidor, que recebe benefícios exclusivos, pré-adquire produtos, engaja-se em causas sociais e pode até ter participação societária na empresa. A Organização das Nações Unidas construiu uma agenda para o desenvolvimento sustentável (2020/2030), composta por 17 objetivos que visam erradicar a pobreza, promover o crescimento econômico, a inclusão social, a sustentabilidade ambiental e a paz mundial por meio de parcerias coletivas. Em uma emissão disponível na internet (ITU, 2018), Ban Ki-Moon (Secretário Geral da ONU) afirmou que a “pessoas de todos os lugares podem colher os benefícios da conectividade”. Conclui afirmando: “vamos empoderar os indivíduos com essas tecnologias transformadoras, para que eles possam advogar e inovar para o nosso futuro comum”4. As Novas Tecnologias de Informação e Comunicação também são ubíquas. Essa palavra significa que algo está ou pode estar em toda parte ao mesmo tempo. Onipresente. Esta característica pode ser observada na “Internet das coisas”, que conecta itens usados no nosso dia a dia à rede mundial de computadores5. Entretanto, não sejamos ingênuos! Parafraseando Gilberto Gil podemos dizer que se trata de uma navegação tensa, complexa, na qual todo cuidado é pouco. Um dos obstáculos contém forte cunho social: nem todas as pessoas têm acesso à internet. Apesar do crescimento anunciado acima, a dificuldade de acesso está quase 4 5 https://www.youtube.com/watch?v=094PRYY5dJg&t=26s https://www.youtube.com/watch?v=dpB8OLKWpqk Internet e Saúde 25 sempre associada às condições de vida do cidadão. A União Internacional das Telecomunicações adverte que, apesar do acesso ter aumentado nos últimos 15 anos, ainda há 4 bilhões de pessoas desconectadas em todo o mundo. A exclusão digital é maior nos países menos desenvolvidos, onde apenas 89 milhões de pessoas possuem conexão de um total de 940 milhões. Eles residem em locais onde a rede sem fio não chega. Soma-se a isso o fato de muitas pessoas não acessarem a internet em decorrência de seu alto custo. Tim Berners-Lee, considerado o criador da World Wide Web, afirmou recentemente que “Não é surpresa! É mais provável que você esteja off-line caso seja mulher, pobre, residente de área rural ou de país de baixa-renda, ou alguma combinação entre essas condições”6. Há ainda um contingente não desprezível de usuários que têm acesso à rede, mas não sabem lidar com as inúmeras funcionalidades inerentes às Novas Tecnologias de Informação e Comunicação: são os analfabetos digitais. Assim, a exclusão digital também está associada ao domínio de habilidades específicas necessárias à utilização destas tecnologias. Nesse grupo destaca-se a população iletrada, residente nas partes empobrecidas do planeta, que não consegue se apropriar dessas tecnologias para seu proveito. Seja como for, a exclusão digital é a metáfora atual da exclusão social. Além disso, o “mar” de informações está se transformando em um “dilúvio”. Nele, informações corretas disputam espaço com as incorretas, mentirosas e pouco confiáveis. Em muitos casos a fraude viraliza. O problema das fake news está todos os dias a nossa volta. Outro problema está associado ao IP (Internet Protocol) que cada computador ou celular tem. Quando um usuário envia uma informação pela internet, alguém fica sabendo. Por exemplo, quando compramos on-line uma passagem de avião para uma determinada localidade, imediatamente recebemos anúncios de restaurantes que deveríamos visitar na cidade para onde iremos. Se enviarmos muitas mensagens de cunho ecológico, em breve receberemos promoções de produtos para esportes radicais ou alimentação orgânica. Essas agências constroem nosso perfil segundo nosso padrão de produção e consumo de informação on-line. Por essa razão, dificilmente um cidadão com perfil ecológico receberá mensagens ou anúncios defendendo a produção agrícola geneticamente modificada. Aos poucos se forma uma “bolha” na qual os ecológicos só recebem mensagens que valorizam a produção orgânica e natural. Para os adeptos dos agrotóxicos, esses anúncios e mensagens não são enviados (PARISER, 2012). A informação se tornou nos dias atuais o principal ativo no meio econômico. A informação que cada um de nós disponibiliza despretensiosamente todos os dias é transformada em valor e gera fortunas. A importância da informação é tão evidente que leva alguns autores a definir que vivemos na “Era da Informação” (CASTELLS, 2002). Nesse contexto, as empresas mais ricas do mundo são aquelas que sabem melhor lidar e transformar a informação que cada um de nós insere nas redes digitais todos os dias em dinheiro e vantagem competitiva. Assim, a informação postada ou obtida na internet é recolhida e armazenada pelas agências de informação e negócios como o Google e o 6 Disponível em: https://webfoundation.org/2018/03/web-birthday-29/ 26 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Facebook. Essa informação é vendida para outras empresas. Por essa razão, essas são duas das empresas mais lucrativas do mundo. Tim Berners-Lee, nesse sentido, afirmou: “a rica seleção de blogs e websites de outrora foi tolhida pelo poder das plataformas dominantes” A informação digital não possui apenas um valor comercial. Sistemas burocráticos governamentais se apropriam de fluxos de informação e comunicação para interesses de segurança nacional, vigilância e controle político. Nesse sentido, o caso de Edward Snowden7 pode ser considerado exemplar. Ele tornou público detalhes sobre os programas utilizados pelo sistema de informações das agências de inteligência dos Estados Unidos que visavam estabelecer uma vigilância global sobre cada um de nós, especialmente sobre pessoas públicas. Uma coisa parece cada vez mais clara: nossa privacidade está fortemente ameaçada. A liberdade de inserir e enviar mensagens, presente no projeto original da internet, parece estar em xeque, pois se transformou em mercadoria de alto valor. Além disso, regimes autocráticos também são conhecidos por rastrear atividades on-line de dissidentes e policiar conteúdos da Web considerados ameaçadores. Se uma agitação política ocorrer, o primeiro movimento de governos repressivos é interromper o funcionamento do Twitter e outras mídias sociais. Nesses termos, a exclusão digital, a constituição de “bolhas” e a privacidade na internet são alguns dos desafios que comprometem o projeto inicial das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação que tinha um cunho universal, livre e seguro. E no Brasil? Como anda o acesso à internet? Duas tendências diferentes convergem em nosso território: a exclusão digital e a ampliação do acesso. A exclusão digital está intimamente associada aos problemas estruturais da sociedade brasileira. Dados de 2017 divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicam que 25% da população têm renda familiar equivalente a 387 reais por mês. Nesse universo, a parcela da população de negros ou pardos chega a 78,5%, contra 20,8% de brancos. O Brasil, apesar dos esforços recentes no sentido contrário, continua sendo um país de alta desigualdade de renda, inclusive quando comparado a outras nações da América Latina. Além disso, as taxas de analfabetismo são extremamente elevadas. Em 2016, a “Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios” (PNAD), realizada pelo IBGE revelou que a taxa de analfabetismo chegou a 7,2%, ou seja, existem aproximadamente 11,8 milhões de analfabetos com 15 anos ou mais de idade vivendo no Brasil. A exclusão digital pode ser medida em números. O Comitê Gestor da Internet (CGI.br) realiza frequentemente pesquisas nacionais para verificar a expansão da internet no país. Os dados da pesquisa publicada 2017 revelam que apenas 59% dos lares nos centros urbanos estão conectados. No meio rural esse índice cai para 26%. Essa realidade pode ser explicada a partir do nível de renda e escolaridade da população. Os dados do CGI.br indicam que a internet está presente em 29% das casas com famílias com renda de 7 Este episódio se transformou nos filmes “Citizen Four”, ganhador do Oscar em 2015, e “Snowden - Herói ou Traidor” produzido por Oliver Stone, disponível na Netflix. Foi realizada uma entrevista com ele no TED. https://www.ted.com/talks/edward_snowden_here_s_how_we_take_back_the_internet?language=pt-br Internet e Saúde 27 até um salário-mínimo brasileiros por mês (que corresponde a aproximadamente 300 dólares), contra um índice de 97% naquelas que ganham até 10 salários-mínimos. Além disso, as companhias telefônicas privadas precisam cobrir 80% da área urbana da sede dos municípios abrangendo até 30 quilômetros. Com isso, as empresas, preocupadas com o retorno econômico, deixam de lado locais onde a população é pequena e reside em local distante do centro urbano. Ao mesmo tempo a ampliação do acesso também pode ser verificada. Os dados absolutos oferecidos pela United Nations Conference on Trade and Development (UNCTAD) em seu relatório publicado em 2017, situa o Brasil em quarto lugar no ranking mundial de usuários de internet: 120 milhões de brasileiros estão conectados, o que corresponde aproximadamente 57% da população! Em números absolutos, o Brasil fica atrás apenas da China (705 milhões), Índia (333 milhões) e Estados Unidos (242 milhões). Depois do Brasil, aparecem Japão (118 milhões), Rússia (104 milhões), Nigéria (87 milhões), Alemanha (72 milhões), México (72 milhões) e Reino Unido (59 milhões) (UNCTAD, 2017). O mesmo relatório avaliou também o ritmo de crescimento do acesso à internet nos últimos anos, considerando o período de 2012 a 2015. Segundo esse estudo, o crescimento médio do Brasil no período foi de 3,5%, atrás apenas do México (5,9%), Nigéria (4,9%), Japão (4,6%) e Índia (4,5%). Países ricos, como Estados Unidos, Alemanha e Reino Unido, apresentaram um ritmo crescimento do acesso à internet mais lento, pois a maioria da população já dispõe de acesso. A Associação Brasileira de Telecomunicações (TELEBRASIL, 2018) divulgou um levantamento, realizado no terceiro trimestre de 2017, indicando que a receita de dados (internet) das operadoras de telefonia móvel superou o faturamento obtido com voz (ligações). Além disso, foi constatado que já existem 95 milhões de aparelhos celulares 4G no Brasil e 92 milhões, 3G. Que papel as Novas Tecnologias de Informação e Comunicação podem desempenhar na saúde? Eysenbach (2001), em texto premonitório, publicado há 20 anos, procurou responder essa questão apresentando uma definição para a expressão e-health. Ele afirma que a interface internet & saúde transcende a dimensão tecnológica. Para ele, trata-se de um “campo emergente” (EYSENBACH, 2001, p. 1). caracterizado pela interseção de diferentes domínios, práticas e saberes, tais como informática médica, saúde pública e administração. Sua visão de e-health ultrapassa, portanto, a mera dimensão tecnológica e destaca “o estado de espírito, um modo de pensar e uma atitude” (EYSENBACH, 2001, p. 1). Ele enfatiza, finalmente, que uso da informação e a comunicação via internet pode melhorar o cuidado em saúde. No mesmo texto, o autor associa dez outras expressões, iniciadas com a letra e, como e-health, que caracterizariam esse “campo emergente” (EYSENBACH, 2001, p. 1). Elas foram agrupadas por nós em duas ordens de questões e preocupações que o autor tinha em 2001. 28 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Um primeiro grupo refere-se à qualidade, eficiência e abrangência do cuidado de saúde por meio da internet. O autor advoga que e-health deve ter eficiência e, assim, permitir a redução dos custos. Além disso, defende que o e-health esteja baseado em evidências comprovadas por avaliações científicas rigorosas. O atendimento médico via internet, denominado atualmente de telemedicina, pode estender o escopo do cuidado em saúde para além de suas fronteiras tradicionais. Isso possui tanto um sentido geográfico quanto um sentido conceitual. Segundo ele, esses serviços podem abranger desde simples conselhos e orientações dos profissionais de saúde até intervenções mais complexas e a prescrição de produtos farmacêuticos. As Novas Tecnologias de Informação e Comunicação poderiam, ainda, permitir a troca de informação padronizada e comunicação entre estabelecimentos de saúde. O segundo grupo reúne características associadas às modificações que o acesso e uso das informações obtidas e compartilhadas na internet promovem na relação médicopaciente (GARBIN, PEREIRA NETO e GUILAM, 2008). Eysenbach (2001) destaca o empoderamento de usuários e pacientes. Nesse caso, e-health abre novos caminhos para a medicina centrada no paciente e possibilita a decisão do paciente baseada em evidências. Neste caso as comunidades virtuais podem desempenhar um papel importante (PEREIRA NETO, et all. 2015). Segundo Eysenbach (2001), as Novas Tecnologias de Informação e Comunicação “estimulam uma nova relação entre paciente e profissional de saúde, em direção a uma verdadeira parceria, na qual decisões são tomadas de modo compartilhado”8 (EYSENBACH, 2001, p. 1). Ele previa que a decisão sobre o tratamento a ser adotado estaria nas mãos do paciente ou passaria a ser compartilhada com o médico e demais profissionais de saúde. Assim, a relação médico-paciente não seria mais assimétrica. Para tanto, a educação seria necessária tanto para médicos, por meio de recursos on-line (educação médica contínua), quanto para os usuários (educação em saúde, informação de prevenção customizada para os consumidores etc.). Esse novo padrão de relacionamento deverá impor novas condutas no plano ético, na medida em que e-health envolve novas formas de interação médico-paciente e coloca novos desafios e ameaças a questões éticas como a prática profissional on-line, o consentimento informado, a privacidade e a equidade. Por exemplo, profissionais de saúde, incluindo médicos da atenção primária, especialistas, farmacêuticos e outros, podem compartilhar informações vitais do paciente para garantir um cuidado em saúde integral. O cidadão, com muitas informações a seu dispor, poderá comparar os serviços e condutas oferecidos e escolher aquele que lhe parecesse causar menos dano ou sofrimento. O doutor Muir Grey, que foi diretor do National Health System do Reino Unido acredita que estejamos no “meio da Terceira Revolução na Saúde”9. A primeira foi a saúde pública, e a segunda a revolução promovida pela alta tecnologia médica. Agora as três 8 Texto original: “encourages a new relationship between the patient and health professional, towards a true partnership, where decisions are made in a shared manner”. 9 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=AQjsS9K8-cQ&t=8s Internet e Saúde 29 forças revolucionárias são o conhecimento, a internet e o paciente. Conclui sua entrevista afirmando: “temos que reconhecer que a internet modifica tudo, inclusive a prática clínica”. Muitas de suas premunições se transformaram em questões ou problemas. Os custos reduzidos decorrentes da eficiência do e-health são atualmente uma questão controversa. Além disso as informações de saúde disponíveis na internet não são sempre baseadas em avaliações científicas rigorosas. O problema da qualidade da informação em sites de saúde é uma constante. Apesar disso, muitas pessoas seguem essas orientações. Parte da categoria médica, representada por seus órgãos de classe, muitas vezes resiste à telemedicina, sobretudo pelo conjunto diversificado de serviços que pode oferecer. As modificações na relação médico-paciente preconizadas por Eysenbach (2001) ainda estão por vir. O empoderamento dos pacientes a partir da informação on-line é crescente, mas a decisão sobre o tratamento mais adequado dificilmente é compartilhada. Parece-nos evidente a sobrevivência da relação assimétrica entre médico e paciente. A nosso ver, o “peso” da tradição é o principal desafio a ser enfrentado no Brasil por aqueles que entendam que as Novas Tecnologias de Informação e Comunicação desempenham um papel proeminente quando se trata de saúde. Em primeiro lugar, cabe destacar a hegemonia que a mídia massiva detém hoje em dia no Brasil. Essa liderança foi sendo conquistada ao longo dos dois últimos séculos. O cidadão comum continua privilegiando a informação obtida nas emissões televisivas. Cabe salientar que, no Brasil, a situação é muito crítica, pois cinco famílias controlam os principais veículos de comunicação com maior audiência no país. Nesse caso, destaca-se o Grupo Globo. Ele lidera a audiência no canal aberto, nos canais a cabo, nas emissoras de rádio e nos diversos veículos de comunicação impressa. O Grupo Globo consegue ter mais audiência que a soma dos outros quatro grupos (INTERVOZES, 2020). A tradição se estende aos gestores de saúde, que ainda imprimem folhetos de papel para serem distribuídos em locais de aglomeração de pessoas, como fazem há mais de cem anos. Nos órgãos governamentais, a comunicação on-line continua desempenhando um papel residual. A tuberculose pode ser utilizada aqui como um exemplo. O Brasil integra a lista dos 22 países que concentram 80% dos casos dessa doença no mundo. Apesar disso, apenas 12 das 27 Secretarias Estaduais de Saúde do país possuíam um site ou página na internet sobre tuberculose. Nas Secretarias Municipais de Saúde, o quadro é um pouco pior. Das 5.570 Secretarias Municipais de Saúde existentes no Brasil, apenas 8 tinham um site ou página na internet sobre tuberculose. Soma-se a esse fato as conclusões da pesquisa realizada pelo Laboratório Internet, Saúde e Sociedade (LaISS) da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, sobre a qualidade da informação em vinte de sites de dengue e doze de tuberculose, vinculados a instituições públicas e privadas. Dos trinta e dois sites avaliados apenas seis conseguiram obter mais de 60% de conformidade com os critérios e indicadores utilizados (PEREIRA NETO et al., 2017; PAOLUCCI; PEREIRA NETO; LUZIA, 2017). 30 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) O “peso” da tradição também pode ser observado no meio acadêmico brasileiro. Nas associações e revistas científicas de saúde pública, a produção e o debate sobre as interfaces entre internet e saúde são praticamente ignorados. Em alguns casos artigos sobre internet e saúde são sumariamente recusados pelos editores de revistas cientificas por não serem considerados do campo da Saúde Pública. Os editais de pesquisa apresentados pelo Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) e pelas fundações estaduais de amparo a pesquisa raramente contemplam uma linha de financiamento para pesquisa na área das Novas Tecnologias de Comunicação e Informação e saúde. Apesar do “peso” da tradição no Brasil, algumas iniciativas relacionadas com as Novas Tecnologias de Comunicação e Informação e saúde merecem destaque. Elas revelam tendências e se impõem como desafios para quem atua e analisa esse fenômeno social. Muitas delas são abordadas neste livro. Ele visa analisar as tendências e alguns dos problemas mencionados acima. Ele está dividido em cinco partes. A primeira parte irá abordar a emergência e o desenvolvimento da internet no Brasil. Ela é composta por quatro capítulos. O primeiro analisa e contextualiza as origens e crescimento da internet no Brasil entre 1995 e 2015, em meio à expansão global da Web. O segundo apresenta como O Marco Civil da Internet estabelece os princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet foi aprovada e suas principais características. O terceiro descreve e analisa a experiência de uma das primeiras cidades no mundo a oferecer acesso livre à internet a todos os cidadãos - Piraí, uma pequena cidade no interior do Brasil. O quarto analisa uma experiência de e-participation, centrada na rede “Nossas Cidades”, formada para facilitar que grupos da sociedade civil façam demandas a autoridades públicas locais. Tratam-se, portanto, de capítulos que buscam resgatar a singularidade e o pioneirismo do Brasil na expansão e consolidação da internet. Na segunda parte iremos explorar três das principais audiências existentes na interface internet e saúde: o paciente, os jovens e os idosos. No primeiro caso, será abordado o impacto da informação disponível e compartilhada na internet e a emergência do expert patient. Nesse caso, serão apresentados perfis de atuação em comunidades virtuais que reúnem pacientes com doenças crônicas. No segundo, a preocupação será conhecer como jovens, de diferentes classes sociais, acessam a internet e se apropriam das informações disponíveis sobre saúde. O terceiro discute como os idosos devem acessar a internet visando um envelhecimento ativo. Na terceira parte iremos discutir alguns dos principais desafios para expansão e consolidação da internet no mundo em relação a temas importantes na área de saúde: a qualidade da informação, a segurança, o cyberbullying e os medicamentos. Os quatro capítulos que integram essa terceira parte adotam diferentes perspectivas de trabalho. O capítulo sobre a qualidade da informação apresenta as experiências inovadoras realizadas no Brasil sobre o tema. Os dois capítulos seguintes oferecem revisões conceituais de riscos associados à internet. A primeira aborda vários aspectos problemáticos que o uso excessivo Internet e Saúde 31 da Web pode ter no desenvolvimento cognitivo e fisiológico de crianças e jovens. A segunda revisão discute a perspectiva brasileira sobre como as tecnologias digitais mediam o bullying e o cyberbullying. O próximo capítulo destaca as novas oportunidades e riscos que a internet oferece para a área de medicamentos, considerando a dimensão global. Ele compara ainda os casos dos Estados Unidos e Brasil. A quarta parte é dedicada às experiências de educação em saúde realizadas por meio da internet. Ela é composta por quatro capítulos. O primeiro descreve uma experiência de e-learning e apresenta alguns dos desafios que ela promoveu para sua realização. O segundo apresenta iniciativas brasileiras de Massive Online Open Courses (MOOC) no campo da saúde. O terceiro discute a temática da literacia digital. O quarto apresenta como os agentes comunitários de saúde foram inscritos em um curso de qualificação profissional realizado on-line. A quinta e última parte deste livro apresenta e analisa algumas aplicações práticas das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação na saúde. Essa parte é composta por cinco capítulos. O primeiro analisa e discute os problemas e desafios inerentes aos dispositivos vestíveis (wearables). O segundo dedica sua atenção em apresentar e classificar as experiências brasileiras que utilizaram as Novas Tecnologias de Informação e Comunicação na promoção da saúde. O terceiro apresenta e analisa a contribuição brasileira sobre a utilização de games e seus significados para a saúde. O quarto discute a Internet das Coisas aplicada na saúde no Brasil. Finalmente, o último capítulo discute os impactos e desafios da digitalização nos serviços de saúde. Os autores são professores e pesquisadores de instituições acadêmicas brasileiras de excelência, de diferentes regiões do país. Uns escreveram textos mais críticos e reflexivos. Outros apresentaram experiências inéditas e inovadoras. Há ainda capítulos que analisam a produção bibliográfica nacional em determinado campo de conhecimento ou ação nesse “campo emergente” (EYSENBACH, 2001, p. 1). Em suma, os capítulos oferecem uma visão sobre as experiências singulares do Brasil com a internet em geral e sobre a relação entre as diferentes mídias digitais com a saúde. Eles demonstram as várias tendências e desafios enfrentados pelos diferentes stakeholders, incluindo grupos da sociedade civil, membros do governo, corporações e usuários finais. O desenvolvimento e expansão das novas tecnologias digitais no Brasil será dinâmico. Ainda assim, as tendências ilustradas ao longo deste livro não são exclusivas do Brasil. Como qualquer tecnologia, as esperanças e promessas, assim como os desafios e armadilhas, que as mídias digitais englobam continuarão ocorrendo na maior parte do mundo em desenvolvimento, e até mesmo em partes do mundo desenvolvido. As lições aqui fornecidas devem ajudar a iluminar aqueles interessados em “navegar” por rede digital complexa que nos conecta de novas maneiras, mas que também continua a destacar diferenças importantes em nossa sociedade, em nossa saúde e nosso bem-estar. 32 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Referências CASTELLS, M. A Sociedade em Rede ― A Era da Informação: economia, sociedade e cultura; v.1. 6 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002. CASTELLS, M. Networks of outrage and hope: social movements in the internet age. Cambridge: Polity, 2015. ETCOFF, N. Motorola phone-life balance study: data report by generations. IPSOS, Paris, 2018. 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UNCTAD - United Nations Conference on Trade and Development. Information economy report: digitalization, trade and development. Geneva: United Nations, 2017. 34 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Introdução* Internet e cuidado de e-health: um campo de estudo interdigital Monica Murero** Referência: MURERO, M. Internet e cuidado de e-health: um campo de estudo interdigital. In: PEREIRA NETO, A.; FLYNN, M. (orgs.). Internet e saúde no Brasil: desafios e tendências. 1 ed. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2020. p. 33-48. Este prefácio foi publicado originalmente em inglês no livro “The Internet and health in Brazil: challenges and trends”, organizado por André Pereira Neto e Matthew Flynn e publicado pela editora Springer. A primeira versão em português foi feita pela autora. André Pereira Neto e Leticia Barbosa realizaram a revisão da tradução. ** Departamento de Ciências Sociais, Universidade de Nápoles Federico II, Itália. E-mail: [email protected] * Internet e Saúde 35 O uso da internet para fins relacionados à saúde alcançou proporções massivas; porém, realidades nacionais locais ainda diferem amplamente uma da outra em todo o mundo. A internet, com um design aberto que permite a comunicação entre qualquer Tecnologia de Informação e Comunicação (TIC) atual e futura, e a arquitetura aberta da World Wide Web, que torna o acesso fácil acesso e favorece a participação dos usuários, não precisam de apresentação. Sua importância dificilmente pode ser exagerada. Mas, como ilustra este capítulo, a saúde eletrônica - ou as tecnologias voltadas para a saúde que utilizam a internet - e as implicações associadas à sua difusão vão muito além da escala tecnológica, incluindo meios multidimensionais de conexão, acesso e prestação de cuidado em saúde e bem-estar a partir de vários agentes. Hoje em dia, cada vez mais pessoas e objetos estão conectados uns aos outros do que em qualquer outro momento da história humana. Os efeitos da vasta adoção da internet e da Web são tão importantes que estamos vivendo uma nova fase da era digital: uma era “digital baseada na internet” ou era interdigital (MURERO, 2012; 2018a). As Tecnologias de Informação e Comunicação e, em particular, a internet têm apoiado o desenvolvimento de novas práticas para acessar, receber, fornecer e procurar cuidado de saúde. 1. O que é e-health? As definições mais conhecidas de saúde concentram-se em uma generalização excessiva do conceito, apresentando-o como simples ausência de doença. No entanto, a saúde é um conceito multidimensional. Não é apenas uma condição física relacionada à ausência de doença, mas também um status de bem-estar mental e social. A definição de saúde é multidimensional. Enfatiza que a saúde não é apenas um status físico ou a simples ausência de doença, mas inclui o bem-estar mental e social. Em outras palavras, saúde equivale a bem-estarA Organização Mundial da Saúde (OMS), uma agência especializada das Nações Unidas voltada para a saúde pública internacional e representativa de centenas de Estados Membros, incluindo o Brasil, oferece uma definição multidimensional de saúde em sua constituição. Desde 1948, essa definição guia as políticas e programas da OMS, afetando os Estados Membros e seus sistemas de saúde. Na concepção desse órgão, saúde pode ser compreendida como “[...] um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade” (WHO, 2020, tradução nossa). 36 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) 1.1. O que é cuidado de saúde? Qual papel as Novas Tecnologias de Informação e Comunicação exercem no desenvolvimento dos cenários atuais? Nesse contexto, o que é cuidado de saúde? Ao considerar a saúde a partir da perspectiva de bem-estar, como proponho neste capítulo, o cuidado de saúde se torna um resultado de múltiplos determinantes que afetam tanto os pacientes quanto os profissionais de saúde. Nesse contexto, ele se preocupa principalmente com a manutenção ou restauração, realizada por prestadores treinados e licenciados, de um estado multidimensional de bem-estar físico, mental e social. Portanto, os cuidados de saúde tornam-se o resultado de múltiplas variáveis que incluem o uso de instrumentos de diagnóstico de alta tecnologia, as habilidades profissionais, os tratamentos médicos eficazes, e a prevenção, mas não se limitam a eles. Além disso, eles também podem ser afetados por fatores socioeconômicos, como a educação, a qualidade do ambiente, o estilo de vida individual, a genética, a nutrição, a cultura e os valores familiares, os recursos disponíveis, as informações on-line e muito mais. Os determinantes socioeconômicos da saúde são as condições em que as pessoas vivem, crescem, trabalham e recebem cuidado de saúde. Tais condições são as principais responsáveis pelo estado de saúde, pelas equidades e pelas iniquidades existentes entre os países. Elas são amplamente afetadas pela distribuição dos recursos disponíveis a nível local, regional, nacional e internacional. Nesse contexto, a disponibilidade das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) para acessar informações e cuidados e manter ou restaurar a saúde está se tornando uma dimensão essencial que afeta a qualidade do bemestar individual e social. A maioria dos sistemas de saúde do mundo está preocupada principalmente com o tratamento e a prevenção de doenças, em vez de promover o bem-estar. Ao observar como os usuários de TICs satisfazem suas necessidades de saúde on-line, surge uma definição de saúde mais próxima do conceito de bem-estar do que da noção de “ausência de doença” (MURERO; RICE, 2006). Ela será discutida a seguir. 1.2. De e-health para cuidado de e-health E-health é um termo amplo que abrange uma ampla variedade de tecnologias e práticas sociocomunicativas usadas por prestadores de serviços de saúde pacientes e pessoas que procuram informação sobre saúde na Internet. A literatura acadêmica demonstra que ainda não existe um amplo consentimento e padronização terminológicos para definir o campo da internet e saúde. Isso se deve, em parte, à dinâmica de um campo Internet e Saúde 37 em rápida evolução naquilo que se refere a novas ferramentas, aplicações e práticas online (EYSENBACH, 2001; OH et al., 2005; MURERO; RICE, 2006). Os termos populares atuais para o campo incluem: e-health, informática médica (eHealth, Medical Informatics), informática na saúde do consumidor (Consumer Health Informatics), Medicina 2.0, Saúde Digital, m-health, Saúde 2.0 e muito mais (EYSENBACH, 2001). Embora cada um defina aspectos específicos do acesso às práticas de saúde mediado pela internet, esses termos podem se sobrepor apenas em parte. As diferentes nomeações ocorrem devido ao enfoque dado pelos pesquisadores. Ao se referir ao campo das mídias digitais e saúde, alguns estudiosos se concentram nas dimensões tecnológicas do fenômeno, enquanto outros destacam os aspectos sociológicos. Há também aqueles que oferecem uma abordagem interdisciplinar, como esta apresentada neste prefácio. A diversidade nas nomenclaturas também ocorre porque as tecnologias baseadas na internet consistem em uma ampla variedade de infraestruturas de telecomunicações, arquiteturas, protocolos, serviços de plataformas e aplicativos baseados em smartphones. A popularização da internet e a invenção da World Wide Web datam apenas do início dos anos 90. Historicamente, vários macro-fatores contribuíram para essa popularização e para o acesso revolucionário às informações e conhecimentos em cuidados de saúde, particularmente entre a população não médica. Os primeiros sistemas computadorizados para processamento de informações e quebra de código marcaram o início da ciência da computação durante a década de 1940 (HODGES, 2014). Após a Segunda Guerra Mundial, o rápido desenvolvimento de aplicativos de computação ofereceu oportunidades sem precedentes para análises de serviços de saúde pública, particularmente durante as décadas de 50 e 60. Por exemplo, os programas de informática, nas primeiras vezes que foram utilizados na epidemiologia na década de 1950), foram capazes de identificar as variáveis causadoras de doenças de acordo com idade, sexo e localização (SHORTLIFFE, BLOIS, 2001). Posteriormente, o desenvolvimento do primeiro computador pessoal e a difusão da digitalização contribuíram para a informatização da sociedade nas décadas de 1970 e 1980. Pela primeira vez na história, o uso da tecnologia da informação para a gestão de serviços de saúde tornou possível não apenas o uso da digitalização para arquivar informações em um computador, mas também para recuperar e distribuir dados médicos digitalizados. Isso ocorreu na grande maioria dos sistemas de saúde do mundo, incluindo o Brasil. De um ponto de vista puramente tecnológico, o aumento na velocidade, memória e armazenamento em massa de dados (por exemplo, servidores) desempenhou um papel crucial no desenvolvimento de oportunidades sem precedentes para os sistemas iniciais de gerenciamento de cuidados em saúde. Nos últimos trinta anos, as infraestruturas de rede digitalizadas e as telecomunicações se proliferaram exponencialmente, permitindo a comunicação e a troca de grandes quantidades de dados entre computadores, graças à internet. Tal proliferação representou uma mudança crucial não apenas no arquivamento dos registros dos pacientes em formatos digitais e na sua troca pela rede, mas também 38 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) ofereceu novas formas de tratamentos de saúde por meio de soluções iniciais de telemedicina. Isso possibilitou que a prestação de cuidados de saúde chegasse em áreas remotas da América do Norte e Austrália no início dos anos 2000 (HEATON, 2006; MURERO; RICE, 2006). Atualmente, tecnologias mediadas pela internet, plataformas sociais e aplicativos móveis interferem não apenas nas práticas on-line, como pesquisar, trocar e receber informações sobre cuidados em saúde, mas também nas opiniões de indivíduos sobre tratamentos médicos, produtos e serviços. Mais recentemente, as tecnologias de sensores corporais para monitoramento remoto do corpo, as soluções da Internet das Coisas (Internet of Things ou IoT, em inglês) e da Inteligência Artificial (IA) estão oferecendo novas perspectivas para a e-health e, sobretudo, para os cuidados de saúde (Murero, 2018a). Neste prefácio dedico-me especificamente ao tema dos cuidados de e-health. Embora analise várias soluções tecnológicas disponíveis para pacientes, cuidadores e pessoas que buscam informação sobre saúde, é importante considerar que a disponibilidade de dispositivos tecnológicos inteligentes e avançados é apenas um lado do atual fenômeno da e-health. Uma das questões mais interessantes no campo da internet e saúde é explicar o que milhões de agentes fazem com as novas tecnologias ao longo do tempo e quais necessidades eles satisfazem, graças à acessibilidade e ao uso permanentes e contínuos. Cabe enfatizar esse aspecto central, pois contribui para a definição da tecnologia de internet relacionada à saúde, ou e-health, como um campo de estudo. Como mencionei no início deste prefácio, é importante diferenciar a fase atual da era digital de sua origem, nos anos 70, quando as calculadoras digitais e o computador pessoal foram disponibilizados ao público pela primeira vez. Hoje, nossos smartphones e tablets são milhares de vezes mais rápidos e potentes do que o primeiro computador pessoal autônomo, que não possuía conexão à internet. À época, os computadores em rede eram disponíveis para alguns usuários sortudos em ambientes acadêmicos restritos. 1.3. Tornando-se interdigital: a era digital mediada pela internet Quando comparada ao início da era digital, a fase atual apresenta um cenário completamente diferente em todos os sentidos, não apenas do ponto de vista tecnológico. O mais d é a adoção de novas práticas sociocomunicativas entre milhões de pessoas conectadas à internet ao redor do mundo. Tais práticas afetaram todos os setores da sociedade, inclusive a saúde. A era digital atual é interdigital, ou a sociedade digital mediada pela internet (MURERO, 2012). Os agentes interdigitais on-line usam, é claro, a internet e as plataformas digitalizadas da Web para se comunicar e permanecer conectado. Internet e Saúde 39 No contexto do uso da internet para fins relacionados à saúde, os agentes interdigitais podem incluir: • Prestadores de cuidados de saúde (hospital, centros de assistência médica, empresas farmacêuticas etc.) • Usuários de cuidados de saúde (pacientes). • Pessoas que procuram informação sobre saúde na Internet (buscam ativamente informações por conta própria ou para outro indivíduo; podem incluir familiares, amigos, cuidadores ou parceiros). • Agentes informatizados (programas de software, chatbot1, robôs). Agentes não humanos conectados à internet (agentes interdigitais) (MURERO, 2012) são programados para executar tarefas específicas on-line, como publicar informações, receber e analisar informações pela internet, interagir via chatbot e muito mais. É importante observar que o uso de tecnologias baseadas na internet relacionadas à saúde é interdisciplinar e amplo, assim como suas implicações. Por exemplo, graças à internet, os pacientes podem realizar várias atividades, entre elas: acessar inúmeras informações sobre uma doença específica; manter contato com outros pacientes por meio das mídias sociais; compartilhar sua experiência de tratamento; acompanhar uma dieta via aplicativo; conversar com um agente computadorizado; e até compartilhar informações erradas sobre uma doença ou condição médica. 1.4. Por que as TICs sempre importam A tecnologia desempenha um papel facilitador no desenvolvimento de dinâmicas e relações sociocomunicativas para a e-health. No estágio atual, alguns dos desafios mais interessantes estão acontecendo no campo dos aplicativos móveis de assistência médica, também conhecido como m-health. Por exemplo, milhões de pessoas em todo o mundo têm a possibilidade de controlar seus hábitos de sono por meio dos seus smartphones; seguir um curso de ioga ou uma dieta via aplicativo; e até compartilhar com amigos suas performances em corridas por meio de plataformas sociais on-line. O uso de soluções móveis para a saúde cresceu exponencialmente em todos os campos da medicina – do controle da natalidade à insuficiência cardíaca. Além disso, graças às TICS, os prestadores de cuidados de saúde podem oferecer monitoramento e 1 N.T.: Chatbot (ou chatterbot) é um programa de computador que tenta simular um ser humano na conversação com as pessoas. O objetivo é responder as perguntas de tal forma que as pessoas tenham a impressão de estar conversando com outra pessoa e não com um programa de computador. 40 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) teleaconselhamento remotos, novos meios para acessar educação médica confiável e novas descobertas de pesquisa para a comunidade científica. Como afirmado anteriormente, o campo da internet e saúde não se refere apenas às ferramentas e plataformas tecnológicas de apoio à saúde, mas também às práticas sociocomunicativas on-line dos agentes. O uso de novas tecnologias desempenha um papel facilitador nos fluxos comunicacionais mediados por plataformas, que superam barreiras de espaço, tempo e custos. A comunicação humana acontece cada vez mais por meio de novas plataformas midiáticas. A quantidade de dados, conhecida como Big Data, que milhões de agentes estão gerando on-line todos os dias, ao longo do tempo, está criando novos desafios e debates sobre seu uso. O uso das TICs para e-health gera grandes quantidades de dados, facilitando o desenvolvimento de novas formas de poder e controle on-line onde ocorre essa produção e troca social. Isso tem o potencial de afetar não apenas as relações médico-paciente off-line ou as características das plataformas de mídia social em que comunidades se encontram para o apoio mútuo, mas também a dinâmica socioeconômica dos setores de saúde e bem-estar, incluindo sua regulamentação. Atualmente as práticas mediadas pela internet, assim como suas implicações, estão desafiando o campo da prestação de serviços de saúde em muitos países, incluindo o Brasil. De sistemas experimentais de telemedicina a cursos massivos de educação, o debate sobre os usos futuros das TICs para e-health afeta todos os aspectos do fenômeno e suas características específicas, incluindo os formuladores de políticas. Nos atuais cenários internacionais, coexistem soluções caras e aplicativos de baixo custo para atendimento remoto a pacientes. Por exemplo, pacientes e suas famílias que vivem nos países ocidentais, principalmente na América do Norte, podem se beneficiar de uma tecnologia complexa e muito cara para o gerenciamento remoto de cuidados em casa. As soluções avançadas de e-health combinam telemedicina, teleatendimento domiciliar, sensores vestíveis e vários bancos de dados, como Registros Eletrônicos de Saúde (RES), informações clínicas, Sistemas de Comunicação e Arquivamento de Imagens2 (Picture Archiving and Communication Systems ou PACS, em inglês) e até aplicativos não clínicos (administração do sistema, folha de pagamento do médico etc.). Por outro lado, uma tendência emergente mostra que, quando os hospitais não oferecem soluções eficientes, rápidas – e caras – para o gerenciamento rápido e conveniente do atendimento ao paciente, configuram-se por conta própria sistemas de e-health para a comunicação por mensagens instantâneas, principalmente via WhatsApp (MURERO, 2012). 2. Tendências atuais e desafios em saúde interdigital 2 N.T.: A função primordial deste sistema é armazenar imagens e facilitar a comunicação entre os setores de hospitais e clínicas. Internet e Saúde 41 O WhatsApp é um aplicativo multiplataforma de mensagens instantâneas para smartphone – e computador – que oferece maneiras baratas de comunicar e trocar dados multimídia. A recente popularização de aplicativos de mensagens instantâneas como esse tende a facilitar a troca de informações do paciente via smartphone (radiografias, resultados de testes de laboratório, vídeos de diagnóstico, texto, emoji3, áudio) para a tomada de decisões médicas (FOLLIS; MURERO; D' ANCONA, 2012). Com base na tecnologia criptografada ponta a ponta, o WhatsApp está se tornando um aplicativo móvel muito popular e fácil de usar, permitindo a comunicação instantânea de conteúdos multimídia (imagens RX, áudio, vídeo) pela internet e facilitando uma interação rápida ao superar limitações de espaço. Pequenos grupos de profissionais de saúde que usam seu próprio smartphone e conexão à internet podem trocar informações via WhatsApp e comunicar pedidos urgentes sobre o tratamento do paciente. Exemplos incluem diagnóstico e tomada de decisão em atendimento de emergência, avaliação ortopédica ou doença cardíaca aguda, mas não se limitam a eles. Quando ocorre uma emergência médica, dados sensíveis do paciente precisam ser avaliados por um grupo de especialistas, alguns dos quais podem não estar fisicamente presentes no hospital. Assim, sistemas de comunicação baseados em smartphones podem oferecer uma alternativa eficiente para alcançar profissionais de maneira imediata, enviando conteúdos multimídia e aumentando a eficiência na tomada de decisões. Após a digitalização dos dados do paciente, o conteúdo multimídia pode ser facilmente compartilhado pela internet, incluindo resultados de exames de sangue e de imagem, vídeos ou relatórios de diagnóstico. A troca de informações médicas via smartphone se torna uma alternativa conveniente para superar as limitações de espaço ou tempo. O uso de soluções multiplataformas como o WhatsApp também é ocorre na relação médico-paciente ou interações entre médico e cuidadores, particularmente quando surge uma necessidade médica urgente. Além disso, as mensagens instantâneas de aplicativos ajudam a interação e o contato pessoal entre colegas de trabalho e profissionais médicos O uso do WhatsApp como sistema de comunicação local para telemedicina entre pequenos grupos de profissionais e colaboradores de saúde ainda é um fenômeno pouco investigado (MURERO, 2018b). No entanto, sua rápida difusão pode ser explicada por várias razões parcialmente relacionadas. Por exemplo, o Brasil é um país onde serviços gratuitos de mensagens como MSN Messenger e Orkut, uma das mais antigas redes sociais on-line do mundo, tornaram-se amplamente populares, enquanto empresas de telecomunicações continuam cobrando dos usuários de telefone o envio de SMS. Outros fatores também favoreceram a rápida adoção do WhatsApp não apenas em ambientes particulares, mas também em ambientes profissionais. Entre eles há o aumento da disponibilidade de smartphones constantemente conectados à internet entre os profissionais de saúde e a popularização de aplicativos 3 N.T.: Emoji é uma palavra derivada da junção dos seguintes termos em japonês: e + moji. Originário do Japão, os emojis são ideogramas usados em mensagens eletrônicas e páginas da Web, e seu se popularizou para além do país. 42 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) móveis fáceis de usar para mensagens e redes sociais, já em uso na comunicação com familiares e amigos. Em particular, a conveniência de trocar imagens de diagnóstico, como radiografias, entre profissionais e colegas de trabalho, de maneira relativamente segura e rápida, também contribuiu para o surgimento de novas formas de interação gratuitas e convenientes. Essas práticas emergentes de e-health podem apoiar a rotina diária da prática médica. A tendência não é limitada à comunicação entre os profissionais de saúde. Por exemplo, a literatura mostra que mais e mais médicos, fisioterapeutas e profissionais de saúde mental usam o WhatsApp em todo o mundo para se comunicar diretamente com os pacientes e seus cuidadores, trocar informações e oferecer feedback rápido e indicações médicas, conforme necessário. 2.1. Troca de dados sensível, segurança e Registros Eletrônicos de Saúde (RES) Limites controversos em relação à privacidade e à segurança dos dados sigilosos do paciente não parecem ser motivo de preocupação para os cuidadores que interagem via WhatsApp. Os profissionais de saúde podem tirar e distribuir fotos de resultados laboratoriais ou radiografias, que geralmente não mostram dados pessoais (nome do paciente). Porém, informações sigilosas podem estar disponíveis nos Registros Eletrônicos de Saúde (RES) do paciente (resultados de exames laboratoriais e triagem, doenças anteriores, e mais). Os Registros Eletrônicos de Saúde, ou Registros Médicos Eletrônicos (RME), contém informações digitalizadas do paciente geralmente obtidas em pontos de assistência médica, como hospitais, que coletam dados demográficos, histórico médico anterior, relatórios de laboratórios médicos, imagens corporais ou imagens feitas para fins de diagnóstico, monitoramento de sinais vitais, informações financeiras e administrativas e outras informações confidenciais. Quando os Registros Eletrônicos de Saúde estão disponíveis digitalmente, os dados podem ser usados para adquirir, analisar, processar, arquivar e comunicar informações pela internet a vários outros agentes que detêm informações, incluindo o Ministério da Saúde dos país ou qualquer outra parte envolvida. A privacidade e a segurança dos dados são questões cruciais para proteger as informações do paciente em um sistema distribuído. Outras questões podem incluir: regulamentação do acesso a diferentes níveis de confidencialidade dos dados e informações em cada ponto de atendimento (secretário, enfermeiro, médico, comodificação de dados4 etc.); dificuldades dos médicos incluírem 4 N.T.: comodificação de dados, ou commodification of data, no original, refere-se a transformação de bens, serviços, ideias, elementos da natureza, informações pessoais e pessoas em commodities ou objetos de comércio, Internet e Saúde 43 dados no RES; e desafios na integração entre diferentes bancos de dados de cada ponto de atendimento e um sistema central de informações. O uso do Registro Eletrônico de Saúde também está associado a várias vantagens. Por exemplo, pacientes recém-admitidos, especialmente aqueles que não podem se comunicar como consequência de um trauma, podem se beneficiar de um sistema central que fornece registros médicos anteriores. Além disso, pessoas incapazes de fornecer informações médicas válidas ou que são debilitadas podem se beneficiar da portabilidade do histórico médico, das informações médicas confiáveis e precisas, da proteção contra perda de dados, da durabilidade dos dados ao longo do tempo, uma vez digitalizados, e da fácil duplicação de registros. Instituições de saúde que acessam os RES podem ter a possibilidade de realizar estudos médicos em uma grande população para analisar a qualidade de um tratamento fornecido, avaliar um ensaio clínico, entre outros. Os formuladores de políticas podem se beneficiar de análises epidemiológicas para a saúde pública, análises de dados de saúde para tomada de decisão política e melhorias da qualidade do atendimento. 2.2. Da telemedicina ao teleatendimento domiciliar Cidadãos que vivem em áreas subdesenvolvidas do mundo sofrem com a carência de profissionais de saúde. A troca de informações médicas digitalizadas entre pontos de atendimento distantes, a fim de avaliar casos singulares e fornecer acesso a cuidados médicos adequados, é crucial no diagnóstico remoto. Em particular, soluções de telemedicina e teleatendimento domiciliar têm sido confiados a sistemas complexos de gerenciamento de serviços de saúde, que exigem manutenção e investimentos desafiadores. A telemedicina consiste no fornecimento remoto de serviços de saúde por meio de arquiteturas e plataformas específicas de TIC, que dependem de uma conexão de internet rápida e de alta qualidade para a comunicação por vídeo e para a troca de dados multimídia. Por exemplo, os pacientes podem fazer uma consulta dermatológica em tempo real enquanto estão sentados a centenas de quilômetros do hospital que presta o serviço. Outras situações práticas s incluem várias áreas médicas, desde a psiquiatria até radiologia. Os sistemas pioneiros de telemedicina testaram a possibilidade de prestar atendimento emergencial de telecirurgia via robô para astronautas no espaço (KILPATRICK, 2004). Atualmente, a telemedicina abrange várias aplicações clínicas em países ricos. Por exemplo, é útil no apoio ao processo de decisão médica com base na troca remota de imagens (como imagens de alta qualidade da pele, na avaliação de radiografias em uma emergência ortopédica) e na consulta psiquiátrica e psicológica. Sempre que faltam profissionais especializados em um ponto de atendimento, mesmo em uma grande 44 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) cidade, os sistemas de telemedicina podem contribuir para o acesso aos registros, avaliação e atendimento dos pacientes. Como as arquiteturas de telemedicina podem oferecer diferentes formas de comunicação em um único ponto de atendimento virtual, vários profissionais de saúde e o próprio paciente podem simultaneamente interagir com vídeo e áudio, além de acessar e trocar dados, todos de diferentes locais físicos. Os sistemas de telemedicina podem ainda oferecer consulta virtual e vários outros serviços por meio de um complexo sistema de comunicação bidirecional baseado na internet. Os benefícios associados a esses sistemas são muito valiosos para pacientes e médicos. Porém, apenas uma minoria de unidades de saúde pode oferecer serviços tão complexos, pois exigem grandes investimentos ao longo do tempo no gerenciamento, na formação da equipe e e na manutenção e administração. A telemedicina pode oferecer assistência remota quando falta consultoria local devido ao surgimento de um problema grave. Por sua vez, a tele-assistência domiciliar, um ramo específico da telemedicina, visa oferecer assistência médica contínua a pacientes crônicos em casa, monitorando remotamente seus sinais vitais. Pacientes com doenças crônicas, como diabetes, problemas agudos de saúde ou asma grave, não precisam necessariamente de hospitalização. Porém, para manter sua qualidade de vida, precisam seguir em casa as instruções do médico relacionadas com o estilo de vida e os medicamentos, além de serem monitorados regularmente. Se ocorrerem sinais precoces de deterioração de sua saúde, esses pacientes podem necessitar de uma avaliação profissional imediata e até mesmo hospitalização. Nesse contexto, os dispositivos de teleassistência domiciliar são instalados na casa do paciente. Eles podem emitir um alerta para tratamento médico urgente, combinando a telemedicina on-line, o monitoramento doméstico contínuo por meio de sensores e a análise remota dos sinais do corpo, mesmo sem o conhecimento do paciente. Quando registra uma situação anormal, o sistema de teleatendimento domiciliar alerta por meio da internet o ponto de atendimento. Além disso, de acordo com a especificidade da situação, o profissional de saúde pode entrar em contato com o paciente para receber mais informações, avaliar o caso e decidir o tipo de tratamento necessário. Sistemas complexos para rastreamento on-line da saúde do paciente podem ajudar médicos a fornecer avaliação e tratamentos assistidos em áreas onde a experiência e os serviços não estão disponíveis, trocando informações e verificando sintomas e sinais vitais em tempo real. A teleassistência domiciliar pode impedir a deterioração da saúde e melhorar a qualidade de vida do paciente por meio de protocolos precisos de análise de dados e procedimentos para salvar vidas. 2.3. Sistemas Integrados Avançados para Assistência Médica Interdigital Internet e Saúde 45 Em contextos avançados de cuidado de e-health, sobretudo na América do Norte, grandes investimentos permitiram o desenvolvimento de sistemas complexos de gerenciamento de informações para organizações de assistência à saúde, como redes hospitalares. Esses sistemas integrados usam tecnologia baseada na internet para reunir, processar, integrar e arquivar várias fontes de dados e aplicativos, visando gerenciar serviços de saúde. Desde a década de 1990, os primeiros sistemas de informações criados para lidar com questões financeiras e cobrança de pacientes do hospital melhoraram drasticamente. Eles passaram a incluir mais e mais áreas da gestão da saúde, integrando soluções clínicas e não clínicas ao ponto de atendimento. Exemplos de sistemas multisserviços de gerenciamento de saúde interdigital incluem: • Aplicativos que fornecem diferentes níveis de segurança para acessar informações do paciente e Registros Eletrônicos de Saúde - como relatórios de diagnóstico transcritos, resultados de exames de sangue, arquivamento de radiografias, sistemas de comunicação interna e Sistemas de Comunicação e Arquivamento de Imagens (PACS); • Pedidos médicos (acrescentar e consultar de pedidos, solicitar materiais médicos e medicamentos para pacientes hospitalizados); • Monitoramento dos sinais vitais do paciente, dentro e fora do hospital, por meio de um sistema de monitoramento on-line, incluindo sistemas para atividade de sensores, dispositivos digitais e aplicativos; • Criação de bancos de dados internos para realização de pesquisas médicas, atividades acadêmicas, ensaios clínicos e colaborações internacionais; • Administração hospitalar (como a compra e o inventário de materiais; o gerenciamento de informações e pagamentos de pacientes; a auditoria interna para verificar a qualidade dos tratamentos e procedimentos fornecidos; a segurança de acesso e os sistemas de gerenciamento financeiro, incluindo folhas de pagamento e pagamentos de funcionários internos); • Dispositivos tecnológicos para funcionários internos, como smartphones, aplicativos específicos para atendimento, programas de automação de tarefas (Word, Excel). • Sistemas internos que fornecem acesso à educação continuada on-line obrigatória e a informações acadêmicas (banco de dados de informações sobre medicamentos, literatura médica científica etc.). A indústria tecnológica de saúde e os formuladores de políticas devem considerar que a falta de recursos dos prestadores de serviços de saúde pode, em última instância, resultar na manutenção de tecnologias antigas, em vez de adotar soluções inovadoras de e-health, que podem beneficiar amplamente os pacientes e suas famílias - como a assistência médica domiciliar. Nas últimas duas décadas, as Tecnologias de Informação e Comunicação e os Sistemas de Informação em Saúde (SIS) vêm oferecendo novos desafios 46 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) para aplicações clínicas internas e remotas voltadas para pacientes e suas famílias. No entanto, como a tecnologia se desenvolve muito rapidamente, quando novas soluções se tornam disponíveis, formuladores de políticas públicas e instituições de saúde se confrontam com a necessidade contínua de antecipar demandas futuras e fornecer investimentos e recursos adequados em educação. É importante considerar que a disponibilidade de dispositivos tecnológicos inteligentes e avançados é apenas um lado do atual fenômeno da e-health O foco deste prefácio é definir os cuidados de e-health no contexto de múltiplas soluções tecnológicas disponíveis para pacientes, cuidadores e pessoas que procuram informação sobre saúde. Porém, é importante considerar os usos que milhões de agentes interdigitais fazem com as novas tecnologias ao longo do tempo e quais plataformas eles acessam para satisfazer que tipos de necessidades. Além disso, o que terceiros fazem com os dados do usuário é motivo de preocupação e pouca regulamentação. 3. Passado, presente e futuro da saúde eletrônica Nos últimos vinte anos, as vantagens e desvantagens da e-health, assim como suas barreiras e facilitadores, têm sido objeto de estudo, preocupação e debate. Por exemplo, os otimistas sobre serviços de saúde on-line têm afirmado que o investimento em novas TICs pode reduzir custos, fornecer acesso a uma imensa gama de informações e práticas e melhorar a eficiência e a qualidade dos cuidados. Por outro lado, existem preocupações sobre responsabilidade, segurança, privacidade e confidencialidade de dados confidenciais e seu uso (Big Data), como mostram os capítulos deste livro. Ao observar como o uso da internet afetou milhões de pessoas em todo o mundo, incluindo provedores de serviços de saúde e pacientes, surgem vantagens e desvantagens. Por um lado, quando os indivíduos se informam on-line sobre sua doença, o uso da internet pode potencialmente empoderá-los e ajudar os médicos a gerenciar melhor os processos e os desafios da assistência à saúde. Informados, os pacientes também podem participar melhor do processo de tomada de decisão sobre sua saúde. Por outro lado, avaliar a qualidade da informação on-line sobre saúde ainda é uma questão central para os usuários da Internet, porque qualquer pessoa pode potencialmente publicar conteúdo sem seguir uma regulamentação específica. Mesmo quando a regulamentação existe em um país, a natureza da distribuição da informações on-line pode permitir exceções. Isso é preocupante, porque, de acordo com evidências acadêmicas, esse tipo de informação on-line afetam o processo de tomada de decisão em saúde medicados indivíduos. Nesse cenário, algumas iniciativas têm sido conduzidas a fim de garantir a qualidade do conteúdo on-line sobre saúde. Uma delas é da Health on the Internet Foundation (HON). Trata-se de uma organização sem fins Internet e Saúde 47 lucrativos com sede na Geneva, Suíça, que emite um código de conduta (HONcode) para sites que publicam conteúdo relacionado à saúde adequado aos padrões de qualidade estabelecidos por ela (HON, 2017). O logotipo HONcode garante aos usuários on-line que as informações de saúde são seguras e confiáveis. Contudo, a exibição do logotipo do HONcode em sites “aprovados” nem sempre garante aos usuários on-line que a informação sobre saúde é confiável. Na verdade, o HONcode aplica-se a processos editoriais, enquanto a qualidade do conteúdo on-line depende da vontade do gestor do em honrar os critérios do HONcode ao longo do tempo. Achados de estudos empíricos mostram que esse nem sempre é o caso (PEREIRA et al., 2017). Sistemas de compliance melhorados e até mesmo sanções deveriam proteger aqueles que buscam informação. Uma pesquisa da instituição estadunidense Pew Research Center5 (SMITH; ANDERSON, 2014) indicou que a inteligência artificial e a robótica devem ter implicações enormes na e-health nos próximos dez anos. A rápida introdução de novos dispositivos de TICs, pode oferecer oportunidades únicas. Entre esses dispositivos, encontram-se robótica assistida inteligente para pessoas com deficiência e idosos, Inteligência Artificial (IA) que apoia o diagnóstico e atendimento médico e novas ferramentas para o gerenciamento remoto de pacientes crônicos. No entanto, eles também geram novos desafios para o acesso e fornecimento de e-health. Espera-se que enormes desafios afetem setores cruciais da sociedade, como trabalho, governança, educação, práticas sociocomunicativas e, é claro, saúde e bem-estar. Entre esses desafios, é previsto que a Internet das Coisas (Internet of Things ou IoT, em inglês) tenha um grande impacto no campo da saúde nas próximas três décadas. devido à crescente quantidade de objetos médicos conectados à internet. É esperado que a comunicação entre tais dispositivos aumente exponencialmente, desde a incorporação de sensores inteligentes ao monitoramento remoto até dispositivos médicos inteligentes para integração doméstica e atividades físicas. A difusão de dispositivos móveis inteligentes para o cuidado de saúde e robôs sociais acompanhantes para pacientes que necessitam assistência e cuidado domiciliares trarão novos desafios. Tais desafios terão impacto sobretudo para as instalações de tecnologia de informação (TI) do hospital em termos de segurança da privacidade de dados sensíveis, gerenciamento de enorme quantidade de dados coletados e vigilância constante. A mercantilização de grandes quantidades de dados confidenciais, assim como seu uso por empresas que fornecem plataformas tecnológicas e serviços de internet, ainda é um desafio que deve crescer nos próximos anos. Atualmente, faltam políticas regulatórias para essa questão. Porém, a necessidade de regulamentação adequada é não apenas para lidar com as atuais desvantagens, ameaças e barreiras, mas também para desenvolver benefícios e facilidades, provavelmente enfrentará obstáculos nos próximos anos. A 5 Pew Research Center é uma instituição não partidária que armazena dados e fatos para informar o público sobre os problemas, atitudes e tendências que estão moldando o mundo. Realiza pesquisas de opinião pública, pesquisa demográfica, análise de conteúdo de mídia e outras pesquisas empíricas em ciências sociais. É uma subsidiária da The Pew Charitable Trusts. 48 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) capacidade de gerar, transmitir e capturar uma enorme quantidade de dados pessoais (Big Data) por meio de sensores, webcam, aplicativos para smartphones e dispositivos vestíveis é uma realidade permanente. Para além das questões de segurança e privacidade, cabe ressaltar que modelos analíticos que avaliam Big Data para fins de saúde pública têm o potencial de expandir as capacidades do governo em termos de campanhas de prevenção de doenças, oferta de assistência médica e racionalização de recursos escassos. Saúde é um conceito multidimensional. Não é apenas uma condição física relacionada à ausência de doença, mas também um status de bem-estar mental e social. As implicações da vasta adoção da internet são tão importantes que podemos definir uma fase da era da digitalização, uma era “digital baseada na internet” ou era interdigital (MURERO, 2012; 2018a). Hoje em dia, cada vez mais pessoas e objetos estão tecnologicamente conectados uns aos outros, trocando trilhões de dados. Nesse contexto, o uso da internet para fins de saúde e bem-estar atingiu enormes proporções globais, embora as realidades nacionais locais sejam diferentes umas das outras. Mas, como ilustra este prefácio, a e-health - ou a tecnologia relacionada à saúde que utiliza a internet - e as implicações associadas à sua difusão vão muito além da dimensão tecnológica, incluindo meios multidimensionais de conexão, acesso e prestação de cuidados em saúde e bem-estar de vários agentes. É possível identificar certos padrões ao analisar como as partes interessadas em ehealth atendem suas necessidades on-line e quais efeitos controversos relacionados aos comportamentos de e-health emergem nesse contexto. Um ponto importante no debate internacional é que, embora os cuidados de saúde em hospitais e pontos de atendimento seja altamente regulamentados por governos em todo o mundo, a e-health ainda é amplamente não regulamentada. A coleta de dados de saúde, a segurança, a proteção e os diferentes níveis de acesso a informações confidenciais ainda exigem debate e regulamentação do governo e de órgãos internacionais. Enquanto as tecnologias inovadoras tentam conquistar consumidores de e-health, a regulamentação inadequada das práticas on-line parece ter um terreno comum em vários países. Por exemplo, as implicações da troca de informações pessoais de saúde em plataformas on-line e sua mercantilização (commodification) por terceiros ainda são motivo de debate e pouca ação entre a indústria, os formuladores de políticas e os acadêmicos. Ambientes virtuais e tecnologia baseada em sensores para atendimento domiciliar, Internet das Coisas e Inteligência Artificial estão evoluindo rapidamente. A diferença entre a inovação da indústria para e-health e a sua regulamentação ainda é um desafio. Conforme a prestação de serviços de saúde em hospitais e pontos de atendimento é atualmente altamente regulamentada por governos em todo o mundo, soluções inovadoras de e-health, como robótica para acompanhamento e até mesmo telemedicina instantânea do tipo “faça você mesmo” devem estar regulamentados e salvaguardados para garantir a todos o direito fundamental à saúde de qualquer pessoa. Internet e Saúde 49 Referências EYSENBACH, G. What is e-health? 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Desse modo, considerando os influxos da rede mundial de computadores em nosso cotidiano, o objetivo deste capítulo é apresentar uma perspectiva histórica da instalação e popularização da internet, com especial atenção ao caso do Brasil. O capítulo percorre o processo de construção da internet, apontando um processo iniciado ainda ao final dos anos 1950, e enfocando as transformações experimentadas por essa tecnologia entre 1995 e 2017. Diante dos muitos nós formadores da internet, o capítulo discute como a implantação da rede e a sua popularização no Brasil possuem um itinerário resultante das muitas tensões entre os diferentes setores envolvidos na chegada e no esforço de expansão da rede mundial de computadores. Palavras-chave: Internet; Brasil; História; Ciberespaço. Referência: MAYNARD, D. C. S. Introdução à história da internet: uma perspectiva brasileira. In: PEREIRA NETO, A.; FLYNN, M. (orgs.). Internet e saúde no Brasil: desafios e tendências. 1 ed. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2020. p. 51-64. Este capítulo é uma versão atualizada do texto inicial do livro “Escritos sobre história e internet” (MAYNARD, 2011). ** Centro de Educação de Ciências Humanas, Universidade Federal de Sergipe, Brasil. E-mail: [email protected] * Internet e Saúde 53 O segundo dilúvio não terá fim. Não há nenhum fundo sólido sob o oceano de informações. Devemos aceitá-lo como nossa nova condição. Temos que ensinar nossos filhos a nadar, a flutuar, talvez a navegar (LÉVY, 2000, p. 15). Memórias do segundo dilúvio O físico Albert Einstein (1879-1955) certa vez afirmou que o século XX experimentou três grandes explosões: a demográfica, a atômica e a das telecomunicações. Essa última “bomba” foi chamada por Roy Ascott1 de “Segundo Dilúvio”. Isto é, como no primeiro dilúvio, narrado na Bíblia, a humanidade experimentou outro fenômeno grandioso e inevitável. Algo que mudou o mundo. Porém, ao contrário dos tempos de Noé, as águas do novo dilúvio são formadas por dados, notícias, imagens, músicas e tudo o mais que circula no universo eletrônico. O oceano agora é feito de informações2. Esse novo lugar tem a sua melhor forma de representação naquilo que chamamos internet. Embora seja oriunda dos anos 1960, para a maioria das pessoas, a internet nasceu em 1995. E desde o seu “nascimento”, essa inovação colocou nossas vidas em rede. Mas o que é isso? O que é esse meio de comunicação que parece onipotente e cotidianamente revolucionário? Compreendendo basicamente “a rede das redes, o conjunto das centenas de redes de computadores conectados em diversos países dos seis continentes” (PINHO, 2003, p. 41), a internet – abreviatura de INTERaction or INTERconnection between computer NETworks (interação ou interconexão entre redes de trabalhos de computadores) equivale fisicamente a uma estrada da informação. Mais propriamente, assemelha-se a uma superestrada da informação (GATES, 1995), termo cunhado pelo então senador Al Gore (Senior), em 1978, numa referência às highways abertas pelos Estados Unidos na gestão presidencial de Dwight D. Eisenhower (1953-1961). A ideia para o que hoje chamamos de internet surgiu a partir das experiências em torno da ARPANET, rede de computadores criada em setembro de 1969 pela Advanced Research Projects Agency (ARPA) - instituição formada em 1958 pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos. A ARPA seria incumbida de mobilizar recursos de pesquisas, principalmente no âmbito universitário, com o objetivo de alcançar a superioridade tecnológica militar em relação à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), 1 Roy Ascott é um artista e teórico britânico. Desde os anos 1960, realiza trabalhos pioneiros de interação entre cibernética, telemática e arte. Ascott empreendeu diversos projetos em rede global e publicou mais de setenta textos. Professor de Tecnoética na University of Plymouth (Inglaterra) e Professor Adjunto de Design/Media Arts na University of California (Los Angeles). 2 O capítulo 9 discute a qualidade da informação de saúde na Internet. 54 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) funcionando como uma espécie de resposta institucional norte-americana ao lançamento do primeiro satélite Sputnik3, em 1957. Nestes tempos, a disputa entre as duas superpotências do mundo Pós-Segunda Guerra – Estados Unidos e URSS – estava presa aos feitos tecnológicos espaciais. Como lembrou Richard Barbrook, “os astronautas eram idolatrados como heróis tipicamente estadunidenses por tomarem conta do inimigo da Guerra Fria nos céus” (BARBROOK, 2009, p. 44). Apesar disso, durante um período, a dianteira esteve com os soviéticos. Não bastasse colocar o primeiro satélite em órbita, os russos enviaram também o primeiro cosmonauta, Yuri Gagarin (1934-1968), ao espaço. Para o assombro dos norte-americanos, o soldado inimigo virou celebridade. Em 1961, “o russo passou pelo Rio de Janeiro e por São Paulo, tendo sido saudado por multidões, e por Brasília, onde foi condecorado pelo então presidente Jânio Quadros” (SHIMIZU, 2006, p. 19). Portanto, pode-se dizer que a emergência da internet está simultaneamente enraizada em dois mundos (CASTELLS, 2003). Num primeiro plano, ela se desenha naquele cenário bipolarizado gerado pela Guerra Fria (1945-1991) e, ao mesmo tempo, num ambiente descentralizado, cheio de protestos pacifistas e de contracultura (WILLER, 2009). Situar a criação da rede mundial nesse ambiente é importante, pois, como afirmou Roy Rosenzweig (1998), Compreender essa dupla herança nos permite entender melhor as controvérsias atuais sobre se a internet será “aberta” ou “fechada” – se a internet promoverá o diálogo democrático ou hierarquia centralizada, a comunidade ou o capitalismo, ou uma mistura de ambos. (ROSENZWEIG, 1998, tradução nossa). E, em meio a essa zona ainda opaca, a essa ilusória sensação de imediatez, é importante elaborar uma narrativa, ainda que lacunar, introdutória, sobre a história da rede mundial de computadores. Uma constatação inicial: a internet resulta de diferentes instituições. Universidades, empresas de software, organizações governamentais e corporações militares se envolveram, com intensidades diferentes, na construção dos nós que formaram a rede das redes. Após quase quatro décadas de existência, a grande inovação foi viabilizada para fins comerciais nos anos 1990. Ela resulta da fusão de três processos fundamentais. São eles: 3 Lançado em 4 de outubro de 1957, o Sputnik foi o primeiro de uma série de satélites artificiais criados pela União Soviética. Entre suas finalidades, estava a contribuição na coleta de informações para uma possível viagem espacial. Como explica Heitor Shimizu, “hoje, com centenas desses equipamentos em órbita da terra, mandando sinais a todos os pontos do planeta, é difícil entender a importância de seu precursor. Mas em 1957, apenas doze anos após o fim da Segunda Guerra, quando a televisão se tornava popular e o rock ensaiava seus primeiros passos, a pequena bola metálica lançada ao seu foi um assombro” (SHIMIZU, 2006, p. 18). Internet e Saúde 55 1. Exigências econômicas por flexibilidade administrativa e globalização de capital, da produção e do comércio; 2. Demandas sociais em que os valores de liberdade individual e da comunicação tornaramse supremos; 3. A revolução microeletrônica que possibilitou importantes avanços nas telecomunicações e na computação. No entanto, deve-se salientar que não coube apenas à ARPANET a concepção da internet. É preciso considerar outras contribuições pertencentes àquilo que Manuel Castells chamou de “tradição de base de formação de redes de computadores” (CASTELLS, 2003, p. 15). Um desses contribuintes foi o Bulletin Board Systems (BBS), um sistema de quadro de avisos surgido da interconexão entre computadores pessoais ao final dos anos 1970. Juntem-se a isso programas como o MODEM, criado em 1977 por Ward Christensen e Randy Suess, estudantes da Universidade de Chicago, que permitia a transferência de arquivos entre computadores pessoais. Um ano depois, os mesmos estudantes escreveram outro programa, batizado de Computer Bulletin Board System, possibilitando o armazenamento e a transmissão de mensagens entre computadores pessoais. Anos antes do surgimento dos programas acima mencionados, em 1975, a ARPANET já havia sido transferida para a Defense Communication Agency (DCA). Uma década e meia depois, em 1990, a rede seria colocada sob o controle da National Science Foundation e, em pouco tempo, outras redes com uma estrutura semelhante, mas agora em bases comerciais, apareceriam. Conforme Manuel Castells (2003): A partir de então, a Internet cresceu rapidamente como uma rede global de redes de computadores. O que tornou isso possível foi o projeto original da ARPANET, baseado numa arquitetura em múltiplas camadas, descentralizada, e protocolos de comunicação abertos. Nessas condições a Net pôde se expandir pela adição de novos nós e a reconfiguração infinita da rede para acomodar necessidades de comunicação (CASTELLS, 2003, p. 15). Basicamente, a ARPANET era um pequeno programa dentro da ARPA, ligado ao Information Processing Techniques Office (IPTO), criado em 1962, um dos departamentos da ARPA. Tal departamento era comandado por Joseph Licklider, psicólogo vindo do Massachusetts Institute of Technology (MIT). A ideia era aprofundar pesquisas em computação interativa. Justamente devido a esse enfoque colaborativo, a ARPANET permitiu que vários departamentos trocassem informação entre si. O compartilhamento deveria ser feito por comutação de pacotes, conforme o processo desenvolvido por Paul Baran, da Rand Corporation, empresa que trabalhava para o Pentágono. Donnal Davies, do British National Physical Laboratory, também estava envolvido. Mas o que compreendia essa proposta? 56 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) 1. A novela em cartões postais O projeto de comutação de Baran arquitetava uma rede de comunicação militar flexível, capaz de sobreviver a um ataque nuclear – algo que inicialmente era quase previsível, diante da escalada e do antagonismo entre as duas superpotências da Guerra Fria. A informação dividida em paquetes chegaria gradativamente ao seu destinatário. Assim, Baran deu início à comunicação telemática. Era, ele mesmo explicou, como escrever uma novela em cartões postais. Em lugar de oferecer ao destinatário o conteúdo de uma novela, todo ele encadernado, a ideia era mandar o texto aos pedaços, para que ele fosse posteriormente reunido, montado, e só depois de recebido o último pacote, compreendido (CASTELLS, 2003). Para tanto, Paul Baran propôs um sistema híbrido que se valia da telefonia, dos satélites e da comunicação a rádio. Daí, em 1973 surge o projeto do “Protocolo de Controle de Transmissão”4 (TCP). Emerge assim um modelo revolucionário. Em lugar de uma comunicação centralizada, propõe-se o inverso, investindo em descentralização e flexibilidade (CYCLADES, 2000). Desse modo, o protocolo permitia que máquinas com características distintas e mesmo com linguagens diferentes pudessem se comunicar. Depois, em 1978, essa convenção foi dividida em duas partes e acrescentada de um “Protocolo Intra-Rede” (IP). Isso gerou o “Protocolo TCP/IP” – padrão na internet até hoje. Porém, é preciso observar que o projeto da ARPANET não tinha objetivos explicitamente militares. A concepção dessa rede descentralizada envolveu instituições como Universidade da Califórnia em Los Angeles, o Stanford Research Institute (SRI), a Universidade da Califórnia em Santa Bárbara e a Universidade de Utah. Desse trabalho cooperativo, surgiu a ideia de conectar a ARPANET a duas outras redes: a Packet Radio Network (PRNET), (desenvolvida para a comutação de pacotes num ambiente tático militar, e a Atlantic Packet Satellite Network (SATNET), destinada ao controle de satélites. Com tal proposta, definiu-se mais claramente o conceito de rede das redes, como “uma espécie de ninho de serpente com milhares de cabeças e ao mesmo tempo sem cabeça alguma” (MAZZEO, 2000, p. 7). Esta conjunção é importante, pois transformou a internet. Antes era restrita a hackers, cientistas e militares sedentos por derrubar o outro, principalmente se esse outro fosse o inimigo soviético. Porém, essa tecnologia tornou-se uma plataforma para o novo mundo que se desenhou: a sociedade em rede. Portanto, em síntese, a internet surge de “Em uma rede TCP/IP, cada equipamento deve ter um endereço único, capaz de identificá-lo na rede. Esses endereços, chamados de endereços IP, são números de 32 bits, representados por quatro campos de números decimais inteiros, separados pelo caracter ponto. Cada campo pode assumir valores de 0 a 255, e corresponde a um byte do endereço IP na forma de bits. Cada endereço IP contém o endereço da rede a que o equipamento pertence e o endereço do próprio equipamento dentro dessa rede” (CYCLADES, 2000, p. 8). 4 Internet e Saúde 57 uma convergência singular: pesquisas militares, ciência de ponta e cultura da liberdade (expressa, por exemplo, nos movimentos antiguerra dos anos 1960). Como componentes fundamentais desse processo, quinze “nós” formavam a rede em 1971. Todos eram basicamente centros universitários de pesquisa, instituições que predominaram nesse ambiente até o início dos anos 1980 (CASTELLS, 2003). 2. As trilhas para a World Wide Web O projeto da ARPA foi implementado pela Bolt, Beraneck and Newman (BBN), firma de engenharia acústica de Boston que passou a realizar trabalhos em ciência da computação aplicada. Professores do MIT fundaram essa firma. Engenheiros e cientistas dessa instituição e de Harvard faziam parte da equipe (BARBROOK, 2009). Em 1975 a ARPANET foi transferida para a Defense Communication Agency. Pensando em comunicar os computadores das várias redes que controlava, a DCA criou a Defense Data Network, operando com “Protocolos TCP/IP”. Porém, em 1983, preocupado com possíveis brechas na segurança, o Departamento de Defesa resolveu criar a MILNET: uma rede independente com objetivos militares específicos. Por conta disso, a ARPANET transformou-se em ARPANET-Internet, sendo destinada apenas à pesquisa (CASTELLS, 2003). Pouco depois da criação da MILNET e da transferência da Internetpara a National Science Foundation (NSF) em 1984, a NSF estabeleceu sua própria rede de comunicações entre computadores, chamada NSFnet. Em 1988, a ARPA-Internet passou a ser usada como backbone da NSF, isto é, uma infraestrutura física da rede, por onde passam as correntes elétricas que são compreendidas como sinais. Em 1989, estava pronta a World Wide Web, a teia de alcance mundial, também chamada WWW ou simplesmente Web, criada no Laboratório de Pesquisas Nucleares (CERN), em Genebra, na Suíça. Peça estratégica para o sucesso comercial da internet, a Web resulta de um projeto cujo objetivo era interligar os pesquisadores de vários institutos pela internet. Atualmente a WWW é, sem dúvida, o sistema cuja utilização mais cresce na internet, sendo também o maior responsável pelo crescimento dessa rede nos últimos anos. Ela facilita a vida do usuário da rede, pois é uma aplicação que roda sobre as “camadas anteriores” da internet (LÉVY, 2000, p. 27)5. Ela cria uma “teia” capaz de conectar documentos pela internet. Em 1990, a ARPANET foi retirada de operação, pois já era considerada obsoleta. Finalmente a internet estava livre de sua redoma militar. Transferida para NSF, ela atraiu os olhares dos provedores de serviços, que montaram suas próprias redes e estabeleceram suas portas de comunicação em bases comerciais. Como resultado, a Para Pierre Lévy (2000, p. 27), a WWW é “uma função da internet que junta, em um único e imenso hipertexto ou hiperdocumento (compreendendo imagens e sons), todos os documentos e hipertextos que a alimentam”. 5 58 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) internet ampliou-se rapidamente. Mas o que possibilitou esse crescimento vertiginoso? Provavelmente o projeto original da ARPANET. Ele se baseava em uma arquitetura de múltiplas camadas, descentralizada e com protocolos de comunicação abertos. Isso permitiu à rede a expansão com novos nós, assim como uma reconfiguração infinita de forma a acomodar necessidades de comunicação (CYCLADES, 2000). Corolário disso, a internet conseguiu se redesenhar quase que ininterruptamente. Evidentemente, a Guerra Fria forneceu um contexto favorável para aplicação de recursos em ciência. A meta era vencer os soviéticos. Porém, é preciso dizer que a ARPA possuía autonomia considerável, mesmo sendo ligada a militares. Seus quadros eram compostos por cientistas, seus amigos e alunos. A proposta desses pesquisadores era produzir algo que fosse importante para os militares e simultaneamente lucrativo para a economia. Por isso, desde a década de 1980, os fabricantes eram incentivados pelo Departamento de Defesa a incluírem o TCP/IP como protocolos em seus computadores (CASTELLS, 2003). Todavia, é necessário considerar também o impulso político que a rede ganhou com a ascensão de Bill Clinton à presidência dos Estados Unidos, junto a Al Gore Jr como vice. Derrotando o então presidente George Bush (Senior), Clinton incluiu a popularização da internet como uma das suas plataformas de campanha. A internet passou a fazer parte do discurso de políticos, sendo a parte mais visível da chamada “Sociedade da Informação” (ERCÍLIA; GRAEFF, 2008, p. 14). Em 1995 a internet tornou-se enfim também um negócio privado. Ao final do seu primeiro ano de funcionamento, 16 milhões de usuários navegavam pelo oceano eletrônico. Em 2001, já eram cerca de 400 milhões. Em dezembro de 2017, o quantitativo era bastante superior: mais de 4 bilhões de pessoas conectadas (INTERNET WORLD STATS, 2018)6. Esse crescimento foi acompanhado por outra mudança importante. Com o passar dos anos, a Web, inicialmente radicada nos Estados Unidos, firmou-se como mídia global. De acordo com Internet World Stats (2009), Um dado interessante mostrado na pesquisa é que a internet deixou de ser uma mídia centrada nos Estados Unidos para se transformar em global, afinal, atualmente, 21% das pessoas que acessam a Web são dos EUA, sendo que esse número chegava a 66% em 1996. [...] De acordo com o estudo, o número de pessoas que frequentam sites de relacionamento, como Orkut, MySpace, Facebook e LinkedIn, chegou a 530 milhões em um ano, o que corresponde a um crescimento de 34%. Os números se tornam ainda mais impressionantes quando a comScore afirma que esses sites atraem mais de 100 milhões de visitas por mês e que de cada três pessoas que acessam a internet, duas navegam em redes sociais, com destaque 6 O número apresentado pelo site para 31 dez. 2017 é de 4.156.932.140 usuários, atingindo um percentual de 54% da população mundial (INTERNET WORLD STATS, 2018). Internet e Saúde 59 para o YouTube, que atraiu mais de 250 milhões de usuários globais em janeiro. (INTERNET WORLD STATS, 2009). Vamos apresentar mais alguns dados. Conforme aponta Pierre Lévy (2000), na década de 1970, a rede ARPANET possuía, nos Estados Unidos, “nós” que suportavam 56 mil bits por segundo. Depois, nos anos 1980, as linhas da rede entre os cientistas americanos podiam transportar 1,5 milhões de bits por segundo. O crescimento continuou e, em 1992, “as linhas da mesma rede podiam transmitir 45 milhões de bits por segundo” (LÉVY, 2000, p. 36). Isso equivale a dizer que era possível transmitir em dados o equivalente a uma enciclopédia por minuto. Mas é preciso entender que o peso da Web vai além de números, pois o mundo atual se estrutura em torno dela. Como escreveu Nicholas Negroponte, “a informática não tem mais nada a ver com computadores. Tem a ver com a vida das pessoas” (NEGROPONTE, 1995, p. 11). Desse modo, economias, atividades culturais, políticas governamentais, empreendimentos comerciais, procedimentos e políticas de saúde são pensadas a partir da sua inserção na Web. Por isso, Castells afirma que “ser excluído dessas redes é sofrer uma das formas mais danosas de exclusão em nossa economia e em nossa cultura” (CASTELLS, 2003, p. 8). No Brasil, o longo caminho para diminuir a situação de exclusão de milhões de pessoas com computadores, mas sem acesso à internet, sinaliza o quão árduo é o problema a ser superado (SANTANNA, 2009). 3. Internet à brasileira A propósito, no Brasil, a trajetória da internet teve início comercialmente em 1995, acompanhando o ocorrido em outras partes do mundo. Porém, anos antes, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) já utilizavam a rede, amparadas por parceiros internacionais, marcadamente laboratórios e universidades, localizados majoritariamente nos Estados Unidos. Como se pode perceber, o ambiente acadêmico era o locus quase isolado para a rede até aí (MAZZEO, 2000). Na verdade, podem ser percebidos movimentos em torno da inserção do Brasil em uma rede internacional ainda nos anos 1970. A Empresa Brasileira de Telecomunicações (EMBRATEL), à semelhança de outras estatais do período, era detentora do monopólio do setor. Ao final de 1979, foi criado o Laboratório Nacional de Redes de Computadores (LARC), depois rebatizado Rede Nacional de Pesquisa (RNP), em 1989, cujo objetivo era permitir o acesso de redes acadêmicas brasileiras a redes internacionais. Na década 60 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) seguinte, atuando como provedora do backbone acadêmico, a RNP contava com 600 instituições e atendia a aproximadamente 65 mil usuários7 (MAZZEO, 2000). Antes da consolidação, as conquistas iniciais foram aparentemente simples, mas fundamentais para o desenvolvimento da rede. Em 1989 o Brasil recebeu “.br” como seu “código de país de domínio de topo”, uma designação que identificava territorialmente as operações do país na rede. Pouco tempo depois, em 1994, os primeiros blocos de IPs foram autorizados. Em 1995, houve a criação do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br)8. A empreitada comercial da rede teve na ampliação dos domínios tipo “.com.br” uma importante aliada. O sucesso em dispor dos endereços pode ser observado no avanço dos registros. Em 1996 o Brasil possuía pouco mais de 850 domínios. Vinte anos depois chegou a cerca de 3,8 milhões e, pela primeira vez, as compras na rede superaram aquelas realizadas em lojas físicas. A segunda metade da década de 2010 colocou em evidência a força da “cibermaré” (MOTTA, 2011; BALBONI, 2007). Nos primeiros anos do século XXI, uma combinação de diversos fatores colaborou para a ampliação do acesso à internet no Brasil. A partir de 1998, o processo de privatização das telecomunicações proporcionou o acesso de diferentes empresas à infraestrutura e a milhões de potenciais clientes. Além disso, os programas de incentivos fiscais colaboraram para a aquisição de computadores, smartphones e tablets, barateando os aparelhos e, assim, ampliando o acesso de usuários brasileiros à rede (ALVES, 2013). Enfim, em cinco décadas de existência, a internet, no Brasil e no mundo, experimentou transformações contínuas, sendo algumas sutis, como o desenvolvimento de interfaces, e outras mais explícitas. Com a disseminação da chamada Web 2.0, o processo de produção da informação sofreu modificações importantes. Ele deixou de ser rigidamente hierarquizado, e agora o receptor é também um produtor de informações. A explosão dos sites de redes sociais elevou o cidadão comum ao potencial de ser uma celebridade. Páginas de relacionamento, como Facebook, Orkut, Instagram, ambientes como Youtube, e a invasão de weblogs, videologs e microblogs, como o Twitter, demarcaram a curiosa necessidade de todos falarem ao mesmo tempo. Assim, momentos distintos, como a invasão ao Complexo do Alemão9, no Rio de Janeiro, em novembro de 2011, ou as manifestações 7 Para mais informações sobre os contornos assumidos pela internet brasileira no decorrer do tempo, consultar: Alves (2013); Balboni (2007); Motta (2011); Penteado et al. (2011); Prado (2011); Schlegel (2009). 8 No Brasil, o Comitê Gestor da Internet foi criado pela Portaria Interministerial n° 147, de 31 maio 1995 e regulado pelo Decreto nº 4.829, de 3 set. 2003. Ele tem a função de definir diretrizes estratégicas para o uso e desenvolvimento da internet no país, pensando procedimentos de segurança para a rede, além de responder pelas diretrizes e execução do registro de nomes de domínios e endereços IP (Internet Protocol). Sobre o CGI, ver: https://www.cgi.br. 9 Em 25 de novembro de 2010, após uma operação policial para o combate ao tráfico na comunidade da Vila Cruzeiro, os traficantes que conseguiram escapar do cerco organizado pelas forças policiais do Rio de Janeiro se refugiaram no Complexo do Alemão. Buscando prender os criminosos, em 26 de novembro, a Polícia Militar e a Polícia Civil tomaram pontos de acesso ao Complexo. A resposta dos traficantes veio com atentados em diferentes pontos da região metropolitana do Rio de Janeiro (queimas de ônibus, assaltos a veículos, estabelecimentos comerciais e a transeuntes, destruição de caixas eletrônicos). Como resposta, em 28 de novembro, numa manhã de domingo, as forças de segurança decidiram invadir o Complexo com um efetivo de 800 soldados da Brigada de Infantaria Paraquedista do Exército, 300 agentes da Polícia Federal (PF) e 1,3 mil homens das Polícias Militar e Civil. Os agentes tiveram apoio tático de blindados do Exército e da Marinha, Internet e Saúde 61 exigindo a renúncia de Hosni Mubarak no Cairo e em outras cidades do Egito, puderam ser acompanhadas não apenas pela perspectiva da imprensa internacional10, mas também pelo ponto de vista daqueles envolvidos com a situação. No caso do Rio, um suposto soldado do tráfico travou uma guerra de palavras pelo Orkut com internautas que exigiam corpos e a “eliminação” dos traficantes, enquanto no Egito era possível acompanhar o desenrolar dos acontecimentos pelo Twitter ou Facebook. Com a internet, o mundo se tornou incrivelmente novo e absurdamente pequeno. Aquela sensação de sermos vagabundos em um mundo de turistas parece desaparecer (BAUMAN, 1999). 4. Perspectivas E nessa paisagem, o que se desenhará? O século XXI coloca para o Brasil diversos desafios quando o assunto é a internet. O maior deles, possivelmente, reside na diminuição da assimetria no acesso entre classes sociais e entre usuários da zona rural. Ora, se aqueles com maiores recursos, a chamada classe A, apresentam taxas de conexão em torno de 97%, a disparidade é gritante quando se observa que apenas 6% das chamadas classes D e E possuem acesso à rede11. A exclusão nesses grupos envolve não menos do que 68 milhões de pessoas que nunca usaram a internet (RSN, 2013). Há ainda carência de maiores investimentos em infraestrutura para possibilitar ao interior brasileiro maior qualidade no acesso à rede. A exclusão de residentes na zona rural ainda é alta, sendo que apenas 10% dos domicílios nessa região possuem acesso à internet. Também há registros da rarefação de pontos de acesso e da qualidade do sinal oferecido. Por outro lado, a capacidade de empreender programas de inclusão digital com parcelas carentes das grandes cidades também é importante, principalmente se considerarmos as exigências que o mercado de trabalho estabeleceu com a ampliação no uso de ambientes eletrônicos nos últimos anos. Problema semelhante aparece se observarmos o acesso por faixa etária. A população brasileira envelheceu. Hoje ela vê-se obrigada a trabalhar por mais tempo, e o uso da rede mundial de computadores não pode ser descartado. No entanto, o acesso entre idosos12 não passa de 23%. além de veículos do Batalhão de Operações Especiais da PM (BOPE). Na ocasião, a expectativa era de que entre 500 e 600 traficantes estivessem no Complexo do Alemão. Cf. G1 (2010). 10 Cf. Ghonim (2013). 11 No Brasil agências de pesquisa governamentais e privadas utilizam a classificação por ordem alfabética para enquadrar a estratificação social, considerando as rendas médias familiares. Basicamente a relação entre a renda e a classe social é distribuída nos seguintes grupos: A1, A2, B1, B2, C1, C2, D, E. Enquanto no grupo A1 há as famílias que apresentam os maiores rendimentos, na outra extremidade, D e E, há reconhecidas situações de vulnerabilidade social. Portanto, nos estratos D e E estão os segmentos mais pobres da população brasileira, sendo possivelmente os principais alvos a serem atingidos em políticas públicas que objetivem mudanças nos índices de desenvolvimento humano do país. Cf. Kamakura e Mazzon (2013). 12 O capítulo 7 discute o tema envelhecimento e Novas Tecnologias de Informação e Comunicação. 62 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Outra importante face do problema, a educação básica terá que ser contemplada com propostas mais ambiciosas e efetivas, pois há tempos as salas de aulas brasileiras têm uma ampla maioria de garotos e garotas nascidos após a emergência da internet comercial e da explosão das redes sociais digitais13. Isso implica o uso de teclados e telas de computadores, celulares e tablets, independente de preços ou marcas, como algo quase natural, uma prática cotidiana, para os estudantes. A escola não poderá mais ficar distante disso. Também será preciso um planejamento cuidadoso das ações visando promover a cidadania por meio da rede mundial de computadores. Se o Estado brasileiro levou aos cidadãos ferramentas eletrônicas que permitem o acompanhamento de gastos públicos e das ações dos mais variados órgãos governamentais, será preciso também aperfeiçoar as respostas e atualizar a legislação. Os crimes cibernéticos também se desenham como um desafio importante. No decorrer dos últimos anos, bancos e outras empresas privadas ofereceram exemplos de como evitar e rastrear criminosos que utilizam a rede para roubar dados de cartões de crédito e prejudicar seus clientes. Porém a sociedade brasileira precisará aprender a lidar com outros tipos de crime, sobretudo aqueles ligados à intolerância. O bullying, as falsas notícias (fake news), os ataques racistas, o fomento ao fascismo, o discurso de ódio e os fundamentalismos foram libertados com a expansão da internet no Brasil. Será necessário educar os nossos navegantes, mostrar-lhes que a Web não é terra de ninguém, ensinandoos sobre as virtudes e os limites da democracia. Ao mesmo tempo, o número de computadores cresce a passos largos. Contudo, eles não são imprescindíveis para a internet, que, vivendo em tempo canino, avança firmemente nos mais distintos domínios da vida em sociedade. Celulares, Ipads e relógios são apenas alguns dos diferentes mecanismos que permitem o acesso ao mundo de redes, à maré eletrônica, isto é, ao “ciberespaço” imaginado por William Gibson no clássico Neuromancer (1984). E, se acaso observarmos calmamente, veremos que a formação de redes, alimentada pela internet, não é uma novidade. Na verdade, há muito a humanidade estabelece fios. Robert Darnton já nos lembrou de que toda época possui a sua própria “Sociedade da Informação” (DARNTON, 2005). Os computadores e a internet são apenas os pontos mais visíveis destes tempos que vivemos. Como mostrou Lévy (2000), antes as redes pertenciam ao domínio da vida privada, enquanto o mundo hierárquico era coisa da esfera pública. Mas as redes, ao quebrarem a hierarquia, têm encontrado problemas para lidar com essa flexibilidade e com a coordenação de tarefas. A Web surge para resolver tal dilema. Ela tende a ser interpretada como uma dádiva, mas também pode converter-se em uma espécie de maldição. Segundo Lévy (2000) 13 O capítulo 6 analisa os nascidos digitais. Internet e Saúde 63 Novo pharmakon, a inteligência coletiva que favorece a cibercultura é ao mesmo tempo um veneno para aqueles que dela não participam (e ninguém pode participar completamente dela, de tão vasta e multiforme que é) e um remédio para aqueles que mergulham em seus turbilhões e conseguem controlar a própria deriva no meio de suas correntes. (LÉVY, 2000, p. 30). Torna-se fundamental entender que a verdadeira questão não está em ser contra ou a favor da internet. O importante é compreender as suas mudanças qualitativas. Espalhada em nossas vidas, irrigando nosso cotidiano, a rede mundial de computadores nos coloca contra a parede. Exige reflexões e não parece preocupada em nos dar tempo para tanto. Precisamos entender o seu ritmo, questionar suas certezas, espreitar por entre bits e cliques. Tarefa árdua, desafiadora ao historiador de ofício. Pesquisar a história da internet, assim como navegar, é preciso. Referências ALVES, L. 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Na ocasião foi anunciada a aprovação do projeto de lei nº. 12.965, o Marco Civil da Internet que foi elaborado por meio de uma plataforma colaborativa com a participação de setores diversos da sociedade civil. Durante o processo de elaboração foram debatidos temas relevantes como a segurança na rede, a proteção à privacidade, garantia da liberdade de expressão, papel dos governos na governança da Internet e garantia de acesso universal e neutralidade de rede. A governança global ocupa lugar privilegiado na agenda de debates sobre o funcionamento da rede mundial de computadores. O Marco Civil da Internet contém princípios, garantias, direitos e deveres para internautas e provedores no país. É a primeira legislação global que funciona como uma Constituição para usuários da rede. Este capítulo recupera o processo histórico que levou à aprovação deste dispositivo legal e discute os desafios para sua efetivação. Palavras-chave: Governança da Internet; Marco Regulatório; Internet. Referência: SEGURADO, R. Marco Civil: o pioneirismo brasileiro na governança da Internet. In: PEREIRA NETO, A.; FLYNN, M. (orgs.). Internet e saúde no Brasil: desafios e tendências. 1 ed. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2020. p. 65-90. * Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais da Pontificie Universidade católica de São Paulo e da Funação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. E-mail: [email protected]. Internet e Saúde 67 Introdução Iremos analisar, no presente artigo, os principais aspectos do processo de elaboração do projeto de lei do Marco Civil da Internet, destacando a participação da sociedade civil representada por diversos setores e a forma como essa discussão colocou o Brasil em lugar de destaque na comunidade internacional envolvida na discussão da governança global da Internet. No dia 24 de abril de 2014, a presidente Dilma Rousseff sancionou o Marco Civil da Internet, Lei nº 12.965/14, e anunciou, na abertura do evento NETmundial. Assim, o Brasil acabava de aprovar a primeira Constituição da Internet, que contém os direitos e deveres dos internautas e das empresas ligadas à Web. Na NETmundial, encontro organizado pelo Comitê Gestor da Internet do Brasil (CGI.br)1 e na 1NET – plataforma global de governança da Internet –, foram debatidas naquele momento 188 propostas de 46 países com o objetivo de pensar o futuro da Internet nos seguintes temas: segurança na rede, proteção à privacidade, garantia da liberdade de expressão, papel dos governos na governança da Internet e garantia de acesso universal e neutralidade de rede. O principal objetivo era permitir que a Internet fosse mantida como plataforma aberta, na qual os provedores de acesso não pudessem discriminar os conteúdos, aplicações e serviços – ou seja, que se garantisse a isonomia na rede. Portanto, as operadoras não poderiam interferir na conexão se o usuário for assistir um vídeo, ouvir uma música ou ler um texto. Elas também deveriam garantir a mesma qualidade do serviço para qualquer ação realizada durante a conexão. Nesse contexto, e contando com a presença de 1.480 representantes de 97 países, foi anunciado o Marco Civil da Internet, votado pelo Congresso no dia anterior ao início do evento. A lei foi recebida como a proposta mais avançada de regulamentação da Internet no mundo e passou a ser uma referência para o debate da governança da Internet. Antes de entrarmos no papel do Brasil nesse debate, consideramos importante retomar alguns aspectos fundamentais, como o significado da governança da Internet. Segundo Kurbalija (2016)2: Governança da Internet é o desenvolvimento e a aplicação pelos Governos, pelo setor privado e pela sociedade civil, em seus respectivos papeis, de princípios, normas, regras, procedimentos e tomadas de decisão e programas em comum que definem a evolução e o uso da Internet. (KURBALIJA, 2016, p. 20). 1 O Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) é responsável pelas diretrizes estratégicas para o desenvolvimento da Internet no país e pela execução do registro de Nomes de Domínio e alocação de Endereço de IP (Internet Protocol). Também atua na realização de estudos sobre segurança da Internet, pesquisas para qualidade técnica e inovação da Internet. 2 Jovan Kurbalija é diretor fundador da Diplo Foudantion (https://www.diplomacy.edu/). 68 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) As diferentes esferas de governança da Internet estão relacionadas às características da estrutura da rede. Segundo Benkler (2000), a governança precisa ser dividida em três camadas, a saber: a infraestrutura física, a dos códigos ou lógica e a do conteúdo. Significa dizer que cada uma dessas esferas nos aponta desafios em âmbito local e global, ou seja, “uma significativa preocupação da governança global da internet sobre sua manutenção acessível e universal é a questão de como redes independentes se juntam para formar a internet global” (DENARDIS, 2013, p. 10). Os dados da Internet podem trafegar por diversos meios de comunicação: fios telefônicos, cabos de fibra ótica, satélites, micro-ondas e ligações sem fio. Nesse sentido, é importante ressaltar que a forma como as telecomunicações são reguladas produz impactos diretos na governança da Internet. Quando se fala em estrutura física, é importante esclarecer que, no caso da Internet, é preciso haver servidores com capacidade de armazenagem dos conteúdos que trafegam pela rede. Além disso, é necessário que se tenha roteadores e cabos para garantir a transmissão das informações. Isso implica investimento para a implantação de infraestrutura que seja capaz de garantir o fluxo das informações. Caso contrário, não é possível acessar a Internet, e é por isso que em alguns países se verifica a existência de regiões que não têm acesso à rede, justamente pela falta de infraestrutura. A infraestrutura também é responsável pela qualidade do acesso, ou seja, no tamanho da banda3, um dos aspectos fundamentais para a qualidade de conexão. Pesquisa sobre domicílios conectados à Internet (TIC Domicílios) realizada pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (CETIC.br), em 2017, constatou que, apesar do decreto ter sido criado para levar a conexão de Internet para regiões mais carentes tecnologicamente4, o país ainda não solucionou os problemas de inclusão digital5. No Brasil, 54% dos domicílios estão conectados à Internet, o que representa 36,7 milhões de residências – um crescimento de três pontos percentuais em relação a 2015. Os padrões de desigualdade revelados pela série histórica da pesquisa persistem: apenas 23% dos domicílios das classes D/E estão conectados à Internet, enquanto em áreas rurais esta proporção é de 26%. O acesso à Internet está mais presente em domicílios de áreas urbanas (59%), e nas classes A (98%) e B (91%). (CETIC.BR, 2017). 3 Criado pelo decreto n.º 7.175/2010, o Plano Nacional de Banda Larga (PNBL) é uma iniciativa do Governo Federal que tem o objetivo principal de massificar o acesso à Internet em banda larga no país, principalmente nas regiões mais carentes dessa tecnologia. Cf. Brasil (2010). 4 O capítulo 1 aborda a história da Internet no Brasil. 5 O capítulo 3 discute um projeto de inclusão digital pioneiro no Brasil. Internet e Saúde 69 Por outro lado, a esfera lógica está relacionada à produção e manutenção de protocolos que regulam os dados que trafegam na Internet, o chamado IP (Internet Protocol). Protocolo é uma linguagem utilizada para que dois ou mais computadores possam conversar entre si. Isso é possível pelo uso do TCP-IP (Transmission Control Protocol), que é uma espécie de pilha de protocolos e um dos responsáveis pela troca de fluxos informacionais na Internet. Poderíamos fazer uma analogia com a troca clássica de mensagens feita pelos correios. Para enviar uma carta, precisamos colocá-la em um envelope com endereço completo do destinatário e do remetente. Isso é equivalente a um protocolo. Sem essas informações, a correspondência não chega ao destino desejado. Na Internet também é assim. Cada mensagem – vamos aqui chamar de pacote de dados – é envolvida num IP, que funcionaria como uma espécie de envelope no qual temos o endereço do remetente (endereço de IP) e do destinatário. Cada computador tem o próprio endereço de IP; portanto, não existe a possibilidade de dois computadores terem o mesmo. É semelhante à lógica do endereço físico ou postal, no qual constam nome, sobrenome, rua, número da casa, código postal da cidade, cidade, estado, país. Após ser colocada na agência do correio, a carta é enviada a um centro de triagem antes de chegar ao destino final. Na internet é semelhante: as mensagens são colocadas em pacote IP, e esse pacote transita de computador em computador até chegar ao seu endereço final: a porta de destino. Em cada computador, existem muitas portas, tais como, um navegador, um software específico para e-mail, outro para ouvir rádio, entre outras funções. E a pergunta que fica é: como o computador deve fazer? Para qual software deve encaminhar o pacote IP para a porta correta? Cada software recebe um número no computador, o que poderíamos associar à correspondência que chega a um edifício com vários apartamentos. Cada apartamento teria uma porta específica. O endereço é o mesmo para todos os apartamentos, mas cada um tem um número específico. Assim é o endereço IP: ele acentua em qual porta deve ser enviada a informação. Portanto, esse endereço permite que a mensagem seja enviada para um determinado computador, e o número da porta para qual software do computador ela deve ser encaminhada. O tamanho dos pacotes de informação possui limites. Por isso, muitas vezes em que queremos enviar arquivos com muitas informações, não conseguimos. Há um limite para esse envio. O TCP foi desenvolvido justamente para verificar que o destinatário pode receber os dados. Ele fragmenta os grandes pacotes, numerando cada um; ao recebê-lo, é possível verificar se chegaram íntegros. Nesse sentido, podemos afirmar que o TCP/IP possibilita que a comunicação entre softwares localizados em computadores diferentes seja confiável. Todo esse processo para que a comunicação seja estabelecida é muito complexo e envolve diversas camadas, instâncias decisórias e atores sociais e políticos. Anteriormente, 70 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) especificamos uma parte básica desse processo para chegarmos à importância da governança da Internet e o modelo de governança na dinâmica da regulamentação da rede. Não há um sistema unitário que vigie e coordene a internet. Algumas tarefas administrativas e políticas são realizadas pela indústria privada operando como parte do mercado; algumas tarefas são supervisionadas por instituições relativamente novas, tais como a Internet Corporation for Assigned Names and Number (ICANN), e alguma jurisdições administrativas pertencem aos estados-nacionais soberanos ou à coordenação governamental multilateral. Explicações sobre os vários componentes da governança da Internet preencheram volumes inteiros e existem muitas taxonomias possíveis para descrever essas funções. Uma forma para entender o ecossistema de governança da internet é dividir suas principais funções em seis áreas: (i) “controle dos recursos críticos da internet (ii) estabelecimento de padrões da internet (iii) coordenação do acesso e da interconexão (iv) governança da cibersegurança (v) papel político dos intermediários da informação, e (vi) garantia do cumprimento de direitos da propriedade intelectual relacionados à arquitetura (DENARDIS; RAYMOND, 2013, p. 3, tradução nossa) 1. Governança multissetorial É importante ressaltar que a NETmundial foi fundamental para reafirmar o protagonismo do país na governança global da Internet. Essa reunião também foi fundamental para a experiência colaborativa de elaboração do Marco Civil da Internet, com o uso de ferramentas on-line e off-line para viabilizar o debate entre os diversos setores, confirmando o caráter multissetorial consolidado pelo CGI.br. Participaram desta elaboração representantes do governo, das empresas da área de telecomunicações, da sociedade civil, da academia e da comunidade técnica, sem que nenhum dos setores tivesse maior peso no processo decisório, conforme iremos observar a seguir. O que significa dizer que o evento ratificou a experiência e expertise do país nos procedimentos de gestão de processos participativos de consulta, colocando o Brasil como um ator fundamental na governança global da internet. O caráter multisetorial está presente na portaria que cria o CGI.br, conforme pode ser observado no artigo 3º do regimento interno: Da composição do CGI6. 6 É possível ter acesso ao regimento interno do Comitê Gestor da Internet no Brasil no site do CGI.br: https://cgi.br/pagina/regimento-interno-do-comite-gestor-da-internet-no-brasil/308. Internet e Saúde 71 Art. 3 O CGI.br tem os seguintes membros na sua composição: I. um representante do Fórum Nacional de Secretários Estaduais para Assuntos de Ciência e Tecnologia; II. um representante de notório saber em assuntos de Internet; III. quatro representantes e quatro suplentes do setor empresarial dentro os seguintes segmentos: um titular e um suplente dos Provedores de acesso e conteúdo da Internet, um titular e um suplemente de Provedores de Infra-estrutura de telecomunicações, um titular e um suplente da Indústria de Bens de informática, de bens de telecomunicações e de software, e um titular e um suplente do Setor empresarial usuário; IV. quatro representantes e quatro suplentes do terceiro setor; V. três representantes e três suplentes da comunidade científica e tecnológica Parágrafo único: os membros do CGI.br terão suplentes que atuarão exclusivamente no impedimento dos respectivos titulares. (CGI.BR, 2005) Vale a pena destacar que o CGI.br adotou o modelo multissetorial desde sua origem, o que significa dizer que, desde o princípio, já havia a preocupação da governança multiparticipativa da internet. Por isso, ele é considerado pioneiro na adoção desse modelo por se tratar da primeira experiência a ter adotado a forma participativa. No dia 31 de maio de 1995, a publicação da Portaria Interministerial nº 147 convergiu os esforços de desenvolvimento da rede no Brasil propostos pela comunidade científica e tecnológica, terceiro setor, comunidade empresarial e governo. A Portaria definiu a criação do Comitê para coordenar e integrar todas as iniciativas de serviços internet no país, promovendo a qualidade técnica, a inovação e a disseminação dos serviços ofertados. De acordo com Augusto Cesar Gadelha Vieira, coordenador do CGI.br desde 2005, o modelo brasileiro de governança da internet no país é pioneiro na constituição de um foro multisetorial (multistakeholder), sendo um modelo para outros países e um marco na história da Internet mundial. Ele afirma: ‘O fato de 21 representantes de distintos segmentos se reunirem mensalmente para discutir a internet no Brasil é notável. Dessas reuniões resultaram ações e iniciativas de extrema importância, como a constituição do NIC.br, nosso braço executivo, o estabelecimento de princípios gerais para governança que orientam políticas públicas e procedimentos jurídicos, além de uma avaliação do uso de TICs no País’, afirma. Desde 2004, são realizadas eleições para os assentos da Sociedade Civil (comunidade científica e tecnológica, terceiro setor e comunidade 72 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) empresarial). Representantes do Governo são indicados pelas respectivas pastas e anunciados por meio de portarias interministeriais 7. (CGI.BR, 2010). A Declaração Multissetorial do NETmundial8, por meio de um processo colaborativo, gerou, nas sessões de discussão, 1.370 comentários dos participantes para a elaboração do documento de referência do encontro. A declaração também contou com a contribuição de 200 espectadores diários que acompanharam as discussões em tempo real em mais de 30 hubs9, uma espécie de centrais de discussão, espalhados em diversos países. O Brasil é moderno na Internet. Está na vanguarda da formulação e implantação de políticas públicas para a governança global da Internet. Políticas que valorizam modelos multiparticipativos, envolvendo governo e sociedade. O Marco Civil, Comitê Gestor da Internet e o encontro NETmundial são iniciativas brasileiras que têm um amplo reconhecimento internacional. São exemplos concretos da modernidade brasileira no ciberespaço [...]. O CGI.br e várias organizações internacionais, como ICANN e outros, trabalharam na construção desse encontro multissetorial, o NETmundial com o objetivo de discutir a evolução da governança global da Internet. O balanço dos resultados foi claramente positivo. Ficou evidente a liderança do Brasil no assunto, confirmado pela expressiva presença de representantes de todos os setores envolvidos, num total de quase 1000 representantes de 110 países. (ALMEIDA, 2014). Esse reconhecimento do papel do país no debate da governança, feito pela comunidade internacional envolvida nas discussões da governança global, expressa a importância do Marco Civil nesse processo. Poderíamos dizer que, após a NETmundial, a regulamentação da Internet entrou em outro patamar de discussão, reafirmando o lugar de destaque do Brasil na construção de uma governança global. Um dos primeiros aspectos a serem esclarecidos quando tratamos da governança é a necessária distinção entre a gestão e o controle da Internet. Apesar de serem duas questões distintas, elas estão intimamente interligadas. Significa dizer que a gestão dos recursos técnicos da Internet tem importantes implicações políticas e deve ter a presença de diálogo entre atores governamentais e não governamentais no esforço para se compreender a complexidade do ecossistema de governança da Internet. 7 Na atualidade esse modelo vem sendo questionado, e é possível que ocorram mudanças em breve. Nesse momento, o CGI.br está realizando diversas discussões. Existem muitas divergências sobre a permanência do atual modelo de governança, considerando que a comunidade empresarial e os representantes governamentais pleiteiam maior peso nas votações. 8 Disponível em: http://netmundial.br/wp-content/uploads/2014/04/NETmundial-MultistakeholderDocument.pdf. 9 Em geral, hub é um equipamento que tem a função de interligar os computadores a uma rede. Internet e Saúde 73 Essa compreensão é fundamental, considerando que a Internet não pode ser tratada como uma coisa única, conforme podemos encontrar na reflexão de Kleinwächter (2014), professor de regulamentação e políticas internacionais do Departamento de Mídia e Ciências da Informação da Universidade de Aarhus, na Dinamarca: O ecossistema de governança da Internet pode ser parcialmente comparado com o de uma floresta tropical. Na floresta de verdade, uma quantidade incalculável de plantas e animais distintos convivem em um sistema muito complexo. Na “floresta virtual”, também temos uma diversidade infindável, crescente, de redes, serviços, aplicações, regimes e outras propriedades que coexistem, colaboram, contradizem-se e entram em conflito [...]. No ecossistema de governança da Internet, muitos atores com status jurídico bastante diferente operam em várias camadas, em níveis local, nacional, regional e internacional, impulsionadas pela inovação técnica, pelas necessidades do usuário, pelas oportunidades de mercado e pelos interesses políticos. (KLEINWÄCHTER, 2014). Para Kleinwächter (2014), era preciso superar os embates entre Estados Unidos e China para que não fossem tomadas medidas unilaterais e para que seja superado o que ele define como “consenso capenga”. Nesse sentido, a NETmundial foi vista como uma espécie de terceira via e permitiu que “os atores da Internet, inclusive governos, deixassem de fazer uma escolha entre a vigilância dos Estados Unidos e a censura da China” (KLEINWÄCHTER, 2014). 2. Processo colaborativo de elaboração do Marco Civil da Internet Nesse sentido, é importante retomarmos brevemente algumas etapas do processo de elaboração do Marco Civil da Internet para compreendermos o protagonismo ocupado pelo Brasil não somente na conferência NETmundial, mas no debate global sobre a Internet, cada vez mais importante. No segundo semestre de 2009, teve início o debate para a elaboração do Marco Civil da Internet. Tratou-se de uma iniciativa da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, em parceria com o Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas. O debate foi desenvolvido por meio de uma plataforma colaborativa criada especificamente para a elaboração do referido projeto. Foi uma forma pioneira de utilização de dispositivos digitais para a formulação de uma política pública. Essa inovação 74 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) proporcionou a ampliação e diversificação de interlocutores no debate em torno da regulamentação da Internet, sem excluir a participação em fóruns presenciais organizados pelo Ministério da Justiça. Na primeira fase do processo, o Ministério da Justiça fez um convite à participação para a construção colaborativa do Marco Civil por meio de uma consulta pública realizada em um endereço eletrônico10. O objetivo era receber as demandas e opiniões dos diversos segmentos da sociedade civil para a elaboração do texto legislativo e regulamentação da matéria. A primeira fase da consulta foi estruturada a partir dos seguintes eixos: (i) Adaptar e consolidar direitos fundamentais dos indivíduos a partir do contexto da comunicação eletrônica, (ii) delimitar de forma clara a responsabilidade civil dos diversos atores envolvidos nos processos de comunicação pela internet, e (iii) estabelecer diretrizes convergentes para a atuação do governo, tanto na formulação de políticas públicas em eventuais regulamentações posteriores. Estão em discussão temas como o direito ao acesso, à liberdade de expressão e à privacidade, a nãodiscriminação de conteúdos e resolução de conflitos relacionados à rede, entre outros. (ABRAMOVAY, 2009). A partir das sugestões enviadas para a plataforma colaborativa, o Ministério da Justiça sistematizou e disponibilizou um texto para servir de base à discussão. É importante ressaltar que as contribuições vieram de diversos setores, tais como usuários da rede, acadêmicos, parlamentares, empresas, instituições públicas e privadas e de representantes governamentais interessados no tema. O debate foi previsto com o desenvolvimento das fases: 1ª.) Discussão do texto base elaborado pelo Ministério da Justiça: Nessa fase, prevista para durar 45 dias de discussão, os usuários puderam postar11 seus comentários e propostas em links12 do texto base. Esses comentários ficaram abertos a todos que acessassem a proposta. Os posts mais longos eram destinados a outro fórum do mesmo site, para garantir o aprofundamento do debate e contemplar a totalidade das manifestações registradas. Ao final dessa primeira fase, foram sintetizados os principais aspectos da discussão e se elaborou a minuta do anteprojeto, o qual foi remetido à segunda fase do debate. 2ª.) Na segunda fase, estava prevista a discussão da minuta do anteprojeto. O anteprojeto foi dividido da seguinte forma: 10 Disponível em: http://culturadigital.br/marcocivil. linguagem já utilizada pelos usuários da rede, postar significa registrar um comentário. 12 Cada parágrafo, artigo, inciso ou alínea da legislação foi aberto para a inserção de comentários no portal. Para mais informações: http://culturadigital.br. 11 Em Internet e Saúde 75 Capítulo I – Disposições preliminares, contendo 5 artigos Capítulo II – Dos Direitos e garantias dos usuários, contendo 3 artigos Capítulo III – A provisão de conexão e de serviços de internet, contendo 18 artigos Capítulo IV – A atuação do poder público, contendo 5 artigos Capítulo V – Disposições gerais, contendo 2 artigos Esse processo de discussão foi semelhante ao da primeira fase. O texto do portal da Cultura Digital sobre este processo de consulta afirmava a necessidade de os usuários se apropriarem das Tecnologias de Informação e de Comunicação (TICs) com vistas à participação do processo decisório legislativo. A partir de levantamento realizado no site sobre o processo colaborativo, foram contabilizados aproximadamente 2.000 comentários postados nos artigos, incisos e parágrafos. Desse modo, foi verificada a participação de diversos setores da sociedade civil, tais como empresas, organizações da sociedade civil, ativistas e comunidade técnica na elaboração do Marco Civil. Além do registro dos comentários, os internautas também puderam se manifestar por meio do blog e do Twitter13. É importante ressaltar que a consulta sobre o anteprojeto do Marco Civil foi criada como forma de reação contrária ao projeto de lei (PL) sobre crimes cometidos através da Internet: o projeto de lei nº 84/99, de autoria do Deputado Luiz Piauhylino, que recebeu o substitutivo do então senador Eduardo Azeredo. Esse PL passou a ser conhecido como “Lei Azeredo” ou AI-5 Digital, em alusão ao Ato Institucional nº 5, decreto de 1968 que inaugurou a fase mais autoritária da ditadura militar brasileira. Em maio de 2007, Ronaldo Lemos, um dos articuladores de elaboração da plataforma colaborativa do Marco Civil, afirmou a importância de um marco regulatório civil. Em livro publicado em 2016 Carlos Afonso Souza e Lemos afirmam: Essa foi a primeira vez que o termo apareceu em público. A noção de que um “Marco Civil” poderia se opor às iniciativas de caráter penal/repressivo então dominantes no Congresso Nacional precisava ainda receber a adesão da seara governamental caso quisesse seguir em frente com maior força. Já apoiado por integrantes do setor acadêmico e da sociedade civil, o discurso em apoio ao Marco Civil chega ao governo e se consolida efetivamente em 2009. (SOUZA; LEMOS, 2016, p. 18). O debate foi bastante acirrado, com dificuldade para se chegar a um consenso, em parte devido à diversidade de atores presentes, muitas vezes com interesses antagônicos em relação à regulamentação da Internet. Entre os pontos polêmicos, destaca-se a 13 Para saber mais sobre o uso do Twitter na elaboração do Marco Civil da Internet, cf. Bragatto, Sampaio e Nicolas (2015). 76 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) manifestação crítica de alguns segmentos sociais, contrários a qualquer forma de regulamentação da Internet, vista como controle da liberdade dos usuários da rede. A questão preliminar ficava em torno da seguinte questão: regular ou não regular? Havia o questionamento se era necessária uma lei para tratar de questões específicas ao exercício de direitos na rede. Esse debate nos remete aos anos 90, quando John Perry Barlow14 escreveu a Declaração de Independência do Ciberespaço. O objetivo era impedir que os Estados interferissem no desenvolvimento da rede com qualquer forma de regulação. Contrapondo-se a esta visão destaca-se o posicionamento de Lawrence Lessig (2006) e Alexander Galloway (2004). Para Lessig (2006), o que rege a vida no ciberespaço são os códigos (softwares); portanto, os códigos são a lei na Internet. São eles que controlam a vida no ciberespaço. Isso significa dizer que a arquitetura da rede é composta por um conjunto de códigos que regulamentam o ciberespaço, assim como as Constituições dos países regulamentam a vida no mundo off-line, ou seja, a vida cotidiana de cada um de nós fora da rede. Para este autor, a questão central reside no fato de definir quem controla o código. A seu ver, aquele que controlar o código terá maior poder sobre a Internet. Assim, Lessig (2006), destaca sua preocupação com o controle cada vez maior do interesse privado na rede. Seguindo a mesma linha de pensamento, Galloway (2009) afirma que a própria engenharia da Internet já é em si regulamentada; portanto, essa é uma falsa polêmica. Nesse sentido, ele acredita que: É fundamentalmente redundante dizer ‘internet regulamentada’. A internet é regulação e nada mais. Basta olhar para os protocolos. O ‘C’ no TCP/IP significa ‘Control’. Eu sou contra a ideia, que ainda é bastante comum, de que a internet é uma força que, fundamentalmente, elimina regulação, hierarquia, organização, controle etc. Redes distribuídas nunca estão ‘fora de controle’ – este é o pior tipo de ilusão ideológica. A questão fundamental, portanto, nunca é se existe ou não controle, mas de preferência perguntarmos: Qual é a qualidade desse controle? De onde ele vem? Ele é dominado pelos governos, ou é implantado no nível da infraestrutura das máquinas? Não tenho a pretensão de responder à questão sobre o poder do governo, pois há décadas e séculos de textos dedicados aos excessos do poder estatal. Ainda podemos ler esses livros. A minha contribuição é meramente ao nível da infra-estrutura e da máquina. Qual é a especificidade da organização informacional? Esta é a questão básica do protocolo. (GALLOWAY, 2009). 14 Barlow escreveu em 1996 a Declaração de Independência do Ciberespaço. Para mais informações, consultar:https://www.eff.org/cyberspace-independence Internet e Saúde 77 Autores como Lessig (2006) e Galloway (2009) foram fundamentais para se definir o debate em torno da elaboração do Marco Civil e para esclarecer o significado da Internet livre. Internet livre não é Internet sem lei, mas ao contrário. Souza e Lemos (2016) estão de acordo com esta visão. Para eles: Ao contrário do que a ideia acima propugna, o Marco Civil da Internet apresenta um novo cenário no qual o conceito de “Internet livre” está ligado não à ausência de leis, mas sim à existência de leis que possam garantir e preservar as liberdades que são usufruídas por todos justamente por causa da tecnologia e mais especificamente pelo desenvolvimento da Internet. Foi com essa motivação que o Marco Civil foi concebido: como uma lei que pudesse preservar as bases para a promoção das liberdades e dos direitos na Internet no Brasil. Distanciando-se assim de uma regulação repressiva da rede, o Brasil ofereceu um dos mais simbólicos exemplos que anima os debates globais sobre uma regulação da rede que tenha os direitos humanos como o seu fio condutor e que mantém o caráter principiológico para evitar uma caducidade precoce de seus dispositivos. (SOUZA; LEMOS, 2016, p. 16). Para o sociólogo e estudioso da comunicação, Dominique Wolton (2003), é importante distinguir regulamentação de censura. Segundo este autor, não seria possível garantir a liberdade na comunicação sem que haja alguma forma de regulamentação. Neste sentido, a ausência completa de leis que regulamentem especificamente o uso da Internet pode deixar que prevaleça a lógica do mercado e das forças econômicas. Sendo assim Wolton (2003) afirma: [...] Não há liberdade de comunicação sem regulamentação, isto é, sem proteção desta liberdade. Aliás, os arautos da desregulamentação são favoráveis a uma regulamentação: aquela do mercado, quer dizer, a das relações econômicas, a das leis da selva. (WOLTON, 2003, p. 122). A interpretação de Wolton (2003) aponta para um questionamento importante: a quem serviria a desregulamentação? Neste sentido, o autor é enfático ao afirmar que somente com algum tipo de regulamentação é possível garantir a liberdade de expressão e de comunicação e, portanto, impedir qualquer forma de censura. A preocupação com relação à censura também foi encontrada em vários comentários e mobilizou vários participantes do debate. Mesmo entre aqueles que se manifestavam favoráveis à criação de regras para o uso da Internet, foi observada a necessidade que fossem discutidos os mecanismos legais para que eles não incorressem em nenhum tipo de censura, como previa a proposta de lei do senador Eduardo Azeredo. A dinâmica de elaboração da proposta de regulamentação articulada via Portal do Ministério Justiça apresentava uma nova perspectiva de elaboração das políticas públicas. 78 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) O processo colaborativo e a incorporação das Tecnologias de Informação e de Comunicação no debate de questões relevantes à sociedade civil proporcionaram a inclusão de diversos segmentos sociais. Neste sentido, as ferramentas digitais foram uteis para potencializar e ampliar os debates e favorecer a representação de diferentes interesses políticos. No caso brasileiro, os estudos de cultura política sobre a participação dos indivíduos no processo decisório não ocupam o lugar central da dinâmica política. Significa dizer que a incorporação das tecnologias digitais, conforme a iniciativa do Ministério da Justiça, proporcionou a ampliação da participação e permitiu a inclusão no processo decisório de parcela significativa de indivíduos que se encontravam distantes do acompanhamento das decisões políticas. Para Javier Cremades (2009): Os cidadãos terem consciência do micropoder é a chave para uma nova ação política capaz de administrar a sociedade globalizada e plural, pela gestão das energias prévias ao processo de institucionalização. Poder-se-ia descrever essa ação com o adjetivo ‘relacional’, o qual já foi usado ao se falar da rede de relações humanas mantidas por meio de um constante diálogo (falar e escutar) possibilitado pelas novas tecnologias. (CREMADES, 2009, p. 35). Por se tratar de uma plataforma aberta e considerando a natureza multissetorial da Internet, cabe lembrar que empresas de telecomunicações também tiveram grande participação no processo colaborativo. Esse caráter faz parte da experiência do CGI.br, conforme podemos observar nessa definição: O modelo brasileiro de Governança da Internet conduzido pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) é referência em todo o mundo. Com base nos princípios do multissetorialismo e transparência, o CGI.br representa um modelo de governança da Internet pluriparticipativo e democrático, propiciando que os setores da sociedade participem de forma equânime dos debates e decisões sobre a Internet no Brasil. Em quase 20 anos de história, representantes de todo o Brasil, com origens e interesses diversos, consolidaram o CGI.br e contribuíram para construir a história da Internet brasileira e prepará-la para o futuro. (CGI.BR, 2014). Embora seja importante frisar a complexidade da discussão em ambientes multissetoriais, é importante entender esse espaço como um campo de disputas muito importante. As empresas de telecomunicações que participaram do processo colaborativo eram contrárias ao ponto mais polêmico do Marco Civil: a neutralidade de rede. Elas consideravam que este item interferiria diretamente em seus modelos de negócios. Para entendermos a importância deste dispositivo, é preciso compreender o significado da Internet neutra, na qual nenhum tipo de pacote de dados pode ter prioridade em relação Internet e Saúde 79 ao tráfego na rede. A neutralidade garante que todas as transmissões, independente de seu emissor, estejam submetidas às mesmas regras e critérios. Pelas rodovias passam veículos, e pelos circuitos da Internet passam datagramas (os ‘pacotes’ de dados que constituem cada mensagem de email, vídeo, conversa de voz sobre IP etc.). Tal como em uma rodovia a concessionária não pode discriminar entre um carro azul e um vermelho [...], na Internet as operadoras não devem interferir no tráfego de qualquer datagrama. Se interferirem de algum modo, fazendo com que os datagramas atrasem, se percam, ou mesmo sejam copiados para bisbilhotagem de terceiros, estarão violando princípios da neutralidade da rede. [...] (AFONSO, 2010, p. 103). A nosso ver, o diferencial da Internet está na forma descentralizada de criação e emissão de conteúdos. As propostas de interferência na neutralidade da rede significam a alteração dos elementos que nortearam sua configuração e que definem seu próprio desenvolvimento. A perda da neutralidade de rede pode significar transformar a Internet na TV a cabo, ou seja, o usuário paga por diferentes pacotes de canais, diferenciados pelo tipo de informação. O significado é o encarecimento do acesso à rede. Aqueles que possuem mais recursos podem ter pacotes mais caros, e isso se distancia do caráter de rede distribuída que caracteriza a estrutura da Internet. Para Lessig (2006), é importante pensar na multiplicidade de formas que podem definir a arquitetura da rede: [...] Seguramente o ciberespaço é de uma determinada forma, mas não há de ser necessariamente assim. Não existe uma única forma, ou uma única arquitetura que definam a natureza da Rede. São muitas as possíveis arquiteturas do que chamamos ´la Rede´ e o caráter da vida no seio de cada uma delas é diferente. (LESSIG, 2006, p. 74, grifo do autor, tradução nossa). Os órgãos de defesa do consumidor também participaram ativamente desse ponto da discussão, lembrando que os consumidores sempre registram queixas com relação aos serviços oferecidos pelos provedores. Entre as queixas mais frequentes estão às relacionadas à velocidade contratada e a oferecida. A defesa do consumidor afirma que é direito do cidadão receber pelo serviço contratado e que as empresas não podem tornar mais lentas as conexões domésticas para acelerar a conexão de grandes empresas. Consequentemente, os órgãos de defesa do consumidor defendiam que a neutralidade da rede também deveria garantir o princípio de isonomia. 80 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Se por um lado é importante que a proposta contida no Marco Civil brasileiro garanta que o princípio da neutralidade não será violado, por outro lado, o caráter transnacional da Internet possibilita que se possa fazer esse tipo de alteração nos protocolos de outros países, permitindo que os fluxos comunicacionais sejam veiculados em lugares em que a neutralidade não esteja prevista em lei. É importante destacar que o único país que aprovou a neutralidade de rede, antes do Brasil, foi o Chile, com a lei nº 20.453/11. Essa é a importância do debate em torno da governança global da Internet. Diversos países da União Europeia, da América do Sul e parte do continente asiático apresentaram algum interesse em discutir essa questão de modo mais profundo. Até dezembro de 2017, a neutralidade da rede também estava em vigor nos Estados Unidos; porém, foi derrubada após decisão da Comissão Federal das Comunicações dos Estados Unidos (FCC). A votação, realizada em 14 de dezembro de 2017, teve o placar de 3 votos favoráveis ao fim da neutralidade e 2, pela manutenção. Em reportagem de Helton Simões Gomes, publicada no Site G1, no dia 14 de dezembro de 2017 Jessica Rosenworcel - uma das conselheiras que votou contra o fim da neutralidade, afirmou: Eles terão o direito de discriminar e favorecer o tráfego de internet daquelas companhias com as quais fecharam acordo de pagamento e direcionar todos os outros para uma rota lenta e atribulada. [...] Nossos provedores de banda larga dirão a você que nunca farão esse tipo de coisa, mas eles têm a habilidade técnica e o incentivo financeiro para discriminar e manipular nosso tráfego de internet. E agora essa agência dá a eles a luz verde para ir em frente. Isso não é bom para consumidores, negócios nem para qualquer um que se conecta e cria on-line. Nem para as forças democráticas que depende de abertura para operar. (GOMES, 2017). Por outro lado, o presidente da Federal Communications Commission dos Estados Unidos (FCC), Ajit Pai, votou a favor do fim da neutralidade de rede, argumentando a necessidade de maior liberdade às empresas. Ele diz: O investimento em redes de alta velocidade diminuiu em bilhões de dólares. Notavelmente, essa foi a primeira vez que esse tipo de investimento recuou na era da internet e fora de uma época de recessão [...]. Isso significa que menos redes da próxima geração são construídas, menos acesso e menos competição, menos empregos para americanos que constroem redes e que mais americanos estão encalhados do lado errado do fosso digital [...]. O tráfego on-line está explodindo e podemos assumir que vai haver exponencialmente muito mais dado. E nós estamos impondo ainda mais demanda sob a rede com o surgimento da Internet das Coisas, o desenvolvimento de aplicações que produzem altas taxas de dados como Internet e Saúde 81 Realidade Virtual e atividades que ainda não conseguimos compreender inteiramente, como mineração de bitcoin. (GOMES, 2017). A nosso ver, se a neutralidade for abolida na prática, a banda larga voltará a ser classificada como serviço de informação, enquanto a Internet móvel será considerada serviço de interconexão. Ao serem classificadas de formas diferentes, elas poderão ser comercializadas com valores diferentes, conforme os interesses do mercado, e devido à importância dos EUA nos debates de regulamentação da rede, certamente haverá impactos nos demais países. Esta discussão está em andamento no Brasil, ameaçando as conquistas adquiridas com a introdução da neutralidade de rede no Marco Civil da Internet. Podemos verificar um conflito entre uma tendência favorável ao fluxo de informações sem bloqueios ou sem filtros nacionais e outra voltada para a regulamentação realizada em cada país. Nos países em que as corporações midiáticas são fortes, como nos Estados Unidos, há um grande empenho para limitar as práticas comunicacionais e as criações tecnológicas e subordiná-las às regras do mercado, considerando que quanto maior a produção e distribuição de conteúdos e tecnologias passarem pelo controle das grandes corporações de mídia, maior a probabilidade de aumentar os lucros dessas empresas. Outro ponto polêmico no processo da elaboração do anteprojeto do Marco Civil era o artigo que tratava da identificação dos usuários da rede. Esse tipo de proposta apareceu em outros projetos de lei. A possibilidade de se colocar, no âmbito do Marco Civil, o controle sobre a identidade dos usuários era uma das preocupações. O anonimato era visto como condição necessária para garantia da livre manifestação na rede. Além do complexo aspecto técnico no que diz respeito aos registros de conexão, identificamos a preocupação em relação à possibilidade de rastreamento dos acessos dos internautas. Este fator poderia incidir na perda do anonimato dos usuários. A guarda dos logs, ou seja, dos registros de navegação dos usuários, não estava prevista no projeto original e era considerada como problemática e que poderia invadir a privacidade. 3. Do debate colaborativo à aprovação da lei O projeto foi elaborado de forma colaborativa, com autoria coletiva e foi apresentado pela presidenta Dilma Rousseff no final de agosto de 2011 e enviado ao Congresso como projeto de lei n° 2.126/2011. Ele estabelecia um conjunto de princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Ao tramitar pelo Congresso Nacional em Regime de Prioridade, o projeto colocou em discussão a regulamentação da Internet em outra perspectiva. 82 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) O processo de aprovação do projeto não foi simples. Apesar de tramitar em regime de prioridade, ele demorou três anos para ser aprovado, mesmo com pressão da sociedade civil, com a realização de audiências públicas em vários estados, entre outras manifestações, tais como abaixo-assinados, petições on-line etc. A neutralidade de rede foi um dos pontos mais polêmicos do projeto. Diversos parlamentares não concordavam com a manutenção desse artigo, principalmente aqueles ligados aos setores das telecomunicações. Nesse sentido, esses representantes não pouparam esforços para dificultar que o projeto fosse votado em sua versão original. No dia 11 de setembro de 2013, a presidente Dilma Rousseff15 solicitou que o projeto fosse votado em “regime de urgência constitucional”. Com esse dispositivo, tanto Congresso quanto o Senado passavam a ter 45 dias para a apreciação e aprovação do projeto. Caso contrário, nenhum projeto poderia ser votado. No jargão do Legislativo, significa dizer que a pauta do Congresso estava “trancada”, e nenhum projeto poderia ser votado. Com o regime de urgência, os parlamentares teriam até o final de outubro de 2013 para a votação. Entretanto, não foi o que efetivamente ocorreu. Houve muita pressão dos setores de telecomunicações, considerando que eram radicalmente contrários à aprovação da neutralidade de rede. Esse setor tem representantes com força no Congresso que fizeram muitas articulações, chegando ao ponto de atingir um número suficiente de parlamentares para derrubar o artigo da neutralidade. Foi o momento mais crítico de todo processo, e o governo, entendendo a gravidade da situação, resolveu retirá-lo, avaliando que perderia a votação e que o processo de anos de construção de uma proposta democrática seria perdido. Após a recomposição da base de apoio, o projeto foi novamente apresentado e aprovado no Congresso e posteriormente também no Senado antes da NETmundial. Várias personalidades e lideranças sociais e políticas se manifestaram apoiando a aprovação do projeto. Em reportagem publicada no dia 14 de abril de 2014 no site da canaltech o jornalista Caio Carvalho afirmou: [...] Marco Civil ganhou apoio não apenas da presidente e de vários políticos, mas também de algumas personalidades. Entre os que defenderam a aprovação do projeto estão o cantor e ex-ministro da Cultura, Gilberto Gil, os humoristas Gregório Duvivier e Rafinha Bastos, o ator Wagner Moura, o filósofo francês Pierre Lévy e o britânico Tim BernersLee, considerado o criador da rede mundial de computadores, a WWW. (CARVALHO, 2014). 15 Nesse momento a ex-presidenta Dilma Rousseff já tinha conhecimento das denúncias realizadas pelos extécnico da CIA, Edward Snowden, quando revelou detalhes de alguns programas de vigilância utilizados para monitorar as conversas da ex-presidenta com seus assessores. Essas revelações foram fundamentais para despertar a atenção para a importância de aprovação do Marco Civil da Internet, principalmente pelas garantias aos direitos dos usuários na rede. Internet e Saúde 83 É inquestionável que a manifestação de personalidades nacionais e internacionais em apoio ao Marco Civil, além da mobilização dos setores que apoiavam a aprovação do projeto, foram fundamentais para sua aprovação. O anúncio da aprovação foi realizado na NETmundial pela presidente Dilma Rousseff e recebido com entusiasmo pela comunidade internacional presente no evento. No dia 23 de abril de 2014 o jornalista Bruno Araujo noticiou evento no portal G1 da seguinte forma: A presidente Dilma Rousseff sancionou o Marco Civil da Internet durante a NETmundial, encontro realizado em São Paulo que reúne representantes de mais de 90 países, entre eles 27 ministros. "A internet que queremos só é possível em um cenário de respeito aos direitos humanos, em particular à privacidade e a liberdade de expressão. Os direitos que as pessoas têm off-line também devem ser protegidos on-line", declarou Dilma. (ARAUJO, 2014). Para que se tenha uma noção precisa sobre a importância ocupada pelo Brasil naquele momento, destacamos a presença de Tim Berners-Lee ao lado da presidenta na promulgação do Marco Civil. Berners-Lee criticou severamente a espionagem eletrônica que os Estados Unidos fizeram à ex-presidenta e disse claramente que os demais países deveriam seguir o exemplo do Brasil, criando legislações que protejam os direitos dos usuários na Web e também a forma de governança da Internet praticada no país, afirmando. Na mesma reportagem publicada por Bruno Araujo consta que Tim BernersLee afirmou que: A explosão de inovação na internet nos últimos 25 anos aconteceu apenas porque a rede era neutra. Conforme a rede dá mais poder às pessoas, individualmente e coletivamente, muitas forças estão abusando ou ameaçando abusar da internet e de seus cidadãos. A rede que teremos em 25 anos de forma alguma é clara, mas cabe completamente a nós decidir o que nós queremos dela.” (ARAUJO, 2014). O encontro também discutiu outras questões relacionadas à Internet, como a necessidade de se ter uma nova forma de governança do Internet Corporation for Assigned Names and Numbers (ICANN)16, que seguisse a dinâmica multissetorial e multilateral, garantindo a transparência das ações do órgão. 16 Criado em 1998, o ICANN desempenha um papel administrativo na gestão de nomes e domínios utilizados pelas pessoas que acessam à Internet. Ele realiza um papel de coordenação do fornecimento de endereços de IP para que não haja repetição ou conflito dessas informações. 84 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) 4. Regulamentação do Marco Civil da Internet Dois anos depois de ter sido aprovado, o Marco Civil corria risco de ser alterado. Tim Berners-Lee publicou no dia 11 de abril de 2016, no site da World Web Foundation que dirige, uma carta aos deputados federais defendendo o Marco Civil e reafirmando o papel da Constituição Brasileira da Internet na governança da rede. O Brasil ama a Internet. Mais da metade dos brasileiros estão online, e este número está crescendo rapidamente [...]. Seu país tornou-se o primeiro a dar o passo corajoso para colocar em prática uma “Carta de Direitos” para a Internet – o Marco Civil da Internet. Esta abordagem visionária já teve impactos globais. Da Itália até a Nigéria, outros países estão tentando imitar o Brasil. E por isso, a Internet ama o Brasil. É por isso que estou triste em saber que os princípios consagrados no Marco Civil podem estar sob ameaça diante de um novo relatório contra crimes cibernéticos que está sob análise no legislativo [...]. Propostas que ameacem a neutralidade da rede ao fornecer novos poderes para bloquear aplicativos ou retirar conteúdo do ar são profundamente preocupantes, pois representam um duro golpe contra a liberdade de expressão online – em um momento em que a liberdade de expressão e debates profundos são mais necessários do que nunca [...]. [...] Eu peço aos brasileiros que rejeitem as propostas atuais deste relatório, considerem maneiras alternativas de combater crimes cibernéticos e que se comprometam novamente com os princípios do Marco Civil que protegem a Internet como ela deve ser – um espaço aberto, colaborativo do qual todos possam se beneficiar. (BERNERS-LEE, 2016). No dia 11 de maio de 2016, foi publicado o Decreto 8871/1617, que regulamentou o Marco Civil da Internet. Foi um dos últimos atos da ex-presidente Dilma Rousseff antes de se afastar do cargo pelo processo de impeachment. Embora não seja esse o foco do texto, é importante ressaltar que o país atravessava uma conjuntura política adversa para que a regulamentação do Marco Civil fosse realizada, considerando que a agenda política do Congresso Nacional estava voltada para outros interesses. O decreto regulador do Marco Civil tratou especificamente da neutralidade de rede e dos procedimentos relacionados à guarda e proteção de dados cadastrais e pessoais por parte dos provedores de conexão e serviços. Destacamos especificamente os artigos 17 a 21 do Decreto 8.771/16, Capítulo IV – “Da Fiscalização e da Transparência”, que dispõem sobre a possibilidade de regulação pela 17 O decreto nº 8871/16 2018/2016/decreto/d8771.htm. está disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015- Internet e Saúde 85 Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) (art. 17), pela Secretaria Nacional do Consumidor (SENACOM) (art. 18), pelo Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (art. 19). Alem disso “órgãos e as entidades da administração pública federal com competências específicas quanto aos assuntos relacionados a este Decreto atuarão de forma colaborativa” (Art. 20). A nosso ver, este capítulo não especificou a competência de cada órgão no que diz respeito às atividades que utilizam dados pessoais. Ao deixar vago, não especificou o corpo legal que tutela os dados pessoais no país nem o modelo regulatório e seus instrumentos para a salvaguarda destes dados, deixando em aberto o que deveria estar especificado. Essa imprecisão na distribuição das competências regulatórias deixou uma lacuna que pode vir dificultar a aplicação da lei. Além disso, é importante destacar que a Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) não tem competência regulatória no caso específico dos dados pessoais. Ainda nesse caso, ressalta-se que a Secretaria Nacional do Consumidor (SENACOM) e seus órgãos não possuem de meios competentes para a regulação de dados pessoais. O Código de Defesa do Consumidor oferece proteção e tem atuado como aliado do consumidor, principalmente no esclarecimento de informações sobre os termos de uso e de licenças relacionados à Internet. Também é importante deixar claro o caráter do CGI.br. Embora tenha um papel fundamental no debate em torno da regulamentação da Internet, é um órgão com caráter técnico e não possui poder como ente regulatório. Nesse sentido, concluímos que um dos grandes problemas do decreto regulamentador do Marco Civil é que não há um órgão regulador específico que tenha a capacidade de abarcar a garantia de privacidade dos dados pessoais na rede. Ainda sobre a neutralidade de rede, outro ponto importante é a quebra da neutralidade por motivos técnicos. Um dos motivos alegados pelas empresas de telecomunicações contrárias à inclusão da neutralidade de rede no Marco Civil é que isso impediria o investimento em infraestrutura para ofertar serviços de qualidade aos usuários. A banda larga no Brasil é de baixíssima qualidade e altíssimo custo. Os brasileiros pagam 100% e recebem 10% da velocidade contratada. O Marco Civil se tornou uma importante ferramenta para que os usuários possam exigir o recebimento pelo equivalente ao contratado. Outro ponto polêmico está na Sub-seção II – “Da Guarda de Registros de Acesso a Aplicações de Internet na Provisão de Aplicações” do projeto aprovado em 2014. º. Art. 15. O provedor de aplicações de internet constituído na forma de pessoa jurídica e que exerça essa atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos deverá manter os respectivos registros de acesso a aplicações de internet, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de 6 (seis) meses, nos termos do regulamento. 86 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) § 1o Ordem judicial poderá obrigar, por tempo certo, os provedores de aplicações de internet que não estão sujeitos ao disposto no caput a guardarem registros de acesso a aplicações de internet, desde que se trate de registros relativos a fatos específicos em período determinado. § 2o A autoridade policial ou administrativa ou o Ministério Público poderão requerer cautelarmente a qualquer provedor de aplicações de internet que os registros de acesso a aplicações de internet sejam guardados, inclusive por prazo superior ao previsto no caput, observado o disposto nos §§ 3o e 4o do art. 13. § 3o Em qualquer hipótese, a disponibilização ao requerente dos registros de que trata este artigo deverá ser precedida de autorização judicial, conforme disposto na Seção IV deste Capítulo. § 4o Na aplicação de sanções pelo descumprimento ao disposto neste artigo, serão considerados a natureza e a gravidade da infração, os danos dela resultantes, eventual vantagem auferida pelo infrator, as circunstâncias agravantes, os antecedentes do infrator e a reincidência. (BRASIL, 2014). Tem sido observadas denúncias de vigilância e espionagem em escala internacional realizadas pelos Estados Unidos, que reforçam, ainda mais, a necessidade da criação de parâmetros e regras oriundas de um debate da governança global para impedir esse tipo de atitude. É importante lembrar as denúncias de espionagem do governo norte-americano feitas pelo ex-técnico da CIA, Edward Snowden, incluindo o monitoramento de conversas da presidente Dilma Rousseff com seus principais assessores, trouxeram à tona um debate fundamental que diz respeito à garantia da privacidade dos usuários na Internet, reveladas em março de 2016. Esse fato despertou a atenção da presidente para a importância e a gravidade da situação envolvendo as questões da regulamentação da Internet e, especificamente, o Marco Civil. O decreto assegura que os provedores de acesso e aplicação não podem discriminar o tráfego do pacote de dados, garantindo, portanto, o tratamento isonômico previsto na neutralidade de rede. Significa dizer que nenhum provedor poderá favorecer algum tipo de serviço para algumas pessoas em detrimento do acesso à Internet de outras. O tráfego de dados poderá ter algum tipo de discriminação somente em caráter excepcional ou quando houver a necessidade de priorizar serviços de emergência, como, por exemplo, quando o governo necessitar enviar mensagens aos usuários com informações sobre catástrofes ambientais. Neste item é importante assinalar que está tramitando – mesmo que em ritmo lento, dada a urgência do tema – no Congresso o PL 5276/16, que “Dispõe sobre o tratamento de dados pessoais para a garantia do livre desenvolvimento da personalidade e da dignidade da pessoa natural”. O projeto é visto como moderno por parte expressiva da comunidade de estudiosos do tema. Eles Internet e Saúde 87 consideram ser um avanço em relação às disposições legais existentes pois garante a privacidade dos dados dos usuários da rede. Talvez por isso ele esteja parado na mesa diretora desde maio de 2018. 5. Considerações finais Em entrevista ao repórter Luiz Lima, da Agência estado, no dia 4 de abril de 2014, Berners Lee afirmou: Com a aprovação do texto do Marco Civil, o Brasil consolida sua reputação como líder da democracia e ajuda a inaugurar uma nova era na qual os direitos dos cidadãos do mundo serão protegidos por constituições digitais (LIMA, 2014). A declaração de Tim Berners-Lee, criador da Web, demonstra a importância que o país adquiriu no debate da governança global da Internet e reafirma que é possível a elaboração de políticas públicas de forma inovadora, contando com a participação da sociedade civil. A preocupação do país com a governança da Internet não é de hoje, tendo em vista a atuação do Comitê Gestor da Internet criado há aproximadamente 20 anos, com uma composição multissetorial, aberta, e transparente e com participação efetiva da sociedade civil. A aprovação do Marco Civil chamou a atenção da comunidade internacional envolvida no debate de regulação da Internet. O país demonstrou que é possível elaborar uma política pública avançada e com participação da sociedade civil. No presente artigo, buscamos recuperar os principais aspectos do processo de elaboração do projeto de lei do Marco Civil da Internet. A regulamentação da Internet é, na atualidade, um tema bastante polêmico e complexo, envolvendo governos, sociedade civil, comunidades de Internet e setores da iniciativa privada na elaboração de princípios, normas, regras e procedimentos decisórios para definir o funcionamento da rede. Trata-se de um campo de grande disputa, reunindo atores com os mais diversos interesses e posicionamentos sobre a forma de funcionamento da Internet – se ela manterá a arquitetura livre, colaborativa e com garantia da liberdade de expressão. Verificamos durante a análise que os pontos mais polêmicos são: 1) neutralidade de rede; 2) privacidade, segurança e vigilância; e 3) liberdade de expressão. Os únicos países que fizeram regulamentações incluindo a neutralidade de rede são o Brasil e o Chile. Eles apresentam as regulamentações mais avançadas do ponto de vista da garantia de direitos civis, de promoção da cidadania e do uso democrático da Internet. 88 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) O atual contexto político do país coloca em risco os três pilares fundamentais, recentemente conquistados, do Marco Civil da Internet: liberdade de expressão, privacidade e neutralidade de rede. Neste cenário complexo, observamos a emergência de forças políticas conservadoras e da recomposição de setores vinculados ao pensamento social de características privatistas, garantindo amplos poderes às empresas na definição de seus modelos de negócios em diferentes setores. Especificamente, as empresas de telecomunicações vêm conseguindo se rearticular com os setores conservadores no Congresso Nacional e impor uma pauta política que promove profundo retrocesso em diversos setores, com impactos significativos para a maioria da população. Por exemplo, o Ministério das Comunicações foi extinto e suas prerrogativas passaram a ser incorporadas pelo Ministério de Ciência e Tecnologia. O crescimento do compartilhamento de fake news e a desinformação está trazendo novamente o debate sobre o papel das plataformas em relação aos conteúdos disponibilizados pelos usuários. Recentemente, o Facebook retirou um conteúdo sobre medicamentos milagrosos para curar doentes contaminados pelo coronavírus que atinge milhares de pessoas em todo planeta. A polêmica está estabelecida, considerando que a princípio qualquer retirada de conteúdo somente poderia ser realizada a partir de ordem judicial, mas há quem defenda que no caso a empresa agiu corretamente, tendo em vista que se trata de informação relevante que pode afetar a vida de milhares de pessoas. Outro aspecto importante é a privacidade dos usuários. Nesse aspecto específico a legislação também vem sendo questionada na prática. A privacidade tem sido quebrada para monitorar pessoas que estão descumprindo as regras de isolamento social aprovada em diversos estados do país. Novamente se acende o debate: o monitoramento deve ser permitido? Quais formas de monitoramento poderiam ser realizadas sem infringir as leis vigentes? Esse debate está apenas no início e, certamente, após a pandemia veremos novos capítulos em torno dele. É nesse contexto que as conquistas do Marco Civil da Internet se encontram ameaçadas. Embora a lei já tenha sido regulamentada, observamos que a estratégia dos setores conservadores está concentrada na apresentação de projetos de lei que questionam aspectos fundamentais do Marco Civil, como a garantia da proteção da liberdade de expressão e a neutralidade de rede. Caso venham a ser aprovados, esses projetos anulam o estabelecido no decreto de regulamentação do Marco, implicando um profundo retrocesso não somente em relação à legislação construída de forma democrática, mas também enfraquece na prática a posição de importante player adquirida pelo Brasil na discussão da governança global da Internet. Referências Internet e Saúde 89 ABRAMOVAY, P. V. 2009. Marco Civil da Internet. Cultural Digital, 2009. Disponível em: http://culturadigital.br/marcocivil/tag/convite/. 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Este programa buscou disseminar a cultura digital, envolvendo iniciativas de inclusão digital, educação para meios de comunicação e gerenciamento de tecnologia da informação. Embora localizada em uma área montanhosa, a cidade alcançou cobertura de internet sem fio em tempo relativamente curto. Este capítulo fornece uma análise da experiência deste Programa. Foram utilizados materiais publicados na imprensa, declarações e trabalhos acadêmicos sobre esta iniciativa. Trata-se de um projeto pioneiro no campo da inclusão digital em todo o mundo que apresentou um caráter interdisciplinar e baseou-se em uma visão emancipatória da tecnologia. Palavras-chave: Internet; Inclusão Digital; Informação e Comunicação em Saúde; Cidadania; Saúde. Referência: BORGES, W.; GOMBERG, E.; BORGES, V. C. Q. “Piraí Digital”: um projeto pioneiro de inclusão digital. In: PEREIRA NETO, A.; FLYNN, M. (orgs.). Internet e saúde no Brasil: desafios e tendências. 1 ed. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2020. p. 91-112. * Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde, Fundação Oswaldo Cruz, Brasil. E-mail: [email protected]. Internet e Saúde 93 Introdução Os anos 1970 representaram uma espécie de marco simbólico da transformação dos ambientes de informação e comunicação, especialmente pelo movimento materializado com a internet. Longe de apontar uma superação de formas e estratégias anteriores, o potencial da conexão de uma rede mundial de computadores, ao aproximar sujeitos, organismos e institutos, encurta as distâncias especiais e temporais. Assim, conformou-se aquilo que o filósofo canadense Marshall McLuhan (2013; 2011) designa de “aldeia global”: isto é, um mundo onde todos estariam potencialmente conectados. Entretanto, não se pode negligenciar o fato de que boa parte do impulso associado ao desenvolvimento daquilo que Armand Mattelart (2000) destacou como “novo recurso imaterial” esteve associado a um duplo movimento que ocorreu concomitantemente. O primeiro é a necessidade de expansão dos mercados como alternativa para superação da crise do petróleo, que marcou a primeira metade da década de 1970. O segundo foi a sobreposição entre a concepção de sociedade da informação e o fenômeno caracterizado como globalização. Por isso, concordamos com o diagnóstico produzido pelo sociólogo francês quando este aponta que: [...] O imperativo de ‘saída da crise’ convocava as novas tecnologias a se plantarem ‘à cabeceira’ das economias dos grandes países industriais. A noção de ‘sociedade da informação’ aparecia nos programas de pesquisa dos governos e das instituições internacionais. A partir de 1975, na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e, quatro anos mais tarde, na União Europeia. Com o avanço das desregulamentações e das privatizações, os mitos da era da informação cruzariam com a via da ‘idade global’ [...]. (MATTELART, 2000, p. 1). Esse cenário mais amplo impulsionou um movimento, em escala mundial, de incentivo à geração da chamada sociedade da informação. O Brasil, bem como outros países em desenvolvimento, tornou-se um solo fértil para que novos entes fossem inscritos “na Sociedade Informacional e no sistema econômico mundial” (AZEVEDO, 2012, p. 42). Com esse quadro mais geral, os anos 1990, mas, sobretudo, na primeira década dos anos 2000, foram palco da aceleração nas transformações dos processos de interação entre indivíduos e destes com as organizações, tendo as chamadas Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs) papel primordial nessa nova configuração social. Nesses termos, o Brasil se insere na onda mundial de disseminação de uma cultura digital, sendo esta definida por Manuel Castells a partir dos seguintes caracteres: 1) habilidade para comunicar ou mesclar qualquer produto baseado em uma linguagem comum digital; 2) habilidade para comunicar desde o local até o global em tempo real e, vice-versa, para poder diluir o processo de 94 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) interação; 3) existência de múltiplas modalidades de comunicação; 4) interconexão de todas as redes digitalizadas de bases de dados [...] com o sistema de armazenamento e recuperação de dados [...]; 5) capacidade de reconfigurar todas as configurações criando um novo sentido nas diferentes camadas do processo de comunicação; e 6) constituição gradual da mente coletiva pelo trabalho em rede, mediante um conjunto de cérebros sem limite algum. Neste ponto, me refiro às conexões entre cérebros em rede e a mente coletiva. (CASTELLS, 2009, p. 3). Embora seja possível falar de certa irreversibilidade da disseminação de uma cultura digital, não se trata de um processo estável, tampouco que se desenvolva da mesma forma nos mais variados países, especialmente naqueles em desenvolvimento, como no Brasil. Nesses casos, entre o final do século XX e meados do século XXI, predominou a exclusão digital. Ela incidiu, sobretudo, nas populações de baixa renda que não possuíam recursos para adquirir um computador e pagar o acesso à rede. Além disso, eram escassos seus conhecimentos e habilidades em lidar com essas novas tecnologias. Nesse contexto, a expansão da internet dependia, em larga medida, de “políticas públicas de inclusão digital, e ações conjuntas entre Estado, sociedade civil e empresas privadas, para que os indivíduos sejam inseridos nessa Sociedade” (LEMOS, 2007, p. 30). Diante disso, este capítulo visa apresentar e analisar uma das primeiras experiências de inclusão digital realizadas no Brasil. Trata-se do “Programa Piraí Digital”, iniciado em 2004 no município de Piraí, no Estado do Rio de Janeiro. Para tanto, foram utilizadas informações produzidas pela imprensa, bem como declarações dos responsáveis pela criação e implantação do Projeto e trabalhos acadêmicos que tomaram o “Programa Piraí Digital” como um objeto empírico de investigação. Em seguida, tais referências serviram como base para refletir sobre como se deu o processo de inclusão digital na região, especialmente a partir de duas perspectivas: a da disponibilização do acesso e da apropriação que a população fez das Tecnologias da Informação e da Comunicação ao seu alcance. Por fim, demos destaque a um dos eixos do “Programa Piraí Digital”, que é o saúde. A escolha se justifica em função da compreensão de que a saúde (seja naquele município, seja no Brasil como um todo) é um campo profícuo para se debater tanto a dimensão das políticas públicas quanto (e especialmente) da cidadania. A arquitetura política, social, educacional e informacional do “Programa Piraí Digital” buscou democratizar o acesso aos meios de informação e comunicação, visando gerar oportunidade de desenvolvimento profissional, social e econômico. Esse aspecto confere a este programa pioneirismo nacional e internacional. Ele se caracterizou por disseminar a cultura digital por meio de ações de inclusão digital, na educação1 para novas mídias e na informatização da gestão, num momento histórico e numa região onde as condições materiais se mostravam muito adversas para sua execução e manutenção. 1 O capítulo 13 aborda o tema do e-learning. Internet e Saúde 95 1. Piraí: programa de desenvolvimento local, destaque internacional O Município de Piraí possui uma área de aproximadamente 506 m2, cuja população, de acordo com o último Censo (IBGE/2010), totalizava 26.309 habitantes. À 89 km da capital do estado do Rio de Janeiro (Região Sudeste do Brasil), o município compõe a microrregião do Vale do Paraíba Fluminense e a mesorregião Sul Fluminense, fazendo fronteira com as cidades de Barra do Piraí, Mendes, Paracambi, Pinheiral, Rio Claro, Volta Redonda e Mendes (Figura 1). Figura 1. Localização do município de Piraí Fonte: Wikipédia Legenda: Piraí (em vermelho) fica a 90 km da capital do Rio de Janeiro (em azul) Em meados dos anos 1990, mais especificamente em 1996, havia na cidade uma crise de emprego motivada pela demissão de um grande número de empregados da recém privatizada Light e da Fábrica de Papel Pirahy (fornecedora da Souza Cruz vendida para um grupo estrangeiro) (COELHO, 2004; TELES, 2010). Diante disso, os administradores públicos identificaram a necessidade de criar fontes alternativas de arrecadação e de geração de renda. Como descreve Teles (2010), Naquele momento, a economia agrícola e periférica (em relação a Volta Redonda e Rio de Janeiro, especialmente), nas palavras do professor Franklin Coelho, [...], foi drasticamente golpeada e o poder público se viu impelido a agir com vigor e rapidez. Foi lançado o Programa de Desenvolvimento Local de Piraí, em janeiro de 1997 [...], que visava combater o déficit de empregos que montava a 10% da população 96 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) economicamente ativa e a queda da produção agropecuária. A arrecadação municipal necessitava de um substancial incremento para fazer face às obrigações do poder público. A Light foi chamada a pagar impostos sobre as áreas de sua propriedade no município e a cidade obteve na justiça o direito de recolher os impostos sobre a geração de energia elétrica, que anteriormente eram recolhidos na capital. (TELES, 2010, p. 109). As estratégias lançadas pela Prefeitura de Piraí buscaram tecer a formação de um mercado englobando a Região do Vale do Paraíba, oportunizando espaços de cooperação entre os municípios, cujos diagnósticos apontavam a formação de cadeias e grupos produtivos amparados por legislações de trabalho e de renda. A universalização do acesso às Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) passou a ser percebida como um amálgama para o desenvolvimento socioeconômico. Teles (2010) afirma que a ênfase passou a ser: [...] fomentar empreendimentos econômicos; integrar de empreendimentos populares às cadeias produtivas; garantir acesso a crédito, capacitar e promover assessoria técnica a setores econômicos populares; estabelecer o comércio solidário; monitorar o perfil econômico do município e criar meios de acesso à Internet para potencializar as relações entre o mercado e a economia territorializada dessas comunidades. (TELES, 2010, p. 109). Com essa perspectiva, no Plano Diretor de Informática de 1997 (elaborado ainda em 1996), a Prefeitura de Piraí começou a desenvolver o “Programa Piraí Digital”. Sua estratégia estava alicerçada na proposta de democratização do acesso aos meios de informatização e comunicação como uma via de gerar oportunidades de desenvolvimento econômico e social. Nesse sentido, estabelece-se uma relação entre as TICs, o desenvolvimento local e a cidadania. Criado em 2004, o “Programa Piraí Digital”2 nasceu com a visão “estratégica de uma sociedade de informação local, na qual o cidadão se torna o principal ator na produção, gestão e usufruto dos benefícios das novas tecnologias de informação e comunicação” (SADAO, 2004 p. 21)3. Esse programa estruturou-se por meio da utilização do Sistema Híbrido com Suporte Wireless (SHSW) e a utilização de Softwares Livres (SoL). Segundo Teles (2010), ele merece destaque porque, essa rede instalada em Piraí (SHSW – sistema híbrido com suporte wireless, que funcionou a uma velocidade mínima de 54 Mbps em sua porção sem fio), interligou todos os prédios públicos, onde O pioneirismo do “Programa Piraí Digital” não esteve associado inicialmente apenas ao ano de sua efetivação. Diferentemente de outras iniciativas semelhantes, como o Sampa.org (realizado em São Paulo), o movimento de inclusão digital em Piraí não se deu majoritariamente por meio dos telecentros (como no caso paulista). A experiência do município fluminense interconectou telecentros, escolas, unidades de saúde, bibliotecas, proliferando os pontos de acesso – seja por cabeamento, seja pelo sistema wireless – provendo cobertura em quase 100% da cidade. 3 Mais adiante retomaremos a premissa do cidadão como principal ator na produção, gestão e usufruto dos benefícios. Ela nos interessa eespecialmente porque a questão central nesse processo que precisará ser respondida é a seguinte: que concepção de cidadania trata o “Programa Piraí Digital”? 2 Internet e Saúde 97 estavam disponíveis outras redes locais, e foi utilizada como suporte da comunicação telefônica sobre IP. Foram 23 pontos ligados sem fio, 68 cabeados e 3 por satélite em áreas rurais de difícil acesso. É importante destacar que a adoção de SHSW surgiu como um elemento alternativo frente à negativa do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES em financiar a ampliação da internet na cidade. O primeiro pedido de financiamento foi rejeitado pelo banco, que considerou a proposta de solução tecnológica muita cara. Revisto o projeto, o município é enquadrado no “Programa de Modernização da Administração Tributária” (PMAT)4, recebendo aproximadamente US$ 370 mil para impulsionar o processo de informatização5. Entretanto, é importante não se perder de vista que o “Programa Piraí Digital” teve, como destacam Iizuka (2004) e Teles (2010), “genes tributários e ligados à eficiência” (TELES, 2010, p. 114)6, cujas principais ações estavam voltadas para:“[...] descentralizar os serviços de atendimento ao contribuinte, integrar sistemas, controlar gastos públicos com apoio de software gerencial, capacitar servidores e aumentar a eficiência e transparência da gestão pública” (TELES, 2010, p. 114). A democratização do acesso aos meios de informação e de comunicação em Piraí também deve ser associada à integração entre as redes governamentais, corporativas e comunitárias, o que também produziu (ou viabilizou) o fomento de ações de tecnologia da informação (TI) em cinco frentes, promovendo “um desenvolvimento global [...]: governo, educação, comunidade, empresas e saúde” (TELES, 2010, p. 114). Entretanto, nesse cenário em que é possível observar a construção de uma sociedade da informação, verificase, como demonstrou Marques (2010), “um forte determinismo tecnológico [onde] frequentemente [se] tomam os artefatos das TICs como se fossem neutros em relação aos efeitos que produzem” (MARQUES, 2010, p. 5). Criticamente, o autor observa que tal movimento acaba produzindo, como um de seus efeitos, a construção da noção de que “países, regiões ou indivíduos que não aderem à corrida inexorável na direção da ‘Sociedade da Informação’ fariam parte de uma nova categoria de excluídos, agora digital” (MARQUES, 2010, p. 5). 4 O Programa de Modernização da Administração Tributária e da Gestão dos Setores Sociais Básicos (PMAT), do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), serviu de degrau para projetos de Cidades Digitais ao financiar diversas atividades de atualização tecnológica. Criado em agosto de 1997, já atendeu a aproximadamente 330 municípios brasileiros. "No momento de sua criação, o objetivo fundamental do PMAT era estimular o aumento das receitas próprias, de modo a diminuir a dependência municipal em relação às transferências federais e estaduais. Posteriormente, em maio de 1999, o PMAT passou a se chamar ‘Programa de Modernização da Administração Tributária e da Gestão dos Setores Sociais Básicos’. Adicionaram-se aos objetivos originais a melhoria da qualidade de atendimento ao cidadão e a maior transparência na ação governamental" (MATTAR, [20--]) 5 Em 2000, o município já havia sido enquadrado no “Programa de Modernização da Administração Tributária” (PMAT), do BNDES. Piraí foi o primeiro município de pequeno porte coberto neste programa, que estava voltado, sobretudo, para cidades com mais de 500 mil habitantes. Em maio de 2001, foram liberados cerca de 370 mil dólares para a cidade por meio do PMAT. 6 Como destacou Teles (2010), entre 2003 e 2005, os recursos do “Programa de Modernização da Administração Tributária” sustentaram o andamento da capacitação de servidores, a contratação de serviços e a construção da estrutura física no município. Nesse período, o sistema SHSW interligou 29 prédios públicos, onde foram instaladas redes internas. Além disso, a prefeitura comprou sistemas administrativos e computadores e começou o geoprocessamento da cidade. 98 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Diante desse cenário, é possível que a iniciativa “Programa Piraí Digital” se desenvolveu entre duas perspectivas: uma mais voltada para a sofisticação da difusão/disseminação, outra mais ligada à apropriação/usos. No caso da primeira, seriam necessários: Sustentabilidade econômica, política, ética e legal dos processos; existência de infraestrutura física e acesso disponível a computadores e à internet; existência de conteúdo produzido localmente e/ou adaptado para o uso local; educação voltada para a autonomia dos indivíduos e sua capacitação para aproveitar as oportunidades da sociedade da informação (TELES, 2010, p. 79). A segunda demandaria um processo criativo e social de apropriação, que transcende em muito a difusão de produtos e serviços de bens de consumo individuais. De acordo com Marques (2010): Este processo pode ser compreendido como uma interação contínua entre a assimilação e reinvenção de significados e usos das TICs, pelos atores individuais ou sociais, sendo significativamente influenciado pelos contextos onde ocorre e que ele próprio transforma (MARQUES, 2010, p. 5). O processo de criação do “Programa Piraí Digital” representou um verdadeiro divisor de águas, seja na relação que organismos públicos municipais mantinham entre si, seja na forma como se alterava a rotina da população local. Porém, uma das questões que emerge nessa conjuntura se refere exatamente ao papel das TICs nesse contexto. A questão que nos parece oportuna é a seguinte: a ampliação de oferta de acesso à internet foi suficiente para que as práticas sociais construídas sobre outros parâmetros pudessem sofrer profundas transformações? 2. Inclusão digital: disponibilização de acesso ou apropriação social das TICs? O “Programa Piraí Digital” mereceu destaque tanto nacional quanto internacional, na medida em que se tornou símbolo de um modelo cuja longevidade passou a atrair a atenção de vários organismos. Uma reportagem publicada pelo jornal O Globo,7 passados 7 Fundado em 1925, O Globo é um dos três jornais de referência do Brasil. Com tiragem de aproximadamente 130 mil (de segunda a sábado) e 170 mil (domingo) exemplares por dia, de acordo com uma pesquisa do Internet e Saúde 99 10 anos da criação do “Programa Piraí Digital”, mostrava que tal iniciativa atravessara nossas fronteiras e que se tornara uma realidade muita concreta. A matéria intitulada “TEDx celebra dez anos de projeto que levou internet às ruas de Piraí” (O Globo, 14/03/2014), realçava o pioneirismo e a singularidade do projeto: “Em 2004, os moradores de Piraí não sabiam o que era internet. No município do Estado do Rio não havia sequer um provedor. Passados dez anos, a cidade entra definitivamente no mundo digital, sediando uma das edições do TEDx” (O Globo, 2014, p. 1)8. Todas as teses e dissertações que tiveram o “Programa Piraí Digital” como objeto de investigação (OLIVEIRA, 2014; AZEVEDO, 2012; MARQUES, 2010; TELES, 2010; IIZUKA, 2008; 2004; CASTRO, 2007; COELHO, 2004), são unânimes em apontar que a grande marca do projeto foi a de promover a democratização do acesso à informação e ao conhecimento ao levar a Web às ruas, casas e instituições do município. Tal perspectiva parece ser confirmada quando personalidades e autoridades de reconhecimento internacional visitaram de perto a iniciativa de Piraí, como aparece descrito pelo jornal: O TEDx é uma versão local do projeto TED (sigla para Tecnologia, Entretenimento, Design), criado nos EUA em 1984 e que já teve palestras de celebridades como Al Gore, Bill Clinton, Bill Gates e Bono Vox. Para o secretário municipal de Ciência e Tecnologia, Osni Silva – ex-estagiário do Piraí Digital –, o evento coroa os esforços da cidade em ingressar no mundo on-line: - A gente não tinha nenhum acesso, banda larga, provedor, nada. Era cidade do interior mesmo. A prefeitura, então, resolveu abraçar a ideia e disseminar a internet. O Piraí Digital promove a disseminação da cultura digital (O Globo, 2014). É bem possível que parte considerável do êxito do “Programa Piraí Digital” esteja associado a três dimensões. A primeira delas, como descreve Teles (2010), está ligada ao fato desse projeto englobar “um leque de iniciativas, em cinco áreas de atuação – governo, educação, saúde, negócios e cidadania9 –, com o objetivo de vencer a exclusão digital no município e contribuir para seu desenvolvimento” (TELES, 2010, p. 8). A segunda está relacionada àquilo que Teles (2010) qualifica como fruto de uma “associação de artefatos – rede de computadores, telecentros, Planos Diretores e outros – e das pessoas nos esforços para vencer a exclusão digital e contribuir para o desenvolvimento local” (TELES, 2010, p. 8). A terceira está relacionada à participação das três esferas de Governo (municipal, Instituto de Verificação de Circulação (IVC). Trata-se de um dos periódicos consolidados econômica e politicamente e considerados de credibilidade e formador de opinião. 8 Para maiores referências sobre o TEDx Piraí, acesse: http://tedxpirai.com.br/sobre-o-tedx-pirai/. 9 Dessas áreas de atuação, a saúde merecerá destaque. A ela dedicaremos uma seção, tendo em vista que, no Brasil, a noção de direito à comunicação e à informação são inerentes ao direito à Saúde. Desde a Constituição de 1988, as três são consideradas bens de cidadania. 100 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) estadual e federal), a exemplo do movimento que ocorreu na adoção da computação 1:110, na área da educação, a partir de 2007. A partir de Castro (2007), admitimos ser plausível afirmar ainda que as dimensões descritas no parágrafo anterior guardam relação direta com o pressuposto de que “a exclusão digital é um conjunto de consequências sociais, econômicas e culturais da distribuição desigual no acesso a computadores e internet” (CASTRO, 2007, p. 29). Dessa forma, parece fazer todo sentido que a entrada das TICs em Piraí fosse acompanhada por um processo de formação/capacitação de funcionários públicos, professores e alunos no uso de tais artefatos, notadamente num cenário de expansão de produtos e serviços de telecomunicações. Assim sendo, concordamos com Castro (2007) quando este afirma que a “exclusão digital deve ser compreendida como um processo associado àexclusão social, alimentando e sendo alimentada por ela [...]” (CASTRO, 2007, p. 30). No limite, o que o “Programa Piraí Digital” se propunha era dotar de cidadania uma parcela relativamente ampla de sua população ao incluí-los digitalmente. Ora, mas seria o acesso (concedido) a serviços públicos oferecidos pelo poder público local o suficiente para dotar de cidadania os moradores daquela cidade? É nesse contexto que uma ideia de prática comunicacional emancipatória começa a dar oportunidade aos moradores de Piraí de possuírem uma cidadania11 sociocomunicativa garantida a partir da democratização da comunicação, utilizando recursos digitais disponíveis. Com essa visão, trabalhos como os de Castro (2007) e Marques (2010) compreendem que os reflexos da introdução das TICs parecem ter colaborado mais com a melhoria da comunicação entre os órgãos municipais do que no fomento à interação entre o cidadão com o governo. Castro (2007) é ainda mais radical ao afirmar que a aplicação das TICs em Piraí atendeu mais ao objetivo de melhoria na eficiência da prestação de serviços e divulgação dos atos de governo do que ao de aumentar o controle social e participação cidadã na gestão municipal (CASTRO, 2007, p. 63). Isso acabou sendo reforçado pela ausência de lembrança por parte da população de Piraí da criação do “Conselho da Cidade”. É importante ressaltar que a questão colocada não minimiza o fato de o “Programa Piraí Digital” ser uma iniciativa de Estado em âmbito municipal que, a partir de sua articulação com diversos atores (organismos nacionais e internacionais, sociedade civil, servidores, profissionais da educação), buscou promover um amplo processo de construção da inclusão digital. Entretanto, os autores analisados insistem em afirmar que o aumento da governança participativa e da apropriação social das TICs não se deu na mesma proporção, na medida em que não garantiu a “capacidade de apropriação e [a] acessibilidade e inelegibilidade dos conteúdos e interfaces (MARQUES, 2010, p. 5). Tal compreensão do processo também levou Castro (2007) a sentenciar que “a oferta de serviços e de tecnologia 10 Projeto que estabeleceu a relação 1:1, “Um Computador por Aluno” (UCA), no processo de incorporação da tecnologia no campo da educação. O projeto piloto ocorreu no bairro Arrozal, na rede de ensino municipal (mais especificamente no CIEP 477), a partir de 2007 (considerada uma fase de aceleração do projeto). 11 Sociedade civil e participação cidadã on-line são analisadas no capítulo 4. Internet e Saúde 101 não são fatores suficientes para confirmar a hipótese” de que as TICs aumentaram o exercício da cidadania no município” (CASTRO, 2007, p. 48). Cabe ressaltar que, do ponto de vista da estruturação do processo, a criação do “Conselho da Cidade” para acompanhar a execução do “Plano Diretor da Cidade Digital” (TELES, 2010), como um dispositivo de controle social (logo, de exercício de cidadania), não garantiu que a Cidade Digital tenha se tornado mais inclusiva socialmente. Assim, os autores analisados não observam, no caso de Piraí, uma relação direta entre o aumento da presença das TICs e o incremento de exercício de cidadania. Os autores tomados como objeto de análise não deixam de salientar os avanços contidos no “Programa Piraí Digital”, especialmente na direção da exclusão digital. Um dos efeitos mais positivos, mencionado em entrevistas concedidas por representantes do governo municipal e na pesquisa realizada por Teles (2010), foi o “aumento expressivo do Índice de Desenvolvimento do Ensino Básico (IDEB) na primeira escola municipal que muniu cada um de seus alunos com um computador pessoal, em setembro de 2007” (TELES, 2010, p. 19). Paralelamente, não foram poucas (tampouco insignificantes) as ações de reconhecimento da iniciativa “Programa Piraí Digital”, a exemplo dos prêmios concedidos pela Fundação Getúlio Vargas (prêmio Gestão Pública e Cidadania, em 2001) 12, do Congresso de Informática Pública (iniciativa de sucesso na área de tecnologia da informação - TI, em 2005)13 e do Intelligent Community Forum (Top Seven Intelligent Communities, em 2005)14. (TELES, 2010, p. 20).15 Outro elemento marcante do “Programa Piraí Digital” está associado ao processo do governo eletrônico. Ou seja, a partir de sua implantação, houve aumento da capacidade de tornar mais transparentes as ações do governo. Esse aspecto potencializa a participação da população na interação e/ou fiscalização dos entes públicos por meio de espaços virtuais. Abre-se, assim, a possibilidade de um controle sobre a ação estatal, na medida em que tais informações são tornadas públicas. Entretanto, tendo em vista que a ênfase da governança foi por vezes maior nos aspectos ligados à aferição da eficiência e eficácia do governo, em detrimento do cidadão, é grande a possibilidade que os potenciais do processo de disseminação da cultura digital sejam mais tributários da busca de um desenvolvimento 12Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/15746/relatorio_completo_2004.pdf?sequence=1 &isAllowed=y 13 Disponível em: http://www.proderj.rj.gov.br/Noticia/Detalhe/95/0 14 Disponível em: http://www.intelligentcommunity.org/pirai 15 O prêmio concedido à cidade de Piraí em 2001 (Gestão Pública e Cidadania) demonstrou que o “Plano Diretor da Cidade Digital” começava a se mostrar uma experiência exitosa. Já como “Programa Piraí Digital”, as premiações de 2005 celebrariam a singularidade da iniciativa. Mas, seria a partir de 2007, com o projeto “Um Computador por Aluno” (UCA) que Piraí ganharia destaque nacional e internacional, atraindo a curiosidade do mundo para inclusão digital praticada no município, especialmente com as visitas do presidente do Brasil e de um ex-presidente norte-americano. 102 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) econômico do que do social (TELES, 2010). Porém, isso não nos parece um limite. Antes, observamos nesse processo uma potência, sobretudo devido à possibilidade que se abre para a construção de novos espaços de debate público. O que parece se configurar como elemento fundamental do “Programa Piraí Digital” é a sustentabilidade de um processo de ampla inclusão digital, como aparece descrito por Teles (2010), especialmente ao afirmar que tal sustentabilidade [...] não deve ser apenas econômico-financeira. É necessário garantir a continuidade dos programas além das transições de caráter político dos governos, provendo ainda marcos regulatórios e um ambiente ético para incluir aqueles à margem da sociedade digital. (TELES, 2010, p. 81). Ora, seria possível, dessa maneira, compreendermos esse ambiente ético, descrito por esse autor, como uma ambiência em que ocorreria transição entre a habilitação para uso e a apropriação das tecnologias por parte dos cidadãos? Se a resposta for positiva, podemos sugerir que o “Programa Piraí Digital” iniciou um processo de infoinclusão, mas não de comuinclusão. A partir de nossa reflexão sobre a relação comunicação e cidadania, tal processo de comuinclusão necessitaria estar na base do novo tipo de engajamento social, com o consequente aumento do exercício da cidadania. Num cenário em que as TICs ajudam a configurar as relações humanas na alta modernidade, não se pode pensar no elemento comunicação apenas a partir dos dispositivos técnicos (canais especiais, novas plataformas) de transmissão de informação. É fundamental incorporar a comunicação como elemento de interação, de diálogo, de troca de informação, de saberes, de conhecimento. Nesse sentido, quando propomos a noção de comuinclusão, queremos pensar a relação das TICs com o cidadão não apenas pelas possibilidades que essas abrem, mas, e especialmente, pela forma como os atores são convocados a usá-las. Com essa perspectiva, o que se busca perceber é como a tecnologia em uso potencializa a ação do homem. Outro aspecto presente na investigação de Teles (2010), e que nos autoriza a destacar certa hipertrofia da dimensão tecnológica do “Programa Piraí Digital”, é a conclusão de que havia um baixíssimo “nível de conhecimento da população sobre as iniciativas de inclusão digital do município, de suas ações no sentido de se fazer uma cidade digital” (TELES, 2010, p. 107). No limite, esse (des)conhecimento do projeto pode ter representado um entrave à própria noção de cidadania digital – entendida aqui como uma ação impulsionada pela existência de dispositivos que permitam certa interação com os órgãos do governo. Quando Teles (2010) aponta que “para a população em geral, a cidade digital não é bem percebida e suas manifestações não são plenamente compreendidas” (TELES, 2010, p. 107), é possível inferir que a motivação primeira talvez não tenha sido a inclusão digital, mas a busca da eficiência da gestão, a partir do uso das TICs, pelo ente público, como parece ter sido o caso da saúde. Nesse aspecto, o objetivo principal era Internet e Saúde 103 “diminuir o número de cesarianas e erradicar a desnutrição infantil” (TELES, 2010, p. 110). Tratava-se, portanto, de uma dinâmica relativa na relação (mesmo digital) entre as instâncias públicas e a população para a promoção da cidadania. Com as leituras de relatórios, dissertações, teses, notícias da imprensa, sentimonos autorizados a apresentar a seguinte hipótese: o “Programa Piraí Digital” foi um projeto de democratização do acesso aos meios de informação e comunicação, lançado como alternativa ao enfrentamento da adversidade econômica que o município passava no final da década de 1990. De fato, é inegável que tal democratização tenha ocorrido, especialmente pela universalidade da cobertura da rede, que chegou a quase 100% dos bairros da cidade. Entretanto, tendemos novamente a concordar com Teles (2010), quando este destaca que “O DNA do Piraí Digital possui genes tributários e ligados à eficiência” (TELES, 2010, p. 114)16. Esses genes marcam de forma indelével o “caso Piraí” na direção da supervalorização (e uma hipervisibilidade) das ações de Estado. Eles também sublinharam a decisão política de que a rede própria do município deveria servir às escolas e aos postos de saúde, por exemplo, em detrimento da criação de outros espaços de uso das TICs. A nosso ver, não está em jogo neste trabalho se o “Programa Piraí Digital” foi bom ou ruim para a cidade ou para a população, mas destacar seu pioneirismo e singularidade, além de sua potência em termos de possibilidade de exercício de cidadania. É importante que enunciemos que, a nosso ver, o acesso às TICs via internet em determinados bairros, visando a integração dos sistemas de informação, é menos importante do que a forma como o usuário/cidadão pode acessá-las. Essa visão não é trivial, nem representa um jogo de palavras. A área da saúde, dentro do “Programa Piraí Digital”, não é “a mais conhecida ou mesmo aquela em que os principais acontecimentos que dão notoriedade ao programa acontecem. Tais características marcam a área de educação” (TELES, 2010, 152). Ora, na medida em que a imagem do projeto está fortemente ligada à educação, um dos efeitos mais perceptíveis é que a escola acaba representando o espaço de inclusão digital direta, secundarizando outros espaços. Como corolário, emerge a compreensão de que, na saúde, tal inclusão aconteceria pela via indireta, isto é, [...] aquela da qual são objetos exatamente aqueles que não utilizam ou operam diretamente os computadores e outros componentes da camada digital inteligente sobreposta à cidade. São idosos, analfabetos, doentes, tecnofóbicos ou ‘tecnodesinteressados’ e outras categorias de cidadãos que, apesar de não serem capazes ou desejarem utilizar computadores, por exemplo, são atendidos pelo sistema de saúde ou recebem os benefícios de uma arrecadação de impostos aperfeiçoada. (TELES, 2010, p. 210). 16 A recorrência a Teles se justifica pela pesquisa (tese de doutorado) mais detalhada sobre o Piraí Digital. Com ela, o autor não apenas toma o processo de inclusão digital como objetivo de investigação, mas a problematiza à luz de elementos econômicos, sociais, tecnológicos e culturais. Paralelamente, as ações de TI e internet são analisadas em cinco frentes: governo, educação, comunidade, empresas e saúde. Esta última coloca em cena, tal como já mencionamos em nota anterior, a dimensão da cidadania como elemento estruturador do campo. 104 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) 3. TICs e Saúde: emancipação e cidadania direta Uma parte considerável do êxito do “Programa Piraí Digital”, como já apontamos, é atribuída à articulação entre cinco grandes áreas originais do programa, que deram sustentação e permitiram os avanços posteriores. São elas: a área do governo (.gov), da educação (.edu), da saúde (.saúde), de negócio (.com) e da comunidade (.org).17 Teles (2010), concorda com Castro (2007) e Marques (2010), que consideram que as áreas da comunidade (.org) e de negócio (.com) foram as que menos avançaram em termos da inclusão digital. Essas áreas não obtiveram o êxito esperado porque o financiamento do processo de universalização do acesso foi freado em função da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) ter negado à Prefeitura de Piraí o direito de cobrar pelo acesso. Por esta razão estas duas áreas tiveram uma geração de empregos mais tímida do que a almejada. Paralelamente, na medida em que boa parte da população também ficou sem cobertura no acesso à internet, foram poucos os sinais de participação popular. No que toca à área do governo (.gov), esta foi a responsável pela sustentação política do processo de desenvolvimento de Piraí, especialmente em sua face digital, a partir do “Plano Diretor de Informática”. Isso ocorreu graças a uma parceria da Prefeitura de Piraí com a Universidade de Brasília (UnB), a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), a Universidade Federal Fluminense (UFF) e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Com isso, o município construiu uma rede de internet que servisse aos órgãos da administração, mas igualmente às escolas e postos de saúde. Uma das principais consequências trazidas com tal iniciativa foi a contribuição da cidade para a construção de um marco regulatório para as telecomunicações no Brasil. Na oportunidade, foi proposto um “tipo de licença [...] que permitisse aos municípios operar redes próprias” (TELES, 2010, p. 120). Tal movimento de ampliação da rede para escolas acabou fornecendo à área da educação (.edu), com a incorporação da educação pública no processo. Assim, a imagem do “Programa Piraí Digital” passou a estar totalmente vinculada à adoção das TICs na educação.18 Destacadas as áreas com maior protagonismo (.gov.), maior visibilidade (.edu) e aquelas em que notadamente houve menos avanços (.org e .com), queremos centrar nossas atenções sobre a que figurou como intermediária, ou seja, aquela onde embora não tenha havido protagonismo nem visibilidade, houve alguns avanços: a área da saúde. Tal área, para nós, tem (ou deveria ter) um espaço no debate sobre o processo de incorporação e 17 Sua estrutura e projetos podem ser acessados em: https://www.piraidigital.com.br/. Tal como mencionamos na nota 9, a partir de 2007, o projeto “Um Computador por Aluno” (UCA) colocou Piraí em evidência nacional e internacional, a ponto de receber autoridades como o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva numa solenidade de entrega de computadores a alunos, o ex-presidente dos Estados Unidos da América, Bill Clinton, e o ex-candidato à Presidência, Al Gore, por ocasião da realização do TEDx. 18 Internet e Saúde 105 ampliação de acesso às TICs associadas à dimensão da cidadania. Paralelamente, por sermos profissionais e intelectuais de áreas que tomam a saúde como um direito, um bem de cidadania, algumas das considerações/observações produzidas ao longo dessas páginas não serão necessariamente isentas. Partindo dessa perspectiva, refutamos a tese de que a saúde possa ser representada (como no caso do “Programa Piraí Digital) apenas como uma inclusão da população pela via indireta. Isto é, aquela que só sente os efeitos da tecnologia e não utiliza, não se apropria ou não participa diretamente dela. Nesse sentido, cumprenos, assim como fizemos com a recuperação das bases do “Programa Piraí Digital (materializadas no “Plano Diretor de Informática”), apresentar os fundamentos da incorporação da Saúde como bem de cidadania. Como parte do processo em que vários países buscavam novas formas de organização dos sistemas de saúde – em decorrência do seu custo elevado, crescente complexidade e baixa resolutividade – foi realizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), no ano de 1978, em AlmaAta, a I Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde. Nessa conferência, foi proposto um alcance do maior nível de saúde possível no mundo até o ano 2000. Tal política ficou conhecida como Saúde para Todos no Ano 2000. Matta e Morosini (2008) destacam que a Declaração de Alma-Ata é uma proposta que abrange mais do que ações para cuidados básicos em saúde. Ela indica a necessidade da existência de sistemas de saúde que sejam universais e, assim, entendam a saúde como um direito do cidadão:19 [...] a saúde é o resultado das condições econômicas e sociais, e das desigualdades entre os diversos países; e também estipula que os governos nacionais devem protagonizar a gestão dos sistemas de saúde, estimulando o intercâmbio e o apoio tecnológico, econômico e político internacional. (MATTA; MOROSINI, 2008, p. 47). As décadas de 1970 e 1980, na América Latina, foram marcadas por uma grande mobilização política que agia no enfrentamento das ditaduras que assolavam os países no período e das crises dos sistemas públicos de saúde. No Brasil, essa mobilização contribuiu para a criação do conceito ampliado de saúde durante a 8ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), realizada em 1986. Acompanhando os processos de redemocratização e da Reforma Sanitária do país, que convivia paralelamente com novas agendas para enfrentamento de crises econômicas, o conceito ampliado de saúde transformou-se em um marco de cidadania e foi integrado ao texto constitucional brasileiro de 1988. Consta no Relatório Final da 8ª Conferência Nacional de Saúde (CNS) que: Não nos parece inoportuno lembrar que parte do “Programa Piraí Digital”, no que toca a área da saúde (organização do sistema, competências, distribuição, incorporação e incremento dos sistemas de informação), já contempla tal proposição política. 19 106 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Em seu sentido mais abrangente, a saúde é a resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde. É, assim, antes de tudo, o resultado das formas de organização social da produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida. (BRASIL, 1986, p. 4). Considerada como um marco histórico para a saúde e a cidadania, a 8ª CNS também reconheceu que, para um pleno exercício do direito à saúde, deveriam ser garantidas a educação, a informação e a participação da população na organização, gestão e controle dos serviços e ações de saúde20. Nesse contexto histórico, começou a ser gestado o “Programa Piraí Digital”. As Conferências de 2000 e 2003 (11ª e 12ª, respectivamente), reafirmaram a importância estratégica das ações de comunicação e informação como modo de garantir o controle social e a participação da sociedade nas ações e nas políticas públicas de saúde. Tal movimento acabou por incluir a comunicação como um dos dez eixos temáticos a ser discutido na 12ª Conferência. Esse fato demonstra o valor e importância da comunicação, da informação e da participação social na construção e manutenção do Sistema Único de Saúde (SUS). O princípio de universalidade do Sistema Único de Saúde do Brasil garante a qualquer cidadão, como um direito, o acesso à saúde, pública, gratuita e integral. A conquista da democracia no Brasil, após grande período de ditadura política, trouxe a possibilidade de mudança, permitindo o exercício da cidadania através do controle social por meio da participação da população, por exemplo. Ao abordar a temática cidadania e modernidade, Coutinho (2008) chama atenção para o fato de que a soberania popular, a democracia e a cidadania podem ser compreendidas como sinônimos. Ele também destaca que podemos defini-las como “a presença efetiva das condições sociais e institucionais que possibilitam ao conjunto de cidadãos a participação ativa na formação do governo e, em consequência, no controle da vida social” (COUTINHO, 2008, p. 50). Quando nos debruçamos sobre a criação e o desenvolvimento da área saúde no “Programa Piraí Digital”, notamos que o elemento cidadania aparece de maneira tímida, para não dizer frágil, pois se desconhece a existência, por exemplo, do Conselho da Cidade. Se a referência for o Conselho Municipal de Saúde21, mesmo nesse caso, o que houve foi, no máximo, uma cidadania tutelada, na medida em que suas deliberações foram norteadas pelas informações fornecidas pelo órgão executor do estado (a Secretaria Municipal de 20 Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/apresentacao/historia.htm. Tal instituto, como destacou Pereira Neto (2012a, 2012b), foi criado tomando por base uma noção particular de controle social: não aquela tradicionalmente ligada ao controle do Estado sobre a sociedade, mas o da sociedade sobre o Estado. No Brasil, como destacou o pesquisador, “o controle social está associado à luta pela participação no processo decisório e ao processo de democratização” e conta com uma arquitetura. “Os Conselhos de saúde passaram a ser compostos por representantes de usuários, profissionais e gestores dos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) nos níveis municipal, estadual e federal. Os usuários passaram a ter representação paritária em relação aos outros dois segmentos. Atualmente, todas as unidades da federação e todos os municípios do país possuem Conselhos de Saúde” (PEREIRA NETO, 2012a, p. 442). 21 Internet e Saúde 107 Saúde) e não por um amplo debate com a população, uma vez que esta desconhece os espaços onde deveriam ocorrer tais debates. No limite, o Conselho Municipal de Saúde foi um co-gestor, deixando de cumprir/ocupar um espaço de participação e controle social22. Ao discutir o conceito de direito, Coutinho (2008) aponta que, em primeiro lugar, ele surge como uma demanda que é formulada por classes ou grupos. Ele é um fenômeno social, é resultado da história. Portanto, as demandas pelo direito surgem em um dado momento histórico. Esse é o motivo de identificar o “Programa Piraí Digital” como potencial favorável à cidadania. Nossa visão está baseada no fato do programa aumentar os pontos de acesso à internet e assim ampliar não só a possibilidade de apropriação das informações, mas também a participação da população e do controle social. O que poderia representar um limite parece ser a porta aberta para amplificação e consolidação dos princípios da cidadania. Assim, no mundo moderno observa-se um espaço para se promover uma tendência à universalização da cidadania e à inclusão dos direitos civis23 na pauta. Acrescido ao antigo direito político (como o direito de votar e ser votado, direito de associação e organização), que não era universal, e ao moderno direito civil (tais como o direito à vida, à liberdade de pensamento, de movimento, à propriedade), há os direitos sociais24. São conquistas que possibilitam uma participação, ainda que mínima do cidadão na riqueza criada pela coletividade. Dessa forma, temos os direitos tanto à saúde quanto à comunicação e à informação inscritos no conjunto dos direitos sociais. Há autores, como Torres (2012), que apontam que usualmente o campo da saúde apresenta os temas comunicação, informação e educação de modo associado e por vezes interligado. Assim, a relação da saúde com a comunicação pode ser percebida, por exemplo, a partir dos produtos comunicacionais e das atividades de assessoria de imprensa das instituições e entidades ligadas ao setor. Elas seriam, entretanto, apenas a sua expressão instrumental. Indo além dessa visão, o autor destaca que, de acordo com o conceito ampliado de saúde, informação, comunicação e saúde se relacionam, no campo dos direitos, como expressão de cidadania. Ainda com relação aos direitos, Torres (2012) destaca que a comunicação, em sua interface com a saúde, está associada à noção de direito. Essa interface tem por objetivo aprimorar o sistema público de saúde, estabelecendo “um debate público sobre temas de interesse e garantir às pessoas a ampliação de sua participação cidadã nas políticas de saúde” (ARAÚJO; CARDOSO, 2007, p. 61). Por isso, parece descabida a afirmação de Teles (2010) de que há uma inclusão digital indireta quando se “sente os efeitos” daquilo que não participamos diretamente. A 22 Concordamos com a assertiva de que a informação em geral, e a informação em saúde em particular, tem como uma de suas principais características serem subsídio para tomada de decisão, seja ela em que nível for. Entretanto, não se pode negligenciar que é da própria realidade (e dos fenômenos observados nessa realidade) que são retirados os dados, posteriormente transformados em indicadores e a seguir em informações, que servirão para uma tomada de decisão. Nesse sentido, é necessário problematizar um processo em que tais dados já são em si mediados por profissionais que observam (e logo interferem sobre) essa mesma realidade. No limite, um espaço de debates e de construções de alternativas para a saúde acaba sendo um espaço de referendo para ações desenvolvidas pelo gestor municipal. 23 O capítulo 2 discute direitos civis e Internet. 24 Segundo Coutinho (2008), há aqui um risco de equívocos, pois “todos os direitos, inclusive os civis e políticos, são sociais por sua origem e vigência” (COUTINHO, 2008, p. 63). 108 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) própria noção de uma “[...] camada digital inteligente sobreposta à cidade” (TELES, 2010, p. 210) esvazia o potencial do exercício da cidadania ensejado pela construção do “Programa Piraí Digital”. Afinal, o aumento da participação e do controle social não figurava como elemento estruturante do programa? Esse não era o sentido de universalização do acesso à internet no município? Nessa direção, é possível que encontremos ainda olhares que acrescentam o quanto o direito à comunicação e à informação (tal como acontece com a Saúde) são a “liberdade de expressão pública de pautas, agendas e demandas culturais e políticas com equidade de acesso a canais de expressão – meios de comunicação” (PITTA, 2007, p. 48). Parece plausível pensar que o processo em Piraí primou pela ampliação dos pontos de acesso. Mas isso significou concomitantemente, por exemplo, aumento dos canais de expressão? Para Oliveira (2004), os termos comunicação, informação e participação social estão interligados, sendo a comunicação e a informação o modo pelo qual se pode operacionalizar o terceiro – a participação social. Assim, compreende-se que as variáveis comunicação e informação podem não só intervir nas relações sociais, como colaborar para a execução de uma política pública de saúde com participação popular. Quando entendemos que a informação e comunicação em saúde são subsídios para a tomada de decisão e que existem diferentes modos de interpretá-las, torna-se fundamental problematizar como elas têm sido produzidas, disponibilizadas e utilizadas. Assim, mais uma vez, questionamos se, concretamente, tais informações têm chegado ao usuário, como ela tem sido acessada (se é que tem sido) pelo cidadão. Perguntamos: estariam hoje as modernas Tecnologias da Informação e da Comunicação aptas a dar conta de uma intensa interação entre tecnologia e sociedade? Observando o “Programa Piraí Digital” pelo prisma da produção de informação, é muito oportuna a observação de que “transmitir o conhecimento para aqueles que dele necessitam é uma responsabilidade social” (SARACEVIC, 1996, p. 43). Por essa razão, não se pode perder de vista que a gestão do conhecimento está na base do “Programa Piraí Digital”. Assim, caberia à Ciência da Informação enfrentar “[...] os problemas da efetiva comunicação do conhecimento e de seus registros entre os seres humanos, no contexto institucional ou individual do uso e das necessidades de informação” (SARACEVIC, 1996, p. 47). Na medida em que a produção (e a disseminação) do conhecimento científico ajudam na tomada de decisões – particularmente importante, no caso da participação social e da tomada de decisões para formulação de políticas públicas – novamente nos interrogamos: em que medida uma informação é contextualizada para atender a necessidade de informação de quem acessa os sistemas? Internet e Saúde 109 4. Um novo mundo possível: a pertinência da utopia25 Não há como negar o pioneirismo do “Programa Piraí Digital”: um processo inovador que disponibilizou acesso gratuito à internet em ambientes urbanos e rurais. Ele interconectou prédios públicos (como escolas, bibliotecas, unidades de saúde), telecentros, gerando pontos de acesso (por cabeamento, onde era possível, e por sistema wireless), dispondo de cobertura para quase toda a cidade, especialmente em uma região distante da capital do estado do Rio de Janeiro. Em larga medida, esse projeto de disseminação da cultura digital é tributário de um movimento mais amplo de uso das TICs. Ele está muito associado ao fenômeno da globalização, num cenário de enfrentamento de crises econômicas que tem, no Brasil, seu momento agudo na década de 1990 – conjuntura em que se combinavam a saída de ditadura, a incorporação de uma agenda neoliberal e a chegada da internet. Na nossa avaliação, há três fatores que permitiram a este município fluminense atingir esse status. O primeiro foi o protagonismo do poder executivo local na construção do programa, seja do ponto de vista do suporte financeiro (previsão orçamentária, busca de financiamento em outras fontes), seja da busca por parcerias (universidades, governos estadual e federal). O segundo foi a valorização da relação das TICs com a educação: embora o UCA (projeto “Um Computador por Aluno”) tenha sido uma atualização importantíssima para o sucesso do “Programa Piraí Digital”, sem as bases construídas, ou seja, sem que a internet tivesse chegado às escolas, não haveria como efetivar o processo onde, para cada aluno, haveria um netbook com acesso à rede. O terceiro ponto é o modelo e a adoção de uma infraestrutura como a do Sistema Híbrido com Suporte Wireless (SHSW), ligando todos os prédios da administração pública, escolas, postos de saúde, telecentros, e a utilização de Softwares Livres (SoL). Essa iniciativa barateou o custo do processo, uma vez que a Prefeitura não tinha a necessidade de pagar a proprietários de softwares. Esses três pilares permitiram que a cidade alcançasse a cobertura de internet sem fio rapidamente e que se estabelecesse como uma política de estado. Uma das ideias-força do “Programa Piraí Digital” foi a visão de que a tecnologia pudesse ser emancipatória, isto é, permitir que a população de Piraí fosse incluída numa cultura digital. Nossa percepção é que foi exatamente aí que residiu o ponto central dessa experiência: o “Programa Piraí Digital” inaugura, como descreve Santos (2000), o reino das possibilidades. Entretanto, ao compreender que os moradores de Piraí experimentariam a inclusão digital sentindo os 25 O título dessa seção é uma homenagem direta ao grande intelectual brasileiro Milton Santos, que, em Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal (SANTOS, 2000), traça um diagnóstico de um modelo de desenvolvimento majoritariamente excludente, que tem na difusão da tecnologia um de seus braços mais poderosos, sem perder de vista as brechas abertas por esse mesmo modelo para a emancipação humana. 110 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) efeitos do processo e não agindo como cidadãos, o “Programa Piraí Digital” parece não ter saído do campo das possibilidades. Esse é o sentido, por exemplo, de termos destacado que a saúde, no Brasil, figura como um campo de participação e de exercício de cidadania. Ao discutir as causas sociais das iniquidades em saúde no Brasil, a Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde (CNDSS), em seu relatório, aponta que a superação do problema das iniquidades de informação dependem de políticas que sejam específicas para tal e que as mesmas devem “basear-se no reconhecimento de que o conhecimento, a informação e a internet são bens públicos e devem, portanto, ser objeto de políticas públicas” (CNDSS, 2008, p. 78). Assim, o relatório não só reconhece que a comunicação e a informação são elementos centrais para impedir a escalada dos agravos à saúde da população como aponta a validade das TICs, em especial a da internet, como estratégias para o acesso à informação em saúde. Ao incorporar como política de estado o “Programa Piraí Digital”, a prefeitura deu um passo significativo na direção de poder atenuar iniquidades em saúde e, paralelamente, valorizar a dimensão da cidadania. Entretanto, esse movimento não foi automático e não está concluído. Não se pode falar em cidadania, em participação popular e em controle social apenas pelo aumento dos pontos de acesso à internet26, tampouco defendendo que os benefícios indiretos (para os grupos abaixo da camada digital inteligente sobreposta à cidade) são suficientes para garantir que a população está incluída digitalmente. O que merece destaque no “Programa Piraí Digital” foi a premissa de que os sistemas utilizados pelos atores hegemônicos podem libertar e emancipar o homem. Nas palavras de Santos (2000): As famílias de técnicas emergentes com o fim do século XX – combinando informática e eletrônica – oferecem a possibilidade de superação do imperativo da tecnologia hegemônica e paralelamente admitem a proliferação de novos arranjos, com a retomada da criatividade [...] ultrapassando a busca pelo consumo e entregando-se à busca da cidadania (SANTOS, 2000, p. 165-166). As possibilidades estão abertas pelo uso, “combinando informática e eletrônica”, sentencia Santos (2000, p. 168). Entretanto, há de se encontrar alternativas para transformar informação e conhecimento em ação. Isso significa dizer que não basta que o conhecimento empodere se este empoderamento continuar sendo assimétrico. Concordando novamente com Araújo e Cardoso (2007), é preciso enfrentar o desafio de fazer com que os atores sociais se apoderem do conhecimento produzido, numa combinação entre empoderamento/apoderamento, a fim de que as posições do processo de disputa 26 O exemplo dos laptops doados aos alunos é um claro exemplo disso. Não vamos aqui tencionar o fato de os alunos não poderem levar os equipamentos para casa. Mas, a determinação de utilização na escola restringe os usos que as famílias poderiam vir a dar à tecnologia caso pudessem acompanhar algumas atividades de seus filhos e filhas dentro de casa. Internet e Saúde 111 sejam menos desfavoráveis. Assim, a utopia da cidadania encontrará enfim terreno para germinar. Referências ARAÚJO, I. S.; CARDOSO, J. M. Comunicação e saúde. 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A partir do paradigma da sociedade em rede, organizações como essa atuam dentro dos marcos institucionais, por meio das TICs, para promoção de diferentes tipos de ativismos. A rede “Nossas Cidades” utiliza as ferramentas tecnológicas, em seus aspectos interativos e colaborativos, para ampliar a participação dos cidadãos na vida pública das cidades. Palavras-chave: Participação da Comunidade; Internet; Sociedade civil; Política Pública. Referência: PENTEADO, C. L. C.; SANTOS, M. B. P.; ARAÚJO, R. A. Sociedade civil e participação cidadã on-line: o caso da rede “Nossas Cidades”. In: PEREIRA NETO, A.; FLYNN, M. (orgs.). Internet e saúde no Brasil: desafios e tendências. 1 ed. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2020. p. 113-143. * Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Federal do ABC, Brasil. Email: [email protected]. Internet e Saúde 115 Introdução O desenvolvimento das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) introduziu importantes transformações nas formas de sociabilidade e nas atividades humanas. Apesar de haver uma grande parcela da população mundial sem acesso à internet e outros dispositivos de comunicação digital, as tecnologias digitais já fazem parte diretamente da vida de um pouco mais que a metade da população mundial1. Indiretamente, quase todas as pessoas são afetadas de alguma forma pelo uso dessas tecnologias. Seja pelos governos, na disposição de serviços públicos e informatização da burocracia, ou seja, pelas empresas comerciais (de tecnologias da informação e empresas tradicionais), que adotam cada vez mais essas tecnologias em suas diferentes atividades. Além disso, os canais de comunicação digital estabelecem novas formas de sociabilidade da sociedade contemporânea. Dados do relatório da União Internacional de Telecomunicações de 2015 mostram que a internet teve um rápido crescimento do número de usuários nos últimos 15 anos. Em 2000, o número de pessoas com acesso à rede era de 400 milhões e, em 2015, já atingia 3,2 bilhões de pessoas em todo o mundo (ONUBR, 2015), indicando uma importância na mudança da estrutura de comunicação da sociedade contemporânea. No Brasil já são mais de 36 milhões (57%) de domicílios com acesso à Internet, segundo dados da pesquisa TIC Domicílios de 20162. Contudo, um importante fator para o crescimento do número de usuários de Internet, principalmente no Brasil, está associado à conexão por meio de aparelhos móveis. Os dados da pesquisa revelaram que o número de acessos pelo celular cresceu mais de 50% em 2 anos, e em 2016 representou 43% do total de acessos. Em termos de inclusão de usuários na Internet, a pesquisa indica que, em 2016, 69% dos indivíduos já utilizaram da internet em algum momento da vida. Número 5% maior que os dados de 2013. O uso cotidiano das tecnologias digitais em diversas atividades e práticas humanas levou a um processo de digitalização da vida social, ao introduzir novas formas de sociabilidade e comportamentos3 (LUPTON, 2014). Para a parcela conectada da população, o uso e apropriação das Tecnologias de Informação e Comunicação fazem parte das rotinas de trabalho, lazer, entretenimento, comunicação pessoal, acesso à serviços e informações e outras formas de utilização. Os softwares, aplicativos, plataformas e mídias sociais já 1 Segundo Internet World Stats (2018), 54,4% da população mundial tem acesso à Internet. Os dados apresentados foram obtidos no TIC Domicílios (CETIC, 2018), um levantamento conduzido pelo “Centro de Estudos sobre as Tecnologias da Informação e da Comunicação” (CETIC), integrado pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br). O CGI.br é responsável pela governança da internet no país e pela definição de diretrizes para registro de domínios, alocação de IP (Internet Protocol) e gestão do domínio .br. O órgão também conduz estudos e pesquisas sobre o desenvolvimento de inovação e qualidade técnica. Para mais informações sobre o CETIC, acesse: https://www.cetic.br. 3 O capítulo 5 debate o tema das comunidades virtuais de saúde. 2 116 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) fazem parte das atividades diárias dessa população conectada, criando empregos, formas de interação social e campos de conhecimento. As características de interatividade e práticas colaborativas pelas quais se organizou a internet possibilitaram o surgimento de ações sociais que se desenvolvem pelo uso das redes informacionais de comunicação (BENKLER, 2006). A emergência de uma sociedade em rede reestrutura as práticas de produção material e simbólica que se realizam pelo fluxo de informações dentro de uma grande rede global, na qual a informação passa a ser a matéria prima (CASTELLS, 1999). Da mesma maneira, uma sociedade em rede inaugura formas de interações sociais, que se realizam pelo uso das TICs por meio de processos comunicacionais nos quais os usuários passam a ter um papel mais ativo no processo de produção, transmissão e circulação das informações. A formação de uma esfera pública interconectada ampliou os mecanismos de comunicação (BENKLER, 2006), permitiu que os acontecimentos políticos ganhassem maior visibilidade (CASTELLS, 1999) e propiciou a formação de um espaço discursivo ilimitado, no qual os usuários da internet podem expressar ou compartilhar suas opiniões (RASMUSSEN, 2013) ou manifestar indignação e esperança por meio da organização de protestos públicos pelo uso das redes sociais. De acordo com Castells (2013), foi o que ocorreu no ciclo de protestos que envolveram a Arab Spring, Los Indignados (Espanha), os movimentos do Occupy Wall Street e outras manifestações pelo mundo, incluindo aquelas realizadas no Brasil em 2013. As características sociotécnicas de interatividade da internet ampliaram as possibilidades de participação política dos cidadãos. Além da participação ativa no processo de comunicação dentro das redes informacionais, foi possível desenvolver experiências de deliberação e engajamento on-line (COLEMAN; GØTZE, 2001), práticas de participação on-line (MACINTOSH, 2008), formas de ativismo on-line por meio do uso das redes sociais para mobilização política espontânea (ANDUIZA; CRISTANCHO; SABUCEDO, 2014), participação por meio de petições on-line (WRIGHT, 2015) e slacktivism4 (VIE, 2014). A participação por meio de dispositivos comunicacionais, é um campo de conhecimento híbrido que está relacionado com a teoria democrática (forma de aprofundamento da democracia por meio da participação on-line), os estudos na área de comunicação (desenvolvimentos de canais e modelos de mediação), os estudos na área de tecnologia (design e operação de ferramentas digitais para a participação) e a ciência da informação (estudos das formas pelas quais os dados e conhecimentos são produzidos e distribuídos socialmente). Com o desenvolvimento das Tecnologias de Informação e Comunicação e o aumento do número de pessoas conectadas, diversas experiências de eparticipação estão sendo realizadas por governos em nível local, regional e nacional (MACINTOSH; COLEMAN; SCHNEEBERGER, 2009). 4 Termo oriundo da língua inglesa utilizado para definir o slackactivism realizado em redes sociais virtuais. Internet e Saúde 117 Nesse contexto de expansão da internet e de uso dos dispositivos de comunicação para ampliação da participação, as organizações da sociedade civil também vêm utilizando os canais de comunicação on-line em suas práticas sociopolíticas, de forma a promover o debate político e a participação para além dos canais institucionais formais e influenciar no ciclo de políticas públicas (ARAÚJO; PENTEADO; SANTOS, 2015). Este artigo apresenta um estudo sobre a rede “Nossas Cidades”. Trata-se de uma organização da sociedade civil que se estrutura dentro da dinâmica de rede e atua principalmente pelo uso de ferramentas de participação digital na defesa de campanhas e causas sociais, culturais e políticas, por meio de pressão sobre os agentes e instituições públicas. Este estudo tem por objetivo apresentar um exemplo de como a sociedade civil vem se apropriando do uso das tecnologias digitais para promover a e-participação e influenciar o processo de políticas públicas. O artigo está dividido em quatro partes. Na primeira parte, ele apresenta uma rápida discussão sobre o uso das Tecnologias de Informação e Comunicação para a promoção da participação e democratização da sociedade. Em seguida, o artigo apresenta uma descrição sobre a rede “Nossas Cidades” e a identificação das ferramentas digitais empregadas para a promoção da e-participação. Na terceira parte, será realizada uma análise sobre a influência da Nossas Cidades por meio da aplicação e mensuração do Índice de Participação Política e Influência (IPPI), desenvolvido pelos autores. Por fim, serão feitas as considerações sobre os resultados alcançados sobre o uso das tecnologias digitais pela rede “Nossas Cidades”. 1. Democracia, participação e TICs O processo de redemocratização do Brasil teve início na segunda metade dos anos 80, quando a participação dos cidadãos nos processos políticos passou a ser elemento fundamental para sua consolidação e, desde então, para o incremento da qualidade da democracia no Brasil (DIAMOND; MORLINO, 2005). A Constituição promulgada em 1988 celebrou o princípio da participação por meio da institucionalização de fóruns, criação de conselhos regionais e temáticos e outras formas de participação da sociedade civil dentro do processo político (MOISÉS, 1990; 2010). Essa potência participativa abriu espaço para que a sociedade pudesse se envolver no desenvolvimento de políticas públicas. Nesse sentido também foi importante a criação de órgãos de ouvidoria nas instituições públicas e outros mecanismos de transparência e accountability, inclusive transformados em leis, fazendo com que o governo se tornasse mais responsivo frente aos cidadãos. Com o surgimento das TICs, as possibilidades de participação foram ampliadas, e passou a ser possível contemplar temas emergentes de cidadania e a realização de criativas ações políticas, inclusive com a inserção da sociedade civil nas arenas políticas e 118 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) decisórias. Estas ferramentas têm ampliado e, de certa forma, alterado as possibilidades de trocas e debates sobre temáticas coletivas e públicas. As TICs conectaram cidadãos locais a uma rede global de informações digitais, que auxiliam no desenvolvimento de novos desenhos institucionais e favorecem a interação da gestão pública com o cidadão. Criaram-se possibilidades de ampliação para consultas, debates, deliberações, acompanhamento, acesso às informações e controle social. Segundo Castells (1999; 2009; 2013), na sociedade em rede, existe a possibilidade de incorporação de mecanismos e dispositivos comunicacionais da internet que podem ampliar a participação dos cidadãos na vida pública, seja pela ação individual ou por meio de grupos sociais, diminuindo os custos da participação e tornando-a mais interativa e democrática. Essas mudanças estruturais ocorreram pela presença de tecnologias que passaram a permear o cotidiano dos cidadãos5 e, ao mesmo tempo, sua relação com o Estado. No que diz respeito à gestão pública, o governo brasileiro passou a conjugar novas formas de participação política dentro das arenas institucionais, utilizando as novas ferramentas para a discussão e o desenvolvimento de diferentes desenhos e formatos no gerenciamento das políticas públicas, buscando maior eficiência e tendo em vista a restrição de gastos (ajustes e/ou austeridade fiscal), principalmente para os programas sociais. A institucionalização de canais de participação no Brasil desenvolveu, por exemplo, os Conselhos de Gestores de Políticas Públicas, espaços para que a sociedade civil possa participar do desenvolvimento de políticas, principalmente no processo de formulação, implementação e avaliação (PEREIRA et al., 2015). Outro exemplo da ampliação dos mecanismos de participação na gestão pública são as experiências do orçamento participativo (OP), que se consolidam em Porto Alegre a partir de 1989 e são ampliadas para outras cidades do Brasil e do mundo como modelo de boa governança e interação entre poder público e cidadania (WAMPLER, 2008). Os OPs viraram referência e foram incluídos nas agendas das agências internacionais, assumindo diferentes significados (OLIVEIRA, 2016). Os OPs são estudados como case de participação cidadã em vários lugares no Brasil e no mundo, tendo recebido o prêmio Habitat de prática de boa governança da ONU em 1996 (AVRITZER, 2003). Portanto, a participação política no Brasil contemporâneo se insere em um contexto inicial caracterizado pelo processo de redemocratização nos anos 80, no qual a sociedade civil organizada assumiu um papel mais ativo na relação com o Estado e dentro do processo de desenvolvimento de políticas públicas. Em um segundo momento, a partir dos anos 90, marcado pela globalização e pelo neoliberalismo, a participação cidadã dentro do ciclo de políticas públicas passou a ser um dos princípios organizativos defendidos pelas agências nacionais e internacionais como mecanismo de melhoria da eficiência na gestão pública, accountability e transparência (MILANI, 2008). O desenvolvimento das TICs trouxe profundas modificações na dinâmica de funcionamento da sociedade, criando condições para a ampliação da participação cidadã 5 O capítulo 3 apresenta um projeto de inclusão de digital pioneiro no Brasil. Internet e Saúde 119 por meio de canais de comunicação interativos e colaborativos. A participação política por meio desses dispositivos comunicacionais, a e-participação, pode ser entendida como o uso que diferentes instituições, organizações e cidadãos fazem das ferramentas tecnológicas para apoiar e dar suporte a tomada de decisão democrática, de forma a criar oportunidades para consulta e diálogo entre governantes e governados (MEDAGLIA, 2012). Fung, Gilman e Shkabatur (2013) desenvolvem: Seis modelos de como as tecnologias digitais podem afetar a política democrática: empoderamento da esfera pública, o deslocamento das organizações tradicionais por novos grupos auto-organizados digitalmente, a democracia direta digital, a advocacia baseada na verdade, a mobilização constituinte e o monitoramento social do poder público 6 (FUNG, GILMAN E SHKABATUR, 2013, p. 30). Alguns trabalhos publicados recentemente consideram o uso das TICs no campo político brasileiro uma possibilidade aberta de participação e decisão em processos pertencentes ao desenvolvimento do ciclo de políticas públicas ou no empoderamento cidadão ao participar, discutir e deliberar em ações propostas tanto pelo Estado como iniciativas da sociedade civil. Podemos citar como exemplo os casos da Rede Nossa São Paulo, Instituto Pólis, Mobilize Brasil, MCCE (Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral), entre outros grupos de interesse que fazem uso das TICs (SILVA; ARAÚJO, 2014; SANTOS; PENTEADO; ARAÚJO, 2013; ARAÚJO; PENTEADO; SANTOS, 2014). O mesmo ocorre com a rede “Nossas Cidades” que será analisada neste capítulo. A sociedade civil organizada, em sua heterogeneidade associativa e organizativa, passa a assumir um papel mais ativo dentro do processo político, na mobilização social e na pressão aos agentes públicos em torno de suas demandas, o que Gohn (2005) vai chamar de “protagonismo da sociedade civil”. Com o apoio da Internet, as pessoas estão se organizando em ações políticas que propõem, inclusive, a criação de leis, como foi o caso da Lei da Ficha Limpa (SANTOS, 2016) e da coleta de apoios pelas redes de abaixoassinados (petição on-line), que se organizam na e pela Internet, como Avaaz ou Change (WRIGHT, 2015). O uso das TICs permite a possibilidade de o cidadão comum participar do campo político por meio de ações que promovem o interesse comum. Além disso, auxilia no desenvolvimento da ideia de pertencimento, seja por promover práticas associativistas e comunitárias, ou por dar espaço e voz a grupos xenófobos. O potencial de interação e articulação das TICs indica a possibilidade de os cidadãos atuarem localmente a partir de inscrições nacionais ou internacionais. A ação local se destaca pela efetividade junto ao poder público justamente pelo fato de as políticas públicas serem mais direcionadas para 6 No original: Six models of how digital technologies might affect democratic politics: the empowered public sphere, displacement of traditional organizations by new digitally self-organized groups, digitally direct democracy, truth-based advocacy, constituent mobilization, and crowd-sourced social monitoring. 120 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) o cotidiano das pessoas, motivando grupos de cidadãos a lutarem pelo direito à cidade e a desenvolverem sua cultura cívica. Os dados apresentados a seguir avaliam a apropriação das TICs pela sociedade civil para promover a participação cidadã e influenciar o processo de desenvolvimento de políticas públicas. Foram analisadas as 10 redes locais autônomas que compõem a rede “Nossas Cidades”, a saber: “Meu Rio”, “Minha Sampa”, “Meu Recife”, “Minha Campinas”, “Minha Garopaba”, “Minha Porto Alegre”, “Minha Ouro Preto”, “Minha Jampa”, “Minha Blumenau” e “Meu Oiapoque”. Também foram analisadas suas influências dentro do ciclo de políticas públicas locais. Para isso, foi aplicada uma metodologia que consiste em duas etapas. Inicialmente foi realizada a identificação e análise descritiva-qualitativa dos usos das ferramentas disponíveis na rede “Nossas Cidades”. Posteriormente foi realizada a avaliação das ações desenvolvidas por meio da aplicação do “Índice de Participação Política e Influência” (IPPI) (ARAÚJO; PENTEADO; SANTOS, 2014), que consiste na mensuração da participação e influência da sociedade civil no ciclo de políticas públicas. Por ser um fenômeno complexo, a mensuração do IPPI possui seis dimensões analíticas de usos e recursos das TICs na avaliação de iniciativas de interação entre Estado e sociedade civil. As dimensões tratam dos usos e recursos da internet (D1); atores e capital social (D2); e-Participação (D3); estratégias de mobilização social (D4); desdobramento da ação e relação com Políticas Públicas (D5); e repercussão na mídia tradicional (D6)7, como será apresentado a seguir. 2. A rede “Nossas Cidades” As organizações da sociedade civil vêm se apropriando do ciberespaço para criar novos canais de comunicação, assim como desenvolver novas formas de participação e mobilização por meio de softwares, aplicativos e outras plataformas disponíveis via Internet. Esse é o caso da rede “Nossas Cidades”, instituição analisada neste capítulo. Ela utiliza os princípios da sociedade em rede e das TICs para promover a participação cidadã on-line, mesclando ações on-line e off-line, ou seja, virtuais e reais. A rede “Nossas Cidades”8 é uma organização da sociedade civil que surgiu no Rio de Janeiro em 2011, com o nome “Meu Rio”, e hoje está presente em 10 cidades, localizadas em todas as regiões do Brasil, com exceção da região Centro-Oeste. 7 8 A tabela referência para cada dimensão pode ser encontrada em Penteado, Santos e Araújo (2014). Rede “Nossas Cidades” - Quem somos. Disponível em: http://nossas.org. Internet e Saúde 121 Figura 1. Localização das redes locais “Nossas Cidades” Fonte: Os autores (2018). Pela Figura 1, é possível verificar que as redes locais estão espalhadas pelo Brasil, mas com uma concentração na faixa litorânea do país, onde também estão as maiores cidades. Quadro 1. Redes locais da rede “Nossas Cidades” Rede local População Estado Região “Meu Oiapoque” 25.514 Amapá Norte “Minha Jampa” 769.607 Paraíba Nordeste “Minha Recife” 1.625.583 Pernambuco Nordeste “Minha Ouro Preto” 70.281 Minas Gerais Sudeste “Meu Rio” 6.498.837 Rio de Janeiro Sudeste “Minha Sampa” 12.038.175 São Paulo Sudeste “Minha Campinas” 1.173.370 São Paulo Sudeste “Minha Blumenau” 348.513 Santa Catarina Sul “Minha Garopaba” 22.082 Santa Catarina Sul “Minha Porto Alegre” 1.481.019 Rio Grande do Sul Sul Fonte: Os autores (2018). 122 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) As redes locais estão localizadas em quatro das cinco regiões brasileiras. Estão presentes em grandes metrópoles, como São Paulo e Rio de Janeiro, e em cidades de grande porte, como Recife, Campinas e Porto Alegre. As redes também estão em cidades de médio porte - João Pessoa e Blumenau, e em cidades pequenas - Oiapoque, Ouro Preto, Garopaba. A maior ocorrência está concentrada na região sudeste, com 4 redes locais, seguida da região sul, com 3 redes, que são as regiões mais desenvolvidas do Brasil. A rede “Nossas Cidades” é composta por redes locais autônomas, interligadas por processos de colaboração e compartilhamento de softwares e plataformas de participação. Cada membro (cidade) tem sua organização e site próprios, no qual se apresentam, divulgam campanhas, arrecadam dinheiro e promovem outras atividades. Entretanto, todos seguem a mesma estrutura e identidade visual da coordenação central. No momento da redação deste capítulo, o site da rede “Nossas Cidades” utilizava um vídeo9 para apresentar seus objetivos, sua forma de ação, plataformas de participação e algumas das campanhas já realizadas. O vídeo aborda ainda a importância da democracia e da participação dos cidadãos na vida política do Brasil. Ele analisa a crise de representação dos partidos e da classe política e a vontade da população de participar de alguma forma, mas sem saber como fazer. O material audiovisual destaca a importância da atuação local e de novas formas de participação por meio de campanhas e uso das Tecnologias de Informação e Comunicação, com reportagens e depoimentos de demandas realizadas com sucesso e as ferramentas on-line de participação política em articulação com ações off-line. A rede “Nossas Cidades” tem por finalidade desenvolver novas formas das pessoas “influenciarem e ressignificarem a política”, como afirma em seu site, por meio do fomento de campanhas e uso de ferramentas de ativismo digital. A rede “Nossas Cidades” busca trabalhar na intermediação do cidadão comum com os representantes políticos. Por meio da articulação de “cidadãos em rede”, esforçam-se para compartilhar metodologia, tecnologia e oportunidades de ação, com o objetivo de fortalecer, em suas palavras, “a potência para distribuir poder”. No “manifesto” inicial, a organização se propõe a reinventar e construir a política pela mobilização dos cidadãos com “vontade de impactar suas realidades”, desenvolvendo tecnologias para fomentar o ativismo. Para essa organização da sociedade civil, a política deve ser feita por meio da “participação efetiva dos cidadãos”. A partir de uma posição apartidária, a rede “Nossas Cidades” defende a independência, transparência, pacifismo e o respeito aos direitos humanos. Como mencionamos anteriormente, suas atividades tiveram início com a rede local “Meu Rio”. Essa rede iniciou suas ações por meio de práticas voltadas para a aproximação com o cidadão carioca da política local. Ela impulsionou o ativismo por meio de uso do desenvolvimento de aplicativos e organização de campanhas, articulando o on-line e o offline. Em seus dois primeiros anos de atuação, a “Meu Rio” conseguiu promover suas 9 Rede “Nossas Cidades”- Um laboratório de outros futuros. Disponível em: https://youtu.be/LtxKJ-rIVyk. Internet e Saúde 123 campanhas e conquistar importantes vitórias e chegou a atingir 100 mil pessoas cadastradas em suas plataformas de ativismo. Em 2014, a “Meu Rio” se expandiu e formou a rede “Nossas Cidades” após o recebimento de um prêmio internacional10, segundo seu site. Como estratégia de ampliação e formação de uma rede nacional, lançaram o “Programa de Fundadores”11 para selecionar e treinar os cidadãos para fundarem em suas localidades redes de ativismo pertencentes a rede “Nossas Cidades”, desenvolvendo assim uma rede de multiplicadores de ativistas. No momento da redação deste capítulo, a rede “Nossas Cidades” estava presente em 10 localidades. Seu objetivo é ampliar a adesão de novos membros e promover novos modelos de ativismo, voltados principalmente aos jovens. A equipe da rede “Nossas Cidades” é formada por mais de 30 pessoas, que assumem funções de diretoria, coordenações específicas, staff, designer e programadores. Segundo exposto em seu site, a organização tem como objetivo: “reconstruir a política”, com três frentes de atuação: (i) incubações: - laboratório de ativismo, incuba organizações e testa modelos e estratégias de ativismo; (ii) formação de redes: - articula e treina redes e; (iii) desenvolvimento e uso de ferramentas digitais: utiliza ferramentas de ativismo on-line. Além disso, entendem a política como “espaço de tensão, interação e intermediação”, no qual existe espaço para a atuação da sociedade seguindo os seguintes princípios: apartidarismo, embasamento, independência, pacifismo, respeito aos direitos humanos e transparência. Uma importante estratégia de divulgação é a disponibilização de links para reportagens veiculadas em canais de comunicação (Zeitgest, CNN, UOL, BuzzFeed, TED, NEXO etc.) que falam sobre a rede “Nossas Cidades” e suas parceiras regionais, dando maior visibilidade para as práticas desenvolvidas, assim como para as vitórias alcançadas em suas campanhas. Essa estratégia de comunicação serve como publicidade e sinalização, para seus participantes e simpatizantes, de que as ações desenvolvidas pela rede têm efetividade e estão repercutindo na sociedade. Isso pode ajudar na formação de capital social, importante elemento para a ação coletiva (PUTMAN, 1995). A rede “Nossas Cidades” possui diversas formas de atuação. No plano geral, a principal forma de ação é o Programa de Fundadores, citado anteriormente. Esse programa reúne pessoas interessadas em levar a proposta da rede “Nossas Cidades” para suas respectivas cidades. O programa conta com um processo de seleção e treinamento de novos fundadores de redes locais para atuarem como “líderes de redes de mobilização”, que utilizam ações off-line e ferramentas on-line para ampliar a participação dos cidadãos. Esses fundadores têm a missão12 de: 1) mapear oportunidades de mobilização para melhorar a cidade; 2) desenvolver táticas e estratégias de ação; 3) engajar e mobilizar as Rede “Nossas Cidades” - O que fazemos. Disponível em: https://www.nossas.org/#block-2551. Rede “Nossas Cidades” - Programa Fundadores. Disponível em: http://www.fundadores.nossas.org/. 12 Rede “Nossas Cidades” - Papel dos Fundadores. Disponível em: https://www.fundadores.nossas.org/#block2178. 10 11 124 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) pessoas para participarem de suas campanhas e ações; 4) divulgar as causas nas redes e nas ruas; 5) articular soluções com parceiros locais; e 6) treinar e gerenciar voluntários. Em contrapartida, a rede “Nossas Cidades” oferece para os participantes do “Programa de Fundadores” residência no Rio de Janeiro (sede da rede “Nossas Cidades” ) durante o período de treinamento, acesso às ferramentas digitais desenvolvidas pela equipe de ativistas da rede, contato e troca de experiências e aprendizados com outros participantes da rede e cessão do uso de direitos de trademark para aplicação na criação da futura rede local. É possível identificar que a rede “Nossas Cidades” segue uma dinâmica de rede, procurando criar novas conexões (novas redes locais) por meio do “Programa de Fundadores”. Mesmo com autonomia local para o desenvolvimento de projetos e campanhas, cada participante da rede “Nossas Cidades” deve atuar dentro do paradigma de ação definido pela organização central. Esse princípio está previsto nas missões dos fundadores, para a ampliar o poder de rede pela mobilização de recursos (políticos, tecnológicos, humanos etc.), formar parcerias e compartilhar experiências e aprendizados. Qualquer cidadão pode participar das ações locais promovidas pelos municípios participantes da rede “Nossas Cidades” de duas formas: criando uma causa (campanha) e/ou aderindo a uma campanha em andamento. Qualquer cidadão pode criar uma causa, desde que respeite os princípios da rede “Nossas Cidades”. Os criadores de mobilizações são chamados de “cozinheiros”, pois utilizam o aplicativo “Panela de Pressão” (que será descrito adiante) como ferramenta de mobilização e pressão política sobre as autoridades. Algumas das causas regionais são selecionadas pela equipe geral da rede “Nossas Cidades” para receber apoio e suporte técnico das equipes das Redes “Meu Rio” e “Minha Sampa” (nós da rede com mais recursos técnicos). As causas e campanhas são disponibilizadas nos canais de comunicação no Facebook, Twitter, Instagram, Youtube e no portal. Cada uma delas tem um site com informações sobre a causa, formas de participar, propostas, apoiadores e reportagens sobre o tema. A partir dessas informações, o cidadão comum pode apoiar uma causa ou fazer parte de uma campanha em andamento. As formas de e-participação variam de acordo com as características de cada campanha, mas no geral elas funcionam pelo uso do dispositivo Panela de Pressão. Em ambas as formas a atuação (causa ou apoio), a participação ocorre pelo uso dos softwares desenvolvidos. Pode haver algumas mobilizações para ações off-line como protestos e manifestações de rua. Abaixo são listadas as principais formas de participação pelo uso das TICs: a) “Panela de Pressão”13 13 Rede “Nossas Cidades” - Panela de Pressão. Disponível em: http://paneladepressao.nossascidades.org/. Internet e Saúde 125 O “Panela de Pressão”, é um aplicativo de mobilizações criado e gerido pela equipe técnica da rede “Nossas Cidades”. Ele permite contato direto do cidadão com governantes, gestores públicos, parlamentares, concessionárias de serviços públicos, políticos em geral e outros tomadores de decisão da cidade. Não se trata de um site de petições on-line. Ele funciona como um sistema digital de exercício de pressão sobre as autoridades responsáveis, que pode ocorrer das seguintes formas: (i) por e-mail (ao clicar, o usuário enviará um e-mail do seu endereço eletrônico diretamente para o endereço eletrônico do alvo; (ii) por Facebook (ao clicar, o usuário irá postar com o seu perfil diretamente no mural do alvo); (iii) por Twitter (ao clicar, o usuário irá tuitar o alvo diretamente com o seu perfil); (iv) por telefone (ao clicar, a telefonista eletrônica vai ligar para o celular do usuário e completar a ligação com o alvo, deixando-os em contato direto). Ou seja, são mecanismos de pressão que se diferem dos abaixo-assinados, pois colocam os cidadãos em contato direto com seus representantes e políticos, em geral. b) “DefeZap”14 Criado em 2016, o “DefeZap” é um sistema digital para envio de vídeos de denúncia de uso de violência ilegal pelos agentes do Estado, de forma anônima, disponível no estado do Rio de Janeiro pela Rede “Meu Rio”). O material audiovisual é recebido pela equipe “DefeZap”, que aciona sua rede de apuração colaborativa para confirmação da denúncia e depois cobra uma ação das autoridades responsáveis, garantindo a privacidade do(a) autor(a) da denúncia. Além da cobrança das autoridades, os vídeos enviados compõem um banco de dados disponíveis para serem utilizados por reportagens. Também são divulgados os “Boletins DefeZap”, contendo informações e dados sobre as denúncias. Uma análise dos boletins, foi possível verificar, entretanto, que sua última atualização foi em dezembro de 2016, ou seja, o sistema não está up to date. A e-participação pode ocorrer por meio do envio do vídeo-denúncia, da participação na equipe de apuração das denúncias ou do recebimento e compartilhamento das informações publicadas no “Boletim DefeZap”. c) “Mapa do Acolhimento”15 Fruto da parceria da rede “Nossas Cidades” com o coletivo #AgoraÉQueSãoElas, o “Mapa do Acolhimento” é uma plataforma digital criada em junho 2016 voltada para o acolhimento de mulheres vítimas de violência sexual. Na plataforma, terapeutas, advogadas e outras podem se inscrever como voluntárias para participar da recepção de pessoas vítimas de violência sexual. Segundo os dados disponíveis no site, a iniciativa já conta com 540 terapeutas, 2578 voluntárias e 16 advogadas inscritas no programa16. As Rede “Nossas Cidades” - Defezap. Disponível em: https://www.defezap.org.br/. Rede “Nossas Cidades” - Mapa do Acolhimento. Disponível em: https://www.mapadoacolhimento.org/. 16 Dados coletados em 22 jan. 2018. 14 15 126 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) mulheres vítimas também podem se inscrever on-line para receber o apoio do projeto. A eparticipação também pode ser por meio do apoio financeiro (crowdfunding). d) “Beta”17 “Beta” é um chatbot feminista, isto é, um robô de internet voltado para a difusão e defesa do feminismo e proteção dos direitos das mulheres, criado em 2017. O chatbot interage com as usuárias por meio de caixa de mensagens privadas em uma rede social. A interação com “Beta” permite que as pessoas fiquem atualizadas com o debate feminista nas redes e nas ruas e cria um banco de dados. A chatbot também emite alertas on-line quando uma pauta ou tema precisar de mobilização e está voltada para a proteção dos direitos das mulheres no Brasil. A rede “Nossas Cidades” já utilizou outros aplicativos, que no momento da pesquisa estavam desativados: “Legislando” (plataforma digital para a criação de projetos de lei), “Multitude” (aplicativo de oferta para trabalho voluntário), “Imagine”, “De olho” (blog de acompanhamento da Câmara Municipal carioca - última atualização em 3 anos atrás), “De guarda” (vigília eletrônica coletiva; projetos De Guarda na Friedenreich e De Guarda no Bondinho - Meu Rio) e “Compartilhaço”. A plataforma “Legislando” foi alterada para “Mudamos”, desenvolvida em parceria com o Instituto Tecnologia e Sociedade, do Rio de Janeiro. Atualmente tem se expandido para várias cidades. 2.1. Descrição do portal O site da rede “Nossas Cidades” se dispõe a estar em constante reformulação e atualização. Apesar disso, procura manter a mesma identidade visual, que também é mantida pelas redes locais. No momento da realização da pesquisa que redundou neste capítulo o site estava estruturado da seguinte forma18: Quadro 2. Descrição do portal “Nossas” Seção Descrição Apresentação da frase (em formato .gif) “Nós queremos Visão viver em uma sociedade na qual:” que é complementada com os seguintes trechos que se alteram: 17 18 Rede “Nossas Cidades” - Beta: um robô feminista. Disponível em: https://www.beta.org.br/#block-5812. Dados coletados em 25 set. 2017. Internet e Saúde 127 “O poder do Eu não suprima a potência do nós” “O poder do centro não diminua a potência da periferia” “O poder do ódio não suprima a potência do afeto” “O poder do patriarcado não suprima a potência das mulheres” “O poder da informação não suprima a potência da privacidade” “O poder de uns não suprima a potência dos outros” “O poder dos mestres não suprima a potência da curiosidade” “O poder da branquitude não suprima a potência da diversidade” “O poder dos adultos não suprima a potência das crianças” “O poder dos políticos não suprima a potência da multidão” “O poder da propaganda não suprima a potência da arte” Vídeo (Laboratório de outros futuros) e as frases em letra maiúscula: “NOSSAS É UM LABORATÓRIO DE Quem Somos ATIVISMO. ESTAMOS CRIANDO #OUTROSFUTUROS. Aqui, inventamos novas formas das pessoas INFLUENCIAREM e RESSIGNIFICAREM a política”. Foto com pessoas protestando (legenda: “Articulando cidadãos em rede”). Texto explicando que rede “Nossas Cidades” é uma organização sem fins lucrativos que O que fazemos atua no campo da política, voltada para mediar a potência dos cidadãos com as instituições por meio do compartilhamento de metodologia, tecnologia e oportunidade de ação. Imagem que busca descrever em uma linha do tempo as principais ações e projetos rede “Nossas Cidades”, Linha do tempo como a criação da “Meu Rio” em 2011, “Minha Sampa” e arede “Nossas Cidades” em 2014, o programa de “Bolsa-ativismo” em 2017, entre outros. Vitórias Para agir agora Imagens (links) e vídeos de algumas campanhas vitoriosas dos membros da rede “Nossas Cidades”. Imagens (links) de algumas campanhas em andamento 128 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) dos membros da rede “Nossas Cidades”. Junte-se Texto incentivando as pessoas a participarem da rede “Nossas Cidades”e formulário on-line para a inscrição. Texto explicando os princípios organizativos, link para Transparência os interessados fazerem doações e link para relatório de auditoria de contas da rede “Nossas Cidades”. Texto indicando que a rede “Nossas Cidades”é composta por mais de 30 pessoas, que realizam Equipe diferentes tarefas e procuram transformar o mundo para torná-lo um lugar mais justo, inclusivo e sustentável. Ao fundo, uma foto com todos os membros da equipe. Links de direcionamento para reportagens sobre a rede Na mídia “Nossas Cidades”em diferentes meios de comunicação do Brasil e do mundo. Fonte: Os autores (2018). Uma análise do site permite observar importantes elementos que orientam a formação da identidade social da rede e dos princípios que orientam a ação política da rede “Nossas Cidades”. Também é possível identificar a estratégia de comunicação voltada para a divulgação dos resultados alcançados e sua repercussão midiática. Todos os sites das demais redes seguem uma apresentação semelhante ao site rede “Nossas Cidades”, com algumas variações em relação ao número de seções e termos. Dentro do princípio de rede, cada membro da rede “Nossas Cidades” tem autonomia para definir seu perfil, mas todos seguem uma mesma identidade visual, mantendo uma unidade geral. Os sites apresentam fácil operacionalidade. Contudo, é muito difícil achar nas páginas informações sobre outras ações e histórico das campanhas de sucesso ou mesmo de fracasso. No momento da redação deste capítulo identificamos que algumas redes locais ainda estavam em processo de formação como a Rede: “Minha Garopaba”, “Minha Blumenau” e “Meu Oiapoque”. “Minha Jampa”, por exemplo, foi formada em 2016, e ainda está em processo de consolidação. Ela, no entanto, tem realizado campanhas de mobilizações e conquistado vitórias em algumas campanhas como, por exemplo: “Não afogue 80 milhões” e “27 vereadores e um segredo”. 2.2. Rede “Nossas Cidades” nas redes sociais Internet e Saúde 129 A rede “Nossas Cidades” está presente na rede social mais popular no Brasil, o Facebook, e possui um canal de vídeos no Youtube. O perfil no Facebook continha em janeiro de 2018 1.486 curtidas. O número de curtidas indica que o perfil rede “Nossas Cidades” não era muito popular dentro desta rede social naquela época. Suas postagens, em geral, receberam poucas curtidas, comentários e compartilhamentos. Já no Youtube, o canal possui 130 subscrições e disponibiliza 31 vídeos. Estavam disponíveis para visualização diferentes tipos de material audiovisual, inclusive os vídeos promocionais das redes locais. Um dos vídeos com mais visualizações, no momento da realização da pesquisa que se transformou neste artigo, era “Rede Nossas Cidades - A Revolução da Participação”, com 2.858 visualizações (dados de janeiro de 2018). Com duração de menos de dois minutos, o vídeo apresenta uma animação incentivando a participação local como forma de transformar o mundo, por meio das tecnologias e das redes. Também apresenta um breve histórico com algumas conquistas da “Minha Rio” (fundadora da rede). Quadro 3. Redes locais nas mídias sociais (jan. 2018) Fonte: Os autores (2018). 130 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) No contexto da realização da pesquisa que se transformou neste artigo, as estratégias de uso de mídias sociais variavam de acordo com o perfil de cada rede local. As redes nas maiores cidades (São Paulo e Rio de Janeiro) possuíam maior popularidade nas mídias sociais. Todas as redes utilizavam o Facebook. No momento da redação deste capítulo, somente “Meu Oiapoque”, ainda em fase de implementação, não tinha uma página nessa rede social. Seis redes locais utilizavam o Twitter, mas algumas com poucos seguidores e publicações de tweets. Somente a “Minha Ouro Preto” e “Meu Oiapoque” não utilizavam o Instagram. A rede “Meu Rio” possuía o maior número de curtidas no Facebook e seguidores no Twitter. Já a “Minha Sampa” possuía um número maior de seguidores no Instagram e subscrições no Youtube. As redes “Minha Sampa”, “Minha Campinas” e “Minha Jampa” também utilizavam a mídia social Medium, mas, apresentaram poucos seguidores e publicações. 3. Aplicação do IPPI Visando avaliar a efetividade e eficácia da rede “Nossas Cidades”, foi utilizada a ferramenta e a metodologia denominada “Índice de Participação Política e Influência da sociedade civil no ciclo de políticas públicas” (IPPI), desenvolvida pelos autores deste capítulo (ARAÚJO; PENTEADO; SANTOS, 2014). Ela pode ser útil no estudo de fenômenos contemporâneos, como a rede “Nossas Cidades”, que se articula e atua pelo uso das TICs. O IPPI é uma ferramenta para o estudo das ações e práticas das organizações da sociedade civil na sociedade da informação. Ela permite mensurar a capacidade de influência dessas organizações, articulando diferentes dimensões que envolvem o emprego das TICs. O IPPI possui 6 dimensões analíticas criadas com base na revisão da literatura sobre temas como: ação coletiva, internet e sociedade, políticas públicas e ciberativismo. Abaixo apresentamos uma breve descrição das dimensões de estudo (ARAÚJO; PENTEADO; SANTOS, 2015): 1. D1 - Usos dos recursos da internet: identifica e avalia os dispositivos comunicacionais que o grupo/ coletivo utiliza em uma ação ativista; 2. D2 - Atores e Capital Social: identifica e classifica os atores envolvidos quanto ao seu capital social para a mobilização de recursos financeiros e mobilização de pessoas; 3. D3 – e-Participação: identifica e classifica as formas de e-Participação webativismo. Essa dimensão está baseada nas categorias desenvolvidas por Tambouris et al. (2007) e Araújo, Penteado e Santos (2014). Internet e Saúde 131 4. D4 - Estratégias de Mobilização: identifica e avalia as estratégias de uso dos recursos do ciberespaço para a mobilização de recursos; 5. D5 - Desdobramento da ação e relação com políticas públicas (PPs): verifica se após a realização de uma ação ou mobilização houve um desdobramento político – proposta de uma política pública, influência na formação da agenda etc; 6. D6 - Repercussão na mídia: identifica se a ação ou mobilização teve repercussão nas mídias tradicionais e/ou no ciberespaço. O IPPI foi aplicado em todas as redes locais (Anexo I) que formam rede “Nossas Cidades” com o objetivo de analisar a capacidade de influência da rede em geral. O resultado pode ser observado no quadro a seguir. Quadro 4. Avaliação “IPPI Nossas Cidades” Fonte: Os autores (2017). A rede “Minha Blumenau” não teve registro de uma ação em 2017. Por esse motivo, não foi aplicado o IPPI. Ainda assim, é válido registrar a realização de uma mobilização e campanhas em 2015 e 2016. A rede “Meu Oiapoque” ainda estava em processo de formação no momento em que esta análise foi realizada. Por isso, também não foi aplicado o IPPI. Os resultados permitem observar que existe uma grande variação de pontuação entre as redes locais. A “Minha Sampa” apresenta o melhor desempenho, seguido da rede fundadora “Meu Rio”, “Meu Recife” e “Minha Jampa”. Por outro lado, “Minha Garopaba” e “Minha Ouro Preto” tiveram uma pontuação muito baixa. Aqui, vale notar que ambas existem em cidades de pequeno porte, onde a sociabilidade ocorre na maioria das vezes pela via real e que exige menor engajamento on-line. Em relação às dimensões, pode-se verificar que “Usos dos recursos da internet” (D1) obteve uma boa pontuação em todas as redes locais, sendo a principal característica da rede “Nossas Cidades”. A dimensão “Desdobramento da ação e relação com PPs” (D5), que mensura os resultados (outputs) das campanhas, obteve a menor pontuação, indicando que 132 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) a efetividade é o principal ponto que precisa ser desenvolvido pelas redes que compõem a rede “Nossas Cidades”. Na comparação das médias de cada uma das pontuações das dimensões do IPPI, obtidas a partir das análises das redes em separado, foi possível verificar algumas variações, que podem ser explicadas por conta das especificidades locais, tais como o tamanho da população, a quantidade de equipamentos presentes nas cidades, o tamanho da mídia local etc. 4. Considerações finais As Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) possibilitaram o desenvolvimento de novas formas de participação cidadã, como o caso da rede “Nossas Cidades” e suas redes locais. O aperfeiçoamento das plataformas on-line e softwares pela equipe de ativistas da rede “Nossas Cidades” têm possibilitado que os cidadãos se envolvam nas diferentes campanhas e projetos, fomentando um paradigma de participação por meio de dispositivos on-line (e-participação) e novos modelos de ativismos sociopolíticos. Os resultados obtidos apontam para a confirmação da tese de que o sucesso das ações on-line das organizações da sociedade civil está diretamente associado à combinação de ações off-line com a formação de redes (on-line e off-line) e/ou a ação conjunta aos meios tradicionais de comunicação. Isso pôde ser comprovado em outros estudos, tais como a análise realizada sobre a “Rede Nossa São Paulo” ou, em perspectiva diferente, a análise das estratégias dos movimentos “Vem pra Rua” e “Movimento Brasil Livre” (MBL) nas manifestações que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff (ARAÚJO; PENTEADO; SANTOS, 2012; 2016). No caso da rede “Nossas Cidades”, as diferenças das redes locais são visíveis. “Meu Rio” e “Minha Sampa” possuíam em 2018 mais de 200.000 associados, enquanto “Minha Garopaba” e “Minha Ouro Preto”, cerca de 2.000. Vale lembrar que as duas se situam nas duas maiores cidades do Brasil - Rio de Janeiro e São Paulo: locais onde eventos cívicos, reivindicatórios e participativos ocorrem tradicionalmente. O estágio de desenvolvimento de cada instituição dentro da rede “Nossas Cidades” também nos pareceu bem diferente. Algumas iniciativas existiam há menos tempo e outras funcionavam em locais com precária tradição associativa. Isso indica uma relação intrínseca entre o mundo concreto e o virtual. Essa característica, que para alguns parece ser óbvia, contraria uma tendência na literatura de se considerar os avanços do ativismo on-line de forma independente ao desenvolvimento da realidade off-line. Da mesma maneira que é possível perceber que o sucesso das redes está diretamente relacionado às possibilidades de parcerias com instituições locais, é preciso reconhecer que o sucesso da Internet e Saúde 133 mobilização e engajamento das ações on-line está relacionada à cultura política dos interagentes. O déficit político no uso da internet está associado, a nosso ver, ao déficit de cultura política. Essa diferença é consequência de diferentes fatores históricos e conjunturais, tais como o surgimento das metrópoles, o crescimento do mundo do trabalho, o advento e o fortalecimento da indústria cultural e o esvaziamento dos partidos políticos e sindicatos. A popularização da internet não altera esses fatores estruturantes, de tal modo que a ampliação do acesso não implica necessariamente que o uso das redes feito pela população seja associado ao desenvolvimento de uma cultura cívica. No entanto, nos últimos anos temos verificado que a sociedade civil organizada, apesar da despolitização da maioria da população, tem conseguido fazer uso estratégico das TICs e estabelecido rotas, relativamente eficientes, de ação política. O caso da rede “Nossas Cidades” pode ser considerado um exemplo. Apesar das diferenças existentes entre as redes locais aqui analisadas, os resultados mostram que a rede “Nossas Cidades” representa uma inovação em termos de participação cidadã on-line, oferecendo dispositivos digitais e metodologias criativas no desenvolvimento de novas formas de exercício de pressão e de apresentação de propostas aos agentes públicos em torno de suas demandas. No campo da saúde pública, estudos também apontam que o uso das TICs, em paralelo com ações reais, tem ajudado grupos de usuários a obter tratamentos e medicamentos que até então era negados ou de difícil acesso. Um dos casos que podem ser citados no Brasil é a associação de usuários de remédios como canabidiol e outros derivados da maconha. Eles eram proibidos, mas, graças às lutas e reivindicações de grupos de familiares e de usuários por meio de ações on-line e off-line, ocorreu a liberação do uso por parte da ANVISA e foi facilitada a importação dos medicamentos, que não eram fabricados no Brasil (SANTOS; SEGURADO; MALINA, 2015). A relação entre usuários e profissionais de saúde também estão sendo alteradas pelos usos das TICs. T têm sido desenvolvidas e utilizadas novas ferramentas que auxiliam na interlocução entre esses profissionais e seus pacientes, via TICs (MACHADO; HADDAD; ZOBOLI, 2010). Referências ANDUIZA, E.; CRISTANCHO, C.; SABUCEDO, J. M. Mobilization through online social networks: the political protest of the indignados in Spain. Information, Communication & Society, 10.1080/1369118X.2013.808360. v. 17, n. 6, p. 750-764, 2014. DOI 134 André Pereira Neto & Matthew B. 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Internet e Saúde 137 Anexo I. Tabelas de aplicação do IPPI por rede local Tabela 1. Aplicação do IPPI à rede “Minha Sampa” Dimensão Mensuração Uso do aplicativo “Panela de Pressão” pelos D1 - Usos dos recursos da Observações 5 internet usuários que podem apresentar propostas de ação. Articulação com outras redes (rede “Nossa São D2 - Atores e Capital Social 5 Paulo”, rede “Mulheres Mobilizadas”, rede “Cidade dos Sonhos”), apoios de artistas e participação em espaços de participação. eEmpoderamento: quando há transferência de D3 eParticipação influência, controle, proposição e formulação 5 de políticas a partir dos desejos e anseios cidadãos. Conseguiram várias vitórias contra projetos de vereadores. D4 - Estratégias de Mobilização Promoção da mobilização através de redes 5 sociais: Facebook, Twitter e Instagram. Ações presenciais de conscientização. D5 - Influência em PPs (vitórias), mas sem a Desdobramento da ação e relação 4 com PPs D6 - Repercussão na mídia participação da população na implantação e avaliação de PPs. Ex: Não tire meu cobertor, Paulista aberta, Delegacia da Mulher 24 h etc. Destaque para as ações nos principais meios 5 Média ponderada Fonte: Os autores (2017). de comunicação local e nacional. Ex: Folha de SP, G1 SP, OESP, CBN etc. 4,8 138 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Tabela 2. Aplicação do IPPI à rede “Minha Campinas” Dimensão Mensuração Uso do aplicativo “Panela de Pressão” e “Mapa D1 - Usos dos recursos da 5 Internet D2 - Atores e Capital Social Observações do Acolhimento”, “Melhora Busão” pelos usuários que podem fazer propostas de ação. Articulação com outra rede “Minha Sampa” e 4 ativistas locais e atuação em espaços de participação. e-Engajamento: produção de informações, D3 e-Participação 3 mobilização e pressão sobre os agentes públicos. Promoção da mobilização através de redes D4 - Estratégias de Mobilização 5 sociais: Facebook, Twitter, Instagram, Flickr e Medium. Ações presenciais de conscientização. D5 - Influência em PPs (vitórias), mas sem a Desdobramento da ação e relação com 4 PPs participação da população na implantação e avaliação de PPs. Ex: Cultura Presente, CPI da Merenda, Vota Campinas etc. D6 - Repercussão na mídia Destaque para as ações nos principais meios 4 Média ponderada Fonte: Os autores (2017). de comunicação local. Ex: EPTV, Rádio Brasil Campinas, Folha de SP, CBN Campinas etc. 4,1 Internet e Saúde 139 Tabela 3. Aplicação do IPPI à rede “Minha Porto Alegre” Dimensão Mensuração Uso dos aplicativos “Panela de Pressão”, D1 - Usos dos recursos da 5 Capital Social D3 e-Participação D4 - Estratégias de Mobilização “Contos de Terror,” “No Caminho do Bem”, “Mapa do Acolhimento” entre outros. internet D2 - Atores e Observações 4 3 Articulação com associações e ativistas locais e participação em espaços de participação. e-Engajamento: produção de informações, mobilização e pressão sobre os agentes públicos. Promoção da mobilização através de redes 3 sociais: Facebook. Ações presenciais de conscientização. D5 - Influência em PPs (vitórias), mas sem a Desdobramento da ação e relação com 4 PPs participação da população da implantação e avaliação de PPs. Ex: Sinaleira Já, Merenda Orgânica, PL dos Bicicletários etc. D6 - Repercussão na mídia Destaque para as ações nos principais meios de 4 Média ponderada Fonte: Os autores (2017). comunicação local. Ex: G1, Correio do Povo, Zero Hora, UOL etc. 3,8 140 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Tabela 4. Aplicação do IPPI à rede “Minha Jampa” Dimensão Mensuração Observações Uso do aplicativo “Detector de Mentira”, “Panela de D1 - Usos dos recursos da 5 internet Pressão” pelos apresentar propostas usuários de que ação, podem e também participação em outras mobilizações e/ou ações. (Também há Mapa de Acolhimento). Articulação com outras redes (“João Pessoa que D2 - Atores e Capital Social queremos”, 4 “SOMA Brasil”, rede “Nossas Cidades”, “Cidade Bike”, “Amigos da Barreira”), apoios de acadêmicos e participação em espaços de participação. eDeliberação: quando auxilia na resolução de D3 e-Participação 4 impasses, tomadas de decisão a partir de discussão e debate entre atores políticos. Promoção da mobilização através de redes D4 - Estratégias de Mobilização 5 sociais: Facebook, Instagram, Medium, Twitter. Ações off-line de debate com atores da sociedade civil e do campo político institucional. D5 - Algumas ações modificaram o comportamento da Desdobramento da ação e relação 4 com PPs D6 - Repercussão na mídia Prefeitura, ajudando na incorporação de alguns valores defendidos pela MJ (2 vitórias em campanhas). 5 Média ponderada Fonte: Os autores (2017). Mídia local televisiva e impressa. Portais de notícias. 4,5 Internet e Saúde 141 Tabela 5. Aplicação do IPPI à rede “Meu Rio” Dimensão Mensuração Observações Uso do aplicativo “Detector de Mentira” e D1 - Usos dos recursos da Internet 5 “Panela de Pressão” pelos usuários que podem realizar propostas de ação, e também participam de outras mobilizações e/ou ações. D2 - Atores e Capital Social 4 Articulação com a rede “Nossas Cidades”, , ONG Rio de Paz. e-Engajamento: produção de informações, D3 e-Participação 4 mobilização e pressão sobre os agentes públicos. D4 - Estratégias de Mobilização Promoção da mobilização através de redes 5 sociais: Facebook, Twitter, Instagram e Flickr. Ações presenciais Influência em PPs (vitórias), mas sem a D5 - Desdobramento da ação e relação participação da população na implantação e 4 com PPs avaliação de PPs. Ex: Delegacia de Desaparecidos, mudanças em projetos na Câmara dos Vereadores. D6 - Repercussão na mídia Média ponderada Fonte: Os autores (2017). 5 Mídia local televisiva e impressa. Portais de notícias. 4,5 142 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Tabela 6. Aplicação do IPPI à rede “Meu Recife” Dimensão Mensuração Observações 5 Uso dos aplicativos “Panela de Pressão” e outros. D1 - Usos dos recursos da Internet D2 - Atores e Capital Social D3 eParticipação D4 - Estratégias de Mobilização 4 4 Articulação com a rede “Nossas Cidades” e atores locais. e-Engajamento: 5 Facebook, Twitter e Instagram. Ações presenciais de conscientização. na mídia PPs (vitórias), mas sem a participação da população na implantação e 4 avaliação de PPs. Ex: Somos todos Sancho, Revogação do ajuste de auxílio-alimentação dos com PPs D6 - Repercussão informações, mobilização e pressão sobre os agentes públicos. Influência em da ação e relação de Promoção da mobilização através de redes sociais: D5 Desdobramento produção vereadores, Faixa Azul Já. 5 Média ponderada Fonte: Os autores (2017). G1, Diário de Pernambuco, JC online, Rádio Jornal. 4,5 Internet e Saúde 143 Tabela 7. Aplicação do IPPI à rede “Minha Garopaba” Dimensão Mensuração D1 - Usos dos recursos da Internet D2 - Atores e Capital Social D3 e-Participação D4 - Estratégias de Mobilização Uso dos aplicativos da rede “Nossas 3 Por ainda estar em formação, a grande 2 mídia Média ponderada Fonte: Os autores (2017). parceira é a rede “Nossas Cidades”, uma organização nacionalizada. 2 2 0 PPs D6 - Repercussão na Cidades” para desenvolver o processo de formação. D5 - Desdobramento da ação e relação com Observações 0 e-Mobilização: quando há ação de estímulos e convocação na defesa de valores e ideias. Promoção da mobilização através de site e Facebook. Não se aplica, pois ainda não apresentou nenhum resultado. Não se aplica, pois ainda não apresentou nenhum resultado. 1,5 144 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Tabela 8. Aplicação do IPPI à rede “Minha Ouro Preto” Dimensão Mensuração D1 - Usos dos recursos da Internet D2 - Atores e Capital Social D3 e-Participação D4 - Estratégias de Mobilização 4 2 2 2 0 PPs D6 - Repercussão na mídia Média ponderada Fonte: Os autores (2017). Uso dos aplicativos da rede “Nossas Cidades”, como o Mapa do Acolhimento. rede “Nossas Cidades” e-Mobilização: quando há ação de estímulos e convocação na defesa de valores e ideias. Promoção da Facebook. Há mobilização uma através campanha de sobre aumento do busão no FB e outras no site. D5 - Desdobramento da ação e relação com Observações 0 Não foi possível identificar nenhuma ação relevante. Não foi possível identificar repercussão na mídia. 1,6 Parte II Os Públicos da Internet e Saúde no Brasil 146 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Capítulo 5 Internet, expert patient e empoderamento: perfis de atuação em comunidades virtuais de renais crônicos André Pereira Neto*, Julyane Felipette Lima, Leticia Barbosa e Eda Schwartz Resumo Nas últimas décadas, a internet tornou-se parte integrante do cotidiano de milhões de pessoas ao redor do mundo, engendrando múltiplas transformações. Na saúde, as mídias sociais têm sido cada vez mais utilizadas como fonte de informação e aconselhamento. Nesse contexto, destaca-se a emergência do expert patient. Trata-se de um indivíduo que se torna um especialista ao realizar uma busca on-line extensiva de informações sobre sua condição de saúde e compartilha suas experiências em comunidades virtuais e demais mídias sociais. Diante desse cenário, este capítulo realiza uma reflexão sobre a relação entre empoderamento, expert patient e ordem biomédica em dois grupos, organizados no site de rede social Facebook, que reúnem doentes renais crônicos, seus familiares, amigos e cuidadores. Foram identificados perfis de atuação de participantes que postam mensagens - os posters. Mapeamos três “tipos ideais” desses participantes: um apresenta caráter acolhedor; outro se preocupa com a dimensão clínica da doença; e o terceiro se mostra comprometido com os direitos do paciente. Os resultados apontam que os posters acolhedor e clínico reiteram a ordem biomédica, enquanto o poster cidadão se preocupa com os direitos do paciente enquanto cidadão. Palavras-chave: Internet; Empoderamento; Acesso à Informação On-Line; Acesso à Informação de Saúde; Mídias Sociais; Doenças Renais. Referência: PEREIRA NETO, A. et al. Internet, expert patient e empoderamento: perfis de atuação em comunidades virtuais de renais crônicos. In: PEREIRA NETO, A.; FLYNN, M. (orgs.). Internet e saúde no Brasil: desafios e tendências. 1 ed. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2020. p. 145-175. * Laboratório Internet, Saúde e Sociedade, Centro de Saúde Escola Germano Sinval de Faria, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Brasil. E-mail: [email protected]. Internet e Saúde 147 Introdução Ao longo das últimas décadas, o cenário midiático foi reestruturado em decorrência da constituição e expansão das mídias digitais, por meio da internet (RĂZVAN, 2020): uma rede mundial que interliga milhões de dispositivos em todo o mundo, de vários tipos, tamanhos, marcas e modelos e com diferentes sistemas operacionais. Por seu intermédio, passaram a ser oferecidos diversos serviços de comunicação e informação, que aos poucos se tornaram parte integrante da vida de milhões de pessoas ao redor do mundo. A popularização das mídias digitais está favorecendo a configuração de novas práticas socioculturais, políticas e econômicas (SRINIVASAN; FISH, 2017). A nosso ver, tais mídias promovem novos entendimentos, conceitos e suposições sobre o papel da informação e da comunicação para o homem contemporâneo. Segundo Lévy (1999), a multiplicação da quantidade bruta de dados, o adensamento na interconexão de conteúdos informativos e o aumento dos contatos transversais entre os indivíduos, por meio das mídias sociais, promoveram um dilúvio, ou seja, um transbordamento caótico de informações. Os fluxos informacionais passaram a ser pervasivos e capilarizados, pois se estenderam por diferentes esferas da sociedade, engendrando inúmeras modificações. A saúde não foi uma exceção nesse cenário. Nos últimos anos, a emergência e disseminação da World Wide Web e dos mecanismos de busca on-line contribuíram para que sites, blogs e portais virtuais passassem a ser cada vez mais utilizados como fonte de informação e aconselhamento sobre saúde (LI; THENG; FOO, 2016; LIN et al., 2016). Cresce a quantidade de conteúdo sobre saúde que é produzido e compartilhado on-line (KIM, 2015). Tal conteúdo é disponibilizado em múltiplos formatos e plataformas, por diferentes fontes produtoras – sejam eles instâncias governamentais, empresas, grupos com interesses comuns ou indivíduos. Nesse contexto, o termo expert patient foi cunhado para designar um indivíduo que, ao realizar uma busca extensiva sobre sua condição de saúde, principalmente por meio sites e comunidades virtuais, torna-se praticamente um especialista em um determinado assunto (FOX; WARD; O'ROURKE, 2005). Nas últimas décadas, a resposta da comunidade médico-científica a esse novo ator no campo da saúde oscilou entre o otimismo e o pessimismo. Embora existam profissionais que não sejam receptivos ao expert patient, outros incorporam a existência desse ator social à sua prática. Para tanto, deslocam-se de uma posição paternalista, impositiva e vertical em relação ao paciente, a fim de conformar um modelo de parceria, utilizando as informações disponíveis na internet como um meio para ajudar na adesão ao tratamento (TAN; GOONAWARDENE, 2017; FOX; WARD; O'ROURKE, 2005). A figura do expert patient está associada, a nosso ver, à noção de empoderamento um conceito abrangente, multifacetado e de difícil definição. Ele é geralmente utilizado para referir-se a indivíduos ou grupos que transformam a situação de vulnerabilidade, 148 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) desigualdade ou impotência em que se encontram e passam a obter maior autonomia, autodeterminação e consciência política. Essa mudança pode ser impulsionada com o auxílio de diferentes recursos, entre os quais se destacam a informação e o conhecimento (MANO, 2014). As comunidades virtuais desempenham um papel singular no processo de empoderamento do cidadão na área da saúde. Seu integrante pode compartilhar informações e obter conhecimentos derivados da experiência de outros participantes com a doença. Ao fazê-lo, ele pode conhecer alternativas de tratamento, saber os efeitos adversos de determinados medicamentos e conversar com outros participantes sobre decisões relacionadas ao seu processo terapêutico. O empoderamento favorece a independência do cidadão ou facilita a adesão a um estilo de tratamento que obedeça ao paradigma biomédico? (PEREIRA NETO et al., 2015; MCALLISTER et al., 2012; FOX; WARD; O'ROURKE, 2005). Este capítulo irá discutir essa questão analisando o caso dos portadores de doença renal crônica (DRC). Trata-se de uma doença crônica não-transmissível (DCNT) que se evidencia quando o rim de um paciente deixa de cumprir sua função por três meses ou mais (BRASIL, 2020). Ao receber o diagnóstico, o paciente pode se submeter a um tratamento conservador, baseado na realização de dietas, restrições hídricas e uso de medicamentos. A partir do momento em que a perda da função renal chega a um estágio incompatível com a manutenção das funções do órgão, esse tratamento é trocado pela terapia renal substitutiva (TRS). Ela é realizada por meio de equipamentos ou procedimentos cirúrgicos que substituem as funções renais, como o transplante, a diálise peritoneal ou a hemodiálise, de acordo com cada caso. O transplante renal é a modalidade de tratamento que pode diminuir as restrições impostas pelo regime terapêutico, embora seja muito difícil encontrar um doador com órgão compatível sem que haja rejeição (JAY et al., 2016). A diálise peritoneal (DP) é um procedimento que consiste na infusão de solução balanceada e aquecida à temperatura próxima à do corpo no interior do abdome (peritônio). Nesse caso, o próprio paciente ou seu cuidador é responsável por este procedimento (ANDREOLI; TOTOLI, 2020)). A hemodiálise (HD) é o método de depuração pelo qual o sangue obtido por um acesso vascular (cateteres, shunts ou fístulas arteriovenosas) é posto em contato com uma solução de diálise por meio de um filtro especial, ligado a uma máquina, que usa uma membrana semipermeável artificial. Para a realização da hemodiálise, o paciente necessita ir ao serviço de saúde, em média, três vezes por semana. Cada procedimento dura entre 3 a 5 horas, podendo variar conforme a condição clínica do paciente (SBN, 2020). A hemodiálise promove, portanto, uma série de restrições e leva o indivíduo a modificar sensivelmente seus comportamentos cotidianos. Atualmente cerca de 100 mil doentes renais crônicos precisam de terapia renal substitutiva no Brasil. 85% deles são assistidos exclusivamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS), que atende de forma gratuita e indiscriminada a todas as pessoas (BRASIL, Internet e Saúde 149 2018). Eles estão também incluídos na política de seguridade social voltada para a inclusão de pessoas com deficiência (BRASIL, 2015). Tratam-se, portanto, de pacientes em profundo estado de vulnerabilidade, pois dependem, para sobreviver, da máquina de hemodiálise e do pleno funcionamento das políticas públicas de assistência à saúde e de seguridade social. A doença renal crônica é irreversível, produz incapacidade ou deficiência residual e exige uma dedicação constante do doente para a reabilitação, demandando, em geral, permanente supervisão, observação e cuidado. Diante desse cenário, pretendemos realizar neste capítulo uma reflexão sobre a relação entre empoderamento, expert patient e ordem biomédica em dois grupos organizados no Facebook que reúnem doentes renais crônicos, seus familiares, amigos e cuidadores. Estamos particularmente interessados em identificar possíveis modelos ou padrões de participação desses indivíduos nesses ambientes virtuais. Este capítulo está dividido em três partes. Na primeira, apresentaremos uma reflexão conceitual sobre as dimensões do empoderamento, recorrendo ao debate existente sobre o tema na literatura acadêmica internacional. Na segunda, serão expostos os procedimentos metodológicos para escolha e análise de duas comunidades virtuais que reúnem pacientes renais crônicos, profissionais e cuidadores. Finalmente será realizada a análise do material empírico, buscando discutir como o empoderamento pode ser percebido neste contexto e que padrões de participação puderam ser observados. 1. Empoderamento: uma reflexão conceitual A discussão sobre empoderamento remonta ao século XIX (LINCOLN et al., 2002). Atualmente, parte da literatura acadêmica internacional preocupada com a definição desse conceito discute se o empoderamento é individual, coletivo ou pode ocorrer nas duas dimensões. Vejamos alguns elementos presentes nessa controvérsia. Os autores que enfatizam a dimensão individual do empoderamento geralmente referem-se à sensação de poder e controle vivenciada pelo indivíduo no processo de tomada de decisão sobre problemas que afetam sua vida. O empoderamento individual estaria, assim, associado ao individualismo moderno e ao projeto reflexivo de construção do “eu” (GIDDENS, 2003). Essa polêmica foi travada desde o final do século passado. Zimmerman (1995) critica a ênfase dada ao nível individual do empoderamento ao desconsiderar os fatores e contextos sociopolíticos. Rissel (1994) corrobora com esta visão pois entende que a vida experimentada pelo indivíduo está inscrita em um contexto social, político, econômico e cultural que o conforma e sobre o qual ele tem a possibilidade de transformar. Na mesma linha de argumentação, Riger (1993), admite que ignorar essa dimensão mais coletiva ou 150 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) social em que cada um de nós se encontra inserido pode contribuir para que o indivíduo seja visto como um agente livre, autossuficiente e autodeterminante, sem sofrer qualquer constrangimento de ordem social. Os autores que enfatizam a dimensão coletiva do empoderamento o definem como “um processo participativo e ativo por meio do qual indivíduos, organizações e comunidades obtêm maior controle, eficácia e justiça social”” (MO; COULSON, 2014, p. 984, tradução nossa). Aprofundando esse debate, Ryhänen e colaboradores (2012, p. 225, tradução nossa) apresentam a “teoria do conhecimento empoderador”, segundo a qual o empoderamento é percebido como um estado cognitivo no qual o indivíduo sente maior controle sobre sua vida. Tal dimensão, apesar de estar focada no indivíduo enquanto unidade de análise, não considera que o empoderamento seja um fenômeno descontextualizado e isolado das influências oriundas das relações que os sujeitos podem estabelecer entre si e com a sociedade. A dimensão coletiva de empoderamento está, em larga medida, influenciada pelas ideias do pedagogo Paulo Freire1 (1987). Assim, inspirado nas ideias de Freire, o conceito empoderamento tende a abandonar a perspectiva individual-psicológica e volta-se em direção a outra tendência necessariamente coletiva, social e política. Seja como for, o empoderamento individual e coletivo pode promover mudanças nas relações de poder (PAGE; CZUBA, 1999). A nosso ver, ele é parte integrante de processos recíprocos e simultâneos de perda, ganho, compartilhamento e fortalecimento de poder nas relações entre indivíduos, instituições e sociedade. Nessa perspectiva, ainda que empoderamento possa ter um nível individual e abarcar a sensação de maior controle e domínio, é necessário atentar para tais processos que o constituem. No campo da saúde, as dimensões individual e coletiva do empoderamento têm sido cada vez mais utilizadas. Um de seus principais usos tem sido na organização e consolidação dos objetivos, estratégias e práticas da promoção da saúde (WALLERSTEIN, 2006; RISSEL, 1994). A definição da Promoção da Saúde é, ainda hoje, tema de debates que geram inúmeras controvérsias2. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), trata-se de uma nova concepção sobre saúde e sobre o processo de adoecimento que visa habilitar “pessoas a aumentar o controle, e incrementar, sua saúde” (WHO, 2009, p. 1, tradução nossa). Um de seus principais eixos teóricos é o conceito de empoderamento. Seguindo essa lógica, promover a saúde é criar as condições para o incremento do controle de indivíduos e coletividades sobre os determinantes sociais que incidem sobre sua saúde. 1 Paulo Freire (1921-1997) foi um educador e pensador brasileiro, cuja obra intelectual teve reconhecimento nacional e internacional. Para Altamirano (2016) sua obra é uma referência nas áreas de “pedagogia crítica, educação popular e pesquisa-ação participativa, assim como uma referência fundamental para a teologia da libertação e para a teoria crítica latino-americana, e um precursor das epistemologias do Sul” (ALTAMIRANO, 2016, p. 677, tradução nossa). Em sua extensa produção intelectual, destacam-se os trabalhos “Pedagogia do oprimido” (FREIRE, 1987) e “Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido” (FREIRE, 2014). 2 O capítulo 19 é dedicado à questão das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação na Promoção da Saúde. Internet e Saúde 151 Desse modo, a promoção da saúde pode ser potencializada quando o empoderamento individual/psicológico é articulado ao empoderamento coletivo/comunitário. Segundo Rissel (1994), o empoderamento comunitário engloba, além do fortalecimento psicológico e incremento pessoal dos membros da comunidade, a ação coletiva e a mobilização política em torno da redistribuição de recursos favoráveis para o desenvolvimento do grupo ao qual o indivíduo pertence. Ele pode promover, portanto, melhorias para a saúde das populações e aumentar a qualidade de vida do cidadão por meio de transformações sociais engendradas coletivamente. No campo da saúde, o empoderamento encontra-se estreitamente relacionado à informação. Wallerstein (2006), em um relatório elaborado para a Organização Mundial da Saúde (OMS), destaca que as disparidades em saúde estão aumentando ao redor do mundo. Para a pesquisadora, diante desse cenário, o empoderamento pode ser compreendido enquanto uma estratégia viável para a saúde pública, possibilitando o incremento da saúde e a redução das disparidades. A fim de garantir uma estratégia de empoderamento bem-sucedida, Deepa Narayan (2002), em seu relatório publicado com o apoio do Banco Mundial, apresenta “quatro elementos-chave” para o crescimento econômico e a redução da pobreza, a saber: “inclusão/participação, accountability, organização local, capacidade e acesso à informação” (NARAYAN, 2002, p. 31, tradução nossa). Em relação a esse último elemento, Narayan (2002) afirma que: Informação é poder. [...] Cidadãos informados são mais equipados para aproveitar oportunidade, acessar serviços, exercer seus direitos, e responsabilizar atores estatais e não-estatais. [...] Tecnologias de informação e comunicação geralmente desempenham um papel importante na ampliação do acesso à informação. (NARAYAN, 2002, p. XIX, tradução nossa). As Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTICs) podem desempenhar um papel fundamental no acesso e disseminação da informação e, consequentemente, para o empoderamento de indivíduos e coletividades. Conforme aponta Narayan (2002): Conforme essas tecnologias abrem a comunicação e disseminam a informação, as TICs podem contribuir para que pessoas pobres superem sua falta de poder e de voz, mesmo quando iniquidades estruturais existem na distribuição de recursos tradicionais como educação, terra e renda. (NARAYAN, 2002, p. 99, tradução nossa). Para Choudhury (2009), a possibilidade de produzir conteúdo, estabelecer redes sociais digitais a nível global e acessar uma miríade de fontes de informações faz com que a internet se transforme em um meio importante para o empoderamento. 152 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Segundo Amichai-Hamburger, McKenna e Tal (2008), o fenômeno de empoderar-se por meio das mídias digitais disponíveis na internet pode ser denominado como eempowerment. Para esses autores, diversas possibilidades seriam oferecidas pelas NTICs para o aumento do bem-estar, a ajuda mútua e a autonomia, tanto no âmbito individual quanto coletivo. Os autores destacam: a flexibilidade na performance identitária e na construção do self; o aumento da autoeficácia; o combate e a redução de estigmas; a configuração de redes sociais digitais de apoio e autoajuda; o compartilhamento de processos decisórios; e a promoção da participação social nos processos e decisões governamentais. Amichai-Hamburger, McKenna e Tal (2008) também ressaltam que, embora a internet possa facilitar o empoderamento do cidadão, o processo de empoderarse não está dado a priori na ou pela tecnologia. A estrutura descentralizada que permite a produção de conteúdo pelo usuário, o acesso a inúmeras fontes de informação e a possibilidade de se comunicar com pessoas a nível potencialmente global são alguns dos aspectos presentes nas mídias digitais disponíveis internet que podem contribuir e incrementar o empoderamento individual e coletivo. Nesse caso, destacam-se os cidadãos e grupos de indivíduos que possuem algum tipo de doença ou problema de saúde. Para lidar com os interesses de informação sobre um determinado diagnóstico e tratamento, os pacientes, seus familiares, amigos e cuidadores frequentemente recorrem aos ambientes colaborativos existentes na internet. Eles obtêm assim de modo rápido e remoto, informação sobre sua doença e conforto para suas angústias junto a outras pessoas que vivem ou viveram problemas semelhantes. Além disso, ao utilizar sites de busca, os pacientes têm a possibilidade de pesquisar quando, como e onde lhe for mais conveniente sobre os sintomas, efeitos colaterais, medicamentos prescritos, tratamentos alternativos e profissionais de saúde recomendados (MANO, 2014; LIN et al., 2016). Segundo um levantamento realizado pela instituição estadunidense Pew Research Center, indivíduos diagnosticados com doenças crônicas são um dos principais grupos que acessam a internet para estabelecer redes sociais entre si. Muitos utilizam as ferramentas disponíveis na internet para encontrar pessoas com a mesma condição de saúde (FOX, 2011). Neste capítulo, analisaremos o processo de empoderamento em duas comunidades virtuais de pacientes submetidos a terapia renal substitutiva. Veremos a seguir como selecionamos as comunidades virtuais e como elas foram analisadas. Internet e Saúde 153 2. Metodologia Boa parte das angústias, estresse e depressão decorrentes das bruscas mudanças vivenciadas pelos pacientes renais crônicos está associada à carência de informações sobre a doença, o tratamento e a sobrevida (PADILHA FERNANDES et al., 2018). Nesse sentido, as informações obtidas e compartilhadas nas mídias sociais podem desempenhar um papel central. As comunidades virtuais têm experimentado um crescimento exponencial nos últimos anos (KOSINSKI et al., 2015). Elas oferecem meios atrativos para a interação e a comunicação, mas também evidenciam o problema da privacidade e da segurança da informação3. Seu surgimento e expansão estão associados à constituição da Web 2.0: “a segunda geração de serviços na rede, caracterizada por ampliar as formas de produção cooperada e compartilhamento de informações online” (PRIMO, 2007, p. 2). Ela foi criada em 2004 pela empresa americana O'Reilly Media. Engloba inúmeras linguagens e possibilita o compartilhamento e produção de conteúdo entre usuários e desenvolvedores (SANTANDER et al., 2020). Iremos dedicar nossa atenção, neste capítulo, ao site de rede social Facebook. Ele permite que seus usuários postem informações e construam relações com outros usuários com quem geralmente compartilham algum nível de identidade. No Facebook, existem as páginas, os perfis pessoais e os grupos (FACEBOOK, 2020a). As páginas na internet têm, em geral, um caráter profissional ou mesmo comercial, representando, muitas vezes, uma empresa, marca ou produto. Elas permitem o envolvimento com um público amplo e dispõe de recursos para gerenciar, monitorar e controlar a interação com seus usuários. O perfil pessoal permite o compartilhamento de informações, de forma restrita ou indiscriminada, por meio da linha do tempo pessoal (FACEBOOK, 2018; 2020a). O grupo é uma denominação dada pelo Facebook para afiliação de pessoas com interesses em comum que constroem, frequentam ou participam de um determinado ambiente virtual (FACEBOOK, 2020b). Para selecionar os grupos a serem analisados, recorremos à época do levantamento ao Netvizz: uma ferramenta que extraía dados de diferentes seções da plataforma do Facebook (grupos, páginas) para fins de pesquisa (RIEDER, 2013). Ele compilava dados dos grupos gerando uma tabela, que continha os nomes e descrições dos grupos, além da palavra-chave que havia sido escolhida para a busca. Mapeamos no Facebook dois grupos que apresentavam atividades recentes, tinham a palavra hemodiálise em seu nome ou descrição e possuíam um grande número de membros. Assim, foram selecionados, durante o mês de julho de 2016, os grupos “Eu faço 3 Os problemas da privacidade e da segurança da informação na internet são abordados nos capítulos 2 e 10 deste livro. 154 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) hemodiálise Brasil”4 e “Hemodiálise - uma dádiva de vida”5, configurando-se a seguinte tabela: Quadro 1. Comparativo dos dois grupos investigados Grupo Tipo Membros Moderadores Eu faço hemodiálise Brasil Fechado 570 2 Hemodiálise: uma dádiva de vida Público 4.448 1 Fonte: Os autores (2017). O grupo público “Hemodiálise - uma dádiva de vida” se apresentava enquanto um espaço para que os usuários solucionassem suas dúvidas acerca do procedimento da hemodiálise. Em sua página inicial, havia uma grande fotografia, na qual podiam ser identificadas algumas pessoas uniformizadas com roupas brancas, abraçadas formando um semicírculo. No centro havia uma pessoa com uma roupa azul. Podemos intuir que eram profissionais da saúde em torno de um paciente. No segundo plano, ao fundo da foto, podiam ser identificados suportes de soro com frascos pendurados e, mesmo que distante, um leito com uma pessoa deitada. Portanto, podemos deduzir que a fotografia foi feita em um ambiente hospitalar que atende pacientes submetidos à hemodiálise. O grupo fechado “Eu faço hemodiálise Brasil” se identificava como um “grupo montado para tratar de assuntos da insuficiência renal”, com o objetivo de “evitar que mais pessoas cheguem à insuficiência renal”. Ao abrir a página, aparecia uma foto centralizada que continha como logomarca a palavra AMPARUS6, que significa “Associação dos pacientes, receptores, doadores e transplantados de órgãos e tecidos”. Na época em que a pesquisa que serviu de base para este capítulo foi realizada, essa associação tinha um site7, no qual constava o endereço de sua sede física e os dados bancários para que pudessem ser feitas contribuições para a entidade. Foram identificadas diferenças em relação ao número de membros e de moderadores nesses dois grupos. Essas diferenças não serão consideradas em nossa análise. Para realização da pesquisa que se transformou neste capítulo, seguimos as recomendações dispostas em um documento da Associação de Pesquisadores da Internet (Association of Internet Researchers ou AoIR, em inglês) criado para esse fim. Trata-se da segunda versão do documento “Ethical Decision - Making and Internet Research: Recommendations from the AoIR Ethics Working Committee”. Assim, foi garantido o 4 Disponível no momento da pesquisa em: https://www.facebook.com/groups/1489994287957985/?ref=bookmarks 5 Disponível no momento da pesquisa em: https://www.facebook.com/groups/hemodialisevida/ 6 Amparus é uma palavra escrita em latim que significa amparo. Internet e Saúde 155 anonimato dos autores das postagens em ambientes de acesso público ou fechado (MARKHAM; BUCHANAN, 2012). No documento da AoIR, também é destacado que “agregadores de dados e ferramentas de busca tornam a informação acessível para um público mais amplo do que aquele inicialmente pretendido” (MARKHAM; BUCHANAN, 2012, p. 6, tradução nossa). Por essa razão, os conteúdos das postagens foram copiados na forma de texto para que os autores não fossem identificados. Com a letra F, foram referenciados os frequentadores do grupo, seguida de um algarismo arábico. Essa numeração acompanha a ordem em que a pessoa aparece em cada grupo. Com a letra M, foram referenciados os moderadores. Segundo Kozinets (2010), no âmbito das comunidades virtuais, há duas formas que caracterizam a participação dos participantes: os lurkers e os posters. A expressão lurkers refere-se àqueles que exercem pouca ou nenhuma atividade no grupo. Eles se beneficiam ao participar das atividades e acompanhar as postagens do grupo. Já os posters inserem informações frequentemente no grupo e participam dos debates expondo claramente suas posições. Mo e Coulson (2010) estimaram que aproximadamente metade dos usuários de comunidades virtuais fosse composta por posters. Eles podem ser comparados aos formadores de opinião ou aos líderes de um determinado grupo social. Os posters também participam e demonstram engajamento nas atividades do grupo comentando ou reagindo ao que foi postado. O objetivo de nossa análise foi identificar possíveis modelos ou padrões de participação nesses grupos que reúnem pacientes com insuficiência renal crônica. Para tanto, concentramos nossa atenção na atuação dos posters. A construção desses modelos seguiu em linhas gerais a proposta de “tipo ideal” concebida por Weber (1949). Para o teórico, a construção de “tipos ideais” possibilita que o pesquisador racionalize, de forma unívoca, os fenômenos estudados a partir das análises dos comportamentos. Essa categoria analítica não se conforma no ideal explicativo ou perfil de um determinado fenômeno social. Eles são tipos construídos para fins de pesquisa, e só existem no plano das ideias. Isso significa que, após um processo reflexivo, interpretativo e analítico podem ser construídos “tipos ideais” explicativos de determinados fenômenos (ARON, 1999). O “tipo ideal” é um construto teórico que permite operar uma espécie de abstração, convertendo a realidade em objeto construído. Por meio de um processo de categorização, o pesquisador, no desenvolvimento da análise, reúne aspectos essenciais de um determinado comportamento e estabelece modelos ideais e tipologias explicativas para eles. Com isso, o pesquisador pode apresentar uma visão inteligível da realidade estudada (ARON, 1999). Na pesquisa que se transformou neste capítulo, tivemos condições de construir três tipos ideais de posters presentes nos dois grupos on-line de doentes renais crônicos analisados: um tem um caráter acolhedor; outro se preocupa mais com a dimensão clínica da doença; e o terceiro se mostra interessado nos direitos do paciente submetido a terapia 156 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) renal substitutiva. Veremos com mais detalhes as características de cada poster na próxima parte deste capítulo. 3. Resultados 3.1. Poster acolhedor O poster acolhedor é aquele que, sistematicamente, comenta o que outros indivíduos relatam sobre as adversidades que vivenciam no cotidiano da doença e tratamento, particularmente em seu início. Esses posters assumem publicamente uma perspectiva otimista frente à condição de precisar conviver com a doença e se submeter ao tratamento, particularmente à hemodiálise. Eles deixam claro as mudanças que tiveram que vivenciar para encontrar outro sentido para vida. Um deles afirma: Nesses 4 anos de tratamento que já fiz, muitas coisas aconteceram e assim como aprendi muitas coisas também. [...] Não me arrependo de ter aceitado esse tratamento. Pelo contrário, hoje eu vejo que com ele eu pude aprender coisas novas, ver o outro lado da vida, ver que nem tudo é fácil. Aprendi que temos que sempre ter esperança e fé, porque assim você consegue chegar em qualquer lugar. E assim vou vivendo, fazendo meu tratamento, ajudando aquelas pessoas que precisam, aconselhando elas, que hemodiálise não é o fim, e sim uma oportunidade de você viver mais... Para e pense antes de falar que vc não consegue! Todos nós conseguimos. Só basta ter fé e esperança. (F85). (Grifos nossos). Quando esse poster admite “ver o outro lado da vida”, deixa transparecer os processos pelos quais passou até conseguir aceitar as limitações impostas pela doença e o tratamento. Para ver esse “outro lado”, a dimensão temporal dada por ele é oferecida com o uso da expressão “ter aceitado esse tratamento”. Ele sugere o intervalo de tempo entre a pessoa aceitar sua condição, submeter-se a essa nova rotina e se familiarizar com o tratamento, particularmente a hemodiálise, percebendo-a como “uma oportunidade de viver mais”. Um período que já dura quatro anos, conforme indicado pelo participante. Ao final, o poster proclama palavras de esperança: “Todos nós conseguimos”. Observamos que os posters acolhedores aparecem quando alguma postagem menciona uma dificuldade ou adversidade vivida por um membro do grupo que inicia o tratamento. O caso de uma filha de um portador de doença renal crônica pode servir de exemplo. Ela admitiu não saber lidar com os níveis de pressão arterial de seu pai e pergunta ao Internet e Saúde 157 grupo se alguém já vivenciou uma situação semelhante à sua. Essa filha-cuidadora de paciente renal crônico era uma nova integrante do grupo: uma pessoa que tinha um familiar diagnosticado com doença renal crônica que iniciou o tratamento de hemodiálise. Inexperiente e insegura com a nova condição de vida do pai, buscou um apoio entre seus pares. Ela declarou não “aceitar fazer a hemodiálise”. Concluiu sua postagem afirmando: “Sinto muito medo mesmo” (F22). O post da filha-cuidadora recebeu dezoito curtidas e vinte e um comentários. Um poster acolhedor reagiu, nesse caso, da seguinte forma: Boa noite amiga, O que tenho a te dizer é que não apavora não. [...] quando foi para eu fazer [hemodiálise] eu fiquei assim, chorei na máquina as quatro horas mas logo comecei a me concientizar que a máquina é um bem que temos e que só nos faz bem. [...] Antes da hemodiálise nem vontade de comer eu tinha. Depois melhorei muito. [...] Voce verá q a vida não acaba com a hemodiálise...ela só se transforma. Cabe a cada um nós escolher a se lamentar ou lutar para continuar a viver bem. (F90). O poster acolhedor revelou, nesse momento, compaixão com o sofrimento que outro indivíduo descreve. Ele, ao mesmo tempo, expôs sua opinião e apresentoua suas recomendações quanto à melhor maneira para superar as adversidades mencionadas. A postagem acima reforça a interface acolhedora desse tipo ideal de poster. Graças a ele, a pessoa emocionalmente abalada diante da doença - suas limitações e o tratamento - teve suas demandas acolhidas por outra pessoa que já havia enfrentado as mesmas adversidades. Elas conversam de forma horizontal sobre suas necessidades de saúde. Os posters acolhedores descrevem como enfrentaram os problemas que o novo participante apresenta. Seus posts apresentam soluções de forma empática, embasados nos processos que os renais crônicos mais experientes já viveram As postagens motivadoras tentam influenciar os novos pacientes a acreditar que é possivel viver bem, apesar do tratamento hemodialítico. Seguindo a mesma lógica, outro poster acolhedor concluiu sua postagem com as seguintes palavras de estímulo: “A máquina não é sua inimiga. É ela que vai te ajudar a viver. Força guerreira!” (F23). De acordo com a Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN) (SBN, 2013), dependendo da situação do paciente, a hemodiálise pode ser feita de 2 a 4vezes por semana, ou até mesmo diariamente, com duração de 3 a 5 horas por sessão. A adesão ao tratamento é fundamental para aumentar a sobrevida, reduzir a morbidade e melhorar a qualidade de vida. Porém, o indivíduo pode ter dificuldade ou não se sentir disposto a fazê-lo (LINS et al., 2018). Em um estudo com pacientes renais crônicos, Lins et al. (2018, p. 56) identificaram que “em relação à ingesta hídrica e à dieta, 49,8% e 53,9% dos pacientes relataram um nível de dificuldade que variou do moderado ao extremo para cumprimento das recomendações prescritas”.. 158 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Neste sentido, este capítulo retoma a questão proposta por Fox, Ward e O'Rourke (2005, p. 1299, tradução nossa): “pacientes ‘informados’ ou ‘expert’ desafiam tradições dominantes na biomedicina ou simplesmente as adotam como modos convencionais de pensar formato e tamanho do corpo, doença e saúde?” As palavras de estímulo à prática da hemodiálise podem ser entendidas como facilitadoras à submissão à orientação biomédica e podem exercer papel inibidor na evasão do tratamento. Nos grupos analisados, isso foi possivel porque os participantes tinham a possibilidade de interagir com a perspectiva de outras pessoas que viviam a mesma condição de saúde e enfrentavam as mesmas restrições impostas pela doença e tratamento. São ambientes nos quais doentes renais, profissionais e cuidadores possuem liberdade para descrever suas experiências sem que haja necessariamente uma reação preconceituosa ou negativa. São relatos compartilhados, sobretudo, entre pares. Seguindo a perspectiva interacionista (CARVALHO et al., 2010), podemos concluir que o poster acolhedor realiza uma postagem em que se coloca no lugar do outro. Ele já sentiu uma dor parecida. Ele também já teve uma experiência pregressa semelhante (CHARON, 2010). Então, quando se identifica com o sofrimento da outra pessoa, o poster acolhedor busca se por no lugar dela, e seu post visa amenizar a dor percebida. O apoio recíproco foi o fio condutor do poster acolhedor. Sua orientação obedece aos parâmetros biomédicos e, nesse sentido, pode contribuir para a adesão ao tratamento. Outra característica do poster acolhedor merece destaque: a fé. Diante das limitações impostas pelo tratamento e a doença, Schwartz e colaboradores (2009) evidenciaram que muitas vezes os doentes, cuidadores e pacientes recorrem à fé. Segundo estes autores: [...] A fé é uma ferramenta que auxilia no tratamento e, também, funciona como mola propulsora, dando forças para seguir em frente e trazendo a esperança de um amanhã melhor. (SCHWARTZ et al. 2009, p. 200). Em nossa pesquisa, um poster acolhedor se posicionou da seguinte forma: [...] E assim vou vivendo: fazendo meu tratamento, ajudando aquelas pessoas que precisam, aconselhando que hemodiálise não é o fim. Ela é uma oportunidade de você viver mais... Para e pense antes de falar que vc não consegue. Todos nós conseguimos. E só basta ter fé e esperança. (F85). Nessa perspectiva, é possível notar que pacientes renais crônicos recorrem a forças espirituais para lidar com as dificuldades e desafios impostos pela condição crônica que possuem, auxiliando-os inclusive a aderir ao tratamento. A busca por forças espirituais talvez esteja associada com alto índice de mortalidade da doença renal. Internet e Saúde 159 Silva e colaboradores (2012) concluíram que um terço dos pacientes portadores de doença renal crônica associada com hipertensão e diabetes que iniciam a terapia renal substitutiva de forma não planejada morrem no período entre a admissão hospitalar e a transferência para clínicas de hemodiálise. No Brasil a expectativa de vida dos doentes renais crônicos é menor que a da população geral. Esse fenômeno pode explicado pela redução da função cardiovascular, complicações no tratamento e comorbidades crônicas (SCHNEIDER, 2020; SIVIERO et al., 2014). O transplante renal desempenha um papel importante para a redução de tais índices. Entretanto, a taxa de mortalidade bruta entre pacientes renais crônicos ainda atinge um percentual de 19,5%, sendo que fatores cardiovasculares são a principal causa de morte (NEVES et al., 2020; STORINO et al., 2015). A revisão sistemática realizada por Murray e colaboradores (2005) revelou que a simples identificação, em redes de discussão on-line, de casos ou sintomas vivenciados por pacientes com problemas semelhantes pode oferecer melhorias na saúde e promover maior autonomia ao paciente. Nessa linha de argumentação, Moretti e Barsottini (2017) observaram que a participação em redes sociais pode melhorar o convívio social do doente e reduzir a desesperança. O que queremos apresentar neste capítulo é que existem três tipos ideais de posters. Eles revelam, a nosso ver, três maneiras de diferentes de ser expert patient. Três maneiras diferentes de revelar empoderamento. Esse primeiro tipo ideal de poster tem um caráter acolhedor. Só quem se submete a terapia renal substitutiva sabe o quanto dói, física e psicologicamente, receber o diagnóstico da doença renal crônica e iniciar o tratamento. O profissional de saúde não tem essa mesma vivência. Por mais que estude e se especialize nessa doença, ele não a sente nem convive com as limitações que ela impõe a seu corpo. O poster acolhedor não. Ele passou por essa provação. O início da terapia renal substitutiva pode ser visto como uma situação muito difícil e sofrida, que testa a capacidade de superação de um indivíduo e sua vontade de continuar a viver. Nesse momento, a palavra do poster acolhedor exerce uma função decisiva. Ela anima os participantes desmotivados e, com seu próprio testemunho, encoraja seu amigo virtual para a vida. O poster acolhedor é um paciente informado com caráter mais psicológico, que destaca a importância da submissão à hemodiálise – procedimento considerado ideal pela biomedicina atualmente. Ele é empoderado de emoções e sentimentos de quem, como ele, passou por situações existencialmente difíceis. No poster clínico, o paciente informado cumpre outro papel. 160 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) 3.2 Poster clínico O poster clínico é aquele que insere informações no grupo do Facebook sobre questões que envolvem diferentes dimensões terapêuticas do tratamento do renal crônico. Tratam-se de informações mais detalhadas sobre a terapia renal substitutiva que ele divulga por estar submetido ao tratamento, à dieta e às medicações há mais tempo do que aqueles que demandam informações e esclarecimentos. Esse tipo de poster detém um conhecimento derivado da experiência de viver com a doença e lidar com com as inúmeras limitações inerentes ao tratamento e tudo que ele envolve em relação a seu corpo e comportamento social. Trata-se, portanto, de alguém que tem um “experiential learning”. O “experiential learning” (KOLB, 2014, p. xvi) é um processo de aprendizagem fruto de uma experiência concreta e da reflexão que, em geral, ocorre ao longo de uma determinada atividade. Ele difere do conhecimento tradicional em que o aprendiz desempenha um papel relativamente passivo no processo ensino-aprendizagem. No “experiential learning” o educando assume um papel proeminente. Kolb (2014) reconhece o papel que a emoção e os sentimentos, derivados do aprendizado com a experiência, têm nesse processo. A seu ver, o engajamento direto do indivíduo na prática e sua posterior reflexão, utilizando ferramentas analíticas, permitem que o aprendiz compreenda melhor o ocorrido e retenha a informação por um tempo maior. Assim, ele é capaz tambem de transmitir esse conhecimento. O perfil de poster clínico se aproxima, em larga medida, de alguém que exerce “experiential learning” (KOLB, 2014, p. xvi). Ele responde aos participantes que aparentemente acabaram de iniciar o tratamento e estão ávidos por informações e esclarecimentos sobre a hemodiálise e outros temas e problemas que surgem durante a terapia renal substitutiva. Por essa razão, comenta perguntas edúvidas, além compartilhar suas experiências com os membros dos grupos do Facebook investigados. O poster clínico responde às demandas de seus colegas. Trata-se de um expert patient. Ou seja, pessoas “especialistas em manejar sua doença, e isso pode ser utilizado para encorajar outros a se tornarem tomadores de decisão chaves no processo de tratamento” (TATTERSALL, 2002, p. 227, tradução nossa). Na mesma linha de argumentação, Cordier (2014) afirma que: Expert patients devem ser capazes de ajudar outros pacientes a autogestionar e trabalhar com os médicos para garantir o desenvolvimento de cuidados abrangentes e gerenciamento de doenças [...]. Expert patients não podem desempenhar um papel solitário, mas devem desenvolver uma abordagem de equipe especializada para doenças crônicas. Expert patients têm a oportunidade única de esclarecer os valores e as prioridades dos pacientes, que por sua vez podem informar melhor a tomada de decisões clínicas. (CORDIER, 2014, p. 854). Internet e Saúde 161 Como descreve Pereira Neto e colaboradores (2015), o expert patient é o indivíduo que busca informações e conhecimentos para a resolução de suas necessidades de saúde. Esse tipo de paciente está atrelado aos processos de empoderamento, pois as vivências e experiências com o tratamento com a patologia permitem também que o indivíduo desfrute de um campo maior de escolhas sobre sua condição de saúde. Novamente, destacamos que este capítulo retoma a questão presente no estudo de Fox, Ward e O'Rourke (2005) acerca do papel do expert patient na contestação ou manutenção da ordem biomédica. Para respondê-la, veremos como as demandas são apresentadas e respondidas pelo poster clínico. Uma das passagens encontradas em nossa investigação refere-se a uma recomendação feita por dois posters clínicos a outra pessoa, possivelmente menos versada em lidar com a hemodiálise. Um indicou: “Leve uma roupa a mais... Eu vomitei muito... mas logo passa” (F12). Outro sugeriu: “Sempre que for beber água e outros [líquidos] nunca encha o copo. Coloque sempre uns dois dedos somente. Beba isso. Assim se controla melhor. Comigo, pelo menos, deu certo” (F19). O vômito é uma complicação recorrente em pessoas submetidas a hemodiálise. Os doentes renais crônicos devem se submeter a uma severa restrição na ingesta hídrica, pois o rim não possui mais a mesma capacidade de filtração (DEUS et al., 2015). Essas postagems ilustram a forma que os posters clínicos agem em relação às demandas dos frequentadores dos grupos. Percebemos que essas recomendações baseiamse nas experiências pessoais do paciente ao longo de seu tratamento. Uma iniciativa que, com ele, “pelo menos, deu certo”. Só alguém que se submete à terapia renal substitutiva têm a competência para dar tais orientações. Trata-se de um conhecimento derivado da própria experiência, que pode favorecer um melhor enfrentamento para pacientes que estão iniciando o tratamento. O conhecimento derivado da experiência parece ter credibilidade entre os aqueles que iniciam o tratamento. Um dos participantes afirmou: “muito obrigada por me responder. Tudo é muito válido. Como nós estamos em fase de adaptação precisamos de informações. Deus abençoe” (F12). A adesão do poster clínico ao tratamento biomédico é tão grande que ele se sente capaz de convencer os outros sobre o êxito da hemodiálise para a qualidade de vida dos doentes renais, no sentido de diminuir os sinais e sintomas debilitantes que decorrem da insuficiência renal crônica. Um deles chegou a enaltecer a existência da hemodiálise, afirmando: “O homem teve sabedoria para criar uma máquina que nos dá um pouco mais de qualidade de vida e que nos ajuda a nos sentirmos um pouco melhor. Imagina há tantos anos atrás [sic] quando as pessoas não tinham acesso ao que temos hoje?!” (F112). As primeiras máquinas para realização de hemodiálise foram testadas em seres humanos por volta da década de 1940. O primeiro registro do procedimento data de 1945. 162 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Entretanto, até o êxito no tratamento, foram inúmeras tentativas. Hoje, com os avanços tecnológicos na fabricação das máquinas de hemodiálise e, principalmente, com o desenvolvimento de técnicas cirúrgicas de acesso vascular, milhares de pessoas se beneficiam da terapia renal substitutiva (XAVIER; OLIVEIRA; BRASILEIRO, 2012). O poster clínico, na maioria das vezes, não é profissional da saúde. Entretanto, ele tem a capacidade de traduzir o conhecimento médico de uma forma simples e compreensível para o usuário. O que tivemos condições de perceber, respondendo a indagação de Fox, Ward e O'Rourke (2005), é que as formas convencionais de tratamento são fielmente reproduzidas por ele. Sua adesão é tamanha que o poster clínico chega a estimular a prática da hemodiálise para os novos pacientes. Ele também sabe como deve ser o procedimento no momento da hemodiálise. Um deles explicou esse processo da seguinte forma: A partir do momento que o sangue sai do corpo ele [o sangue] tenta coagular. Por isso se usa a heparina8. Quanto mais concentrado ele estiver, mais depressa coagulará (Hematócrito9 muito alto). Os médicos e enfermeiros devem atualizar sua dose de heparina e o uso de um anticoagulante oral. (F20). A passagem acima revela que o poster clínico domina os procedimentos relacionados com a hemodiálise. Ele é alguém familiarizado também com a terminologia científica, e pode dizer como os profissionais de saúde devem proceder. Assim, é possível que ele estabeleça uma relação mais horizontal com o médico e com os demais profissionais. Tradicionalmente essa relação esteve baseada no conhecimento do profissional e na ignorância do paciente. Este se submetendo à autoridade daquele. Ao analisar esses diálogos sob a ótica interacionista (CARVALHO et al., 2010), observamos que, mesmo na comunicação mediada por computador, na qual a linguagem se sobressai como subsídio para a compreensão da perspectiva do outro, as pessoas se fazem compreender afirmando que têm certeza sobre o que estão opinando (CHARON, 2010). O tom do aconselhamento assume, muitas vezes, um caráter impositivo. Um deles afirmou: “Você deve controlar seu peso seco. Só assim você vai melhorar” (F155) (Grifo nosso). Esse argumento de autoridade pode ser percebido pela utilização de termos como “só assim” e “tem que”. Mesmo sendo em forma de escrita, é possível compreender o tom imperativo que os posters clínicos querem dar às suas falas. Essas postagens podem ser consideradas um argumento de autoridade. Em geral, essa expressão refere-se à apresentação de um argumento sustentado pela citação de uma fonte confiável, que pode ser um especialista, um líder, um político, um artista ou um pensador – enfim, uma 8 Heparina é o anticoagulante mais utilizado no Brasil. Ele é indicado para evitar a coagulação do sangue e a formação de trombos que podem obstruir a passagem do sangue ou formar êmbolos que podem parar nos pulmões, levando a pessoa a óbito. 9 Hematócrito é o exame que mede o percentual de hemácias no sangue. Internet e Saúde 163 autoridade no assunto abordado. No caso mencionado acima, o poster clínico confere autoridade a seu argumento baseando-se na experiência que tem sobre a hemodiálise e o tratamento de renais crônicos. De certa forma, ele reproduz o argumento de autoridade próprio do médico quando aconselha o tratamento a um paciente. Assim, apesar do poster clínico procurar estabelecer uma relação menos assimétrica com o profissional de saúde, a centralidade do médico e da medicina10 no tratamento do renal crônico parece evidente em seu discurso. Isso pode ser observado na seguinte postagem: “[...] alguém já esteve com o peito chiando congestionado e com uma tosse terrível? Qual descongestionante podemos tomar? Alguém tem uma ideia boa? [...] Vou ver com o médico hoje, mas é sempre bom trocar ideias” (F209). Araujo (2013), ao analisar os encontros entre médicos e pacientes em enfermarias hospitalares, concluiu que a passividade dos indivíduos frente ao discurso médico é resultado de uma construção social sobre a supremacia do seu conhecimento. Esse fato também pode ser observado em alguns diálogos e recomendações proferidas nos grupos online analisados. Neles, a centralidade do poder biomédico também pode ser percebida. Um deles recomendou: “Você deve perguntar ao seu médico: pode ser excesso de líquido” (F204). Esse segundo tipo ideal de poster tem um caráter clínico. Quem se submete a terapia renal crônica sabe como devem ser manejados os seus dispositivos. Sabe como medir a quantidade de água no copo para que o paciente não passe mal. Ele já tomou água demais. Já inseriram a cânula nele e ele sentiu dor. O profissional de saúde não tem essa mesma vivência. Ele não teve cânulas inseridas em seu corpo nem sabe medir a melhor quantidade de água a ser ingerida. Esses são conhecimentos derivados da experiência prática, que diferenciam o poster clínico dos demais pacientes renais crônicos e dos profissionais de saúde, inclusive os médicos. Por mais que sua orientação seja biomédica, ele tem a capacidade de traduzir o conhecimento exotérico científico de uma forma simples e compreensível para o usuário. Ele é empoderado de conhecimentos derivados da experiência de viver com a doença e se submeter ao tratamento. Com o poster cidadão, que analisaremos a seguir, o expert patient se apresenta de forma diferente. 3.3. Poster cidadão No Brasil, os cidadãos dependentes de terapia renal substitutiva têm uma série de direitos civis garantidos por lei. Esses direitos estão associados à elevada letalidade da 10 O capítulo 13 aborda a questão da Internet e medicamentos. 164 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) insuficiência renal crônica terminal (IRCT), apesar dos tratamentos disponíveis (NEVES et al., 2020). O doente renal crônico tem garantido por lei o auxílio-doença, a aposentadoria por invalidez (sem exigência de carência) e isenção de pagamento de muitos os impostos, inclusive o Imposto de Renda11 (BRASIL, 2015). Além desses direitos civis, conquistados ao longo do tempo, as políticas públicas de saúde para o paciente submetido à Terapia Renal Substitutiva merecem destaque. Em primeiro lugar, cabe lembrar que a Constituição Federal vigente determina que: A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. (BRASIL, 1988). Em relação ao paciente renal crônico, o Sistema Único de Saúde (SUS) oferece de forma gratuita e universal as diferentes modalidades de terapia renal substitutiva, a saber: diálise peritoneal, hemodiálise e transplante (BRASIL, 2004). Qual é o universo de pessoas submetidas à terapia renal substitutiva no Brasil? No Brasil, foi estimado em 2018 que 133.464 pessoas estavam submetidas à diálise, sendo que a taxa de prevalência de pacientes em tratamento dialítico era de 640 por milhão da população (pmp) (NEVES et al., 2020). Segundo a European Renal Association – European Dialysis and Transplant Association, a taxa de prevalência de terapia renal substitutiva na Europa era de 823 pmp em 2016 (KRAMER et al., 2019). Na América Latina, tal taxa apresentou um aumento nas últimas décadas, e há uma grande variação nesse índice conforme o país analisado (GONZALEZ-BEDAT et al, 2020) taxa. Este alto índice de prevalência cria uma demanda que o Sistema Único de Saúde tem o dever de absorver para atender aos direitos dos doentes renais e fazer com que as políticas de saúde prestem assistência integral. Além disso, no contexto dos direitos dos usuários do SUS, a Constituição do país defende formalmente que haja a participação da comunidade. O controle social é uma das bases conceituais do Sistema Único de Saúde. Com base nela, diferentes instâncias de representação política da sociedade foram construídas, amparadas por dispositivos legais. O controle social facilita e incentiva ações de advocacy, que podem incluir campanhas por meio da imprensa, a realização de eventos públicos e atividades de pressão sobre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário (STAFFORD; MITCHELL, 2009). Assim, advocacy tem um significado mais amplo, incluindo () iniciativas de incidência ou pressão política e de promoção e defesa de uma causa ou interesse. Inclui também articulações 11 O Projeto de Lei nº 155/15 estendeu ao paciente renal crônico os mesmos direitos legais das pessoas com deficiência, inclusive para fim de aposentadoria, cf. Lei n° 13.146, de 2015. Internet e Saúde 165 mobilizadas por organizações da sociedade civil com o objetivo de dar maior visibilidade a determinadas temáticas ou questões no debate público e influenciar políticas visando à transformação da sociedade (LIBARDONI, 2000). O poster cidadão é aquele que conhece os direitos civis e as políticas de saúde que afetam os doentes renais crônicos. Ele se faz presente de diferentes formas. Muitas vezes, ele é esclarecedor. Alguns pacientes renais crônicos desconhecem seus direitos ou não sabem que procedimentos burocráticos devem adotar para desfrutar dessas prerrogativas legais. Uma das solicitações mais comuns nesses ambientes virtuais refere-se à seguridade social. Um paciente em terapia renal substitutiva que recebe o auxílio-doença perguntou o que deveria ser feito para conseguir o Programa de Integração Social12 (PIS) da seguinte maneira: “Estou recebendo auxílio-doença. Eu não recebo o PIS. Alguém já recebeu? Aqui conheço pessoas que já... Quem recebeu? Como fez para dar entrada?” (F19). O poster cidadão ciente da legislação relacionada à concessão do PIS afirmou: Comecei a receber o auxílio [doença] em maio do ano passado. No mês de março recebi [o PIS]. Mas por quê? Em 2015 contribui até fevereiro. Quem não trabalhou pelo menos um mês ano passado não recebe. Não precisa dar entrada. [A contribuição] cai automaticamente na conta. Pra ter direito [ao PIS] tem que ter trabalhado 30 dias no ano de 2015. Isso porque o PIS é referente ao ano passado. Ano que vem já não recebo mais. (F26). Os esclarecimentos do poster cidadão acompanham a legislação existente. Foi um post feito por alguém que estava atualizado em relação ao universo jurídico-político em que se encontram os direitos dos cidadãos submetidos à terapia renal substitutiva, particularmente sobre a concessão do PIS. Essas informações devem ter sido úteis para o participante que fez a pergunta. O poster cidadão também exerce o papel de fiscalização e de mobilização social. Em um dos grupos analisados, foi apresentada a seguinte denúncia: “Bom Dia. Se puderem assistir e ajudar, agradeço. Os pacientes de hemodiálise não merecem ser tratados dessa forma” (F2). Em seguida pode ser encontrado um print do vídeo disponibilizado no YouTube13 com o título: “Prefeitura de Amélia Rodrigues não faz manutenção devida ao carro de pacientes de hemodiálise. Um absurdo o descaso com os pacientes” (F2). As imagens mostravam uma caminhonete com os pacientes sentados esperando que o transporte os leve até a cidade mais próxima para realizar a hemodiálise. Esse vídeo foi feito pelos próprios usuários. A primeira imagem mostrava o pneu rasgado de uma O “Programa de Integração Social” (PIS) está voltado para funcionários de empresas privadas. Trata-se de uma contribuição social de natureza tributária, paga por pessoa jurídica, com objetivo de financiar o segurodesemprego, abono e participação dos trabalhadores na receita das empresas em que atuem. 13 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7tqApuvexhU 12 166 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) caminhonete. Um homem que segurava o pneu e mostrava o rasgo afirma: “Por pouco não mata todo mundo. Se não fosse o motorista que vinha devagar, ia acontecer um bocado de acidentes”. Em seguida, uma senhora revelou que, embora o encarregado tenha advertido sobre o estado do pneu, o motorista foi assim mesmo. E concluiu afirmando: “Pronto. Falei tá falado!”, O mesmo homem complementou o que a senhora denunciou, afirmando: “Tá denunciado! Ministério Público nele!”. Por fim o produtor do filme faz um close, ocupando a tela toda, na qual pode ser lida a inscrição: “Prefeitura de Amélia Rodrigues. Uma cidade de todos”. Esse não foi o único post sobre a precariedade do transporte de pacientes submetido à terapia renal substitutiva. Cabe salientar que muitas denúncias são acompanhadas de fotos e vídeos, graças aos recursos disponibilizados nos smartphones. Amélia Rodrigues é um município brasileiro no interior do estado da Bahia com pouco mais de 20 mil habitantes. Os pacientes renais crônicos dessa cidade vivem uma realidade semelhante à de pacientes que residem em inúmeros municípios de pequeno porte do país. Os serviços de hemodiálise não constam na estrutura de serviços de saúde do município. Por essa razão, eles devem ser transportados para outro município próximo. Nesse caso, podemos supor que os pacientes estivessem sendo transportados para Feira de Santana: um município com 600 mil habitantes, localizado a 30 quilômetros de Amélia Rodrigues. Ao receberem esse vídeo disponível no Youtube, os membros do grupo que concordavam com seu teor podiam compartilhá-lo com outras pessoas, as quais por sua vez podiam compartilhar com outras, em uma escalada sem fim. Nessa perspectiva, reiteramos a visão de Belfort e Sena (2015, p. 33) quando afirmam que “a cidadania pede uma maior participação e cobrança e esta pode ser exercida online [...]”. Cabe salientar que o serviço de terapia renal substitutiva, assim como os demais serviços de assistência oferecidos pelo Sistema Único de Saúde, encontra-se atualmente em crise financeira. Nos grupos analisados, as denúncias sobre o sucateamento do serviço público voltado para a terapia renal substitutiva não se limitaram à questão do transporte, como pode ser observado na publicação que se segue: Estamos vivendo um verdadeiro colapso nas clínicas de hemodiálise. Se as autoridades responsáveis pela SAÚDE14 pública não tomarem providencias URGENTES em relação ao repasse de dinheiro para as clínicas, a vida renal será extinta em aproximadamente um ano. (F104). Na postagem, constava a imagem de um laço, semelhante àquele presente na campanha da AIDS, que sugere a solidariedade com os doentes e comprometimento com preservação do tratamento público, gratuito e de qualidade. No caso dos renais crônicos, o 14 Mantivemos a grafia original em caixa alta quando foi o caso. Internet e Saúde 167 verde substitui o vermelho da campanha da AIDS. Nesse post, o laço verde foi acompanhado o laço preto - uma menção explícita à morte anunciada. No Brasil, o Ministério da Saúde é responsável por 85% dos pacientes em Terapia Renal Substitutiva (BRASIL, 2018). Um estudo observacional realizado em 2014 por Gouveia e colaboradores (2017) na cidade de Curitiba, no estado do Paraná, concluiu que: O menor custo de um transplante renal no primeiro ano foi de R$ 40.743,03, quando utilizada a ciclosporina, e o maior de R$ 48.388,17, com a utilização do tacrolimo. Já no segundo ano pós-transplante, a hemodiálise e a diálise peritoneal têm valor superior ao transplante renal. Transplante com doador falecido, com tacrolimo: R$ 67.023,39; hemodiálise R$ 71.717,51 e diálise peritoneal automática R$ 69.527,03. (GOUVEIA et al., 2017, p. 162). Trata-se, portanto, de um tratamento oneroso. No Brasil tal tratamento deve ser oferecido de forma gratuita pelo Sistema Único de Saúde. Ele pode ser encontrado em instituições públicas (federais, estaduais e municipais) e privadas. No segundo caso, o tratamento é subsidiado pelo orçamento governamental. O terceiro tipo ideal de poster aqui descrito tem, portanto, um caráter cidadão. O paciente renal crônico quer conhecer seus direitos que têm enquanto portador dessa doença. As limitações engendradas por essa condição impõem o pleno exercício das garantias civis previstas constitucionalmente. Nesses termos, esse expert patient exerce papeis diferentes e complementares. Ele orienta os demais integrantes da comunidade virtual sobre como obter seus direitos e denuncia quando não são cumpridos. Ele sabe que as dificuldades no acesso aos serviços de saúde ou tratamento poderão levar muitos pacientes renais crônicos a óbito. Poucos têm condições financeiras de custear esse tratamento por conta própria. O poster cidadão é um expert patient com consciência política. A nosso ver, os pacientes que sofrem as consequências do atendimento precário revelam maior engajamento na denúncia desses problemas e no processo de luta por seus direitos do que as pessoas que estudam e se especializam nesse tema. O sentimento de pertencimento faz com que as palavras do poster cidadão deixem de ser apenas dele. Ele acredita que não esteja falando por si, mas por um grupo. Suas palavras traduzem valores e aspirações de uma coletividade, demonstrando um empoderamento na dimensão coletiva. Ele é empoderado de informações e de consciência política, derivada da luta diária para garantir não apenas um serviço de assistência de qualidade, mas também a preservação dos direitos civis dos pacientes submetidos à terapia renal substitutiva. 4. Considerações finais 168 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) A busca por informações sobre saúde, a configuração de redes de apoio e a luta pelo reconhecimento de direitos civis de pacientes renais crônicos não se iniciou com a internet. Afinal, até pouco tempo, o indivíduo discutia suas dúvidas com um amigo, parente ou alguém que conhecesse. Ele buscava consolo com outro portador de doença renal crônica sobre as angústias relacionadas à terapia renal substitutiva. Ele precisava procurar o auxílio de advogados se quisesse se informar ou reivindicar algum de seus direitos enquanto paciente. Agora, com a internet, tudo isso ficou mais fácil e rápido. O indivíduo que tem acesso à rede e possui competência para manusear essa ferramenta, tem condições de obter uma vasta quantidade de conteúdo informativo. Sem sair de casa, ele pode consultar em qualquer horário, à distância de um clique, inúmeras fontes de informação, com conteúdos atualizados e disponibilizados em diferentes idiomas e formatos, que podem apresentar diferentes perspectivas e opiniões sobre um mesmo tópico (RIGGARE et al., 2017). Nas redes sociais digitais, o indivíduo pode compartilhar ideias, conhecimentos e apreensões com pessoas que vivem o mesmo problema. Com a internet, a pesquisa sobre informações sobre saúde se deslocou de uma prática excepcional para outra que habita a ordem do dia (HOLMES; BISHOP; CALMAN, 2017). Feenberg et al. (1996), em um dos estudos pioneiros sobre grupos on-line de apoio, sugerem que esses ambientes virtuais poderiam representar uma nova forma de empoderamento de pacientes. Segundo os autores, “as aplicações mais amplas desses encontros on-line de pacientes estão relacionadas ao seu potencial para transformar a acessibilidade, a escala e a velocidade da interação de grupos de pacientes” (FEENBERG et al. 1996, p. 130, tradução nossa). Na perspectiva de Feenberg et al. (1996), os grupos de apoio formados por meio das redes virtuais permitiriam que centenas ou milhares de pessoas pudessem se aproximar e compartilhar pontos de vista que apresentam uma credibilidade considerada semelhante a de um médico. Os autores advertem: Grupos com centenas, até mesmo milhares de membros podem se formar de modo rápido e barato e apresentar perspectivas que têm credibilidade como representativas. É possível que estejamos testemunhando o início de uma nova forma de empoderamento de pacientes. (FEENBERG et al., 1996, p. 131, tradução nossa). Nesse contexto, alguns estudos sobre internet e saúde têm discutido as características do expert patient. Por um lado, tal paciente tem sido visto como um indivíduo confiante, que possui as habilidades, informações e conhecimentos necessários para desempenhar um papel central no manejo de sua condição de saúde. Nesses termos, ele é visto como um paciente que, em certa medida, desafia a autoridade médica (PETRAKAKI; HILBERG; WARING, 2018). Entretanto, há pesquisadores que atentam para o processo de continuidade presente no empoderamento do expert patient. McAllister Internet e Saúde 169 et al. (2012), por exemplo, apontam que o empoderamento do paciente não se apresenta como uma subversão à ordem biomédica, uma vez que, a ele, é associada a ideia de adesão: o indivíduo tende a concordar voluntariamente com propostas de cuidado propostas pela medicina - possivelmente formuladas de modo compartilhado. A questão do empoderamento do expert patient e a ordem biomédica também foi discutida por Fox, Ward e O'Rourke (2005). Em seu artigo, os pesquisadores analisaram se o expert patient desafiaria as tradições biomédicas ou se as adotaria enquanto um modelo convencional ao pensar o corpo, a saúde e a doença. Os pesquisadores concluíram que a participação em ambientes virtuais contribui para que os participantes se transformem em expert patients a partir do paradigma biomédico. Neste capítulo, estivemos mais preocupados com os tipos ideais de intervenção em dois grupos on-line sobre doença renal crônica que reúnem pessoas interessadas no tema, sejam elas pacientes, cuidadores ou familiares. Os três “tipos ideais” identificados na pesquisa que se transformou neste capítulo gravitam em torno da autoridade da biomedicina e do profissional médico. O poster acolhedor encoraja os novos integrantes baseando-se na ideia de que as terapias renais substitutivas representam o prolongamento da vida. Em última instância, ele reitera a terapêutica biomédica. Ao acolher o sofrimento e a angústia dos doentes e de seus familiares, o poster acolhedor desempenha um papel que o médico e a medicina têm deixado de exercer: acolher, ouvir e confortar. Ele estabelece com o outro uma relação horizontal pautada na confiança e na solidariedade. Esse um lugar que ele pode ocupar. O fato de ter vivido o que o outro viveu confere ao poster acolhedor uma legitimidade junto a seus pares. Ele se torna um expert patient singular, compartilhando a dor que já sentiu com quem está sentindo. O poster acolhedor se transforma em um ator central no processo inicial de adesão às terapias renais substitutivas. O poster clínico parece estar, igualmente, sob a órbita da biomedicina. Entretanto, ele não se sujeita docilmente à autoridade profissional do médico. O conhecimento que conquista com a prática diária do tratamento, as buscas na internet e os compartilhamentos nas mídias digitais fazem com que ele se aproxime do típico expert patient. No início dos anos 2000, Tattersall (2002, p. 227, tradução nossa) já havia salientado que o expert patient seria “uma nova abordagem para o manejo da doença crônica no século XXI”. Em 2002, essas ideias eram relativamente novas. Nosso trabalho confirmou esse ponto de vista. Desde aquela época, Tattersall (2002) admitia ser necessária uma mudança cultural na maneira com que os profissionais de saúde lidam com o expert patient. Sua perspectiva propunha a horizontalidade na relação: primado pouco incentivado nas escolas formadoras de médicos no Brasil e em muitas partes do mundo. Em 2004, Shaw e Baker (2004) questionavam se o expert patient seria um sonho ou um pesadelo. Nosso capítulo revelou que, hoje em dia, ele é cada vez mais uma realidade. 170 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) O terceiro tipo ideal de poster foge aos padrões da biomedicina e não afeta necessariamente a relação médico-paciente. Trata-se do poster que tem consciência dos seus direitos, denuncia as irregularidades e orienta seus pares, convocando-os para a ação. Mobilizador. Engajado. O poster cidadão cumpre um papel que o médico tradicional está longe de exercer. Sua ação extrapola o cuidado clínico e a autogestão da doença. Ele dedica sua atenção para a dimensão cívica em que se encontram os portadores de uma doença crônica. A terapia renal substitutiva não implica apenas a adoção de uma rotina de autocuidado, mas também impõe uma série de mudanças e limitações na vida do paciente. Nesse contexto, o poster cidadão lembra aos demais usuários do grupo on-line que todos fazem parte de uma rede de seguridade social garantida formalmente pelo Estado. Suas mensagens ressaltam a condição dos participantes do ambiente virtual enquanto portadores de direitos reconhecidos perante a lei. Ele os estimula a buscar a efetivação daquilo que lhes é legalmente garantido. Ele denuncia as situações em que os direitos dos pacientes submetidos a terapia renal crônica são desrespeitados. A partir da análise de dois grupos on-line sobre doença renal crônica, a pesquisa apresentada neste capítulo traz apontamentos e contribuições para a questão da relação entre empoderamento, expert patient e ordem biomédica. Um primeiro ponto merece destaque. A construção do expert patient não implica, obrigatoriamente, uma ruptura com a hegemonia do saber e do poder biomédico. Nossos achados coincidem com os resultados obtidos na literatura acadêmica sobre o tema. Os posters acolhedor e clínico reiteram os procedimentos aceitos e adotados pela biomedicina, constroem argumentos que valorizam essas práticas e incentivam sua adoção plena e incontestável. Um segundo ponto merece menção. Identificamos estilos de atuação diferentes entre os posters nesses dois ambientes virtuais. Alguns assumem uma postura mais acolhedora, acionando sua experiência para confortar outros participantes em momentos de angústia ou dúvida. Uma palavra de conforto em um momento de desespero e tensão. Outros se preocupam mais com a dimensão clínica, respondem dúvidas e questões a partir do conhecimento que desenvolveram a partir da experiência prática de viver com a doença. Em linhas gerais, eles sustentam suas recomendações na ordem biomédica, pois reiteram em suas falas os resultados obtidos pela medicina no tratamento da doença ou as informações validadas pelo saber médico. Um terceiro modo de participação nos grupos online enfatizou a dimensão cívica. Esse poster cidadão extrapola a dimensão do cuidado e da assistência, atentando para a importância da participação civil do paciente renal crônico e para sua condição de cidadão tutelado pelo Estado e portador de direitos sociais. Os resultados do nosso estudo apontam não apenas para a centralidade que a internet, enquanto meio de informação e comunicação, tem assumido na vida do paciente, mas também para os modos de atuação do expert patient em um dos ambientes virtuais mais procurados por interessados em discutir saúde: os grupos on-line. A participação em grupos de pacientes organizados nas redes virtuais é uma realidade evidente hoje. Outras Internet e Saúde 171 análises merecem ser realizadas. Recomendamos que sejam feitas reflexões sobre o lugar do expert patient não apenas na relação com o médico, mas também com o sistema de saúde e as políticas públicas. Assim, esse novo ator social poderá ter seu papel social e político reconhecido e analisado. Referências ALTAMIRANO, A. Where is Paulo Freire? The International Communication Gazette, v. 78, n. 7, p. 1–7, 2016. AMICHAI-HAMBURGER, Y., MCKENNA, K.; TAL, S. A. E-empowerment: empowerment by the internet. 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Os resultados obtidos sugerem que, entre os jovens de baixa renda participantes do estudo, a condição socioeconômica não impediu ou restringiu o acesso à internet. Foi averiguado, pelo contrário, que eles passam mais tempo na internet do que aqueles com alta renda. A frequência de acesso on-line identificada entre os participantes sugere o papel central que as NTICs desempenham na vida dos Nativos Digitais, inclusive para a pesquisa de informações sobre saúde. Palavras-chave: Internet; Informação de Saúde ao Consumidor; Acesso à Informação Online; Adolescente; Condições Socioeconômicas. Referência: PEREIRA NETO, A. et al. Nativos digitais e a saúde: um estudo exploratório com jovens brasileiros de diferentes perfis socioeconômicos. In: PEREIRA NETO, A.; FLYNN, M. (orgs.). Internet e saúde no Brasil: desafios e tendências. 1 ed. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2020. p. 176-210. * Laboratório Internet, Saúde e Sociedade, Centro de Saúde Escola Germano Sinval de Faria, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Brasil. E-mail: [email protected]. 178 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Introdução A emergência e a popularização das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTICs), na passagem do século XX para o século XXI, contribuíram para uma série de transformações e reconfigurações de práticas, modos de organização e comportamentos em diversos campos da sociedade (FUCHS, 2008). Essa atmosfera se configurou a partir de dois principais aspectos. Um deles é a ubiquidade: a todo e qualquer momento, o indivíduo desfruta da possibilidade de se conectar às redes sociais digitais. Outra dimensão, estreitamente relacionada a essa, é a capacidade de relacionamento social, político e intelectual que os indivíduos podem estabelecer entre si, graças à facilidade técnica de compartilhar informações e experiências na internet (BIMBER; FLANAGIN; STOHL, 2012). Assim, o cenário comunicacional constituído caracteriza-se pela comunicação de muitos para muitos, a qualquer momento e em escala global (CASTELLS, 2003). O transbordamento caótico das informações (LÉVY, 2001) e a possibilidade de sermos, ao mesmo tempo, produtores e consumidores de informação (RITZER; JURGENSON, 2010) também são marcas desse novo tempo. Nesse contexto, é cada vez mais comum encontrar na literatura, científica ou não, relatos e análises sobre a constituição de uma nova geração de indivíduos, denominados como Nativos Digitais (PRENSKY, 2001a). Esse termo tem sido utilizado para definir pessoas nascidas após a década de 1980, que cresceram cercadas por tecnologias digitais, como vídeo games, celulares e computadores. Tais tecnologias fazem parte da vida cotidiana dessas pessoas que não admitem viver sem a sua presença (AKÇAYIR et al., 2016). O uso massivo que esses indivíduos fazem das NTICs os singularizaria das gerações anteriores. Para alguns autores, esse hábito tende a engendrar e afetar, em maior ou menor medida, seus interesses, valores, comportamentos e habilidades (BENNETT; MATON; KERVIN, 2008). A menção às crianças nativas no mundo do ciberespaço esteve presente na Declaration of the Independence of Cyberspace, de John Perry Barlow (BARLOW, 1996)1. Alguns anos depois, Prensky (2001a) cunhou a expressão “Nativos Digitais” ao analisar as singularidades das primeiras gerações que cresceram em um contexto no qual as tecnologias digitais foram criadas e começavam a ser disseminadas2. Ao longo das últimas décadas, diferentes termos foram construídos para designar esse grupo singular de indivíduos, como “net generation” (TAPSCOTT, 1998), “Igeneration” (ROSEN, 2010) e “Geração Y” (BOLTON et al., 2013). Essas expressões, embora tenham sido elaboradas por autores diferentes, buscam ressaltar o papel central que as tecnologias digitais passaram a desempenhar na vida dessa geração e as diferenças 1 Em um trecho desta declaração, Barlow (1996), dirigindo-se aos governantes do mundo industrializado, reunidos no Fórum Econômico Mundial em Davos (Suíça), declarou: “Vocês têm medo dos seus próprios filhos, uma vez que eles são nativos em um mundo onde vocês sempre serão imigrantes” (BARLOW, 1996, tradução nossa). 2 Palfrey e Gasser (2010) também adotaram este conceito em seus estudos. Internet e Saúde 179 que ela apresenta em relação às anteriores (GIBBONS, 2007). Neste capítulo, utilizaremos o termo Nativo Digital, por entender que ele expressa melhor o comportamento das pessoas que nasceram e cresceram em um mundo em que as relações interpessoais se tornaram cada vez mais mediadas pelas NTICs. O grupo dos Nativos Digitais, segundo os autores consultados, seria constituído por indivíduos que apresentariam um conjunto de características comuns. Uma delas seria o conhecimento sofisticado e o hábil uso das NTICs. Para Prensky (2001a, p. 1, tradução nossa), por viverem imersos nessas tecnologias, eles seriam “falantes nativos” da linguagem digital. Segundo Akçayir et al. (2016, p. 435, tradução nossa), “eles frequentemente usam produtos tecnológicos e não experimentam dificuldades com o uso de produtos tecnológicos complexos”. O permanente uso das NTICs também revelaria outra característica dessa geração: a capacidade de ser multitarefa, isto é, de realizar diferentes atividades simultaneamente (CALDERWOOD et al., 2016). A estreita relação com as tecnologias digitais contribuiria para que eles deem preferência à linguagem visual, altamente gráfica, em detrimento à linguagem textual. Segundo Akçayir et al. (2016, p. 435, tradução nossa), “[…] nativos digitais são propensos a se comunicar utilizando imagens visuais, como fotos e vídeos feitos com seus dispositivos móveis”. Esse aspecto contribuiria também para que eles pensassem e processassem a “informação fundamentalmente diferente de seus predecessores” (PRENSKY, 2001a, p. 1, tradução nossa). Para Prensky (2001b), seria muito provável que o cérebro dos nativos digitais fosse “fisicamente diferente”, devido ao “input digital que eles receberam ao crescer” (PRENSKY, 2001b, p. 1, tradução nossa). Enquanto estudantes, os Nativos Digitais se sentem entediados diante dos métodos tradicionais de ensino (OBLINGER; HAGNER, 2005). Eles seriam, sobretudo, “aprendizes empíricos ativos” (BENNETT; MATON; KERVIN, 2008, p. 776, tradução nossa), preferindo métodos baseados em descobertas, que os permitissem explorar e testar ativamente suas ideias (BROWN, 2000). Eles também aprenderiam a uma velocidade mais rápida e interativa que gerações anteriores. Eles seriam capazes de estabelecer múltiplas conexões entre diferentes conteúdos, além de processar uma alta quantidade de informação visual e responder positivamente às atividades baseadas em games no seu processo de aprendizagem3. Prensky (2001a; 2001b) argumenta que, devido a essas características, a escola e os professores estariam despreparados para lidar com a singularidade comportamental e cognitiva dos Nativos Digitais. Cabe ressaltar mais uma vez que esses estudos chegaram a essas conclusões e construíram essa definição realizando uma análise do comportamento de jovens que nasceram entre as décadas de 1980 e 1990. As gerações que nasceram antes desse período têm sido denominadas como “Imigrantes Digitais”. Para Prensky (2001a), eles precisaram aprender a linguagem das NTICs para manuseá-la e se adaptar a um ambiente sociocultural afetado profundamente pelo uso maciço de tais tecnologias. Esse autor 3 Para saber mais sobre o tema internet, games e saúde, consulte o capítulo 20 deste livro. 180 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) complementa sua ideia afirmando que “imigrantes digitais [...] sempre retêm, em algum nível, seu ‘sotaque’, isto é, seu pé no passado” (PRENSKY, 2001a, p. 3, tradução nossa), preferindo, por exemplo, a linguagem textual, o impresso e os meios de comunicação analógicos. O conceito de Nativos Digitais, embora seja cada vez mais comum, tem sofrido críticas. Uma delas refere-se à faixa etária atribuída a esses indivíduos: o fato de ter nascido após 1980 não seria suficiente para caracterizar esse grupo geracional. Além disso, a dimensão social não deve ser negligenciada. É comum que pessoas que nasceram após 1980 não tenham acesso às NTICs devido a sua baixa renda e/ou a sua precária escolaridade. Os contextos cultural e de gênero também têm sido apontados como fator que afeta o acesso e o uso de NTICs. Finalmente, as condições precárias de acesso à rede, seja pela falta de infraestrutura ou pela baixa velocidade de conexão, também têm sido mencionadas como obstáculos para que as populações mais jovens tenham contato permanente com as tecnologias digitais (AKÇAYIR et al., 2016). Bennett, Maton e Kervin (2008) destacam que muitas pessoas que nasceram após 1980 podem não dominar essas tecnologias. Eles afirmam que: As evidências das pesquisas até momento indicam que uma proporção de jovens é altamente adepta à tecnologia e dependem dela para uma série de atividades de coleta de informação e de comunicação. Porém, parece que há uma proporção significativa de jovens que não possuem os níveis de acesso ou competências tecnológicas previstas pelos proponentes da ideia de nativo digital. (BENNETT; MATON; KERVIN, 2008, p. 778-779, tradução nossa). Assim, alguns jovens que não possuem acesso à internet nem recursos financeiros, conhecimento e/ou habilidades para manipular as NTICS não poderiam ser denominados de Nativos Digitais, apesar de terem nascido entre 1980 e 1990. Além disso, alguns autores que tecem críticas sobre esse conceito ressaltam que há pouca evidência empírica na literatura científica que corrobore com as especificidades em termos de habilidades e comportamentos desses indivíduos (AKÇAYIR et al., 2016). Desse modo, o conceito de Nativos Digitais, tal como vem sendo abordado, tenderia a generalizar os jovens que, apesar de compartilharem uma mesma faixa etária, apresentariam comportamentos muito diferentes em relação às NTICs, devido às suas condições socioculturais e econômicas. Assim, esse conceito tenderia a ignorar as diversidades que existem dentro dessa geração (BENNETT; MATON; KERVIN, 2008). Algumas instituições têm realizado pesquisas visando compreender os hábitos, comportamentos e valores dos Nativos Digitais no mundo. Identificamos pesquisas com esse objetivo no Brasil, Estados Unidos, Europa e em termos internacionais. Vejamos com mais detalhes essas investigações. Internet e Saúde 181 No Brasil, alguns esforços acadêmicos têm sido realizados para conhecer os Nativos Digitais. O Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br)4 é a principal instituição que realiza pesquisas nesse campo. Entre as pesquisas realizadas pelo CGI.br, destaca-se aquela voltada para compreender de que forma a população de 9 a 17 anos de idade utiliza a internet e como lida com os riscos e as oportunidades decorrentes dessa atividade. Tratase da pesquisa “TIC Kids Online Brasil”. Ela visa produzir estimativas sobre o acesso à internet por crianças e adolescentes, investigar o perfil de não usuários da rede; compreender como crianças e adolescentes acessam e utilizam a internet e qual é a percepção deles em relação aos conteúdos acessados. Essa pesquisa foi realizada por intermédio de questionários estruturados, com perguntas fechadas e respostas predefinidas (respostas únicas ou múltiplas). Crianças e adolescentes de 9 a 17 anos que participaram do levantamento responderam a dois questionários diferentes: um aplicado presencialmente por um entrevistador (em interação face a face) e outro de autopreenchimento. Em 2015, trinta e três mil domicílios particulares permanentes serviram de amostra para essa pesquisa (CGI.BR, 2016a). A última pesquisa “TIC Kids Online Brasil” foi publicada em 20195. Nos Estados Unidos, existe uma instituição que realiza atividades de pesquisa que podem ser comparadas àquelas realizadas pelo CGI.br no Brasil, denominada Pew Research Center: Um fact tank não partidiário que informa o público sobre questões, atitudes e tendências que moldam a América e o mundo. Ele não toma posições políticas. Ele conduz sondagem de opinião pública, pesquisa demográfica, análise de conteúdo midiático e outras pesquisas empíricas de ciências sociais. (LENHART et al., 2015, p. 1, tradução nossa). O Pew Research Center publicou, em 2015, o relatório “Teen, Social Media and Technology Overview 2015”. Esse foi o primeiro relatório que a instituição produziu visando compreender o uso das tecnologias de informação e comunicação por jovens naquele país. Seu foco é saber “como adolescentes americanos usam mídias sociais e telefones móveis para criar, manter e terminar suas relações românticas e de amizade” 6 (LENHART et al., 2015, p. 1, tradução nossa). 4 O Comitê Gestor da Internet no Brasil foi criado com a promulgação do Decreto nº 4.829, de 3 de setembro de 2003 (BRASIL, 2003). Ele realiza pesquisas que visam subsidiar a formulação, implantação e avaliação de políticas públicas de fomento ao uso das tecnologias de informação e comunicação. Os indicadores e análises gerados por essas investigações representam um importante instrumento de monitoramento da Sociedade da Informação e dos avanços da rede no país. Assim, o Comitê Gestor da Internet no Brasil produz estatísticas confiáveis e comparáveis internacionalmente. Disponível em: https://cgi.br/ 5 Até o momento, o CGI.br publicou nove edições desta pesquisa. Todas estão disponíveis na íntegra, em português e inglês, no seguinte link: https://cetic.br/pesquisa/kids-online/publicacoes/. 6 Os critérios de desenho, estratificação, seleção e alocação da amostra estão detalhados no relatório da pesquisa (LENHART et al., 2015). Disponível em: http://www.pewinternet.org/2015/04/09/teens-social-mediatechnology-2015. 182 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Na Europa está organizada a rede EU Kids Online: composta por trinta e três países, coordena e estimula estudos quantitativos e qualitativos para acompanhar o modo que crianças utilizam as tecnologias digitais. Suas investigações, financiadas pelo programa EC Better Internet for Kids, visam oferecer evidências sobre os fatores de risco que podem afetar as crianças que navegam nas redes virtuais. Em 2014, a EU Kids Online divulgou os resultados de uma pesquisa conduzida em 25 países europeus, com crianças e jovens entre 9 e 16 anos. Tal levantamento buscava identificar os principais usos que os participantes faziam das novas mídias; as atividades que realizavam on-line; os riscos que encontravam ao utilizar a internet e como lidavam com eles; e o papel dos pais na relação que as crianças e jovens estabeleciam com as redes virtuais (EU KIDS ONLINE, 2014). Em termos globais, foi publicado em 2016 o relatório “Global Kids Online Research Synthesis”: uma iniciativa colaborativa entre o Escritório de Pesquisa da UNICEF– Innocenti, a Escola de Economia e Ciência Política de Londres, e a rede EU Kids Online (BYRNE et al., 2016). O projeto desenvolveu um conjunto global de ferramentas de pesquisa que permite acadêmicos, governantes, sociedade civil e outros atores a conduzir pesquisas nacionais padronizadas e confiáveis com crianças e seus pais sobre oportunidades, riscos e fatores protetivos do uso da internet por crianças. (BYRNE et al., 2016, p. 6, tradução). A parte empírica desse trabalho, coordenado pela UNICEF, foi realizada na Argentina, Filipinas, Servia e África do Sul7. Neste capítulo, pretendemos analisar algumas especificidades comportamentais dos Nativos Digitais brasileiros. Para verificar as diversidades dentro de uma mesma geração, como assinalam os críticos à generalização do conceito, foram selecionados para a pesquisa jovens em três ambientes diferentes. O primeiro grupo residia em um bairro denominado Manguinhos, na zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Manguinhos é um território com mais de 36 mil habitantes, segundo dados oficiais (IPP, 2020). Ele está situado em uma área que originalmente era dominada por mangues – condição geográfica que inspirou a denominação da localidade8. A área geralmente referida como Manguinhos extrapola os limites correspondentes ao bairro homônimo instituído em 1998. Nessa região da cidade, convergiram inúmeras pessoas atraídas pelos benefícios derivados da construção de duas estradas de ferro e da proximidade com as indústrias e o centro da cidade, que oferecem oportunidades de trabalho. A região foi ocupada ao longo do século XX e XXI por moradias populares, fruto de ações individuais e 7 Os critérios de desenho, estratificação, seleção e alocação da amostra estão detalhados no relatório da pesquisa (BYRNE et al., 2016). Disponível em: www.globalkidsonline.net. 8 “Manguinhos” é o diminutivo plural da palavra “Mangue”. Internet e Saúde 183 coletivas e políticas públicas de habitação. Hoje, Manguinhos abarca quinze comunidades como denominações diferentes (FERNANDES; COSTA, 2013). Desde a década de 1980, a área vem sofrendo com o esvaziamento econômico, uma vez que as poucas indústrias que existiam em seu entorno foram extintas ou se transferiram para outras localidades, como a Cooperativa Central dos Produtores de Leite e a Gillette do Brasil (SOARES, 2010). A população de Manguinhos, de maneira geral, compartilha de uma mesma realidade caracterizada pela exclusão social, desemprego, analfabetismo, descaso governamental e violência. A região é palco de inúmeros confrontos armados entre policiais, traficantes de drogas e milícias9. A Rua Leopoldo Bulhões, que atravessa toda a área e tangencia a linha do trem, é conhecida como “Faixa de Gaza”, em referência à região homônima na Palestina, famosa pela violência (FRÚGOLI JUNIOR; CAVALCANTI, 2012). Manguinhos detém um dos piores Índices de Desenvolvimento Humano entre os bairros do município do Rio Janeiro. Em geral, a população local possui baixa escolaridade e baixo poder aquisitivo, apresentando uma expectativa de vida menor do que a média brasileira. Na região, o rendimento domiciliar per capita é menor que 1 salário-mínimo (IPP, 2010). Apesar das obras públicas realizadas pelos governos estadual e federal na região, os problemas com rios poluídos, bueiros entupidos, entulhos de lixo e rede de saneamento precária persistem, fazendo com que os moradores sejam expostos a condições ambientais e habitacionais extremamente degradantes (LIMA, 2010). Na pesquisa que serviu de base para a realização deste capítulo, os jovens que compuseram o primeiro grupo investigado residiam em Manguinhos e foram abordados na sala de espera de dois centros de atenção primária existentes na região: um é o Centro de Saúde Escola Germano Sinval de Faria (CSEGSF)10 e outro é a Clínica da Família Victor Valla (CFVV)11. No Brasil, a Atenção Primária funciona como a principal porta de entrada para o Sistema Único de Saúde (SUS). Ela é definida por meio da “Política Nacional de Atenção Básica” (PNAB) como: Um conjunto de ações de saúde, no âmbito individual e coletivo, que abrange a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação, a redução de danos e a manutenção da saúde com o objetivo de desenvolver uma atenção integral 9 Milícia é a designação genérica das organizações militares ou paramilitares, não reconhecidas legalmente, compostas por cidadãos comuns armados que disputam com traficantes e policiais o poder nas favelas de diversas cidades do Brasil (MISSE, 2011). 10 O Centro de Saúde Escola Germano Sinval Faria (CSEGSF) é um dos departamentos da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), da Fundação Oswaldo Cruz. Ele coordena, em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, o Projeto Teias-Escola Manguinhos. Esse projeto é responsável pela gestão da atenção primária de saúde da região. Ele adota a Estratégia Saúde da Família (ESF) como ordenador do sistema de saúde local. Tanto a Clínica da Família Victor Valla quanto o Centro de Saúde executam ações e serviços de atenção primária para moradores de Manguinhos (TEIAS, 2014). 11 Disponível em: http://smsdc-csf-victorvalla.blogspot.com.br/ 184 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) que impacte na situação de saúde e autonomia das pessoas e nos determinantes e condicionantes de saúde das coletividades. (BRASIL, 2012, p. 19). Nesse contexto, a Estratégia Saúde da Família (ESF)12 se apresenta como o principal meio de organização da atenção primária, contribuindo para sua qualificação, expansão e consolidação. Em nosso estudo, o primeiro grupo de jovens participou da pesquisa enquanto aguardava a hora da consulta na sala de espera das unidades CSEGSF e CFVV. Cabe destacar que o usuário dessas unidades de atenção primária tinha que apresentar algum documento que ateste sua residência em Manguinhos para poder usufruir dos serviços prestados. Assim, esse primeiro grupo encontrava-se formalmente inserido no sistema público de atenção primária de saúde – condição que não é compartilhada por todos os jovens moradores de comunidades de baixa renda13. Trata-se, portanto, de jovens que residem em Manguinhos e são servidos pela atenção primária. O segundo grupo de jovens participantes do estudo foi composto por estudantes do ensino médio do Colégio Estadual Professor Clóvis Monteiro. O Colégio Estadual Professor Clóvis Monteiro faz parte da rede pública estadual de ensino do Rio de Janeiro, desenvolvendo atividades educacionais de Ensino Médio regular em três turnos: manhã, tarde e noite (CEPCM, 2014). Segundo dados da Secretária Estadual de Educação do Rio de Janeiro, a escola possui 1521 alunos, divididos em 73 turmas e 98 servidores (RIO DE JANEIRO, 2020). Ela dispõe de infraestrutura básica, como salas de aula, banheiros, acesso à internet, quadra de esportes coberta, alimentação escolar para os alunos, cozinha e biblioteca. O Brasil é uma República Federativa. A legislação educacional brasileira determina que poder público municipal se responsabilize pelo ensino infantil e fundamental, o poder público estadual pelo ensino médio. É dever dessas esferas governamentais oferecer a todos os brasileiros educação básica14 obrigatória e gratuita dos 4 aos 17 anos de idade. Desse modo, tanto a pré-escola quanto os ensinos fundamental e médio são, por direito garantido em lei, universais para qualquer cidadão brasileiro, inclusive aqueles que não o concluíram na faixa etária prevista. Os professores, para 12 Segundo a “Política Nacional de Atenção Primária” (BRASIL, 2012, p. 32), a Estratégia Saúde da Família é a “tática prioritária de organização da atenção básica”. Segundo Silva e Rodrigues (2010, p. 763), tal estratégia “propõe a prestação de uma assistência que vá além do corpo biológico e que seja capaz de alcançar os seres humanos em sua complexidade e integralidade”. Estratégia Saúde da Família é coordenada a nível municipal. Ela pressupõe a existência de equipes multiprofissionais que se responsabilizam pela população residente em um determinado território. Cabe às equipes realizar visitas domiciliares às famílias sob sua responsabilidade, a fim de coletar informações que permitam conhecer sua realidade social e acompanhar seu cuidado. Quando necessitam realizar procedimentos ou consultas médicas mais especializadas, os usuários encaminhados pela equipe à unidade básica de saúde do território (BRASIL, 2012). 13 Nem todos os municípios brasileiros são cobertos pela Estratégia Saúde da Família. Em um mesmo município, nem todas as localidades possuem essa estratégia implementada. Em abril de 2020, dados do Ministério da Saúde apontavam que a cobertura da ESF no Brasil era de 65.36% (BRASIL, 2020). 14 De acordo a Lei de Diretrizes e Bases (Lei n° 9394/1996), o ensino fundamental, juntamente com a educação infantil e o ensino médio, compõe a Educação Básica. Internet e Saúde 185 exercerem sua profissão, devem se submeter a um exame público (BRASIL, 1996). Existe, ao mesmo tempo, uma ampla e complexa rede de estabelecimentos privados nos três níveis de ensino em todas as cidades do país. Essa estrutura organizacional não garante, entretanto, que o ensino público seja efetivamente acessível, universal e de qualidade. Nas últimas décadas, têm sido observados avanços no sistema de educação brasileiro. Segundo o Censo Escolar de 2019, há 180,610 mil escolas de educação básica no Brasil, sendo cerca de 22,9% pertencentes ao sistema privado de ensino (INEP, 2020). Porém, a universalização do acesso à educação básica, em termos de quantidade e qualidade, e a ampliação do investimento no sistema educacional ainda são desafios enfrentados pelo país (UNESCO, 2014). No levantamento do último Censo Escolar, foi constatado que o ensino médio é oferecido em 28.860 escolas no país, sendo que apenas 3.040 estabelecimentos estão em zonas rurais (INEP, 2020). O relatório “Education at Glance”, publicado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD) (OECD, 2017), indica que o investimento no ensino médio no Brasil é de aproximadamente de US$ 3.8 por estudante ao ano. Trata-se do terceiro menor valor no ranking mundial. Nesse caso, o Brasil perde apenas para Colômbia e Indonésia. Outro ponto levantado pelo relatório da OECD foi o baixo salário pago aos professores brasileiros. Ele foi denominado pelo próprio documento como “espinha dorsal do sistema educacional” (OECD, 2017, p. 24, tradução nossa). O texto afirma que os salários são baixos em comparação ao de outros trabalhadores em tempo integral com nível educacional similar. Somado à baixa recompensação financeira, o relatório aponta que professores no Brasil são responsáveis por uma quantidade relativamente grande de turmas. Esse fato reduz o tempo que eles têm para se dedicar a atividades fora de sala de aula, a práticas interdisciplinares, a preparação de aulas e ao acompanhamento mais atento dos alunos com baixo desempenho. Esses aspectos tornam a carreira docente pouco atraente no Brasil O Colégio Estadual Professor Clóvis Monteiro localiza-se na Avenida dos Democráticos, que demarca divisão entre o bairro de Higienópolis e as comunidades de Manguinhos. Ele possuía, em 2018, 1250 estudantes matriculados no ensino médio e 102 na educação de jovens e adultos (QEDU, 2018). Esse colégio recebe, majoritariamente, estudantes residentes em Manguinhos. Os jovens que aguardam a consulta em um centro de atenção primária e os estudantes do colégio estadual têm, portanto, o mesmo perfil socioeconômico. Eles diferem entre si porque o primeiro grupo está inserido formalmente em um serviço público de atenção primária e o segundo, possivelmente não. Por outro lado, o segundo grupo está inserido em um estabelecimento público de ensino e o primeiro, talvez não. O terceiro grupo de jovens participantes difere dos dois anteriores por ser composto por estudantes inseridos no sistema privado de ensino médio. Nesse grupo, estão incluídos alunos de nível médio da Escola Parque: um estabelecimento privado que atende à parte 186 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) da elite econômica do Rio de Janeiro, localizado em um dos bairros mais sofisticados da cidade – a Gávea. A Escola Parque desenvolve suas atividades pedagógicas desde a educação infantil até o ensino médio. Ela se destaca pela excelente qualidade de ensino oferecida. Uma excelência que não é acessível para todos. Em 2017, a mensalidade paga pelas famílias que colocam seus filhos para estudar na Escola Parque variava entre 2400 a 3400 reais por mês, aproximadamente, para quatro horas de atividade. Esse valor não inclui transporte e alimentação. O valor elevado da mensalidade fica ainda mais evidente se levarmos em consideração que o rendimento médio mensal per capita em 2017 era de 1.268 reais (IBGE, 2018). Assim, podemos, sem embaraço, concluir que a Escola Parque é frequentada por estudantes das elites econômicas da cidade, pois apenas as famílias com alto poder aquisitivo podem ter seus filhos estudando nessa instituição. Ela possui unidades nos bairros da Barra da Tijuca e da Gávea. A pesquisa em questão realizou-se na unidade localizada na Gávea, na zona sul do Rio de Janeiro. Nesses termos, cabe estabelecer uma comparação entre Gávea e Manguinhos. Para tanto, iremos recorrer ao Índice de Desenvolvimento Social (IDS) da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro (IPP, 2008). Esse índice foi inspirado no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), calculado pela Organização das Nações Unidas (ONU), por meio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), para inúmeros países do mundo. Sua finalidade é medir o grau de desenvolvimento social de uma determinada área geográfica em comparação com outras de mesma natureza. O IDS utilizou 10 indicadores, construídos a partir de variáveis do Censo Demográfico 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)15 para a composição do IDS. Assim, construímos o quadro abaixo com alguns desses indicadores. Quadro 1. Indicadores socioeconômicos – Gávea & Manguinhos Expectativa de Taxa de vida ao frequência nascer/anos escolar Gávea 80,45 100,00 R$ 2139 Manguinhos 66,30 69,64 R$ 188 Indicador/Bairro Renda per capita Fonte: Os autores (2017). 15 O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) é um instituto público da administração federal brasileira criada em 1934. Trata-se do principal provedor de dados e informações do País, que atende às necessidades dos mais diversos segmentos da sociedade civil, bem como dos órgãos das esferas governamentais federal, estadual e municipal (IBGE, 2020). Internet e Saúde 187 Observando o Quadro 1, ficam evidentes as diferenças sociais entre os dois primeiros grupos de participantes e o terceiro. As diferenças de expectativa de vida e renda revelam que esses grupos pertencem a camadas sociais bastante distintas. Outra maneira de comparar os dois estabelecimentos de ensino médio pode ser realizada a partir dos resultados obtidos no “Exame Nacional e Ensino Médio” (ENEM). No Brasil, o estudante de nível médio que deseja ingressar no ensino superior deve prestar o ENEM. A média obtida dos alunos que se submeteram ao exame em 2015 revela o abismo existente entre a rede pública de ensino e a particular. As notas do ENEM indicam que os resultados dos estudantes oriundos de unidades públicas estaduais estão aquém do ideal. Das cem escolas com notas mais altas no país, 17 são do estado do Rio de Janeiro, e nenhuma delas é pública. Nesse ranking, a Escola Parque aparece em 24º lugar, e o Colégio Estadual Clovis Monteiro não está relacionado (INEP, 2015). Apesar de todas essas diferenças, os participantes da pesquisa são jovens Nascidos Digitais, pois nasceram depois que as Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTICs) já eram uma realidade palpável para muitos cidadãos. O primeiro grupo foi composto por jovens residentes em Manguinhos que aguardavam a consulta ou exame em uma sala de espera de duas unidades de atenção primária. Para esse grupo, a ferramenta de pesquisa foi aplicada durante cinco semanas, entre outubro e novembro de 2013. Para participar da pesquisa, o jovem deveria atender a quatro critérios: (1) ser usuário da internet; (2) ser homem ou mulher com idade entre 16 e 24 anos; (3) residir em Manguinhos; e (4) concordar em participar do estudo. Nesta amostra foram aplicados os questionários a 201 participantes. Em relação aos outros dois grupos, o questionário foi aplicado a 225 pessoas, sendo 116 da Escola Parque da Gávea e 109 do Colégio Estadual Professor Clóvis Monteiro. Tratava-se de estudantes regularmente matriculados em cada uma das duas instituições no primeiro ano do nível médio nos dias 9 de junho, 2 de setembro e 14 de setembro de 201516. Nosso objetivo era verificar se os jovens brasileiros de baixa renda17 e/ou precária escolaridade têm maiores dificuldade de acesso às NTICs que aqueles de camadas sociais privilegiadas. Estamos curiosos em saber se o contexto - cultural e de gênero – interfere de alguma forma nesse processo, considerando que as realidades socioeconômicas dos participantes são distintas. A questão que orienta este estudo discute se os indivíduos de uma mesma faixa etária utilizam e se apropriam das NTICs de forma diferente devido às 16 Esta pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Escola Nacional de Saúde Pública, no Rio de Janeiro, Brasil, sob o n° de parecer 460.098. O Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) é um colegiado interdisciplinar e independente existente em instituições brasileiras que realizam pesquisas envolvendo seres humanos. Seu objetivo é avaliar a eticidade dos projetos de pesquisa a ele submetidos, defendendo os interesses e a integridade dos sujeitos da pesquisa, dentro dos padrões éticos vigentes (MUCCIOLI et al., 2008). Os estudos também receberam o apoio do Centro de Saúde Escola Germano Sinval Faria (CSEGSF), da Clínica da Família Victor Valla, do Colégio Estadual Clóvis Monteiro e da Escola Parque da Gávea. 17 O Banco Mundial define que o cidadão que viver com menos de 1,9 dólares por dia estará abaixo da linha da pobreza. Em 2018, 13,5 milhões de pessoas estavam nesta condição no Brasil (IBGE, 2019). 188 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) suas condições socioculturais e econômicas. Assim, pretendemos verificar se existem diversidades dentro dessa geração, como recomendaram Bennett, Maton e Kervin (2008). Nesse caso, será dado um destaque particular à apropriação que eles fazem dos temas e problemas relacionados com a saúde. Para analisar os achados da pesquisa, iremos utilizar como referência os resultados das pesquisas do CGI.br (2016a), do Pew Research Center, nos Estados Unidos, da Unesco, realizada internacionalmente, e da EU Kids Online, conduzida na Europa. Entretanto, não nos limitamos a isso. A pesquisa que deu origem a este capítulo leva em consideração esses parâmetros nacionais e internacionais para conhecer o comportamento e as atitudes de um pequeno grupo de jovens que nasceram no final do século XX e início do século XXI, residentes na cidade do Rio de Janeiro, no Brasil. Trata-se, portanto, dos resultados de um estudo exploratório empírico que visa debater as especificidades dos Nativos Digitais, analisando as habilidades e comportamentos de um pequeno grupo de indivíduos em relação ao uso da NTICs. Nos três casos, os jovens entrevistados tinham entre 16 e 24 anos de idade. Trata-se, portanto, de um estudo exploratório com amostras diferentes. Um estudo dessa natureza possibilita conhecer o comportamento humano no contexto social onde ele ocorre, especialmente em realidades ainda pouco pesquisadas, proporcionando uma maior familiaridade com o contexto investigado. O estudo exploratório também possibilita o desenvolvimento de hipóteses e proposições, que podem ser objetos de estudos futuros, constituindo assim uma agenda de pesquisa (BAXTER; JACK, 2008; YIN, 2003). Segundo Yin (2003, p. 21, tradução nossa), “ao invés de declarer proposições, o desenho do estudo exploratório deve indicar um propósito, assim como os critérios a partir dos quais uma exploração será avaliada como bem-sucedido”. Desse modo, ainda que o estudo exploratório não parta de uma proposição ou hipótese a ser investigada, sua realização pressupõe a definição de três componentes metodológicos fundamentais: o que será explorado; o propósito da exploração que será feita; e os critérios de avaliação do sucesso do estudo (YIN, 2003). Como um estudo exploratório, sua tendência à generalização é, portanto, limitada. 1. Metodologia Para a coleta de dados, foi aplicado um questionário fechado composto por 13 questões. Ele foi dividido em três seções: “identificação”, “acesso à internet” e “acesso à internet para informações sobre saúde”. A primeira seção visa identificar o perfil do participante, sobretudo sua idade e sexo. Essas duas perguntas são importantes, pois são as duas principais categorias que as Internet e Saúde 189 demais pesquisas utilizaram na análise de dados (CGI.BR, 2016a; LENHART et al., 2015; EU KIDS ONLINE, 2014; BYRNE et al., 2016). A segunda seção do questionário pretende mapear como esses jovens acessavam a internet. Uma das questões dessa seção visava identificar quantos entrevistados possuíam (ou não) acesso à internet. Outra pretendia identificar que equipamento é utilizado pelos jovens (dando destaque ao acesso via smartphones). Também foi inserida uma questão sobre a frequência de uso da internet. A terceira seção objetiva averiguar o comportamento dos jovens na busca de informação sobre saúde na internet. Uma das questões dessa seção consiste em identificar em que momento e com que frequência essa busca é realizada. Assim pretendíamos verificar se a relação médico-paciente pode ser afetada pelo consumo de informação online sobre saúde. Outra questão inserida nessa seção do questionário refere-se aos fatores que motivam o jovem a realizar uma pesquisa de informação sobre saúde na internet. Também incluímos uma questão sobre o nível de confiança na informação obtida na internet. Com esse item, buscamos compreender como os jovens percebem a qualidade da informação obtida on-line, especialmente no contexto de “dilúvio de informação” (LÉVY, 2001), característico das redes de comunicação e informação digitais. Os resultados serão apresentados na forma de um quadro comparativo, para cada tema discutido. Com isso esperamos facilitar a compreensão do leitor e levantar hipóteses explicativas. Ao longo da análise, será estabelecido um diálogo entre nossos achados e as pesquisas sobre o tema realizadas pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.BR, 2016a), pela EC Better Internet for Kids (EU KIDS ONLINE, 2014) e pela UNESCO (BYRNE et al., 2016), além de análises presentes na literatura científica internacional (GONZÁLEZ et al., 2011; HUGHES-HASSELL et al., 2008). 2. Resultados e discussão Nossa análise estará dividida em três partes. Na primeira apresentaremos o perfil dos participantes da pesquisa, atentando para as condições socioeconômicas em que vivem. Esse quadro servirá de base para as reflexões posteriores. Em seguida, discutiremos como se dá o acesso e uso da internet entre os jovens. Nesse momento, analisaremos se o perfil de acesso e uso da internet dos participantes de nossa pesquisa se aproxima ou não daquele que geralmente é atribuído ao Nativo Digital. Iremos discutir ainda como o acesso é afetado pelas condições socioeconômicas de cada grupo de jovens usuários. Por fim, examinaremos o perfil de consumo de informação on-line sobre saúde na internet. Nosso intuito é compreender como esses jovens, que são vistos na literatura científica como Nativos Digitais, apropriam-se das NTICs em seu processo de autocuidado. 190 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) 2.1. Perfil dos participantes Como mencionamos anteriormente, aplicamos o questionário a três grupos distintos de jovens: 201 jovens estavam nas salas de espera das duas clínicas de atenção primária (CAP) de Manguinhos, 116 estavam nas salas de aula da Escola Parque da Gávea (EPG) e 109 responderam o questionário no Colégio Estadual Clóvis Monteiro (CECM). Os dados obtidos permitiram a construção do Quadro 2. Quadro 2. Perfil dos entrevistados Local Idade Média Homem Mulher CAP 21 anos 25,9% 74,1% CECM 17 anos 42% 56% EPG 16 anos 52% 48% Fonte: Os autores (2017). Os dados acima permitem que seja constatada uma diferença no acesso aos serviços de atenção primária a partir da condição de gênero. Nos centros de atenção primária investigados, contamos com a participação de 74,1% de mulheres e 25,9 % de homens. Gomes, Nascimento e Araujo (2007) realizaram um estudo visando analisar as explicações, presentes em discursos masculinos, para a pouca procura dos homens por serviços de atenção primária no Brasil. Eles constataram que os homens entrevistados entendem o cuidado com a saúde como uma tarefa feminina. Além disso, alguns homens se veem como um ser invulnerável. Gomes, Nascimento e Araujo (2007) concluem seu estudo afirmando que: Os serviços de saúde também são considerados pouco aptos em absorver a demanda apresentada pelos homens, pois sua organização não estimula o acesso e as próprias campanhas de saúde pública não se voltam para este segmento. (GOMES; NASCIMENTO; ARAUJO, 2007, p. 571). Cabe salientar ainda que os centros de atenção primária funcionam no horário comercial (de segunda a sexta feira, de 8 às 17 horas). Esse horário de funcionamento dificulta que os trabalhadores com vínculo formal de trabalho tenham acesso aos serviços de saúde. Internet e Saúde 191 Um outro dado disponível no Quadro 2 nos chamou a atenção: o predomínio de mulheres entre os participantes oriundos da escola pública. Esse fenômeno pode ser explicado a partir do crescimento da escolaridade das mulheres no mundo nos últimos anos. Beltrão (2002), nesse sentido, conclui seu estudo afirmando que: Segundo relatório do Banco Mundial [...], tem-se presenciado, nessas últimas décadas, uma considerável melhora na situação da mulher na maior parte dos países. O nível educacional das mulheres aumentou significativamente, e sua presença no mercado de trabalho também. No entanto, no futuro, parte do caminho a ser trilhado deve incluir a eliminação das desigualdades de gênero, no que se refere a seus direitos, recursos e voz. (BELTRÃO, 2002, p. 17). Outro aspecto a ser analisado relaciona-se com a idade média dos participantes. O resultado semelhante entre os dois estabelecimentos de ensino esconde uma realidade digna de nota. Na Escola Parque, 78% dos alunos do segundo ano do ensino médio têm idade até dezesseis anos idade. No Colégio Estadual Clóvis Monteiro, esse perfil se inverte: 72% da população amostrada tinham mais de dezesseis anos no momento que preencheram o questionário. É possível concluir, portanto, que os estudantes do CECM participantes do estudo encontram-se fora da faixa etária ideal para o ciclo do ensino médio. Cabe salientar que esse atraso pode ser consequência de casos de abandono ou reprovação, associados ao ingresso precoce no mercado de trabalho, a fim de complementar a renda familiar, ou à desmotivação. Pesquisa recente realizada no Brasil indica que a “evasão escolar e pobreza estão, intimamente, ligadas e que trabalho infantil prejudica a obtenção de melhores níveis educacionais” (NÉRI, 2015, p. 20). Nela, foi constatada que evasão escolar entre os jovens de 15 a 17 anos de baixa renda (23,25%) é maior do que no total da população (17,8%). Entre os jovens ricos, esse índice é extremamente baixo (5,8%). Cabe ainda salientar que 78% dos jovens do colégio estadual sobrevivem com uma renda familiar igual ou inferior a dois salários-mínimos. A descrição, ainda que sucinta, do perfil dos participantes desta pesquisa revela que a amostra, apesar de ser estatisticamente inexpressiva, aproxima-se da realidade encontrada no conjunto do país. Ela sugere, ainda, a existência de uma diferença socioeconômica importante entre os estudantes da Escola Parque e os demais participantes. Assim, este estudo transformará essa diferença socioeconômica como uma variável para a análise dos dados obtidos. Neste trabalho estamos interessados em conhecer os efeitos da estratificação social no uso de mídias digitais entre adolescentes brasileiros. 192 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) 2.2. Acesso e uso da Internet Uma das principais motivações deste estudo foi verificar se o maior ou menor acesso à internet pelos jovens participantes esteve associado à condição socioeconômica. O Quadro 3 apresenta resultados que nos parecem relevantes. Quadro 3. Acesso à Internet Acesso à internet Local Sim Não CAP 87,8% 12,2% CECM 97% 3% EPG 98% 2% Fonte: Os autores (2017). O estudo exploratório que desenvolvemos pode proporcionar maior familiaridade com o problema investigado. Nesse caso, os dados obtidos sugerem que não existem diferenças percentuais notáveis em relação aos jovens das escolas pública e privada que têm acesso à internet. Entre aqueles que aguardavam a consulta em salas de espera da atenção primária de Manguinhos, esse índice de acesso à internet foi um pouco menor. É possível que o percentual tenha sido maior entre os estudantes de nível médio devido à dinâmica e rotina própria do espaço escolar. A escola se configura como um espaço de socialização para os jovens que a frequentam, colocando-os em contato frequente uns com os outros a partir de uma série de atividades (MOURA; ZUCCHETTI, 2014). Desse modo, é possível que os jovens escolares, no contexto atual, insiram as novas tecnologias digitais nesse processo de socialização, apresentando um maior uso da internet para comunicar entre si durante o período que passam dentro e fora da escola. Como a realidade da vida de comunidades de baixa renda ainda é pouco conhecida, esse tipo de estudo se impõe como uma alternativa para a formulação de hipóteses e questões para futuras pesquisas. A comparação com os resultados obtidos na pesquisa nacional realizada pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) pode nutrir nossa análise. O percentual de acesso à internet entre os jovens de baixa renda participantes de nosso estudo é maior do que aquele apresentado pela pesquisa “TIC Kids Online Brasil”, realizada pelo CGI.br (2016a). Os dados coletados pelo levantamento nacional entre 2015 e 2016 indicam que 79% de crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos acessam a internet. Esse indicador corresponde a 23,4 milhões de indivíduos em todo o país (CGI.BR, 2016a). Se a variável socioeconômica for incluída, o resultado da pesquisa do CGI.br é bem Internet e Saúde 193 diferente: “Em 2015, metade das crianças e adolescentes pertencentes às classes DE (51%) era considerada usuária de internet. Essa proporção atingiu 84% entre as crianças e adolescentes da classe C e 97% entre aqueles das classes AB” (CGI.BR, 2016a, p. 158)18. Em nossa pesquisa com jovens de uma região pobre da cidade do Rio de Janeiro, pertencentes às classes D e E, os percentuais de acesso identificado foram de 87,8% entre usuários da atenção primária e 97% entre estudantes da escola pública. Esses índices foram semelhantes aos obtidos entre os participantes da Escola Parque da Gávea. É possível que a diferença observada entre o resultado do CGI.br e o nosso esteja relacionada ao fato de Manguinhos, território onde nossa pesquisa foi realizada, estar localizado em um centro urbano. Assim como é apontado no relatório do CGI.br (2016a), o acesso à internet em zonas urbanas é alto, atingindo o percentual de 84%. Desse modo, é possível que os percentuais obtidos em Manguinhos estejam associados à disponibilidade da infraestrutura e ao acesso facilitado a redes Wi-Fi ou ao sinal de operadoras telefônicas nos locais onde os jovens participantes da pesquisa circulam. O Quadro 4 apresenta o número de horas que os jovens estudantes de ensino médio utilizam a internet. Quadro 4. Frequência de uso da Internet Frequência de Uso 5 horas ou Local mais diárias 3 a 4 horas 1 a 2 horas diárias diárias Menos de uma 1 hora diária Não acessam todos os dias ou não responderam CECM 51% 30% 13% 6% 0% EPG 28% 44% 19% 5% 4% Fonte: Os autores (2017). Os dados obtidos em nossa pesquisa revelam que os jovens pobres de escola pública passam mais tempo na internet que aqueles da escola privada frequentada por filhos da elite econômica brasileira. Podemos deduzir que os estudantes do Colégio Estadual Clovis Monteiro, pertencentes as classes D e E, acessam mais de uma vez ao dia a internet. Esses resultados diferem daqueles apresentados pela pesquisa nacional do CGI.br. No levantamento nacional, foi identificado que 80% das crianças e adolescentes das classes A e B acessavam a internet mais de uma vez ao dia, enquanto entre indivíduos das classes D e E, esse percentual reduzia-se para 51% (CGI.BR, 2016a). 18 O IBGE define as classes sociais baseado no salário-mínimo mensal. Em 2020, o salário-mínimo foi fixado em 1039 reais. Logo, aqueles com rendimento entre 2 e 4 salários-mínimos por mês seriam da classe D; entre 4 e 10 salários-mínimos, da classe C; entre 10 a 20 salários mínimos, da classe B; e acima de 20 salários, da classe A. 194 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Os resultados relacionados à frequência de acesso à internet indicam que os jovens de Manguinhos possuem um comportamento similar àquele observado entre jovens norteamericanos. Segundo o relatório do Pew Research Center, “92% dos adolescentes reportaram ficar on-line diariamente — com 24% utilizando a internet ‘quase constantemente’, 56% ficando on-line várias vezes ao dia, e 12% reportando uso de uma vez ao dia. Somente 6% dos adolescentes indicaram ficar on-line semanalmente, e 2% ficam on-line com menor frequência” (LENHART et al., 2015, p. 16, tradução nossa). Nossos dados indicam que os jovens estudantes de Manguinhos acessavam mais vezes e ficavam mais tempo conectados na internet que os jovens norte-americanos. Cabe destacar que 51% dos alunos do Colégio Estadual Clóvis Monteiro acessavam a internet por cinco horas ou mais diariamente, enquanto 28% dos alunos da Escola Parque passavam esse mesmo período conectados. Essa diferença pode ter pelo menos três hipóteses explicativas. Ela pode estar relacionada à diferença de equipamentos sociais e culturais a que os jovens têm acesso. A região da cidade onde moram dos estudantes da Escola Parque oferece uma significativa quantidade de atividades culturais e lazer. Na região da cidade onde os estudantes da escola pública residem, não existe a mesma diversidade. Em São Paulo, a cidade mais populosa do Brasil, a realidade não é diferente. Caiado (2001), ao refletir sobre o papel da cultura na constituição da identidade coletiva e das políticas culturais como instrumento de desenvolvimento, na cidade de São Paulo, constatou que: [...] Há uma grande concentração dos equipamentos culturais no centro da cidade e nos distritos onde reside a população de alta e média renda. Os distritos onde a maioria dos residentes é de baixa renda são desprovidos de equipamentos culturais, ou os têm em proporção muito reduzida. (CAIADO, 2001, p. 65). Desse modo, os estudantes da Escola Parque podem realizar outras atividades culturais e esportivas, em vez de ocupar seu tempo acessando a internet: uma oportunidade que não está à disposição dos estudantes do Colégio Clovis Monteiro. Assim, essa diferença percentual talvez esteja relacionada às oportunidades de lazer e cultura desfrutadas por esses dois grupos de jovens. Uma outra hipótese explicativa para o maior tempo que os estudantes do colégio estadual dispõem para o acesso à internet está associado ao seu perfil socioeconômico. O alto poder aquisitivo dos pais dos jovens da Escola Parque permite que eles frequentem cursos particulares de música, dança e idiomas estrangeiros e realizem atividades físicas em instituições privadas para esse fim. A condição socioeconômica dos pais dos jovens da escola pública não permite que eles frequentem os mesmos ambientes. Finalmente, cabe destacar a oferta de ações educativas complementares ou atividades extracurriculares oferecidas por cada um dos estabelecimentos de ensino. Essas Internet e Saúde 195 atividades contribuem para a formação pedagógica. Muitas vezes, elas são realizadas de acordo com o projeto político-pedagógico da escola, contribuindo para os processos de desenvolvimento pessoal, promoção social e fortalecimento da autoestima. A escola privada selecionada para a pesquisa possui uma excelente infraestrutura, enquanto a escola pública enfrenta diversos problemas estruturais. Monteiro e Silva (2015) descrevem os insumos educacionais disponíveis em uma escola pública no estado do Ceará. Lá eles encontraram: Prédios e instalações inadequadas, a inexistência de bibliotecas, espaços esportivos e laboratórios, a falta de acesso a livros didáticos, materiais de leitura, a relação inadequada ao tamanho da sala de aula e o número de alunos, são problemas que influenciam diretamente no desempenho dos alunos. (MONTEIRO; SILVA, 2015, p. 23). Esse cenário é semelhante ao encontrado no Colégio Estadual Clovis Monteiro. Cabe destacar que muitas vezes as atividades didáticas são interrompidas devido ao “fogo cruzado” que envolve diariamente a polícia, os traficantes e os membros das milícias (ALVES; EVANSON, 2013). Nessas condições, é possível que os estudantes da rede estadual de ensino sintamse desmotivados a estudar, recorrendo à internet enquanto uma forma de preencher seu tempo livre. O lazer desses jovens encontra-se, quase que exclusivamente, na palma de suas mãos, no celular. Um ponto, entretanto, une os três grupos pesquisados. As Novas Tecnologias de Informação e Comunicação desempenham um papel central no cotidiano dos jovens. Em nosso estudo, 81% dos estudantes da escola pública e 72% dos estudantes da escola privada passavam 4 horas ou mais on-line. Ao alocarem uma parte significativa do seu dia para estarem conectados à internet, é possível aferir que o uso de NTICs ocupa um papel importante na vida diária dos jovens, permeando diversos aspectos de sua rotina. Trabalhos escolares, comunicação com amigos e familiares, fonte de informação, entretenimento, entre outros, podem ser atividades realizadas cada vez por esses jovens a partir da mediação das tecnologias digitais. As NTICs, com destaque para o celular, imbricam-se cada vez mais ao cotidiano desses cidadãos, possibilitando uma conexão permanente às redes virtuais e mediando em larga medida os relacionamentos interpessoais. A centralidade que as NTICs parecem assumir na vida de adolescentes aponta para a perspectiva do relatório “Global Kids Go Online” de que jovens e internet são, no cenário atual, uma via de mão dupla. Por um lado, eles representam uma parcela significativa dos usuários de internet ao redor do mundo, desempenhando um papel importante nas formas que essa tecnologia adquire. Por outro, a internet desempenha um papel importante na formação das vidas, identidades e culturas destes mesmos jovens (BYRNE et al., 2016). 196 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Outro aspecto a ser salientado em relação à frequência do acesso à internet de crianças e adolescentes refere-se ao papel dos pais e responsáveis. A Associação de Pediatria Americana (AAP, 2016) recomenda o monitoramento do tempo gasto com os diferentes tipos de mídia. Pais e responsáveis deveriam acompanhar o tempo e as atividades que crianças e adolescentes realizam nas redes virtuais. Assim, eles poderiam evitar que o uso do celular, computador, vídeo game e demais aparatos tecnológicos se sobreponha a atividades físicas, ao sono adequado e a outros comportamentos importantes para o bem-estar e qualidade de vida. Podemos deduzir que esse monitoramento não estava ocorrendo, pois boa parte dos jovens pesquisados passava mais de 5 horas na internet. Neste estudo, foi observado que os jovens de baixam renda ficam mais tempo na internet que os jovens de camadas sociais mais altas. É possível que esse dado esteja associado não apenas à diferença de oportunidades de lazer e culturas às quais esses jovens têm (ou não) acesso, mas também ao precário monitoramento que seus pais e responsáveis realizam do uso dessas tecnologias19. E qual é o dispositivo tecnológico que esses jovens, com perfis socioeconômicos tão distintos, utilizam para acessar a internet? Os dados obtidos em nossa pesquisa revelam que 68% dos estudantes entrevistados no Colégio Estadual Clovis Monteiro acessam a internet por meio de smartphones. Na escola privada, esse mesmo índice chega a 57%. Entre os usuários do centro de atenção primária, apenas 42%. A predominância das tecnologias móveis para acessar a internet observada entre os jovens de baixa renda participantes do estudo é consonante com os dados obtidos no levantamento nacional feito pelo CGI.br e em estudos internacionais. Segundo a instituição (CGI.BR, 2016a, p. 162), “em linha com a tendência de mobilidade de acesso à internet observada na população em geral [...], o crescimento do uso de dispositivos móveis foi destaque na pesquisa “TIC Kids Online Brasil” nos últimos anos”. Dados da pesquisa realizada pela instituição apontam que 85% das crianças e adolescentes utilizavam o telefone celular para acessar a internet, sendo que, desse montante, o percentual identificado entre jovens das classes D e E foi de 86%. O uso do smartphone enquanto a principal forma de acessar a internet foi também observado a nível internacional. Na pesquisa realizada pelo Pew Reaserch Center nos Estados Unidos, foi constatado que 88% dos jovens possuíam celular. Desses, 73% acessavam a internet pelo celular, do tipo smartphone (LENHART et al., 2015). No relatório da pesquisa “EU Kids Online”, é apontado que os jovens “ficam on-line por meio de dispositivos móveis e mais pessoais” (EU KIDS ONLINE, 2014, p. 6, tradução nossa). O uso majoritário do smartphone para acessar a internet também foi identificado na pesquisa “Global Kids Online”: 19 Os problemas relacionados com os riscos inerentes ao uso da internet por jovens serão aprofundados nos capítulos 10 e 11, dedicados, respectivamente, aos riscos na Internet e ao cyberbullying. Internet e Saúde 197 Smartphones são o dispositivo mais comum usado por crianças para ficar on-line, enquanto desktops e notebooks são utilizados com menor frequência. Mais de 80% das crianças na Argentina, Sérvia e África do Sul reportaram ficar on-line via smartphone ao menos todo mês ou mais frequentemente. Esse número é menor nas Filipinas (61%), mas smartphones ainda são o dispositivo mais comum utilizado por crianças filipinas para ficar on-line [...]. (BYRNE et al., 2016, p. 37, tradução nossa). O uso predominante do telefone móvel para se conectar às redes virtuais observado entre os jovens de baixa renda que participaram do estudo pode ser um dos fatores que explica os percentuais de acesso e a frequência de uso da internet identificados entre esse grupo. No cenário contemporâneo, o smartphone apresenta-se, cada vez mais, como a principal tecnologia para acessar a internet. As redes de comunicação sem fio difundiramse rapidamente, e a disseminação global da telefonia móvel nas últimas décadas é a face mais visível desse crescimento (CASTELLS et al., 2007; KALBA, 2008). Se inicialmente o smartphone era artigo tecnológico de luxo, seu barateamento e popularização o tornaram um elemento identitário do indivíduo contemporâneo, provocando profundas mudanças na sociabilidade, na percepção espaço-temporal e nas práticas urbanas (FIDALGO; CANAVILHAS, 2009; LEMOS, 2004). Mais do que um objeto técnico, o smartphone tornou-se um objeto social, atravessando diversos aspectos e práticas das rotinas pessoais, profissionais e acadêmicas de seus usuários (CAMPBELLKELLY; GARCIA-SWARTZ, 2015). A difusão da telefonia móvel encontra-se atrelada às constantes e rápidas transformações do telefone móvel, tanto em seu hardware quanto em seu software. Os atuais modelos de smartphone, mesmo em seus tamanhos menores, já possuem a mesma potência e podem desempenhar muitas das funções executadas por um computador de mesa. Nos próximos anos, sua capacidade de processamento e performance tende a aumentar (CAMPBELL-KELLY; GARCIA-SWARTZ, 2015). Uma pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Telecomunicações aponta que o número de celulares conectados com a tecnologia 4G ultrapassou os de aparelhos 3G pela primeira vez no Brasil. Em 2017, a rede 4G chegava a 3.363 municípios, onde moravam 90% da população brasileira. Ao todo, já existem no Brasil 205,5 milhões de acessos à internet pela rede móvel (TELEBRASIL, 2017). Esse número torna-se ainda mais surpreendente se levarmos em consideração que, de acordo com dados do Censo Demográfico de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil apresentava, há sete anos, uma população de 190.755.799 habitantes. As novas formas de interação e produção de conteúdo, associadas aos múltiplos usos agregados em um só aparelho, tornaram o smartphone uma expressão da convergência digital midiática (JENKINS, 2008). A crescente adesão à telefonia móvel é também 198 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) consonante com a computação móvel, ubíqua e pervasiva que caracteriza o século XXI: nos cenários urbanos, cada vez mais marcados pela mobilidade e pela conexão, os celulares destacam-se por serem facilmente móveis, com alta capacidade de processamento e prontos para se conectar à internet. Para os jovens de baixa renda, como aqueles que responderam ao questionário da pesquisa nas unidades de saúde e na escola pública, o celular parece ser um dispositivo estratégico para garantir o acesso à internet. As características e funções, a facilidade de uso e o custo são fatores que estão contribuindo para a adesão massiva ao smartphone. Ainda que o preço possa ser considerado alto no Brasil20, a aquisição desse tipo de aparelho pode apresentar uma relação de custo-benefício melhor que um computador de mesa ou ao notebook. Os jovens da escola privada, ao chegarem em casa, devem passar a acessar a internet por meio de outros dispositivos, deixando o celular de lado. E como esses jovens conectam a internet? O Quadro 5 apresenta alguns dados importantes neste sentido. Quadro 5. Tipo de conexão para acessar a internet Tipo de conexão para acessar a internet Compram créditos à Rede sem fio (Wi- Pacote 3G/4G Fi) pós pago CECM 52% 32% 16% EPG 10% 83% 7% Local medida que precisam (pré-pago) Fonte: Os autores (2017). Nesse caso, pode ser identificada uma evidente disparidade na maneira pela qual os dois grupos de estudantes acessam a internet. A diferença entre os percentuais constatados nas escolas pode ser atribuída à classe social dos indivíduos que circulam nesses espaços. Na escola privada, frequentada por jovens das classes A e B, o tipo de conexão prevalente foi o 3G/4G pós-pago: geralmente contratado por seus responsáveis a preços elevados, nas operadoras de telefonia. Já na escola pública, frequentada majoritariamente por jovens das classes D e E, a conexão por meio da rede sem fio predominou. É possível que esses jovens, por não terem condições de arcar com planos de dados móveis, utilizem 20 Nos Estados Unidos, é possível comprar um smartphone novo em uma loja online por 50 dólares ou menos. No Brasil, o valor mais baixo no mercado para um celular com as mesmas condições pode ser o dobro ou o triplo. Internet e Saúde 199 redes sem fio públicas espalhadas pela cidade, ou ainda acessem algum tipo de rede compartilhada no local onde vivem. Tanto na pesquisa com usuários que aguardavam atendimento quanto naquela com estudantes do ensino médio, foi possível observar a popularização do uso de smartphone como recurso prioritário de acesso à internet. Um acesso que se faz majoritariamente pelas redes sem fio, sobretudo entre os mais pobres. Assim, foi possível notar que os jovens de baixa renda participantes deste estudo, apesar de suas condições socioeconômicas precárias, apresentaram comportamentos típicos de um Nativo Digital. Seus comportamentos se assemelharam àqueles observados entre jovens de classes sociais mais altas. Contudo, isso não implica afirmar que as desigualdades socioeconômicas não afetam o acesso às TICs ou que todos os jovens de classes mais baixas sejam necessariamente Nativos Digitais devido à sua idade, como foi debatido no início deste capítulo. 2.3. Busca e consumo de informação on-line sobre saúde Os resultados do estudo exploratório que se transformou neste capítulo apontam que a internet é uma importante fonte de informação sobre saúde para os jovens. O Quadro 6 apresenta os resultados obtidos: Quadro 6. Consumo de informação sobre saúde na internet Buscam Informação sobre Saúde na internet Local Sim Não CAP 60,2% 39,8% CECM 90% 10% EPG 89% 11% Fonte: Os autores (2017). Alguns comentários merecem ser feitos em relação a esses resultados. Em primeiro lugar, cabe destacar os percentuais obtidos entre os jovens que aguardavam consulta em salas de espera de centros de atenção primária e os demais participantes no que se refere à busca de informações de saúde na internet: cerca de 60% buscavam informações sobre saúde na internet. Esse índice talvez possa ser explicado pelo fato de estarem formalmente inseridos no sistema de saúde. É possível que os profissionais de saúde ocupem um lugar de proeminência para esses jovens no que se refere ao oferecimento de informações sobre saúde. 200 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Os resultados obtidos com os jovens em seus estabelecimentos escolares foram muito diferentes: praticamente todos buscam informações sobre saúde na internet. Não foi percebida diferença significativa entre os jovens da escola pública (90%) e da escola privada (89%). Esse resultado é consonante com literatura internacional que relata adolescentes como pesquisadores ativos de informação sobre saúde na internet. Em um estudo com adolescentes do Reino Unido, Gray et al. (2005,) verificaram que “um número significativo de adolescente buscou ativamente informação sobre saúde on-line” (GRAY et al, p. 1470, tradução nossa). Segundo os autores, um dos motivos para esse resultado pode estar associado ao fato da internet permitir o acesso a informações inéditas, pouco comuns ou desconhecidas por eles. Essa dimensão confere uma motivação a mais na busca de informações na internet. Para os estudantes que participaram de nossa pesquisa, a principal motivação para pesquisar informações sobre saúde on-line é a diversidade e abrangência dos assuntos disponíveis na internet. Na Escola Parque, 53% dos alunos consideraram esse motivo “muito importante”. A vasta e diversificada quantidade de informação sobre saúde disponibilizada nas redes virtuais também foi o principal motivo indicado pelos jovens entrevistados nas salas de espera: 94,5% dos participantes consideraram importante encontrar informação sobre qualquer assunto na internet. Desse modo, é possível observar que o acesso às inúmeras fontes de informação possibilitado pela internet é um dos principais atrativos para nativos digitais, independentemente de suas classes sociais, pesquisarem sobre saúde on-line. Finalmente, cabe destacar que os percentuais encontrados neste estudo exploratório são maiores que aqueles obtidos pela pesquisa TIC Domicílios, conduzida pelo CGI.br (2016b) em todo o Brasil. No território nacional, a procura por informações relacionadas à saúde ou a serviços de saúde é a segunda atividade de busca de informação realizada por jovens na internet. Ela é superada pela procura de informações e serviços em geral: 13% dos jovens entre 10 e 15 anos e 40% daqueles entre 16 e 24 anos buscam informações sobre saúde on-line (CGI.BR, 2016b). O questionário utilizado em nossa investigação também procurou identificar com que frequência estes jovens buscavam informações sobre saúde na internet. O Quadro 7 apresenta o resultado obtido. Quadro 7. Frequência de busca de informações sobre saúde Frequência de busca de informações sobre saúde Local Muitas vezes Algumas vezes Poucas vezes Nunca EPG 6% 13% 30% 51% CECM 12% 12% 24% 52% Internet e Saúde 201 Fonte: Os autores (2017). Esses índices nos pareceram baixos. É possível que os percentuais observados entre os jovens da pesquisa estejam associados à forma como lidam com sua saúde e seu autocuidado. Os participantes podem pesquisar informação apenas quando possuem alguma doença ou problema de saúde. Se os jovens percebessem que o acesso à informação sobre saúde na internet poderia auxiliá-los a gerenciar seu bem-estar e incrementar sua qualidade de vida, talvez os percentuais de frequência identificados fossem maiores. Cabe salientar, entretanto, que os dados obtidos em nossa investigação se aproximam daqueles apresentados no relatório “Global Kids Go Online” (BYRNE et al., 2016). Segundo a pesquisa organizada pela UNICEF, um terço (33%) das crianças e adolescentes na Sérvia e na África do Sul e um quarto (25%) daquelas residentes nas Filipinas pesquisam informação sobre saúde na internet pelo menos uma vez por semana (BYRNE et al., 2016). Como poderíamos comparar os resultados obtidos em nossa amostra e aquele que foi resultado de uma pesquisa global? Se considerarmos “pelo menos uma vez por semana” como “poucas vezes”, os números obtidos em nossa investigação (30 e 24%) se aproximam daqueles obtidos globalmente (33 e 25%). Apesar desses baixos índices globais, uma das participantes da pesquisa da UNICEF afirmou: “Foi engraçado: eu estava dizendo que tive um problema de saúde e eles me perguntaram se eu tinha visitado um médico, eu disse não, tinha visitado a internet. (Menina, 15 anos de idade)”. (BYRNE et al., 2016, p. 40, tradução nossa). O Quadro 8 pode nos ajudar a compreender por que os jovens pesquisados não buscam informações sobre saúde, sobretudo, na internet. Quadro 8. Fonte de informação para problema de saúde Fonte de informação para problema de saúde Internet Local Familiares e/ou amigos Médico (depois Somente Não fazem procuram internet nada um médico) CECM 24% 44% 15% 13% 4% EPG 58% 19% 16% 7% 0% Fonte: Os autores (2017). Um aspecto nos chamou a atenção observando o quadro acima: a proeminência do médico para os estudantes da escola pública, em contraposição ao destaque conferido a familiares e amigos como fonte de informação para resolver um problema de saúde. 202 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) As diferenças observadas entre esses dois grupos de estudantes podem estar relacionadas ao acesso a serviços de saúde que possuem. É possível que os alunos da escola pública estivessem inseridos na rede de atenção primária do local onde moram e, assim como os participantes das salas de espera, tivessem a figura médica como referência para informações e problemas de saúde. É possível que o precário nível de escolaridade, comum entre classes sociais mais baixas, contribuísse para que esses jovens escolhessem a orientação do profissional médico, ao invés das pessoas do seu círculo de relacionamento mais próximo. O alto percentual de estudantes da Escola Parque que buscavam informações com familiares e/ou amigo também pode ser associado ao seu contexto socioeconômico. É possível que muitos dos familiares dos estudantes dessa escola fossem médicos ou amigos de médicos. Além disso, pelo contexto socioeconômico mais elevado, é possível que os familiares e amigos desses jovens tivessem maior instrução acadêmica, fazendo com que esses jovens das classes A e B buscassem informações de saúde em suas relações sociais mais próximas. Como podemos observar no quadro acima, a internet não ocupou o primeiro lugar na busca de informações em saúde em nenhum dos dois ambientes escolares pesquisados. Uma possível explicação para esse resultado pode estar relacionada à confiança que os participantes possuem na informação disponível na internet. O Quadro 9 apresenta os resultados obtidos sobre essa dimensão. Quadro 9. Confiança na informação de saúde obtida na internet Nível de confiança na informação on-line sobre saúde Algumas Poucas vezes vezes 16% 58% 21% 2% 23% 59% 17% 1% Local Sempre Muitas vezes CECM 3% EPG 0% Nunca Fonte: Os autores (2017). A maioria dos estudantes, nos dois contextos socioculturais, não confiavam plenamente nas informações de saúde obtidas na internet. Assim os resultados sugerem que as informações disponíveis não merecem a confiança plena do usuário21. A preocupação com a qualidade da informação obtida on-line apresentada pelos participantes da pesquisa é consonante com resultados de estudos internacionais. Em uma pesquisa realizada com estudantes de escolas públicas e privadas do Reino Unido, Gray et al. (2005) identificaram que jovens consideravam importante obter informação on-line sobre saúde corretas, e uma de suas principais preocupações em relação à pesquisa sobre saúde na internet era confiabilidade do conteúdo consultado. 21 O capítulo 9 irá analisar a questão da qualidade da informação em sites de saúde. Internet e Saúde 203 3. Considerações finais O cenário que vivemos atualmente está cada vez mais marcado pela popularização das NTICs, pela comunicação de muitos para muitos a nível global e pelo dilúvio de informações nas redes digitais. Nesse contexto, cresceram os Nativos Digitais. Eles são os jovens que nasceram após a década de 1980, sem conhecer um mundo onde a internet não existisse. Aos Nativos Digitais, são atribuídas uma série de características, entre as quais se destacam a habilidade de serem “falantes nativos” da linguagem digital, exercerem diferentes tarefas simultâneas e serem “aprendizes empíricos ativos”. Embora o conceito de Nativos Digitais tenha se difundido amplamente nos últimos anos, há pesquisadores que fazem ressalva a esse termo. Eles atentam que muitas vezes a aplicação do conceito restringe-se à faixa etária dos indivíduos, desconsiderando as condições socioeconômicas e culturais que podem afetar e moldar o uso das NTICs (BENNETT; MATON; KERVIN, 2008). Conduzimos este estudo exploratório inspirados por essa ressalva. Para tanto, aplicamos um questionário a jovens brasileiros inscritos em diferentes contextos socioculturais. Uma parte dos participantes da pesquisa vivia em uma situação de baixarenda, enquanto a outra parcela possuía uma situação extremante privilegiada. Ao selecionar esses grupos de jovens tão diferentes, tínhamos como objetivo averiguar se as condições socioeconômicas teriam efeito sobre o uso das tecnologias digitais. Questionávamos se esses indivíduos de diferentes camadas sociais, que nasceram no início do século XXI, poderiam ser considerados Nativos Digitais. Os resultados obtidos apontam que, entre os jovens de baixa renda que participaram do estudo, sua condição socioeconômica não impediu ou restringiu o acesso à internet. Ao contrário, foi averiguado que os estudantes da escola pública passam mais tempo na internet do que aqueles da escola privada. Esse ponto deve ser destacado, uma vez que a condição socioeconômica tem sido apontada como um dos principais motivos que impedem a generalização do termo Nativos Digitais. Identificamos ainda que os alunos da escola pública acessam a internet com maior frequência e passam mais tempo utilizando-a. Desse modo, poderíamos dizer que os jovens de baixa-renda apresentam um comportamento de Nativo Digital mais intenso do que aquele apresentado pelos estudantes com alto poder aquisitivo. Cabe destacar que esse resultado pode estar associado às condições socioeconômicas. Os jovens da escola privada têm, em seu tempo livre, um amplo acesso a uma diversidade de equipamentos culturais, enquanto os alunos da escola pública têm, nesses termos, opções bem mais restritas. Desse modo, é possível que considerar que, para os jovens de baixa-renda de nosso estudo, o uso frequente da internet seja um meio de acessar opções de entretenimento e de consumir produtos culturais que não possuem no espaço onde residem. 204 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Para o grupo específico de jovens de baixa renda que participaram do estudo, o conceito de Nativos Digitais pode ser aplicado, independentemente de fatores como renda. Entretanto, não pretendemos generalizar essa condição. Os jovens participantes residiam na zona urbana de uma das maiores metrópoles do Brasil. Caso o estudo tivesse sido realizado em outro município ou cidade, é possível que os resultados tivessem sido diferentes: o perfil socioeconômico do jovem poderia ser uma barreira ao acesso à internet e às demais tecnologias digitais. As condições estruturais de acesso a rede virtual poderiam dificultar enormemente esse acesso. A Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) do Brasil, em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) divulgaram um relatório intitulado “Avaliação de priorizações para expansão da rede de acesso à banda larga nos municípios brasileiros”. No documento, foi apresentado que 20% de todos os 10 mil municípios do país não têm acesso à internet. Estima-se que cerca de 4,5 milhões de brasileiros não consigam acessar a rede devido a problemas estruturais. O estudo constatou que os locais de difícil acesso encontram-se em área rurais ou em regiões onde habitam populações de baixo poder aquisitivo, mesmo nos grandes centros urbanos (IPEA, 2017). O bairro de Manguinhos, graças à sua localização próxima ao centro da cidade do Rio de Janeiro, pode ser considerado uma exceção. A frequência de acesso à internet identificada na pesquisa sugere o papel central que as NTICs desempenham na vida dos Nativos Digitais. Uma parcela significativa dos jovens participantes passava 4 horas ou mais conectados às redes virtuais. Isso nos sugere que as tecnologias digitais permeavam diferentes aspectos da rotina desses jovens. Nesse contexto, é possível considerarmos que as relações interpessoais se tornam uma das principais dimensões da vida desses jovens mediadas pelas tecnologias digitais: eles passam cada vez mais tempo conectados à internet, especialmente para conversar e se relacionar com outras pessoas. De acordo com a perspectiva de Oliveira (2017, p. 297), os jovens participantes de nosso estudo exploratório podem ser vistos como “adolescentes que, além de tudo, dimensionam o tempo de uma forma nova. Trata-se da ‘geração touch’, sempre ligada aos celulares conectados à internet, que evoluiu no uso das tecnologias digitais da interação para a integração”. Em relação aos aparelhos utilizados para conectar à internet, os resultados desta pesquisa reiteram a centralidade do celular enquanto dispositivo para conexão apontada nas pesquisas “TIC Kids Online Brasil” (CGI.BR, 2016a), “Global Kids Online” (BYRNE et al., 2016), “EU Kids Online” (2014) e “Pew Research Center” (LENHART et al., 2015). Os índices apresentados pelos jovens de baixa renda indicam que o celular, por ser mais barato que outros dispositivos para conexão e ter cada vez mais diferentes aplicativos e possibilidades de uso, favoreceu a inclusão digital desse grupo e seu desenvolvimento enquanto Nativo Digital. Eles apresentaram comportamentos e hábitos semelhantes aos jovens de camadas sociais privilegiadas. Internet e Saúde 205 Embora o celular possa ter ampliado o acesso à internet, é necessário destacar que o uso massivo desse aparelho coloque questões importantes para os jovens. Segundo Byrne et al. (2016), O acesso móvel pode ser positivo em termos de flexibilidade e privacidade, mas também pode reduzir oportunidades para pais mediarem ou apoiarem seus filhos enquanto eles exploram a internet [...]. A qualidade da experiência para a criança que acessa a internet apenas por telefone móvel pode ser diferente da [experiência] das crianças que também usam desktops ou notebooks: a tela pequena limita a quantidade e a complexidade do conteúdo que pode ser prontamente assistido, e, quando pesquisam informação on-line, usuários tendem a olhar o conteúdo ao invés de processá-lo e analisá-lo mais profundamente. (BYRNE et al., 2016, p. 36-37, tradução nossa). O resultado de nosso estudo aponta que a internet é uma importante fonte de informação sobre saúde para os jovens. Os participantes da pesquisa, independentemente de seu perfil socioeconômico, sentiam-se motivados a acessar conteúdo on-line de saúde devido às inúmeras fontes disponíveis. Entretanto, a internet não é identificada enquanto a única fonte de informação. A condição socioeconômica sugere que a figura do profissional médico desempenha papel central na vida dos jovens menos favorecidos. Entre os entrevistados nas salas de espera de unidades de saúde, apenas 1,7% daqueles que acessavam informação sobre saúde relataram que utilizariam a internet ao invés de consultar-se com seu médico. Os jovens da sala de espera estão formalmente inseridos na rede de atenção primária local, cujos serviços são administrados pela Fundação Oswaldo Cruz. Em uma pesquisa realiza em 2012 por Hollanda et al. (2012), usuários indicaram alta satisfação com os serviços prestados pela atenção primária na Fiocruz. Embora não tenha sido averiguado, é possível que os estudantes da escola pública também estivessem formalmente inscritos na rede de atenção primária do local onde vivem. Por sua vez, os estudantes da escola privada eram oriundos de família de alta renda. Podemos presumir sua condição econômica facilita o acesso à serviços de saúde, especialmente na rede privada. Nesse contexto, é possível considerar que o acesso regular ao serviço de atenção primária, o acompanhamento periódico por profissionais de saúde e a satisfação com os serviços oferecidos sejam fatores importantes para que a internet e a informação on-line sobre saúde ocupem um lugar secundário na vida dos usuários que aguardam consulta na sala de espera. Para eles, a figura e a autoridade do médico continuavam prevalecendo. No cenário contemporâneo, a atmosfera tecnológica tende a adensar, com o imbricamento cada vez maior das NTICs ao cotidiano. Crianças e adolescentes não estão alheios aos efeitos e implicações dessa atmosfera. Ao contrário, eles se encontram constantemente no ambiente virtual. A pesquisa exploratória realizada sugere que as condições socioeconômicas podem interferir na maneira pela qual esses jovens se 206 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) relacionam com as tecnologias digitais. Porém, a difusão das redes sem fio, especialmente em zonas urbanas, e o barateamento do celular parecem ter sido elementos fundamentais para que as diferenças entre as classes sociais sobre o uso e apropriação das NTICs diminuísse, possibilitando que ambos os grupos possam ser percebidos enquanto integrantes da geração de “Nativos Digitais”. Na medida em que as NTICs se tornam cada vez mais presentes no cotidiano dos jovens, a internet desponta enquanto uma importante fonte de informação sobre saúde. Nesse contexto, torna-se importante compreender não apenas como as tecnologias digitais afetam e moldam as diferentes dimensões da vida desses indivíduos, mas atentar para as oportunidades, desafios e questões relacionadas à saúde, ao autocuidado e ao bem-estar dos Nativos Digitais. Cabe salientar, finalmente, que este estudo exploratório se impôs diante de uma realidade ainda pouco conhecida no Brasil e no mundo. Com ele, fomos capazes de apresentar algumas hipóteses explicativas e formular questões para futuras pesquisas, evitando induções precipitadas. Acreditamos que o estudo exploratório apresentado neste capítulo tenha analisado de forma introdutória o lugar que o uso das Novas Tecnologias de Comunicação e Informação desempenha na vida dos jovens, sendo capaz de estimular outras investigações com finalidades semelhantes. Referências AAP - AMERICAN ACADEMY OF PEDIATRICS. American Academy of Pediatrics announces new recommendations for children’s media use. AAP, Itasca, 2016. 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Acesso em: 8 ago. 2020. YIN, R. K. Case study research: design and methods. Thousand Oaks: Sage Publications, 2003. 212 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Capítulo 7 Acesso e uso de Novas Tecnologias da Informação e Comunicação para a promoção do envelhecimento ativo: para quê? Para quem? Wilson José Alves Pedro*, Márcia Niituma Ogata, Heloísa Cristina Figueiredo Frizzo, Ariadne Chloe Furnival e Brunela Della Maggiori Orlandi Resumo Considerando as especificidades e demandas da transição demográfica, o presente capítulo propõe analisar algumas dimensões sobre o acesso e uso das Novas Tecnologias da Comunicação e Informação (NTICs) para a promoção do “envelhecimento ativo”. Esta análise está inserida no campo interdisciplinar de estudos sociais da ciência e tecnologia, Ela busca ressaltar a importância do acesso e da busca de informações em saúde e as dificuldades nesse processo; algumas estratégias adotadas pelas pessoas idosas nas redes sociais digitais; o desenvolvimento de novas habilidades e competências para a população sênior no acesso e uso das NTICs, de forma autônoma e independente; a emergência de políticas públicas e estratégias de inclusão socioeducativa da população sênior; e a relevância dos estudos sobre o uso de tecnologias da gerontecnologia, apontando novas alternativas para a promoção do “envelhecimento ativo”. Palavras-chave: Tecnologias da Informação e Comunicação NTICs; Envelhecimento; Gerontologia; Ciência, Tecnologia e Sociedade. Referência: PEDRO, W. J. A. et al. Acesso e uso de Novas Tecnologias da Informação e Comunicação para a promoção do “envelhecimento ativo”: para quê? Para quem?. In: PEREIRA NETO, A.; FLYNN, M. (orgs.). Internet e saúde no Brasil: desafios e tendências. 1 ed. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2020. p. 211-236. * Programa de Pós-Graduação em: Ciência, Tecnologia e Sociedade, Programa de Pós-Graduação em Gerontologia e Programa de Pós-Graduação em Gestão de Organizações e Sistemas Públicos., Universidade Federal de São Carlos - UFSCar, Brasil. E-mail: [email protected]. Internet e Saúde 213 Introdução No filme “Eu, Daniel Blake”, do diretor Ken Loach (2016), há uma cena impactante que nos faz refletir sobre os cenários contemporâneos do acesso e uso das Tecnologias da Informação e Comunicação (NTICs) pela população idosa1. Na cena desse filme, ganhador da Palma de Ouro de Cannes em 2016, o protagonista homônimo entra numa biblioteca pública para usar um computador: ele precisa preencher um formulário da previdência social, que somente existe em formato on-line. Mas a usabilidade do sistema lhe parece muito difícil e o coloca pessoas com pouca familiaridade no seu uso, como ele, em uma grande desvantagem. Diante da dificuldade, Daniel logo se encontra obrigado a pedir ajuda de estranhos ao seu redor – notadamente aos mais jovens que ele – para preencher o formulário. A cena capta brilhantemente como uma pessoa idosa pode se sentir quando não consegue lidar com as Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTICs). Com ela, o diretor convida o espectador a refletir sobre como o Estado pode rotineiramente empregar essas tecnologias para promover a exclusão de cidadãos na reivindicação de seus direitos. Essa cena descreve, portanto, um momento importante da vida muitos habitantes do planeta neste século XXI. O caso de Daniel Blake é emblemático para nós pesquisadores do campo da Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS), pois nos instiga a compreender como as NTICs impactam o cotidiano das pessoas e qual é o seu potencial para a promoção do “envelhecimento ativo” (WHO, 2002). Neste capítulo agregamos algumas de nossas reflexões a partir de cenário brasileiro, a saber: como os conhecimentos sobre acesso e uso das Novas Tecnologias da Informação e Comunicação (NTICs) são produzidos, disseminados e apropriados pelas pessoas, de modo particular por aquelas que envelhecem? Quais as condições objetivas e subjetivas de acesso e uso dessas tecnologias? Quem acessa e como acessa as NTICs? Como se dão os processos de ensino-aprendizagem no curso da vida, especialmente a partir da vida adulta: a aprendizagem formal, a aprendizagem informal e a aprendizagem nãoformal? Como as políticas e a gestão pública atuam nesses processos? E os profissionais, trabalhadores, gestores, como atuam nessa dinâmica? Enfim, quando o assunto é envelhecimento, questiona-se: tecnologias para quê? Tecnologias para quem? Para responder a essas questões, apresentaremos e analisaremos o contexto brasileiro das pessoas idosas e as dificuldades que enfrentam ao ter que lidar com esse conjunto de novas tecnologias. 1 A Organização Mundial da Saúde (OMS) define o idoso a partir da idade cronológica; portanto, em países em desenvolvimento, idosa é aquela pessoa com 60 anos ou mais. Em países desenvolvidos, é considerada aquela com 65 anos ou mais (WHO, 2002). 214 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) 1. Envelhecimento ativo: aportes e aproximações dos estudos sociais da ciência e da tecnologia O conceito de “envelhecimento ativo”, disseminado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), foi desenvolvimento na Segunda Assembleia Mundial das Nações Unidas sobre o Envelhecimento, em 2002, em Madrid/Espanha (WHO, 2002). Desde então, o termo vem sendo compreendido como: [...] participação contínua nas questões sociais, econômicas, culturais, espirituais, civis, e não somente à capacidade de estar fisicamente ativo ou de fazer parte da força de trabalho. As pessoas mais velhas que se aposentam e aquelas que apresentam alguma doença ou vivem com alguma necessidade especial podem continuar a contribuir ativamente para seus familiares, companheiros, comunidades e países. O objetivo do envelhecimento ativo é aumentar a expectativa de uma vida saudável e com qualidade de vida para todas as pessoas que estão envelhecendo, inclusive as que são frágeis, fisicamente incapacitadas e que requerem cuidados. (WHO, 2002, p. 12, tradução nossa). Projeta-se para o ano de 2050 um “divisor de águas demográfico” (CENTRO INTERNACIONAL DE LONGEVIDADE BRASIL, 2015, p. 16). Há expectativas de que 21% da população mundial tenha 60+ anos; ou seja, mais de dois bilhões de pessoas. A tendência é que esse grupo populacional se concentre em 64 países. A América Latina, Ásia e China concentrarão 30% da população mundial. Portanto, o acesso e uso das NTICs para a participação social, a segurança e a promoção de saúde parecem ser premissas que permeiam esse cenário. Por essa razão, Daniel Blake precisa saber lidar com desenvoltura com as Novas Tecnologias de Informação e Comunicação. Para nós, pesquisadores brasileiros do envelhecimento, a compreensão desses processos e contextos é sempre desafiante. Pensar o acesso e uso das NTICs para a promoção do “envelhecimento ativo” (WHO, 2002) implica necessariamente pensar os múltiplos contextos e possibilidades do envelhecer, sua complexidade e multideterminação (WHO, 2002). Implica pensar novas formas de interação social, novas possibilidades de ensinar-aprender que respeitem as diversas expressões de envelhecimento e velhice: ativo, autônomo, independente, plural, mas também frágil, pré-frágil e dependente. Implica pensar em usuários, comunidade, trabalhadores, gestores das mais diversas organizações, programas e serviços com os quais esse segmento populacional interage – ou seja, uma complexa gama de serviços, programas e organizações. O aumento da expectativa de vida é, sem dúvida, uma conquista da humanidade, que nos traz contínuas demandas e desafios. O processo do envelhecimento torna-se hoje Internet e Saúde 215 pauta nas agendas acadêmicas e das políticas públicas seja pelos avanços científicos e tecnológicos que contribuem para a redução da fecundidade e da mortalidade ou seja pelos impactos nas mudanças da dinâmica e do estilo de vida, bem como pelos fatores multidimensionais que congrega em toda a sua diversidade e complexidade, (WHO, 2017). Os avanços científicos e tecnológicos impactam a longevidade ao contribuir com suas inovações na ampliação da expectativa de vida e, complementarmente, ao provocar na população que envelhece, anseios, necessidades e perspectivas de melhoria nas condições e na qualidade de vida. Tendo por enquadre teórico-metodológico os estudos do campo da CTS, o presente texto nasce do encontro de pesquisadores vinculados ao Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade (PPGCTS) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), sensíveis aos impactos dos avanços da ciência e das tecnologias no cotidiano das pessoas idosas. O campo da CTS configura-se historicamente como um locus privilegiado de pesquisas e intervenções. Seu objeto constitui-se no estudo das interações e determinações sociais da ciência e da tecnologia, na análise de seus fatores sócio-históricos e culturais, e nas mudanças científico-tecnológicas. Originado a partir da década de 1960, ele consolidou-se na década 1970 na Europa e Estados Unidos, expandindo-se nos países latino-americanos e fortemente no Brasil. Caracteriza-se como um campo interdisciplinar, pautado em aportes teóricos e epistemológicos da filosofia e da sociologia da ciência e da história da tecnologia, evidenciando que o desenvolvimento científico e tecnológico é socialmente construído, e suas consequências afetam a vida social e as dimensões ambientais (BLOOR, 1991; BIJKER; HUGHES; PINCH, 1987; FULLER, 1993; JASANOFF et al., 1994; LATOUR, 1987). O campo da CTS propõe investigar dimensões sociais da ciência e da tecnologia, visando apreender os fenômenos do ponto de vista dos seus antecedentes sociais e analisando criticamente suas consequências, tanto no que diz respeito aos fatores de natureza social, político e econômico que modulam as mudanças científicas e tecnológicas, quanto no que concerne as repercussões de natureza ética, ambiental e cultural dessas mudanças. Seus pressupostos apontam a relevância dos atores sociais no contexto do desenvolvimento científico e na produção e disseminação de artefatos tecnológicos, bem como a democratização da tomada de decisão de questões concernentes à ciência e à tecnologia (BIJKER; LAW, 1994; LEACH; SCOONES; WYNNE, 2004; JASANOFF, 2005). O campo da CTS contribui, portanto, para a desconstrução de uma visão tradicional, essencialista e triunfalista da ciência e da tecnologia, que pode ser resumida no chamado “modelo linear de desenvolvimento” (PALACIOS, 2001, p.120, tradução nossa): + ciência = + tecnologia = + riqueza = + bem estar social, modelo esse ainda não questionado e presente no mundo acadêmico e na comunicação científica (MAYR, 1982; IRWIN, 1995). Nesse cenário, temos priorizado os estudos da gerontologia, entendida enquanto uma ciência interdisciplinar que se ocupa dos processos de envelhecimento, e estabelecido conexões com o campo da CTS (MADDOX, 1987; JOHNSON, 1997, ALKEMA; ALLEY, 216 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) 2006). Compreende-se o envelhecimento como um processo dialético, individual e/ou coletivo, retrospectivo e/ou prospectivo, com base em experiências que não ocorrem isoladamente e que é influenciado pelas redes sociais e condições de vida (CABRAL et al., 2013). Portanto, o fenômeno-objeto processos de envelhecimento é multideterminado e demanda aportes interdisciplinares para a construção de conhecimentos que apreendam as dimensões individuais, intra e intersubjetivas, sociais, históricas e culturais e as suas respectivas interações, bem como as consequências e impactos no curso da vida (WHITBOURNE, 2008; JOHNSON, 2005). Uma das nossas principais preocupações no âmbito da gerontologia é compreender a maneira pela qual o indivíduo interage com a sociedade no curso da vida, especialmente na fase em que envelhece, e como as estruturas sociais influenciam o “processo de envelhecimento” (JOHNSON, 2005; WHITBOURNE, 2008). Ao estudar o humano, “deve ficar claro que está sempre estudando uma formação material determinada, qualquer que seja o corte feito na universalidade das relações recíprocas em que está inserido” (CIAMPA, 1993, p. 150). Reafirmamos nossos pressupostos de que o conhecimento científico e tecnológico deve contribuir para elucidar historicamente o lugar da velhice em nossa sociedade. Corroboramos a tese de que: É contrário aos valores democráticos aceitar a exclusão ou marginalização dos idosos, ou ainda definir a velhice como uma condição social de dependência. Aos grupos de idosos assiste o direito efectivo de representação e participação social e política. Reposicionar o idoso no conjunto do sistema de relações intergeracionais constitui um imperativo democrático e um desafio político que as sociedades envelhecidas enfrentam. (CABRAL et al., 2013, p. 12). Portanto, universalizar o acesso e a livre escolha da utilização das NTICs é um desafio que se renova continuamente. As especificidades emergentes das interações humano-tecnologia no contexto do processo de envelhecimento vêm também se constituindo em um campo de estudos, de pesquisas e de intervenções clínicas e psicossociais, denominado “gerontecnologia” (BOUMA et al., 2007). Internacionalmente, esse termo tem sido relacionado a um ramo de tecnologias auxiliares em saúde e domínios sociais em busca da qualidade de vida, conforto e segurança a pessoas idosas. A gerontecnologia é um campo interdisciplinar acadêmico, profissional e de pesquisa em que a tecnologia é direcionada às aspirações e oportunidade para as pessoas idosas. Tem por objetivo a boa saúde, a participação social e a vida independente de pessoas em envelhecimento. Nesse sentido busca a sustentabilidade da sociedade em envelhecimento por meio da criação de ambientes tecnológicos, incluindo tecnologia assistiva, design inclusivo para a vida e participação social, inovadoras e independentes de idosos em boa saúde, conforto e segurança. A gerontecnologia diz respeito ao desenvolvimento de ambientes tecnológicos para a saúde, habilitação, Internet e Saúde 217 mobilidade, comunicação, lazer e trabalho de pessoas mais velhas (BOUMA et al., 2007). Sale (2018) aponta que a gerontecnologia vem desenvolvendo novos dispositivos para ajudar pessoas com limitações nas atividades instrumentais ou aprimoradas da vida diária e funções de memória e monitoramento aliviando também a carga de cuidadores. Em sua especificidade, a gerontecnologia contribui para o desenvolvimento e a distribuição de produtos, serviços e ambientes com as tecnologias mais apropriadas. Também contribui para melhorar o cotidiano das pessoas em processo de envelhecimento, especialmente as pessoas idosas, visando proporcionar condições para um envelhecimento digno, com qualidade de vida, independência e autonomia. Evidencia-se que as tecnologias são hoje um recurso imprescindível para otimizar o desempenho social e funcional das pessoas idosas. Entretanto, muitos desafios se renovam no que tange à assimilação cultural, aos processos de aprendizagem de acesso e uso, bem como as interações homem-máquinas. É preciso especificar: de quais tecnologias falamos? Em quais contextos? É preciso delimitar para avançar cautelosamente nas reflexões. Schatzberg (2006) realizou uma breve etimologia do termo tecnologia. A seu ver esta palavra teria origem na tradição grega (teck-nologia) significando tratamento ou descrição sistemática de uma ou mais teknai (artes práticas, ofício). Segundo Schatzberg (2006) Weber teria empregado o termo technik em alemão, para se ele, referir aos produtos e artefatos físicos e ideias intelectuais (SCHATZBERG, 2006). Contemporaneamente, a tecnologia é vista como inseparável do contexto sociocultural e econômico no qual é gerada, podendo ou não incluir conhecimentos científicos. A tecnologia, o conhecimento, o governo e a economia formam partes constituintes e interdependentes das infraestruturas de produção: formam sistemas sociotécnicos estruturados, em formato de redes, tendo como os atores tanto pessoas, instituições quanto artefatos e objetos (BIJKER; LAW, 1994; BIJKER; HUGHES; PINCH, 1987). Palacios et al. (2001) realizaram uma ampla conceituação da expreessão tecnologia no âmbito dos estudos de CTS, apontando que: A tecnologia é uma projeção do ser humano e seu ambiente, mas antes disto é conveniente manter uma atitude crítica, pois nem sempre teve os efeitos desejados, voltando-se contra nós com frequência, quando volta-se frequentemente contra nós, tal como quando o mostro voltava-se contra Victor Frankestein. Trata-se de se desenvolver formas de convivência com a tecnologia no mundo de hoje, que nos permitam corrigiam os erros passados – expressos de maneira tão eloquente pelo movimento ludista – e adaptar as máquinas as necessidades humanas e suas aspirações. (PALACIOS et al., 2001, p. 75, tradução nossa). A palavra tecnologia, quando justaposta ao prefixo geron, traz em si um legado que também precisa ser contextualizado e (re)significado. 218 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Foi por volta do século XVIII que a tecnologia passou a utilizar o significado de melhoramento racional das artes (técnicas), em especial daquelas que se exerciam na indústria, mediante o estudo científico (MAYR, 1982). Mas foi no século XX, com os avanços tecnológicos associados às demandas da transição demográfica, que a gerontecnologia veio se firmando como uma área interdisciplinar que congrega estudiosos e pesquisadores para aprimorar e otimizar as tecnologias aos processos de envelhecimento. Como Bouma et al. (2007) afirmam: a segunda metade do século XX, os esforços foram inicialmente direcionados para dois campos importantes: ergonomia ou fatores humanos para pessoas idosas e dispositivos auxiliares para pessoas com deficiência. Desde os anos noventa, a base de conhecimento tem expandido à medida que outras ambições e necessidades dos idosos foram levadas em consideração também. Este é o campo da gerontecnologia, trazendo gerontologia e tecnologia em conjunto com o objetivo de uma boa vida para os idosos, a maioria dos quais pode ser independente e intregrada em sociedade. (BOUMA et al., 2007, p. 210, tradução nossa). Diversos recursos tecnológicos estão disponíveis atualmente para as pessoas idosas. Eles carecem de estudos, disseminação de informações e intervenções junto ao público sênior. Entre tais recursos, destacam-se: as tecnologias para: o trabalho e emprego (mudanças e inovações tecnológicas nas diversas ocupações e carreiras); para a participação social (voto eletrônico, transações bancárias, emissão de documentos pessoais); para a educação (viabilizando as múltiplas formas educativas formal, não formal e informal); para o entretenimento (closed caption, games, e-books; redes sociais digitais, captação e produções imagem e som); para o cotidiano (máquinas e instrumentos que alteraram o funcionamento de atividades rotineiras, como carros, cafeteiras, televisão por assinatura, controle remoto) para a interação social (redes sociais digitais); e para o autocuidado em saúde (aplicativos de monitoramento e controle estado de saúde, interações remotas com serviços de saúde). Alem disso cabe destaque as tecnologias assistivas, promotoras de habilidades funcionais para contextos de pré-fragilidade e fragilidade, visando a independência e a inclusão. Muitas delas são realizadas com o uso do computador ou smartphone, por meio da internet. Esse foi o embaraço que Daniel Blake se encontrava na cena descrita no início deste capítulo. Não saber lidar com as Novas Tecnologias de Informação e Comunicação colocou o personagem principal do filme em uma condição de profunda vulnerabilidade. Para nós, as NTICs são recursos técnicos usados para tratar a informação e auxiliar na comunicação. Elas incluem o hardware de computadores, as redes, os telemóveis, bem como todos os softwares necessários para que ele cumpra suas funções. As NTICs correspondem a boa parte das tecnologias que interferem e mediam os processos informacionais e comunicativos dos seres humanos (BRIGGS; BURKE, 2004). Elas Internet e Saúde 219 formam um conjunto de recursos tecnológicos integrados entre si, que proporcionam, por meio das funções de hardware, software e telecomunicações, a automação e comunicação dos processos de negócios, da pesquisa científica, de ensino e aprendizagem, entre outras. NTICs Essas tecnologias estão, portanto, presentes no cotidiano humano, inclusive na vida dos idosos como Daniel Blake, o personagem do filme citado no início deste capítulo. A situação demográfica do Brasil não difere daquela observada em outros países em desenvolvimento no mundo. A pirâmide etária brasileira tem sofrido fortes modificações ao longo das últimas décadas. Na década de 1980, havia uma base larga e um ápice estreito, representando o fato de que havia mais crianças e jovens do que pessoas mais velhas. No entanto, considerando a atual pirâmide etária e a projeção para o ano de 2050, há o estreitamento da base e um alargamento do ápice, o que significa que a população está envelhecendo por consequência de transições demográficas, observadas ao redor do mundo. A questão do envelhecimento no Brasil e em países em desenvolvimento remete também a questões sociais ainda não muito bem resolvidas, tais como a miséria, gerando desigualdade e exclusão do crescente contingente populacional (COSTA et al., 2000). Compreendendo este contexto mais geral, a Organização Mundial de Saúde (WHO, 2002) coloca as seguintes questões: Como nos ajudamos pessoas a permanecerem independentes e ativas à medida que envelhecem? Como podemos encorajar as políticas de promoção da saúde e de prevenção, especialmente aquelas direcionadas aos mais velhos? [...] Como a qualidade de vida pode ser melhorada na terceira idade? Grande número de pessoas idosas causará a falência de nossos sistemas de saúde e da previdência social? Como podemos equilibrar o papel da família e do Estado em relação à assistência para aqueles que necessitam de cuidados, à medida em que envelhecem? Como podemos reconhecer e apoiar o papel importante que as pessoas desempenham conforme elas envelhecem cuidando ede outros? (WHO, 2002, p.7, tradução nossa). Uma resposta a tais questionamentos pode ser possível por meio do que se convencionou chamar de “envelhecimento ativo”, ou seja, a “otimização de oportunidades de saúde, participação e segurança, com o objetivo de melhorar a qualidade de vida à medida que as pessoas ficam mais velhas” (WHO, 2002, p. 13, tradução nossa). 220 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) 2. Perfil das pessoas idosas e acesso às NTICs: algumas evidências Existe uma dificuldade em localizar dados sobre a utilização das NTICs fracionadas por idade, principalmente a porção acima de 60 anos. Para termos uma ideia sobre o acesso das pessoas idosas nos dados apresentados pela Office for National Statistics (ONS)2 do Reino Unido houve um crescimento do número de idosos que usaram a internet, segundo esta base de dados. Assim, 74,1% dos idosos de 65 a 74 anos e 38,7% com mais de 75 anos usaram a internet no ano de 2016 (ONS, 2016). Em 2017, o percentual de uso nessas faixas etárias foi de 78% e 41%, respectivamente (ONS, 2017). Houve também um maior acesso por parte da população idosa composta por homens nessas faixas etárias para ambos os anos. Ao longo dos anos, os dados divulgados pelo Office for National Statis revela um aumento no acesso à internet por parte da população idosa em geral. Em 6 anos (período de 2011 a 2017), o crescimento de idosos usuários de internet no Reino Unido foi significativo. Entre as faixas etárias de 65-74 anos, passou de 52% para 77,5%. Para a faixa etária acima dos 75 anos, passou de 19,9% para 40,5% de usuários de internet (ONS, 2016; 2017). No caso brasileiro, tomando como base a “Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios” (PNAD) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referente ao ano de 2013, pode-se constatar que a participação relativa das pessoas idosas de 60 anos ou mais de idade foi de 13% da população total, sendo que esse indicador foi mais elevado para a Região Sul (14,5%) e menos expressivo na Região Norte (8,8%)3 (IBGE, 2014). Esse estudo revela que o arranjo familiar mais comum para as pessoas idosas (30,6%) foi aquele composto por pessoas idosas morando com filhos, todos com 25 anos ou mais de idade, na presença ou não de outros parentes ou agregados, sendo esse indicador mais elevado para as mulheres (33,3%) que para os homens (27,3%). Um desafio relacionado ao envelhecimento populacional no Brasil diz respeito à previdência social. Para o grupo de pessoas de 60+ anos, 23,9% não recebiam aposentadoria ou pensão, enquanto 7,8% acumulavam ambas. A alta proporção de idosos de 60+ anos que não recebiam aposentadoria ou pensão (23,9%) possivelmente está relacionada à inserção no mercado de trabalho, dado que a taxa de ocupação foi de 27,4% nessa faixa de idade. Para aqueles que não eram aposentados ou pensionistas, a taxa de ocupação foi de 45,1%. 2 O Office for National Statistics é o órgão executivo do UK Statistics Authority, um departamento nãoministerial que oferece ao Parlamento do Reino Unido estatísticas populacionais, econômicas e sociais em nível nacional e regional. 3 Nas regiões sudeste, centro-oeste e sul do Brasil, concentra-se a população com maior poder aquisitivo e escolaridade do país. Internet e Saúde 221 No Brasil, segundo a PNAD 2012, das pessoas acima dos 50 anos, apenas 20,5% utilizaram a internet no ano de referência, com destaque para as regiões Sudeste (26%) e Sul (21,4%), que obtiveram maior acesso por parte dessa população. Assim como relatamos acima, há também o predomínio de homens na utilização de internet, com média de 22,2% para aqueles acima dos 50 anos, comparado a 19,1% para as mulheres acima dos 50 anos. As regiões sudeste e sul também concentram os maiores percentuais de usuários idosos no Brasil (IBGE, 2012; 2017). 3. As NTICs no contexto de envelhecimento As NTICs favorecem a inclusão da população idosa na sociedade como um ser ativo, tendo em vista que podem contribuir para a realização e divulgação de trabalhos voluntários, a aquisição de conhecimentos, o acesso a informação, socialização de manifestações artísticas, culturais, entre outras, que vão muito além da oportunidade de mero passatempo. Tais tecnologias propiciam a possibilidade de comunicação mais rápida com amigos e parentes em qualquer lugar do mundo, sem a necessidade de deslocamento, o que constitui um grande incentivo para a utilização dessas ferramentas por essa faixa etária. O acesso às NTICs pode ajudar ainda a fomentar sentimentos positivos nas pessoas idosas, diminuindo questões de solidão, depressão e ansiedade. Outros estudos apontam que, além de reduzir o isolamento, esse acesso melhora o envolvimento organizacional, especialmente para aquelas pessoas idosas que possuem mobilidade reduzida (ETCHEMENDY et al., 2011). As ferramentas digitais mais utilizadas por pessoas idosas são aquelas que propiciam o acesso à informação e promove interação social, tal como as redes sociais que permitem o compartilhamento de informações, ideias, imagens, fotos e favorece a comunicação entre diferentes usuários. Um estudo realizado por Miné (2014) concluiu que as redes sociais digitais4 começam a penetrar e moldar o cotidiano da população idosa, que está cada vez mais conectada e vem mudando suas formas de comunicar-se, entreter-se e interagir socialmente. A autora aponta que a página intitulada Terceira Idade no Facebook busca romper com o estereótipo de valorizar o culto ao jovem (MINÉ, 2014), tão presente na cultura brasileira. As publicações nessa página da rede social digital reforçam a questão da autonomia física e mental, a independência financeira e a sociabilidade: temas extremamente relevantes para esse público. A autora questiona se a identificação com a projeção do imaginário de uma velhice bem-sucedida é uma das justificativas para que a página tenha muitos fãs. O estudo ressalta também a maneira como o Facebook Terceira Idade se aproxima mais da realidade das pessoas idosas por meio de temas relacionados à 4 O capítulo 5 aborda o tema das comunidades virtuais em saúde. 222 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) memória, tangenciando assuntos referentes aos tempos que já passaram, às pessoas que já se foram e ao saudosismo típico dessa fase da vida. Nesse contexto, porém a autora destaca que o ambiente da página tende a reforçar uma visão distorcida da velhice. Em síntese, Miné (2014) conclui que a página estudada visa desafiar os estereótipos existentes em relação à terceira idade, abordando temas que reforçam a felicidade e a memória e projetando uma imagem positiva do idoso ativo. Chepe e Adamatt (2015) apontam que a utilização de redes sociais digitais por pessoas idosas facilita a interação social, contribuindo para a aprendizagem e consequentemente para o desenvolvimento humano, sendo um instrumento mediador da comunicação humana. Associado a essa questão, as referidas autoras destacam que a comunicação e a aquisição de conhecimento no meio digital, por meio da plataforma Facebook, constituem-se como uma forma de manter a função cognitiva das pessoas idosas, contribuindo para com um envelhecimento bem-sucedido. As redes sociais digitais despontam como uma ferramenta social que permite ampliar as formas de comunicação e compartilhamento de informações da sociedade por meio do uso da tecnologia. Páscoa (2012) apresentou um estudo de caso na Universidade Sénior Albicastrense, analisando a contribuição do Facebook na promoção do “envelhecimento ativo” (WHO, 2002). Constata que as pessoas idosas consideram o Facebook uma ferramenta digital facilitadora e muito útil nas suas relações, visando um “envelhecimento ativo” (WHO, 2002) porque “aumenta a qualidade de vida, combate o isolamento, promove a socialização, é um complemento de lazer e entretenimento e aproxima gerações em que os avós e netos falam a mesma linguagem” (PÁSCOA, 2012, p. 74). Na pesquisa, realizada por Páscoa (2012), os participantes encararam o Facebook como um projeto de vida para envelhecer melhor, porque se sentiram infoincluídos no meio digital, com maior participação na sociedade, e criando valor para a comunidade. Lewis e Ariyachandra (2010), ao realizar pesquisas sobre o uso das redes sociais digitais, também constataram que elas possuem potencial de aumentar a qualidade de vida da pessoa idosa, funcionando como um meio facilitador da interação com a comunidade. Hoje, o uso das NTICs é considerado como um dos aspectos fundamentais da cidadania5. Essas tecnologias permeiam efetivamente o curso da vida no contexto da velhice, na manutenção no mundo do trabalho e/ou no contexto da aposentadoria, nas redes interpessoais, nas relações de apoio e de vizinhança, na participação social e nos cuidados da saúde e do bem-estar, bem como no entretenimento – dentro e fora de casa, nas atividades e ocupações do tempo livre (CABRAL et al., 2013; PEDRO, 2013). Porém, não existe consenso nas pesquisas realizadas com a população idosa e com a população em geral sobre uma possível relação entre o uso regular das NNTICs e a diminuição da solidão, uma experiência subjetiva de sentimentos negativos sobre níveis de contato social, do e isolamento social, que é a experiência objetiva da ausência de contato com outras pessoas (COTTEN; ANDERSON; MCCULLOUGH, 2013). Algumas 5 O debate sobre participação cidadã on-line é abordado no capítulo 4. Internet e Saúde 223 pesquisas têm demonstrado que o uso das NTICs pode aumentar sensações de isolamento social, sobretudo se as interações forjadas no uso das NTICs forem superficiais, ou se forem percebidas como não compensando em relação àquelas relações sociais já perdidas na vida da pessoa idosa (COTTEN; ANDERSON; MCCULLOUGH, 2013). Por outro lado, é possível que o aumentado acesso à informação e a possibilidade de poder comunicar-se facilmente com familiares e amigos com certa regularidade possam ajudar a diminuir percebida solidão (AZEVEDO, 2017). Segundo Cotten, Anderson e McCullough (2013), são necessárias mais pesquisas que vão além de meras medidas de uso da internet e examinem o tipo, a frequência, o momento e para qual função a internet é usada pela população idosa. Por exemplo, se está sendo usada para propósitos não comunicativos regularmente, é possível que seu uso contribua para maior isolamento social e sensação de solidão. Também é necessário pontuar que iniciativas voltadas à temática da inclusão digital de pessoas idosas ainda são raras, e se faz necessário o fortalecimento dessa rede para melhor contribuir no acesso dos pessoas idosas e no preparo de cursos que considerem aspectos importantes do envelhecimento, como discutido por Doll, Machado e Cachioni (2011). A tendência atual de aumento da população idosa tem feito com que países como Estados Unidos e Holanda disponibilizassem sites específicos para a população idosa (ALPAY et al., 2004; CAMPBELL; NOLFI, 2005). No estado de São Paulo, existe um programa denominado AcessaSP, criado no ano 2000 por meio do Decreto n° 45.057 e reformulado em 2016 por meio do Decreto n° 62.306 (BRASIL, 2016). AcessaSP é até hoje o principal e maior programa de inclusão digital gratuito para a população, e tem como missão “promover o empoderamento digital do cidadão oferecendo infraestrutura gratuita de tecnologia e comunicação, orientação, informação e formação, em um ambiente colaborativo”, por meio de mais de 800 postos de atendimento em todo o estado (SÃO PAULO, 2017). É uma política forte que pode ter contribuído, até o momento, para aumentar a inclusão digital da população do estado de São Paulo. 4. E-health, e-health literacy e as pessoas idosas A crescente expansão do uso da internet trouxe também um interesse em definir como serão alcançadas informações em saúde (BRODIE et al., 2000). Eysenbach (2001) apontou como o termo e-health (e-saúde) rapidamente se fez presente ao se falar do aumento no uso da internet para encontrar informações sobre saúde. Segundo Eysenbach (2001) e-health seria um campo situado na intersecção da informática médica, saúde pública e negócios, referindo-se ao ponto de entrega de serviços e informações em saúde por meio da internet e tecnologias relacionadas. No seu entender, este conceito vai além do mero uso das NTICs, no sentido que estas serão empregadas para inculcar valores de 224 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) um pensamento global em prol de melhorar a prestação de serviços de saúde em níveis regionais e locais. O autor lista e define os “10 Es” da e-health, entre os quais há o “empoderamento dos consumidores” dos serviços de saúde (EYSENBACH, 2001, p. 1). Talvez o mais relevante para as populações idosas seja a dimensão da equidade, porque existe a potencial da e-health aumentar a distância entre aqueles que detêm e aqueles que não (os haves e have-nots), acesso a computadores e redes e que não possuem as habilidades no seu uso e que não se beneficiam com o acesso à informação em saúde. Segundo ele, essa exclusão digital reforça a clivagem entre as populações urbanas e rurais, os ricos e os pobres, o gênero masculino e o feminino, os idosos e os jovens, os doentes comuns e os com enfermidades raras (EYSENBACH, 2001). O uso a apropriação das novas tecnologias de informação e comunicação podem gerar diferentes benefícios aos idosos. Etchemendy et al. (2011) desenvolveram uma plataforma de e-health com a intenção de auxiliar pessoas idosas e cuidadores a detectar precocemente alterações nos estados emocionais e aspectos físicos. O sistema funciona de forma a investigar, por meio de escalas, pequenas alterações notadas no humor do idoso. A partir do resultado apresentado (com variação de leve a grave, considerando a idade da pessoa idosa), o sistema oferece opções de orientações terapêuticas e recreativas a partir de um recurso de autogestão. Aliado à plataforma, cada vez que uma pessoa idosa aciona uma avaliação e opta por uma resposta terapêutica, seu médico recebe em relatório e é capaz de interagir por meio do programa conforme ache necessário. Entre os motivos que as pessoas idosas mais apresentam para utilização da internet está a procura por informações sobre saúde (LAGANÀ, 2008; KOOPMANBOYDEN; REID, 2009). Um estudo com 2.084 pessoas com 50+ anos, realizado no site norte-americano SeniorNet, demonstra que 70% dos entrevistados utilizaram o endereço eletrônico para obter informações a respeito de saúde, o que lhes permitiu acessá-las em momentos que considerassem mais apropriados (TAK; HONG, 2005). Outra pesquisa reportou que, apenas 22% dos norte-americanos adultos de 65 ou mais pesquisassem online. Entretanto, nesse grupo 66% pesquisaram on-line informação relacionada à saúde ou informação médica (FOX, 2004). Deursen (2012) relata que obter informações sobre saúde por meio da internet pode ajudar detectar precocemente eventuais problemas de saúde e até mesmo corroborar tratamentos de doenças. De acordo com dados levantados pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil em 2016, a busca pela informação sobre saúde ocupa o segundo lugar em termos do tipo de informação procurado por esse grupo, sendo que a procura por informações sobre produtos e serviços ocupa o primeiro lugar (CGI.BR, 2017). O fato das informações disponíveis na internet muitas vezes estarem incompletas ou serem de fontes não confiáveis6, além da dificuldade de assimilar a informação e colocálas em prática, são aspectos que catalisam e permeiam as agendas internacionais de pesquisa em torno dos fenômenos de health literacy, health information literacy, e eHealth 6 O capítulo 9 aborda o assunto da informação de saúde na internet. Internet e Saúde 225 literacy. Nutbeam (2008) observa que o conceito de health literacy evolui de duas perspectivas: a dos cuidados clínicos (clinical care) e a da saúde pública. Da primeira perspectiva, a health literacy será um fator determinante que influi nas escolhas de tratamento e em seus possíveis resultados. Um baixo grau de health literacy pode influir, por exemplo, na forma com que um paciente adere às recomendações clínicas, tendo um impacto negativo nos resultados do tratamento clínico. Por outro lado, a perspectiva da saúde pública posiciona a health literacy como um resultado do interesse do paciente em buscar e apresentar a informação encontrada como possível insumo no processo da tomada de decisão. Segundo Hirvonen et al. (2015), as pesquisas demonstram que a health literacy em níveis inadequados predomina entre o sexo masculino, grupos socioeconômicos menos favorecidos, minorias étnicas, pessoas com deficiências de longo-prazo e a população idosa. Por sua vez, a definição de health information literacy formulada pela Medical Library Association é: […] o conjunto de habilidades necessárias para: reconhecer uma necessidade de informação em saúde, identificar fontes de informações prováveis e usá-las para recuperar as informações relevantes; avaliar a qualidade da informação e sua aplicabilidade a uma situação especifica; analisar, entender e usas as informações para tomar boas decisões em saúde. (MLA, 2007, tradução nossa). Niemelä et al. (2012) desenvolveram uma ferramenta para aferir a health information literacy cotidiana das pessoas, a partir da definição da MLA da health information literacy. Tal ferramenta foi usada por Niemelä et al. (2012) com uma amostra de estudantes finlandeses, e por Hirvonen et al. (2015) num estudo de jovens homens finalandeses. Não encontramos estudos aplicando essa ferramenta especificamente em populações idosas. Com a atual onipresença das NTICs na vida cotidiana, essa definição de health information literacy dá lugar a outro termo, “eHealth literacy, requer uma mistura de saúde, informação, ciência, mídia, computador e literacia na Internet” (WATKINS; XIE, 2014, p.2, tradução nossa). Na revisão sistemática realizada por Watkins e Xie (2014), é evidenciado que esse conceito apresenta um emergente reconhecimento na literatura. Porém, esses autores também observam que os modelos existentes para aferir graus de eHealth literacy ainda carecem de mais pesquisa teórica para validá-los empiricamente, porque sua generalidade para populações idosas precisa ser estabelecida. Há também a ferramenta eHEALS, que mede de forma auto-reportadada (subjetivas) escalas de eHealth literacy (NORMAN; SKINNER, 2006). Ela precisa ser atualizada para incorporar explicitamente as ferramentas da Web 2.0 (WATKINS; XIE, 2014). Na revisão sistemática da literatura realizada por Watkins e Xie (2014) sobre a eHealth literacy e as pessoas idosas, foram encontrados somente 23 artigos extraídos de 28 bases de dados, cobrindo nove campos de conhecimento relevantes. Os autores 226 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) identificaram uma falha na maioria dos estudos levantados. Eles não mencionaram a renda, etnicidade, raça e nível de educação das pessoas idosas participantes. Essas variáveis sociodemográficas são conhecidas por impactar os níveis de health literacy. Na maioria dos estudos analisados pelos autores, as intervenções de eHealth literacy foram compostas por materiais institucionais desenvolvidos pelo National Institute of Healthdos Estados Unidos websites dedicados a uma condição específica, como AVC e derrame, tutoriais multimidiáticos, como programas de rádio, entre outros. A maioria das intervenções ocorreu em contextos não formais, como bibliotecas públicas ou centros de lazer para idosos, sendo que apenas 17% das intervenções aconteceram em contextos clínicos. Nenhum dos estudos identificados na revisão de Watkins e Xie (2014) tiveram intervenções de eHealth literacy que resultaram num impacto positivo na saúde, porque não foram executadas em contextos clínicos. Os autores identificam isso como uma falha das intervenções para promover a eHealth literacy. Ao mesmo tempo, eles reconhecem que seria difícil administrar certas intervenções de eHealth literacy em contextos clínicos, precisamente porque requerem que os participantes utilizem computadores. A revisão desses autores também identificou como lacunas prevalentes nas intervenções da eHealth literacy o acesso à informação via dispositivos móveis e a questão da Web 2.0. O estudo realizado por Arief, Hai e Saranto (2013) objetivou compreender vantagens e barreiras para em relação à utilização de eHealth na perspectiva de pessoas idosas a partir da identificação de pontos fortes, debilidades, ameaças e oportunidades, na busca de subsidiar a formulação de estratégias futuras sobre a acesso a essas tecnologias. Os resultados dessa pesquisa permitiram compreender que o uso da eHealth melhora o acesso aos serviços de saúde e potencializa benefícios de economia de custos. Sob essa perspectiva, observou-se uma atitude positiva dos idosos em relação ao uso das tecnologias. No entanto, observaram-se fraquezas significativas relacionadas à falta de pesquisa baseada em evidências para provar seus benefícios e limitações físicas. Arief, Hai e Saranto (2013) destacam ainda que a qualidade da eHealth ainda é questionável em comparação com os serviços tradicionais. O estudo mostra que as principais ameaças incluem a proteção de dados, a privacidade e a exclusão digital. Finalmente, a pesquisa aponta que a oportunidade de implementar estratégias de eHealth para idosos é promissora, uma vez que pode melhorar o crescimento econômico, a educação, o avanço tecnológico e a melhoria das práticas de informática em saúde baseadas em evidências. Este capítulo enfatiza que as fraquezas e ameaças podem ser superadas utilizando os pontos fortes e aproveitando o potencial da e-Health. No cenário brasileiro observa-se um aumento nos estudos e pesquisas envolvendo o uso das tecnologias na saúde e domínios sociais para pessoas idosas, apresentados na ocasião do I e II Congresso Brasileiro de Gerontecnologia (REVISTA DE MEDICINA RIBEIRÃO PRETO, 2016; 2017). Os trabalhos apresentados versaram sobre os seguintes temas: ambiente, estimulação multissensorial, designer, closed caption, ambientes assistidos, games, literacia, trabalho, mobilidade, aplicativos, aparelho celular, tablets, Internet e Saúde 227 ambiente virtual, tecnologias assistivas e afins. Nessa perspectiva, serão apresentados a seguir estudos específicos afins. 5. Algumas evidências sobre NTICs e pessoas idosas no contexto brasileiro Um estudo realizado por Orlandi e Pedro (2014) analisa aspectos sobre as síndromes geriátricas e traz como foco o acesso e uso de informação em saúde, por meio da internet, de um grupo de pessoas idosas participantes de um programa de inclusão digital em um município interior do estado de São Paulo. Esse estudo evidencia que, proporcional à transição demográfica, crescem as preocupações com o processo de saúde e doença, podendo a internet ser um meio facilitador e emancipador para a obtenção de informações. Esse estudo, aponta para um pensamento que leve a uma melhora no processo de envelhecimento e uma preocupação maior com a fase da velhice junto aos participantes. Também demonstra tendências de redução do isolamento social, da ressignificação do papel social e de encontros intergeracionais na Web. O tema luto tem sido explorado o uso das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação, mais especificamente os blogs constituindo-se como estratégia adotada por pessoas adultas e idosas. Estudos realizados por Frizzo, Pedro e Szylit (2017) visam compreender os blogs como espaço para a produção de interação e laços sociais entre mães enlutadas, com os aportes do campo da CTS. A partir da etnografia virtual, foi realizada a análise de seis blogs temáticos sobre a perda de um filho(a), de autoria de mães enlutadas. Para a coleta de dados, foram utilizadas a observação participante e a aplicação de formulário de análise dos blogs. Os dados foram sistematizados em categorias. Constatouse que os blogs se constituíram como estratégia de expressão de narrativas pessoais das vivências da mãe frente à perda do filho. Ao longo do tempo, essas ferramentas propiciaram interações sociais, validadas quantitativamente por indicadores numéricos e qualitativamente por interações entre a audiência do blog. As interações sociais “intra blog” ocorreram por meio da audiência de cada blog via ferramenta de comentários. Gradativamente constatou-se a produção de interações “extra blogs”, estabelecendo comunicação entre autores de diferentes blogs, e em redes sociais, via perfis pessoais da autora do blog e/ou por comunidades e grupos, para fins de apoio e suporte a outros enlutados. Frizzo, Pedro e Szylit (2017) constataram ainda que os blogs se configuraram como recursos potenciais para a expressão de si, para a constituição de rede de apoio e suporte social, e para a retomada do cotidiano frente ao enfrentamento de perda e luto. Mais recentemente, estudos têm sido realizados sobre o luto e comunidades virtuais nas páginas do Facebook (FRIZZO et al., 2017). Eles investigam as comunidades virtuais constituídas por mães de filhos(as) falecidos(as) enquanto agrupamentos humanos 228 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) observados no ciberespaço, no quais um número suficiente de mães leva adiante discussões públicas ou partilha de sentimentos em torno da perda de seu filho(a) durante um tempo suficientemente longo para consolidar redes de relações pessoais. Tais comunidades caracterizam-se pela interatividade, permanência e sentimento de pertença. Adotando também a metodologia da etnografia virtual em comunidades virtuais na mídia social Facebook criadas por mães de filhos(as) falecidos(as), teve-se como objetivo investigar as interações sociais virtuais produzidas por meio desses ambientes. Foi encontrado um total de 56 comunidades/páginas. A análise dos dados permitiu a definição de cinco unidades temáticas: processos de luto, processos de homenagem e memória do filho; processos de ativismo social; processos de autoajuda e processos de apoio/suporte. A investigação realizada permite colocar algumas questões sobre o processo de morte e luto na sociedade contemporânea e sobre como o uso das Tecnologias de Comunicação e Informação pode ajudar a expressão de um processo tão pessoal e singular como a perda de um ente querido por meio da interação social e da construção de redes de apoio e suporte. Outro aspecto merece destaque. Existe a crença que as NTICs e, sobretudo, a comunicação fácil e rápida que proporcionam poderão contribuir para uma redução na desigualdade em saúde, apoiando- se na promoção da saúde, no autocuidado (autogestão em saúde), na prevenção de doenças e no manejo da doença por meio da aquisição de informações na internet (BERTERA et al., 2007). Para que isso aconteça, é necessário se ater à qualidade da informação que será transmitida, pois há uma grande facilidade de utilizar os recursos de saúde provindos da internet que não tenham uma natureza segura (TAK; HONG, 2005). Faz-se necessário estabelecer indicadores de confiabilidade de sites, assim como desenvolver habilidades e competências de navegação, busca, acesso e uso da informação da internet, a fim de apropriar-se de modo qualificado a informação desejada7.. Para que as pessoas idosas possam avaliar os sites e as informações neles veiculadas, haverá necessidade de fomentar iniciativas de capacitação continuada no uso das NTICs, a qual pode ser contextualizada pelo conceito de aprendizagem ao longo da vida (AVL). Este é um tema muito importante no campo da Gerontecnologia. O memorando sobre aprendizagem ao longo da vida (AVL) contém a seguinte definição deste conceito, estabelecido no contexto da Estratégia Europeia para o Emprego: “toda e qualquer actividade de aprendizagem, com um objectivo, empreendida numa base contínua e visando melhorar conhecimentos, aptidões e competências” (COMISSÃO DAS COMUNIDADES EUROPEIAS, 2000, p. 3). A amplitude dessa definição chama a atenção para o leque das categorias básicas de atividades de aprendizagem, nomeadamente a aprendizagem formal, não formal e informal, para além da inclusão de todas as fases da aprendizagem, desde a infância à aposentadoria. A AVL tem como objetivo fundamental a procura de uma solução positiva no debate sobre o desemprego na Europa e de um contexto em que a atualização dos conhecimentos profissionais se torne um imperativo para todos os cidadãos. Significa que, se uma pessoa tem o desejo de aprender, ela terá condições de 7 O capítulo 9 analisa a questão a da avaliação da qualidade da informação em sites de saúde. Internet e Saúde 229 fazê-lo, independentemente de onde e quando isso ocorra. Para tanto, é necessário à confluência de três fatores: a predisposição de aprendizagem; a disponibilidade de ambientes de aprendizagens (centros, escolas, empresas etc.) adequadamente organizados e a existência de pessoas que possam auxiliar o aprendiz no processo de aprender (agentes de aprendizagem). A proposta a ser enfatizada é que a aprendizagem que acontece na escola e durante a vida profissional deve ser uma extensão da aprendizagem que se dá na infância ou na terceira idade. As pessoas devem ter meios para continuar a aprender, interagindo com o mundo e recebendo ajuda dos agentes de aprendizagem. A pergunta, portanto, é: como criar essas oportunidades de aprendizagem para que as pessoas possam construir conhecimento como parte do seu dia a dia, desde o nascimento e estendendo ao longo da vida? Ogata et al. (2016), analisando a produção de conhecimentos sobre o tema gerontecnologia, corroboram as tendências apontadas nesses estudos sobre Novas Tecnologias da Informação e Comunicação. Destacam ainda a presença de enfoques que contemplem os temas pesquisados, mas há lacunas, escassez de grupos, linhas de pesquisas e de recursos humanos. Os autores indicam ainda a necessidade de fomento e formação, bem como nucleação em rede de pesquisadores, para os avanços da área no Brasil. 6. As NTICs e políticas públicas para envelhecimento A II Assembleia Mundial do Envelhecimento realizada em Madrid no ano de 2002, definiu um “Plano de Ação Internacional sobre o Envelhecimento” (WHO, 2003), composto por temas centrais vinculados a metas, objetivos e compromissos, a saber: a) Plena realização de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais de todos os idosos; b) Envelhecimento em condições de segurança, o que implica reafirmar o objetivo da eliminação da pobreza na velhice com base os Princípios das Nações Unidas em favor dos idosos; c) Capacitação de idosos para que participem plena e eficazmente na vida econômica, política e social de suas sociedades, inclusive com trabalho remunerado ou voluntário; d) As oportunidades de desenvolvimento, realização pessoal e bem-estar do indivíduo em todo curso de sua vida, inclusive numa idade avançada, por exemplo, mediante a possibilidade de acesso à aprendizagem durante toda a vida e a participação na comunidade, ao tempo que se reconhece que os idosos não constituem um grupo homogêneo; 230 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) e) Garantia dos direitos econômicos, sociais e culturais dos idosos assim como de seus direitos civis e políticos, e a eliminação de todas as formas de violência e discriminação contra idosos; f) Compromisso de reafirmar a igualdade dos sexos para as pessoas idosas, entre outras coisas mediante a eliminação da discriminação por motivos de sexo; g) Reconhecimento da importância decisiva que têm as famílias para o desenvolvimento social e a interdependência, a solidariedade e a reciprocidade entre as gerações; h) Assistência à saúde, apoio e proteção social dos idosos, inclusive os cuidados com a saúde preventiva e de reabilitação; i) Promoção de associação entre governo, em todos os seus níveis, sociedade civil, setor privado e os próprios idosos no processo de transformar o Plano de Ação em medidas práticas; 31 j) Utilização das pesquisas e dos conhecimentos científicos e aproveitamento do potencial da tecnologia para considerar, entre outras coisas, as consequências individuais, sociais e sanitárias do envelhecimento, particularmente nos países em desenvolvimento; k) Reconhecimento da situação dos idosos pertencentes a populações indígenas, suas circunstâncias singulares e a necessidade de encontrar meios de terem voz ativa nas decisões que diretamente lhes dizem respeito. (WHO, 2003, p. 30). Além disso, o documento da OMS afirma que a transformação do plano de ação em prática, faz-se necessário a associação entre governo, sociedade, setor privado e população idosa (WHO, 2002). Pautado pelas diretrizes e pressupostos do Plano de Ação Internacional sobre o Envelhecimento, o Brasil definiu a “Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa”, por meio da Portaria GM/MS nº 2.528, em 19 de outubro de 2006 (BRASIL, 2006). Essa política tem a finalidade de “recuperar, manter e promover a autonomia e a independência dos indivíduos idosos”. Ela define e disserta sobre nove diretrizes que a norteiam, a saber: a) promoção do envelhecimento ativo e saudável; b) atenção integral, integrada à saúde da pessoa idosa; c) estímulo às ações intersetoriais, visando à integralidade da atenção; d) provimento de recursos capazes de assegurar qualidade da atenção à saúde da pessoa idosa; e) estímulo à participação e fortalecimento do controle social; f) formação e educação permanente dos profissionais de saúde do SUS na área de saúde da pessoa idosa; g) divulgação e informação sobre a Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa para profissionais de saúde, gestores e usuários do SUS; Internet e Saúde 231 h) promoção de cooperação nacional e internacional das experiências na atenção à saúde da pessoa idosa; e i) apoio ao desenvolvimento de estudos e pesquisas. (BRASIL, 2006, p.5). O Plano de Ação Internacional sobre o Envelhecimento entende que “a habilitação de idosos e a promoção de sua plena participação são elementos imprescindíveis para um envelhecimento ativo” (WHO, 2003, p. 21). Com o amplo desenvolvimento e proliferação das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação, no século XX surge a necessidade de promover diferentes alternativas para que as informações científicas, que são a base para o avanço e desenvolvimento científico e tecnológico, sejam domínio comum de toda a população. Esta questão se tomou ainda mais evidente com a emergência e desenvolvimento do movimento em favor do acesso aberto a informação (ANDRADE e MURIEL-TORRADO, 2017). Neste contexto, a “Declaração de Berlim” sobre acesso ao conhecimento às ciências e humanidades (MAX PLANCK GESELLSCHAFT OPEN ACCESS, 2003), passou a nortear as diretrizes internacionais e mobilizar a agenda política de diversos países. No Brasil, Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict) lançou, em 2005, o “Manifesto Brasileiro de Apoio ao Acesso Livre à Informação Científica”, que propõe como base o acesso livre à informação. Para isso, traz como objetivos: “promover o registro da produção brasileira em consonância com o paradigma do acesso livre a informação; promover a disseminação da produção cientifica brasileira em consonância com o paradigma do acesso livre a informação; estabelecer uma política nacional de acesso livre a informação cientifica; buscar apoio da comunidade cientifica em prol do acesso livre a informação cientifica” (IBICT, 2005). Entre as diretrizes brasileiras, destaca-se o Estatuto do Idoso, por meio da Lei n° 10.741/2003 (BRASIL, 2003). O artigo 3º Inciso VII preconiza o “estabelecimento de mecanismos que favoreçam a divulgação de informações de caráter educativo sobre os aspectos biopsicossociais de envelhecimento” (BRASIL, 2003). Já o artigo 21 determina que o “Poder Público criará oportunidades de acesso do idoso à educação, adequando currículos, metodologias e material didático aos programas educacionais a ele destinados”. (BRASIL, 2003). Nesse contexto, as Novas Tecnologias da Informação e Comunicação podem contribuir para a promoção da participação social das pessoas idosas, seu protagonismo visando o reconhecimento de sua condição cidadã, a preservação da memória e da identidade cultural. 232 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) 7. Conclusão No entrecruzamento entre transição demográfica e avanços científicos e tecnológicos, evidencia-se a relevância da temática em estudo. Não apenas o protagonista Daniel Blake, sujeito emblemático disparador desta reflexão, mas as evidências, os cenários e os contextos perscrutados nos permitem refletir sobre o acesso e uso das Novas Tecnologias da Informação e Comunicação. Isso permite articular tais tecnologias com o âmbito das discussões sobre envelhecimento ativo (WHO, 2002) e suas aproximações com aportes dos estudos sociais da ciência e da tecnologia. Trata-se de um exercício desafiador e fértil, pois propicia visualizar as fortalezas e potencialidades, bem como as fragilidades e as lacunas dessa questão, vislumbrando uma cautela na priorização de uma agenda sobre o tema. Também se evidencia o crescimento das NTICs num contexto mundial, apontando tendências internacionais das pessoas idosas no acesso e uso das NTICs e da prioridade na produção de conhecimentos, destacando-se as NTICs no contexto do envelhecimento, a partir do ehealth. No caso do Brasil, apesar do caráter recente, a produção de conhecimentos e pesquisas brasileiras articulando NTICs e pessoas idosas se se interessam cada vez mais com as mídias digitais, requerendo esforços na agenda pública de instituições, profissionais e cidadãos. As NTICs e as políticas públicas do envelhecimento possuem diretrizes gerais que tem o potencial de capitalizar e repercutir nas agendas locais. Problematizou-se no início deste capítulo questões potentes, que se renovam no processo e que certamente nos propiciarão avançar. São elas:como os conhecimentos sobre acesso e uso das Novas Tecnologias da Informação e Comunicação têm sido produzidos, disseminados e apropriados pelas pessoas, de modo particular por aquelas que envelhecem? Quais as condições objetivas e subjetivas de acesso e uso dessas tecnologias? Quem acessa e como acessa as tecnologias? Como se dão os processos de ensinoaprendizagem no curso da vida, especialmente a partir da vida adulta: a aprendizagem formal, a aprendizagem informal e a aprendizagem não-formal? Como as políticas e a gestão públicas atuam nesses processos? E os profissionais, trabalhadores, gestores, como atuam nessa dinâmica? Enfim, quando o assunto é envelhecimento, questiona-se: tecnologias para quê? 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Capítulo 8 A saúde na rede social: um estudo exploratório da fanpage “Melhor com saúde” Denise Cristina Ayres Gomes* Resumo Este estudo tem como objetivo compreender a dimensão simbólica da saúde no ambiente digital. Realizamos um estudo exploratório da fanpage “Melhor com saúde”, que possui 8,5 milhões de seguidores no Facebook. Selecionamos as duas postagens com maior número de comentários. Em seguida, descrevemos o conteúdo e analisamos os cinquenta primeiros comentários de cada uma delas. Utilizamos como referencial metodológico a análise de conteúdo por categoria temática proposta por Bardin (2004). Identificamos que a fanpage analisada enfoca assuntos cotidianos que tendem a afetar o equilíbrio do corpo e do espírito. A partir da investigação dos posts mais comentados, podemos inferir como a saúde se reconfigura no decorrer da ação nos meios digitais. O debate sobre saúde se amplifica no social, criando uma rede de solidariedade em torno dos temas relacionados. A saúde estaria associada ao bem-estar e ao desfrute hedonista da vida. Para além da dimensão racional, trata-se de um ethos estético, circunstancial, erigido e partilhado por meio da comunicação em rede. Palavras-chave: Internet; Mídias Sociais; Saúde; Simbolismo; Conhecimentos, Atitudes e Prática em Saúde. Referência: GOMES, D. A. A saúde na rede social: um estudo exploratório da fanpage “Melhor com saúde”. In: PEREIRA NETO, A.; FLYNN, M. (orgs.). Internet e saúde no Brasil: desafios e tendências. 1 ed. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2020. p. 237-255. * Centro de Ciências Sociais, Saúde e Tecnologia, Universidade Federal do Maranhão, Brasil. E-mail: [email protected]. Internet e Saúde 239 Introdução O desenvolvimento dos meios de comunicação e a capitalização em forma de rede mudaram radicalmente a forma de estar no mundo. A internet se tornou um dispositivo constituinte da sociabilidade pós-moderna, operando como espaço privilegiado de produção social de sentido. A era virtual permite a comunicação instantânea, contínua e interativa, que atua em nossos modos de ser, agir, sentir e sofrer: isto é, conforma a subjetividade, as práticas sociais e as próprias definições de realidade. A esse novo modo de ser/estar no mundo denominamos pós-modernidade. O imaginário moderno, baseado em esquemas totalizantes, cedeu lugar ao relativismo e ao paradoxo. Ao invés de ser absoluta, a verdade é colocada em perspectiva, despontando interpretações possíveis para os fenômenos. Vivenciamos a falência das metanarrativas (LYOTARD, 2011), em que os esquemas explicativos da realidade perdem o apelo legitimador e universalizante, sendo substituídos por conceitos e referências voláteis e relativas. A própria ciência é considerada metanarrativa, passível de ser questionada e resultante de um processo histórico-cultural. “Simplificando ao extremo, considera-se ‘pósmoderna’ a incredulidade em relação aos metarrelatos. É, sem dúvida, um efeito do progresso das ciências; mas este progresso, por sua vez, a supõe” (LYOTARD, 2011, p. XVI). A saturação do modelo racional e mecânico provoca a revalorização espiritual, com a inscrição do divino na realidade. Isso implica considerar o divino não como um ente transcendente, mas como algo que permeia todas as coisas, uma espécie de “mística natural” (TERRIN, 1996). “A cultura hodierna projeta no divino antes de tudo a sua epistemologia fraca, que é feita de crise da ciência e do mundo racional em geral [...]” (TERRIN, 1996, p. 75). O modelo comunicativo em rede é característico da pós-modernidade, em que os atores sociais interagem de forma descentralizada. A internet modifica o que tradicionalmente compreendemos como esferas pública e privada. Aspectos íntimos são expostos na sociedade e despertam o interesse das pessoas. A esfera privada invade e domina a arena pública, atuando sobre os modos de ser. A exposição continuada e excessiva da vida é um meio de ser tornar visível, alcançar a existência social. Nesse contexto, conforma-se a “sociedade confessional” (BAUMAN, 2013), onde exteriorizar a intimidade produz reconhecimento no coletivo. Nela, o interesse público se volta para histórias particulares e atomizadas que alimentam as conversas diárias. A luta pela igualdade e as ações coletivas cedem espaço para a primazia do indivíduo e a busca de autoafirmação. Ainda de acordo com Bauman (2013), a sociedade midiática transforma o conceito tradicional de comunidade, no qual os indivíduos possuem laços afetivos e de pertencimento. A comunidade contemporânea possui vínculos frágeis e efêmeros e disputa 240 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) a economia da atenção, partilhando algum interesse transitório que logo é substituído por outro. Os indivíduos têm o impulso de se conectar e se desconectar sem restrições ou comprometimentos. A natureza transitória das comunidades permite que se mude de opinião, desfilie-se do grupo e se contate pessoas sem compromissos ou grandes perdas. A transitoriedade das relações pode ser compreendida a partir da emergência de uma nova sensibilidade de caráter emocional (MAFFESOLI, 1995; 2018). A pósmodernidade experimenta a mutação do conceito de indivíduo, anteriormente uma identidade ligada essencialmente ao trabalho, e proporciona o retorno do sentimento de pertencer a um grupo, a um lugar. As emoções impelem à comunhão intensificada devido à facilidade de conexão entre as pessoas. De acordo com Maffesoli (1995; 2018), é experimentada uma valorização dos papéis que cada pessoa representa no grupo. Estamos nos tempos das tribos, grupos de origem empática, orgânica e movidos pela necessidade de viver o presente. A pós-modernidade restitui a importância dos afetos compartilhados e experiências, além das emoções capazes de agregar pessoas, mitos e outras narrativas que ultrapassam a dimensão meramente racional e utilitarista. O ambiente que se constitui aponta para a instabilidade, a premência do lado emocional e a transitoriedade das relações. Nesse cenário, a vida não é tecida por grandes sobressaltos e realizações, mas se baseia no trivial, nas evidências do cotidiano. O ambiente pós-moderno, constituído da sinergia entre o arcaico e a tecnologia de ponta (MAFFESOLI, 1995; 2018), reconfigura as dimensões individual e coletiva. A noção de saúde se torna cada vez mais simbólica e instável. Ela passa a ser atrelada aos humores do mercado, sendo reapropriada e compartilhada continuamente pelos atores sociais. Ser ou se sentir saudável concerne não apenas à esfera individual. Ao ser compartilhada na rede, adquire também uma dimensão coletiva (GOMES, 2017). O ciberespaço amplia a dimensão simbólica porque expande a potencialidade mental dos indivíduos e coloca em contato uns com os outros (DAVIS, 2015). O espaço virtual ou ciberespaço (LÉVY, 1995) se tornou o principal catalizador do imaginário contemporâneo sobre saúde, estimulando crenças, valores, mitos, rituais e desejos. O dispositivo midiático promove o acesso facilitado e abundante a informações. A multiplicidade das questões relacionadas à saúde traduz o caráter pervasivo que o tema alcança na pós-modernidade. Como aponta Le Breton (2013), a saúde mobiliza a sociedade, tornando-se a nova religião, resultante de aspirações íntimas, discursos e investimentos coletivos. Ser saudável equivale a um imperativo categórico, um código indicativo da eficaz gestão de si. A fanpage da revista “Melhor com saúde”1 pode ser compreendida como um sintoma da ambiência pós-moderna. A página desperta o interesse de mais de muitos seguidores2 1 Disponível em: https://www.facebook.com/melhorcomsaude/ A pesquisa que serviu de base para a elaboração deste artigo foi realizada entre os dias 1º de janeiro e 1° de março de 2018. 2 Internet e Saúde 241 no Facebook3, sendo, no momento de realização deste estudo, a maior comunidade brasileira sobre o tema que apresenta a palavra “saúde” no título. Devido à dinâmica do site de rede social, os usuários curtem a página e passam a fazer parte de um agrupamento que não só recebe conteúdo, mas interage por meio das ferramentas “curtir”, “compartilhar” e “comentar”. A fanpage é uma plataforma de interação e conversação e, enquanto tal, pode ser considerada um sintoma da sociabilidade pós-moderna. Este estudo tem como objetivo compreender a dimensão simbólica da saúde neste ambiente digital. Partimos das seguintes questões de pesquisa: qual enfoque na saúde mais atrai o interesse dos internautas nesta fanpage? Qual o posicionamento dos internautas sobre as postagens nesta fanpage? esta investigação é importante para compreendermos o imaginário da saúde na pós-modernidade no momento que os sentidos se reconfiguram, são reapropriados e tendem a modular práticas, visões de mundo, valores e comportamentos. 1. Métodos e técnicas Esta pesquisa é um estudo exploratório de natureza qualitativa, que tem como objetivo apontar hipóteses explicativas para compreender a noção de saúde apresentada na fanpage “Melhor com saúde” e o posicionamento dos internautas sobre o tema, a partir dos comentários postados na página. Segundo Singh (2007), A pesquisa exploratória, como o nome sugere, é frequentemente conduzida para explorar a questão da pesquisa e é geralmente realizada quando as opções alternativas não foram claramente definidas ou seu escopo não é claro. (SINGH, 2007, p. 63, tradução nossa). A fanpage foi selecionada a partir de uma busca no Facebook com a palavra saúde”. Verificamos que a página apresentava, no momento de realização desta pesquisa, 8,5 milhões de curtidas, um quantitativo bem acima de outras páginas elencadas pelo buscador. Esta alta popularidade despertou nosso interesse em compreender o motivo de tantas pessoas se agregarem em torno desta fanpage. Como abordagem inicial, o estudo não tem a pretensão de esgotar o tema. Pesquisas ulteriores deverão aprofundar o assunto. Utilizamos a ferramenta Netvizz, que existia na época para coletar dados do Facebook, a fim de extrair dados sobre as postagens nos três primeiros meses de de 2018 e seus respectivos comentários. Com o objetivo de compreender a noção de saúde apresentada na fanpage e o tema que gerou mais interesse na discussão, selecionamos as duas postagens com maior número 3 O capítulo 5 analisa comunidades de pacientes no Facebook. 242 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) de comentários. O vídeo “Ser canhoto é um privilégio”4 obteve 18.842 ocorrências, seguido do vídeo “A tequila tem um efeito emagrecedor interessante”5, com 6.815 comentários. O quantitativo de visualizações indica que ambos despertaram o interesse dos seguidores, que estabeleceram conversações acerca do assunto. Realizaremos a descrição do conteúdo dos vídeos e analisaremos os cinquenta primeiros comentários de cada uma das postagens. Para verificar o posicionamento dos internautas que comentaram o conteúdo dos vídeos, utilizaremos a análise de conteúdo por categoria temática proposta por Bardin (2004). A técnica compreende a classificação dos elementos de um conjunto por diferenciação e os reagrupa posteriormente por analogia e de acordo com critérios pré-definidos. Estipulamos duas categorias para os comentários: “concorda” e “discorda” em relação ao conteúdo do vídeo. Por se tratar de uma pesquisa qualitativa, optamos por não quantificar os comentários de acordo com as categorias. Também não estabelecemos tipologias, pois queremos identificar se há ou não concordância com os assuntos postados. 2. O imaginário da saúde na pós-modernidade A partir de meados do século XX, emerge uma nova sensibilidade que expressa a saturação dos valores modernos. Nesse contexto, o conceito de saúde, elaborado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) modificou a compreensão do tema. Pela primeira vez, um consenso entre vários países buscou definir o que é ser/sentir-se saudável6. Até então, as preocupações recaíam sobre as doenças, procurando a cura ou alívio do mal-estar. A carta de princípios da OMS (1946) define saúde como “[...] um estado de completo bemestar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades [...]” (OMS, 1946, p. 1, tradução nossa). Embora a definição tenha recebido críticas como sendo um estado inalcançável e de difícil objetivação, compreendemos essa noção de saúde como resultado de uma mudança de sensibilidade que já se esboçava em meados do século XX e acentua-se com o advento das Novas Tecnologias de Comunicação e Informação (NTICs) a partir dos anos 1980. A visão mecanicista cede lugar à concepção holística, que implica o equilíbrio com o meio. [...] No final do século, assistimos a um retorno da chamada visão espiritual; visão que se alarga sempre mais até levar à crise um aparato institucional que ganhou fama e prestígio sem precedentes em nome da exatidão, da experimentação, da verificação e dos muitos resultados conseguidos. (TERRIN, 1996, p. 186). 4 Disponível em: https://www.facebook.com/watch/?v=768892306633606. Disponível em: https://www.facebook.com/watch/?v=784733135049523. 6 O capítulo 19 aborda o tema promoção da saúde e Novas Tecnologias de Informação e Comunicação. 5 Internet e Saúde 243 A pós-modernidade acarreta o retorno ao transcendente, a união orgânica proporcionada pela tecnologia de ponta. Trata-se da valorização dos agrupamentos afetivos e eletivos, as chamadas tribos (MAFFESOLI, 1995; 2018), em que a pessoa se inscreve em um todo coletivo. Nessa perspectiva, o corpo individual é tributário da comunidade. A pós-modernidade ultrapassa a esfera racional e potencializa mitos e transcendências. Compreendemos a saúde como fenômeno simbólico que integra o social: um imaginário que se configura a partir do incessante fluxo de informações divulgadas e partilhadas em rede. O imaginário é, portanto, uma atmosfera, um constructo mental que vincula as pessoas, uma espécie de aura envolvente. O imaginário precede o indivíduo e é modificado por ele, apresentando algo de racional e irracional e compreendendo as dimensões lúdica, onírica, afetiva e simbólica. Tais esferas mobilizam os indivíduos em torno de sentimentos e valores comuns, constituindo-se “[...] uma verdadeira ‘infraestrutura espiritual’ garantindo os fundamentos e a fundação de toda a vida em sociedade [...]” (MAFFESOLI, 2016, p. 13, tradução nossa). Os sites de redes sociais são sintoma de uma nova forma de ser/estar no mundo que denominamos pós-modernidade. Os laços tendem a se estabelecer por empatia e afinidades, além da vontade de partilhar e colaborar. Em outras palavras, trata-se de um “pacto emocional”, que denominamos tribalismo (MAFFESOLI, 1995; 2018). As vinculações acontecem de modo voluntário e circunstancial; por isso, são efêmeras e podem se desagregar a qualquer tempo. Esse tribalismo não é mais uma exceção, mas uma realidade cotidiana. Redes sociais ajudando, tudo é feito para partilhar os gostos múltiplos e diversos: sexuais, religiosos, esportivos, musicais, culturais, dietéticos. O marketing das tribos se tornou uma evidência incontornável. (MAFFESOLI, 2018, p. 191, tradução nossa). Nesse estudo, as concepções de saúde se revelaram como narrativas compartilhadas na internet. O discurso veiculado na fanpage analisada promove interação, cria vínculos e torna comuns modos de ser. As informações se abrem a uma multiplicidade de sentidos que ultrapassam a esfera racional, despertando sensações e atuando no cotidiano. É possível notar que a mídia modula a experiência contemporânea da saúde, intervindo nos modos de lidar com o fenômeno e modificando as disposições e decisões pessoais. O ciberespaço se torna repositório e estimulador de crenças, valores, mitos, rituais e aspirações. Ele possui uma dimensão espiritual porque potencializa o simbólico e nos conecta ao outro. Em outras palavras, 244 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) [...] Encarna e expande nossas mentes formadoras de símbolos, pode mediar essas comunicações sagradas com os outros, assim como com ‘as entidades – a nossa parte divina - que invocamos nesse espaço’. (DAVIS, 2015, p. 202, tradução nossa). A saúde passa a integrar a atmosfera instável, efêmera, conflituosa, paradoxal e dinâmica característica da pós-modernidade. A partilha de experiências, estados de ânimo, aspirações, sentimentos e pontos de vista em uma rede social digital produz uma ambiência que mobiliza as pessoas e reconfigura os modos de ser e se sentir saudável. 3. Os sites de rede social e a fanpage “Melhor com saúde” A disseminação da internet ocasionou profundas mudanças na sociedade. Os fluxos comunicativos tornaram-se capilarizados e interativos, modificando a estrutura tradicional do processo, que polarizava emissor e receptor. A rede proporciona a troca dinâmica, contínua e abundante de informação. No início do século XXI estimava-se que aproximadamente 58% dos internautas consultavam assuntos relacionados à saúde na Web (ATKINSON; SAPERSTEIN; PLEIS, 2009). Naquela época 6,75 milhões de pesquisas diárias sobre o tema (EYSENBACH; KOHLER, 2003), evidenciando a centralidade que a saúde adquire na vida cotidiana. Os números atuais tendem a ser bem maiores se considerarmos a popularização do Facebook e a expansão do acesso à rede. As novas tecnologias transformam a nossa percepção de realidade e o modo como nos relacionamos. As redes sociais virtuais são agrupamentos humanos constituídos na esfera digital, que se modificam com a mediação das tecnologias e de ferramentas que possibilitam a comunicação. A rede é formada por atores, isto é, pessoas, organizações ou grupos e suas conexões (RECUERO, 2012). Podemos dizer que as redes sociais são lugares onde se estabelecem laços a partir do compartilhamento de informações, sejam elas textos, fotografias, vídeos, memes, entre outros. O aumento do acesso à internet proporcionou novas práticas que se incorporaram ao cotidiano das pessoas, tais como a disponibilização abundante de informação e as conversações em sites de redes sociais. Essas plataformas possibilitam ao usuário se manifestar, produzindo e compartilhando informações de seu interesse. O modelo em rede supera as lógicas tradicionais de consumo de informação, características da mídia massiva. O sistema de comunicação e informação unidirecional e hierarquizado, dá lugar a um modo capilarizado e interativo, em que o internauta é passível de produzir e consumir informação. A partir do rastreamento das informações e práticas conversacionais que circulam nesses espaços virtuais, podemos compreender comportamentos, interesses e sentimentos Internet e Saúde 245 de grupos humanos: isto é, a rede social denota aspectos do modelo sociocultural em que estamos inseridos. Romperam-se as fronteiras geográficas, linguísticas e temporais, inaugurando dinâmicas no processo comunicativo que interferem em nossa percepção da realidade. As estatísticas indicam como a rede social digital se incorporou no cotidiano, estabelecendo novos padrões de interação que modificam a forma como nos relacionamos. O relatório divulgado em abril de 2018 pela agência We are social e a plataforma Hootsuite sobre o comportamento digital indica que quase metade da população do planeta é usuária ativa de rede social digital, o equivalente a 3297 bilhões de pessoas. O Facebook é o site de rede social mais utilizado no mundo, com 2,234 bilhões de usuários. Criado em 2004, é o segundo website que mais gera volume de tráfego de informações na internet, ficando atrás apenas do buscador Google (WE ARE SOCIAL; HOOTSUITE, 2018). O Facebook é exemplo de como a rede social consegue criar dinâmicas, atraindo o interesse de mais de dois bilhões de usuários que se dispõem a interagir e compartilhar informação. O levantamento aponta que os brasileiros passam nove horas navegando na internet, sendo o terceiro país no ranking. O Brasil é destaque nas redes sociais com o tempo gasto de três horas diárias. O Facebook é a segunda rede social mais acessada no país, atrás somente do Youtube. São 130 milhões de brasileiros conectados à rede social que dispendem 13 minutos e 28 segundos por visita. O Brasil é o quarto país no mundo com maior número de usuários no Facebook, superado apenas pela Índia, Estados Unidos e Indonésia (WE ARE SOCIAL; HOOTSUITE, 2018). Os números revelam a importância dessa rede social digital como ferramenta para compartilhamento de informações, isto é, um ambiente que proporciona interação e gera dinâmicas que acabam reconfigurando seus usos. A conversação é uma das apropriações do Facebook. A prática entre falantes adquire uma configuração própria, por meio de convenções e novos sentidos criados pelos usuários. (RECUERO, 2014). Se a conversação requer a atenção de dois ou mais interlocutores que interagem verbalmente, no ciberespaço a prática conversacional se configura na apropriação de ferramentas que estabelecem novas maneiras de interagir. Como ressalta Recuero (2014), a conversação mediada por computador é uma adaptação da interação oral para ferramentas textuais, seja de forma síncrona, enquanto os falantes estão conectados ao mesmo tempo, ou assíncrona, quando estão desconectados. Os sites de rede social são plataformas que permitem a conversação. Os perfis funcionam como extensões do indivíduo, uma presença extra que integra a identidade (SANTAELLA, 2013) e é amplificada na rede. O Facebook é um dos sites que mais impactaram a internet porque gera conexões entre os perfis. No entanto, essas vinculações são menos complexas, visto que o principal objetivo da rede social digital é a circulação de informações (RECUERO, 2014). As ferramentas do Facebook permitem a criação de laços que permanecem mesmo quando os usuários estão off-line. A adição de perfis, denominados como “amigos”, 246 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) possibilita o acesso ao conteúdo publicado pelo outro na rede. A conversação, portanto, adquire uma dimensão pervasiva e pública, amplificando-se no social e sendo capaz de gerar debates que interferem nas opiniões. Esse fenômeno é denominado “conversações em rede” (RECUERO, 2012). O conteúdo que circula na Web possui características próprias, que se diferenciam das conversas presenciais. De acordo com boyd7, a conversação entre públicos em rede possui os atributos da persistência, replicabilidade, escalabilidade e buscabilidade. A persistência é a característica de ser extensível e ocorre porque a informação é automaticamente gravada e arquivada, adquirindo amplitude no espaço público. A replicabilidade consiste na duplicação da mensagem. “No mundo dos bits, não há como diferenciar o original da cópia” (BOYD, 2011, p. 47). A escalabilidade concerne ao grande potencial de visibilidade do conteúdo em rede, embora não seja garantia de audiência. Por último, a buscabilidade é o acesso fácil à informação proporcionado por ferramentas de busca. As características da conversação em rede constituem dinâmicas no ciberespaço que modificam a forma como estabelecemos laços sociais e percebemos a realidade. De acordo com Rheingold (1996), a comunicação mediada por computador tem potencial para mudar nossas vidas porque “teremos percepções, pensamentos e personalidades (já formadas por outras tecnologias de comunicação) que são afetadas pela forma como utilizamos o meio e a maneira em que este nos usa (RHEINGOLD,1996, p. 28) Dessa forma, os sites de rede social se tornaram espaços estratégicos para que as corporações mantenham contato com o público e possam influenciar hábitos de consumo. É possível modificar comportamentos disseminando informações, seja por meio de conteúdo jornalístico ou publicidade. A fanpage da revista “Melhor com saúde” é exemplo do uso estratégico da informação para engajar usuários. Embora não exista uma revista correlata impressa, as postagens remetem principalmente à página virtual homônima, que se define como “blog sobre bons hábitos e cuidados para a sua saúde”8. O blog oferece informação gratuita sobre saúde, mas veicula inúmeros anúncios publicitários, desde pesquisas patrocinadas a propagandas de companhia aérea, roupas, lentes de contato, entre outras. Durante a realização da pesquisa que se transformou neste capítulo, “Melhor com saúde” estava presente no Google + com 32.394 seguidores, com 9,4 mil inscritos no canal do Youtube, e com 1,32 mil seguidores no Pinterest, 9,10. Os dados indicam que a fanpage despertava grande interesse dos usuários, enquanto as demais redes sociais digitais não se mostraram tão atrativas. Daí a importância de analisar a página “Melhor com saúde” no Facebook e verificar o posicionamento dos internautas 7 A autora grafa seu próprio nome em letra minúscula. Disponível em: https://melhorcomsaude.com.br/. 9 Dados referentes a maio de 2018. 10 A rede social Pinterest utiliza a letra “K” para indicar a quantidade de mil seguidores, portanto, conforme aponta o site, existem 1,32 k seguidores em maio de 2018. 8 Internet e Saúde 247 quanto aos assuntos postados. Outros estudos poderão abordar as demais redes sociais digitais e estabelecer comparativos. O conteúdo do blog é voltado ao público feminino e dividido em sete seções: “Bons hábitos”, “Remédios naturais”, “Curiosidades”, “Beleza”, “Receitas”, “Perder peso” e “Sexo e relacionamento”. A saúde delineia-se a partir da noção de bem-estar. Os textos, não raro, utilizam base pseudocientífica para embasar afirmações e dar credibilidade ao que se promete no título. A pretensa abordagem jornalística reitera o caráter verossímil das narrativas. Assim, as postagens do blog indicam que as promessas de juventude, vigor corporal, beleza, equilíbrio emocional e com a natureza, bons relacionamentos, cultivo da espiritualidade, sexo satisfatório, além do tom otimista diante da vida, compõem o imaginário da saúde na pós-modernidade. Também observamos o tom místico em alguns conteúdos do blog, atribuindo à espiritualidade a condição de estar saudável. A doença, portanto, seria resultante de um conflito com o mundo, e os sentimentos negativos concorreriam para a ocorrência dos males. Tal visão, de acordo com Terrin (1996), aproximar-se-ia da concepção xamânica em que a saúde é um fato total, “é um bem-estar do corpo e do espírito num equilíbrio entre as forças da natureza e as forças espirituais [...]” (TERRIN, 1996, p. 185). A dietética difunde-se não apenas nos anúncios do “Melhor com saúde”, cujo apelo comercial é notório, mas na difusão de um estilo de vida por meio das narrativas presentes no conteúdo veiculado. Os textos adotam o tom jornalístico, embora careçam de fontes e dados claros e precisos, fundamentais ao jornalismo. As pessoas que acessam o blog buscam informações e aconselhamentos sobre viver com qualidade e de forma prazerosa, sem necessariamente ter a preocupação de checar fontes ou de averiguar a veracidade daquilo que é apresentado. A mídia digital se torna eficaz porque dissemina conteúdo de forma continuada, replicável, insinuante e lúdica. Nesse contexto, os indivíduos se tornam responsáveis pela gestão de si, implicados para que administrem seus corpos, emoções e comportamentos. As “técnicas do bem-estar” (LIPOVETSKY, 2015) visam proporcionar a sensação de equilíbrio físico e psíquico, modelando o cotidiano de forma sedutora e pedagógica. Diante do turbilhão de informação disponível na rede, é necessário aproximar, orientar e estimular o leitor a consumir informação, contribuindo para a gestão de si. A conexão intensa e contínua ultrapassa o caráter utilitarista das informações orientadas. A rede potencializa a vinculação emocional, restituindo a importância dos afetos compartilhados, experiências e emoções que agregam pessoas, mitos e outras narrativas que ultrapassam a dimensão meramente racional. O novo ambiente que se constitui aponta para a instabilidade, a premência do lado emocional e espiritual. Como propôs Lyotard (2011), a pós-modernidade se caracteriza pela falência das metanarrativas, e a ciência perde a primazia como legitimadora da realidade. Daí a necessidade das vinculações orgânicas, como superação ao mecanicismo moderno. “[...] A redescoberta do 248 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) mundo místico é uma necessidade para não ficarmos no mundo asfixiante dos computadores e do cálculo a qualquer custo. [...]” (TERRIN, 1996, p. 70). Em relação à fanpage, alguns dados merecem destaque. A página possuía 8.670.115 curtidas e 8.546.814 perfis seguidores11. Esses dados justificam importância de estudar “Melhor com saúde” e verificar o posicionamento dos internautas quanto aos assuntos postados. A seguir, destacamos os vídeos que tiveram maior número de curtidas e compartilhamentos. 4. Os vídeos da fanpage Observamos que, entre as dez postagens mais comentadas, incluindo-se frases, textos e vídeos, apenas uma aborda diretamente o tema doença. Ela possui o seguinte título: “Embora a paralisia facial possa ocorrer sem ser especialmente grave”. As demais ocorrências se referem à saúde vinculada à noção de bem-estar, como nutrição e emagrecimento. Outras postagens concernem a uma abordagem holística da saúde, como a vinculação com a espiritualidade e o castigo divino, e assuntos como a importância dos sobrinhos, acalmar o bebê e dormir pelado. Observa-se, portanto, que o assunto saúde adquire dimensão pervasiva, associando-se a inúmeros temas cotidianos e abordagens que tendem a atrair a atenção pela curiosidade que despertam ou o tom motivacional, e até mesmo místico, que manifestam. O estudo verificou que a fanpage realizou 420 postagens no período de primeiro de janeiro a primeiro de março de 2018. Selecionamos as duas postagens com maior número de comentários: o vídeo “Ser canhoto é um privilégio”, com 18.842 visualizações; e o vídeo “A tequila tem um efeito emagrecedor interessante”, com 6.815 visualizações. Escolhemos os cinquenta primeiros comentários de cada postagem para realizar a análise de conteúdo categorial e identificar o posicionamento dos internautas. A primeira postagem é um vídeo com animação de 41 segundos que aborda as dificuldades de ser canhoto, tais como o bullying12 sofrido nas escolas e a inadaptação a alguns objetos. A narrativa afirma que muitas crianças são obrigadas a usar a mão direita, tornando-se alvo de brincadeiras. Elas se sentem excluídas na escola em virtude da falta de objetos e ferramentas para canhotos. O vídeo afirma o seguinte: Os canhotos são minoria na população, e muitas crianças são obrigadas a usar a mão direita. São alvo de brincadeiras nas escolas e se sentem excluídas pela falta de objetos e ferramentas pensadas para elas. No entanto, você não deve se sentir inferior por ser canhoto... 11 12 Os dados se referem ao mês de maio de 2018. O capítulo 11 aborda o tema do bullying e cyberbullying. Internet e Saúde 249 Segundo um estudo da Universidade de St. Lawrence, os canhotos são mais inteligentes que os destros, porque suas conexões cerebrais são mais rápidas e sensíveis. Além disso, podem gerar ideias de forma mais veloz e eficaz graças ao “pensamento divergente”. E são menos propensos a sofrer de Alzheimer, úlceras e artrite. Sinta-se feliz por ser canhoto! (MELHOR COM SAÚDE, 2018a). A postagem se refere a um estudo realizado por Alan Searleman e divulgado durante a conferência anual da American Psychological Association em 2000. Segundo entrevista realizada por Norton com o pesquisador “os canhotos têm uma inteligência mais 'fluida' e um vocabulário melhor do que a maioria da população. Talvez por isso, há mais deles em profissões criativas, como música, arte e escrita” (NORTON, 2000). Embora a questão seja bastante controversa, o vídeo é assertivo ao evidenciar as qualidades atribuídas aos canhotos. O segundo post é um vídeo intitulado “A tequila tem um efeito emagrecedor interessante”, que obteve 6815 comentários. O vídeo de 51 segundos mostra imagens de pessoas em um bar bebendo e inicia com a frase “A tequila é muito mais do que algo divertido para tomar com os amigos”. O vídeo afirma que a American Chemical Society teria feito alguns experimentos para descobrir como a tequila poderia ajudar a emagrecer. A bebida tornaria o processamento dos alimentos mais lento, aumentando a sensação de saciedade e acalmando o apetite. O vídeo afirma que a tequila provém do agave, uma planta com açúcares não digeríveis que diminuiriam o nível da glicose no sangue e ajudariam a produzir insulina. A bebida poderia beneficiar diabéticos, já que se trata de uma insulina natural. O vídeo finaliza com a frase: “beber nem sempre é ruim!” (MELHOR COM SAÚDE, 2018b). Os referidos experimentos apontados no vídeo se resumem a uma pesquisa anunciada no 247º Encontro Nacional da American Chemical Society e realizada pelo Centro de Pesquisa e Estudos Avançados, Biotecnologia e Bioquímica Irapuato no México. O estudo, divulgado na mídia (ACS, 2014), trata de um adoçante criado a partir da planta usada para fazer tequila, a agave, que poderia reduzir os níveis de glicose. A pesquisa não aborda a tequila, mas o adoçante natural agavina, que tem origem na mesma planta que se faz a bebida. Segundo a pesquisadora responsável pelo estudo, esse elemento não é encontrado na tequila porque se converte em etanol. Observamos que o vídeo publicado na página não tem compromisso com os resultados de pesquisa científica, apenas aproveita o gancho para produzir conteúdo de fácil assimilação. O vídeo atrai a atenção porque enfoca um suposto benefício de uma bebida alcoólica, contrariando as informações comumente divulgadas de que o álcool é nocivo à saúde. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS, 2014), o uso abusivo do álcool acarretou a morte de 3,3 milhões de pessoas no mundo em 2012 e causa mais de 200 condições, doenças e lesões. 250 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) 5. Os comentários da fanpage O vídeo “Ser canhoto é um privilégio” rendeu 18.842 comentários. Provavelmente, o interesse nesse conteúdo está relacionado ao estigma social que a lateralidade esquerda acarreta. A condição de canhoto é desvalorizada historicamente, sendo associada ao negativo e concebida como sinistro, desajeitada e até mesmo relacionada ao demônio e à feitiçaria. De acordo com McManus (2002), a tradição relaciona o destro ao fazer, à ordenação, às grandes realizações; enquanto o canhoto é auxiliar, apenas suporte. Em diferentes culturas, a mão esquerda é utilizada para a higiene após a defecação, e a direita, usada para levar comida à boca. Ainda que o preconceito tenha diminuído, muitos canhotos sofreram discriminação ou conhecem histórias de pessoas que passaram por tal experiência. A análise de conteúdo, em que definimos as categorias “concorda” e “discorda” para verificar o posicionamento em relação ao vídeo, revela que os usuários tendiam a concordar com o conteúdo postado na fanpage. Os comentários identificados opinavam sobre as vantagens de ser canhoto e preconceitos enfrentados. Os benefícios se referem às qualidades associadas ao canhotismo como inteligência, privilégio, além de existir um sentimento de orgulho da condição. “Vc deve ser mais inteligente q os filhos dela. Com certeza. Sinta-se privilegiada”. “Sou canhota e meu irmão TB mas nunca tive problemas por isso ... Fazemos a diferenca!! Simples assim”13, afirma um dos comentários (MELHOR COM SAÚDE, 2018a). Sempre desconfiei que os canhotos fossem mais rápidos no raciocínio e em solucionar problemas! Quando pequena meu pai e minha mãe tentaram me mudar! Diziam que eu ia sofrer muito na vida! Que o mundo foi preparado para os destros! Na minha cabeça sempre me via diferente dos outros! Todos na minha sala destros e eu a única canhota! Uma época até tentei mudar! Sou uma canhota muito feliz!!! Somos minoria! Fomos selecionados!!!! Hoje acho lindo ser canhota! Sou dentista!!!! Dentista canhota com muito amor e orgulho! (MELHOR COM SAÚDE, 2018a). A maioria dos comentários evidenciou o preconceito que os canhotos enfrentam e relata experiências dos internautas, principalmente na infância, a exemplo do que mostrou o vídeo. Alguns comentários abordaram o estigma associado à condição: “sou canhota e na minha infância diziam que os canhotos eram bruxos kkkk”; “Minha mãe tbm passou por uma ignorância parecida com a sua. Só que com o Pai dela. Ele dizia q ela era alejada por 13 Reproduzimos os comentários da fanpage de acordo como foram escritos, mantendo os erros. Como define Recuero (2012), trata-se de uma escrita “oralizada”, o uso informal da linguagem adaptado ao uso nas redes sociais. Internet e Saúde 251 ser canhota!!! Ela tbm foi costureira e é super inteligente!” (MELHOR COM SAÚDE, 2018a). Passei pela mesma situação Mas minha mãe era que tinha esse pensamento que canhoto era contra Deus Tive q aprender a escrever com a direita, mas restantes das coisas d Faço TD com esquerda Brinco q ela causou confusão no meu cérebro q hj já nem sei mais se sou destra ou canhota. (MELHOR COM SAÚDE, 2018a). A grande maioria dos relatos narrou abusos cometidos por professores que forçavam os alunos a serem destros. Uma participante fez um desabafo: “Também sofri com essa situação, levava palmatória, por isso fiquei 3 anos na primeira série [...].”: - Minha professora me forçava a escrever com a mão direita... resultado sou ambidestro... tenho as 2 habilidades... sofri muito... ficava de castigo com o nariz na parede atras da porta na sala de aula. Minha neta de 5 anos é canhota... e ai se eu souber que alguém forçou ela a não ser... quem comanda é o cérebro... temos que deixar a natureza fazer a parte dela e não forçar oq nao é pra ser... - Eu tbm tive com um professor pois no início eu escrevia muito torta meio inclinada para o lado e ele pensava que eu estava colando, isso foi na oitava série, e ainda falou vou tirar meio ponto porque tu estavas colando aí fiquei com 9,5 em matemática e hoje sou professora de matemática kkkk. (MELHOR COM SAÚDE, 2018a). Alguns comentários responderam ao comentário anterior, que narrava experiências abusivas. Eles criticaram e ironizaram a postura dos educadores: “essa professora só precisava estudar mas”; “Essa professora era loca de atar.”; “Sera que não era ela que é filha do diabo não.....”; “Era uma professora mesmo? Pq pra falar isso, nem eu que sou criança acho isso, professora maluquinha” (MELHOR COM SAÚDE, 2018a). Parte dos comentários se referiu às dificuldades encontradas no cotidiano, como a falta de abridores de latas e carteiras de estudantes para canhotos, forçando a adaptação ao mundo dos destros. “Eu treinei e consegui aprender a usar o abridor com a destra!”; “Eu tb, xará!!Fui treinando em casa e hj abro numa boa. Mas ruim mesmo era não ter carteira na escola pra canhoto e até hj Qd faço alguma prova de concurso passo esse perrengue” (MELHOR COM SAÚDE, 2018a). O tema do abridor de latas suscitou inúmeros comentários. Alguns utilizaram o tom de humor, como evidencia a risada “kkkk”: “Sou canhota, mas sei abrir com as duas, é questão de treino.”; “Kkk já entortei muitos!! Mas depois achei um gde e de inox!! aguenta minha força kkkk”; “Eu também nunca consegui abrir uma lata...” (MELHOR COM SAÚDE, 2018a). 252 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) A partir da análise dos primeiros cinquenta comentários, observamos que há uma tendência à reiteração do conteúdo do vídeo, isto é, uma concordância com o preconceito que os canhotos enfrentam. O vídeo estimulou os internautas a narrarem suas experiências de abuso. Os relatos acarretaram comentários de outros integrantes da fanpage, e alguns perfis foram marcados na postagem para que se juntassem à discussão. Não houve discordância nos comentários com a abordagem do post da fanpage. Os relatos de sofrimento tendem a promover outros comentários que narram experiências de dor e, ao mesmo tempo, afirmações de ordem empática que procuram se solidarizar com aquele que sofre. As experiências pessoais são compartilhadas no espaço virtual de forma a atrair a atenção dos internautas que, sinergicamente, propõem-se a comentar. Como salienta Bauman (2013), as histórias individuais e atomizadas dominam o espaço público, a ponto de modificar as fronteiras entre a esfera pública e privada. O vídeo “Tequila tem um efeito emagrecedor interessante” gerou 6.815 comentários. A partir da análise de conteúdo categorial realizada nos primeiros 50 comentários, identificamos que a maioria parece concordar com o conteúdo veiculado. Alguns deles consideram os benefícios da bebida e assumem tom lúdico, referindo-se aos inúmeros efeitos do álcool. Poucos comentários parecem discordar do conteúdo veiculado e destoam da conversação que se estabelece. O primeiro diz respeito aos efeitos negativos da tequila e adota o tom de brincadeira: “Meu fígado não curtiu...rs”. O comentário seguinte é uma réplica: “Muito menos o meu”; e o terceiro reitera a afirmação: “Vdd” [verdade]. O quarto comentário descarta a possibilidade de tomar a tequila: “fiquei tão feliz mais não curt tequila so me resta fazer regime mesmo…” (MELHOR COM SAÚDE, 2018b). O comentário seguinte alerta para o alcoolismo: “isso quando não vicia tbm em outras drogas! Mania desse povo achar que álcool não é droga! O pior é que tem pessoas que demora pra começar a passar mau, primeiro ela pertuba tanto que quem adoece é a familia!” (MELHOR COM SAÚDE, 2018b). A réplica corroborou esse comentário, concebendo-o como mais próximo dos verdadeiros efeitos maléficos do álcool. “Acho que esse comentário está mais realista [...] kkkkkkkkkk”. Um perfil comenta de modo irônico: “[...] Claro q emagrece... vc so falta vomitar o fígado.... e outra vc se sente saciada...mentira...se sente enjoada e por isso não come kkkkkklk”. Outro comentário foge ao contexto da discussão, mas parece reprovar o tom da conversa: “De Deus n se zomba, beba sua cachaça e se dane sozinha” (MELHOR COM SAÚDE, 2018b). Afora os comentários assinalados, os demais tendem a concordar com o conteúdo do vídeo, discutindo os benefícios ou gosto pela bebida e tecendo considerações sobre os excessos do consumo de álcool. “Eu amo tequila!! Minha bebida preferida mas nunca passei mal. Nunca dei sequer ressaca. Será que o problema não está no excesso?”; “Mas moss é p beber com moderação. Nao é p encher o tanque”; “Eu amo é normal da maneira que eu bebo Isabel Almeida não faz bem a ninguém‚ eles disseram moderadamente eu bebo sem Internet e Saúde 253 moderação”. “Engana-se [...], bebo pq gosto, pq aprecio mesmo, nunca vomitei e nem me sinto cheia, só sei bebo muuuuitoe goooxto, só tem uma coisa, fico sem dormir e nem sei pq isso acontece, maaaix tô nem aí, continuo bebendo”. (MELHOR COM SAÚDE, 2018b). O comentário seguinte apresenta uma receita sobre como não passar mal: Eita lasqueira kkkk pois pra mim é a única bebida que não me faz mal. Lógico, há tequilas e tequilas... Mas eu adoro! Eu intercalo água se eu for beber mais que duas doses e não misturo com nada mais... E pra não ter erro, vai de engov. (MELHOR COM SAÚDE, 2018b). O vídeo parece promover o consumo de álcool ao destacar os supostos benefícios da bebida, de acordo com o que observamos nos seguintes comentários: “Olha ai [...] a minha vontade de provar essa bebida era meu sexto sentido me falando que teria algo de bom nisso .... kkkkkk”; “[...] eu sempre falo que tequila ajuda emagrecer, vamos marcar pra tomar umas gente.”; “Tá gurias tava tomando a bebida errada. Cerveja e espumante? Nunca mais agora só tequila, margaritas, mojito kkk. Concordam? [...]”; “Olha a desculpa pra beber... Tequila: Emagrece é bom pra diabético, sem contar que é divertido ficar de pilequinho! Borá [...]” (MELHOR COM SAÚDE, 2018b). Olha isso [...], depois dos benefícios do vinho, agora é a vez das propriedades emagrecedoras da tequila. Andei refletindo e cheguei à conclusão de que em vez de me fitinizar vou me embriagar. (MELHOR COM SAÚDE, 2018b). Muitos comentários marcaram perfis para que pudessem participar da conversa. As postagens dos perfis tendem a reiterar de modo lúdico o vídeo postado na página. Poucos comentários criticam ou relativizam as afirmações postadas pela fanpage. O tom humorístico revela o ambiente lúdico que se estabelece nos sites de redes sociais, onde a dinâmica das relações ocorre a partir do compartilhamento descompromissado, emocional e empático. 6. Considerações finais A doença não é o foco principal da fanpage “Melhor com saúde”, mas assuntos cotidianos que possam afetar o equilíbrio do corpo e do espírito. Os temas suscitam interesse do internauta porque carregam a promessa de bem-estar, potencializam a fruição da vida, motivam, divertem e ainda fomentam discussões que tendem a gerar uma rede solidária em torno dos temas. 254 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) A partir da investigação dos posts mais comentados, podemos inferir como a saúde se reconfigura com a ação dos meios digitais. O assunto, tradicionalmente restrito ao domínio científico, à relação médico-paciente ou ao âmbito familiar, excede a esfera privada para se amplificar no social. Constituem-se, dessa forma, interações e práticas que criam uma atmosfera em torno da noção de saúde e tendem a transformar os modos de ser/estar no mundo. Compreendemos a abordagem da saúde como sintoma da pós-modernidade, em que a crise das metanarrativas, como bem pontuou Lyotard (2011), apropria-se do conhecimento pseudocientífico para atrair a atenção do internauta e criar impacto. A sinergia entre o arcaico (sentimento de pertencer a um grupo), aliada à internet (MAFFESOLI, 1995; 2018), permite a amplificação orgânica de experiências narradas nos comentários. Cria-se, assim, uma rede de solidariedade em torno dos temas, sem que haja um objetivo definido ou a preocupação com a correção das informações partilhadas. Comenta-se porque se quer participar, narrar experiências e ganhar visibilidade no espaço social. As postagens realizadas pelos administradores da fanpage revelam o descompromisso com a correção das informações divulgadas, uma vez que aludem a pesquisas científicas de modo descontextualizado e impreciso. O objetivo primeiro parece ser a produção de conteúdo atrativo para ser veiculado, com vistas à manutenção da página e a consequente participação dos internautas. A grande quantidade de postagens no período estudado é indicativa da abundância de informações circulantes. As pessoas parecem buscar informações e aconselhamentos sobre viver com qualidade e de forma prazerosa. O site de rede social se torna eficaz porque difunde conteúdo de forma continuada, replicável, insinuante e lúdica. O elevado número de comentários revela o caráter agregativo da fanpage. Os internautas tendem a comentar as postagens de modo despreocupado, estabelecendo vínculos efêmeros e conversas fluidas, sem um objetivo definido. Essa espécie de “pacto emocional” (MAFFESOLI, 1995; 2018) é característica da sociabilidade pós-moderna, em que os laços se formam por empatia, mas são revogáveis a qualquer momento. A maioria dos comentários tende a concordar com as postagens e reitera o conteúdo, narrando experiências sobre o assunto. No caso do vídeo sobre a tequila, alguns comentários discordaram do conteúdo, alertando sobre os malefícios da bebida. No entanto, nenhuma ocorrência problematizou se a informação veiculada no post estava correta. Esse fenômeno evidencia o caráter emocional e efêmero das manifestações, que acabam pouco interessadas na validação científica das postagens. Os relatos assumem o caráter confessional (BAUMAN, 2013) ao narrar experiências, mobilizando outros internautas a compartilhar vivências e opiniões sobre o assunto. O dispositivo midiático converte-se em uma espécie de dispositivo “mágico”, enfocando revelações capazes de criar impacto no leitor, mitigar suas inquietações, criando uma ambiência que o convoca para além do real imediato. A saúde estaria associada ao Internet e Saúde 255 bem-estar e ao desfrute hedonista da vida. Para além do racional, trata-se de um ethos estético, circunstancial, erigido e partilhado por meio da comunicação em rede. Referências ACS – American Chemical Society. Tequila plant is possible sweetener for diabetics — helps reduce blood sugar, weight. ACS, Dallas, 16 mar. 2014. Disponível em: https://www.acs.org/content/acs/en/pressroom/newsreleases/2014/march/tequilaplant-is-possible-sweetener-for-diabetics-helps-reduce-blood-sugar-weight.html. Acesso em: 17 abr. 2020. ATKINSON, N. L.; SAPERSTEIN, S. L.; PLEIS, J. Using the internet for health-related activities: findings from a national probability sample. J Med Internet Res., v. 11, n. 1, p. e4, 2009. 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Acesso em: 17 abr. 2020. em: Parte III Internet e os Desafios na Saúde 258 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Capítulo 9 Avaliação da qualidade da informação de saúde na internet: análise das iniciativas brasileiras André Pereira Neto* e Rodolfo Paolucci Resumo A produção das informações de saúde na internet é realizada sem qualquer tipo de avaliação de sua qualidade. Informações incompletas, contraditórias, incorretas ou incompreensíveis podem prejudicar a saúde. Se forem de qualidade, podem trazer benefícios para os cidadãos e gestores de saúde. Este capítulo analisa as iniciativas brasileiras de avaliação da qualidade das informações de sites de saúde. Esta análise utilizou como referência as três revisões sistemáticas publicadas sobre o tema. Constatouse que a produção acadêmica brasileira nesse campo não acompanha a tendência internacional. Existem duas iniciativas institucionais brasileiras: a do Conselho Regional de Medicina de São Paulo e a do Laboratório Internet, Saúde e Sociedade (LaISS) da Fundação Oswaldo Cruz. Esse laboratório realizou duas avaliações que acompanharam a literatura internacional e introduziram métodos inovadores. Conclui-se que a cultura de comunicação anterior à internet parece predominar entre as elites brasileiras. Para os gestores e pesquisadores da saúde pública, as tecnologias de informação e comunicação têm importância secundária. Palavras-chave: Avaliação em saúde; Informação de saúde ao consumidor; Internet; Participação social; Normas técnicas. Referência: PEREIRA NETO, A.; PAOLUCCI, R. Avaliação da qualidade da informação de saúde na internet: análise das iniciativas brasileiras. In: PEREIRA NETO, A.; FLYNN, M. (orgs.). Internet e saúde no Brasil: desafios e tendências. 1 ed. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2020. p. 257-291. * Laboratório Internet, Saúde e Sociedade, Centro de Saúde Escola Germano Sinval de Faria, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Brasil. E-mail: [email protected]. Internet e Saúde 259 Informação de saúde na internet: desafio contemporâneo A interação entre as Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTICs) e o cidadão tem promovido uma série de transformações que podem ser percebidas na forma com que cada um de nós realiza suas atividades cotidianas (EYSENBACH, 2001). A comunicação, as transações financeiras, o transporte, a alimentação e a educação estão sendo cada vez mais mediados por recursos virtuais. Assim, cresce o número de pessoas que se comunica por meio do Facebook e WhatsApp; compra e vende em sites como eBay e AliExpress; locomove-se com o Uber; alimenta-se com o iFood; e se educa com MOOC1. Esses são alguns exemplos da presença das informações acessadas, produzidas, disseminadas e compartilhadas na internet na vida do cidadão. Há pouco tempo, para alguém obter uma informação era preciso poder aquisitivo para comprar um jornal ou ir até uma biblioteca, muitas vezes distante e pouco acessível. As cartas eram enviadas pelo correio e demandavam certo tempo até chegar ao destino final. As Novas Tecnologias de Informação e Comunicação disponibilizam uma miríade de informações aos cidadãos em poucos segundos. Muitas delas não seriam acessadas na mesma velocidade anteriormente (CHENG; DUNN, 2015). As NTICs oferecem oportunidades inéditas tanto para o acesso quanto para a produção e divulgação de informações. Hoje, é possível que qualquer pessoa consiga acessar, produzir e compartilhar informações anteriormente restritas a determinados grupos socioculturais. Para tanto, é necessário que ela tenha poder aquisitivo para adquirir um dispositivo eletrônico de comunicação, ter condições tecnológicas de acesso à rede e habilidade para manusear essas ferramentas. As informações disponíveis na internet são ilimitadas e abrangem qualquer assunto (LEE; PANG, 2017). Diante da quantidade de conteúdo on-line, apropriamo-nos da metáfora bíblica utilizada pelo filósofo francês Pierre Lévy para dizer que há um “dilúvio de informações” na internet (LÉVY, 2001). As Novas Tecnologias de Informação e Comunicação têm se transformado em uma das principais fontes de informação de saúde em todo o mundo. Na área da saúde, podemos encontrar ambientes virtuais construídos por instituições públicas e privadas de ensino e pesquisa, por agências governamentais e não governamentais, por associações de pacientes e de profissionais e pelos próprios indivíduos. A internet permite que as informações de saúde sejam publicadas e compartilhadas sem qualquer tipo de avaliação. Assim, podem ser disponibilizadas informações incompletas, contraditórias, incorretas ou até fraudulentas. Além disso, a forma de apresentação das informações pode dificultar sua compreensão. O acesso à informação de baixa qualidade pode ter consequências negativas. Informações erradas podem provocar sentimentos de apavoramento, ansiedade e paranoia 1 O capítulo 14 aborda o tema de “Massive Open Online Course” (MOOC). 260 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) (LAGAN; SINCLAIR; KERNOHAN, 2011). As informações incorretas, incompreensíveis ou desatualizadas podem levar o cidadão a tomar decisões que prejudiquem sua saúde (POWELL et al., 2011). Por outro lado, o acesso à informação de saúde de qualidade na internet pode ter consequências positivas para os usuários e para os gestores dos sistemas de saúde. Ele pode propiciar o desenvolvimento de habilidades que conferem maior poder de decisão ao cidadão sobre sua saúde e seu autocuidado (LAGAN; SINCLAIR; KERNOHAN, 2011; ALBARRAK et al., 2016). A informação de qualidade pode, ainda, contribuir para reduzir os custos dos sistemas de saúde (PARK et al., 2015; SPOELMAN et al., 2016). Vivemos, portanto, o seguinte desafio: como lidar com o problema da qualidade da informação de saúde on-line? Lévy (2001), referindo-se ao fenômeno do “dilúvio de informações” promovido pela internet, acredita que seja necessário que cada grupo de interesse faça sua seleção ou filtragem do conteúdo disponível. Nesse sentido, propõe que cada grupo construa uma “arca”. Essa metáfora de Lévy (2001) refere-se ao esforço que deve ser empreendido para selecionar os sites de qualidade e colocá-los em um ambiente separado. Essa seleção e filtragem das informações disponíveis seria, no seu entender, uma forma adequada de lidar com o problema da qualidade da informação de saúde na internet. A nosso ver, as propostas para enfrentar esse desafio podem ser reunidas em três grupos. O primeiro abrange os motores de busca, como Google, AltaVista ou Bing. Quando um assunto é pesquisado neles, os resultados são apresentados segundo critérios de relevância, denominados page rank. Essas empresas selecionam os endereços eletrônicos que consideram mais relevantes para dispor na sua página. Os sites que costumam aparecer no topo da lista são aqueles pertencentes a patrocinadores. Além disso, a lista de resultados de uma pesquisa é gerada por meio de algoritmos computacionais que combinam diversos mecanismos, como dados pessoais dos usuários e hábitos de busca online. Esses algoritmos são sistemas capazes de organizar uma quantidade cada vez maior de informações disponíveis na internet. Em seu livro, Cathy O’Neil (2016) afirma que há uma enorme quantidade de dados oferecidos diariamente pelos usuários que se correlacionam graças a esses algoritmos e que podem ser garimpados, reunidos e vendidos. Essa informação incidental não é fornecida diretamente - é uma informação indireta. É por isso que a partir de análises de dados do Twitter podem descobrir em que político um determinado cidadão provavelmente votará nas próximas eleições ou identificar a probabilidade da pessoa ser homossexual apenas pela análise dos posts que curte no Facebook (O’Neil, 2016). Os motores de busca reconhecem o dispositivo que está sendo utilizado pelo usuário. Esses recursos tecnológicos são capazes de reunir esses dados e construir um perfil do usuário. Esses perfis são oferecidos para as grandes empresas. Com isso, elas são capazes de identificar os consumidores de determinados produtos ou serviços. Pariser (2012) explora a problemática dos algoritmos e suas consequências que, no seu Internet e Saúde 261 entender, submetem os usuários aos interesses econômicos dessas empresas. Na obra “The Filter Bubble”, ele demonstra como Google, Facebook e Amazon constroem filtros de busca personalizada para cada usuário a partir de suas preferências. Esses filtros impedem que usuários tenham acesso ao conteúdo total da Web, o que pode dificultar a construção de uma compreensão mais ampla sobre determinado assunto. Segundo Pariser (2012), a personalização se baseia numa barganha. Em troca do serviço de filtragem, oferecemos às grandes empresas uma enorme quantidade de dados sobre nossa vida diária – que muitas vezes não dividiríamos com nossos amigos. Essas empresas estão ficando cada vez melhores no uso desses dados para traçar suas estratégias comerciais. Posição semelhante é compartilhada por Zhang, Sun e Xie (2015,). Eles encontraram vários estudos que identificaram que os page ranks desses motores de busca “não eram preditores confiáveis da qualidade geral do conteúdo de um site” (ZHANG; SUN; XIE, (2015, p. 2081, tradução nossa). O segundo grupo de iniciativas propostas para enfrentar o desafio da qualidade da informação on-line envolve a avaliação coletiva. Ela diz respeito aos sistemas de avaliação mantidos por usuários engajados em fornecer informação sobre a qualidade de instituições, de estabelecimentos comerciais, de produtos, de serviços etc. Trivago e TripAdvisor são alguns exemplos de sites que apresentam um processo de avaliação coletiva, usualmente por meio de sistemas de avaliação realizada por usuários desses serviços. Esse modelo influencia amplamente a tomada de decisão de outros consumidores (FRITSCH; SIGMUND, 2016). Analisando essa alternativa de avaliação coletiva, foi realizado um estudo sobre a qualidade das avaliações dos usuários sobre hotéis em Manhattan provenientes de três sites de avaliação coletiva na área do turismo. Xiang et al. (2017) concluíram a pesquisa afirmando: Neste estudo mostramos que dados de avaliação on-line retirados de três plataformas dominantes em um setor específico da indústria e de uma região geográfica específica podem ser consideravelmente diferentes em relação ao conteúdo e à estrutura. [...] Enquanto o design geral da nossa pesquisa está baseado em um caso específico (i.e., Manhattan), utilizando apenas três plataformas representativas nos EUA, nossa abordagem é válida uma vez que o objetivo era mostrar incongruências na suposição geral de que não importa de qual website um pesquisador obtém os dados (e como). (XIANG et al., 2017, p. 64, tradução nossa). Assim, observa-se que a avaliação coletiva não obedece a nenhum padrão e é orientada pela subjetividade do avaliador. O terceiro grupo engloba as iniciativas institucionais públicas ou privadas de avaliação da qualidade da informação de saúde na internet. Elas existem há mais de vinte anos. As primeiras experiências são predominantemente europeias e estadunidenses (MORENO et al., 2010). Essas iniciativas têm assumido, ao longo do tempo, formas 262 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) diferentes, simultâneas e concorrentes, tais como recomendações técnicas, princípios éticos ou códigos de conduta para os construtores de sites e orientações para os usuários sobre aspectos a serem observados nas páginas da Web. Existem, ainda, avaliações mais rigorosas, envolvendo profissionais e usuários no julgamento da qualidade da informação. Algumas dessas iniciativas conferem um selo de qualidade aos sites que atenderem aos seus critérios de qualidade. Com isso, oferecem uma garantia de confiabilidade aos seus visitantes. A principal diferença entre os três grupos de propostas reside, sobretudo, nos objetivos da avaliação e nos responsáveis por avaliar a qualidade da informação de saúde na internet. No primeiro grupo, há um claro objetivo comercial. Os responsáveis pela avaliação são as empresas privadas com seus interesses mercadológicos. No segundo, o objetivo é semelhante ao do primeiro grupo, embora os usuários sejam os avaliadores. Nesse caso, os parâmetros utilizados na avaliação são demasiadamente subjetivos, pois não seguem indicadores de qualidade precisos. Por essa razão, o resultado dessas avaliações pode ser pouco confiável. No terceiro caso, a avaliação e a recomendação de sites considerados confiáveis são realizadas por profissionais ou instituições que obedecem a critérios de qualidade específicos e algumas vezes guiados por interesses comerciais. O objetivo deste capítulo é analisar as iniciativas brasileiras de avaliação da qualidade da informação em sites de saúde inseridas no terceiro grupo mencionado acima. Inicialmente serão identificadas e analisadas as iniciativas que foram transformadas em produção acadêmica, publicada em periódicos brasileiros submetidos à avaliação de duplo cego. Para tanto, recorremos à Scientific Electronic Library Online (SciELO.br2): uma das bases bibliográficas de acesso aberto existentes no Brasil3. No mês de outubro de 2017, foi realizada uma busca utilizando a palavra “internet” no índice de assuntos. Foram encontrados 479 resultados. Em seguida, foram lidos os títulos e resumos dessa amostra. Com isso, foram identificados 21 estudos4 que analisaram a qualidade da informação de saúde na internet. Essa amostra, apesar de não ser muito expressiva, parece-nos representativa da produção nacional por ter sido obtida nessa importante base bibliográfica de acesso aberto. Em seguida, foram identificadas as iniciativas institucionais. Nesse caso, foram encontradas as aquelas do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (CREMESP) e do 2 A base da SciELO.org disponibiliza mais de 360 periódicos em acesso aberto. Ela é uma das principais fontes de informação científica brasileira e apresenta uma parcela significativa da produção acadêmica do país. 3 No Brasil, existem outras bases bibliográficas multidisciplinares de acesso aberto, como a Oasis.Br, LivRe e BDTD ou disciplinares de várias áreas. Há, ainda, os repositórios institucionais de diversas instituições de pesquisa brasileiras. 4 Os estudos selecionados foram: Silva et al. (2005); Barbosa e Martins (2007); Gondim e Falcão (2007); Souza, Luz e Rabello (2008); Santos et al. (2010); Silva e Gubert (2010); Leite e Correia (2011); Carlini et al. (2012); Gondim et al. 2012; Lins e Marin (2012); Cubas e Felchner (2012); Silveira, Costa e Lima (2012); Del Giglio et al. (2012); Mori et al. (2013); Bastos et al. (2014); Pithon et al. (2014); Sousa et al. (2015); Chaves et al. (2015); Monteiro et al. (2016); Paolucci, Pereira Neto e Luzia (2017); Pereira Neto et al. (2017). Internet e Saúde 263 Laboratório Internet, Saúde e Sociedade (LaISS) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)5, órgão vinculado ao Ministério da Saúde. O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP) é uma autarquia federal, sem fins lucrativos, fundada no dia de 30 de setembro de 1957, que regulamenta e fiscaliza o exercício da prática médica no estado de São Paulo6. Segundo estudo realizado em 2011, esse estado contava com 106 mil dos 371 mil médicos que atuavam no Brasil (SCHEFFER; BIANCARELLI; CASSENOTE, 2011). No dia 9 de março de 2001, no Diário Oficial do estado de São Paulo, foi publicada a Resolução nº 097/2001 (CREMESP, 2001a), que instituiu o Manual de princípios éticos para sites de medicina e saúde (CREMESP, 2001b). O preâmbulo desse manual preconiza que “a veiculação de informações, a oferta de serviços e a venda de produtos médicos na internet têm o potencial de promover a saúde, mas também podem causar danos aos internautas, usuários e consumidores” (CREMESP, 2001b). Diante dessa avaliação, o manual determina que as organizações e indivíduos responsáveis pela criação e manutenção dos sites de medicina e saúde devam “oferecer conteúdo fidedigno, correto e de alta qualidade, protegendo a privacidade dos cidadãos e respeitando as normas regulamentadoras do exercício ético profissional da medicina”. O artigo segundo da resolução que institui o Manual determina que: Os médicos e instituições de saúde registrados no CREMESP ficam obrigados a adotar o Manual de princípios éticos para sites de medicina e saúde na internet [...] para efeito de idealização, registro, criação, manutenção, colaboração e atuação profissional em Domínios, Sites, Páginas, ou Portais sobre Medicina e Saúde na Internet. (CREMESP, 2001a). O Laboratório Internet, Saúde e Sociedade (LaISS) é vinculado ao Centro de Saúde Escola Germano Sinval Faria (CSEGSF), departamento da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Entre 2012 e 2015, o LaISS desenvolveu experiências de avaliação da qualidade de informação em sites sobre dengue (2012-2013), tuberculose (2013-2014) e aleitamento materno (2014-2015). No final de 2016, o LaISS obteve da ENSP o direito de certificar sites de saúde com o “Selo de Qualidade Sergio Arouca”7. Por essas razões, as experiências do LaISS serão analisadas. 5 A Fundação Oswaldo Cruz é considerada uma das mais importantes instituições de ciência e tecnologia da América Latina. Ela é pautada pela promoção da saúde e desenvolvimento social, produção conhecimento científico e tecnológico e cidadania. Site oficial disponível em: https://portal.fiocruz.br/. 6 O estado de São Paulo é a mais importante unidade da federação brasileira, com uma população estimada de mais de 45 milhões de habitantes. Ele é o estado mais populoso do país e abriga cerca de 22% da população brasileira. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e estatística (IBGE), o estado de São Paulo lidera o ranking nacional de unidades da federação em termos de receitas orçamentárias realizadas em capital, obras e instalações e pessoal. Para mais informações, acesse: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sp/panorama 7 O médico Sérgio Arouca (1941/2003) forneceu fundamentos teóricos e participou da criação do Sistema Único de Saúde (SUS): um sistema que garante acesso integral, universal e igualitário à toda a população brasileira. Ele inclui desde um simples atendimento ambulatorial até um transplante de órgão. (BRASIL, 1990). 264 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Este capítulo está dividido em três partes. Na primeira, serão analisados os 21 estudos acadêmicos brasileiros que dedicaram sua atenção à avaliação da qualidade da informação de saúde na internet. Na segunda parte, serão analisadas as características do Manual de princípios éticos para sites de medicina e saúde do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (CREMESP). Finalmente, será dedicada a atenção às experiências do LaISS. Antes disso, entretanto, apresentaremos o procedimento metodológico adotado. 1. Referencial metodológico Para analisar a produção acadêmica e as experiências institucionais brasileiras, levaremos em consideração os critérios e os processos de avaliação predominantes na avaliação da qualidade da informação em sites de saúde presentes em três revisões sistemáticas8 sobre tema: trata-se dos estudos coordenados por Eysenbach et al. (2002), Zhang, Sun e Xie (2015) e Paolucci (2015). Eysenbach et al. (2002) realizaram a primeira revisão sistemática sobre o tema. Esse trabalho, publicado no Journal of American Medical Association (JAMA), reuniu os métodos e os processos adotados nas avaliações da qualidade da informação de saúde na internet9 em 79 estudos publicados até 2001. Dois resultados dessa revisão são pertinentes para este capítulo. Um se refere aos critérios utilizados para a avaliação. Outro guarda relação com o processo pelo qual cada avaliação foi realizada. A segunda revisão sistemática (ZHANG; SUN; XIE, 2015)10 foi publicada treze anos depois do estudo de Eysenbach et al. (2002) no Journal of the Association for Information Science & Technology (JAIST). A amostra dessa segunda revisão incluiu estudos publicados, exclusivamente em inglês, entre 2002 e 2013 (ZHANG; SUN; XIE, 2015). Os autores constituíram uma amostra composta por 165 estudos distintos. A terceira revisão sistemática foi publicada também em 2015. Trata-se da dissertação de mestrado de Paolucci (2015), defendida no Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (ICICT) da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro - Brasil. Paolucci (2015) realizou uma revisão para atualizar os dados encontrados por Eysenbach et al. (2002) sobre os critérios e os processos de avaliação da 8 “Uma revisão sistemática busca identificar, avaliar e sintetizar toda a evidência empírica que atende os critérios de elegibilidade pré-estabelecidos para responder uma dada questão de pesquisa. Pesquisadores que conduzem revisões sistemáticas utilizam métodos explícitos destinados a reduzir o viés, visando produzir achados mais confiáveis que possam ser usados para informar a tomada de decisão. ” (COCHRANE LIBRARY, 2020). 9 Até o momento da redação deste capítulo, a Web of Science indicava que este artigo havia sido citado cerca de 800 vezes. Ele pode ser considerado, portanto, a principal referência no campo de avaliação da qualidade da informação de saúde na Internet (outubro de 2017). 10 A Web of Science indica que este estudo, publicado em 2015, foi citado cerca de 10 vezes (dado obtido em outubro de 2017). Internet e Saúde 265 qualidade da informação em sites de saúde. Para selecionar sua amostra, empregou uma estratégia de busca similar àquela aplicada na primeira revisão sistemática (EYSENBACH et al., 2002). O período coberto foi de 2001 até meados de 2014. Diferente de Zhang, Sun e Xie (2015), não houve restrição em relação ao idioma dos estudos encontrados. A amostra analisada contemplou 279 estudos, sendo maior que a de Zhang, Sun e Xie (2015), que contou com 165 títulos e de Eysenbach et al. (2002) que examinou 79 estudos. Vejamos com mais detalhe a primeira revisão sistemática. Essa publicação de Eysenbach et al. (2002) apresenta duas contribuições importantes. Uma está relacionada com os critérios utilizados, e outra com o processo adotado nas avaliações analisadas. Eysenbach et al. (2002) identificaram 86 critérios de qualidade distintos. Para normalizar tais nomenclaturas e apresentar um quadro metodológico, eles sintetizaram essas 86 denominações em cinco critérios de qualidade, que abarcam os domínios da informação utilizados na avaliação, a saber: 1. Técnico: critério relacionado com a forma de apresentação da informação, incluindo, a autoria e/ou a origem da informação disponibilizada, a data de criação e atualização do site e a existência de propaganda comercial. 2. Design: critério relacionado ao aspecto estético de um site, como o layout, as cores e a facilidade de navegação. 3. Abrangência: critério utilizado para verificar se todas as informações relevantes sobre determinado tema estão disponíveis no site. 4. Acurácia: critério para medir o grau de concordância da informação disponibilizada com a melhor evidência ou aquela que é geralmente aceita pela ciência biomédica. 5. Legibilidade: critério que abrange o nível de leitura de um documento, ou seja, se ele é fácil ou difícil de ser compreendido. A segunda importante contribuição da revisão sistemática de Eysenbach et al. (2002) está relacionada com à forma com que as avaliações identificadas foram realizadas. Os autores afirmaram que “nenhum dos estudos conduziram testes de compreensão com consumidores reais ou utilizaram opiniões de experts em literacia” (EYSENBACH et al., 2002, p. 2695, tradução nossa). Além disso, eles ressaltaram que as avaliações utilizaram recursos tecnológicos para realizar a avaliação da legibilidade da informação. Para esses autores, tais fórmulas “não refletem outros fatores que afetam a compreensão como a frequência e a explicação de jargão médico, o estilo da escrita [...] ou o uso de informação culturalmente específica” (EYSENBACH et al., 2002, p. 2694, tradução nossa). 266 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Vejamos a segunda revisão sistemática. O estudo de Zhang, Sun e Xie (2015) identificou 11 critérios de avaliação, que foram agrupados nas categorias content e design. A categoria content contempla a accuracy, completeness, currency (datas de atualização), credibility (referências da informação) e readability. Já a categoria design engloba accessibility, referindo-se à facilidade de acesso do usuário aos recursos de um site e sua aparência. Se compararmos as categorias apresentadas por Zhang, Sun e Xie (2015) com os critérios expostos por Eysenbach et al. (2002), podemos afirmar que a categoria content inclui os critérios “técnico”, “acurácia”, “abrangência” e “legibilidade”, enquanto a categoria “design” se aproxima do critério de mesmo nome. Em relação ao processo de avaliação, Zhang, Sun e Xie (2015) constataram que: […] Em todos os estudos incluídos na revisão, os avaliadores eram pesquisadores ou especialistas médicos; poucos envolveram especialistas da área e consumidores. Logo, um conhecimento limitado foi obtido sobre diferenças entre especialistas e consumidores em geral na avaliação da qualidade. Pesquisas futuras podem preencher essa lacuna. (ZHANG; SUN; XIE, 2015, p. 2082, tradução nossa). Sendo assim, Zhang, Sun e Xie (2015) constataram que a realidade não havia mudado, pois suas conclusões se aproximam daquelas apresentadas por Eysenbach et al. (2002): os usuários finais, em linhas gerais, não participam da avaliação da qualidade da informação de sites de saúde. Vejamos a terceira revisão sistemática. Paolucci (2015) verificou se os critérios utilizados pelo estudo de Eysenbach et al. (2002) continuavam válidos. Ele constatou que os cinco critérios foram utilizados pela maioria dos estudos, obedecendo a seguinte proporção: “acurácia” (64%), “legibilidade” (38%), “abrangência” (27%), “técnico” (24%) e “design” (17%) (PAOLUCCI, 2015). Além disso, ressaltou que o uso do critério “legibilidade” aumentou significativamente em relação à primeira revisão (14%) (EYSENBACH et al., 2002), evidenciando uma crescente preocupação com essa dimensão da avaliação da informação. Paolucci (2015) se preocupou em identificar o perfil dos avaliadores, agrupando-os em três categorias: autor, quando os próprios autores do estudo realizaram a avaliação; especialista, quando houve menção à participação de outros profissionais; e usuário, quando houve a participação de um paciente ou parente de paciente na avaliação. Os autores foram identificados como avaliadores em 79% dos estudos, e os especialistas, em 9%. Os usuários estavam presentes em apenas 5% dos estudos. A presença pouco expressiva de experts e de usuários finais da informação, constatada por Eysenbach et al. (2002), continuou, portanto, existindo. Em termos de “legibilidade”, a maior parte dos estudos permaneceu utilizando fórmulas e outros Internet e Saúde 267 mecanismos tecnológicos de avaliação, como revelado por Eysenbach et al. (2002) há 15 anos. Neste capítulo, estamos interessados em conhecer os critérios e métodos utilizados na avaliação em cada uma das iniciativas brasileiras para verificar como elas acompanharam os resultados dessas revisões sistemáticas. Veremos isso a seguir. 2. Produção acadêmica brasileira Em nosso levantamento, foram identificados 21 estudos de avaliação da qualidade da informação de saúde na internet disponíveis na SciELO. Quatro comentários merecem ser feitos sobre o perfil dessa amostra, antes de apresentarmos e analisarmos os critérios e métodos adotados pela produção acadêmica brasileira. O primeiro comentário se relaciona com o número de estudos por ano da produção brasileira sobre o tema. O primeiro artigo identificado nessa amostra foi publicado em 200511. A maioria foi publicada a partir do ano de 2012 - ano com o maior número de publicações (6). Pelo menos um estudo foi publicado em todos os anos seguintes, configurando a seguinte Tabela 1: Tabela 1. Produção acadêmica brasileira por ano Ano 2005 2007 2008 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 Total n 1 2 1 2 1 6 1 2 2 1 2 21 Fonte: Os autores (2017). Se compararmos esse quadro com as séries históricas das duas revisões sistemáticas mais recentes sobre o tema, podemos chegar a algumas constatações interessantes. Zhang, Sun e Xie (2015) mostraram uma tendência crescente no número de publicações durante o período de 2002 a 2013. Paolucci (2015) encontrou uma tendência de crescimento parecida, considerando que sua amostra é mais abrangente que a de Zhang, Sun e Xie (2015). Os dois estudos concluíram que o campo de avaliação de sites de saúde está em expansão. Paolucci (2015) sugeriu que esse crescimento pode estar relacionado à popularização do acesso à internet e à preocupação acadêmico-científica com a informação 11 A maior parte dos artigos analisados foi publicada em inglês. Os cinco artigos mencionados a seguir encontram-se publicados exclusivamente em português, a saber: Souza, Luz e Rabello (2008), Silva e Gubert, (2010), Cubas e Felchner (2012), Silveira et al. (2012) e Paolucci et al. (2017). 268 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) de saúde veiculada. Contudo, a produção acadêmica brasileira sobre o tema não segue a tendência mundial de crescimento do número de publicações. O segundo comentário se refere às áreas do conhecimento dos periódicos que publicam artigos sobre o tema da avaliação da qualidade da informação de saúde na internet. Constatamos que a amostra utilizada para a elaboração desse capítulo está dispersa em periódicos das ciências biomédicas (BIO)12, da saúde pública13 (SP) e das demais áreas da saúde (S)14 (Tabela 2). Tabela 2. Distribuição da produção por área do conhecimento Ano 2005 2007 2008 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 Total Bio SP 1 1 1 1 1 3 1 2 S 1 1 1 1 1 9 2 1 1 1 7 5 Fonte: Os autores (2017). Paolucci (2015) mapeou as áreas dos estudos de avaliação da qualidade de sites de saúde. Assim como na produção brasileira, ele identificou que a maior parte dos estudos internacionais foi publicada em periódicos voltados para as áreas médicas. O terceiro comentário se refere ao caráter endógeno dessa produção. O que queremos dizer com isso? Trata-se de estudos sobre avaliação de sites de uma determinada área do conhecimento, publicados em periódicos da mesma área, voltados para leitores que atuam e se interessam por essa área. Por exemplo: um artigo publicado no Arquivo Brasileiro de Oftalmologia avalia a qualidade da informação sobre miopia e fotopsias (BARBOSA; MARTINS, 2007). Outro, publicado na Revista Paulista de Pediatria, analisa a qualidade da informação em sites de nutrição de crianças (MONTEIRO et al., 2016). Entre os estudos publicados na área da saúde pública, essa tendência se manteve, como foi o caso dos artigos que avaliaram a qualidade da informação em sites de tuberculose e dengue, publicados respectivamente nas revistas Saúde em Debate (PAOLUCCI; PEREIRA NETO; LUZIA, 2017) e Ciência & Saúde Coletiva (PEREIRA NETO et al., 2017). Da mesma forma, evidenciamos essa tendência entre os artigos das demais áreas 12 Na área biomédica foram identificados artigos publicados nos seguintes periódicos: Arquivos Brasileiros de Oftalmololgia (1); International Archives of Otorhinolaryngology (1); Revista da Associação Médica Brasileira (1); Einstein - Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein (1); Revista Paulista de Pediatria (1); Revista Brasileira de Otorrinolaringologia (1); Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil (1); Revista CEFAC - Associação Brasileira de Motricidade Orofacial (1); Jornal de Pediatria (1). 13 Na área da Saúde Pública foram identificados artigos publicados nos seguintes periódicos: Revista de Saúde Pública (2); Ciências e Saúde Coletiva (2); Saúde em Debate (1) Trabalho Educação e Saúde (1); Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (1). 14 Nas demais áreas da saúde, foram identificados artigos publicados nos seguintes periódicos: CoDAS - Jornal da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia (1); Revista Odonto Ciência (1); Acta Paulista de Enfermagem (1); Revista da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (1); Dental Press Journal of Orthodontics (1). Internet e Saúde 269 da saúde, como foi o caso de uma revista de enfermagem que publicou um artigo sobre a avaliação de sites educacionais sobre primeiros cuidados (MORI et al., 2013). Na revisão sistemática realizada por Paolucci (2015), a constatação foi semelhante: foi identificado o mesmo caráter endógeno na produção mundial sobre o tema. Ele concluiu afirmando: “dentre os estudos médicos, a maioria (64%) foi escrita sobre temas tratados por áreas médicas, por médicos, para médicos, em revistas médicas” (PAOLUCCI, 2015, p. 71). Cabe salientar que as áreas humanas e sociais, como a comunicação e a sociologia, parecem não se interessar por esse tema. Os 21 títulos dessa amostra apresentam estudos de avaliação de determinado tema ou problema que interessa um segmento específico de pesquisadores ou profissionais de saúde, publicados em periódicos voltados para esse público. Podemos intuir que os autores devem ter se interessado em conhecer a qualidade das informações na internet sobre os assuntos que estudam ou que estão relacionados à sua atuação profissional. Paolucci (2015) propôs duas explicações para tal interesse: […] A necessidade de alertar os colegas sobre a qualidade da informação ou apontar o problema da qualidade para reforçar sua autoridade como profissional detentor do saber de saúde. Na primeira, eles estariam tentando advertir os pares sobre a qualidade da informação online. Na segunda, eles estariam preocupados em reafirmar sua autoridade e desqualificar a internet enquanto fonte de informação confiável sobre saúde. (PAOLUCCI, 2015, p. 71). O quarto comentário que gostaríamos de fazer relaciona-se com os resultados apresentados nas publicações encontradas. Os 21 estudos que analisamos alertam, sobretudo, para o problema da qualidade da informação de saúde na internet. Na amostra que utilizamos neste capítulo, foram avaliados 934 sites ao todo. Apenas quatro estudos apresentaram resultados positivos para as informações avaliadas, caracterizando os sites como “bom”, “muito bom” ou “positivo” (LINS; MARIN, 2012; BASTOS; FERRARI, 2014; SOUSA et al., 2015; CHAVES et al., 2015). Cinco consideraram a qualidade média ou variável (SILVA; GUBERT, 2010; GONDIM; WEYNE; FERREIRA, 2012; SILVEIRA; COSTA; LIMA, 2012; MORI et al., 2013; PITHON; SANTOS, 2014). Os doze restantes revelaram que a qualidade das informações era ruim, caracterizando-a como “em não conformidade”, “pobre”, “inadequada”, “insuficiente”, “incorreta”, “incompleta” e “negativa”. Esses resultados reiteram a necessidade de lidar com o problema da qualidade das informações de saúde nos sites brasileiros e na internet. Esses quatro comentários serviram para revelar como a amostra analisada para elaboração deste capítulo seguiu ou não a tendência internacional observada na revisão sistemática realizada por Paolucci (2015) em sua dissertação de mestrado. Em relação aos critérios utilizados na produção acadêmica brasileira, um fato nos surpreendeu: apenas quatro dos 21 artigos incluem, na bibliografia, a revisão sistemática 270 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) de Eysenbach et al. (2002). Esse aspecto nos chamou a atenção devido a esse artigo ter sido publicado na JAMA, uma revista de circulação internacional, três anos antes do primeiro estudo nacional disponível em nossa amostra. Esses quatro artigos foram publicados respectivamente em 2011, 2014 e 2017. Vejamos como eles incorporam o estudo de Eysenbach et al. (2002). Santos et al. (2010) desenvolveram um instrumento de avaliação de informações sobre drogas de abuso na internet para identificar os sites que tivessem, simultaneamente, bom conteúdo, boa acessibilidade e credibilidade. Nesse caso, o estudo de Eysenbach et al. (2002) parece não ter influenciado a criação do instrumento de avaliação desses autores, pois não foi mencionado, apesar de estar incluído na bibliografia da publicação. Pithon e Santos (2014) utilizaram dois critérios muito próximos àqueles apresentados na revisão sistemática de Eysenbach et al. (2002). O primeiro foi denominado de “quality assessment”. Ele foi definido como “o nível de concordância entre a informação divulgada e a melhor evidência geralmente aceita na prática clínica” (PITHON; SANTOS, 2014, p. 87, tradução nossa). O segundo, denominado de “readability”, mensurava a “habilidade de leitura que um indivíduo precisa para compreender o que está escrito” (PITHON; SANTOS, 2014, p. 88, tradução nossa). Nesse caso, o estudo de Eysenbach (2002) parece ter servido de referência, pois o critério “quality assessment” se assemelha à “acurácia” e “readability”, à “legibilidade”. Entretanto, Pithon e Santos (2014) não utilizaram os critérios “abrangência”, “técnico” e “design” em sua avaliação. Paolucci, Pereira Neto e Luzia (2017) e Pereira Neto et al. (2017) foram os dois únicos estudos brasileiros que utilizaram os cinco critérios identificados pela revisão sistemática de Eysenbach (2002). Eles se apropriaram dessas referências e criaram outras. Os demais dezessete estudos seguiram caminhos diversos. Não se amparam nem citaram a revisão sistemática de Eysenbach et al. (2002). Fizemos um agrupamento desses estudos de acordo com os critérios adotados nas avaliações realizadas. Um primeiro grupo, composto por sete artigos, utilizou o HONcode: uma iniciativa da Health On Net Foundation - organização não governamental suíça. O HONcode é composto por oito critérios15 a saber: “Autoridade”, que “indica as qualificações dos autores”; “Complementaridade”, que prega que a “informação deve apoiar, e não substituir, a relação médico-paciente”; “Privacidade”, que respeita “a privacidade e a confidencialidade dos dados pessoais enviados ao site pelo visitante”; “Atribuição”, que reitera a importância da citação da(s) “a(s) fonte(s) de informação publicada, dados médicos e páginas de saúde”; “Justificabilidade”, que determina que o site “deve respaldar declarações relacionadas a benefícios e desempenho”; “Transparência”, que preza que o “site deve ter uma apresentação acessível e um e-mail para contato correto”; “Aviso sobre financiamento”, que considera a importância do site “identificar fontes de financiamento”; e “Política de Publicidade”, que considera que um 15 Disponível em: https://www.hon.ch/HONcode/Webmasters/Conduct.html Internet e Saúde 271 site deve “claramente distinguir publicidade de conteúdo editorial” (HON, 2010, tradução nossa). Os critérios do HONcode abrangem somente a dimensão técnica proposta por Eysenbach (2002). Trata-se, portanto, de uma ferramenta limitada, pois não considera a “acurácia” nem a “legibilidade” da informação disponibilizada – dois aspectos fundamentais para a difusão da informação em saúde na internet. Essa não é a opinião de alguns dos autores que compõe nossa amostra e que utilizaram esse código em sua avaliação. Para Del Giglio et al. (2012, p. 647), por exemplo, “os princípios do HON Code são os mais tradicionais, confiáveis e abrangentes na avaliação de informação relacionadas com saúde e medicina disponível na internet”. Vejamos com mais detalhes como os sete artigos brasileiros se apropriaram do HONcode. Barbosa e Martins (2007) utilizaram uma relação de critérios baseando-se nos princípios do HONcode, enquanto Carlini et al. (2012) aproveitaram cinco dos oito critérios do código. Leite e Correia (2011), Lins e Marin (2012), Silveira, Costa e Lima (2012) e Cubas e Felchner (2012) utilizaram exclusivamente os oito critérios elaborados pela organização HON. Del Giglio et al. (2012) associaram os critérios do HONcode com o Discern Questionnaire (DQ). O Projeto DISCERN foi elaborado pela Division of Public Health and Primary Health Care no Institute of Health Sciences da University of Oxford (CHARNOCK; SHEPPERD, 2004)16. Eles disponibilizam uma ferramenta de avaliação composta de três seções. A primeira avalia se a publicação é confiável17. A segunda verifica se existem informações que facilitem o paciente escolher o tratamento que considerar mais conveniente18. As respostas estão dispostas sob a forma de uma escala Likert na qual o avaliador responde não, parcialmente ou sim. A terceira convida o avaliador a avaliar “a qualidade geral da publicação enquanto uma fonte de informação sobre opções de tratamento”19. Na revisão sistemática realizada por Paolucci (2015), também foram identificados estudos que utilizaram o HONcode e o DISCERN como ferramentas de avaliação. Essas são as iniciativas mais utilizadas em estudos de avaliação da qualidade de informação de saúde na internet e se tornaram referências internacionais. Paolucci (2015) contrapôs os 16 Disponível em: http://www.discern.org.uk/discern_instrument.php A primeira seção contém 8 perguntas, a saber: “Os objetivos estão claros? Atinge os objetivos? É relevante? Está claro que fontes de informação foram utilizadas para compilar a publicação (além do autor ou produtor)? Está claro quando a informação utilizada ou reproduzida na publicação foi produzida? É equilibrado e sem viés? Fornece detalhes de fontes adicionais de apoio e informação? Refere-se a área de incerteza?”. 18 A segunda seção contém 7 perguntas, a saber: “Descreve como cada tratamento funciona? Descreve os benefícios de cada tratamento? Descreve os riscos de cada tratamento? Descreve o que aconteceria caso o tratamento não fosse utilizado? Descreve como as opções de tratamento afetam a totalidade da qualidade de vida? Está claro que pode existir mais de uma opção de tratamento? Fornece apoio para tomada de decisão compartilhada? 19 Neste caso, constam três opções: “Baixo – deficiências sérias ou extensa; ModeradoLow – Serious or extensive shortcomings”; “Moderate - deficiências potencialmente importantes, mas não sérias” e “Alto - deficiências mínimas”. 17 272 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) cinco critérios oferecidos por Eysenbach et al. (2002) e aqueles presentes nas iniciativas no HONcode e no DISCERN. O autor constatou que elas não utilizam a dimensão do critério “legibilidade”, e nenhuma abrange, simultaneamente, os cinco critérios sintetizados por Eysenbach et al. (2002). Lembramos que esses cinco critérios representam diferentes dimensões da qualidade da informação. Assim, para uma avaliação mais completa, é necessária a aplicação de todos. Em nossa amostra, quatro estudos utilizaram outras ferramentas de avaliação. Um deles foi o estudo de Mori et al. (2013), que combinou três instrumentos e modelos de avaliação. As autoras justificam essa escolha da seguinte forma: Devido à inexistência de um instrumento brasileiro de avaliação de website traduzido e validado com consenso, foi necessária sua criação tendo como referencial alguns instrumentos e modelos de avaliação, tais como: Health-Related Web Site Evaluation Form, System Usability Scale e Heuristic Evaluation. (MORI et al., 2013, p. 948). Segundo elas, o primeiro instrumento avaliou a estrutura do site; o segundo, a informação; e o terceiro, a navegabilidade. Bastos e Ferrari (2014) fizeram uma adaptação do Emory Health-Related Website’s Evaluation Form (EMORY): um questionário que inclui como critérios “acurária”, “autoria”, “atualizações”, “público”, “navegação”, “links” e “estrutura”. Além disso, foi considerada a “qualidade do conteúdo” sobre problemas auditivos. Preocupados com a questão da legibilidade, Souza, Luz e Rabello (2015) lideraram um conjunto de autores de Portugal em uma avaliação que utilizou o Next.Step Usability Questionnaire, um questionário que, a partir de uma avaliação subjetiva, identificacomo o usuário se sente ao navegar em um site. Chaves et al. (2015) combinaram na avaliação de sites sobre triagem auditiva neonatal em língua portuguesa, combinando os instrumentos Flesch Reading Ease Score Formula e Emory Health-Related Website’s Evaluation Form. Flesch Reading Ease Score Formula realiza uma classificação da legibilidade de um texto baseando-se no número de sílabas em uma palavra e de palavras em uma frase. Esse foi um dos poucos estudos que enfatizou a legibilidade da informação disponibilizada. Chaves et al. (2015) concluem que: […] Os websites diferiram quanto aos aspectos abordados, assim como, há necessidade de revisar o nível de leitura dos conteúdos e os aspectos de qualidade técnica referentes à precisão e atualização das informações, autoria e links. (CHAVES et al., 2015, p. 526). Paolucci (2015), em sua revisão sistemática, encontrou alguns estudos que utilizaram a Flesch Reading Ease Score Formula. Apesar da legibilidade ter sido o segundo critério mais utilizado nos estudos de sua amostra, quase todos empregaram fórmulas Internet e Saúde 273 como essa para determinar se as informações eram de fácil compreensão para determinado público. Conforme explicamos anteriormente, elas não contemplam fatores subjetivos da linguagem que poderiam ser percebidos por meio da leitura humana. Cabe frisar que, nesses quatro artigos presentes em nossa amostra, os critérios consagrados nas revisões sistemáticas não foram plenamente utilizados. Os outros seis artigos identificados se limitaram a avaliar a qualidade da informação disponível em sites de saúde utilizando documentos ou manuais oficiais de suas respectivas áreas de conhecimento como critério. Esse foi o caso de Silva, Mello e Mion (2005), que avaliaram sites sobre rinite alérgica amparados no Tratado de Otorrinolaringologia da Sociedade Brasileira de Otorrinolaringologia. Gondim e Falcão (2007) avaliaram farmácias brasileiras on-line a partir da regulamentação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) – órgão do Ministério da Saúde. Em outro artigo, Gondim, desta vez com Weyne e Ferreira, analisaram a qualidade da informação sobre medicamentos em websites brasileiros baseando-se na Organização Mundial da Saúde (OMS) e no Code of Ethics for Health and Services Sites on the Internet (GONDIM; WEYNE; FERREIRA, 2012). Souza, Luz e Rabello (2008), ao analisarem a adequação do conteúdo sobre leishmaniose visceral disponível em portais brasileiros, limitaram-se a verificar se estavam corretas as informações sobre transmissão da doença, reservatórios infectados pela leishmania, formas de controle e sintomas e procedimentos clínicos relacionados com a doença. Esses autores tomaram como padrão os manuais normativos do Ministério da Saúde e na literatura científica. A avaliação da qualidade de sites de aleitamento materno realizada por Silva e Gubert (2010) teve como parâmetro o Guia alimentar para crianças menores de dois anos do Ministério da Saúde (2010). Ao avaliar a qualidade da informação nutricional de crianças com menos de dois anos na internet, Monteiro et al. (2016) também utilizaram o mesmo guia como referência. A preocupação quase exclusiva com o conteúdo da informação, avaliado a partir de manuais e documentos oficiais, também foi identificada em 41% da amostra do estudo de Paolucci (2015). Para encerrar a análise da produção acadêmica brasileira, vejamos como esses autores realizaram processo de avaliação. A maioria dos estudos que serviram de base para a pesquisa que se transformou neste capítulo (12) teve os próprios autores como avaliadores. Outros seis envolveram profissionais de saúde como avaliadores, como foi o caso dos estudos que contaram com a participação de enfermeiras (LINS; MARIN, 2012), profissionais de saúde e de tecnologia da informação (MORI et al., 2013), especialistas em surdez na infância (BASTOS; FERRARI, 2014) e especialistas em audição neonatal (CHAVES et al., 2015). O envolvimento de usuários como avaliadores foi identificado em estudos que incluíram estudantes de graduação (SANTOS et al., 2010; MORI et al., 2013; MONTEIRO et al., 2016). No estudo de Sousa et al. (2015), adolescentes frequentadores de uma clínica de obesidade avaliaram as informações sobre controle de peso na internet. Apenas dois 274 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) estudos utilizaram simultaneamente usuários e profissionais de saúde como avaliadores. Trata-se dos artigos de Paolucci, Pereira Neto e Luzia (2017) e Pereira Neto et al. (2017). Como mencionamos anteriormente, apenas quatro dos 21 artigos que compõem a amostra deste estudo incluíram a revisão sistemática de Eysenbach et al. (2002) nas referências bibliográficas. Apesar disso, podemos constatar que houve um esforço na produção nacional de incluir o usuário final como avaliador da qualidade da informação. Assim, realidade constatada por Eysenbach et al. (2002, p. 2695, tradução nossa) de que “nenhum dos estudos conduziram testes de compreensão com consumidores reais ou utilizaram opiniões de experts em literacia” pode deixar de ser uma tendência predominante na produção acadêmica brasileira. Analisaremos a seguir a experiência de avaliação de qualidade da informação proposta pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. 3. Manual do CREMESP No dia 9 de março de 2001, o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (CREMESP) publicou a Resolução 97, acompanhada do “Manual princípios éticos para sites de medicina e saúde na internet” (CREMESP, 2001a; 2001b). No preâmbulo da resolução, é considerado “que a internet veicula informações, oferece serviços e vende produtos que têm impacto direto na saúde e na vida do cidadão” (CREMESP, 2001a). Além disso, é argumentado que “não existe nenhuma legislação específica para regulamentar o uso da internet ou o comércio eletrônico no Brasil [...]”20. Por essa razão, é afirmado que se torna “necessário o incentivo à auto-regulamentação do setor para estabelecimento de padrões mínimos de qualidade, segurança e confiabilidade dos sites de medicina e saúde” (CREMESP, 2001a). Como mencionamos anteriormente, a atuação do CREMESP se restringe ao estado de São Paulo. Apesar dessa limitação geográfica, cabe lembrar mais uma vez que São Paulo é o estado mais populoso, com maior renda per capita e que concentra o maior contingente de médicos do Brasil. Além disso, essa resolução foi publicada no Diário Oficial do governo do estado de São Paulo. Trata-se de um documento composto por apenas quatro artigos. O primeiro apresenta os sete princípios que os usuários da internet têm o direito de exigir das organizações e indivíduos responsáveis pelos sites de saúde. São eles: transparência, honestidade, qualidade, consentimento livre e esclarecido, privacidade, ética médica e responsabilidade e procedência (CREMESP, 2001a). O segundo institui que: 20 O Marco Civil da Internet foi promulgado em abril de 2014 através da Lei 12.965. A discussão sobre sua aprovação está presente no capítulo 2. Internet e Saúde 275 Os médicos e instituições de saúde registrados no CREMESP ficam obrigados a adotar o Manual de princípios éticos para sites de medicina e saúde na internet (anexo) para efeito de idealização, registro, criação, manutenção, colaboração e atuação profissional em Domínios, Sites, Páginas, ou Portais sobre medicina e saúde na Internet. (CREMESP, 2001a). Assim, essa resolução se preocupa com os usuários e afeta diretamente todos os médicos e instituições de saúde que atuam no estado de São Paulo21. O Manual de princípios éticos para sites de medicina e saúde na internet (CREMESP, 2001b), que acompanha a Resolução n° 97/2001 (CREMESP, 2001a), detalha cada um dos sete princípios mencionados acima. Realizaremos, a seguir, uma comparação entre os setes princípios estabelecidos nesse manual com os 8 princípios presentes no HONcode (HON, 2010) e os critérios de avaliação de qualidade de informação em sites de saúde identificados na literatura internacional na última revisão sistemática realizada (PAOLUCCI, 2015). O princípio da “transparência”, presente no manual, considera “obrigatória a apresentação dos nomes do responsável, mantenedor e patrocinadores diretos ou indiretos do site” (CREMESP, 2001b). Sendo assim, esse primeiro princípio se aproxima do critério “técnico” mencionado na revisão sistemática mais recente (PAOLUCCI, 2015). O HONcode também se preocupa com essa dimensão da avaliação. O princípio “transparency” presente no HONcode determina que: Os designers desse website buscarão fornecer informação do modo mais claro possível e fornecer endereços de contato para visitantes que busquem mais informação ou apoio. Os webmasters vão disponibilizar seu endereço de e-mail claramente por todo o website de modo. (HON, 2020, tradução nossa). Ao mencionar o papel dos webdesigners, no princípio “transparência”, o HONcode se aproxima do critério “design” utilizado por boa parte da literatura acadêmica internacional que analisa a qualidade da informação de sites de saúde (PAOLUCCI, 2015). O princípio denominado “atribuição” no HONcode também pode ser inserido nos padrões técnicos expostos pela última revisão sistemática (PAOLUCCI, 2015). Esse princípio é apresentado da seguinte forma: “onde for apropriado, a informação disponível nesse site será apoiada por claras referências à fonte dos dados e, onde for possível, ter links HTML específicos para os” (HON, 2020, tradução nossa). 21 Os outros dois artigos anunciam que o Manual de Princípios Éticos para Sites de Medicina e Saúde na Internet se constitui em anexo a esta resolução e que ela passava a vigorar a partir da data de sua publicação (9 de março de 2001). 276 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) O princípio “honestidade” do CREMESP aborda a questão da venda de produtos ou serviços de saúde pela internet. Segundo esse princípio, “deve estar claro quando o conteúdo educativo ou científico divulgado [...] tiver o objetivo de publicidade, promoção e venda” (CREMESP, 2001b). Na última revisão sistemática, essa dimensão está incluída no critério “técnico” (PAOLUCCI, 2015). No HONcode ela pode ser observada em dois momentos. Essa preocupação consta no item “aviso sobre financiamento” e “política de publicidade”. No primeiro, os sites de saúde devem incluir “as identidades de organizações comerciais e não comerciais que contribuíram com financiamento, serviços ou material para o site” (HON, 2020, tradução nossa). O segundo recomenda: “se a publicidade é uma fonte de financiamento, será claramente declarado” (HON, 2020, tradução nossa). O terceiro princípio do Manual do CREMESP é denominado de “qualidade da informação”. Ele determina que a informação seja “exata, atualizada, de fácil entendimento, em linguagem objetiva e cientificamente fundamentada” (CREMESP, 2001b). Sendo assim, esse princípio recupera as dimensões da acurácia e da legibilidade presente na última revisão sistemática (PAOLUCCI, 2015). O HONcode não dedica sua atenção a esses aspectos da informação. O quarto e quinto princípios do Manual do CREMESP, denominados “consentimento livre e esclarecido” e “privacidade”, preocupam-se com a preservação das informações sigilosas oferecidas pelo paciente em ambientes virtuais. O princípio de “privacidade” especifica que: Os sites devem deixar claro seus mecanismos de armazenamento e segurança, para evitar o uso indevido de dados, através de códigos, contrasenhas, software e certificados digitais de segurança apropriados para todas as transações que envolvam informações médicas ou financeiras pessoais do usuário. (CREMESP, 2001b). Assim, mais uma vez, o Manual do CREMESP dedica sua atenção ao usuário do site. Dessa vez, preocupa-se com o uso indevido das informações privadas dos cidadãos e com a espionagem presente na internet22. Essa questão não esteve presente entre os critérios observados pelos estudos que realizaram revisão sistemática. Ele está presente, entretanto, no HONcode sob a alcunha de “privacidade”. Consta no HONcode que: Confidencialidade dos dados relativos a pacientes individuais e visistantes de um site médico/de saúde, incluindo sua identidade, é respeitada por esse website. Os proprietários do site se comprometem a honrar ou exceeder os requisites legais de privacidade que são aplicáveis ao país ou estado onde o website e sites espelhos estão localizados. (HON, 2020, tradução nossa). 22 A questão da segurança e riscos na Internet é abordada no capítulo 10. Internet e Saúde 277 O sexto princípio do Manual do CREMESP denomina-se “ética”. Ele está voltado especificamente para o exercício da medicina via internet. Ele institui que: Os profissionais médicos e instituições de saúde registradas no CREMESP que mantêm sites na Internet devem obedecer aos mesmos códigos e às normas éticas regulamentadoras do exercício profissional convencional. Se a ação, omissão, conduta inadequada, imperícia, negligência ou imprudência de um médico, via internet, produzir dano à vida ou agravo à saúde do indivíduo, o profissional responderá pela infração ética junto ao Conselho de Medicina. São penas disciplinares aplicáveis após tramitação de processo e julgamento: advertência confidencial; censura confidencial; censura pública em publicação oficial; suspensão do exercício profissional por 30 (trinta) dias e cassação do exercício professional. (CREMESP, 2001b). Nesse caso, as revisões sistemáticas e o HONcode não fazem menção a essa dimensão. Entretanto, o HONcode consagra ao médico o domínio exclusivo de “qualquer conselho médico ou de saúde fornecido e hospedado nesse site” em seu critério denominado “autoridade” (HON, 2010). O HONcode preocupa-se com a preservação da hegemonia do médico no exercício da clínica em seu princípio denominado “complementaridade”. Nele, consta que: “a informação fornecida nesse site é estruturada para apoiar, e não substituir, a relação que existe entre paciente/visitante do site e seu/sua médico(a)” (HON, 2020, tradução nossa). O sétimo princípio presente no manual do CREMESP denomina-se “responsabilidade e procedência”. Mais uma vez, ele aborda a dimensão técnica recomendada pelas revisões sistemáticas, pois propõe que esteja “explícito aos usuários quem são e como contatar os responsáveis pelo site e os proprietários do domínio” (CREMESP, 2001b). Além disso, o último princípio determina que “as informações devem utilizar, como fontes profissionais, entidades, universidades, órgãos públicos e privados e instituições reconhecidamente qualificadas” (CREMESP, 2001b). Finalmente, o HONcode tem uma preocupação que não está presente no Manual do CREMESP. A agência internacional considera relevante que “quaisquer declarações relacionadas ao benefício/desempenho de um tratamento específico, produto comercial ou serviço devem ser sustentados por evidência apropriada e equilibrada” (HON, 2020, tradução nossa). Assim, a abrangência foi o único critério presente na última revisão sistemática (PAOLUCCI, 2015) que não foi identificada no Manual do CREMESP (CREMESP, 2001b) nem nos princípios do HONcode (HON, 2010; 2020). A diferença mais notável entre esses três parâmetros avaliativos está relacionada à realização do processo de avaliação. Não há qualquer menção no HONcode nem no Manual no CREMESP sobre quem serão os avaliadores e como a avaliação será realizada. O “Manual princípios éticos para sites de medicina e saúde na internet” do CREMESP 278 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) (2001b) não apresenta, portanto, o método adotado para verificar a adequação de sites com seus princípios. Transcorridos mais de 15 anos desde a sua promulgação, constatamos que não houve qualquer atualização do manual. Pelo contrário, continuam vigorando dois artigos no Código de Ética Médica do Conselho Federal de Medicina relacionados ao uso da internet na saúde e contrários ao manual (CFM, 2010): São eles o Artigo 37, que institui ser vedado ao médico “prescrever tratamento ou outros procedimentos sem exame direto do paciente”23, e o Artigo 114, que impede o profissional “consultar, diagnosticar ou prescrever por qualquer meio de comunicação de massa”. O Manual do CREMESP, entretanto, serviu de referência para um dos estudos mencionados anteriormente. Silva et al. (2005) avaliaram a qualidade das informações encontradas em sites sobre rinite alérgica e publicaram o artigo na Revista Brasileira de Otorrinolaringologia. O procedimento adotado foi comparar se as informações encontradas nos sites estavam de acordo com as definições de cada princípio do manual. Assim, apesar de suas limitações, o “Manual princípios éticos para sites de medicina e saúde na internet” já foi utilizado em uma pesquisa acadêmica. Analisaremos, a seguir, a iniciativa do Laboratório Internet, Saúde e Sociedade (LaISS) em avaliação da qualidade da informação em sites de saúde. 4. Experiências do LaISS O Laboratório Internet, Saúde e Sociedade (LaISS) foi inaugurado em dezembro de 2009 com o apoio recebido da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). Ele está vinculado ao Centro de Saúde Escola Germano Sinval Faria (CSEGSF), um centro de atenção primária da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP), da Fundação Oswaldo Cruz, localizado no bairro de Manguinhos, na cidade do Rio de Janeiro. Manguinhos é um bairro onde residem mais de 36 mil habitantes (IPP, 2013). Ele está localizado em uma área onde existia um mangue – condição geográfica de onde deriva seu nome, no diminutivo. Ele reúne quinze favelas com perfis sociodemográficos semelhantes. Em geral, sua população é desempregada ou ocupa-se com trabalhos temporários (FERNANDES; COSTA, 2013). Não há saneamento básico na maior parte do território. Manguinhos têm um dos piores índices de desenvolvimento humano da cidade do Rio de Janeiro. Cerca de 80% da população ganha menos de um salário-mínimo por mês (IPP, 2013). A população residente está exposta a toda sorte de doenças infectocontagiosas (LIMA, 2010). A violência e os conflitos armados entre traficantes de drogas, policiais e membros da milícia são frequentes. Parágrafo único do Artigo 37 determina que: “O atendimento médico a distância, nos moldes da telemedicina ou de outro método, dar-se-á sob regulamentação do Conselho Federal de Medicina”. 23 Internet e Saúde 279 O LaISS está vinculado ao Centro de Saúde Escola Germano Sinval de Faria que oferece serviços de atenção primária a essa população. Entre 2012 e 2013, o laboratório desenvolveu um projeto de pesquisa voltado para análise da qualidade da informação em sites de dengue (PEREIRA NETO; PAOLUCCI, 2014). Entre 2013 e 2014, foram avaliados sites de tuberculose (PEREIRA NETO et al., 2016). A dengue foi escolhida por ser uma doença tropical negligenciada. De acordo a Organização Mundial da Saúde, as doenças tropicais negligenciadas incluem: [...] Um diverso grupo de doenças transmissíveis que prevalecem em condições tropicais e subtropicais em 149 países – afetam mais de um bilhão de pessoas e custam bilhões de dólares a economias emergente todos os anos. Populações vivendo na pobreza, sem saneamento adequado e contato próximo com vetores infecciosos, animais domésticos e pecuária são as mais afetadas. (WHO, 2020, tradução nossa). A dengue tem altas taxas de morbidade e de mortalidade, sobretudo em crianças e adultos. Trata-se de uma enfermidade de importância mundial que acompanha a humanidade há anos e sem perspectivas de controle em curto prazo. A informação de qualidade na internet pode desempenhar um papel importante na prevenção dessa doença e no seu tratamento. A tuberculose está presente no sexto Objetivos do Milênio24: “combater a AIDS a Malária e outras Doenças”. Segundo o Plano Nacional pelo fim da Tuberculose publicado em 2017: O Brasil é um dos países com maior número de casos no mundo e, desde 2003, a doença é considerada como prioritária na agenda política do Ministério da Saúde (MS). Embora seja uma doença com diagnóstico e tratamento realizados de forma universal e gratuita, pelo Sistema Único de Saúde, ainda temos barreiras no acesso e acontecem aproximadamente 69 mil casos novos e 4.500 óbitos a cada ano como causa básica tuberculose. (BRASIL, 2017, p. 5). Um dos principais desafios do enfrentamento da tuberculose é o abandono do tratamento. O tratamento para obter a cura é longo e há vários motivos socioeconômicos e culturais que o dificultam. Muitas pessoas o iniciam, mas logo depois o abandonam. Chirinos, Meirelles e Bousfield (2017, p. 5) concluíram em recente pesquisa que: “[…] está presente a necessidade de apropriação de novos conhecimentos científicos pelas 24 Os Objetivos do Milênio foram promulgados por meio da Declaração do Milênio das Nações Unidas, adotada pelos 191 estados membros no dia 8 de setembro de 2000. 280 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) pessoas com TB, tanto sobre a doença quanto ao tratamento da tuberculose, na tentativa de modificar as representações e ações de abandono”. Assim, a informação na internet pode desempenhar um importante papel na adesão ao tratamento da tuberculose e na prevenção da dengue. As duas experiências de avaliação da qualidade da informação de sites de saúde desenvolvidas no LaISS foram, em larga medida, orientadas pelas conclusões apresentadas pela revisão sistemática de Eysenbach et al. (2002). Elas utilizaram e adaptaram os critérios enunciados por esse estudo (técnico, design, abrangência, acurácia e legibilidade). Além disso, procuraram atender a principal deficiência identificada na literatura do campo: a ausência da participação dos usuários e dos experts na avaliação. Por essa razão, as duas experiências desenvolvidas no LaISS não utilizaram recursos tecnológicos para avaliar a legibilidade dos respectivos sites. Nesse caso, moradores de Manguinhos foram os avaliadores. Apresentaremos, a seguir, como se desenvolveu a participação dos usuários e dos experts em cada uma dessas avaliações e como eles adaptaram os critérios enunciados por Eysenbach et al. (2002)25. 4.1. Avaliadores, pesquisadores e cidadãos A equipe que realizou o projeto convidou alguns moradores de Manguinhos para elaborar as perguntas avaliativas e exercer o papel de avaliadores da qualidade da informação de saúde na internet como representantes dos usuários. Essa escolha se justifica pois a maioria da população brasileira vive nas mesmas condições socioeconômicas que os moradores de Manguinhos, entre as quais se destaca a renda mensal até dois salários mínimos por mês (IBGE, 2016)26. Esses moradores haviam participado de uma atividade anterior no LaISS. Por essa razão, foram convidados a participar dessas duas avaliações. Os representantes dos experts foram sensibilizados individualmente em diferentes ambientes institucionais. A experiência de avaliação de sites de dengue (2012/2013) contou com a participação de 20 moradores de Manguinhos - 17 mulheres e 3 homens. Eles tinham níveis variados de escolaridade e idades entre 30 e 60 anos. Muitos não possuíam habilidade ou 25 Esta apresentação estará baseada nos dois relatórios de pesquisa produzidos pela equipe do LaISS (PEREIRA NETO; PAOLUCCI, 2014; PEREIRA NETO et al., 2016). 26 A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua - PNAD Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia e estatística (IBGE), órgão vinculado ao Governo Federal do Brasil investiga trimestralmente um conjunto de informações conjunturais sobre as tendências e flutuações da força de trabalho e, de forma anual, temas estruturais relevantes para a compreensão da realidade brasileira. Em 2016, o PNAD revelou que 44,5 milhões de brasileiros receberam em média R$ 747 por mês, menos que o salário-mínimo estabelecido para o ano. Enquanto isso, as 889 mil pessoas mais bem remuneradas do país receberam, em média, R$ 27 mil por mês. Quer dizer, apenas 1% ganha 36 vezes mais do que a metade dos trabalhadores recebe em média. A diferença fica evidente quando descobrimos que os 10% mais ricos ficam com 43% de todos os ganhos. Internet e Saúde 281 conhecimentos básicos de informática. Dez experts participaram do processo: seis mulheres e quatro homens. Esse grupo foi composto cinco médicos da atenção primária que trabalhavam no CSEGSF/ENSP/Fiocruz, um pesquisador de doenças febris do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz)27 e quatro médicos recém-formados que atuavam na Estratégia de Saúde da Família. No caso da experiência com a tuberculose (2013-2014), participaram os mesmos 20 usuários moradores de Manguinhos e 19 experts, todas mulheres. Participaram quatro pesquisadoras do Centro de Referência Professor Hélio Fraga (CRPHF), departamento especializado em tuberculose da ENSP (Fiocruz); cinco profissionais que atuavam na atenção primária no CSEGSF/ENSP/Fiocruz; uma pesquisadora do Instituto Oswaldo (IOC/Fiocruz)28 que estudava tuberculose; seis profissionais do Laboratório de Situações Endêmicas Regionais (LASER/ENSP/Fiocruz); e três profissionais à época recémformadas, alunas da residência multiprofissional de saúde pública29. Nos dois casos, os moradores de Manguinhos receberam uma pequena ajuda financeira, enquanto os experts colaboraram como voluntários. Em relação aos usuários, o desafio inicial foi familiarizá-los com os termos normalmente utilizados no universo da internet como site, homepage, website, link, download, send, delete: palavras estrangeiras que em geral são desconhecidas para uma população com baixa escolaridade. Inicialmente, foram realizadas atividades para sensibilizá-los sobre as estruturas e componentes básicos de páginas Web. Aos poucos, os usuários puderam conhecer um pouco mais o papel da internet como meio de comunicação contemporâneo. Quando se realizou a experiência de avaliação da qualidade da informação de sites de tuberculose, o grupo de avaliadores moradores de Manguinhos demonstrou maior proximidade com o universo dos computadores e da internet. Os representantes dos usuários e dos experts participaram desse processo de duas formas: construindo os indicadores de qualidade e realizando a avaliação, graças a um instrumento on-line construído para esse fim. Vejamos como ocorreu o processo de elaboração dos indicadores de qualidade. Durante todo o processo de construção dos indicadores para avaliar informações sobre dengue, a equipe do LaISS teve a preocupação de considerar as opiniões dos usuários para as tomadas de decisão. Para tanto, foi incorporado pela equipe o referencial teórico da comunicação dialógica de Paulo Freire (1976). Com isso, os representantes dos usuários tiveram condições de se apropriar das características dos critérios apresentados por Eysenbach et al. (2002). 27 Unidade da Fiocruz voltada para a pesquisa clínica, ensino, serviços de referência e assistência em doenças infecciosas. 28 Unidade da Fiocruz que atua nas áreas de pesquisa, desenvolvimento tecnológico e inovação e na prestação de serviços de referência para diagnóstico de doenças infecciosas e genéticas e controle de vetores. 29 A residência visa “promover o desenvolvimento de atributos à equipe multiprofissional de saúde de nível superior para atuar nas Equipes de Saúde da Família e nos Núcleos de Apoio a Saúde da Família (NASF)”. 282 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) A equipe do LaISS incorporou, na íntegra, o sentido e o significado de quatro dos cinco critérios apresentados por essa revisão sistemática. O único que sofreu uma pequena alteração foi o critério “design” (EYSENBACH et al., 2002). Ele passou a ser nomeado de “interatividade”. Com isso, foram valorizados os canais de comunicação entre os gestores do site e seus usuários e entre os próprios usuários. Assim, esse critério não se restringiu aos aspectos visuais do site como sugere o critério “design”. Uma das características que distingue um meio de comunicação virtual dos tradicionais é sua capacidade de proporcionar que os usuários troquem informações entre si e com os gestores. Essa característica é valorizada nesse critério. Um site de saúde é completo se oferecer condições para os usuários se comunicarem entre si e com o seu gestor para trocar informações, tirar dúvidas ou apresentar elogios ou queixas. A proposta desse critério prevê que o site avaliado ofereça meios de comunicação como “fale conosco”, Facebook, Twitter, além de estruturas básicas de navegação como “menu” e “buscador”. A página também deve ser considerada atraente pelo avaliador, seja ele usuário ou profissional. O grupo de moradores que participou do processo de construção dos indicadores de qualidade para dengue esteve trabalhando no LaISS durante nove meses. Ao longo desse período, foram realizados intensos debates que permitiram a construção dos indicadores para quatro critérios, tendo cada um deles um número diferente de indicadores: Técnico (11), Interatividade (5), Abrangência (8) e Legibilidade (25). Assim, eles passaram a exercer o papel de pesquisadores cidadãos, e não apenas colaboradores do trabalho ou fontes de informação. No caso da dengue, dois médicos pesquisadores e estudiosos dessa enfermidade elaboraram 14 indicadores relacionados especificamente com essa doença, dentro do critério “acurácia”. Todos os indicadores de qualidade construídos para a dengue foram redigidos na forma de perguntas avaliativas. Em relação à avaliação da qualidade da informação de sites de tuberculose, o processo foi um pouco diferente, sobretudo em relação aos indicadores do critério acurácia. A equipe do LaISS percebeu que não deveriam ser feitas perguntas avaliativas sobre acurácia. Em seu lugar, deveriam ser feitas afirmações que contivessem as informações essenciais sobre prevenção, transmissão, sintoma, diagnóstico e tratamento da tuberculose. Na segunda experiência, os indicadores de acurácia para tuberculose foram redigidos de outra forma. Essa decisão foi inspirada pelo estudo brasileiro de Souza, Luz e Rabello (2008), que avaliou a qualidade de sites a partir de sentenças afirmativas ou negativas. Além disso, na avaliação das informações sobre dengue, a equipe do LaISS constatou que alguns experts não sabiam responder a todas as perguntas sobre os assuntos abordados. Redigidos sob a forma de uma afirmação, o avaliador pode verificar se os conteúdos mínimos sobre a tuberculose estão (ou não) presentes no site. Por exemplo, ao invés de perguntar como a tuberculose pode ser prevenida, foi a presentada a seguinte afirmação: “a tuberculose pode ser prevenida em lugares arejados” (PEREIRA NETO et Internet e Saúde 283 al., 2016, p. 77). O avaliador teve que verificar se constava (ou não) essa informação no site que estava sendo avaliado. Foram associados 21 indicadores de acurácia para tuberculose, elaborados com participação de profissionais do Centro de Referência Professor Helio Fraga (CRPHF/ENSP/Fiocruz). Eles não trabalharam sozinhos. Os representantes dos usuários também participaram da elaboração das sentenças relacionadas com o critério acurácia. Os pesquisadores definiam que informação sobre tuberculose deveria constar em um site sobre essa doença. Por exemplo, os profissionais elaboraram a seguinte sentença: “Na maioria das vezes, se o tratamento for realizado corretamente, em 15 dias, o doente não transmite mais”. (PEREIRA NETO et al., 2016, p. 43). Essa proposta de sentença foi levada aos moradores de Manguinhos participantes do processo. Depois de intensa discussão, esse texto foi subdividido em dois indicadores, adquirindo o seguinte formato: (1) A tuberculose pulmonar e laríngea são as que transmitem a doença. (2) Na maioria das vezes, se o tratamento for realizado corretamente, em 15 dias, o doente não transmite mais (PEREIRA NETO et al., 2016, p. 77). Com isso, o processo de elaboração dos critérios e indicadores de avaliação de informações de sites de tuberculose foi diferente daquele realizado no projeto sobre dengue. Em relação à tuberculose, houve um esforço em realizar, em certa medida, a Translação do Conhecimento (TC). Clavier et al. (2012, p. 12, tradução nossa) entendem que a TC: “[…] está longe de ser um processo mecânico: ao contrário, é a elaboração hábil de práticas cognitivas, estratégicas e logísticas que se entrelaçam aos valores, interesses e ideias de cada parceiro”. Existem diferentes maneiras de nomear aqueles que praticam a TC. Clavier et al. (2012) sinalizam que há quem denomine de action researchers, translators, support staff”, leaders e knowledge brokers. A TC é entendida por Clavier et al. (2012, p. 4, tradução nossa) como: “[…] uma prática multifacetada e inovadora que permite trocas multidirecionais e a co-construção do conhecimento entre acadêmicos, representantes da comunidade, profissionais e tomadores de decisão”. O grupo de moradores que participou do processo de construção dos indicadores de qualidade para tuberculose trabalhou no LaISS durante nove meses. Ao longo desse período, foram realizados intensos debates que permitiram a construção dos indicadores para cada um dos cinco critérios, tendo cada um deles um número diferente de indicadores: Técnico (8), Interatividade (5), Abrangência (8) e Legibilidade (20). Nesse caso, eles também exerceram o papel de pesquisadores cidadãos e não apenas colaboradores do 284 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) trabalho ou fontes de informação. Os 21 indicadores de acurácia foram elaborados por pesquisadores e usuários na forma de sentenças afirmativas ou negativas. Assim, tanto para a dengue como para a tuberculose, cada critério foi composto por uma quantidade diferente de perguntas ou sentenças avaliativas. Vejamos, agora, como se desenvolveu o processo avaliativo. Com as perguntas e sentenças avaliativas prontas, iniciou-se o processo de avaliação dos sites de dengue e tuberculose. Para tanto, foi construído um instrumento de avaliação on-line. Foram avaliados sites vinculados a instituições privadas e públicas. Alguns deles foram intencionalmente escolhidos por serem de sites de cidades onde a incidência dessas doenças é maior. Em relação à dengue, foram avaliados 20 sites, e à tuberculose, 12 sites. Essa pesquisa serviu para construir um diagnóstico preliminar da qualidade da informação nestas duas áreas e para testar o instrumento de avaliação. A mais importante contribuição da iniciativa do LaISS está relacionada com a maneira pela qual foi realizada a avaliação da legibilidade das informações disponíveis nesses sites. A equipe do LaISS não utilizou as ferramentas que comumente são empregadas nesse tipo de avaliação. Para a equipe do LaISS, não bastava que o site tivesse, por exemplo, informações sobre a prevenção da tuberculose ou da dengue. Foram elaboradas questões em que o avaliador era convidado a responder se teve ou não dificuldade de compreender o que estava escrito sobre esse aspecto, se considerava a frase sobre esse tema muito longa ou se encontrou alguma palavra de difícil compreensão. Assim, por exemplo, se uma frase for considerada de difícil compreensão por 18 dos 20 avaliadores, ela deveria ser escrita de outra forma. Nos dois casos, somente os representantes dos usuários avaliaram a legibilidade das informações disponíveis nos sites. Os avaliadores dos critérios variaram de acordo com a experiência realizada, configurando-se a Tabela 3: Tabela 3. Avaliadores por critério nas duas experiências Critério Dengue Tuberculose Técnico Usuário e Expert Usuário Abrangência Usuário e Expert Usuário Interatividade Usuário e Expert Usuário Legibilidade Usuário Usuário Acurácia Expert Usuário e Expert Fonte: Os autores (2017). Internet e Saúde 285 A tabela 3 revela que a equipe do LaISS realizou uma grande modificação nos avaliadores, uma vez que os usuários assumiram o protagonismo do processo. Na avaliação das informações dos sites de tuberculose, os experts avaliaram somente a acurácia. Essa mudança se justifica pois a equipe do LaISS estava mais preocupada que as informações fossem úteis para os usuários comuns. Os experts, com sua formação de nível superior, podem dispor de mais recursos para obter informações. Para concluir, podemos afirmar que, de acordo com a análise da literatura especializada sobre avaliação da qualidade da informação de saúde na internet, o processo utilizado pelo LaISS apresentou duas novidades que merecem ser mencionadas. Em primeiro lugar, cabe destacar que as duas experiências do laboratório contaram com a participação de profissionais de saúde e de usuários finais na construção do instrumento de avaliação e no processo avaliativo. Essa dupla participação não foi identificada na primeira revisão sistemática sobre o tema (EYSENBACH et al., 2002), nem nas duas revisões seguintes (PAOLUCCI, 2015; ZHANG; SUN; XIE, 2015). Nos dois casos, foi identificado um número irrisório de estudos envolvendo usuários finais na avaliação, mas não na construção das perguntas avaliativas. Zhang, Sun e Xie (2015), por exemplo, identificaram que quase todos os estudos tiveram especialistas como avaliadores e poucos envolveram usuários. Paolucci (2015) gerou ainda mais evidências sobre a questão dos avaliadores. Ele identificou que a maioria dos estudos contou com os próprios autores para avaliar sites de saúde. Em segundo lugar, cabe enfatizar como foi realizada a avaliação da legibilidade. Ela tem sido realizada em outras pesquisas com a utilização de ferramentas que geram índices para representar níveis de leitura dos documentos a partir da complexidade e comprimento das palavras e sentenças. Paolucci (2015) demonstrou que as ferramentas sugeridas por Eysenbach et al. (2002) continuavam sendo válidas. Na produção acadêmica nacional e internacional, a maior parte dos autores continua utilizando essas ferramentas quando avaliam legibilidade. Na experiencia do LaISS, os cidadãos comuns, oriundos da população de baixa renda, foram os protagonistas do processo – eles fizeram a avaliação. O reconhecimento da qualidade do trabalho realizado pelo LaISS foi obtido recentemente. Em 2016, o LaISS transformou-se na primeira agência certificadora de sites de saúde do Brasil, com o apoio da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz). Desde então, é oferecido o serviço de certificação de sites de saúde com o “Selo Sergio Arouca” a páginas públicas ou vinculadas aos órgãos públicos do Brasil. Figura I. Selo Sergio Arouca de Qualidade de Informação de Saúde na Internet 286 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Fonte: Os autores (2017). 5. Tendências e desafios No Brasil, não há notícia de qualquer outra agência pública ou privada que esteja desenvolvendo atividades sistemáticas de avaliação da qualidade da informação de saúde disponível na internet além do Laboratório Internet, Saúde e Sociedade (LaISS). Enquanto isso, nos Estados Unidos e na Europa, agências governamentais, associações profissionais e pesquisadores têm feito avaliação de informação em sites de saúde há mais de duas décadas. Health On Net e DISCERN são as mais proeminentes. Contudo, o trabalho do LaISS se diferencia da maioria dos estudos acadêmicos e de todas as iniciativas institucionais existentes no mundo. A participação de experts e de usuários aos quais as informações dos sites se destinam é essencial para que o conteúdo disponbilizado on-line possa alcançar as pessoas e propiciar os benefícios do acesso a informações de qualidade. Essa participação pode acontecer em todas as etapas das pesquisas e dos processos de certificação de sites de saúde. Usuários e especialistas podem contribuir tanto na construção e validação dos instrumentos como nas avaliações dos sites. Assim, é possível obter resultados mais interessantes, provenientes de perspectivas de avaliadores com diferentes características demográficas, socioeconômicas e culturais. Dependendo do assunto de saúde que se deseja oferecer informações de qualidade, pode ser mais interessante envolver perfis específicos de especialistas e usuários. Em termos acadêmicos, o número de estudos publicados no mundo sobre o tema tem crescido ao longo dos anos, como indicam as duas últimas revisões sistemáticas. Como Internet e Saúde 287 analisamos neste capítulo, a produção acadêmica brasileira nessa área não acompanha a tendência internacional. Diante do avanço de telemedicina no Brasil e no mundo, a posição do CREMESP nos pareceu bastante reativa ao crescimento e à presença das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação na vida do cidadão em sociedade e em sua vida privada, especialmente em assuntos relacionados com sua saúde. Se observarmos os resultados da avaliação30 realizada pelo LaISS nos sites públicos de tuberculose, poderemos constatar que nenhum deles obteve mais de 60%31 de conformidade com os critérios utilizados: Tabela 4. Resultados da avaliação de sites públicos brasileiros sobre tuberculose Site Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo Programa Nacional de Controle da Tuberculose Prefeitura do Rio de Janeiro Prefeitura de Porto Alegre Secretaria Estadual de Saúde do Paraná Sociedade Brasileira de Tisiologia Fundação de Medicina Tropical Técnico Interatividade Abrangência Legibilidade Acurácia Média 44 77 83 41 72 63 38 76 74 41 74 61 52 79 66 40 47 57 30 76 67 38 50 52 41 50 56 29 45 44 44 80 39 20 23 41 33 23 54 18 34 32 Fonte: Os autores (2017). Assim, essa amostra revela a existência de um problema com a qualidade da informação oferecida nos sites públicos sobre essa doença. O mais surpreendente é que, das 27 unidades da federação, apenas 12 têm um site dedicado à tuberculose. Das 5.570 cidades existentes no Brasil, apenas oito têm sites sobre 30 Estas informações foram obtidas no site do LaISS: http://laiss.ensp.fiocruz.br/pesquisa/buscar. número representa a média que cada site obteve nos cinco critérios avaliados. 31 Este 288 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) a doença. Atualmente no Brasil, é comum encontrarmos folhetos explicativos impressos sobre tuberculose sendo distribuídos em centros de saúde e outros locais. A cultura de comunicação anterior à internet parece predominar. Para nós, os problemas apontados, tanto a baixa qualidade dos existentes como a ausência de sites, estão diretamente relacionados com a relevância que a informação e comunicação na internet têm para os gestores e pesquisadores de saúde pública. Essa parte importante da elite política e intelectual brasileira parece que ainda não percebeu o papel que as Novas Tecnologias de Informação e Comunicação têm exercido nas sociedades ao redor do planeta. O desafio agora é persuadir os gestores e aos intelectuais a respeito da importância da avaliação da qualidade da informação de saúde na internet. Referências ALBARRAK, A. I. et al. The impact of obesity related websites on decision making among students in Saudi Arabia. Saudi Pharmaceutical Journal, v. 24, n. 5, p. 605– 610, 2016. BARBOSA, A. L.; MARTINS, E. N. Evaluation of Internet websites about floaters and light flashes in patient education. Arquivos Brasileiros de Oftalmologia, v. 70, n. 5, p. 839–843, 2007. BASTOS, B.; FERRARI, D. Babies’ Portal Website Hearing Aid Section: Assessment by Audiologists. Rev. CEFAC, v. 16, n. 1, p. 72-82, 2014. BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 18055, 20 set. 1990. BRASIL. 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Internet e Saúde 293 Capítulo 10 Crianças e adolescentes na Internet: um perfil atual dos riscos no Brasil Evelyn Eisenstein* e Eduardo Jorge Custódio da Silva Resumo Crianças e adolescentes destacam-se como proeminentes usuários da internet. O acesso às tecnologias digitais promove novas oportunidades e riscos à saúde. São cada vez mais comuns as mensagens de violência, os discursos de ódio e intolerância e os contatos com pessoas desconhecidas, que geram transtornos psicológicos e lesões físicas. Os aplicativos e as redes sociais acessados em smartphones são o veículo principal para essas agressões e riscos. No Brasil esse equipamento é utilizado por 22 milhões de jovens entre 9 e 17 anos. Este capítulo analisará esse problema, avaliará os fatores de proteção e destacará a importância da mediação dos pais, educadores e profissionais de saúde nesse contexto. Palavras-chave: Criança; Adolescente; Internet; Fatores de Proteção; Relações PaisFilho; Fatores de Risco. Referência: EISENSTEIN, E.; SILVA, E. J. C. Crianças e adolescentes na internet: um perfil atual dos riscos no Brasil. In: PEREIRA NETO, A.; FLYNN, M. (orgs.). Internet e saúde no Brasil: desafios e tendências. 1 ed. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2020. p. 292-311. * Faculdade de Ciências Médicas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]. 294 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Introdução Crianças e adolescentes vivenciam importantes etapas do seu período de crescimento, desenvolvimento e maturação cerebral-mental com a curiosidade e impulsividade características e encontram o atual mundo cada vez mais acelerado, superficial, ruidoso e “tecnoestressante”, ou seja, o desejo incontrolável de estar conectado o tempo todo, sem conseguir realizar cada tarefa separadamente e com a devida atenção e concentração. Esse contexto é preenchido, muitas vezes, por imagens da violência dos vídeos e jogos on-line, que fazem parte dos desafios tecnológicos do cotidiano. O ato de digitar, clicar e deslizar os dedos em smartphones, telefones celulares, notebooks e computadores está começando bem antes da criança conseguir dar um laço nos cadarços dos calçados ou mesmo de ter a habilidade psicomotora para brincar com uma bola. Pelo que parece, o tempo das brincadeiras no quintal ficou no passado e foi substituído pelos desenhos animados e games disponíveis nas telas dos dispositivos que ficam dentro dos quartos. Mas será que esses jovens estão jogando desafios perigosos ou transmitindo nudes? Será que tudo será medido somente por megabytes e pela monetização da fama e glamourização dos youtubers mirins, que são as celebridades atuais? Mudanças de comportamentos e relacionamentos entre todos na família, entre pais e filhos, e também na escola, entre professores e alunos, fazem parte das transformações resultantes de uma realidade que não separa mais o virtual do real. É cada vez mais difícil distinguir como o conteúdo das mídias influencia o desenvolvimento das crianças e dos adolescentes em sua saúde física, mental e social. A questão parece ser a seguinte: como podemos equilibrar os benefícios e as oportunidades que as mídias digitais oferecem e ainda assim evitar os riscos e outros danos no futuro? Essa pergunta tem motivado a realização de inúmeras pesquisas e estudos. A controvérsia muitas vezes está relacionada com a idade que crianças poderiam ter acesso às redes sociais e à internet, a duração do uso e as repercussões dessa prática (YOUNG; ABREU, 2017). Neste capítulo, apresentaremos alguns aspectos relevantes relacionados com os riscos que crianças e adolescentes correm ao acessar as mídias digitais. Além disso, faremos algumas reflexões sobre o papel dos pais e educadores na proteção social de crianças e adolescentes. Nossa análise se concentrará na realidade brasileira, na qual os direitos desse grupo etário são assegurados pelo “Estatuto da Criança e do Adolescente” (Lei n° 8.069/1990)1, especialmente artigos 240 e 241 (BRASIL, 1990). Tais direitos foram atualizados pela Lei n° 11.829/2008) (BRASIL, O artigo 241 do “Estatuto da Criança e do Adolescente” prevê, por exemplo, punição de reclusão 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa a quem “vender ou expor à venda fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente” (BRASIL, 1990). 1 Internet e Saúde 295 2008), no Marco Civil da Internet, em seus artigos 26 e 292 (BRASIL, 2014), e a Lei n° 13.185/2015 (BRASIL, 2015), que institui o “Programa de Combate à Intimidação Sistemática (Bullying)”3. Além da legislação brasileira, as recomendações da American Academy of Pediatrics (AAP) (AAP, 2016a), e Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) (SBP, 2016), também servirão como norteadores de nosso capítulo. Crianças e adolescentes que acessam a internet, redes sociais, jogos on-line e vídeos representam um grupo demográfico importante. Os principais dados e tendências utilizados como referência neste capítulo foram obtidos na pesquisa “TIC Kids Online Brasil 2016” (CGI, 2017). Ela envolveu jovens de 9 a 17 anos de idade e suas famílias, e contou com a participação de aproximadamente 24,3 milhões de pessoas de diferentes classes sociais das 5 regiões brasileiras. Esse estudo concluiu que 86% das pessoas nas áreas urbanas são usuárias de internet, enquanto nas áreas rurais a taxa é de 65%. Em relação aos jovens, os dados nos pareceram impressionantes! Oito em cada dez jovens conectados usam exclusivamente o telefone celular para se conectar. Além disso, o uso diário é intenso. 84% acessam a internet mais de uma vez ao dia; 90% sabem conectar-se à rede WiFi; e 86% possuem perfil em redes sociais. Em 31% das famílias, os pais pouco sabiam sobre as regras de segurança ou nada sabiam sobre as atividades de seus filhos. 41% sabiam mais ou menos. Esses dados apontam que mais da metade das famílias vivem problemas relacionados com a segurança e de privacidade. Os resultados da pesquisa “TIC Kids Online Brasil 2016” (CGI, 2017) indicam ainda que a violência, a intolerância e os discursos de ódio na rede foram compartilhados por 41% da amostra, ou 10 milhões, sendo que 11% das crianças e adolescentes já tinham passado por situações de constrangimento ou incômodo. Esse índice chega a 52% no caso de adolescentes entre 15 a 17 anos de idade. Esses números e outros dados que serão apresentados neste capítulo revelam as situações de riscos on-line que se contrapõem às oportunidades. Por isso este capítulo irá ressaltar a importância da mediação parental e dos educadores nesse processo. Além disso, a segurança na rede deve ser objeto de políticas públicas no âmbito educacional e na área de saúde, além de outras ações governamentais. Elas devem se tornar objeto de estratégias de alerta com a mediação dos pais e responsáveis (NIC, 2016). A violência foi definida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como o uso intencional de força física ou poder, ameaçado ou real, contra si mesmo ou outra pessoa, contra um grupo ou comunidade, que tem alta probabilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, problemas no desenvolvimento, maus tratos ou privação (WHO, 2012). Essa definição não distingue atos reais de representações visuais ou recriações de atos violentos on-line. Tampouco considera as sequelas e as 2 3 O Marco Civil da Internet no Brasil é analisado no capítulo 2. O tema do bullying e cyberbullying é discutido no capítulo 11. 296 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) repercussões associadas a tais atos, se reais, simulados ou cibernéticos, em forma de assédio ou discriminação de gênero, entre outros tipos de intolerância e discriminação. Eles podem resultar no aumento da vulnerabilidade, angústia, insegurança, depressão, ansiedade e “tecnoestresse”. Além disso, podem retroalimentar a própria violência em outras reações mais violentas on-line. O anonimato e a falta de segurança e privacidade nas redes sociais contribuem para a naturalização da violência, sobretudo em jovens criados em famílias disfuncionais, desestruturadas ou em contextos políticos e culturais complexos (KING; WALPOLE; LAMON, 2007; LIVINGSTONE; PALMER, 2012; LUNA, 2013). Este capítulo está dividido em dois momentos. No primeiro, iremos apresentar alguns aspectos da saúde de crianças e adolescentes relacionados com o uso excessivo e descontrolado das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação. Nesse caso, daremos ênfase às seguintes áreas: crescimento e desenvolvimento; saúde mental e comportamental; e sexualidade e desenvolvimento sexual. No segundo momento, serão relacionados alguns dos riscos à saúde mais comuns que crianças e adolescentes estão sujeitos a passar e as medidas preventivas mais comuns sugeridas pela literatura especializada. Na conclusão, são apresentadas algumas recomendações da American Academy of Pediatrics (AAP) e da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), visando esmorecer os efeitos deletérios que muitas vezes incidem sobre as crianças e adolescentes na era das tecnologias digitais. Sendo assim, os riscos serão descritos, mas nãoanalisados detalhadamente. Apesar de admitirmos a existência de aspectos positivos nas mídias digitais, como será abordado no capítulo 184 deste livro, este texto visa destacar a necessidade de estarmos alertas para proteção das populações mais vulneráveis. Nossa atenção está concentrada basicamente, nos aspectos relacionados com os riscos do uso compulsivo e sem controle das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação por crianças e jovens. 1. Primeira parte 1.1. Crescimento e desenvolvimento Segundo os critérios da Organização Mundial de Saúde, denominamos de crianças as pessoas que integram a faixa etária desde o nascimento até os 10 anos 4 O capítulo 20 discute o tema dos vídeo games na saúde. Internet e Saúde 297 de idade, e de adolescentes as pessoas que integram a faixa etária de 10 a 20 anos de idade. Muitos documentos denominam como juventude o período que vai do nascimento até 24 anos ou até completar o estudo universitário. Para nós, é mais importante saber diferenciar a maturação gradual e final da puberdade, que ocorre geralmente em torno dos 25 anos, do que utilizar como critério marcos meramente cronológicos e legais para analisar a questão da segurança e da responsabilidade nas redes sociais (EISENSTEIN; 2005, GIEDD; 2008). Fatores como o sono, a alimentação e a prática de exercícios físicos são essenciais em todas essas fases. Além disso, são importantes os estímulos positivos de apego, afeto e atenção, que são condicionantes da construção da personalidade dos indivíduos no seu desenvolvimento mental, emocional e cognitivo. As condições contextuais e ambientais de proteção parental e social, incluindo o uso das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação, podem contribuir de forma positiva, gerando diferentes oportunidades, ou negativa, promovendo riscos, que podem se transformar em determinantes sociais de saúde e influir no desenvolvimento desses cidadãos (WHO, 2011; EISENSTEIN, 2013). Crianças e adolescentes desenvolvem diferentes práticas em suas rotinas diárias que podem comprometer sua saúde. Esses hábitos incluem a alimentação pouco saudável que promove o sobrepeso, a obesidade e o sedentarismo. Além disso, destacam-se: os transtornos de sono, a tendência a comportamentos violentos ou agressivos, as alterações do humor, a depressão e a ansiedade, os transtornos da imagem e da percepção corporal e da auto-estima, a hiperatividade, os transtornos da conduta social e sexual, o tabagismo e o uso mais frequente de bebidas alcoólicas e outras drogas. Embora não possa ser apontado como o único fator causal, o acesso às mídias digitais frequente, intenso, durante várias horas do dia e da noite, realizado por meio da internet, exerce um papel importante em todos esses comportamentos de risco (STRASBURGER; JORDAN; DONNERSTEIN, 2012). Transtornos de sono e dificuldades de dormir, por exemplo, estão entre as queixas mais frequentes de pais e tutores legais. Em uma revisão de literatura, envolvendo 125.198 crianças e adolescentes com a média de 14,5 anos de idade, Carter e colaboradores (2016) demonstraram que existe em vários países a associação forte e consistente entre o uso intensivo da internet e a quantidade inadequada de tempo de sono. A baixa qualidade do sono e a sonolência/cansaço excessivo durante o dia também estão associados ao uso compulsivo da internet. Por outro lado, os transtornos de sono podem promover a queda do rendimento escolar, pois prejudicam a concentração e a memória. Eles também estão associados à depressão e às queixas constantes de cefaleia e sensação de tontura. Por isso as associações de pediatria recomendam que as crianças e os adolescentes se desconectem das mídias digitais duas horas antes da hora de dormir (DWORAK; BRUNS; STRÜDER, 2007; AAP, 2016b; SBP, 2016). 298 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Portanto, é primordial que crianças e adolescentes tenham um processo saudável de crescimento e desenvolvimento. Para tanto, é necessário que seja estabelecido pelos pais um equilíbrio entre o tempo dedicado a atividades on-line e outras atividades da rotina, como brincar ao ar livre, incluindo a prática de exercícios ou esportes, os horários para alimentação adequada e o padrão de sono. Assim, serão interrompidos os ciclos viciosos da liberação do cortisol e da dopamina, que afetam os componentes hormonais do stress (SILVA; TING, 2013; EISENSTEIN; SILVA, 2016). 1.2. Saúde mental e comportamental Danos psicológicos muitas vezes estão associados à exposição excessiva a programas de televisão, filmes ou vídeo games com conteúdos violentos. Esse hábito pode interferir nas habilidades cognitivas e funções executivas, no desenvolvimento da linguagem, na capacidade de concentração e memorização, além de aumentar a agressividade e naturalizar a violência entre as crianças e adolescentes. Alguns autores assinalam que o uso abusivo da internet favorece o aumento da prevalência da violência, das redes de ódio e intolerância, dos riscos de desenvolvimento da ansiedade e depressão, pesadelos, transtornos de sono, pensamentos agressivos e sentimentos de raiva (RICH, 2014). Crescem também os índices de brincadeiras perigosas de auto-mutilação e desafios como a incitação ao suicídio. Estudos revelam que 10% dos usuários têm acessado as redes procurando formas de cometer suicídio. Esse dado aumenta para 13% no sexo feminino (RICH, 2014; CGI, 2017). O tempo excessivo nos jogos on-line e no uso das redes sociais na internet estão associados à liberação da dopamina, neurotransmissor cerebral que age no sistema de recompensa. Com isso, têm sido observados hábitos e atitudes impulsivas na adolescência que irão moldar o desenvolvimento das funções executivas e cognitivas do córtex pré-frontal (NSCDC, 2017; SIEGEL, 2016). A dependência tecnológica é vista como um resultado da interação não química entre o homem e a máquina, envolvendo a indução e o reforço comportamental. Ela está dando origem a novas propostas diagnósticas de dependência do uso da internet como um “transtorno do impulso” (YOUNG, 1998; YOUNG; ABREU, 2011). Apesar de ser usado com frequência, o termo Internet e Saúde 299 “dependência”5 ainda não foi aceito como diagnóstico. Por exemplo, Rich, Tsappis e Kavanaugh (2017) contestam o uso do termo. Até o momento, o “Transtorno do jogo pela internet” é o único transtorno do jogo compulsivo definido pelo “Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais” (DSM-5) da Associação Americana de Psiquiatria (APA, 2014). Nesse contexto, a pesquisa “TIC Kids Online Brasil 2016” (CGI, 2017) apontou que 25% dos usuários de internet de 11 a 17 anos de idade já tentaram, sem sucesso, passar menos tempo na rede. Outros 21% relataram que passam menos tempo com a família por causa do uso excessivo da internet. O estágio inicial “tecnoestresse” é causado pela frustração de não conseguir acessar a tecnologia. Com a persistência, o usuário consegue atingir seu objetivo e fica satisfeito consigo mesmo por ter conseguido acionar as redes sociais. Num estágio intermediário, evidenciam-se as crises de raiva diante de algumas impossibilidades de lidar o tempo todo com os aplicativos, jogos on-line, dispositivos ou equipamentos da tecnologia. Quando essas dificuldades se tornam mais frequentes, começam a surgir sintomas como a cefaléia e a tensão muscular. Em último estágio, o tecnoestresse se torna crônico. Nesse momento, a saúde vai ficando seriamente comprometida, pois ocorre a liberação mais intensa de neurotransmissores, como a corticotrofina e a dopamina, que irão influenciar a produção do hormônio cortisol e toda uma cadeia de reações e repercussões do estresse, ocasionando a desregulação cerebral e causando vários transtornos clínicos e comportamentais, como os transtornos de sono e o aumento da ansiedade, já mencionados, dependendo da cronicidade e intensidade do uso (STRATAKIS; CHROUSOS, 1995). O tecnoestresse pode ser provocado por qualquer tipo de estímulo tecnológico. Ele ocorre quando um indivíduo se depara com estímulos tecnológicos constantes e reage de forma estressada por causa das adaptações que devem ocorrer dentro de si para aceitar tais novidades tecnológicas em um intervalo de tempo bastante curto. De acordo com um estudo realizado pela International Stress Management Association (ISMA), no Brasil, 60% dos entrevistados declararam-se tecnoestressados. Boa parte deles relataram sintomas físicos do estresse. O estudo da ISMA-Br foi conduzido em São Paulo e Porto Alegre, com 1200 homens e mulheres, de 25 a 55 anos, para identificar as causas e os sintomas mais frequentes do tecnoestresse (ISMA, 2001). A maioria relatou ansiedade e angústia como efeitos emocionais. Além disso, também foram diagnosticadas mudanças comportamentais, como o aumento no consumo de álcool e drogas, a agressividade (jogar o celular no 5 Steven Johnson, em seu livro “Tudo Que é Ruim é Bom para Você” (Editora Zahar, 2012), defende a ideia de que a pessoas que jogam vídeo game não são piores nem melhores que as pessoas que têm o hábito de ler. Segundo ele, a prática de games estimula o sistema neurológico e cognitivo e possibilita o desenvolvimento de capacidades que as gerações passadas nem sonhavam que pudessem existir. Este será o ponto de vista apresentado no capítulo 20, que analisará o papel dos vídeo games nas práticas de saúde. 300 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) chão, por exemplo) e o hábito de comer em excesso. A constatação mais interessante desse estudo foi que 40% das pessoas restantes avaliadas estavam sofrendo de tecnoestresse, mesmo sem saber (ISMA, 2001). Existe ainda uma síndrome denominada “déficit induzido de atenção”, descrito por Edward Hallowell em 2002. Ele se revela frequentemente em adolescentes que tentam realizar várias tarefas simultaneamente, como atender ao celular no meio de outra conversa, abrir e-mails, ou responder e enviar mensagens imediatamente. Ele também é perceptível quando alguém escreve no celular durante as refeições ou anda nas calçadas ou atravessa as ruas olhando para o celular. A capacidade de ser multitarefa, como geralmente é denominada, pode levar crianças e adolescentes a um quadro irritabilidade, distração, ansiedade e diminuição da produtividade escolar. Isso explica a quantidade de erros cometidos nas provas nas escolas, por exemplo, pois o cérebro humano só consegue processar uma tarefa de cada vez, conforme os resultados de exames comparativos comprovados com imagens de ressonância magnética. Esse “déficit de atenção induzido” ocorre também como uma das principais causas de acidentes de trânsito (HALLOWELL; RATEY, 2014). 1.3. Sexualidade e desenvolvimento sexual As Novas Tecnologias de Informação e Comunicação nos colocaram diante de uma transformação não só de novos padrões de comunicação e de relacionamento social, mas também de uma nova maneira com que se aprende e se manifesta a sexualidade. No isolamento e no anonimato de seu computador, em seu quarto ou numa lan house, muitos adolescentes iniciam seu conhecimento sexual com informações obtidas livremente na internet, oriundas de pessoas de todos os tipos e idades, cujas identidades reais, muitas vezes, são desconhecidas. Esses jovens buscam por curiosidade uma experiência sexual que pode ser observada no compartilhamento de sexting ou nudes. Denomina-se sexting a transmissão da própria imagem por webcam ou selfies na internet. As mensagens de texto que acompanham o sexting são curtas, simples e diretas, e fazem parte do novo idioma usado por meio da internet e dos celulares, nas redes sociais de relacionamento, mesmo com desconhecidos. Assim, vídeos com conteúdos sexuais de crianças e adolescentes são difundidos mesmo sendo considerados atualmente como crimes pelo Estatuto de Criança de do Adolescente no Brasil (BRASIL, 1990). O envio de vídeos com fotos ou conteúdos sexuais, chamados de nudes, também fazem parte do cotidiano, apesar de serem igualmente considerados como crimes pelo Marco Civil da Internet (BRASIL, 2014), em seus artigos 26 e 29. A nosso ver, está cada vez mais tênue a linha que separa o uso Internet e Saúde 301 construtivo e saudável do uso patológico no desenvolvimento sexual. A busca de atenção e afeto na internet situa-se sobre uma divisória entre a saúde e os riscos de doenças futuras (O’KEEFE, 2011). Segundo os dados presentes na pesquisa “TIC Kids Online Brasil 2016” (CGI, 2017), os vídeos e mensagens de teor sexual são postados e compartilhados por 23% dos jovens entre 15 a 17 anos de idade no Brasil. Por outro lado, 42% das pessoas pesquisadas tiveram contato com outras pessoas desconhecidas que iniciaram contato por meio das redes sociais (29%), das quais apenas 22% se encontraram pessoalmente. Também geram preocupação entre estudiosos e familiares os riscos de exploração comercial sexual e das redes de tráfico sexual, inseridas em muitas redes de relacionamento e de namoro e encontros sexuais na internet. Nesse contexto, o grooming tem se tornado cada vez mais constante. Trata-se de uma prática de sedução exercida via internet por pedófilos que tentam conquistar a adesão de crianças e adolescentes em redes sociais. Essas práticas proliferam devido à ausência de educação efetiva da sexualidade conduzida por pais, educadores ou programas educativos, além da falta de aplicativos adequados à compreensão dos adolescentes e com responsabilidade social (HABERLAND; ROGOW, 2015). O acesso fácil à pornografia e aos conteúdos sexuais inapropriados para a idade tem sido considerado fator de risco para experiência sexual prematura, o exercício da sexualidade sem proteção, a gravidez precoce e as doenças sexualmente transmissíveis/HIV/AIDS/HPV/Hepatite C (CHANDRA-MOULI et al., 2015). Muitos vídeos são discriminatórios, vexatórios, perversos ou violentos, incitando à discriminação sexual, étnica ou religiosa de grupos minoritários de LGBTQ+, inclusive com conteúdos extremistas e difamatórios. A pornografia e o abuso sexual on-line, envolvendo crianças e adolescentes, são as queixas crimes mais frequentes no Brasil, segundo os dados atuais da SaferNet Brasil6 e do INHOPE7. 2. Segunda parte 2.1. Riscos à saúde 6 A SaferNet Brasil é uma associação civil de direito privado, com atuação nacional, sem fins lucrativos ou econômicos, sem vinculação político partidária, religiosa ou racial. Fundada em 20 de dezembro de 2005, com foco na promoção e defesa dos Direitos Humanos na Internet no Brasil. Para mais informações, acesse: http://www.safernet.org.br. 7 A INHOPE é uma associação criada com a finalidade de facilitar a cooperação entre os diferentes provedores de Internet para combater pornografia infantil e proteger crianças e adolescentes desse tipo de crime. Disponível em: http://www.safernet.org.br/site/institucional/redes/inhope. 302 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Como analisamos anteriormente, crianças e adolescente estão sujeitos a correr riscos com o uso compulsivo e sem controle das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação. Embora admitamos a existência de usos positivos das mesmas mídias, consideramos fundamental estarmos alertas para os riscos à saúde que crianças e adolescentes correm com o uso precoce, compulsivo e indiscriminado da internet. Alguns autores classificaram os riscos em visuais, auditivos, posturais e alimentares. Apesar de considerarmos os aspectos cognitivos e de desenvolvimento da criança mais importantes que os riscos mencionados acima, consideramos que uma breve menção a eles merece ser feita neste capítulo. Vejamos cada um deles. • Riscos Visuais: monitores e telas emitem luminosidade excessiva e podem provocar fototoxicidade, principalmente após o uso prolongado por muitas horas. Crianças ou adolescentes que jogam seus videogames com olhos fixados nas telas e sem piscar têm mais chances de contrair fototoxicidade. A lágrima é essencial para lubrificar a córnea e mantê-la úmida com seus nutrientes. A Síndrome do Olho Seco (SOS), por exemplo, manifesta-se pela vermelhidão dos olhos, sensação de corpo estranho, conjuntivites e ceratites (infecção da córnea). Além disso, erros de refração, como a miopia, podem piorar durante o crescimento puberal. A Síndrome do Olho do Computador (Computer Vision Syndrome, em inglês) também tem sido diagnosticada frequentemente em crianças e adolescentes. Seus sintomas são dor-de-cabeça, desconforto ocular, secura, irritação ou sensação de queimação nos olhos, diplopia (visão dupla) e visão borrada, devido às respostas de convergência e acomodação ocular, (ROSENFIELD, 2011). As mudanças do relógio biológico e do ciclo circadiano podem estar associadas a transtornos de sono e depressão, devido à exposição intensa (mais de seis horas diárias), às ondas de luz azul das telas ou de lâmpadas de LED. Essa situação pode causar a supressão de melatonina e a diminuição do HGH, hormônio do crescimento – que é primordial durante o período de crescimento na infância e na adolescência. É recomendado a redução do uso de computadores e smartphones para melhorar os hábitos de sono, de modo a evitar a luz de onda azul das telas duas horas antes de dormir (HARVARD MEDICAL SCHOOL, 2015; AAP, 2016b; SBP, 2016). • Riscos Auditivos: O uso contínuo de fones de ouvido (headphones) de alta potência pode ocasionar a Perda Auditiva Induzida pelo Ruído (PAIR). Trata-se de um problema irreversível, pois compromete as células ciliadas do ouvido interno (cóclea), que não se regeneram mais. O nível confortável de ruídos para Internet e Saúde 303 adultos, segundo a Agência de Proteção Ambiental, é de 80 decibéis (dB). Para crianças e adolescentes, o nível seguro é 70 dB. Ruídos acima de 80 dB são considerados de nocividade auditiva. A recepção do ruído depende da música que está sendo ouvida, do equipamento que está sendo utilizado e da maior ou menor proximidade do usuário em relação a origem do som, caixa de som ou headphones. O limiar da dor auditiva gira em torno de 120 a 140 dB. Outros sintomas auditivos podem ocorrer, como o zumbido: uma ilusão auditiva, um som fantasma, que é produzido na ausência de fonte externa geradora de som e interfere na comunicação humana, principalmente em ambientes ruidosos (CARVALHO, 2013). • Riscos Posturais e Osteoarticulares: crianças e adolescentes podem sofrer com problemas na coluna cérvico-tóraco-lombar quando conectados com seus dispositivos portáteis e posicionados de maneira irregular em cadeiras, poltronas e sofás. Além disso, em muitos casos, as mesas e carteiras escolares não se adequam ao seu tamanho. Isso porque as características corporais e físicas dos jovens dificilmente são consideradas nos padrões ergométricos pelos fabricantes dos equipamentos. As alterações mais comuns são: a retificação ou a inversão da coluna cervical; a “quebra-do-pescoço” (atualmente conhecida como tech-neck) ou a cabeça protraída em frente à tela do computador; torcicolos, devido ao pescoço e ombros virados de lado ao atender ao celular; cifose acentuada (curva para frente); e lordose (curva para trás). Durante o crescimento da coluna em adolescentes, os desvios da bacia e dos ombros, além da rotação do tronco e escoliose (curva em “s” da coluna), passam a ser frequentes. Também são comuns as “Lesões de Esforço Repetitivo” (LER), as tenossinovites, as tendinites e as cervicobraquialgias – dores musculares irradiadas do pescoço, ombros e braços após o uso prolongado do computador e vídeo games (GENTILE et al., 2004; DEL PELOSO, 2013). • Riscos Alimentares: o culto ao corpo e as expectativas irreais de estereótipos dos modelos e das celebridades nas telas digitais têm sido associados a transtornos alimentares, dietas e práticas de restrição alimentar rigorosas, uso de anabolizantes, excesso de exercícios ou à obesidade e ao sedentarismo crônico. Nesse caso muitos jovens acessam constantemente as redes sociais e as tecnologias on-line buscando tratamento (LOUCAS et al., 2014). Na pesquisa “TIC Kids Online Brasil 2016” (CGI, 2017), a proporção de crianças e adolescentes que acessaram via internet conteúdos sobre formas para ficar muito magro/a em 2016 foi de 20%, sendo que no sexo feminino e entre 15 e 17 anos de idade, essa proporção aumentava para 27%. Outros riscos existem e podem estar associados aos transtornos alimentares ou comportamentais. Muitas vezes essas 304 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) práticas estão associadas ao uso de drogas, anabolizantes ou bebidas alcoólicas. Atualmente entraram em cena os e-cigarettes ou cigarros eletrônicos. Esses são alguns sinais de alerta dos riscos à saúde que as crianças e adolescentes correm com o uso compulsivo das redes sociais. 2.2. Fatores de risco e de proteção As tecnologias trazem oportunidades e riscos para crianças e adolescentes. Nessas circunstâncias, a mediação parental é mais um desafio. O envolvimento e a capacitação de educadores, professores e profissionais que lidam com crianças e adolescentes, como pediatras e psicólogos, também são significativos. Por outro lado, parece-nos igualmente urgente a realização de programas de educação continuada, de cidadania e de alfabetização digital. Práticas permissivas ou restritivas, monitoramento ou mediação técnica com supervisão ou o uso compartilhado das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação são questões que estão na ordem do dia a esse respeito (LIVINGSTONE; BULGER, 2013). Diante de todos esses fatores de risco e dos problemas de segurança e privacidade on-line, as crianças e adolescentes precisam aprender a colocar senhas e bloquear mensagens indevidas e vexatórias. Elas precisam principalmente estar alertas a quaisquer mensagens transmitidas ou compartilhadas com qualquer teor de discriminação ou violência (NIC, 2016). Os autores consultados para a elaboração deste capítulo consideram importante que os pais aproveitem este momento para melhorar as oportunidades de interagir e trocar afeto e atenção no cotidiano do convívio familiar, em vez de ficarem digitando mensagens em seus celulares nas horas de refeições ou nos finais de semana. Essa mesma literatura sugere que sejam aprofundados os momentos de diálogos para reforçar a resiliência e as relações de afeto, apoio e compreensão. O convívio com a família, com amigos, a escola e a comunidade favorecem a construção de laços de confiança e respeito e oferecem suporte e coragem durante as atividades de rotina (EISENSTEIN; MORAIS; TING, 2017). O quadro abaixo apresenta um resumo dos fatores de risco e de proteção possíveis dentro do contexto familiar. Trata-se de um esquema que relaciona os problemas comportamentais de crianças e adolescentes ao uso das tecnologias de informação e comunicação: Internet e Saúde 305 Quadro 1. Possíveis fatores de risco e de proteção dentro do contexto familiar Fatores de Risco Falta de diálogo Fatores de Proteção Diálogos e supervisão com responsabilidade Abandono afetivo e sem oportunidades de Respeito e regras de convivência convivência real e digital Falta de limites Modelos positivos de identificação Negação dos comportamentos inadequados Desenvolvimento de valores éticos do/s filho/s e humanistas Violência familiar e/ou família disfuncional e/ou uso de drogas/álcool Proteção e alfabetização digital Fonte: Os autores (2018). Mesmo assim, a segurança on-line de crianças e adolescentes necessita de uma rede profissional de atenção com competências diversas. Morais (2013) compara as iniciativas necessárias para lidar com os riscos relacionados com o uso abusivo das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação a uma “cadeira de 4 pernas” (MORAIS, 2013, p. 290), que podem ser resumidas da seguinte forma: 1. Abordagens regulatórias: são as leis, como o Marco Civil da Internet (BRASIL, 2014) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), as convenções e documentos nacionais e internacionais que dispõem sobre o uso adequado das tecnologias. Além de regulamentadas, as regras e leis precisam ser melhor conhecidas nas escolas, nas famílias e pela sociedade como um todo. Pais e filhos podem também ter regras de convivência sobre o uso das tecnologias, inclusive sobre senhas, mensagens, informações, fotos ou vídeos que podem ou não ser compartilhados. É importante que todos saibam as diferentes configurações sobre privacidade e público. 2. Abordagens educativas: as escolas devem orientar os estudantes a respeito do uso de computadores em trabalhos de pesquisa. Os professores devem, por exemplo, orientar os estudantes a checar a veracidade das fontes utilizadas e realizar uma reflexão crítica sobre a alfabetização digital (GOOGLE, 2013). 3. Abordagens parentais: os pais não podem ficar off-line, semparticipar da vida de seus filhos ou netos. Eles devem aproveitar para aprender com eles. Assim, os 306 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) pais terão mais oportunidades de transmitir valores familiares que são válidos também on-line. Eles poderão lembrar aos filhos que existem horas que se torna necessário desconectar, como as horas das refeições em família ou as atividades conjuntas nos finais de semana, nas férias, nas excursões e nas festas familiares (MORAIS, 2014). 4. Abordagens tecnológicas: todos devem se manter atualizados em relação ao sistema operacional dos programas, dos aplicativos, das instalações e das ferramentas para evitar os vírus e os conteúdos indesejáveis no uso da internet e redes sociais. Atualmente muitos materiais instrucionais e cartilhas sobre esses temas já estão disponíveis on-line e de acesso gratuito (CERT, 2016; NIC, 2016; REDE E.S.S.E. MUNDO DIGITAL, 2015). 3. Conclusão Em um relatório publicado em 2017, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) afirma que, para o bem ou para o mal, a tecnologia é um fato irreversível nas nossas vidas, e um a cada três usuários da internet são crianças e adolescentes, conectados a um mundo digital. Essas crianças e adolescentes já estão deixando suas pegadas ou “rastros digitais” para o futuro (UNICEF, 2017). As sociedades médicas que lidam com a saúde de crianças e adolescentes, como a American Academy of Pediatrics (AAP)8 e a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), produziram algumas recomendações, que estão inclusive accessíveis on-line, sobre a saúde de crianças e adolescentes na era das tecnologias digitais (AAP, 2016a; SBP, 2016). As principais recomendações dessas duas instituições são as seguintes: 1. Crianças menores que 2 anos não devem ser expostas às telas smartphones, telefones celulares, notebooks e computadores como distração; 2. Crianças entre 2 a 5 anos de idade devem ter o tempo de exposição total às mídias digitais de 1 hora/dia, sempre com supervisão de pai/mãe/responsável; 3. Crianças entre 6 a 10 anos de idade devem ter o tempo de exposição total às mídias digitais de 2 horas/dia, sempre com supervisão de pai/mãe/responsável; 4. Adolescentes de 11 anos ou mais devem ter o tempo de exposição total às mídias 8 Para mais informações, acesse: https://www.aap.org/en-us/advocacy-and-policy/aap-healthinitiatives/Pages/Media-and-Children.aspx. Internet e Saúde 307 digitais equilibrado com atividades fora delas, como exercícios ou esportes em horas/dia e assegurando 8-9 horas de sono/noite. 5. Os pais devem conversar com as crianças e os jovens sobre as regras de convivência e conduta em relação ao uso das novas tecnologias de informação e comunicação. Eles devem estabelecer limites horários e configurações de segurança, privacidade e explicar sobre os riscos dos compartilhamentos nas mídias digitais de fotos, vídeos ou informações pessoais ou familiares. O uso ininterrupto das mídias digitais tem ainda uma dimensão psicológica digna de nota. Muitos adolescentes se expõem porque desejam ser celebridades ou youtubers mirins e juvenis com visualizações infinitas. Essa é a via que conhecem para se identificarem e serem reconhecidos nos grupos sociais. Esse comportamento em boa parte ocupa seus espaços vazios de tempo ou de angústia em relação aos estudos ou às incertezas sobre o futuro. Nesse sentido, Harari (2015) afirma: Sem saber para onde ir, permitir que os algoritmos saibam sempre onde estou e para onde quero ir, é só ser parte de um fluxo de dados. O indivíduo está se tornando um pequeno chip dentro de um sistema gigantesco que, na realidade, ninguém entende e à medida que o sistema do processamento de dados se torna onisciente e onipotente, a conexão com o sistema se torna a fonte de todo o significado. (HARARI, 2015, p. 388). O incentivo à criação de mecanismos de proteção social e material de educação em saúde pode ser uma alternativa válida. Nesses documentos, as questões sobre os direitos de crianças e adolescentes à saúde nas redes digitais devem ser enfatizadas. Nos últimos tempos, programas escolares concebidos para o desenvolvimento de um pensamento crítico e saudável, além de educativo e reflexivo em relação às mídias digitais, denominados de “Alfabetização e Cidadania Digital”, passaram a ganhar força e espaço na internet. Um deles é desenvolvido pelo Laboratório Internet, Saúde e Sociedade (LaISS), da Escola Nacional de Saúde Pública, na Fundação Oswaldo Cruz9. Os equipamentos tecnológicos e as redes sociais digitais vêm mudando progressivamente a maneira como as pessoas se relacionam. Por essa razão, devem ser tomados alguns cuidados visando a proteção social de crianças e adolescentes durante seu período de crescimento e desenvolvimento. O uso compulsivo e irrestrito das mídias digitais coloca novos desafios que devem ser enfrentados e estudados por profissionais de saúde e de educação. 9 Para mais informações, acesse: http://laiss.ensp.fiocruz.br/alfabetizacao/?s=apresentacao. 308 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Referências AAP - American Academy of Pediatrics. Media and young minds: council on communications and media. Pediatrics, v. 138, n. 5, p. e20162591, 2016a. Disponível em: https://pediatrics.aappublications.org/content/pediatrics/138/5/e20162591.ful l.pdf. Acesso em 25 fev. 2020. AAP - American Academy of Pediatrics. 2016b. Media use in school-aged children and adolescents. 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O cyberbullying é considerado um comportamento agressivo e intencional realizado por meio da internet contra uma pessoa que não consegue facilmente se defender. Os dois fenômenos podem ter consequências negativas para a saúde física e psicológica das vítimas. Neste capítulo, apresentaremos uma discussão conceitual em torno da definição desses dois fenômenos sociais. Para tanto, foi realizada uma busca em bases bibliográficas internacionais e brasileiras com o objetivo de obter uma amostra da produção acadêmica sobre o assunto. Os estudos nacionais e internacionais foram reunidos em três grupos: os que atribuem singularidade ao bullying, os que entendem que os dois fenômenos têm semelhanças e os que conferem ao cyberbullying sua especificidade. Este capítulo revela que os estudos brasileiros apresentam perspectivas analíticas não abordadas pela literatura internacional especializada. Palavras-chave: Internet; Mídias Sociais; Bullying; Cyberbullying; Revisão. Referência: PEREIRA NETO, A.; BARBOSA, L. Bullying e cyberbullying: controvérsia conceitual no Brasil. In: PEREIRA NETO, A.; FLYNN, M. (orgs.). Internet e saúde no Brasil: desafios e tendências. 1 ed. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2020. p. 312-342. * Laboratório Internet, Saúde e Sociedade, Centro de Saúde Escola Germano Sinval de Faria, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Brasil. E-mail: [email protected]. 314 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Introdução A internet oferece infinitas e inéditas possibilidades nas áreas de informação e comunicação. Pesquisar, divertir-se e interagir com outras pessoas são práticas cada vez mais frequentes e podem ser realizadas em qualquer tempo e lugar no ambiente on-line. Essas características são, geralmente, consideradas vantajosas, pois permitem que o indivíduo obtenha e compartilhe conhecimentos e experiências de um modo que seus antepassados teriam dificuldade (FOODY; SAMARA; CARLBRING, 2015). O uso da internet em dispositivos móveis reduziu o custo do acesso e permitiu que a comunicação escrita ou verbal se realize a todo instante graças à sua portabilidade (GRIGG, 2010). Se essa descrição sugere vantagens, outras experiências de uso de tecnologias móveis e da internet parecem ser devastadoras (YBARRA; MITCHELL, 2004). Nesse sentido, Tokunaga (2010) ressalta: “a constelação de benefícios, porém, tem sido ocultada pelos inúmeros relatos das implicações sociais indesejadas da internet” (TOKUNAGA, 2010, p. 277, tradução nossa). O cyberbullying é um exemplo nesse sentido. Esse fenômeno é definido como um comportamento agressivo e intencional realizado por um indivíduo ou um grupo, utilizando um meio eletrônico, contra uma pessoa que não consegue facilmente se defender. Nesses termos, a definição de cyberbullying se aproxima daquela geralmente aceita sobre o bullying (YBARRA et al., 2012; SLONJE; SMITH; FRISÉN, 2013; DREDGE; GLEESON; GARCIA, 2014). Em geral, o bullying é entendido como um comportamento que ocorre quando alguém é repetidamente exposto a uma ação negativa de outra pessoa, graças à existência de uma relação desigual entre as duas (JUVONEN; GROSS, 2008; FOODY; SAMARA; CARLBRING, 2015). O bullying se manifesta por meio de ameaças ou agressões físicas, verbais ou psicológicas (PATCHIN; HINDUJA, 2010). O bullying e o cyberbullying têm consequências negativas na saúde física e psicológica das vítimas. Essas práticas reduzem a autoestima, aumentam os índices de depressão e promovem mudanças significativas na atividade social da vítima, incluindo seu isolamento (ŞAHIN, 2012). A emergência do cyberbullying tem sido atribuída ao rápido desenvolvimento das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTICs) e à extensiva penetração dos dispositivos virtuais na vida do indivíduo contemporâneo: “comunicação on-line não é mais somente um meio diário para trabalhar, mas é principalmente utilizada para comunicar e interagir com pessoas conhecidas e desconhecidas” (BALDRY; FARRINGTON; SORRENTINO, 2015, p. 37, tradução nossa). Internet e Saúde 315 Bullying e cyberbullying. Esses dois termos têm sido cada vez mais utilizados nos últimos tempos1. A identificação de semelhanças e diferenças na definição desses dois fenômenos sociais é um dos grandes desafios dos estudiosos sobre o tema. Algumas análises bibliográficas descreveram esses fenômenos em relação a sua definição, efeitos e estratégias de intervenção (GRIGG, 2010; TOKUNAGA, 2010; SELKIE; FALES; MORENO, 2016; CORCORAN; MC GUCKIN; PRENTICE, 2015; ASAM; SAMARA, 2016; ZYCH; ORTEGA-RUIZ; MARÍN-LÓPEZ, 2016; OLWEUS; LIMBER 2018). O objetivo deste capítulo é apresentar alguns pontos de semelhança e diferença entre a definição de bullying e cyberbullying presentes na literatura internacional contemporânea. Em seguida, verificaremos se os estudos brasileiros qualificam o bullying e cyberbullying da mesma forma que os autores estrangeiros. Trata-se, portanto, de um estudo conceitual de caráter comparativo. Para sua realização, foi efetuada uma busca bibliográfica para identificar alguns autores internacionais e nacionais que se preocupam em estabelecer definições conceituais sobre esses dois fenômenos sociais. 1. Metodologia Para identificar os autores internacionais que debatem sobre bullying e cyberbullying foi realizada em maio de 2017 uma pesquisa na base de dados ScienceDirect, utilizando a seguinte estratégia de busca: (“cyberbullying”) and (“concept” or “definition”). Restringimos a busca das palavras-chave “concept” e “definition” ao campo Abstract (Resumo). A palavra cyberbullying foi aplicada aos campos Title (Título), Abstract (Resumo) e Keyword (Palavra-chave). Desse modo, recuperamos artigos científicos que discutiam especificamente o conceito ou a definição de cyberbullying. Ao aplicar essa estratégia de busca, obtivemos 21 títulos. Também incluímos na revisão bibliográfica sobre o conceito de cyberbullying trabalhos citados como referência nos artigos obtidos no levantamento. Retiramos os títulos que apareceram mais de uma vez, aqueles que não consideramos compatíveis com os interesses deste trabalho e os títulos que não eram artigos científicos. Assim, chegamos a dezenove títulos2. “Vítima de bullying mata colegas a tiros na escola. Combinação de humilhação com acesso a arma de fogo provocou o crime. Filho de uma policial militar, estudante de 14 anos levou a pistola da mãe na mochila, assassinou o principal desafeto e depois decidiu atirar nos outros da sala dele, inspirado nos massacres de Realengo e Columbine”. Manchete na primeira página do Jornal O Globo (27/10/2017). 2 Na revisão bibliográfica realizada foram incluídos artigos dos seguintes autores: Seto (2002); Ybarra e Mitchell (2004); Gillespie (2006); Li (2007); Juvonen e Gross (2008); Grigg (2010); Patchin e Hinduja (2010); Tokunaga (2010); Şahin (2012); Ybarra et al. (2012); Slonje, Smith e Frisén (2013) ; Dredge, Gleeson e Garcia (2014) ; Baldry, Farrington e Sorrentino (2015); Corcoran, McGuckin e Prentice (2015); Foody, Samara e Carlbring (2015); Selkie, Fales e Moreno (2016); Asam e Samara (2016); Zych, Ortega-Ruiz e Marín-López (2016); Olweus e Limber (2018). 1 316 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Dos 19 títulos selecionados para a análise bibliográfica, dois foram publicados em 2010; dois, em 2012; dois em 2013; três, em 2014; seis, em 2015; dois, em 2016; e dois em 2017. Com a estratégia de busca aplicada à base de dados selecionada, não foi encontrado nenhum artigo publicado em 2011 nem antes de 2010. Nessa amostra, foram identificados dez periódicos científicos diferentes: Aggression and Violent Behavior (n=5); Computers in Human Behavior (n=5); Journal of Adolescent Health (n=2); Australian Journal of Guidance & Counselling (n=1); Children and Youth Services Review (n=1); Current Opinion in Psychology (n=1); Internet Intervention (n=1); L’Encéphale (n=1); Psicología Educativa (n=1); Societies (n=1). Eles podem ser agrupados nas seguintes áreas do conhecimento: Multidisciplinar (n=3), Psicologia (n=3), Interdisciplinar (n=2), Psiquiatria (n=1) e Sociologia (n=1). Entre os artigos selecionados, foram identificados 56 autores, sendo que uma pesquisadora consta na relação de autoria de dois artigos. No momento da publicação dos artigos, esse grupo de autores estava associado a um conjunto de 32 instituições distintas, localizadas principalmente nos Estados Unidos e na Europa Ocidental3. Além dos artigos obtidos no levantamento, incluímos na revisão os textos de Ybarra e Mitchell (2004), Juvonen e Gross (2008), Patchin e Hinduja (2010), Seto (2002) e Gillespie (2006) e Li (2007). Estes textos foram citados em algumas das publicações selecionadas. Eles foram incluídos em nossa análise devido à sua importância para a discussão dos resultados em diferentes estudos. Em relação aos autores brasileiros, foi adotado um procedimento metodológico semelhante. Foi realizado um levantamento em duas bibliotecas virtuais brasileiras, com acesso aberto e gratuito. Assim, foram coletados artigos científicos, publicados em revistas brasileiras submetidas à avaliação de pares, que apresentassem o cyberbullying como tema de investigação. A primeira foi a Biblioteca Virtual em Saúde (BVS)4: um “espaço virtual de convergência na internet do trabalho cooperativo em informação científica e técnica em saúde” (PACKER, 2005, p. 250). Trata-se de uma iniciativa promovida e coordenada pelo Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (BIREME), da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Ela conta com uma área dedicada aos 3 As instituições identificadas foram: Australian Catholic University (Austrália); Center for Innovative Public Health Research (Estados Unidos); Centers for Disease Control and Prevention (Estados Unidos); Clemson University (Estados Unidos); Dublin Business School (Irlanda); Emory University (Estados Unidos); Florida Atlantic University (Estados Unidos); Freie Universität Berlin (Alemanha); Goldsmiths University of London (Reino Unido); Gothenburg University (Suécia); Karadeniz Technical University (Turquia); Kingston University (Reino Unido); KU Leuven (Bélgica); Mykolas Romeris University (Lituânia); New York University (Nova York); Northeastern Illinois University (Estados Unidos); Seattle Children’s Research Institute (Estados Unidos); Second University of Naples (Itália); Stockholm University (Suécia); Trinity College Dublin (Irlanda); Universidad de Córdoba (Espanha); Université Paris Ouest (França); Universiteit Antwerpen (Bélgica); University of Arizona (Estados Unidos); University of Cambridge (Reino Unido); University of Gothenburg (Suécia); University of Naples Federico II (Itália); University of North Texas (Estados Unidos); University of Tartu (Estônia); University of Washington (Estados Unidos); University of Wisconsin (Estados Unidos); e Washington State University (Estados Unidos). 4 Disponível em: http://bvsalud.org/. Internet e Saúde 317 países de língua portuguesa5. Além da Espanha, vários países hispânicos da América Latina integram este portal6. Um dos principais propósitos da BVS é promover a produção, difusão e operação de fontes de informação em formatos multimídia, contribuindo para o acesso aberto à informação científica. Ela pode ser acessada em inglês, espanhol e português. Ela disponibiliza coleções de fontes de informação, que incluem, além das bases de dados produzidas pela própria BVS, bases de dados científicos como Medline e outros tipos de informação (BIREME, 2008; BVS, 2017). A segunda biblioteca consultada para a realização do levantamento de autores brasileiros foi o Portal de Periódicos7 vinculado à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), órgão do Ministério da Educação. Esse portal tem como principal objetivo democratizar, facilitar e fortalecer o acesso aberto à informação científica produzida a nível internacional e nacional. Essa ferramenta disponibiliza remota e gratuitamente a estudantes e pesquisadores de instituições brasileiras mais de 38 mil periódicos com textos completos, bases de dados de referências e resumos, teses, dissertações, obras de referências, patentes e diversos outros tipos de documentos eletrônicos (CAPES, 2017). A BVS e o Portal de Periódicos da CAPES foram os espaços escolhidos para realizar o levantamento devido ao amplo e diversificado acervo científico de informação brasileira disponibilizado de modo aberto que possuem. Tais bases bibliográficas viabilizaram a coleta gratuita de artigos científicos produzidos por pesquisadores brasileiros de instituições e áreas do conhecimento diferentes sobre bullying e cyberbullying. Para realizar o levantamento bibliográfico mencionado, foi elaborada a seguinte estratégia de busca: (“cyberbullying” or “ciberbullying” or “bullying” or “assédio” or “intimidação” or “agressão”) and (“internet” or “virtual” or “www” or “on-line” or “online” or “on line” or “rede social” or “mídia social”)8. Na BVS, a estratégia de busca foi aplicada nos campos Título, Resumo e Assunto das publicações. Foram obtidos, em um primeiro momento, mais de cinco mil títulos. Para coletar os resultados mais relevantes para o estudo, utilizamos dois filtros disponibilizados na ferramenta da biblioteca: “Bases de dados nacionais: Brasil” e “Artigos”. Assim, os resultados incluíram apenas artigos científicos publicados em periódicos brasileiros e submetidos a avaliação entre pares. Após a aplicação desses filtros, foram obtidos setenta e um títulos. 5 Além do Brasil, os países de língua portuguesa que integram esse portal são: Angola, Cabo Verde, GuinéBissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. 6 Os países latino-americanos que integram este portal são: Argentina, Belize, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Equador, Guatemala, Guiana, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Porto Rico, República Dominicana, Trindade e Tobago, Uruguai e Venezuela. 7 Disponível em: https://www.periodicos.capes.gov.br/ 8 A escolha de considerar duas grafias para o termo cyberbullying deve-se à ocorrência na literatura científica brasileira da troca da letra y pela letra i na grafia do termo cyber. Também foram incluídos sinônimos para o termo cyberbullying, pois considerou-se ser possível que autores brasileiros, embora abordassem essa temática em seus artigos, não utilizassem especificamente o termo importado da língua inglesa para referir-se a práticas e comportamentos agressivos, hostis e assediadores e práticas de assédios realizados por indivíduos ou grupos, por meio da internet, visando causar dano ou prejuízo a terceiros (TOKUNAGA, 2010). 318 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) No Portal de Periódicos da CAPES, foi empregado o mesmo procedimento de estratégia de busca, sendo encontrados apenas três títulos. Esse quantitativo nos pareceu insignificante. Por essa razão, utilizamos apenas as palavras cyberbullying e ciberbullying, restringindo ao campo Assunto. Assim foram obtidos mais de 10 mil resultados. Para selecionar os resultados mais relevantes foram utilizados os filtros “Artigos” e “Idioma: português”. Com a aplicação desses dois filtros foram obtidos dezenove títulos. Os noventa títulos obtidos nas duas plataformas foram exportados e inseridos no Mendeley: uma ferramenta gratuita que permite o gerenciamento de referências bibliográficas. Com ela, foram eliminados todos os resultados duplicados. Assim, identificamos oitenta títulos. Em seguida, analisamos os campos Autoria, Título, Resumo e Palavra-chave de cada publicação coletada, a fim de verificar sua pertinência para o estudo. Nesse processo de leitura, foram incluídas apenas as publicações em formato de artigo científico, avaliado por pares, que tivessem o cyberbullying como principal tema e cujo autor fosse um profissional vinculado a uma instituição de ensino e pesquisa brasileira. Desse modo, a produção acadêmica final selecionada para análise foi composta por doze (12) artigos científicos9. Eentre os títulos brasileiros selecionados, um foi publicado em 2010; cinco, em 2012; um, em 2013; quatro, em 2014; e um, em 2015. Na amostra selecionada, não foi encontrado nenhum artigo anterior a 2010, em 2011 ou posterior a 2015. Nessa amostra de artigos, foram identificados onze periódicos brasileiros diferentes: Boletim da Academia Paulista de Psicologia (n=1); Ciberlegenda (n=1); Movimento (n=1); Nuances: estudos sobre Educação (n=1); Nucleus (n=1); Perspectivas online: humanas e sociais aplicadas (n=1); Psicologia Clínica (n=1); Revista Tecer (n=1); Scientific Eletronic Archives (n=1); Temas em Psicologia (n=2) e Texto Livre - linguagem e tecnologia (n=1). Tais periódicos podem ser agrupados em seis áreas do conhecimento: Psicologia (n=3); Multidisciplinar (n=3); Interdisciplinar (n=2); Comunicação (n=1); Educação (n=1); Educação Física (n=1). Nove periódicos estão vinculados a instituições de ensino superior, onde existem cursos de pós-graduação10. Oito deles estão localizados em estados da federação das regiões Sul e Sudeste, onde se concentra a população com maior poder aquisitivo do país. Os outros dois periódicos são de responsabilidade de duas sociedades científicas de psicologia: a Sociedade Brasileira de Psicologia e a Academia Paulista de Psicologia. Nos artigos selecionados, foram identificados vinte e quatro autores diferentes, dos quais dois 9 Na revisão bibliográfica realizada sobre os estudos brasileiros, foram incluídos artigos dos seguintes autores: Aranha (2014); Azevedo et al. (2012); Barbosa (2014); Berto (2012); Dias, Santos e Ernesto (2012); Gonçales, Pimentel e Pereira (2014); Matte (2012); Schreiber e Antunes (2015); Stelko-Pereira e Williams (2010); Tognetta e Bozza (2012); Wendt e Lisboa (2013; 2014). 10 As instituições brasileiras de ensino superior identificadas são: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ); Fundação Educacional de Ituverava; Institutos Superiores de Ensino do CENSA; Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT); Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix; Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Universidade Federal Fluminense (UFF); Universidade Estadual Paulista (UNESP); Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS). Internet e Saúde 319 pesquisadores assinaram duas publicações juntos – uma de 2013 e outra de 201411. No momento da realização da pesquisa que se transformou neste capítulo, esse conjunto de autores estava associado a quatorze instituições de ensino e pesquisa diferentes, todas elas universidades, sendo três estrangeiras. Este capítulo está dividido em três partes. A primeira reunirá os autores que identificam características do bullying. A segunda apresentará aqueles que admitem que o cyberbullying não passe de um prolongamento do bullying, ou seja, o cyberbullying não guardaria sua especificidade enquanto fenômeno social. Na terceira parte, apresentaremos os autores que conferem ao cyberbullying sua singularidade. Ao longo dessa reflexão conceitual, estaremos preocupados em perceber como a visão apresentada pelos autores brasileiros analisados se aproxima ou não daquela presente no ideário dos pensadores da amostra internacional. 2. Bullying: um fenômeno social singular? Patchin e Hinduja (2010) publicaram um artigo no periódico Journal of School Health em que apresentam três características que confeririam ao bullying o caráter de um fenômeno social singular. A primeira está associada ao fato de não existir uma mediação entre o agressor e sua vítima. Ele se caracterizaria pelo contato face a face entre o agressor e sua vítima. Além disso, no bullying, o comportamento agressivo teria fronteiras geográficas e temporais explícitas e delimitadas. Por isso, essa prática estaria, na maioria das vezes, confinada à escola, um dos principais espaços onde ocorrem as interações humanas. Finalmente, o bullying seria encerrado quando a vítima chega em casa, pois o contato direto foi, temporariamente, suspenso (PATCHIN; HINDUJA, 2010). Entre os autores brasileiros analisados, Dias, Santos e Ernesto (2012), Wendt e Lisboa (2014) e Schreiber e Antunes (2015) têm uma visão semelhante a de Patchin e Hinduja (2010), pois entendem que o bullying seria uma prática exercida por meio do contato face a face. Esse aspecto lhe conferiria singularidade. Segundo esse grupo de autores, as agressões físicas e verbais, acusações e ameaças ocorreriam quando o agressor encontra fisicamente sua vítima. Azevedo et al. (2012) destacam que a escola é o espaço físico onde o bullying ocorre. Sua perspectiva acompanha a concepção presente na literatura internacional. Selkie, Fales e Moreno (2016), por exemplo, apontam que o bullying tradicional tenderia a aumentar durante os anos escolares correspondentes ao ensino fundamental e ao ensino médio. Juvonen e Gross (2008) apresentam dados que reforçam essa visão. Para eles, 11 Foram identificados na amostra dois artigos do autor Guilherme Welter Wendt. Na publicação de 2013, ele indica a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul como seu vínculo institucional, enquanto na publicação de 2014, é listada a University of London. 320 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) “aproximadamente 70% dos jovens reportaram ter vivenciado bullying em algum momento de sua carreira escolar” (JUVONEN; GROSS, 2008, p. 497, tradução nossa). Para Azevedo et al. (2012), o bullying seria uma violência típica e antiga do espaço escolar, onde “[...] os ‘valentões’ oprimem e ameaçam suas vítimas por motivos banais, querendo impor sua autoridade” (AZEVEDO et al., 2012, p. 245). Matte (2012), Barbosa (2014), Wendt e Lisboa (2014) e Schreiber e Antunes (2015) concordam com esse ponto de vista. Para Matte (2012), a presença do bullying é maior no ambiente fechado das escolas devido ao processo de construção identitária e à necessidade de os jovens serem reconhecidos pelo círculo social, geralmente restrito. Segundo a Matte (2012): O bullying apareceu como um comportamento juvenil nas escolas, numa idade em que a identidade social está em formação e, portanto, quando os sujeitos estão mais vulneráveis a provocações que explorem suas ‘falhas’ no sentido de sua socialização. (MATTE, 2012, p. 3). Cabe destacar que Schreiber e Antunes (2015) admitem que o bullying possa ser também ser realizado no local de trabalho ou no âmbito familiar. Nos artigos brasileiros analisados, foi possível observar dois aspectos importantes que caracterizariam o bullying. O primeiro refere-se ao fato de que as categorias de agressor e vítima do bullying não serem, obrigatoriamente, antagônicas. Em seu artigo, Wendt e Lisboa (2014) afirmam que “[...] quando um adolescente exerce tanto um papel de agressor como de vítima, pode ser delineado um perfil que o caracteriza como vítima-agressor” (WENDT; LISBOA, 2014, p. 43). Barbosa (2014) complementa essa ideia afirmando que “não há uma dicotomia necessária entre ser autor e ser vítima de bullying, pois, os alunos podem desempenhar os dois papeis, de acordo com as circunstâncias” (BARBOSA, 2014, p. 50). O segundo aspecto encontrado na literatura brasileira consultada que complementa a definição de bullying identificada na literatura internacional refere-se à experiência de lazer que o bullying pode proporcionar aos seus praticantes e espectadores. Barbosa (2014), em sua pesquisa com adolescentes estudantes de escolas públicas de um pequeno município na região rural brasileira, identificou que o bullying era visto pelos jovens como uma forma de “zoação”: uma gíria que significa zombar jocosamente de alguém. Essa “zoação” é interpretada pelos agressores como uma experiência lúdica – uma situação de divertimento. Para Gonçales, Pimentel e Pereira (2014), “o bullying é um comportamento cruel, presente nas relações interpessoais, em que a pessoa mais forte converte os mais frágeis em objetos de diversão e prazer” (GONÇALES; PIMENTEL; PEREIRA, 2014, p. 965). Em seu artigo, Wendt e Lisboa (2014) também mencionaram a dimensão do lazer que tal prática pode possuir. Esses autores ressaltam que, mesmo aqueles que não cometem o bullying, podem encará-lo como uma forma de entretenimento, uma vez que se divertem ao acompanhar as situações de agressão vivenciadas por uma terceira pessoa. Internet e Saúde 321 Analisaremos, a seguir, alguns autores que consideram que bullying e cyberbullying são comportamentos sociais semelhantes. 3. Bullying e cyberbullying: fenômenos semelhantes? Alguns trabalhos identificados em nossa amostra internacional admitem que bullying e cyberbullying sejam fenômenos sociais semelhantes, uma vez que em ambos existiria a intenção de um indivíduo ou um grupo prejudicar outra pessoa por meio de uma ação negativa. Ybarra et al. (2012), da Johns Hopkins Bloomberg School of Public Health, nos Estados Unidos, aponta que há autores que consideram o cyberbullying enquanto um tipo de bullying, equivalente àquele que ocorre no espaço físico. Para Dredge, Gleeson e Garcia (2014), A literatura sobre cyberbullying consistentemente aplicou a definição de bullying ‘tradicional’ no domínio da mídia eletrônica. Logo, as definições mais comuns de cyberbullying são baseadas nos três componentes básicos das definições tradicionais de bullying, a saber: repetição, intenção deliberada e desequilíbrio de poder […]. (DREDGE; GLEESON; GARCIA, 2014, p. 13, tradução nossa). Como admite Tokunaga (2010): Em muitos sentidos, o bullying tradicional e o cyberbullying compartilham justaposições em suas motivações centrais. Indivíduos que praticam cyberbullying contra outros desejam infligir dano em seus alvos e realizar uma série de comportamentos calculados para causar aflição neles. (TOKUNAGA, 2010, p, 278, tradução nossa). Nesse sentido, para os autores internacionais mencionados acima, os conceitos bullying e cyberbullying teriam as mesmas motivações, como causar um dano intencional - percebido como uma agressão; estar baseado no desequilíbrio de poder, onde o agressor ocupa uma posição superior ao agredido e promover humilhação sistemática e intencional. Como sinaliza Corcoran, Mc Guckin e Prentice (2015), o bullying e o cyberbullying se manifestam quando alguém está submetido, de forma contínua, a ações negativas ou agressivas por uma terceira pessoa ou grupo de pessoas: Consistente com os critérios que definem o bullying tradicional, […] o cyberbullying foi caracterizado pela intenção de causar dano e a percepção do comportamento como pernicioso (pela vítima), repetição de 322 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) comportamentos negativos on-line e off-line, e um desequilíbrio de poder [...]. (CORCORAN; MC GUCKIN; PRENTICE, 2015, p. 251, tradução nossa,). Uma perspectiva semelhante pode ser encontrada no artigo de Slonje, Smith e Frisén (2013). Os autores afirmam que Bullying é geralmente visto como o comportamento intencional de causar dano ao outro, repetidamente, em que é difícil para a vítima se defender [...]; é baseado em um desequilíbrio de poder; e pode ser definido com um abuso sistemático de poder [...]. Ao estender a definição do bullying tradicional, cyberbullying tem sido definido como um ‘ato ou comportamento agressivo que é realizado a partir de meios eletrônicos por um grupo ou indivíduo, repetidamente e ao longo do tempo, contra uma vítima que não pode facilmente se defender’ [...]. (SLONJE; SMITH; FRISÉN, 2013, p. 26, tradução nossa). Desse modo, para os autores internacionais mencionados acima, os dois fenômenos sociais seriam atos conscientes, intencionais, permanentes e sistemáticos de humilhação. Alguns autores brasileiros acompanharam esta visão presente na literatura internacional consultada. Schreiber e Antunes (2015) ressaltam que tanto o bullying quanto cyberbullying “[...] visam à exclusão e humilhação da vítima, de modo que os dois fenômenos apresentam características semelhantes [...]” (SCHREIBER; ANTUNES, 2015, p. 116). Tognetta e Bozza (2012) ressaltam que o bullying e o cyberbullying são práticas que possuem em comum “a violência intencional contra outro” (TOGNETTA; BOZZA, 2012, p. 163). Para Dias, Santos e Ernesto (2012), bullying e cyberbullying englobam “[...] atitudes e procedimentos cheios de agressividade constantes e conscientemente intencionais, realizados individualmente ou em grupo, tendo como consequência dor, sofrimento e angústia” (DIAS; SANTOS; ERNESTO, 2012, p. 40). A repetição seria, portanto, outra característica comum ao bullying e ao cyberbullying (TOGNETTA; BOZZA, 2012). Nos artigos de Gonçales, Pimentel e Pereira (2014) e Wendt e Lisboa (2014), o bullying e o cyberbullying se assemelham por humilhar sua(s) vítima(s) de modo sistemático. Conforme afirmam Gonçales, Pimentel e Pereira (2014), tal prática se constitui como uma “ação continuada, sistemática de agressão [...] na qual o sujeito que sofre essa agressão tem cada vez mais dificuldade em se defender” (GONÇALES; PIMENTEL; PEREIRA, 2014, p. 966). Para Wendt e Lisboa (2014), além de serem repetidos, os processos de bullying e cyberbullying acontecem quando se busca intimidar, molestar, ou agredir um indivíduo ou grupo: isto é, os atos de violência não são aleatórios, mas regulares e ordenados, a fim de constantemente humilhar a vítima. Wendt e Lisboa (2014) reforçam essa ideia ao afirmar que bullying e cyberbullying não são brincadeiras aleatórias. Para Tognetta e Bozza (2012), “bullying e cyberbullying concordam em uma Internet e Saúde 323 característica que é a violência intencional contra outro. [...] Meninos e meninas de idades semelhantes em ambos os casos intimidam, humilham, ofendem, ameaçam e desrespeitam seus pares” (TOGNETTA; BOZZA, 2012, p. 163). Além da agressão continuada, o indivíduo ou grupo que comete bullying ou cyberbullying tem intenção de fazê-lo (GONÇALES; PIMENTEL; PEREIRA, 2014). Tratam-se, portanto, de processos “conscientemente intencionais” (DIAS; SANTOS; ERNESTO, 2012, p. 40). Eles não acontecem por acaso; ao contrário, há um propósito nas ações de seus praticantes: humilhar e subjugar suas vítimas. Um outro aspecto em comum sinalizado por parte da literatura internacional consultada está relacionado ao fato dos dois comportamentos estarem estruturados com base em uma relação desigual de poder existente entre a vítima e seu ofensor, denominada de “desequilíbrio de poder” por Dredge, Gleeson e Garcia (2014), Corcoran, Mc Guckin e Prentice (2015) e Asam e Samara (2016). Corcoran, Mc Guckin e Prentice (2015) apontam que há um consenso na literatura sobre o “desequilíbrio de poder” ser um dos critérios que definem o bullying tradicional. Segundo os autores, em uma pesquisa feita com jovens estudantes da Itália, Alemanha, Espanha, Suécia, Estônia e França, também foi reconhecido como um dos critérios definidores da prática de cyberbullying a “intenção, efeito na vítima (como parte de um desequilíbrio de poder)” (CORCORAN; MC GUCKIN; PRENTICE, 2015, p. 5, tradução nossa) . Asam e Samara (2016) entendem que o bullying é “uma forma de abuso que é baseada em um desequilíbrio de poder” (ASAM; SAMARA, 2016, p. 128, tradução nossa). Os mesmos autores atentam que o aspecto do desequilíbrio do poder também é encontrado nas definições de cyberbullying. Para eles, o cyberbullying é “um comportamento intencional agressivo e repetido que visa assediar, intimidar e ameaçar a vítima por meios eletrônicos, caracterizado pelo desequilíbrio de poder” (ASAM; SAMARA, 2016, p. 128, tradução nossa). Na opinião de alguns autores brasileiros, a relação desigual de poder existente entre a vítima e seu ofensor seria também uma característica que aproximaria o bullying do cyberbullying. Dias, Santos e Ernesto (2012) ressaltam que “quem é mais forte tiraniza, ameaça, oprime, amedronta e intimida os mais fracos” (DIAS; SANTOS; ERNESTO, 2012, p. 40). Stelko-Pereira e Williams (2010) indicam que tal desequilíbrio pode estar relacionado a diversos fatores, tais como a “popularidade, força física ou estatura física, competência social, extroversão, inteligência, idade, sexo, etnia e status socioeconômico” do agressor (STELKO-PEREIRA; WILLIAMS, 2010, p. 51-52). As autoras também apontam que, no caso do cyberbullying, a desigualdade na relação de poder entre o agressor e sua vítima pode estar pautada na habilidade que cada parte envolvida tem para utilizar as tecnologias digitais visando assediar, intimidar e humilhar outros. Segundo StelkoPereira e Williams (2010), No cyberbullying, supõe-se, ainda, que a diferença de poder entre agressor e vítima, seja esta suposta ou real, se configure por diferença na habilidade 324 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) de utilização da tecnologia eletrônica para intimidar outros e não necessariamente em características físicas, popularidade e outras mais relacionadas ao bullying tradicional [...]. (STELKO-PEREIRA; WILLIAMS, 2010, p. 52). Essa perspectiva discutida por Stelko-Pereira e Williams (2010) em seu artigo publicado no periódico brasileiro Temas em Psicologia é consonante àquela apresentada por Slonje, Smith e Frisén (2013) no Scandinavian Journal of Psychology. Esses autores estrangeiros entendem que “força física não é necessária para a perpetração do cyberbullying, nem a força dos números. Porém, outras duas possibilidades de desequilíbrio de poder no cyberbullying são a habilidade técnica com TICs e anonimato” (SLONJE; SMITH; FRISÉN, 2013, p. 27, tradução nossa). Para Wendt e Lisboa (2014), em artigo publicado no periódico brasileiro Temas em Psicologia, essa disparidade de poder faz com que a vítima seja submetida a uma situação na qual possui pouca ou nenhuma possibilidade de se defender. Dias, Santos e Ernesto (2012), no periódico brasileiro Perspectivas on line, afirmam que a vítima se sente intimidada e, portanto, incapaz de reagir às agressões, ameaças e insultos. Matte (2012) aponta que essa incapacidade de defesa se torna uma espécie de vitória para o agressor: “[...] ele vence porque convence a vítima de que deveria defender-se, e vence também porque, nos casos bem-sucedidos, a vítima é incapaz de defender-se” (MATTE, 2012, p. 3). Para a autora, tal incapacidade se verifica tanto nos casos que ocorrem face a face quanto naqueles que são mediados pelas tecnologias digitais. Outro aspecto que aproximaria o bullying do cyberbullying está relacionado ao fato das duas agressões poderem afetar o âmbito físico, psicológico e/ou sexual. Os autores internacionais que apresentaram essa perspectiva foram Tokunaga (2010), Baldry, Farrington e Sorrentino (2015), Şahin (2012) e Selkie, Fales e Moreno (2016). Para Tokunaga (2010) o bullying e cyberbullying podem ter consequências negativas12 para as vítimas: “a vitimização por cyberbullying está associada a uma série de problemas negativos similares àqueles das vítimas de bullying tradicional” (TOKUNAGA, 2010, p. 277, tradução nossa). Baldry, Farrington e Sorrentino (2015) apresentam uma perspectiva semelhante ao afirmar que “o lado escuro do uso da Internet e tecnologia relacionada por crianças é o risco de sofrer bullying on-line ou praticar bullying contra outros, chamado cyberbullying, levando a consequências negativas a curto e longo prazos e, em última instância, até mesmo suicídio ou tentativa de suicídio [...]” (BALDRY; FARRINGTON; SORRENTINO, 2015, p. 37, tradução nossa). Em sua pesquisa com estudantes do ensino médio, Şahin (2012) identificou uma relação entre solidão e vítimas de cyberbullying. O autor afirma que: 12 A questão dos riscos e a saúde de crianças e adolescentes na Internet é discutida no capítulo 10. Internet e Saúde 325 Cyber vítimas não são agressivas nem provocam comportamentos agressivos. Isso significa que o alto nível de solidão das cyber vítimas pode ser atribuído a experiências ruins que elas tiveram com seus pares. (ŞAHIN, 2012, p. 836, tradução nossa). A partir de uma revisão sistemática sobre a prevalência de cyberbullying entre estudantes do ensino médio e fundamental, Selkie, Fales e Moreno (2016) destacam que “a extensão da prevalência de CB [cyberbullying] encontrada nesta revisão sugere que CB pode ser uma ocorrência comum entre a juventude da atualidade e pode levar a consequências negativas fora dos casos mais graves” (SELKIE; FALES; MORENO, 2016, p. 131, tradução nossa). Essa visão foi também observada em alguns estudos nacionais. Para Azevedo et al. (2012), Berto (2012), Wendt e Lisboa, (2014) e Barbosa (2014), os atos de violência produzem sofrimento para as vítimas, interferem em seu desenvolvimento e convívio social e promovem baixa autoestima, pânico social, depressão, agressividade, distúrbios alimentares, abuso de drogas e ideação de suicídio (BERTO, 2012; SCHREIBER; ANTUNES, 2015). Além disso, as vítimas também podem ter seu desenvolvimento acadêmico comprometido (BARBOSA, 2014). Matte (2012) destaca que a principal característica do bullying, realizado tanto no espaço físico quanto no ambiente virtual, não é a intimidação, mas a humilhação resultante desta prática. Segundo a autora, “o bullying pode jogar com intimidação, mas o ingrediente principal da agressão é a humilhação decorrente; portanto, o que está em jogo é a provocação: revide se puder” (MATTE, 2012, p. 7). Matte (2012), que trabalha sob a matriz teórico-metodológica da semiótica, ressalta que: No plano narrativo, o bullying envolve dois tipos de disputas: a disputa entre destinador e destinatário, na qual o destinador usa manipulação por provocação para que o destinador aceite o quadro de valores segundo o qual a violência é uma forma legítima de competição, e a disputa entre sujeito e antissujeito, em que o objeto seria essa integração social [...]. (MATTE, 2012, p. 3). A autora esclarece que, na semiótica, a provocação caracteriza-se enquanto “[...] uma relação entre sujeitos na qual um sujeito destinador procura induzir o destinatário a uma ação a partir de uma valorização negativa do ser desse sujeito” (MATTE, 2012, p. 45). Nesse sentido, a autora acrescenta uma importante dimensão à definição de bullying. Na perspectiva semiótica, o bullying e o cyberbullying levariam o agressor a provocar a vítima, de modo que ela aceitasse seu quadro de valores como uma forma de se integrar socialmente. Matte (2012) afirma que, nessa disputa, o agressor seria “duplamente vencedor” (MATTE, 2012, p, 3). A primeira vitória estaria relacionada à aceitação da provocação por parte da vítima, que seria convencida a defender-se a partir da valoração 326 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) negativa que o agressor fez dela. A segunda vitória, por sua vez, estaria relacionada às situações em que o agressor é bem-sucedido e a vítima sente-se incapaz de se defender, aceitando o quadro de valores imposto pelo agressor. Alguns autores internacionais consideram que o cyberbullying é, em última instância, um tipo de bullying. Para Olweus e Limber (2018), há uma relação entre o bullying tradicional e aquele que ocorre no meio digital, de modo que “para colocar o cyberbullying em uma perspectiva adequada, é, em nossa visão, necessário estudá-lo no contexto mais geral do bullying (tradicional)” (OLWEUS; LIMBER, 2018, p. 140, tradução nossa). Para Juvonen e Gross (2008), o cyberbullying poderia ser entendido como um bullying “que estende os terrenos escolares” (JUVONEN; GROSS, 2008, p. 496, tradução nossa). Esses professores da Universidade da Califórnia, Los Angeles, afirmam que “[…] o ciberespaço pode não funcionar como um ambiente arriscado separado, mas como uma extensão dos terrenos escolares” (JUVONEN; GROSS, 2008, p. 497, tradução nossa). Na análise dos artigos brasileiros, foram identificados autores que concordam com essa visão. Wendt e Lisboa (2013) afirmam que o cyberbullying é “um subtipo de bullying com características específicas” (WENDT; LISBOA, 2013, p. 83, grifo nosso). A “característica específica”, para estes autores, seria a mediação tecnológica. Nesse sentido, Wendt e Lisboa (2014) afirmam que “[...] o processo de cyberbullying pode ser compreendido como um tipo específico de bullying que ocorre através de instrumentos tecnológicos [...]” (WENDT; LISBOA, 2014, p. 42). Essa ideia de que o cyberbullying seria um “bullying digitalizado” foi compartilhada por Azevedo et al. (2012, p. 247). Para Barbosa (2014), o cyberbullying seria a “forma mais atual” da ocorrência de bullying entre jovens escolares (BARBOSA, 2014, p. 48). Para Berto (2012), o cyberbullying seria “[...] uma ação de bullying ocorrida em ambiente virtual” (BERTO, 2012, p. 30): isto é, uma forma de bullying que acontece a partir dos recursos disponibilizados pelas TICs, que pode incluir insultos, abusos e ataques verbais e psicológicos. No entanto, o cyberbullying, ao recorrer às tecnologias digitais, torna-se uma forma de violência que transpõe as barreiras físicas da escola, podendo ser visto como “um tipo de bullying virtual” (TOGNETTA; BOZZA, 2012, p. 165). A noção de extensão entre bullying e cyberbullying esteve também presente nos artigos de alguns autores brasileiros. Stelko-Pereira e Williams (2010) afirmam que “[...] o cyberbullying é uma extensão do bullying [...], que busca causar dano a outro de modo repetitivo, com o uso de tecnologias eletrônicas” (STELKO-PEREIRA; WILLIAMS, 2010, p. 52, grifo nosso). Gonçales, Pimentel e Pereira (2014) analisaram três comunidades brasileiras da rede social digital Orkut. Eles concluíram que as ações humilhantes, como colocação de apelidos pejorativos, exposição de fatos íntimos e manipulação de fotografias com efeitos negativos, iniciam-se na sala de aula e se transferem para os ambientes virtuais em que os jovens frequentam. Uma das comunidades virtuais investigadas pelos autores “[...] se destina mais explicitamente a zombar da menina considerada ‘a mais feia Internet e Saúde 327 da escola’” (GONÇALES; PIMENTEL; PEREIRA, 2014, p. 978), e nela são postadas enquetes com o objetivo de ridicularizar e humilhar uma estudante considerada pelos membros como excessivamente aquém dos padrões de beleza. Os autores descrevem um exemplo da prática de cyberbullying cometida no ambiente virtual: “na questão ‘Porque vcs acham ela a mais feia da escola??’, as respostas se dirigem à dimensão congênita: ‘Pq ela eh feia de nascencia’; ‘Pq ela ja nasceu feia’ ou ‘ela sempre foi feia’” (GONÇALES; PIMENTEL; PEREIRA, 2014, p. 978). Analisaremos a seguir a visão de autores que consideram que cyberbullying é um comportamento social singular, diferente do bullying. 4. Cyberbullying: um fenômeno social singular? Para alguns autores, encontrados na literatura internacional e nacional consultada, a humilhação mediada pelas Novas Tecnologias de Informação e Comunicação confere a singularidade ao cyberbullying. No bullying, a agressão é direta. No cyberbullying, ela é conduzida por meio das NTICs. Logo, no cyberbullying, o assédio não é presencial, ou seja, não pressupõe o contato direto, face a face. Essa é visão de alguns autores internacionais consultados, como Slonje, Smith e Frisén (2013), Zych, Ortega-Ruiz e Marín-López (2016), Selkie, Fales e Moreno (2016), Tokunaga (2010) e Corcoran, Mc Guckin e Prentice (2015). Slonje, Smith e Frisén (2013) destacam que a mediação tecnológica caracteriza esse fenômeno, afirmando: “cyberbullying é um abuso sistemático de poder que ocorre por meio do uso de tecnologias de informação e comunicação (TICs)” (SLONJE; SMITH; FRISÉN, 2013, p. 26, tradução nossa). A partir de uma revisão sistemática sobre estudos espanhóis voltados para cyberbullying, Zych, Ortega-Ruiz e Marín-López (2016) também identificaram o uso de NTICs enquanto um aspecto importante para definir a prática cyberbullying, declarando que: “em geral, a vasta maioria das definições afirmou que o cyberbullying é perpetrado por meio de dispositivos eletrônicos [...]” (ZYCH; ORTEGARUIZ; MARÍN-LÓPEZ, 2016, p. 12, tradução nossa). No cyberbullying não existiriam limites, fronteiras nem constrangimentos para a ação do agressor. A vítima poderia ser alcançada, por meio do celular, e-mail e mensagens instantâneas, a qualquer hora e lugar, incluindo sua própria residência. Selkie, Fales e Moreno (2016) afirmam que o cyberbullying “[...] se diferencia das formas ‘tradicionais’ de bullying […] devido às características distintas do meio eletrônico. Isso inclui [...] restrições mínimas no tempo e espaço em que o bullying pode ocorrer” (SELKIE; FALES; MORENO, 2016, p. 125, tradução nossa). Tokunaga (2010) destaca que o “cyberbullying pode ocorrer por meio da comunicação eletronicamente mediada na escola; porém, comportamentos de cyberbullying geralmente ocorrem também fora da escola” 328 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) (TOKUNAGA, 2010, p. 278, tradução nossa). Nessa perspectiva, devido à mediação das tecnologias digitais, o dano à vítima não pressupõe interação física, como ocorre com o bullying. Segundo Tokunaga (2010): O cyberbullying diferencia-se do bullying tradicional principalmente pelo alcance dos ofensores. Cyberbullies são capazes de estender seu bullying para além do terreno escolar e seguir seus alvos em suas casas. (TOKUNAGA, 2010, p. 278, tradução nossa). Alguns autores nacionais aproximam-se dos internacionais mencionados acima. Eles também destacam o papel desempenhado pelas Novas Tecnologias de Informação e Comunicação na definição do cyberbullying. Wendt e Lisboa (2013) entendem que o conteúdo depreciativo pode ser enviado às vítimas por meio de “[...] e-mails, mensagens de texto, divulgação de fotos e vídeos ofensivos, manipulação de imagens, insultos em salas de bate-papo ou em redes sociais [...]” (WENDT; LISBOA, 2013, p. 78). Azevedo et al. (2012) ratificam esse ponto de vista, afirmando que: Por meio da internet, agressores podem enviar mensagens abusivas, obscenas ou difamadoras via e-mail, em sites de relacionamento (como Orkut, Facebook, Twitter) ou utilizando-se de programas de mensagens instantâneas (como MSN e Google Talk). (AZEVEDO et al. 2012, p. 247). Assim, segundo essa definição, no cyberbullying a vítima seria alcançada independente do horário e do lugar em que estivesse. Stelko-Pereira e Williams (2010) ressaltam que a agressão transpõe a relação tempo-espaço, alcançando a vítima por meio de mensagens, fotos e e-mails enviados em qualquer momento do dia e qualquer lugar onde quer que estejam. Azevedo et al. (2012) ressaltam que o fenômeno do bullying geralmente ocorre durante o período que crianças e adolescentes estão na escola. O cyberbullying, por outro lado, ultrapassa esse aspecto físico presencial, permitindo que a vítima seja alcançada mesmo quando não está mais no ambiente escolar ou em suas proximidades. Wendt e Lisboa (2013; 2014) reiteram que o cyberbullying não possui um espaço circunscrito para ocorrer, tornando a alternativa de escapar ou evitar praticamente impossível para o alvo do ataque. “Uma vítima de cyberbullying, em geral, não tem para onde ir e se esquivar dessa violência” (WENDT; LISBOA, 2014, p. 50). Segundo Wendt e Lisboa (2013): Uma vítima de cyberbullying pode nunca saber o minuto quando será atacada novamente, pois a internet permite ao agressor recorrer à vítima de inúmeras formas e a qualquer momento, alterando as delimitações contextuais do bullying na escola. Ao contrário da vítima de bullying, que sabe que será atacada quando chegar à escola ou teme pela hora do recreio, Internet e Saúde 329 uma vítima de cyberbullying pode receber mensagens de texto com ameaças inclusive enquanto estiver dormindo. (WENDT; LISBOA, 2013, p. 78). Assim, seguindo essa definição, o dano no cyberbullying não pressupõe interação física. No bullying, o agressor está na frente da vítima. Em geral, um é colega do outro na escola. No cyberbullying, a vítima talvez não conheça pessoalmente seu agressor ou tenha dificuldade em reconhecê-lo pela internet. A internet garantiria ao agressor uma sensação de anonimato quando ele comete suas ações. A capilaridade das redes sociais digitais permitiria que a humilhação e a agressão alcançassem, com as curtidas e compartilhamentos, um número incalculável de pessoas. O uso das redes sociais possibilita que o emissor da mensagem não seja facilmente identificado e que a mensagem seja difundida amplamente. Para esses autores, essas duas características da comunicação on-line conferem, ao cyberbullying sua singularidade. Analisaremos a seguir cada uma delas. Um primeiro ponto destacado pelos autores internacionais está relacionado com a sensação de anonimato proporcionada pela internet. Não é por acaso que a palavra sensação está em itálico. Alguns autores internacionais analisados abordam esse aspecto. Ybarra e Mitchell (2004), por exemplo, afirmam que “a internet é uma ferramenta para comunicação anônima” (YBARRA; MITCHELL, 2004, p. 330, tradução nossa). Para eles, “o anonimato associado a interações on-line pode remover muitos aspectos de papeis socialmente aceitos, levando a internet a atuar como um potencial equalizador para atos agressivos.” (YBARRA; MITCHELL, 2004, p. 332, tradução nossa, grifo nosso). Foody, Samara e Carlbring (2015) corroboram com essa ideia, admitindo que “um dos principais fatores que distingue o cyberbullying é o anonimato do crime, o qual pode ser executado em frente a uma ampla audiência e, ao mesmo tempo, permitir que o perpetrador permaneça sem identificação” (FOODY; SAMARA; CARLBRING, 2015, p. 236, tradução nossa). Na revisão sistemática conduzida por Zych, Ortega-Ruiz e Marín-López (2016), o anonimato foi identificado enquanto um dos aspectos que distinguem o cyberbullying do bullying: “a maioria das definições incluiu também critérios específicos, como possível anonimato [...]” (ZYCH; ORTEGA-RUIZ; MARÍN-LÓPEZ, 2016, p. 14, tradução nossa, grifo nosso). Asam e Samara (2016) reiteram a sensação de anonimato enquanto uma dimensão diferencial do cyberbullying: [...] É fácil praticar bullying contra outros no ciberespaço; é preciso apenas acesso a um dispositivo eletrônico, celular ou computador, e os detalhes da vítima contra a qual o bullying será dirigido, como o número do seu celular, endereço da internet ou nome do usuário. Utilizando esse método, o perpetrador não precisa encarar sua vítima e, portanto, pode permanecer 330 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) anônimo; o bullying pode permanecer um ataque frio contra uma pessoa e o perpetrador não precisa testemunhar diretamente as consequências de suas ações. (ASAM; SAMARA, 2016, p. 128, tradução nossa). Dissemos sensação de anonimato, pois o computador do qual a agressão partiu pode, em última instância, ser identificado. Basta que o interessado descubra o protocolo da internet (IP) da máquina que remeteu a informação. Silveira (2010), fazendo uma analogia ao livro de Michel Foucault (1987), escreveu um artigo intitulado “Vigiar e punir: comunicação e controle na internet”. O autor brasileiro ressalta o papel persecutório e invasor da privacidade que a internet permite e facilita. Para ele, na internet, os cidadãos estão livres para decidir o que desejam assistir, postar ou compartilhar. Entretanto, por meio do IP é possível descobrir rapidamente quantos internautas visitaram um determinado site, com quem eles se comunicam, o que é postado, comprado ou vendido. Isso porque não é possível “[...] navegar na internet sem um número de IP e sem aceitar os seus protocolos básicos de comunicação. Por isso, quando um computador acessa um site, ele o faz de acordo com os protocolos TCP/IP” (SILVEIRA, 2010, p. 101). Em outro artigo, o mesmo autor ressalta que, na internet, as relações sociais passam a ocorrer em um contexto pautado por um sistema de controle informacional. Segundo Silveira (2017) Transmissão de informação é quase sempre acompanhada pelo seu registro. Dados são comunicados gerando dados sobre a comunicação realizada, i.e., metadados são constantemente criados. Registros do que foi feito estão baseados nesses processos de controle e comunicação. (SILVEIRA, 2017, p. 28, tradução nossa). Na verdade, as atividades on-line deixam um rastro digital dos usuários, produzindo dados que são coletados, agregados e monitorados por empresas de tecnologia e órgãos de inteligência. Muitos deles se transformam em dinheiro, pois são vendidos para agências de publicidade e empresas interessadas em alcançar seus consumidores potenciais (WEST, 2017). O caso envolvendo Edward Snowden revelou para o mundo que os programas de espionagem do governo estadunidense vasculham a vida privada de políticos, empresários, empresas e cidadãos comuns. Esse caso evidenciou as limitações do anonimato nas redes sociais digitais. A governança, a privacidade e a segurança na internet se tornaram, desde então, um problema que afeta os direitos de cidadania dos homens e mulheres do planeta que acessam a internet (CANABARRO; BORNE, 2015)13. Silveira (2017) destaca ainda que a vigilância das atividades on-line e a coleta dos dados trafegados na rede não se dão apenas por motivos relacionados à segurança nacional, mas, sobretudo, pelo fato da informação ter se transformado em uma mercadoria nova e valiosa. Com o surgimento e a popularização das tecnologias cibernéticas e a 13 O capítulo 2 aborda o tema do Marco Civil da Internet no Brasil. Internet e Saúde 331 constituição de um sistema de controle informacional, foi instaurado um “mercado de dados pessoais”, cujo funcionamento depende fundamentalmente da violação da privacidade dos usuários das NTICs. Silveira (2017) afirma: [...] Emitir o certificado da morte da privacidade foi uma necessidade básica do mercado. O mercado de informação do século XXI precisava liberar sua imensa criatividade para fazer dinheiro a partir da massa de dados produzida pelo uso das tecnologias cibernéticas. Afirmar que a privacidade é um direito que deveria ser abandonado para benefícios maiores e novas sensações era, e é, propício para conceder às empresas o salvo conduto para coletar e manipular nossas informações. (SILVEIRA, 2017, p. 65, tradução nossa). De qualquer maneira, o usuário comum que agride o outro pela internet se sente protegido por essa percepção de anonimato. Esse falso anonimato, promovido pela mediação eletrônica, permite que o agressor não seja facilmente identificado pela vítima. Alguns autores internacionais admitem que a sensação de anonimato proporcionada pela internet permite o agressor não observar como sua vítima reagiu à humilhação nem saber como o agressor comportou-se depois de ter ofendido alguém. Parte da literatura acadêmica brasileira analisada também acredita que o cyberbullying seja diferente do bullying por contar com o anonimato em sua prática de humilhação. Para Berto (2012), os recursos disponíveis na internet permitem que o agressor crie “perfis falsos com o objetivo de difamar a vítima de uma determinada rede social” (BERTO, 2012, p. 32). Para Dias, Santos e Ernesto (2012), o anonimato não é apenas um atrativo para que os jovens se sintam mais livres para falar sobre suas fraquezas. Ele também serve para que os agressores se sintam desinibidos para cometer humilhações e agressões. Segundo estes autores, com o anonimato, “o indivíduo não será julgado ao usar o computador, pois não estará exposto aos demais” (DIAS; SANTOS; ERNESTO, 2012, p. 42). Aranha (2014) destaca que a sensação de anonimato possibilita que sejam escritos e divulgados conteúdos depreciativos que normalmente não seriam expressos em um contato face a face. Barbosa (2014) corrobora com essa perspectiva, caracterizando o ambiente virtual como um “‘espaço’ de impessoalidade e impunidade” (BARBOSA, 2014, p. 51). Apesar das ressalvas apontadas acima, o anonimato seria um traço distintivo do cyberbullying. No bullying, o agressor é facilmente identificável. Na internet, o agressor pode usar um nome falso ou um apelido, não sendo reconhecido facilmente. Um segundo ponto que singulariza o cyberbullying está associado ao fato de a internet permitir que a humilhação e a agressão tenham um grande alcance. Alguns autores internacionais compartilham esta visão, entre os quais destacam Asam e Samara (2016). Para eles, o “cyberbullying pode ser mais repetitivo com a contínua visualização/envolvimento de muitos indivíduos em períodos de tempo diferentes e, devido 332 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) a sua natureza, é mais amplamente disseminado […]” (ASAM; SAMARA, 2016, p. 128, tradução nossa). Corcoran, Mc Guckin e Prentice (2015) e Grigg (2010) apresentam perspectivas semelhantes. Esses autores (2015) ressaltam que no cyberbullying “há o potencial para conteúdo abusivo ou humilhante ser disseminado para uma audiência de tamanho e localização desconhecidos” (CORCORAN; MC GUCKIN; PRENTICE, 2015, p. 246, tradução nossa). Grigg (2010) destaca que “[...] fotos e vídeo clipes ofensivos são percebidos como particularmente devastadores, devido à amplitude da audiência que vê esses conteúdos e ao impacto psicológico resultante que eles podem ter nos alvos [...]” (GRIGG, 2010, p. 145, tradução nossa). Ybarra et al. (2012) seguem a mesma lógica argumentativa, afirmando que [...] É possível ter uma foto postada ou um rumor escrito uma vez, mas compartilhado com outros de novo e de novo. Embora em diferente magnitude, isso parece similar ao rumor rabiscado uma vez na parede de um banheiro para muitas pessoas verem repetidamente (YBARRA et al., 2012, p. 58, tradução nossa). Segundo Baldry, Farrington e Sorrentino (2015): Um único cyber ataque (um vídeo, um comentário, uma imagem) pode permanecer on-line ou em um telefone móvel por muito tempo, prolongando, assim, o dano às vítimas [...] e aumentando o acesso a potenciais cyber espectadores que, por sua vez, podem compartilhar o ataque, prolongando a aflição da vítima [...] (BALDRY; FARRINGTON; SORRENTINO, 2015, p. 37, tradução nossa). A amplitude desmesurada da humilhação está relacionada com as características das mídias digitais. A capacidade de compartilhar informações é uma das características da chamada Web 2.014. Os frequentadores das redes sociais digitais desempenham um papel central na difusão de conteúdo humilhante. Para Corcoran, Mc Guckin e Prentice (2015) e Baldry, Farrington e Sorrentino (2015), esse papel é exercido quando os usuários compartilham, curtem, comentam ou mesmo anexam figuras e vídeos ao post feito pelo agressor. Desse modo, segundo alguns autores internacionais, o cyberbullying teria um potencial de ser visto por um número muito maior de pessoas que um bullying presencial (ASAM; SAMARA, 2016). Corcoran, Mc Guckin e Prentice (2015) e Grigg (2010) admitem que uma agressão via internet pode ter um efeito mais nocivo, grave e duradouro sobre a pessoa vitimada do que aquela feita face a face, graças ao compartilhamento de No início dos anos 2000, para muitos pesquisadores, entre eles O’Reilly (2007), a comunicação via internet teria alcançado um novo estágio. A Web 2.0 seria caracterizada por novas tendências e práticas, centradas em uma arquitetura que favoreceria a participação e o compartilhamento. Para tanto, seriam valorizados recursos tecnológicos como as mídias sociais, que facilitariam a coprodução de conteúdo pelos usuários e aumentariam o fluxo de informações interpessoais. 14 Internet e Saúde 333 comentários, fotos e vídeos com conteúdos degradantes sobre terceiros. Na verdade, para esses autores, o cyberbullying foge do controle do ofensor. A humilhação, uma vez postada, ganha as redes sociais digitais, viraliza, e pode chegar até pessoas que as duas partes envolvidas sequer conheçam. A liberdade e a disponibilidade plena de informações na internet, assim como o suposto anonimato, foram recentemente questionadas. O Google, por exemplo, é um dos mecanismos de busca mais populares. Ele emprega, por exemplo, um algoritmo que enviesa os resultados da pesquisa, favorecendo sites comerciais de maior porte maiores em detrimento daqueles de menor porte (MAGER, 2009). Ele também utiliza informações pessoais e hábitos de navegação do usuário para personalizar cada vez mais o conteúdo informativo, isolando os indivíduos em bolhas que permitem pouco ou nenhum acesso a opiniões e interesses divergentes dos seus (PARISER, 2011). De qualquer maneira, mesmo que esteja circunscrita a uma bolha, a humilhação postada on-line sai do controle do agressor e chega até pessoas que nem ele nem a vítima conhecem ou se relacionam pessoal ou virtualmente. Alguns autores nacionais esclarecem como esse mecanismo funciona. Os participantes das redes sociais do agressor podem, a qualquer tempo, assistir, curtir e compartilhar textos e imagens ofensivas a uma terceira pessoa. Assim, o malestar pode ser disseminado em grande escala (GONÇALES; PIMENTEL; PEREIRA, 2014). Ao curtir uma postagem agressiva a outra pessoa no Facebook, os usuários estariam incentivando essa prática e aumentando a dimensão da humilhação sofrida. Com isso, a rápida e extensiva repercussão das agressões nas redes sociais digitais poderia conferir mais poder à agressão (SCHREIBER; ANTUNES, 2015). Seguindo essa definição, é possível considerar que o efeito do cyberbullying ultrapasse, de longe, as barreiras da escola. A humilhação pode ser percebida por incontáveis usuários e ser reproduzida por um número incontrolável de simpatizantes, com suas curtidas e compartilhamentos. O cyberbullying permitiria, portanto, que o público espectador do ato seja muito maior do que aquele que assiste a uma situação de bullying presencial. Isso porque o ato agressivo pode ser propagado rapidamente. Togneta e Bozza (2012, p. 163) lembram que “uma vez postado um comentário em redes sociais, o mundo saberá”. Wendt e Lisboa (2013) foram alguns dos autores brasileiros que contribuíram com este debate. Para eles, a possibilidade de o usuário da Web poder compartilhar conteúdos depreciativos em relação a terceiros confere a essa prática virtual um “caráter de permanência” (WENDT; LISBOA, 2013, p. 78). Esses autores consideram que os indivíduos que compartilham esses posts são “apoiadores ou incentivadores do processo” (WENDT; LISBOA, 2014, p. 43). Em sua pesquisa, Tognetta e Bozza (2012) constataram que a maioria dos espectadores de cyberbullying repassa ou divulga os casos que recebem. Gonçales, Pimentel e Pereira (2014) salientam que apelidos pejorativos, fotografias manipuladas e exposição de fatos íntimos rapidamente se alastram em ambientes virtuais 334 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) e, não por acaso, a exposição no Youtube torna-se uma das formas de cyberbullying mais frequentes. Assim, graças às características da internet, os conteúdos depreciativos em relação a terceiros podem ser lidos, curtidos e compartilhados por pessoas desconhecidas. O post agressivo ou humilhante pode viralizar, ou seja, pode se espalhar rapidamente, como um vírus, sem que as partes diretamente envolvidas tenham qualquer responsabilidade nisso. [...] O uso de informações e de tecnologias de comunicação - como e-mail, celular, aparelhos e programas de envio de mensagens instantâneas e sites pessoais - com o objetivo de difamar ou apoiar de forma deliberada comportamentos, seja de indivíduo ou grupo, que firam de alguma forma outros tantos. (SCHREIBER; ANTUNES, 2015, p. 111). Alguns autores brasileiros analisados neste estudo parecem ter se dedicado mais à definição dessa dimensão do cyberbullying. Dias, Santos e Ernesto (2012) ressaltam que as mensagens de humilhação, hostilidade, ataque, difamação agridem jovens, crianças e adultos estão “[...] cada vez mais espalhadas em sites de relacionamentos como o Formspring, Tumblr, Twitter ou Facebook [...]” (DIAS; SANTOS; ERNESTO, 2012, p. 42). Diante de tantas alternativas para uma pessoa insultar ou humilhar outra, por meio dos diferentes recursos disponíveis on-line, alguns autores internacionais consultados chegaram a construir outras denominações para referentes variações de cyberbullying. Alguns autores internacionais realizaram esse esforço conceitual. Entre eles, destacam-se Seto (2002) e Grigg (2010). Seto (2002) apresenta o “cyberstalking” (SETO, 2002, p. 67), ou cyber perseguição, em português. Trata-se de um termo que designa uma forma de violência na qual um sujeito invade repetidamente a esfera de privacidade de outra pessoa, empregando táticas de perseguição por meio das mídias sociais. Grigg (2010) refere-se ao “sexting” e ao “happy slapping” (GRIGG, 2010, p. 143). “Sexting” é uma contração das palavras em inglês sex e texting que se refere à divulgação de conteúdos eróticos e sensuais por meio de celulares, sem o consentimento da vítima. “Happy slapping”, por sua vez, é um comportamento social em que uma ou mais pessoas atacam uma vítima com o intuito de registrar a agressão (geralmente com a câmera de um smartphone), e posteriormente compartilhar a filmagem on-line. Alguns autores brasileiros têm as mesmas preocupações, entre os quais destacamse Schreiber e Antunes (2015). Eles caracterizaram “happy slapping” da seguinte forma: [...] Divulgação de vídeos mostrando cenas de agressão física, onde uma vítima pode ser escolhida, de forma intencional ou não, para ser agredida na rua, ou na saída do colégio e a violência infringida é gravada com câmeras de celular ou filmadoras e posteriormente postado em sites como Internet e Saúde 335 o YouTube ou Google, visando espalhar a agressão e humilhar a pessoa agredida. (SCHREIBER; ANTUNES, 2015, p. 116). Gillespie (2006) apresentou a expressão “flaming” (GILLESPIE, 2006, p. 124), que seria uma interação hostil entre usuários da internet por meio de mensagens ofensivas. Tais mensagens são chamadas de flames (chama ou labareda, em português) e, na maioria dos casos, são publicadas em respostas a mensagens de conteúdo considerado provocativo ou ofensivo para aquele que publicou o flame. Aranha (2014) foi um dos poucos autores nacionais que participou desta discussão terminológica. Apresentando o flaming e flame wars (ARANHA, 2014. p. 124), admite que essas práticas têm como “[...] meta a promoção de um ‘linchamento online’, concentrandose mais na humilhação, ofensa e desacreditação do opositor do que no combate das idéias em si” (ARANHA, 2014, p. 125). Quando a troca de ofensas entre os envolvidos torna-se maior do que a informação que originou a discussão, inicia-se, a seu ver, o flame war. Esse termo refere-se ao conflito de opiniões que se dá em espaços de discussão on-line, abrangendo uma vasta quantidade de postagens com conteúdo pejorativo, que muitas vezes fogem do tópico inicial. O autor frisa que essas práticas não se configuram por uma discordância entre as partes que debatem um determinado assunto, mas pela discordância adquirir proporções muito grandes. Segundo Aranha (2014): [...] A própria terminologia (flame) já evoca a idéia de ‘debate inflamável’, uma vez que a exacerbação está intrinsecamente relacionada à essência do fenômeno. É justamente nessa extrapolação que a flame war ganha seu viés mais preocupante, pois aí se dá um deslocamento do debate em torno de uma idéia para o processo de linchamento moral pela internet. Este pode se dar de maneira mútua ou unilateral. (ARANHA, 2014, p. 124). Diante do papel desempenhado pelas Novas Tecnologias da Informação e Comunicação e da gama de possibilidades de agressão via internet, alguns autores brasileiros preferem não utilizar a expressão cyberbullying. Eles reconhecem a especificidade deste fenômeno diante do bullying tradicional, mas admitem que a expressão cyberbullying não seja compatível com a dimensão desse fenômeno social. Esses autores procuraram construir uma outra denominação para essa prática social. Este foi o caso de Schreiber e Antunes (2015) e Wendt e Lisboa (2014). Schreiber e Antunes (2015) afirmam que “com a ampliação do estudo do fenômeno cyberbullying, muitas são as definições encontradas [...]” (SCHREIBER; ANTUNES, 2015, p. 115). Wendt e Lisboa (2014) corroboram essa perspectiva, apontando que ainda não há consenso acerca dos aspectos teóricos que o conceito de cyberbullying pode englobar. Para eles, a ausência de uma definição precisa desse fenômeno pode estar relacionada à proliferação de novas tecnologias e à constante emergência de novos comportamentos e modos de agir nos espaços on-line. 336 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) As críticas feitas por Schreiber e Antunes (2015) e Wendt e Lisboa (2014) dialogam com a proposição de outras denominações para a prática de agressões e insultos no ciberespaço apresentada por alguns autores estrangeiros, como Grigg (2010) e Corcoran, Mc Guckin e Prentice (2015). Grigg (2010) ressalta que o termo cyberbullying pode não dar conta da diversidade de atos negativos que ocorrem na internet, e propõe o termo “cyber-agression” (GRIGG, 2010, p. 152), ou cyber agressão, em tradução livre para o português. Segundo a autora, esse termo definiria “[...] dano intencional transmitido pelo uso de meios eletrônicos a uma pessoa ou um grupo de pessoas independente de sua idade, que percebem tais atos como ofensivos, derrogatórios, prejudiciais ou indesejados” (GRIGG, 2010, p. 152, tradução nossa). Grigg (2010) destaca que, além de abranger a amplitude de práticas agressivas e hostis que ocorrem on-line, a expressão “cyber-agression” também abarcaria os usuários das tecnologias digitais que são espectadores dessas práticas. Corcoran, Mc Guckin e Prentice (2015) corroboram a perspectiva de Grigg (2010). Esses autores afirmam que o termo “cyber-aggression” seria mais apropriado, uma vez que cyberbullying pode ser confuso e não atentar para todas as características que singularizam e definem a prática de agressões on-line. Tokunaga (2010) e Ybarra e Mitchell (2004), por exemplo, preferem denominar essa prática de “online harassment”, ou assédio on-line, em tradução livre para o português. Outros de insultos e ameaças infligidos por meio de tecnologias digitais (JUVONEN; GROSS, 2008), ou até bullying realizado por meio de aparelhos eletrônicos (LI, 2007). Há ainda quem tenha construído as expressões “cyber assédio, cyber vitimização, assédio online e bullying eletrônico (FOODY; SAMARA; CARLBRING, 2010, p. 236, tradução nossa). 5. Considerações finais No cenário contemporâneo, as Novas Tecnologias de Informação e Comunicação têm se imbricado cada vez mais ao cotidiano pessoal e profissional dos indivíduos, proporcionando novas e inúmeras possibilidades para interação, troca de conhecimento, entretenimento e comércio. Porém, as oportunidades e benefícios trazidos por elas convivem com diversas práticas nocivas, entre as quais destaca-se o cyberbullying. Se na internet o indivíduo pode falar com outra pessoa que está no outro lado do mundo ou acessar instantaneamente uma miríade de fontes de informação, ele também pode sofrer ataques e agressões por meio de mensagens, fotos e vídeos hostis, enviados em sites, blogs e redes sociais digitais. Este capítulo apresentou uma análise da literatura científica internacional e nacional que aborda a questão do cyberbullying. Identificamos as principais questões Internet e Saúde 337 presentes no debate acadêmico internacional e nacional sobre esse fenômeno social contemporâneo. Na análise dos artigos científicos brasileiros, observamos que os autores brasileiros se aproximam da literatura internacional ao discutir as semelhanças e diferenças entre cyberbullying e bullying – um fenômeno que antecede a emergência das NTICs, e que também se caracteriza pela exposição repetida e contínua da vítima a agressões, ameaças e insultos. Assim como em publicações internacionais, alguns artigos brasileiros apresentam o cyberbullying como uma extensão ou um tipo específico de bullying. Eles apontam semelhanças entre essas duas práticas de exclusão e humilhação da vítima, entre elas: uma exposição contínua da vítima a agressões; a repetição e intencionalidade do ato; as consequências negativas para os envolvidos; o desequilíbrio de poder entre agressor e vítima; e a violência entre pares. Outros autores brasileiros também convergem sua visão com aquela presente na literatura internacional ao caracterizar as especificidades do cyberbullying e do bullying. Para alguns autores, o bullying se singularizaria pelo contato face a face, com fronteiras espaço-temporais explícitas e com ocorrência majoritária no ambiente escolar. O cyberbullying se caracterizaria pela mediação das NTICs, a repercussão incalculável, a ausência de interação física e a sensação de anonimato. Tanto os autores brasileiros quanto os estrangeiros abordam as diferentes maneiras de realização do cyberbullying. Ainda que tenham sido identificados vários pontos de convergência entre a literatura científica nacional e estrangeira, cabe destacar dois pontos que singularizam o pensamento brasileiro analisado neste estudo. Um deles refere-se ao questionamento sobre as características do cyberbullying. Para Matte (2012), o “mundo virtual é falácia” (MATTE, 2012, p. 3). Segundo a autora, a internet é utilizada enquanto um meio para provocação e humilhação entre sujeitos que também se relacionam e interagem fisicamente. Não seria possível para essa autora identificar singularidades em um bullying exercido no meio digital. Na perspectiva de Matte (2012): [...] Só teria sentido falar em cyberbullying se as relações entre os sujeitos envolvidos acontecessem exclusivamente na web – o que é evidentemente possível. Se a internet, no entanto, é apenas um recurso usado para provocação entre sujeitos que se relacionam presencialmente e cuja relação presencial é o foco do bullying em questão, não vejo nenhuma utilidade em se pensar em cyberbullying. (MATTE, 2012, p. 4). A autora também discute em seu artigo se o impacto das agressões e ataques realizados on-line seriam maiores ou piores do que aqueles que ocorrem face a face. Para ela, o bullying realizado na internet não seria uma ameaça necessariamente maior para a vítima do que aquele que ocorre fora do ambiente virtual. Segundo ela, se o círculo 338 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) imediato não for afetado, a mensagem difamadora torna-se inócua. Ela contesta também a ideia de que as ofensas na internet seriam mais duradoras. Para Matte (2012): Informações na internet só ficam on-line para sempre se forem mantidas lá. Podem ser apagadas muito facilmente e podem também permanecer lá sem serem acessadas, como um livro fechado que nunca mais foi lido. Somente uma ação intencional pode garantir sua permanência e foco, mas também a manutenção de uma informação em foco não é uma tarefa fácil e nem mesmo existe uma fórmula que sempre funcione, nem na web, nem em qualquer outro meio de divulgação. (MATTE, 2012, p. 6). Entre os artigos brasileiros analisados, a posição de Matte (2012) parece ser a mais crítica em relação ao conceito do cyberbullying. Não encontramos essa linha de questionamento sobre o fenômeno do cyberbullying na literatura internacional consultada. Cabe destacar que a discussão proposta por Matte (2012) opõe-se ao debate mais abrangente, comum nos estudos de cibercultura, que atenta para as especificidades e novidades que os fenômenos sociais assumem ao serem mediados pelas NTICs (MARTINO, 2013). Para uma parcela de autores que discutem a relação sociedade e Novas Tecnologias de Informação e Comunicação, a internet instaurou formas comunicacionais inéditas, que possibilitaram fluxos de comunicação multidirecionais a nível global que permitem que o compartilhamento de informações e experiências, a produção de conteúdo multimídia e a geração de oportunidades de cooperação entre indivíduos de diferentes localidades do planeta (FUCHS, 2007). Castells (2009; 2010), por exemplo, aponta que a internet teria instaurado um novo tipo de comunicação, denominado “auto comunicação de massa”, na qual a mensagem teria a capacidade de atingir uma audiência global. Já Lévy (2015) entende as novas tecnologias de informação e comunicação como “tecnologias moleculares”, que se afastariam da massificação, direcionando-se precisamente às “moléculas” do tecido social, isto é, às menores e singulares porções que compõem uma coletividade. Ao discutir a prática do cyberbullying, Matte (2012) questiona, em certa medida, essa perspectiva, ao destacar as similaridades que existiriam entre o bullying praticado pessoalmente e o bullying exercido por meio da internet. Outro ponto que os autores brasileiros se destacam em relação às publicações internacionais refere-se à proposição de soluções para reduzir ou acabar com a prática do cyberbullying. Alguns autores ressaltaram o papel da família e da escola no combate das práticas de bullying e cyberbullying. Outros enfatizaram a importância do diálogo com os jovens sobre o uso responsável das tecnologias de informação e comunicação. Schreiber e Antunes (2015) ressaltaram que caberia às escolas inserir esse assunto de forma mais intensa na sala de aula. Esses autores explicam que, embora as agressões possam acontecer em ambientes on-line, é no espaço escolar onde “[...] esses comportamentos agressivos e transgressores se evidenciam ou se agravam na maioria das Internet e Saúde 339 vezes” (SCHREIBER; ANTUNES, 2015, p. 120). Tognetta e Bozza (2012), do “Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral” da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), propõem a criação de programas de prevenção e atuação no ambiente escolar. Essas iniciativas poderiam estimular o respeito nas relações interpessoais (presenciais ou virtuais) dos jovens. Para Dias, Santos e Ernesto (2012), a escola deve envolver a família na busca de uma solução para o bullying e o cyberbullying. Porém, esses autores ressaltam que isso não é uma tarefa simples, uma vez que “[...] mexer na estrutura de uma educação consolidada em valores divergentes dos esperados é um assunto delicado e foge da função da escola” (DIAS; SANTOS; ERNESTO, 2012, p. 43). Outros destacam o papel dos pais no enfrentamento do bullying e cyberbullying. Wendt e Lisboa (2014), por exemplo, indicam que o controle parental adequado sobre o uso das tecnologias digitais pode reduzir comportamentos de risco no ambiente virtual. Os autores também indicam que o monitoramento, a postura assertiva e o diálogo com crianças e adolescentes podem auxiliar na redução dessas práticas nocivas. Além do papel da escola e da família, outros autores preocupam-se em encontrar maneiras para reduzir ou acabar com a prática do cyberbullying. Wendt e Lisboa (2013) e Schreiber e Antunes (2015) destacam o papel que o Estado, a partir de políticas públicas, poderia exercer no enfrentamento ao bullying e ao cyberbullying. Wendt e Lisboa (2013) apontam para a necessidade de políticas públicas de regulação e intervenção que lidem com as causas e consequências dessas práticas. Já Schreiber e Antunes (2015) afirmam que “na parte jurídica, ainda se estão desenvolvendo leis e normas quando o assunto é ciberespaço” (SCHREIBER; ANTUNES, 2015, p. 121). A inexistência de uma lei específica não impede que os direitos do cidadão estejam sendo ameaçados com a prática do bullying e cyberbullying. Em relação a políticas públicas voltadas para o combate e prevenção do bullying e do cyberbullying, cabe destacar que, após a publicação dos artigos de Wendt e Lisboa (2013) e Schreiber e Antunes (2015), foi sancionada no Brasil a Lei nº 13.185/2015, que institui a nível nacional o “Programa de Controle à Intimidação Sistemática” (bullying). Tal programa visa prevenir e combater a prática do bullying a partir de uma série de medidas e ações, que incluem: a implementação e disseminação de campanhas educativas; a capacitação de professores e equipes pedagógicas; e a oferta de assistência psicológica, social e jurídica a vítima e agressores. Ainda que se refira nominalmente ao bullying, o programa também abrange o cyberbullying, descrito no texto da lei como “intimidação sistemática na rede mundial de computadores” (BRASIL, 2015). Cabe destacar, finalmente, que este estudo realizou uma análise bibliográfica de artigos científicos brasileiros disponibilizados em duas bibliotecas virtuais. Outros artigos poderiam ter sido encontrados se outras bases tivessem sido consultadas. No Brasil existe uma literatura cinzenta que, se tivesse sido consultada, poderia expandir o escopo de análise. Ela pode ser encontrada, sobretudo no Oasis.br: um dos maiores portais 340 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) brasileiros de publicações científicas em acesso aberto15. Além disso, este capítulo poderia ter realizado um estudo comparativo entre a literatura científica sobre cyberbullying do Brasil e de outros países que tenham contextos socioeconômicos similares. Também poderia ter sido realizada uma pesquisa empírica sobre cyberbullying que se debruçasse sobre as possíveis singularidades que as práticas de agressão, ameaças e insultos on-line assumem no contexto sociocultural brasileiro, ou ainda que analisassem as relações entre casos de cyberbullying e bullying. A opção que fizemos ao realizar o estudo que culminou neste capítulo faz com que o leitor deste livro se familiarize com os problemas conceituais inerentes aos estudos sociais sobre esse tema. Neste capítulo o leitor teve condições de constatar que os estudos brasileiros estão em sintonia com as preocupações presentes em trabalhos realizados por autores estrangeiros, além de apresentar algumas singularidades em suas reflexões. O fenômeno do cyberbullying integra um vasto campo de investigação. Estudá-lo representa um empreendimento necessário em um cenário no qual as mídias digitais estão cada vez mais presentes no cotidiano, especialmente dos jovens. Um cenário em que as agressões realizadas por meio das NTICs podem ser ter sérias consequências para a saúde dos usuários das redes virtuais. Referências ARANHA, G. Flaming e cyberbullying: o lado negro das novas mídias. Ciberlegenda, n. 31, p. 122–133, 2014. ASAM, A. E.; SAMARA, M. Cyberbullying and the law: a review of psychological and legal challenges. Computers in Human Behavior, v. 65, p. 127-141, 2016. AZEVEDO, J. et al. O ciberbullying e suas relações com as estruturas psíquicas. Nucleus, v. 9, n. 1, p. 241–252, 2012. BALDRY, A. C.; FARRINGTON, D. P.; SORRENTINO, A. Am I at risk of cyberbullying? A narrative review and conceptual framework for research on risk of cyberbullying and cybervictimization: the risk and needs assessment approach. Aggression and Violent Behavior, v. 23, p. 36–51, 2015. BARBOSA, C. Cyberbulling and otherness at school: a study in social representations with students from São José dos Quatro Marcos, Mato Grosso. 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Nos dois países, as pessoas estão cada vez mais acessando a internet para buscar informações e realizar compras de medicamentos. Da mesma forma, fabricantes e distribuidores de medicamentos usam a internet para anunciar e comercializar seus produtos. O uso e abuso da internet tanto para os medicamentos de prescrição quanto os vendidos sem receita no Brasil e nos Estados Unidos diferem devido às políticas farmacêuticas governamentais e às diferenças socioeconômicas entre as duas sociedades que têm efeito no acesso e no preço destes produtos. Este capítulo apresenta uma revisão da literatura acadêmica e da “literatura cinza” sobre o uso de medicamentos disponíveis e comprados pela internet no Brasil e nos Estados Unidos. Aborda-se como estes dois casos podem ser comparados em termos de acesso e uso apropriado de medicamentos. Por fim, discute-se as implicações desta prática nesses desses dois países em relação às características de mercado, aos regulamentos governamentais e à crescente farmaceuticalização por meio do uso de novas mídias digitais. Palavras-chave: Internet; Medicamentos; Propaganda Direta ao Consumidor; Mídias Sociais; Acesso a Medicamentos. Referência: FLYNN, M.B.; COUTINHO, T.; LUIZA, V. L. Medicamentos baseados da internet no Brasil e Estados Unidos. In: PEREIRA NETO, A.; FLYNN, M.B. (orgs.). Internet e saúde no Brasil: desafios e tendências. 1 ed. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2020. p. 343-373. * Departmento de Ciência Política e Estudos Internacionais, Georgia Southern University, EUA. E-mail: [email protected]. Internet e Saúde 345 Introdução A consolidação da internet como principal meio de comunicação e informação entre indivíduos transformou significativamente a vida cotidiana. Na saúde, a internet e as mídias sociais alteraram profundamente a relação entre as pessoas e os medicamentos, especialmente em relação ao uso e comercialização sem prescrição. A nova mídia, isto é, a mídia baseada na troca de informações on-line, fornece canais importantes nos quais é possível observar a farmaceuticalização da sociedade (ESHER, COUTINHO, 2017). Tal processo refere-se à crescente dependência da sociedade em relação a intervenções farmacêuticas para a vida cotidiana. Ela é consequência não apenas da facilidade de obter informações farmacêuticas, mas também devido ao acesso mais fácil, com ou sem mediação, aos próprios produtos. Além disso, as Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTICs) podem simplificar o acesso, especialmente para aqueles com condições crônicas e que residem em regiões distantes das farmácias. Entretanto, elas transformam a tradicional relação médico/farmacêutico/paciente. As NTICs trazidas ou impulsionadas pela internet deram origem ao expert patient (GARBIN; PEREIRA NETO; GUILAM, 2008)1. Ao examinar a influência da internet na relação médico-paciente, Cabral e Trevisol (2010) afirmam que o acesso a informações técnico-científicas, juntamente com o aumento dos níveis educacionais dos consumidores, resultaram em mais pacientes buscando informações sobre sua doença, sintomas, medicamentos e custos de hospitalização e tratamento. Na medida em que as informações on-line modificam ou interferem na relação médico-paciente, os autores concluem que os médicos não são mais os detentores exclusivos desse tipo de conhecimento e estão sendo questionados por pacientes cada vez mais informados. Em relação ao consumo de medicamentos, a internet pode exacerbar um problema de saúde pública. Um exemplo é o consumo abusivo de medicamentos controlados entre jovens, que facilita a automedicação. Uma pesquisa de 2011 sobre o uso não médico de medicamentos de prescrição2 (MACKEY; LIANG; STRATHDEE, 2013) constatou que adolescentes usavam as redes sociais digitais como sua principal fonte de informações sobre saúde e bem-estar, ainda que a credibilidade do conteúdo fosse difícil de determinar. O estudo também revelou que as redes sociais digitais fornecem informações sobre todas as etapas relacionadas à automedicação: compras presenciais, troca, empréstimos, compartilhamento, roubo de amigos ou familiares, compra de medicamentos em farmácias ilegais, falsificação de receitas e busca por médicos falsos. 1 O capítulo 5 aborda o tópico do expert patient. de prescrição são aqueles onde uma prescrição de profissional legalmente autorizado é requerida para a venda ou dispensação. 2 Medicamentos 346 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) A internet também permite que os pacientes em todos os países tenham acesso a informação sobre aprovações de medicamentos3, diferenças substanciais de preços e marketing. Como força disruptiva, as tecnologias on-line desafiam o papel tradicional do Estado na regulação das operações de empresas e distribuidores de medicamentos. Segundo a organização Consumers International (2018), com o desenvolvimento e a expansão da internet, a indústria farmacêutica adotou novas estratégias de marketing para promover seus medicamentos, utilizando inclusive grupos de bate-papo e páginas na internet sobre doenças. Tais procedimentos são adotados a despeito da existência dos Critérios Éticos da Organização Mundial da Saúde (OMS, 1988) para Promoção de Medicamentos, promulgados em 1988, continuarem sendo o paradigma no controle da promoção de medicamentos prescritos. Essa declaração desse organismo internacional de saúde sobre o marketing de medicamentos, embora não preveja o tipo de comunicação usada no universo digital, sugere que medicamentos de prescrição não deveriam ser promovidos diretamente ao público. Ao facilitar o acesso às informações sobre as diferenças substanciais de preço dos medicamentos aprovados e não aprovados, as tecnologias e mídias digitais oferecem aos consumidores e organizações ativistas maior conscientização sobre o impacto dos custos exorbitantes para os indivíduos. Pacientes nos Estados Unidos, buscando se esquivar de um dos mercados de medicamentos de prescrição mais caros do mundo, usam a internet para encontrar farmácias que aceitem suas prescrições e dispensem medicamentos na fronteira com o Canadá (MANGAN, 2014). Organizações humanitárias, como Médicos Sem Fronteiras (MSF), empregam mídia on-line para disseminar informações e mobilizar interessados em sua campanha de acesso a medicamentos essenciais. A publicação do MSF divulgada em 2001, “Acessando ARVs: desembaraçando a rede de reduções de preço para países em desenvolvimento” (Accessing ARVs: untangling the web of price reductions for developing countries, no original) demonstrou as diferenças de preços de medicamentos anti-Aids de marca e protegidos por patente, em comparação com versões genéricas muito mais baratas (PEREZ-CASAS et al, 2001). Este capítulo investiga essas transformações, examinando os benefícios e as desvantagens das novas mídias on-line em termos de acesso e preços, informações e anúncios e questões de governança. A primeira seção considera o novo aspecto dos medicamentos acessados e comprados na internet como um fenômeno global. Dada a onipresença mundial da Web, o alcance internacional das farmácias on-line merece ser considerado. As seções subsequentes examinam os casos dos Estados Unidos e do Brasil. Elas destacam como as tecnologias on-line se cruzam com um mercado 3 Nos EUA e Brasil, assim como em muitos outros países, a comercialização de medicamentos somente pode ser realizada após aprovação pela agência reguladora nacional competente. Internet e Saúde 347 maduro e com outro em desenvolvimento. São analisados os desafios e as tendências que as distintas infraestruturas de saúde e realidades sociais desses países apresentam aos formuladores de políticas. Além disso, demonstra-se os fenômenos crescentes de farmaceuticalização em todos os contextos. As informações apresentadas provêm de uma revisão da literatura acadêmica e “cinzenta”. 1. Medicamentos baseados na internet: tendências globais e desafios A internet e suas tecnologias digitais facilitam o crescimento da indústria global de medicamentos sujeitos a receita médica, também aqui designados como medicamentos de prescrição. Berkrot (2015) estimou que esse setor atingiria US$ 1,4 trilhão em vendas até 2020. Cabe salientar que não existem dados abrangentes sobre a escala global quanto ao crescimento e distribuição de farmácias clandestinas e eletrônicas e as transações que elas realizam de medicamentos on-line, o número de fornecedores e a base de consumidores. Nem mesmo o grupo The Human Data Science Company IQVIA4: reúne e disponibiliza estes dados. Devido à falta de um banco de dados central de registro e à natureza clandestina de algumas farmácias eletrônicas, é difícil estimar o tamanho do mercado on-line. Revisões sistemáticas da literatura acadêmica, como a de Orizio et al. (2011), fornecem insights sobre algumas dessas questões. Esses autores identificaram várias pesquisas em diferentes países afirmando que 6% ou menos da população havia comprado medicamentos on-line – um número que provavelmente aumentou desde a data de publicação. A literatura analisada por esses autores indica que as vantagens das farmácias on-line incluem a disponibilidade de um comércio 24 horas, realizado a partir da residência do consumidor, mesmo a pessoa com deficiência, que tem certo grau de privacidade, o que permite a obtenção de praticamente qualquer medicamento, muitas vezes com desconto (ORIZIO et al., 2011). Em se tratando de descontos, estes autores identificaram estudos onde o preço varia de acordo com o tipo de medicamento, os volumes de compra e a apresentação de receita (ORIZIO et al., 2011). Nesta pesquisa de Orizio et al. (2011), foi identificado que os pedidos maiores geralmente tinham custos por unidade mais baixos entre as farmácias legalmente autorizadas. Os autores encontraram estudos que realizaram comparações entre os preços de varejo nos EUA e as farmácias online canadenses, que revelaram que as canadenses eram mais baratas para medicamentos de marca, mas não para genéricos. Também foi identificado que 4 Disponível em: https://www.iqvia.com/. 348 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) alguns estudos sobre tratamentos para disfunção erétil encontraram ofertas bem mais caras on-line do que farmácias físicas. Isso pode estar relacionado aos custos adicionais das farmácias on-line, que incluem taxas de associação, despesas com a remessa e a necessidade de receita médica. No entanto, comprar um medicamento sem receita médica tende a aumentar os preços (ORIZIO et al., 2011). Cabe salientar que a literatura científica raramente menciona os esforços dos ativistas para promover o acesso a medicamentos essenciais. Porém, estudos sobre a política de fornecimento de medicamentos contra a Aids, especialmente nos países em desenvolvimento, destacam a importância de novas tecnologias digitais para a mobilização política (‘T HOEN, 2009; KAPSTEIN; BUSBY, 2013). Além dos esforços do MSF mencionados acima, bem como do banco de dados de preços mantido pela Health Action International5, alguns dos serviços mais importantes para compartilhar informações e coordenar esforços de advocacy incluem a IP-health6, a Health GAP7 e a Global AIDS Alliance8. De maneira geral, o que mais tem atraído a atenção da mídia, do governo e da academia é a proliferação de farmácias ilícitas ou chamadas farmácias clandestinas (rogue pharmacies, no inglês), que tendem a operar além-fronteiras. Mackey e Nayyar (2016) alertam que sites que oferecem medicamentos a preços significativamente muito baixos tendem a estar associados a operações ilícitas. O LegitScript (2016), um serviço de verificação e monitoramento de farmácias on-line em todo o mundo, revelou que havia entre 30.000 a 35.000 estabelecimentos não autorizados atualmente em operação. Esse número oscilou entre 25.000 a 45.000 desde que essa instituição9 iniciou suas operações em 2008. Embora tenha existido um declínio no número de sites em relação a alguns anos atrás, a maioria desses endereços eletrônicos opera de maneira flagrantemente ilícita, ou seja, vendendo medicamentos controlados sem receita médica. Além disso, o LegitScript enfatiza que existem de 2.000 a 3.500 atores principais que operam esses sites – excluindo webmasters e comerciantes afiliados. Como 82% desses sites estão em inglês e 85% oferecem o envio para os EUA, essas farmácias ilícitas se concentram no mercado estadunidense (LEGITSCRIPT, 2016). Inúmeras publicações acadêmicas em inglês destacaram os riscos associados às farmácias on-line ilícitas. Muitos desses estudos frequentemente relacionam os riscos à saúde com medicamentos abaixo do padrão com a questão de medicamentos falsificados – uma preocupação com a propriedade intelectual. Por exemplo, o Escritório de Contabilidade do Governo dos Estados Unidos declarou que “as farmácias desonestas da internet geralmente vendem medicamentos controlados não 5 Disponível em: https://haiweb.org/. em: https://www.iphealth.com.au/. 7 Disponível em: https://healthgap.org/. 8 Disponível em: https://www.who.int/workforcealliance/members_partners/member_list/gaa/en/. 9 Disponível em: https://www.legitscript.com/. 6 Disponível Internet e Saúde 349 aprovados – incluindo aqueles que são abaixo do padrão, falsificados e que não têm valor terapêutico ou são prejudiciais aos consumidores” (GAO, 2013, p. 12, tradução nossa). Grupos afiliados à indústria nos EUA, como a Parceria para Medicamentos Seguros (Partnership For Safe Medicines - PSM)10 que se opõe à importação de medicamentos controlados do Canadá, também possui publicações descrevendo tipos de contaminantes encontrados em medicamentos” (PSM, 2012). Por fim, Dukes, Braithwaite e Moloney (2015, p. 147, tradução nossa) afirmam que “parece provável que uma grande parte de medicamentos fornecidos [por farmácias da internet] seja falsificada, sem valor medicinal ou seja diferente do pedido”. Além dos interesses lucrativos da indústria farmacêutica em confundir contrafação de medicamentos11 com medicamentos adulterados, existem preocupações legítimas de saúde pública com medicamentos ilícitos vendidos on-line. Estudos que analisaram a composição química de medicamentos encomendados online constataram que a porcentagem de comprimidos que falharam nos testes de qualidade variou de zero a 10% do número total de amostras analisadas (ORIZIO et al., 2011). Um problema mais comum diz respeito aos padrões de embalagem e rotulagem observados na maioria dos pedidos feitos por farmácias on-line, exceto os originários dos EUA e do Canadá (GAO, 2005; ORIZIO et al., 2011), que não cumpriram os regulamentos da agência americana de Administração de Medicamentos e Alimentos (US’ Food and Drug Administration - FDA). Outro risco à saúde é a disponibilidade na internet de vários produtos que não receberam aprovação regulatória ou foram retirados do mercado devido a problemas de segurança. Em comparação com as farmácias locais, que também vendem medicamentos não aprovados e se envolvem em marketing problemático, a rastreabilidade e acessibilidade de farmácias on-line apresentam desafios enormes na aplicação de regulamentos. A propaganda direta ao consumidor (direct-to-consumer ou DTC, em inglês) e a problemática disseminação de informações sobre medicamentos controlados pela internet representam outro risco à saúde. Choi e Lee (2007) descobriram que mais pessoas estariam começando a perceber a internet como uma fonte de informação mais fidedigna em comparação com outras mídias. Porém, também eles identificaram que havia diferenças entre grupos: as mulheres apresentavam maior probabilidade do que os homens de usar sites farmacêuticos para procurar informações, enquanto indivíduos mais velhos tinham maior tendência de discutir com seus médicos os medicamentos que viam anunciados. Algumas empresas requerem que os usuários da internet selecionem em que país residem antes de direcionar consumidores para páginas da Web para atenderem às demandas regulatórias nacionais. No entanto, dada a onipresença das 10 Disponível em: https://www.safemedicines.org/. O termo “contrafação” de medicamentos vem sendo, por pressão da indústria farmacêutica, utilizado para abarcar os genéricos, razão pela qual a distinção se torna importante. 11 350 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) informações fornecidas pela internet, os anúncios DTC por esse meio são cúmplices na “internacionalização da medicalização” (CONRAD; LEITER, 2008, p. 834, tradução nossa). Os reguladores também não dispõem dos meios para policiar o conteúdo das mídias sociais, como o Facebook e o Twitter, especialmente as publicações de farmácias ilícitas, em comparação com sites da internet vinculados a vendedores (MACKEY; NAYYAR, 2016). Tyrawski e DeAndrea (2015) mostraram que 17,4% do conteúdo relacionado aos 20 medicamentos mais vendidos veio de farmácias ilícitas. Katsuki, Mackey e Cuomo (2015) ao analisar tweets mencionando um nome de medicamento genérico descobriram que 76% das publicações vieram de uma empresa de marketing que trabalha para farmácias ilícitas. A maioria dos autores analisados na revisão de literatura que realizamos concorda que as farmácias da internet são pouco regulamentadas, pois as operações on-line atravessam fronteiras, enquanto a maioria das autoridades legislativas permanece circunscrita pelas fronteiras nacionais. Além disso, a complexidade e o escopo internacional das farmácias da internet apresentam desafios significativos para as agências de regulação. Uma farmácia clandestina tinha um nome de domínio registrado na Rússia, usava serviços localizados na China e no Brasil, processava pagamentos no Azerbaijão e enviava remédios controlados da Índia. Apesar desses desafios, a Interpol realiza anualmente a Operação Pangea, envolvendo mais de 100 países para apreender comprimidos ilícitos e falsificados e remover farmácias on-line ilícitas. O crescimento de criptomercados usando criptomoedas (por exemplo, Bitcoin) que empregam tecnologias on-line para comunicação anônima e para transações ocultas apresentam desafios adicionais para a aplicação da lei (BACHHUBER; MERCHANT, 2017). A análise do alcance e da penetração globais de farmácias on-line em nos Estados Unidos e no Brasil poderá fornecer informações sobre as tendências e os desafios relacionados a essas novas tecnologias. É o que veremos a seguir. 2. Visão geral do mercado de medicamentos baseados na internet nos Estados Unidos Em 2018, os gastos nos medicamentos de prescrição nos Estados Unidos atingiram US$ 344 bilhões (IQVIA, 2019) e o percentual de adultos que usam a internet 88% (PEW RESEARCH CENTER, 2017). Graças, em parte, à facilidade de fazer compras on-line, os EUA também eram em 2017 o principal mercado mundial on-line de medicamentos de venda livre (Over-The-Counter ou OTC, em inglês) (KALORAMA INFORMATION, 2018). Além disso, pesquisas realizadas em 2012 mostraram que 72% dos adultos norte-americanos pesquisaram on-line informações Internet e Saúde 351 sobre saúde; 35% usaram a internet como uma ferramenta de diagnóstico; e 16% leram sobre segurança de medicamentos e fármacos que viram anunciados (FOX; DUGGAN, 2013). Um levantamento realizado em 2012 pela agência FDA no mesmo ano revelou que 23% dos entrevistados admitiram ter comprado medicamentos controlados on-line (FDA, 2013). Um dos estudos identificados na revisão sistemática realizada por Orizio et al. (2011) concluiu que embora a maioria dos participantes da pesquisa tenha usado sites associados a sua seguradora, cerca de 17% disseram ter comprado medicamentos em sites não vinculados a seu plano de saúde ou a uma farmácia local, e 15% disseram que considerariam comprar medicamentos on-line de fontes fora dos EUA. Apesar dessas estimativas, o cálculo do número de pessoas que compram medicamentos on-line e a quantidade e/ou volumes de vendas realizadas permanece impreciso (ORIZIO et al., 2011). No que diz respeito ao perfil dos consumidores de medicamentos on-line, estudo de Brown e Li (2014) baseado nos dados da pesquisa em painel 12 de 2002 e2010 nos EUA, descobriu que a maioria dos consumidores de medicamentos on-line tende a ser mais velha, utilizar mais as prescrições em suas compras, ter gastos de saúde mais altos e apresentar taxas de morbidade maiores do que os usuários offline. Também é mais provável que essa maioria seja composta por pessoas com seguro privado, brancas, casadas e com maior escolaridade (BROWN; LI, 2014). Os autores também descobriram que aqueles com seguro também têm maior probabilidade de procurar tratamentos para condições crônicas, enquanto aqueles que procuram drogas potencialmente abusivas (ou seja, analgésicos, narcóticos, antidepressivos e sedativos) têm menor probabilidade de comprar pela internet. Em termos de faixas etárias, o estudo de Mazer et al. (2012) concluiu que os jovens não eram mais propensos a comprar medicamentos on-line do que os idosos, contrariando expectativas. No entanto, os determinantes da idade e do sexo variaram dependendo do medicamento. Uma revisão sobre consumidores on-line de drogas recreativas descobriu que eles tendem a ser altamente instruídos, ávidos usuários da internet, na faixa dos 20 anos, e homens brancos que usam a rede para privacidade, a fim de proteger seu status profissional (ORSOLINI et al., 2015). Apesar dos esforços para caracterizar a população on-line, Mackey e Nayyar (2016, p. 122, tradução nossa) concluem que "pode não haver um perfil ‘único’ para um cliente de farmácia on-line e que os usuários são tão diversos quanto os medicamentos que procuram". Entretanto, existem vários fatores pelos quais as pessoas nos EUA usam farmácias on-line, que oferecem medicamentos de todas as classes terapêuticas. Para as farmácias legalizadas, os principais fatores incluem conveniência, menor custo, 12 Uma pesquisa de painel é um tipo de estudo longitudinal, que pode ser qualitativo ou quantitativo e é usado para medir o comportamento das pessoas. 352 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) privacidade e autonomia do paciente (ORIZIO et al. 2011; MAZER et al., 2012; BROWN; LI, 2014; MACKEY; NAYYAR, 2016; SMITH et al., 2017). Uma pesquisa com mulheres que pediram os fármacos para a contracepção de emergência ulipristal acetato descobriu que 58,9% das entrevistadas preferiram encomendar o medicamento on-line porque acharam mais fácil preencher as perguntas de elegibilidade médica on-line, que são analisadas por um médico on-line, do que ter que encomendar presencialmente junto a um médico, clínica ou farmácia (SMITH et al., 2017). As pessoas que fazem pedidos on-line tendem a usar mais medicamentos cardiovasculares, tratamentos respiratórios, estatinas, antidepressivos, agentes antidiabéticos, sedativos, contraceptivos e medicamentos para disfunção erétil em comparação com usuários off-line (BROWN; LI, 2014). Por fim, as comunidades on-line também desempenham um papel fundamental no incentivo à compra e consumo on-line de drogas e medicamentos, especialmente para aqueles que vivem em locais remotos ou usam drogas psicodélicas13 incomuns (ORSOLINI et al., 2015). Em relação às chamadas farmácias clandestinas, os principais fatores que levam as pessoas a se arriscarem e comprar nesses sites são: o desejo de reduzir custos com saúde; a falta de cobertura de seguro; o interesse em drogas ilícitas; a falta de confiança em profissionais médicos; e o desejo de se afastar das barreiras de prescrição (CICERO; ELLIS, 2012; BROWN; LI, 2014; ORSOLINI et al., 2015; MACKEY; NAYYAR, 2016). Os custos de saúde incluem não apenas os preços dos medicamentos on-line, mas também as despesas associadas ao atendimento médico. Uma pesquisa on-line sobre pessoas que procuravam o analgésico opioide tramadol também revelou que as considerações de preço não eram o único fator importante. Outros fatores incluíam a percepção de que suas necessidades não foram adequadamente atendidas pelos canais oficiais de saúde e que as doses eram insuficientes para aliviar a dor (CICERO; ELLIS, 2012). O autodiagnóstico também leva as pessoas a procurar farmácias on-line, evitando assim a interferência de médicos e farmacêuticos (MACKEY; NAYYAR, 2016). Muitos sites incluem questionários médicos que não foram padronizados nem validados, além de cibermédicos que usam as informações do paciente para preencher virtualmente as prescrições. Um estudo abrangente de cinco conjuntos de dados nacionais concluiu que a compra de medicamentos em sites ilegais on-line é relativamente pequena (INCIARDI et al., 2010). Por outro lado, os resultados das pesquisas realizadas por Brown e Li (2014) revelaram que entre 0,5% e 3% dos entrevistados compraram opioides prescritos on-line. Ainda assim, generalizando para toda a população norte americana, isso pode representar potencialmente até 9 milhões de pessoas. Além disso, aqueles que usam farmácias na internet para adquirir opioides representam 13 Drogas psicoativas com efeito alucinógeno. Internet e Saúde 353 menos de 1% da população dos EUA (BROWN; LI, 2014). As principais razões pelas quais a internet não é tão utilizada são: os preços mais baixos obtidos com revendedores ou de familiares/amigos; o receio com golpes on-line; e preocupações com sanções legais. Outro estudo sobre drogas psicotrópicas comuns usadas para tratar transtornos mentais encontrou 30 farmácias on-line fornecendo tais medicamentos com ou sem receita médica. Desse total, 57% foram classificadas como clandestinas (MONTEITH et al., 2016). Orsolini et al. (2015, p. 313, tradução nossa) observaram que os seguintes fatores limitam o uso de farmácias na internet para o fornecimento de drogas recreativas14: “medo de custos extras; medo de não receber; receio de que os produtos possam ser falsificados/não aprovados/ilegais e/ou que exista a possibilidade de ser rastreado pelas autoridades ao realizar a própria compra; falta de disponibilidade na Web dos conselhos de um profissional de saúde do ‘mundo real’. Dado aos riscos à saúde associados às farmácias ilícitas, é necessário que sejam construídos dados mais robustos para apoiar as preocupações. No entanto, a maioria dos problemas relacionados com a compra de medicamentos pela internet não provém de relatos de pesquisas, mas de relatos de casos clínicos. Mackey e Nayyar (2016, p. 122, tradução nossa) supõem que “os relatos de casos são uma medida bruta de incidência, como a maioria dos casos relacionados a farmácias na internet provavelmente não relatada, mesmo que resulte em um efeito adverso”. Uma exceção é o estudo de Cicero e Ellis (2012). Esses autores constataram que as pessoas que usavam o analgésico opiáceo tramadol de farmácias sem receita médica experimentaram um número e uma severidade de eventos adversos significativamente maiores, incluindo convulsões com risco de vida, em comparação com os casos do modelo tradicional médico-paciente-farmácia. Em termos de informação e marketing, os EUA são um dos poucos países que permitem às empresas farmacêuticas realizar publicidade direta ao consumidor (DTC). Para as empresas farmacêuticas, a internet cumpre as diretrizes da FDA sobre divulgação de informações em vários canais. De fato, é provável que o meio experimente o maior aumento na publicidade direta ao consumidor (DTC). Essa forma de propaganda totalizou US$ 4,9 bilhões em 2007, sendo que 30% desse valor foi destinado à divulgação na internet (KIM, 2011). As pesquisas sobre anúncios diretos ao consumidor (DTC) podem ser classificadas em dois tipos. Um deles agrupa as investigações realizadas por estudiosos de publicidade, que geralmente adotam uma abordagem instrumental sobre a eficácia dos anúncios on-line diretos ao consumidor (HUH; DELORME; REID, 2005; CHOI; LEE, 2007; FOGEL; NOVICK, 2009; KIM, 2011). O segundo tipo engloba aquelas pesquisas que adotam mais uma 14 As drogas recreativas se referem as substâncias psicoativas como narcóticos, depressores, estimulantes e alucinógenos que causam um efeito intoxicante por prazer, modificando as percepções, sentimentos e emoções do usuário.” 354 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) perspectiva de saúde pública sobre a natureza problemática do marketing direto ao consumidor (CONRAD; LEITER, 2008; EBELING, 2011; MINTZES, 2012; DUKES; BRAITHWAITE; MOLONEY, 2015). Os estudiosos de publicidade analisaram a confiança, a credibilidade e as ações de saúde subsequentes daqueles que veem anúncios on-line nos EUA. Uma pesquisa no sudeste dos EUA concluiu que a maioria dos entrevistados aceita informações on-line até certo ponto, mas os níveis gerais de confiança são baixos. Quando a confiança é significativa, ela é associada à confiança em outras mídias. Ela geralmente é seguida por certos comportamentos promovidos por anúncios, e por discussões com médicos e outras pessoas sobre os medicamentos (HUH; DELORME; REID, 2005). Outro estudo, realizado por Kim (2011) por estudantes de graduação, constatou que as informações on-line fornecidas por uma empresa farmacêutica corporativa (Pfizer) eram vistas como igualmente credíveis em relação conteúdo de uma agência governamental (National Institutes of Health – NIH). Segundo Fogel e Novick (2009), os anúncios on-line direto ao consumidor, motivaram estudantes universitários dos EUA a buscar mais informações sobre os produtos farmacêuticos em comparação com outras mídias. Ao contrário dos pesquisadores de publicidade, estudos de sociólogos e investigadores de saúde pública enfatizam os interesses econômicos da publicidade direta ao consumidor. Alguns exemplos podem ser dados neste sentido. Mintzes (2012), analisou como os sites das principais empresas farmacêuticas e de medicamentos, largamente anunciados, não conseguem explicar como um determinado tratamento provavelmente funciona. Porém, eles exigem mais cliques para ver informações sobre riscos e raramente mencionam o custo dos tratamentos. No estudo de Mintzes (2012), o custo médio por paciente no varejo foi de US$ 1559, para o qual normalmente existem alternativas mais baratas. Ebeling (2011) destaca que os dez medicamentos mais vendidos com receita médica usaram listas de verificação de sintomas para autodiagnóstico a fim de promover o uso dos medicamentos. Para estender a patente do medicamento, a empresa farmacêutica norte-americana Eli Lilly renomeou a fluoxetina como um tratamento para o distúrbio disfórico pré-menstrual, substituindo o nome Prosac por Sarafem. Ela empregou o mesmo psiquiatra clínico, que foi fundamental para classificar a condição de saúde como um transtorno depressivo tratável, para desenvolver a nova lista de verificação de sintomas on-line do medicamento renomeado (EBELING, 2011). Nos EUA, existem agências nos níveis federal e estadual responsáveis por fazer cumprir as leis que regem a venda e o marketing de medicamentos pela internet (GAO, 2013). A agência Food and Drug Administration (FDA) supervisiona todas as facetas dos medicamentos prescritos, incluindo testes, fabricação, rotulagem, segurança, eficácia e marketing. Desde a chegada das farmácias na internet, a FDA Internet e Saúde 355 tem que trabalhar em colaboração com várias agências, empresas privadas e organizações internacionais para policiar os mercados on-line (CHANDRA; CUPPS, 2002). A Lei Ryan Haight de Proteção ao Consumidor de Farmácias On-line de 2008 (US, DEPARTMENT OF JUSTICE 2008) regula a distribuição e dispensação de substâncias controladas na internet, que corresponde a cerca de 10% do mercado de medicamentos controlados nos EUA. Essa lei foi batizada com o nome de um jovem de 18 anos que morreu de overdose de Vicodin® comprado on-line. Ela determina que todas as empresas que vendem substâncias controladas on-line sejam registradas e autorizadas pela Drug Enforcement Agency (DEA), que é responsável pela aplicação da legislação neste campo. A Lei Ryan Haight também proíbe empresas localizadas fora dos EUA de obter registros; torna ilegal a importação de substâncias controladas pelos consumidores; e estipula o que constitui uma receita legal. A lei, por exemplo, estipula os requisitos para prescrições baseadas em telemedicina. Existe outra agência de execução denominada Customs and Border Protection (CBP)15. Ela é responsável por apreender mercadorias importadas ilegalmente, incluindo medicamentos controlados não autorizados e outras substâncias controladas. No nível estadual, os farmacêuticos e as farmácias devem ter uma licença para operar, bem como cumprir as regras e regulamentos descritos pelos conselhos estaduais de farmácia. Embora não possua o poder de lei, também existem formas de regulamentação privadas (GAO, 2013). A Associação Nacional dos Conselhos de Farmácia (National Association of Boards of Pharmacy - NABP16) estabeleceu os Sites de Prática Verificada de Farmácia na internet (Verified Internet Pharmacy Practice Sites VIPPS). Trata-se de um programa de credenciamento projetado para ajudar o público a identificar farmácias on-line legítimas. Em 2013, eles criaram um novo nome de domínio de nível superior, .pharmacy17, para sites credenciados. Uma outra iniciativa, o LegitScript18, permite que os consumidores insiram endereços eletrônicos para verificar se determinada farmácia on-line está ou não certificada por esta empresa. A Federação dos Conselhos Estaduais de Médicos (Federation of State and Medical Boards)19 também desenvolveu diretrizes sobre como a tecnologia digital deve apoiar, em vez de substituir, a relação médico-paciente. Por fim, o Centro para as Farmácias Seguras na Internet (Center for Safe internet Pharmacies)20 e a Coalizão Internacional contra a Falsificação (International AntiCounterfeiting Coalition)21 têm trabalhado com empresas de apoio, como registradores de internet, 15 Disponível em: https://www.cbp.gov/. Disponível em: https://nabp.pharmacy/. 17 Disponível em: https://nabp.pharmacy/programs/dotpharmacy/. 18 Disponível em: https://www.legitscript.com/. 19 Disponível em: https://www.fsmb.org/. 20 Disponível em: https://safemedsonline.org/. 21 Disponível em: https://www.iacc.org/. 16 356 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) mecanismos de pesquisa, empresas de cartão de crédito e processadores de pagamentos, para negar serviços a farmácias não autorizadas. A Lei Ryan Haight parece ter favorecido o declínio da venda ilegal de substâncias controladas pela internet (GAO, 2013; LEGITSCRIPT, 2016). Alguns sucessos incluem investigações da FDA de farmácias clandestinas que resultaram em 219 condenações e US$ 76 milhões em multas (GAO, 2013). As agências reguladoras dos EUA também investigaram empresas legalizadas suspeitas de disseminar informações não aprovadas (GAO, 2013; DUKES; BRAITHWAITE; MOLONEY, 2015). O FDA chegou a um acordo de US$ 500 milhões com a empresa Google por aceitar anúncios de farmácias canadenses que se ofereciam para vender medicamentos a clientes nos EUA. A agência também emitiu avisos à Novartis por compartilhar informações sobre seu medicamento para leucemia, Tasigna® (nilotinib), nas mídias sociais sem comunicar riscos à saúde e por fornecer informações falsas e enganosas sobre outro medicamento de marca conhecido como Gleevec® (imatinib). 3. Visão geral do mercado de medicamentos baseados na internet no Brasil O Brasil se tornou em 2015 o sétimo maior mercado farmacêutico do mundo, com vendas estimadas em R$ 45 bilhões de reais (cerca de US$ 13 bilhões). A Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma) estimava naquela época um crescimento do setor. O aumento do consumo está ligado a vários fatores estruturais, como o envelhecimento da população e o acesso mais amplo a bens de consumo. Além disso, a automedicação influencia tal crescimento (INTERFARMA, 2016). O crescente número de usuários da internet tem levado a um aumento na demanda por farmácias virtuais brasileiras (GONDIM; FALCÃO, 2007). Não foram identificadas fontes de informação sobre quantos consumidores usam adequadamente informações de saúde ou dados sobre quantas compras de medicamentos são feitas pela internet com ou sem receita médica. Apesar da ampla regulamentação no setor, existem problemas significativos na venda e compra de medicamentos. Para começar, há incerteza sobre o número de farmácias em todo o país, com estimativas variando de 60.000 a 70.000. Outros problemas incluem a presença de medicamentos falsificados ou com baixa qualidade e farmácias que não cumprem totalmente a legislação vigente (IVAMA, 2005). As dificuldades também englobam a supervisão dos estabelecimentos locais. Tal atividade é responsabilidade das autoridades municipais de saúde, que enfrentam Internet e Saúde 357 problemas políticos e financeiros e possuem equipes de inspeção insuficientemente treinadas. Em relação às farmácias virtuais as informações sobre como conduzir os procedimentos de vendas para empreendedores (SEBRAE, 2015a; 2015b; ANFARMAG, 2016) e para pacientes (IDEC, 2017) estão prontamente disponíveis. Gondim e Falcão (2007) destacam que o aumento da compra de medicamentos on-line pode levar a um acesso mais fácil a medicamentos não registrados e a um menor controle sobre a venda de medicamentos controlados, facilitando o uso inadequado e indiscriminado desses produtos. Esse uso pode expor as pessoas a vários riscos à saúde, como ineficácia terapêutica, preocupações com a segurança dos remédios, reações adversas, envenenamento e interações perigosas. Os autores apontam a crescente necessidade de melhor regulamentação dessa nova modalidade na comercialização de medicamentos (GONDIM; FALCÃO, 2007). Estudos acadêmicos sobre o comércio varejista de medicamentos controlados, hábitos e práticas do consumidor, bem como sobre a corrupção que poderia potencialmente explicar vários problemas relacionados, são raros no Brasil (BASTOS e CAETANO, 2010). Em relação a compra de medicamentos na internet há também pouca produção científica. Por outro lado, houve um aumento geral nas vendas on-line (G1, 2016). Os fatores que justificam este crescimento estão associados à conveniência de redução de deslocamento até o estabelecimento e à possibilidade de fazer compras a qualquer momento, além da chance de adquirir produtos não disponíveis no país. A mídia tem relatado vários casos de fraude tributária, bem como produtos de saúde abaixo do padrão e falsificados (JORNAL I, 2013; FLÁVIO, 2015; UOL NOTÍCIAS, 2015; JORNAL DE NOTÍCIAS, 2016; 2017; SILVA, 2017; PORTAL CORREIO, 2017). Sabe-se que violações à legislação que regulamenta produtos de saúde são comuns, resultando na venda de produtos vencidos, sem receita médica, falsificados e que não atendem aos padrões de qualidade exigidos por lei. Portanto, não é difícil imaginar que a venda de medicamentos on-line também viole as normas estabelecidas. Um estudo que analisou 18 farmácias virtuais encontrou irregularidades em 15 delas (GONDIM; FALCÃO, 2007). Geralmente, é bastante fácil comprar medicamentos sem receita médica na internet, e é muito difícil saber a quem se dirigir para procurar orientação farmacêutica. As leis brasileiras que regem o comércio de produtos farmacêuticos e a vigilância em saúde datam de 1973 (BRASIL, 1973). A legislação define os tipos de estabelecimentos no comércio atacadista e varejista, sua organização, atividades e tipos de produtos que cada um teria permissão para comercializar (por exemplo, alopáticos, homeopáticos, industrializados ou manipulados de acordo com as necessidades de consumidores específicos). Embora essa lei permaneça em vigor, vários esforços regulatórios mais recentes buscaram atualizar diferentes aspectos da estrutura legal do país. Nesse sentido, é importante mencionar a Lei n° 13021/2014 358 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) (BRASIL, 2014), que regulamenta os serviços farmacêuticos. Tais serviços são definidos no Capítulo I, Artigo 2º como: “o conjunto de ações e serviços que visem a assegurar a assistência terapêutica integral e a promoção, a proteção e a recuperação da saúde nos estabelecimentos públicos e privados que desempenhem atividades farmacêuticas, tendo o medicamento como insumo essencial e visando ao seu acesso e ao seu uso racional” (BRASIL, 2014). . O marco regulatório referente a medicamentos e serviços farmacêuticos é determinado, nessa ordem hierárquica decrescente, pelas leis e decretos aprovados pelo Legislativo e sancionados pelo Executivo; pelos regulamentos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA); e pelos regulamentos do Conselho Federal de Farmácia (CFF). Algumas abordagens ou interpretações dos regulamentos criados e promulgados por esses órgãos às vezes entram em conflito com os proprietários de farmácia e os farmacêuticos. A aplicação das leis do país que regem os medicamentos sempre levanta dúvidas se os requisitos são aplicáveis a todos os tipos de estabelecimentos, sejam eles públicos ou privados. Vale mencionar algumas características específicas do comércio varejista de medicamentos no país. Uma é que as farmácias privadas respondem por 71% do valor total do mercado farmacêutico (LUIZA et al., 2018). Outra é a magnitude de medicamentos dispensados gratuitamente aos usuários finais em unidades públicas de saúde, seja em estabelecimentos específicos para a dispensação de medicamentos ou, mais comumente, em unidades de saúde. O SUS, apesar dos registros de problemas estruturais e de disponibilidade, é a principal fonte de obtenção de medicamentos de uso crônico pela população (LUIZA et al., 2018). A distribuição ambulatorial de medicamentos pode ocorrer em unidades de diferentes níveis de complexidade. Outra questão é o tamanho e a diversidade dos dispensários públicos. Assim, os estabelecimentos farmacêuticos incluem, por exemplo, postos de medicamentos – unidades de pequeno tamanho e complexidade –, e até aviões e barcos que servem áreas remotas. Como nos Estados Unidos, os medicamentos devem ser vendidos mediante receita médica, exceto aqueles listados como permitidos para venda sem receita no balcão, denominados Over-the-Counter (OTC) ou medicamentos isentos de prescrição (MIPE). A lei define regulamentos específicos para ambos os grupos, incluindo o tamanho da embalagem de vendas, bulas, amostras grátis e a proibição de publicidade ao público leigo de medicamentos prescritos. Em 2009, a ANVISA estabeleceu Boas Práticas Farmacêuticas (BRASIL, 2009) regulamentando a operação, dispensação e comercialização de produtos e a prestação de serviços farmacêuticos em farmácias e drogarias. Alguns desses Internet e Saúde 359 aspectos estão presentes na legislação desde 1973, mas a ANVISA os clarificou nas regras de 2009. Por exemplo, farmácias e outros locais que dispensam medicamentos devem ter um farmacêutico presente, responsável por fornecer serviços farmacêuticos para apoiar os usuários no uso apropriado de medicamentos (BRASIL, 2009). Essa mesma legislação regula pela primeira vez a venda remota de medicamentos (por exemplo, telefone, fax e internet) (BRASIL, 2009): uma prática já utilizada por algumas farmácias na época de sua publicação (E-COMMERCE NEWS, 2015). Nesses casos, não há proximidade física entre o comprador e o vendedor de medicamentos. As regras estipulam que apenas empresas com lojas físicas podem vender medicamentos por esses meios e não têm permissão para vender produtos sujeitos a controle especial. Além dos produtos psicoativos, outros medicamentos, como antibióticos, retinóides e anabolizantes, estão sujeitos a um controle especial nos diferentes estágios da cadeia de medicamentos (ou seja, produção, distribuição e comercialização ou dispensação). A lei também estipula que as farmácias incorporem os custos de entrega no preço de varejo; forneçam condições adequadas para o transporte de medicamentos; mantenham a confidencialidade dos dados do consumidor; e não usem as informações do consumidor para enviar anúncios (BRASIL, 2009). Em comparação com o mercado americano, que permite as empresas estabelecer preços, o Brasil possui controles muito mais extensos. A ANVISA estabelece preços máximos para vendas ao consumidor (Preço Máximo ao Consumidor - PMC) para cada produto. Conforme demonstrado pelo Instituto de Defesa do Direito do Consumidor (IDEC, 2012), uma organização de proteção ao consumidor, além da grande variação de preços de um estabelecimento para outro, a grande maioria dos fornecedores pratica valores abaixo do PMC. Os dados oferecidos por esta organização em 2012 revelam uma falha na legislação, uma vez que colocaria os PMCs muito altos, dando às empresas farmacêuticas muito espaço para definir preços em detrimento do consumidor. Devido à assimetria de informação, o consumidor geralmente não possui conhecimento suficiente para uma pesquisa adequada. A lei brasileira sobre medicamentos genéricos exige que os produtos sejam comercializados por seus nomes internacionais não proprietários (Denominação Comum Brasileira – DCB, tradução oficial da Denominação Comum Internacional). Ela também define que, mesmo em medicamentos de marca, a DCB deve ser apresentada na embalagem externa em tamanho visível. No entanto, a grande desigualdade social e a deficiente alfabetização em saúde (literacia) dificultam o uso adequado dessas informações pelos usuários. Outro uso importante da internet no Brasil é a pesquisa de preços. Esta ferramenta também é empregada por órgãos governamentais que compram medicamentos. Existem bancos de dados públicos, bem como bancos de dados 360 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) privados. O Sistema Integrado de Administração de Serviços Gerais (SIASG) é público, disponibilizado pelo governo federal, no qual é possível ver os preços de compra das transações concluídas. Algumas empresas privadas, como a Consulta Remédios22, oferecem acesso a informações de preços. No Brasil, a automedicação é generalizada (SERVIDONI et al., 2006). Porém, dados nacionalmente representativos continuavam escassos até 2013 quando foi realizada a Pesquisa Nacional sobre Acesso, Utilização e Promoção do Uso Racional de Medicamentos no Brasil –PNAUM23 (UFRGS, 2020). Seus resultados permitiram avaliar a situação da automedicação no país como uma questão relevante, identificar os riscos inerentes (por exemplo, intoxicações por medicamentos e efeitos adversos), e possíveis aumentos nas despesas de saúde associadas. Arrais et al (2016) concluíram que os dados desta pesquisa indicam a prevalência geral de automedicação foi de 16,1%, variando de 11,4% a 23,8%, respectivamente nas regiões Sul e Nordeste do país Este problema é antigo. Souza, Marinho e Guilam (2008) haviam publicado antes da PNAUM um artigo em que destacavam que entre as causas do uso indiscriminado de medicamentos pela população, principalmente a automedicação, estão: a multiplicidade de produtos farmacêuticos no mercado e sua publicidade massiva; as barreiras da população de baixa renda aos serviços médicos; as campanhas limitadas para aumentar a conscientização sobre os problemas de saúde da automedicação; e o papel dos meios de comunicação de massa, incluindo a internet, na disseminação de informações sobre medicamentos. Os autores também apontam que sites e grupos de discussão, especialmente aqueles destinados a discutir doenças, são os principais responsáveis pela promoção da automedicação na internet. Muitas vezes, informações como indicação e posologia estão disponíveis, permitindo que um indivíduo inicie o tratamento sem consultar previamente um médico ou mesmo sem ter um diagnóstico correto. Souza, Marinho e Guilam (2008) também relataram uma pesquisa realizada entre estudantes universitários do Rio Grande do Sul que usam drogas para melhorar sua capacidade cognitiva. Nela, é destacado que a internet é cada vez mais influente nesse processo, sendo listada pelos entrevistados como o quinto fator em sua decisão de automedicar. Ainda assim, a pesquisa revelou que as informações coletadas no mundo virtual são menos influentes do que as informações de familiares, amigos ou outros usuários sobre o uso de medicamentos sem a supervisão de um médico. No entanto, os resultados indicam que a internet vem ganhando cada vez mais espaço, porque muitos dos fatores considerados 22 Disponível em: https://consultaremedios.com.br/. Pesquisa Nacional sobre Acesso, Utilização e Promoção do Uso Racional de Medicamentos no Brasil (PNAUM) foi instituída pela Portaria Nº 2.077, de 17 de Setembro de 2012 do Gabinete do Ministro da Saúde, levando em consideração a necessidade de avaliar as políticas públicas de assistência farmacêutica no Brasil. 23 A Internet e Saúde 361 influentes pelos entrevistados são mediados pelo mundo virtual (SOUZA; MARINHO; GUILAM, 2008). A qualidade da informação também é um problema que merece atenção24. Gondim, Weyne e Ferreira (2012) compararam a qualidade das informações em sites sobre saúde em geral e sites específicos para medicamentos. Os resultados foram semelhantes nos critérios de “acesso, aparência e organização” (Gondim, Weyne e Ferreira, 2012). Na categoria de “visibilidade de publicação ou revisão” (Gondim, Weyne e Ferreira, 2012), os sites de informações sobre medicamentos obtiveram pior classificação. Porém, os sites de informações sobre medicamentos tiveram um desempenho pior, de acordo com os critérios de “honestidade, transparência e responsabilidade”. Além do acesso a medicamentos e informações farmacêuticas por leigos, a internet trouxe algumas mudanças à vida dos profissionais de saúde que trabalham com medicamentos diariamente. Pereira et al. (2016) acompanharam a implementação de um aplicativo para smartphone que auxilia enfermeiros no cálculo dos medicamentos dados aos seus pacientes. O estudo concluiu que o uso de aplicações na operacionalização do trabalho de enfermagem apresentou resultados satisfatórios para incentivar a aprendizagem dos estudantes de enfermagem. Os autores enfatizam a otimização do uso do tempo, embora reforcem a importância de os alunos aprenderem como os cálculos são feitos e como as fórmulas são elaboradas. No tema medicina e internet, a pesquisa sobre a relação entre drogas e redes sociais digitais permanece limitada. Apenas dois artigos abordando esse tema foram identificados no Brasil. O primeiro analisa comunidades virtuais não terapêuticas do Benflogin® entre adolescentes que acessam a rede social on-line. O produto, um medicamento anti-inflamatório com o ingrediente ativo benzidamida, tem sido utilizado recreativamente por adolescentes por seu efeito alucinógeno em altas doses. Os autores concluíram que uma comunidade virtual organizada em torno da discussão do uso não terapêutico de um medicamento pode contribuir para a promoção de seu uso, principalmente em jovens (SOUZA; MARINHO; GUILAM, 2008). O outro estudo analisou a relação entre o metilfenidato e as redes sociais digitais. Nele, os dados foram coletados por meio da aplicação de software de extração de dados, a fim de mapear informações sobre o uso desse medicamento na plataforma Facebook. O conteúdo acessível ao público foi analisado e categorizado, a partir da literatura sobre o tema da farmaceuticalização. O mapa de dados mostrou que o Facebook oferece importantes espaços virtuais para a circulação de informações, com alcance de aproximadamente 600.000 pessoas. Os espaços representam fóruns de discussão nos quais se colocam as principais controvérsias sobre os usos do Metilfenidato: 24 O diagnóstico, identidade do transtorno de déficit tema da avaliação da qualidade da informação em sites de saúde será abordado no capítulo 9. de 362 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) atenção/hiperatividade (TDAH), resistência ao uso de drogas, aquisição etc. Considerando os principais pontos levantados por esse estudo, é possível afirmar que, no caso do consumo de metilfenidato, seu uso apresenta aspectos da farmaceuticalização da vida cotidiana (COUTINHO; ESHER; OSORIO-DECASTRO, 2017). 4. Similaridades digitais mas distintas realidades quanto aos medicamentos baseados na internet Os casos dos Estados Unidos e do Brasil revelam o crescente uso da internet para mediar informações, acessar e utilizar medicamentos, prescritos e vendidos sem receita, por consumidores e fornecedores. A nosso ver, até o momento, a literatura acadêmica sobre o assunto é muito mais focada nos Estados Unidos do que no Brasil. Ainda assim, existem diferenças entre os dois países, devido ao seu tamanho, infraestruturas médicas e particularidades de cada mercado. Uma grande diferença é a quantidade de atenção da literatura norte-americana sobre farmácias on-line ilícitas ou clandestinas. Embora a fraude e os medicamentos abaixo do padrão, juntamente com o uso de produtos sem receita médica, continuem sendo uma preocupação no Brasil, a ênfase dos EUA nas farmácias virtuais ilegais chama a atenção para as características únicas do mercado e da produção científica nos EUA. Com alguns dos preços mais altos de medicamentos do mundo e lacunas na cobertura de seguro, o acesso continua sendo um problema nos EUA. No Brasil, por outro lado, como mencionado acima, muitos medicamentos são distribuídos gratuitamente no sistema público de saúde. Entretanto o acesso também é um problema em todo o Brasil. Apesar disso, o país oferece lições importantes aos EUA para abordar essa questão. Uma delas está relacionada com o acesso aos medicamentos essenciais. A maior parte da literatura dos EUA sobre farmácias online sugere mais campanhas informativas para educar o público e os prestadores de cuidados de saúde sobre os riscos envolvidos nas farmácias ilícitas (FDA, 2013; LEGITSCRIPT, 2016). A cobertura universal de medicamentos essenciais, como a realizada no Brasil, poderia garantir o acesso e eliminaria parte do mercado paralelo ocupado por farmácias virtuais clandestinas raramente aparece como recomendação política na literatura. Outra lição está relacionada com a regulação dos preços dos novos medicamentos que entram no mercado de varejo que existe no Brasil. Essa prática também poderia ser adotada nos EUA para reduzir as preferências do consumidor por opções mais baratas de vendedores on-line de procedência desconhecida. Alguns cidadãos norte-americanos, que são cobertos pelo Medicare, adquirem medicamentos em farmácias canadenses on line. Um estudo demonstrou Internet e Saúde 363 que nestes ambientes eles encontram preços mais baixos. Por isso, o uso desses dispensários on-line pode representar uma maneira de lidar com barreiras de custos que existe nos USA (KIM et al., 2017). Obviamente, a segurança é uma questão muito importante (LIVINGSTONE, 2011; GONDIM; WEYNE; FERREIRA, 2012), e os estudos sobre acesso de medicamentos na Internet devem ser complementados por aqueles sobre o uso adequado de medicamentos, qualidade da informação e alfabetização da internet. As diferenças entre os EUA e o Brasil também se estendem à regulamentação da venda de medicamentos on-line. Ambos os países têm estruturas jurídicas robustas e comparáveis para governar a prescrição, venda e dispensação de medicamentos. Porém, elas diferem em termos de comercialização de medicamentos controlados com potencial de abuso (por exemplo, medicamentos psicoativos, anabólicos e retinóides). O Brasil restringe as vendas de medicamentos controlados por telefone, fax ou internet. Nos EUA a Lei Ryan Haight especifica as condições de sua venda on-line, incluindo o uso de telemedicina. Além disso, há um amplo foco na legislação e aplicação da lei dos EUA no combate às farmácias on-line clandestinas. Outra grande diferença entre os EUA e o Brasil é a interseção da internet com a publicidade direta ao consumidor. Ela é legal e generalizada nos EUA, mas ilegal para medicamentos prescritos no Brasil que segue as diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS). Huh, Delorme e Reid (2005) resumem os três benefícios que os defensores atribuem às informações on-line sobre medicamentos controlados. Segundo eles a publicidade direta ao consumidor: (1) “empodera os consumidores, melhorando sua compreensão de assuntos relacionados à saúde e sua capacidade de participar ativamente dos cuidados de saúde; (2) fornece uma ampla gama de informações de saúde com privacidade e agilidade; e (3) permite o anonimato relativo, onde os consumidores podem recuperar, enviar e discutir informações sobre doenças, tratamentos e medicamentos”. (HUH; DELORME; REID, p. 712, tradução nossa). Esses benefícios têm mérito na medida em que as informações são apresentadas para educar o público sobre os riscos e benefícios do uso de medicamentos prescritos. O problema é que as oportunidades digitais para democratizar as informações resultam na reprodução de disparidades de poder na sociedade por meio do marketing DTC e na promoção de um modelo medicalizado, ou melhor ainda, farmaceuticalizado, para abordar as preocupações cotidianas. Em termos de poder discursivo, a internet exacerba o que Brody e Light (2011, tradução nossa) chamam de “lei de benefícios inversos”. Em outras palavras, “a proporção de benefícios e danos entre pacientes que tomam novos medicamentos 364 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) tende a variar inversamente com a extensão em que drogas são comercializadas” (BRODY; LIGHT, 2011, p. 399, tradução nossa). Estendendo esse conceito ao mundo on-line, a internet oferece aos profissionais de marketing meios adicionais para promover medicamentos que podem resultar em mais reações adversas. De fato, estudos de medicamentos acessados pela internet sugerem que os consumidores têm mais dificuldade em fazer a seleção de produtos devido à maneira “como as informações são fornecidas e à escassez de informações comparativas sobre eficácia da droga e efeitos adversos” (HUH; DELORME; REID, 2005, p. 712, tradução nossa). Para Ebeling (2011) o uso de diagnósticos on-line que canalizam os usuários para tratamentos medicamentosos não é um substituto ideal ao apoio presencial que pode obter na farmácia, já que esse tipo “é precisamente o tipo de cliente que os profissionais de marketing farmacêutico querem” (EBELING, 2011, p. 826, tradução nossa). O resultado é “iatrogênese digital” (MACKEY; LIANG, 2014). Isto é, a maioria dos novos medicamentos oferece vantagens limitadas ou nenhuma em relação aos tratamentos existentes, mas expõem as populações a riscos adversos significativos, resultando em uma estimativa de 3,75 milhões de hospitalizações em todo o mundo e mais de 100.000 mortes anualmente apenas nos EUA (LIGHT, 2009). A extensão mundial da Web apresenta desafios regulatórios significativos na provisão de informações com objetivos de subsidiar políticas de de saúde pública (FOX; WARD; O’ROURKE, 2006; DUKES; BRAITHWAITE; MOLONEY, 2015). Com a publicidade DTC legal dos medicamentos prescritos nos EUA (e na Nova Zelândia), os consumidores são suscetíveis a fontes questionáveis e tendenciosas de informações sobre medicamentos controlados. Dukes, Braithwaite e Moloney (2015) concluem: Até o momento, não foram encontrados meios satisfatórios para excluir a promoção inadequada e mascarada da internet, especialmente quando emana de outros países, sem prejudicar o valor da mídia em possibilitar a disponibilidade gratuita de informações genuínas. (DUKES; BRAITHWAITE; MOLONEY, 2015, p. 145, tradução nossa). Os sistemas de comunicação por meio digital também se estendem aos médicos, a quem a maioria dos anunciantes espera chegar. Em 2016, mais da metade da divulgação de marketing para médicos já ocorria por meio de comunicação digital não pessoal (BULIK, 2016). Mesmo havendo controles adequados sobre a promoção de medicamentos, a internet continuará a facilitar uma predisposição cultural mais profunda para intervenções farmacêuticas fáceis para lidar com as doenças cotidianas. Nesse sentido, tanto os EUA quanto o Brasil têm esse traço em comum. À medida que o uso Internet e Saúde 365 da internet aumenta e que as pessoas recorrem a esse meio para obter informações sobre seus problemas pessoais, a pesquisa biomédica por soluções provavelmente aumentará. Essa farmaceuticalização também se estende aos chamados pacientes informados, conforme ilustrado pelos discursos biomédicos de pessoas com sobrepeso que tem dependência do medicamento orlistate para perda de peso em fóruns on-line (FOX; WARD; O’ROURKE, 2005). Nesse sentido, os meios de comunicação social permitem a circulação de informações de uma maneira muito mais dinâmica e, portanto, desafiam ainda mais o conhecimento científico anteriormente monopolizado por médicos e outros profissionais da área médica. 5. Conclusão Embora ofereça vantagens únicas para as pessoas adquirirem conhecimento sobre doenças e medicamentos, a internet também apresenta uma série de desafios. As oportunidades on-line podem atrapalhar as redes de distribuição tradicionais, bem como os fluxos de informações. Conforme as tecnologias digitais oferecem novas possibilidades e riscos de acesso, grupos de defesa de pacientes e consumidores continuam se mobilizando. O Instituto de Prescrição Justa – (Prescription Justice Institute) é um dos grupos mais ativos neste campo. Ele conseguiu promulgar na reunião internacional da RightsCon25 realizada em Bruxelas em 2017 os “Princípios de Bruxelas sobre Vendas de Medicamentos pela Internet26”. Essa organização sem fins lucrativos, sediada em Nova York, defende que o acesso a medicamentos seguros e eficazes seja considerado um direito humano à saúde (GOLDMAN, 2017). Embora reconheça problemas com farmácias on-line clandestinas, vale a pena destacar alguns dos princípios descritos neste documento, a saber: • “Pacientes com receita médica devem poder usar a Internet para solicitar produtos médicos seguros, de qualidade e acessíveis para uso pessoal. • As políticas que afetam o acesso on-line a produtos médicos devem procurar ser baseadas em evidências e centradas no paciente, incluindo a consideração do fato de que a acessibilidade e disponibilidade local podem ser barreiras significativas ao acesso. (PRESCRIPTION INSTITUTE, 2017, tradução nossa) 25 Disponível 26 Disponível em: https://www.rightscon.org/. em: https://www.brusselsprinciples.org/. JUSTICE 366 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Esse grupo tende a se concentrar no acesso diferenciado ao tratamento devido aos níveis de renda de indivíduos e países, compostos por disparidades exorbitantes nos preços encontrados em diferentes mercados nacionais. A importância de níveis adequados de atendimento farmacêutico é uma lacuna no documento promulgado em Bruxelas. Mas, mesmo nesse tema, existem inovações interessantes ePharmacare27, fornecidas pela internet, incluindo a plataforma que “muda o foco da venda de produtos para a prestação de serviços” (LAPÃO; SILVA; GREGÓRIO, 2017, p. 12, tradução nossa). No entanto, mesmo nesses casos, é importante que as tecnologias baseadas na internet para serviços farmacêuticos atendam às disparidades na comunicação em saúde entre grupos sociodemográficos (DELORME; HUH; REID, 2010; MORENO et al., 2016). São necessárias mais pesquisas para entender os vários impactos da internet e das mídias sociais no acesso e no uso adequado de medicamentos essenciais. Essa necessidade é especialmente aparente nos países de renda média e baixa, onde a internet está rapidamente penetrando no cotidiano de novos grupos sociais. A análise de literatura apresentada neste capítulo delineou a realidade farmacêutica digital realizando uma comparação entre EUA e Brasil, onde foram destacadas diferenças e semelhanças em termos de acesso, fluxos de informações e desafios regulatórios. Referências ANFARMAG – Associação Nacional de Farmacêuticos Magistrais. Dispensação Remota de Produtos Farmacêuticos. CRFSP, São Paulo, jun. 2016. Disponível http://portal.crfsp.org.br/images/stories/2016/06_16/anfarmag.pdf. em: Acesso em: 25 jun. 2020. ARRAIS, P. S. D. et al. Prevalência da automedicação no Brasil e fatores associados. Revista de Saúde Pública, v. 50, supl. 2, 13s. 2016. BACHHUBER, M. A.; MERCHANT, R. M. Buying Drugs Online in the Age of Social Media. American Journal of Public Health, v. 107, n. 12, p. 1858–1859, 2017. BASTOS, C. R. G.; CAETANO, R. As percepções dos farmacêuticos sobre seu trabalho nas farmácias comunitárias em uma região do estado do Rio de Janeiro. 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Capítulo 13 E-learning e problematizadoras: pedagogias uma experiência brasileira em ensino de Monitoramento e Avaliação Elizabeth Moreira dos Santos*, Gisela Cardoso e Dolores Abreu Resumo O objetivo deste capítulo é analisar três iniciativas de e-learning desenvolvidas pelo Laboratório de Avaliação de Situações Endêmicas Regionais (LASER), da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) (Rio de Janeiro, Brasil). A análise é baseada em três turmas de um curso de especialização de Avaliação em Saúde, no formato Educação a Distância (EAD), realizadas graças à cooperação técnica estabelecida entre a ENSP/Fiocruz e o Ministério da Saúde (MS). Com destaque para os desafios encontrados no uso de metodologias pedagógicas ativas, s iniciativas comprovam o e-learning como viabilizador do acesso à informação e à capacitação. A experiência indica que essa forma de ensino em M&A em saúde representa uma importante contribuição para a incorporação de práticas e saberes junto aos profissionais que atuam no Sistema Único de Saúde (SUS). Entretanto, persistem importantes desafios teóricos e práticos críticos, seja do ponto de vista da abordagem pedagógica, da especificidade dos conteúdos em M&A, das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) envolvidas e de fatores do contexto institucional. Palavras-chave: Avaliação em Saúde; Educação a Distância; Pedagogia. Referência: SANTOS, E. M.; CARDOSO, G.; ABREU, D. E-learning e pedagogias problematizadoras: uma experiência brasileira em ensino de Monitoramento e Avaliação. In: PEREIRA NETO, A.; FLYNN, M. (orgs.). Internet e saúde no Brasil: desafios e tendências. 1 ed. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2020. p. 375-401. * Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz/Instituto de Estudos de Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]. Internet e Saúde 377 Introdução O objetivo deste capítulo é descrever uma experiência brasileira com a utilização de e-learning1 na capacitação em Monitoramento e Avaliação (M&A), por meio de propostas pedagógicas ativas. Esse tipo de abordagem inclui o desenvolvimento de novas competências profissionais que possibilitem condições de gerar operações de “translação do conhecimento” (CLAVIER et al., 2011), construir redes sociotécnicas (LATOUR, 1996) e agir criticamente na transformação da realidade social na busca de social betterment (MARK; HENRY; JUNES, 2000). O foco é, assim, a análise da experiência de desenvolvimento e implementação de um curso de especialização na modalidade Educação à Distância, em suas três turmas. A iniciativa foi realizada pelo Laboratório de Avaliação de Situações Endêmicas Regionais (LASER), da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Para alguns, os cursos de especialização em elearning no Brasil seriam melhor classificados como semipresenciais, uma vez que os dispositivos legais do país, em especial a Resolução n° 1 do Conselho Nacional de Educação de 2007, requerem para essa modalidade a existência de encontros presenciais para a realização de prova e para a defesa do trabalho de conclusão do curso (TCC) (BRASIL, 2007). O M&A constitui prioridade para a melhoria dos sistemas de saúde devido ao decrescente volume de recursos destinados à implementação de intervenções em saúde pública no Brasil (BRASIL, 2014a). Há a necessidade de acompanhamento de seu desempenho e efetividade em resposta às imposições de accountability pública (OECD, 2016), além da demanda de usuários cada vez mais bem informados e exigentes. O cenário de complexidade dos problemas e das intervenções em saúde requer a produção de respostas integradas, condizentes com o cotidiano das práticas, inovações tecnológicas e novos valores e direitos em saúde. O M&A como ferramenta reflexiva é indispensável para responder ao dinamismo dos cenários e à complexidade das intervenções. A Educação à Distância (EAD) é um termo abrangente utilizado para designar a separação física entre o professor e aluno no processo de ensinoaprendizagem. Essa definição remete às origens do ensino a distância por material impresso, previamente compreendida como ensino por correspondência. Hoje, ela combina experiências de ensino-aprendizado baseadas tanto em tecnologias diversas quanto em interação humana, incluindo o uso de telefone, videoconferência, CDRom, teleconferências e diferentes mediações por computador (RUHE; ZUMBO, 2009). Com o desenvolvimento e consolidação da World Wide Web, as Novas 1 O capítulo 14 aborda o tema dos Massive Open Online Courses (MOOCs). 378 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Tecnologias de Informação e Comunicação (NTICs) têm contribuído para facilitar a arquitetura do processo de ensino e aprendizagem, marcando a imbricação entre elearning e Educação a Distância (RUHE; ZUMBO, 2009). E-learning é uma expressão que se refere a formas de aprendizagem em ambientes virtuais. Descreve, assim, um conjunto de iniciativas mediadas pelas Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTICs), incluindo experiências presenciais, semipresenciais e a distância (STRUCHINER; CARVALHO, 2014). Essas iniciativas permitem ainda que diferentes camadas da população, que dominam as NTICs, tenham acesso e compartilhem um determinado conhecimento em qualquer tempo e lugar. Podem também ser tomadas como processos de inclusão digital, uma vez que a problematização de temáticas mobilizadoras alavanca interesses e habilidades de grupos sociais em situação de restrição de acesso à informática e à informação de qualidade (PAOLUCCI; PEREIRA NETO; LUZIA, 2017). Programas de e-learning em saúde pública fazem parte da estratégia brasileira para fortalecer o M&A por meio da qualificação de recursos humanos nos diferentes níveis de gestão do Sistema Único de Saúde (SUS). Compartilhamos do pressuposto que o e-learning aumenta o acesso às informações e aos conhecimentos sobre M&A; promovem a utilização dessas ferramentas; e consequentemente facilita sua institucionalização. 1. Um pouco de conjuntura e história No Brasil, a modalidade de ensino a distância teve início no final do século XIX com os cursos por correspondência (MUGNOL, 2009; MENELAU, 2010). Na década de 1940, foi iniciado o uso da radiodifusão como veículo para alfabetizar jovens e adultos, principalmente das regiões Norte e Nordeste do país. O início da década de 1960 marcou a introdução da televisão no ensino a distância, voltada para a escolarização da 5a a 8a séries do ensino fundamental (MENELAU, 2010). Na década de 1990, o advento da internet2 e o crescimento das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação proporcionaram o surgimento de programas oficiais de EAD. Esses programas eram estimulados pelas secretarias de educação municipais e estaduais. Os primeiros a surgir eram voltados para a formação continuada de professores da rede pública, como algumas iniciativas em Recife e São Paulo (MUGNOL, 2009; MENELAU, 2010). Em 1996, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) lançou um projeto 2 O capítulo 1 aborda a história da Internet no Brasil. Internet e Saúde 379 piloto cujo objetivo era criar novas formas de interação didática para o ambiente do computador. A partir de 1998, cresceu o número de Instituições de Ensino (IE), públicas e privadas, interessadas em implementar cursos EAD (MENELAU, 2010). Ocorreu então uma ampliação do EAD no país no período de 1993 a 2003, com a intensificação do uso das NTICs nos cursos ofertados. Após a publicação do Decreto n° 5.622 de dezembro de 2005, que regulamentou a autorização e o credenciamento dos cursos EAD no Brasil, os mesmos em suas diversas modalidades expandiram-se de forma crescente, ocupando nichos de mercado específicos (ALONSO, 2014; PETRY; BORGES; DOMINGUES, 2014). É necessário destacar que essa regulamentação ocorre num contexto em que a expansão do acesso dos brasileiros ao ensino, especialmente ao ensino superior, foi alvo de expressiva política pública. Pode-se assumir, como outros autores (SANTOS, 2011; SGUISSARDI, 2008), a importância da conjuntura de época. Nela, o pacto de alinhamento da política econômica brasileira à internacional rentista, simultâneo ao compromisso com a incorporação dos direitos civis e sociais, teve reflexos significativos nas escolhas e na implementação das políticas sociais. As transformações desse pacto ao longo dos últimos 12 anos têm continuamente influenciado o perfil das iniciativas nacionais em educação no país, incluindo as de EAD. Nesse contexto, o processo de expansão do ensino a distância brasileiro ocorreu associado à transformação significativa no papel do Estado na educação. O Estado, antes engajado em um projeto de educação como ação pública e de direito público, inseriu a proposta de expansão em uma esfera de direito privado ditado pela concorrência e submetida aos padrões de eficiência do setor privado, estabelecendo novas relações com os coletivos e sujeitos sociais (INEP, 2016). A EAD busca flexibilizar a oferta e ampliar o acesso ao conhecimento. Porém, a intensificação da oferta se deu de forma desigual no país, com concentração de cursos nas regiões Sudeste e Sul do Brasil (ALONSO, 2014). A Associação Brasileira de Educação a Distância (ABED) periodicamente realiza um censo cuja amostra é feita por adesão voluntária das instituições que oferecem EAD. Segundo o Censo 2016, realizado por essa associação, a concentração de instituições que oferecem cursos na modalidade ocorre nas regiões Sudeste (42%) e Sul (27%). Ambas concentram 69% da oferta de EAD no Brasil (ABED, 2017). Em 2016, quase 3 380 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) milhões de alunos ingressaram em cursos de educação superior de graduação3,4. Desse total, 82,3% em instituições privadas. Entre 2015 e 2016, o número de ingressantes teve um crescimento de apenas 2,2%. Isso foi observado principalmente porque a modalidade a distância aumentou mais de 20% entre os dois anos, enquanto os ingressantes em cursos presenciais decresceram em 3,7% (INEP, 2016). Dessa forma, não são surpreendentes os achados do estudo de Petry, Borges e Domingues (2014) realizado em 2014. Segundo esses autores, em 2014 existiam no Brasil 37.849 cursos presenciais de nível superior e 10.163 cursos EAD (21,2%). Dos cursos presenciais, 71,4% eram oferecidos por instituições privadas, também responsáveis por 90,3% das ofertas à distância. Os achados da pesquisa apontam ainda que a modalidade EAD responde por 44,4% dos cursos para tecnólogos, 34,5% das licenciaturas e 21,1% dos bacharelados, em franco contraste com a modalidade presencial, responsável por 54,8% dos bacharelados, 23,8% das licenciaturas e 20,3% de tecnólogos (PETRY; BORGES; DOMINGUES, 2014). Além disso, 38% das instituições que oferecem diferentes cursos de EAD informam que a oferta dessa modalidade de ensino responde por 76% a 100% do financiamento institucional (ABED, 2017). Adicionado ao deslocamento do Estado de ente regulador a ente concorrente no mercado (LAVAL; DARDOT, 2016), a faceta dos cursos tem evidências sugestivas de arranjos de acomodação dos dispositivos educacionais brasileiros à ótica de redução dos gastos públicos, da precarização e compressão dos custos do trabalho e da transição regressiva no avanço das políticas sociais distributivas e solidárias (MIRANDA, 2014). Em relação às áreas de conhecimento, os dados disponibilizados pelo censo da Associação Brasileira de Educação a Distância (ABED) apontam que a oferta de cursos de pós graduação lato sensu, objeto deste capítulo, concentra-se nas ciências humanas (250 cursos) e nas ciências sociais aplicadas (218), mas há ofertas em praticamente todas as demais áreas de conhecimento. Os cursos EAD em saúde representam ainda uma pequena fração desse universo: isto é, dos 1098 cursos totalmente em EAD, 67 são da área de ciências da saúde, e dos 109 semipresenciais, 55 são dessa área de conhecimento. Entre os principais desafios apontados pela ABED, cresce a preocupação com 3 O Censo da Educação Superior, realizado anualmente pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), constitui-se como um importante instrumento de obtenção de dados para a geração de informações que subsidiam a formulação, o monitoramento e a avaliação das políticas públicas, além de ser elemento importante para elaboração de estudos e pesquisas sobre o setor. O Censo coleta informações sobre as Instituições de Educação Superior (IES), os cursos de graduação e de formação específica e sobre os discentes e docentes vinculados a esses cursos. 4 Os resultados coletados subsidiam o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES), seja no cálculo dos indicadores de Conceito Preliminar de Curso (CPC) e do Índice Geral de Cursos (IGC), seja no fornecimento de informações, como número de matrículas, de ingressos, de concluintes, entre outras. As estatísticas possibilitam ainda, por meio da justaposição de informações de diferentes edições da pesquisa, a análise da trajetória dos estudantes a partir de seu ingresso em determinado curso de graduação, e, consequentemente, a geração de indicadores de acompanhamento e de fluxo na educação superior. Internet e Saúde 381 a inovação em abordagens pedagógicas, estando essa no topo do censo2016 (ABED, 2017). É reconhecida na literatura a necessidade de ampliação do debate sobre os processos formativos na saúde, especialmente daqueles que, utilizando a modalidade a distância junto aos profissionais, possibilitem a autonomia do educando na continuidade de sua formação e prática profissionais. (VARGAS et al. 2016) A revisão de literatura realizada por Vargas et al. (2016), na qual foram analisados 21 estudos selecionados, identificou as principais características teóricopedagógicas utilizadas na EAD desenvolvidos para a qualificação de profissionais para o Sistema Único de Saúde. Os autores classificaram as abordagens pedagógicas em quatro categorias: referenciais teóricos baseados em perspectivas pedagógicas construtivistas; concepções teórico-pedagógicas de Paulo Freire; educação permanente em saúde; e concepções teóricas próprias da EAD. Neste capítulo, considerando seu objetivo, não nos estenderemos sobre a tipologia utilizada pelos autores. Adicionalmente, a natureza empírica pouco reflexiva dessa tipologia não articula as categorias propostas com as correntes ético-políticas, críticas e não críticas, que têm mediado a formação dos trabalhadores em saúde no Brasil e, ainda menos, com a inscrição dinâmica dos processos de formação em sociedades de conhecimento (RAMOS, 2001; SAVIANI, 2007). Assim, neste capítulo pretende-se descrever uma experiência brasileira em EAD na área de M&A em saúde e analisar o uso de pedagogias ativas e problematizadoras nesse processo, realizadas em modalidade EAD. 2. O caso EAD - Especialização em Avaliação e Saúde Em 2003, em conjunto com o Departamento de AIDS e Hepatites Virais do Ministério da Saúde, o Laboratório de Avaliação de Situações Endêmicas Regionais (LASER/ENSP/Fiocruz), e o Centers for Disease Control and Prevention (CDC) conduziram um diagnóstico situacional da demanda em capacitação em M&A. A análise de situação, identificou uma baixa capacidade operacional e um baixo valor dado ao M&A dentro da instância governamental. Também foi observado que essas funções estavam vinculadas primordialmente à auditoria e à produção de conhecimento, mais especificamente à avaliação como pesquisa acadêmica voltada para responder questões temáticas específicas. M&A não aparecia institucionalizado como ferramenta de gestão, como componente reflexivo sobre a prática, mas como estudos e pesquisas. Destaca-se que este diagnóstico foi participativo envolvendo os coordenadores estaduais dos programas, os coordenadores dos dez municípios mais afetados pela epidemia no período e por representantes das principais ONG relacionadas às demandas de usuários e profissionais. 382 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Naquele momento, existiam, além de pesquisas avaliativas acadêmicas alguns esforços federais de cunho nacional, para institucionalização do M&A respondendo primariamente à demanda de parceiros internacionais. Em saúde duas devem ser destacadas, a do então Programa Nacional de DST/Aids do Ministério da Saúde do Brasil em parceria com a ENSP/FIOCRUZ e CDC e a do Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde (DAB/MS). e Banco Mundial. O diagnóstico situacional possibilitou a identificação da necessidade de capacitar e formar os quadros técnicos do MS, de maneira a incorporar uma linguagem operacional comum em M&A, apreender sobre os usos do M&A como ferramenta de gestão e promover a sua institucionalização. Fundamentalmente, ele embasou a escolha da proposta política pedagógica que potencialmente respondia a finalidade de desencadear um processo sustentável de institucionalização. Procedeuse então ao desenvolvimento de iniciativas integradas adaptadas para responder às necessidades identificadas, levando em consideração duas premissas: uma abordagem pedagógica ancorada em pedagogias ativas e a promoção de uma rede sociotécnica de avaliadores internos como interface para a “translação de conhecimento” (BRASIL, 2004; SANTOS, 2005). Algumas estratégias integradas foram escolhidas para abordar o problema, ou seja, a necessidade de capacitar e formar quadros técnicos do MS em M&A. Optouse pela estruturação de um programa de formação e capacitação compreendendo a institucionalização do M&A como uma iniciativa de fomentar a interação de “redes sociotécnicas” (SANTOS; NATAL, 2007; LATOUR, 1996), abrangendo diferentes níveis de complexidade de discursos estratégicos e de práticas em M&A, a saber: oficinas (presenciais e em ambiente virtual) para a melhoria das ações (massificação); cursos de especialização e mestrado profissional para a construção de uma comunidade de especialistas e de práticas; treinamentos específicos realizados por especialistas nacionais e internacionais, envolvendo parceiros chave em temas considerados críticos para as necessidades em M&A do Ministério da Saúde . Essas últimas envolveram teoria e prática em avaliação econômica, time and space sampling methodologies; e seminários e eventos nacionais e internacionais para a capacitação conjunta da rede de pesquisadores e de profissionais de alta qualificação do MS em métodos e técnicas aplicados ao M&A. O quadro abaixo resume as atividades de formação e capacitação conduzidas pelo LASER/ENSP/Fiocruz no período de 2004 a 2017. Internet e Saúde 383 Quadro 1. Síntese das iniciativas de pós-graduação (lato e stricto sensu)5 LASER/ENSP/Fiocruz Iniciativas Curso de Especialização em M&A de programas de controle de processos endêmicos. A partir de 2007 passa a ser denominado Curso de Especialização em Avaliação em Saúde Modalidade Ano 2004-2005 2005-2006 Presencial 2007-2008 2011-2012 Curso de Especialização em M&A em Saúde Mestrado Profissional em M&A e Saúde EAD (Viask) Presencial 2013-2014 2015-2016 2005-2007 2007-2009 2009-2011 2015-2017 Instituições envolvidas LASER/ENSP/Fiocruz, CDC, Programa HIV/AIDS/MoH, Tulane University LASER/ENSP/Fiocruz, SVS/MS, Programa HIV/AIDS, Program/MoH, Tulane University LASER/ENSP/Fiocruz e EAD/ENSP/Fiocruz, SVS e Dep. HIV/AIDS/VMSCDC LASER/ENSP/Fiocruz e EAD/ENSP/Fiocruz, Demas/MS Programa DST/Aids/MS, SVS/MS, Demas/MS Fonte: As autoras (2018). É importante destacar que a mudança de denominação do curso de pósgraduação responde às adaptações de conteúdos (objeto) ao perfil de demanda de seus financiadores e de seus participantes. O curso inicialmente financiado com recurso externo, gradativamente passa a ser sustentável técnica e financeiramente por recursos nacionais. A partir de meados da década de 2000, as ações de prevenção e controle de doenças endêmicas passam a integrar a Estratégia de Saúde da Família e o sistema de atenção básica no Brasil. Simultaneamente ocorre em todo país um movimento em relação à necessidade de transparência da gestão pública e dos mecanismos de regulação social, induzindo a implementação de arranjos institucionais em M&A, o que fomentou as iniciativas de capacitação. O quadro 2 apresenta a síntese das iniciativas de curta duração, atualização e aperfeiçoamento desenvolvidas pelo LASER/ENSP/Fiocruz nesse contexto. 5 As pós-graduações lato sensu compreendem programas de especialização para diplomados em cursos superiores e incluem os cursos MBA (Master Business Administration). As pós-graduações stricto sensu compreendem programas de mestrado e doutorado para diplomados em cursos superiores de graduação. 384 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Quadro 2. Síntese das iniciativas de capacitação de curta duração desenvolvidas e implementadas pelo LASER/ENSP/Fiocruz Iniciativas Oficina curta para M&A AIDS Oficina curta para M&A assistência farmacêutica Oficina curta para M&A Hanseníase Modalidade Presencial Anos 2005-2007 Presencial 2006 Presencial 2008 Oficina em M&A para Ação em Saúde Presencial 2009-2012 Oficina curta para M&A e Tuberculose Presencial 2010 Oficina curta M&A QualiSUSRede9 Presencial 2012-2013 Presencial 2013 MS, LASER/ENSP/Fiocruz Presencial 2013-2014 MS, LASER/ENSP/Fiocruz Presencial 2013 DEMAS/MS, SVS/MS, LASER/ENSP/Fiocruz Presencial 2016 Demas/MS, LASER/ENSP/Fiocruz Presencial 2017 PNH10/SAS/MS,11 LASER/ENSP/Fiocruz On-line (pdf interativo) 2017 SVS/MS, LASER/ENSP/Fiocruz, EAD/ENSP/Fiocruz Oficina curta para M&A Urgência e Emergência Oficina curta para M&A e Saúde Prisional Oficina curta para M&A integrado ao Planej. Estratégico da SVS/MS Oficina curta integrando Planej. Estratégico e M&A para o MS Oficina curta de Integração entre Planejamento Estratégico e a PNH Oficina on-line em M&A integrado ao Planej. Estratégico da SVS/MS Instituição envolvidas MS, LASER/ENSP/Fiocruz OPAS, NAF6, LASER/ENSP/Fiocruz OPAS7, LASER/ENSP/Fiocruz LASER/ENSP//Fiocruz, Canal Futura/Fundação Roberto Marinho PNCT8/SVS/MS e Fundo Global, LASER/ENSP/Fiocruz Depart.Economia da Saúde/MS, LASER/ENSP/Fiocruz Fonte: Arquivos LASER/ENSP/Fiocruz e Análise Documental. As oficinas descritas representaram um esforço intensificado de massificação e pactuação de terminologias operacionais em M&A aplicadas ao sistema de saúde no Brasil e de inculcação do modo de pensar avaliativo. Por exemplo, as oficinas ofertadas com apoio do Departamento de HIV/AIDS do Ministério da Saúde, realizadas de maio a dezembro de 2007, beneficiaram mais de 4.800 participantes dos 329 municípios brasileiros prioritários para ações de prevenção e controle da epidemia de HIV/AIDS (PARANAÍBA, 2008). As oficinas referentes à hanseníase realizadas entre 2007 e 2008 e envolveram a participação de 465 profissionais do serviço (CRUZ et al., 2009). As realizadas de 2009 a 2012 como parte do Projeto Ação Saúde no estado do Maranhão constituíram uma experiência original de metodologia 6 Núcleo de Assistência Farmacêutica (NAF). Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS). 8 Programa Nacional de Controle da Tuberculose (PNCT); PNH (Política Nacional de Humanização. 9 Projeto de Formação e Melhoria da Qualidade de Rede de Atenção à Saúde - QualiSUS-Rede. 10 Política Nacional de Humanização (PNH). 11 Secretaria de Assistência à Saúde (SAS)/Ministério da Saúde. 7 Internet e Saúde 385 de ensino participativo (SANTOS et al., 2013). A inserção institucional dos participantes das iniciativas descritas foi predominantemente a de profissionais do SUS. Esses participantes, de formação profissional variada, integravam ativamente o sistema público de serviços de saúde brasileiro, nas suas diversas instâncias político-administrativas, e exerciam sua prática profissional nas múltiplas redes de cuidado do sistema. Entretanto, tanto nas ofertas de mestrado como na especialização presencial e à distância, depois de preenchidas as demandas prioritárias, foram absorvidos profissionais de instituições não governamentais e alguns sem vínculo institucional na ocasião da seleção. As oficinas descritas acima revelam a contribuição do Laboratório de Avaliação de Situações Endêmicas Regionais (Laser/ENSP/Fiocruz) para o campo da formação e da capacitação de curta duração em M&A em atividades presenciais. Apresentamos a seguir as premissas que foram consideradas para o desenvolvimento e implementação dos processos de capacitação e formação na experiência de EAD realizada: 1. As operações de “translação do conhecimento” (CLAVIER et al., 2011), foram consideradas essenciais para a construção de conexões de uma “Rede Sociotécnica (LATOUR, 1996) em M&A e como base para a institucionalização das práticas em M&A; 2. A utilização de uma plataforma virtual de interação para troca de conhecimentos e experiências em M&A em Saúde como ponte mediadora entre os profissionais avaliadores e os pesquisadores em M&A; 3. A gestão e mobilização de conhecimentos para o fomento da cultura de M&A, de suas práticas como reflexão situada para mudança, utilizando enquanto suporte pedagógico um aprendizado participativo baseado na problematização e nos princípios de educação emancipatória de Paulo Freire (1987). 3. Métodos A elaboração deste capítulo envolveu uma revisão narrativa da literatura e a análise documental de todo o material desenvolvido pelo LASER/ENSP/Fiocruz para a construção e realização da iniciativa on-line. A revisão da literatura foi implementada por meio de buscas nos bancos de dados das plataformas, PubMed e SciELO. Foram selecionados somente artigos publicados a partir de janeiro de 2012 até 2017. A opção de escolha do período dos últimos cinco anos visou concentrar o levantamento em literatura atualizada sobre o tema. No SciELO, os termos de busca foram “educação a distância” and “avaliação 386 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) em saúde”, na língua inglesa, espanhola e portuguesa. No PubMed, os termos utilizados foram “evaluation or health evaluation” or “evaluation capacity building” and “distance learning or distance education” or “E-learning”, no campo título e abstract na língua inglesa. Foi realizada também uma busca por sites que ofertavam cursos a distância em M&A, por meio da ferramenta Google. Alguns trabalhos dos participantes do mestrado profissional que tematizaram as iniciativas implementadas e suas contribuições também foram considerados (ASSIS, 2011; PARANAÍBA, 2008). Os resultados indicam que existe uma variedade de ofertas de cursos on-line sobre M&A ao redor do mundo. Alguns exemplos incluem cursos ofertados por instituições como: Canadian Evaluation Society; American Evaluation Association; Global Fund; Ontario Council for International Cooperation; Public Health Foundation of India. Há tambémuniversidades americanas como University of North Carolina, e algumas universidades sul africanas como University of Pretoria, University of Estellenbosh, University of Cape Town, e University of the Witwatersrand. Apesar da extensa oferta, encontramos em nossa revisão de literatura poucas publicações analisando essas experiências de educação a distância em M&A. A maioria dos artigos identificados versava sobre avaliação dos cursos a distância de um modo geral ou sobre o desenvolvimento de métodos, incluindo ferramentas, para a realização das avaliações dos alunos. A análise documental compreendeu o exame dos documentos disponíveis nos arquivos do LASER/ENSP/Fiocruz e da EAD/ENSP/Fiocruz, além das apresentações em diversos congressos nacionais e internacionais. O material inventariado e disponível incluiu: a) programa do curso, material didático de apoio, manual do participante, relatórios finais de gestão acadêmica do curso; b) relatórios das três oficinas de avaliação, sendo uma para cada curso, realizadas com representantes de alunos, tutores, coordenadores, equipe EAD e financiadores; c) diversas manifestações e comentários dos alunos realizados e formalizados por registro durante o curso; d) relatórios das reuniões sistemáticas realizadas entre orientadores, tutores, assessorias pedagógica e de avaliação; e) memórias de reuniões entre coordenação do curso, equipe EAD e o apoio em tecnologia da informação (TI). 4. O ensino-aprendizado em Avaliação em Saúde: um processo político pedagógico O referencial pedagógico do curso de especialização baseou-se em uma perspectiva crítica de construção do conhecimento para a ação transformadora. Seus Internet e Saúde 387 pressupostos ancoraram-se na autonomia do participante para gerenciar o seu processo de aprendizagem, mobilizando e articulando diversos saberes e ferramentas no desenvolvimento de práticas profissionais flexíveis e inovadoras. Desde a concepção, a iniciativa utilizou o compartilhamento reflexivo e em rede dos processos de trabalho. Essa escolha foi associada à uma abordagem crítica vinculada aos processos de transformação da realidade em em saúde e alinhada aos princípios do SUS, isto é, a integralidade, a universalidade e a equidade. Optou-se pelo encadeamento lógico das atividades pedagógicas, relacionando-as à experiência prática e à prática reflexiva. Foram incorporadas as experiências profissionais cotidianas, os arranjos formais e informais de gestão como substrato para reflexão, para além da compreensão dos fundamentos técnico-científicos. A iniciativa, presumia a problematização dessas práticas em constante diálogo com os contextos sócio-histórico e cultural que levam à desigualdade dos processos de produção e de valoração dos direitos e da vida. A organização pedagógica do curso procurou expressar a visão pragmática de que o conhecimento é função da realidade que questiona e dos processos que a explicam ou a solucionam necessariamente, formulados em uma linguagem pública, legítima e compartilhável. Para investir na formação adequada de um profissional avaliador, optou-se pela construção de uma proposta que articulasse, dinamicamente, trabalho e ensino, prática e teoria, ensino e comunidade. Isso porque as relações entre trabalho e ensino e entre os problemas e as alternativas para solucioná-los, devem ter sempre como pano de fundo as características socioculturais do meio em que esse processo se desenvolve e o compromisso com a melhoria social (MARK; HENRY; JUNES, 2000). Os eixos organizadores da estrutura modular do curso envolveram a abordagem do contexto e as políticas de saúde e tecnologia no Brasil; conteúdos em monitoramento e em sistemas de monitoramento; conteúdos em avaliação, com ênfase nos processos de valoração e síntese avaliativa; e as práticas éticas em redes, aplicadas ao M&A de ações organizadas em saúde. A proposta que buscou articular ensino, prática e teoria sustentou-se em dois pilares: a problematização crítica e as operações de “translação do conhecimento” (CLAVIER et al., 2011). A pedagogia crítica, baseada na problematização, parte do princípio de que, em um mundo de mudanças rápidas, o importante não são os conhecimentos, nem somente a incorporação de habilidades, mas sim o aumento da capacidade dos sujeitos para detectar problemas reais e mobilizar de forma flexível conhecimentos e tecnologias na busca de soluções originais e criativas. A questão fundamental da problematização é propor aos indivíduos dimensões significativas de sua realidade para discussão, sistematização e transformação. Isto é, ensinar a construir o “inédito viável”, trabalhar a fronteira entre “o ser” e o “ser mais” (FREIRE, 1987). A problematização engloba um diálogo constante em que os especialistas e os participantes se debruçam sobre suas experiências no intuito de 388 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) produzir uma nova compreensão do problema e das possíveis soluções que possam ser implementadas (práxis). Esse diálogo, que articula a unidade inerente entre ensinar e aprender, foi explorado no curso por meio das quatro operações de translação: problematização, sensibilização, mobilização e enredamento (HARTZ et al., 2008). A pedagogia a problematização, inverte o ciclo cognitivo do ensino tradicional da teoria à prática. Parte-se da prática problematizada, e procede-se à sistematização das divergências a ela relacionadas por meio de processos de sensibilização e mobilização dos atores/atuantes envolvidos para a ação transformadora. Sua inserção numa abordagem de mobilização de conhecimento para ação, em teoria, viabiliza o confronto de controvérsias sistematizadas (prática) com as abordagens para as soluções possíveis, as diferentes operações de translação potencialmente produtivas para sua materialização, refazendo-se uma nova prática para os diferentes atores (humanos) e atuantes (não humanos) em situação. Os pressupostos baseiam-se na ideia de que os homens experimentam condições tempoespaciais que os marcam (SER), e eles igualmente marcam essas situações (FAZER) e suas possibilidades de criticamente refletirem sobre sua situacionalidade histórica. Isto é, o fazer em situação que anuncia a dimensão do SABER. No caso particular em discussão, são o modo de pensar avaliativo (SABER), a prática em avaliação (FAZER) e o ser avaliador (SER) (SANTOS; NATAL, 2005). Desse modo, aprende-se a aprender a aprender. O aprendizado e ensino são entendidos como processos imbricados, em que os “atores” e “atuantes” se hibridizam nas operações de problematização, motivação e mobilização – essa última entendida como pré-condição para construção de conexões e alianças nas redes de trabalho. A formação de avaliadores profissionais foi tomada como um processo de formação de atores em gestão de conhecimento, para ação moduladora em uma sociedade do conhecimento, visando o desenvolvimento organizacional e a mudança social participativos. Clavier et al. (2011), analisando o papel de mecanismos intermediários em processos participativos de produção de conhecimento, sugere que eles ocorram por operações de translação (problematização, motivação, mobilização e construção de alianças) em três domínios de mediação: o cognitivo, o estratégico e o logístico. Para esses autores, o domínio cognitivo envolve a circulação multidirecional do conhecimento. O estratégico implica a mobilização de procedimentos voltados para ressignificar os diferentes interesses dos vários atores (humanos) e atuantes (não humanos) de forma alinhada; O logístico, por sua vez, está ligado à implementação de ações e processos para garantir as conexões entre parceiros, tais como canais de comunicações, marcação de reuniões, memórias e atas de encontros (CLAVIER et al. 2011). Considerando-se o avaliador como um modulador de políticas, programas e processos, utilizou-se o referencial proposto para a formação, entendendo-o como um Internet e Saúde 389 processo potencializador de operações de translação nos domínios descritos. É importante destacar a diferença radical dessa concepção de translação daquelas que abordam a transferência de conhecimento como um fluxo unidirecional entre os que sabem e os que não sabem. Em outras palavras, que se baseiam em concepções que consideram o ensino-aprendizado como processo de mera transferência ou mesmo de “tradução” de conhecimento. A compreensão do avaliador como elemento de uma rede sociotécnica convive necessariamente com a construção de conexões. Nesse sentido, o currículo integrado privilegia em suas unidades pedagógicas as operações de translação, isto é, o problematizado, a motivação para a mudança, e análise dos processos de sensibilização e mobilização, bem como a construção de alianças para que a mudança ocorra, conforme o apresentado na Figura 1. Os conteúdos do curso Avaliação em Saúde, na modalidade EAD, foram organizados em um currículo integrado, com carga horária total de 420 horas e duração de 14 meses. Baseando-se nas premissas apresentadas anteriormente, eles foram divididos em módulos com temas amplos (dimensões cognitivas), de forma a permitir a problematização de competências específicas (unidades pedagógicas e sequência de atividades), incluindo a reflexão crítica sobre a avaliação da proposta de avaliação em desenvolvimento (conteúdo transversal). Figura 1. Currículo Integrado do Curso Avaliação em Saúde, EAD Fonte: As autoras (2005). Cada unidade pedagógica, suas sequências de atividades as respectivas 390 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) atividades, detalhadas para tutor e participante, foram organizadas seguindo a modelização de acordo com as fases de: 1. Observação da realidade; 2. Identificação dos pontos temáticos chaves; 3. Teorização do problema; 4. Construção de hipóteses e escolha de soluções; e 5. Aplicação a realidade. (BORDENAVE; PEREIRA, 1989). No Quadro 3 é apresentado o arranjo instrucional do curso de especialização na modalidade EAD. Quadro 3. Arranjo instrucional: curso de especialização em Avaliação e Saúde Arranjo instrucional: curso de especialização em Avaliação e Saúde Módulos: Dimensões Unidades Sequências de cognitivas Pedagógicas Atividade Temas transversais Fonte: As autoras (2018). O currículo foi organizado em sete módulos, estruturados em unidades pedagógicas, por meio das quais procurou-se viabilizar a problematização da prática dos participantes no contexto das relações de trabalho. Isto é, os conteúdos temáticos do campo do M&A encaminhavam modos de sistematizar e solucionar controvérsias e pontos problematizados. Cada módulo incluiu diferentes números de sequências de atividades, correspondentes aos conteúdos abordados pelas unidades pedagógicas. Todos os módulos incluíram pelo menos uma unidade pedagógica. Houve também o detalhamento das sequências de atividades relacionadas à elaboração do projeto final do curso, que materializava pelo menos uma experiência dos participantes originária de sua prática. O trabalho de conclusão podia ser tanto o desenho de um sistema de monitoramento, um plano de M&A ou um projeto de pesquisa avaliativa relacionada aos processos de trabalho vivenciados na prática – por exemplo, uma apreciação estratégica ou da eficiência de uma dada intervenção. O primeiro módulo, “Situando a avaliação como prática reflexiva”, abordou, por meio de três unidades pedagógicas, as concepções de M&A, os possíveis usos e focos da avaliação, a inclusão dos interessados nos processos avaliativos e a elaboração dos possíveis conflitos de interesses envolvidos. O segundo módulo, “Modelizando a intervenção”, compreendeu quatro unidades: intervenções e contextos; descrição da intervenção, isto é, sua teoria de mudança e sua teoria de funcionamento; e as etapas práticas da avaliação. Nesse segundo módulo, esperavase que o participante fosse capaz de descrever as etapas e elaborar os passos de um estudo de avaliabilidade. O terceiro módulo, “Modelos e abordagens em avaliação”, incluiu o estudo das diferentes abordagens em monitoramento e avaliação e sua possível aplicação ao avaliando escolhido para apreciação. “Compreendendo a teoria da mudança” correspondeu aos módulos IV e V. No IV, foi examinado o que é a Internet e Saúde 391 análise estratégica, e seus os usos e influências. No módulo V, privilegiou-se a análise de implementação, problematizando-se as etapas da apreciação do modo de funcionamento, o desenho da avaliação e o processo de valoração. No módulo VI, “Gerenciando e executando a avaliação”, foram abordados os principais canais de comunicação e a disseminação dos resultados. Por último, no módulo VII, “Avaliando a avaliação: meta-avaliação”, foram trabalhados a avaliação da qualidade de uma avaliação, conceitos e princípios da meta-avaliação e os princípios éticos em avaliação. O conteúdo do curso foi validado por especialistas na área de avaliação e educação, sendo desenvolvido integralmente on-line, no Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA), por meio do software Virtual Institute of Advanced Studies Knowledge (VIASK). O VIASK é um ambiente de e-learning que permite modelos interativos de conteúdo, de diferentes atores e de ferramentas colaborativas (PEDROSO, 2002). Ele possibilita uma série de atividades, entre elas: a navegação pelo conteúdo do curso; o acesso às atividades; a participação em fóruns de discussão e chats; a avaliação do desempenho individual do aluno; a consulta e o arquivamento de documentos na biblioteca virtual; e o recebimento de informações dadas pela tutoria, pela coordenação e pela equipe de apoio da EAD (SANTOS et al., 2015). A interlocução com os participantes ocorreu principalmente por meio da figura do tutor. Ele exerceu o papel de mediador da relação pedagógica e facilitador do processo ensino-aprendizagem, estimulando o participante a refletir criticamente e desenvolver as atividades esperadas. Apesar da principal ferramenta de interação ser o software VIASK, a comunicação entre tutor e participante poderia ser feita por outros meios, caso necessário, como telefone, e-mail, Skype e WhatsApp. Era responsabilidade do tutor a avaliação dos participantes, sugestão de leituras e proposta de ajustes na execução das atividades. Cada tutor foi responsável por 15 participantes, com pequenas variações nas três turmas. Para cada grupo de três tutores, existia um orientador de aprendizagem de suporte. O orientador de aprendizagem era um profissional com experiência prévia em tutoria de EAD e expertise no conteúdo temático. A equipe de coordenação do curso realizava de forma sistemática reuniões com os tutores e orientadores de aprendizagem. Tais reuniões usualmente ocorriam a cada mudança de módulo, de forma a dar suporte ao grupo na resolução de possíveis dificuldades no processo de ensino-aprendizagem e apoiar na resolução de dúvidas que podem surgir com a introdução de nova temática. Foram realizadas também reuniões mensais com a equipe de acompanhamento acadêmicopedagógico da EAD/ENSP/Fiocruz. De acordo com as exigências legais brasileiros, o curso possuiu três momentos presenciais: no início, para apresentação tutor-aluno, proposta do curso, material didático e uso do Ambiente Virtual de Avaliação (AVA); na metade, com aplicação da primeira prova presencial e apresentação do esboço do plano de monitoramento 392 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) ou avaliação; e no final, para aplicação da segunda prova e apresentação do trabalho de conclusão de curso. A mobilização em torno do curso tinha como principal objetivo o recebimento do título de especialista em Avaliação em Saúde, certificado pelo Ministério da Educação do Brasil. 5. Os processos de formação em M&A/EAD: induzindo a rede sociotécnica Até o presente, foram realizadas três edições do curso EAD, adequadas ao público-alvo e unidade do MS demandante – o Programa Nacional de DST/AIDS e o Departamento de Monitoramento e Avaliação do SUS. A primeira edição, demandada pelo Programa Nacional de DST/AIDS, teve início em agosto de 2011, com vagas para 75 alunos. O perfil dos alunos era de profissionais de saúde e áreas afins, com interesse em monitoramento e avaliação, oriundos de organizações governamentais ou não governamentais, atuantes ou não na área de avaliação de sistemas e serviços de saúde, portadores de diploma de curso superior reconhecido pelo Ministério da Educação. Iniciaram o curso 69 alunos, distribuídos entre cinco tutores-professores. Ao final do curso, em outubro de 2012, foram formados 50 especialistas, conforme apresentado no Quadro 4. A segunda edição teve início em novembro de 2013, com vagas para 300 alunos, distribuídos entre 20 tutores-professores. Este curso foi demandado pelo Departamento de Monitoramento e Avaliação do SUS (DEMAS). O perfil dos alunos era de profissionais de nível superior do Ministério da Saúde, atuantes ou não na área de M&A. Nessa versão, iniciaram o curso 253 alunos. Em janeiro de 2015, concluíram o curso e foram formados 153 especialistas em avaliação. Com a continuidade da parceria com o DEMAS/MS, foi realizada a terceira edição do curso. Desta vez foi dada preferência aos profissionais de nível superior atuantes em M&A no Ministério da Saúde. Alem disso foram convidados outros profissionais que atuassem na mesma área em qualquer uma das três esferas de gestão do SUS (níveis federal, estadual e municipal). Foram previstas 100 vagas, e o curso teve início em setembro de 2015. 88 alunos se inscreveram distribuídos por seis tutores. Em novembro de 2016, foram formados 58 especialistas em avaliação em saúde. Internet e Saúde 393 Quadro 4. Descrição dos cursos EAD realizados: edição do curso, ano de início, número de vagas previstas, número de alunos que iniciaram e terminaram o curso; e percentual de evasão Vagas Iniciaram previstas o curso Formados * Evasão Curso Ano Demandante 1ª edição 2011 PNDST-Aids/MS 75 69 50 27,5 2ª edição 2013 DEMAS/MS 300 253 153 37,9 3ª edição 2015 DEMAS/MS 100 88 58 30,7 Total NSA NSA 475 410 261 34,6 (%) ** Fonte: As autoras (2018). *Formados: número de alunos efetivamente matriculados que concluíram todos os módulos com aproveitamento e entregaram o trabalho de conclusão. **Evasão: constituído por alunos que abandonaram e por desistentes do curso. O perfil profissional dos egressos apresenta diferenças interessantes entre as edições. Enquanto a primeira e a segunda edição do curso possuem uma parcela considerável de enfermeiros formados, na última edição os profissionais formados em administração representam uma importante parcela dos egressos. Na primeira versão, 27 egressos são enfermeiros, o que corresponde a 54%. Os outros 23 formados (46%) estão distribuídos por 13 profissões. Na segunda versão, 72 egressos (47%) são compostos por 52 enfermeiros (34%) e 20 farmacêuticos (13%). Os demais 81 formados (53%) estão distribuídos por 22 profissões. Na terceira versão do curso, 25 (43,1%) estão concentrados em duas profissões: enfermagem 13 (22,4%) e administração 12 (20,7%). Os demais 33 egressos (56,9%) estão distribuídos por 24 categorias profissionais. Dois pontos chamam a atenção no Quadro 4. O primeiro é diferença entre o número de participantes que se inscrevem no curso e daqueles que são de fato matriculados. Nesse grupo as perdas estão relacionadas a dois problemas identificados. Uma boa parte dos alunos não tem sua inscrição homologada por não cumprirem a condição de comprovação do término de curso superior e por não conseguirem suporte financeiro para participação no encontro presencial inicial, condição confirmatória da matrícula. O segundo ponto evidenciado no quadro é a magnitude da evasão verificada. Considerando-se que a taxa estimada de evasão para a modalidade Educação a Distância varia entre 10% e 30% (ALMEIDA, 2008; COMARELLA, 2009; PACHECO, 2007), a segunda e terceira edição do curso tiveram valores acima do esperado. Esses valores também estão acima da taxa de evasão dos cursos ofertados pelo EAD da Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz, no período de 1998 a 2014, que é de 25,9% (RIBEIRO, 2015). 394 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Entendendo-se que educação a distância é, antes de tudo, educação, ela se expressa como um modelo educativo organizado em que o aluno desempenha o papel de sujeito, (re)construindo o conhecimento por meio de sua própria experiência. Na EAD/ENSPFIOCRUZ esse modelo concretiza-se por intermédio dos princípios e metodologias adotados, manifestos nos pilares que sustentam o processo de ensinar e de aprender a distância – o ambiente virtual de aprendizagem, o sistema de tutoria, o material didático e o acompanhamento acadêmico-pedagógico, tendo como diretriz a implementação de um processo educativo dialógico. Por meio dos três momentos presenciais e das oficinas de avaliação dos cursos, foi possível identificar os aspectos facilitadores e desafios impostos, que descreveremos a seguir. Em relação à proposta político-pedagógica adotada, a apresentação e a realização de atividades emergentes da experiência de cada participante antes do conteúdo conceitual provocaram um estranhamento em uma boa parte dos alunos, gerando desconforto, principalmente na fase inicial do curso. Um dos participantes da terceira versão do curso afirmou: “Acho que tem que rever a questão de aplicar a atividade e depois o conteúdo. Deveriam explicar minimamente do que se trata”. Alguns participantes relataram que aos poucos foram percebendo que, após a realização da atividade de cada unidade, a solução do problema era apresentada, fazendo com que muitas vezes quisessem avançar na leitura do material para ter acesso à resposta antes da execução da tarefa. Alguns chegaram a questionar se não havia algo errado na construção do curso. O papel dos tutores foi essencial para esclarecimento. Um dos tutores, presente nas três versões, considerou importante “esclarecer e fortalecer no primeiro momento presencial explicações a metodologia de problematização com exemplos”. Em cursos presenciais, a mudança de processos pedagógicos tradicionais exaustivamente inculcados nos participantes por meio de metodologias ativas críticas é objeto contínuo de elaboração pelo facilitador. Na EAD, o desafio ainda tem soluções incipientes, que necessitam reflexão e soluções práticas. Do ponto de vista da organização curricular, segundo os participantes, tutores e orientadores de aprendizagem, a organização em módulos/unidades pedagógicas/ sequência de atividades contribuiu para a consecução dos objetivos do curso e para o desenvolvimento das capacidades esperadas. Um dos participantes da primeira versão do curso afirmou: “o material apresentado permitiu conhecer a fundo o campo da avaliação, possibilitou um bom entendimento”. Alguns conteúdos cognitivos foram destacados como mais difíceis. Por exemplo, foi sinalizado por alguns alunos a dificuldade de diferenciar modelização da intervenção da modelização da avaliação, problematizando o desafio didáticopedagógico do recorte entre a descrição do objeto em avaliação e da avaliação propriamente dita. Outro ponto recorrente de dificuldade é a apreensão dos processos de Internet e Saúde 395 valoração (julgamento) e das funções do avaliador. Ressalta-se que esse ponto, mesmo em experiências de ensino de avaliação presenciais, é complexo, usualmente relegado à autonomia do docente e muitas vezes escamoteado. Em e-learning, a proposta é o alinhamento epistemológico às correntes político-filosóficas que iluminam a história do conhecimento e da ciência, sem falar às da educação. Para o ensino-aprendizagem em M&A de políticas e programas em saúde, esse ponto é crítico. Ele tem repercussões implícitas e explícitas nas concepções de avaliação trabalhadas, nas possíveis funções do avaliador e certamente na sustentabilidade da própria iniciativa. Esse conteúdo necessita de amadurecimento do ponto de vista da afiliação político-pedagógica do curso, e algumas soluções virtuais deverão ser exploradas. Um segundo conteúdo cognitivo relatado como difícil pelos alunos diz respeito à definição de problema em saúde pública a partir das análises de contexto. Esse ponto está relacionado a dois componentes: a composição mista da demanda de conteúdos do curso e as contradições inerentes à organização do SUS. De um lado, a formação em saúde e em saúde pública no Brasil é hegemonicamente epidemiológica, com grande ênfase na concepção de estudos avaliativos como acadêmicos e alinhados à abordagem de experimentos randomizados. De outro, há a necessidade de conteúdos da administração, gestão e governança pública, requerimento fundamental das atividades exercidas pelos participantes em seus postos de trabalho. A pressão de tais atividades, independente do perfil profissional, constituiu-se em importante fator que determinou mudanças no conjunto de exercícios práticos e conteúdo do curso, especialmente da segunda para a terceira turma, assinalando-se a incorporação de conteúdos de regulamentação, processos rotineiros e princípios de accountability do Estado brasileiro. Na terceira edição do curso, foi realizada a inserção de um breve conteúdo sobre planejamento estratégico e instrumentos de planejamento das três instâncias de gestão do SUS. Apesar de sugerido pelos participantes, a ampliação dessa temática foi feita gradativamente, de forma a diferenciar claramente os processos de auditoria daqueles de M&A. O equilíbrio dessas abordagens é particularmente importante para responder às diferentes funções esperadas para a regulação social, para a conformidade legal e para a aprendizagem organizacional relacionadas à transparência de gestão, execução e princípios das políticas públicas no Brasil (JANUZZI, 2016). Apesar da insistência dos participantes na ampliação dos conteúdos sobre metodologias de investigação, a coordenação optou por enfatizar apenas conteúdos relativos aos usos de métodos mistos. O desenho metodológico priorizado para as atividades de ensino aprendizado foi o de estudos de caso, o básico de desenhos avaliativos relacionados à prática em gestão e à adequação de intervenções aos contextos específicos. Parte dessa solicitação discente é coerente com a identificação de avaliação como pesquisa acadêmica vigente na cultura institucional brasileira. 396 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Os participantes também solicitaram ter um roteiro mais estruturado para organização do conteúdo do trabalho de conclusão de curso, apesar de haver um roteiro no caderno do aluno explicando o passo a passo da construção do trabalho final. Foi inclusive sugerido ter mais um encontro presencial ao longo do curso para discutir apenas a elaboração do TCC, anterior à apresentação do pré-projeto. A expectativa dos alunos sobre um plano de avaliação ser um plano de pesquisa é consistente com a dificuldade de alinhamento ao modelo de organização do plano de avaliação proposto no caderno do aluno (SANTOS et al., 2015, p. 78). Essas questões apontam para a tensão entre tornar-se um avaliador ou tornar-se um pesquisador, assinalando a necessidade do curso mobilizar mecanismos para a formação de uma identidade profissional orgânica com maior engajamento, talvez possibilitando uma evasão menor e fortalecendo a autoidentificação a uma rede de práticas. Apesar das apreciações apresentadas, a maioria dos alunos, nas três edições do curso, consideraram que as temáticas despertaram interesse e motivação no campo da avaliação. Um dos participantes da terceira edição do curso afirmou: “Acho que estou pronta para avaliar”. Os tutores e orientadores de aprendizagem, na avaliação realizada, solicitaram a inclusão de textos para orientar os participantes sobre como fazer uma revisão de literatura e pesquisa bibliográfica. Reforçaram ainda a inclusão de material didático e documento explícito sobre responsabilização pessoal no caso de plágio acadêmico, problema frequentemente detectado nos produtos apresentados. Em relação à implementação da proposta e à logística do curso, os participantes reclamaram do número grande de atividades, assim como do tempo curto para a realização de algumas consideradas mais complexas, como a construção do modelo lógico. Um dos pressupostos defendidos por Paulo Freire (1987) é que o processo de conhecer não é divisível em ensino e aprendizado, ou seja, aprende-se quando se ensina e ensina-se quando se aprende. Conhecer emerge do diálogo entre sujeitos aprendentes, imersos em situações significantes para a experiência ético-profissional transformadora. Neste sentido, a participação ativa dos tutores foi fundamental. Segundo um participante da segunda edição do curso, “A tutora sempre esteve disponível e ajudou muito no processo”. Havia também a troca com os colegas por meio dos fóruns, grupos de WhatsApp e nos momentos presenciais. Alguns sinalizaram que os enunciados de algumas atividades não estavam muito claros. Um participante da terceira edição do curso afirmou: “Custei a entender de imediato o que a atividade pedia. Os enunciados me pareceram um tanto vagos e pouco explicativos...”. Alguns tutores e orientadores, ao longo das versões do curso, sinalizaram a importância de definir critérios mais claros para o acompanhamento do desenvolvimento do participante e de sua permanência no curso. A questão dos Internet e Saúde 397 prazos e limites nas entregas das atividades, assim como o tempo para sua correção, aparece como um tema que preocupa os tutores. Todos ressaltaram a importância da manutenção de reuniões regulares entre tutor, orientador de aprendizagem e coordenação pela possibilidade de troca e alinhamento metodológico. Os tutores e orientadores aventaram com a coordenação sobre a possibilidade de realizar uma oficina de curta duração com conteúdo de M&A no primeiro encontro presencial, visando trabalhar com os participantes a proposta pedagógica problematizadora e facilitar o posterior andamento do curso. Na terceira edição do curso, ocorreram problemas de conectividade que dificultaram o acesso e a navegação na plataforma VIASK. A utilização das ferramentas de comunicação WhatsApp e e-mail foram fundamentais na mediação pedagógica, não somente para manter o estímulo dos alunos, mas também para possibilitar uma comunicação ágil e oportuna, principalmente especialmente no envio das atividades. O uso do áudio do WhatsApp facilitou, inclusive, a explicação de conceitos mais complexos e esclarecimento de dúvidas, substituindo a plataforma digital em inúmeras ocasiões. Os participantes recomendaram disponibilizar vídeo-aulas para alguns conteúdos-chave, como modelos lógicos e matrizes de análise e julgamento, além do CD já disponibilizado, devido à impossibilidade de copiar o conteúdo dos textos que se encontravam em formato flash. Vários participantes da terceira edição do curso eram apoiadores do MS em regiões longínquas do país, sem acesso à internet ou com acesso intermitente. Uma versão impressa do conteúdo para esses casos facilitaria a realização das atividades nos prazos acordados, com posterior envio via plataforma digital. Foi também sugerido colocar na biblioteca do curso um link, organizado por módulo, com as referências utilizadas no material para que o participante pudesse ter acesso, considerando a impossibilidade de fazer download via plataforma. 6. Considerações finais A prática pedagógica crítica em saúde não pode se eximir de abordar as dimensões sociais que possam influenciar a saúde, compreendida como plena existência da vida com qualidade. Dessa forma, deve proporcionar aos sujeitos aprendentes condições para conhecer tanto os fundamentos técnico científicos de sua prática quanto aqueles sócio-históricos que produzem as desigualdades das condições de vida e de direitos humanos fundamentais e constitucionais, como o direito à saúde. A vinculação de cursos EAD à formação de avaliadores para o SUS, especialmente o princípio de direito universal a saúde, é o eixo que potencializa a expansão dos processos de translação e gestão de conhecimento em M&A para além de conteúdos 398 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) cognitivos, estratégicos e logísticos em tecnologia e método. Os desafios a esta prática pedagógica em monitoramento e avaliação são ainda maiores, uma vez que se contrapõem com bastante frequência em um mesmo governo ou instituição, a processos contrários à sua formulação, implementação e regulação através de políticas públicas. A implementação do curso de especialização de Avaliação em Saúde, em suas três versões EAD, com demanda três vezes modificada, ocorreu em uma conjuntura de mudanças com influência direta nas políticas públicas, entre elas nas de saúde. Isso implicou vivência, sistematização metodologia e materialização de praticamente três cursos com edições diferentes, embora os elementos estruturantes da proposta pedagógica e do currículo integrado e a plataforma virtual fossem mantidos. Um aspecto relevante do processo ensino-aprendizado, bastante apreciado pelo conjunto de atores envolvidos, foi a centralidade da problematização. Houve entre os participantes uma polarização sobre aprender problematizando situações do cotidiano de trabalho, ou seja, aprender em situação ao invés de aprender para resolver situação de trabalho. Porém, houve também concordância sobre a força positiva do trabalho como princípio educativo produtivo. Como a problematização não oferece a certeza do certo e errado, mas a complexidade do provisório, o tutor e os fóruns de compartilhamento assumem papel de destaque como mediador do diálogo entre o saber cotidiano, a técnica e a ciência. Os problemas do mundo real do trabalho em saúde são complexos e ocorrem em ambiente de contínua tensão técnica e política, marcando a centralidade da problematização. O material instrucional e notadamente a plataforma assumem protagonismo e são com frequência destacados pelos alunos como fatores de influência na implementação do curso. Nesse sentido o curso parece responder. Os tutores, os meios de interação e comunicação configuram o que poderíamos denominar de mecanismos de motivação e mobilização, pois incluem ações e práticas que contribuem para motivar e definir a função-identidade de cada atuante da rede (OLIVEIRA et al., 2017), possibilitando alianças. O desafio é deslocar essas práticas de componentes cognitivos do curso para a prática avaliativa profissional. O processo ensino-aprendizagem centra-se na problematização do cotidiano do trabalho, estabelecendo suas relações com o conhecimento técnico científico mobilizado para sua transformação. Entretanto, a institucionalização da avaliação como profissão é ainda incipiente no Brasil, e as atividades requeridas para um profissional se aproximam muito mais de verificador de conformidade do que de um modulador de valores e de operações de translação e gestão de conhecimento. Em relação aos tutores e orientadores, as estratégias de supervisão, capacitação contínua e coordenação de aprendizagem em resposta às necessidades dos alunos têm funcionado a contento. De fato, isso representa um efeito na Internet e Saúde 399 qualificação dos profissionais e na difusão do M&A na área da saúde, promovendo a ampliação de uma rede sociotécnica de avaliadores. A ação coordenada dos tutores tem sido bem avaliada pelos participantes; entretanto, os constantes atrasos nas entregas das atividades e a evasão têm pontuado a necessidade de melhoria nas articulações com o mundo do trabalho, especialmente o MS, no sentido de definir não só a adequação de carga de atividades, mas também do perfil da carreira e da inserção dos profissionais titulados. A iniciativa que busca a formação da rede de avaliadores em saúde poderia constituir-se em três grandes eixos: a formação por meio de um programa integrado, a profissionalização e a institucionalização. O curso de Avaliação em Saúde é apenas uma peça da iniciativa da cooperação entre Ministério da Saúde e ENSP para a formação de avaliadores. O conjunto de atividades de formação previstas continua sendo realizado pela ENSP e por outras reconhecidas instituições de ensino e pesquisa no Brasil. Algumas evidências marcam o processo de profissionalização e institucionalização, tais como: a realização do primeiro concurso do MS para avaliadores (BRASIL, 2014b) a recente criação do Grupo de Trabalho para elaboração da Política Nacional de M&A (BRASIL, 2017), e a criação da Rede Brasileira de Monitoramento e Avaliação12. Referências ABED - Associação Brasileira de Educação a Distância. Censo EAD.BR: relatório analítico da aprendizagem a distância no Brasil 2016. Curitiba: InterSAberes, 2017. ABREU, D. M. F. et al. Usos e influências de uma avaliação: translação de conhecimento? Saúde em Debate, v. 41, n. spe, p. 302-316, 2017. ALMEIDA, O. C. S. Evasão em cursos a distância: análise dos motivos de desistência. In: CONGRESSO INTERNACIONAL ABED DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA, 14., 2008, Santos. Anais [...]. Santos: ABED, 2008. ALONSO, K. M. A EAD no Brasil: sobre (des)caminhos em sua instauração. Educ. rev., n. spe 4, p. 37-52, 2014. ASSIS, A. M. 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Internet e Saúde 403 Capítulo 14 Massive Open Online Courses (MOOC) no campo da saúde: iniciativas brasileiras Liara Saldanha Brites* e Cristianne Maria Famer Rocha Resumo Massive Open Online Courses (MOOCs) são cursos abertos e massivos ofertados em ambientes virtuais de aprendizagem, que permitem o compartilhamento de experiências, conhecimentos e informações. Este capítulo objetiva realizar um mapeamento da produção de MOOCs na saúde no Brasil, nas dissertações e teses e das iniciativas governamentais na área da saúde. Trata-se de um estudo qualitativo, com base na análise documental dos sites dos Ministérios da Saúde e da Educação brasileiros, do MOOC-List.com e da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD). Embora não use a nomenclatura MOOC, o Brasil investe em iniciativas pedagógicas massivas, on-line e abertas. Os resultados indicam que a produção acadêmica sobre MOOCs na saúde é incipiente. Há um potencial a ser explorado, que inclui a educação permanente e continuada dos profissionais de saúde e a troca de experiências e conhecimentos entre pesquisadores, profissionais e usuários do sistema de saúde brasileiro. Palavras-chave: Educação a distância; Educação em Saúde; Educação On-line. Referência: BRITES, L. S.; ROCHA, C. M. F. Massive Open Online Courses (MOOC) no campo da saúde: iniciativas brasileiras. In: PEREIRA NETO, A.; FLYNN, M. (orgs.). Internet e saúde no Brasil: desafios e tendências. 1 ed. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2020. p. 402-419. * Escola de Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil. Email: [email protected]. 404 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Introdução O advento das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTIC) permitiu uma mudança nos nossos cenários. Olhemos para os lados: estamos rodeados de computadores, smartphones, tablets, notebooks e outros dispositivos móveis que continuam a surgir devido à sua rápida evolução. Eles fazem parte do nosso cotidiano, enquanto cidadãos que fazem uso dos serviços de saúde e enquanto profissionais de saúde. Usuários realizam uma pesquisa breve sobre determinado assunto de saúde em sites ou aplicativos, atualizam conhecimento ou mesmo esclarecem dúvidas ao fazer contato com profissionais ou outros usuários dos serviços de saúde. Enxergamos esse cenárioquando decidimos escrever este capítulo sobre a combinação que nos parece mais óbvia e potente dos temas internet e saúde: educação on-line. A Educação a Distância (EAD), que será analisada em outro capítulo deste livro)1, é conhecida por alguns brasileiros e foi acompanhando o ritmo da tecnologia da informação. Houve um tempo em que os alunos recebiam seus materiais por correspondências físicas e assistiam aulas na televisão. Hoje, contam com aparatos tecnológicos e internet. É nesse contexto que convidamos o leitor a analisar uma novidade importante para nós, pela potência a ser estudada no Brasil, em especial no campo da saúde: os Cursos Online Massivos e Abertos, também conhecidos comoMassive Open Online Courses ou MOOCs. Os MOOCs são um modelo de curso on-line que faz parte da EAD. No entanto, eles, não são delimitados enquanto tal, principalmente porque têm origem, como sua denominação aponta, na educação aberta (open education), no acesso gratuito e aberto dos materiais, além de ter uma flexibilidade incomum as experiências de EAD (MARQUES, 2015). Também podem se aproximar a outros conceitos, como educação on-line ou educação sem distância (TORI, 2010), devido às inúmeras possibilidades de interações imediatas. Porém, essa definiçao dos MOOCs é dificultada pelo pouco tempo de sua existência e, consequentemente, de estudos a esse questionamento. O movimento de acesso aberto, que possui estreita relação com os MOOCs, está presente no Brasil, incluindoa área da saúde. No caso da promoção da literatura científica de forma livre e sem custos de acesso, é percebido pelo crescente número de Repósitos Digitais desde 2009. Em 2017 eram 48 Repositórios Institucionais no Brasil, incluindo o LUME, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e o ARCA, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), conhecido pela publicação de pesquisas em saúde pública no Brasil. 1 O tema da Educação à Distância será abordado no capítulo 13. Internet e Saúde 405 Essa educação se apresenta principalmente no âmbito das universidades abertas que admitem, por exemplo, estudantes sem a comprovação de conhecimentos prévios e possibilitam a criação de rotas de estudo próprias, o que pode se tornar atrativo a adultos com objetivos de aprendizagem bem definidos. A certificação é recebida ao final de cada módulo, que pode ser feito separadamente ou após o estudante atingir um número mínimo de créditos (INAMORATO, 2009). No Brasil e na área da saúde, a universidade aberta é representada, dentre outras estratégias, pela Universidade Aberta (UAB) e pela Universidade Aberta do SUS (UNA-SUS). Trata-se de iniciativas governamentais realizadas peloMinistério da Educação (MEC) e pelo Ministério da Saúde (MS), respectivamente, que contam com a parceria de diversas Instituições de Ensino Superior (IES). Por parecerem similares aos MOOCs, essas iniciativas governamentais serão discutidas neste estudo. Os MOOCs têm origem no Canadá. A sigla foi utilizada pela primeira vez em 2008 por Dave Cormier, em alusão ao curso “Connectivism and Connective Knowledge”, de George Siemens e Stephen Downes, ministrado on-line, com acesso aberto às 2.300 pessoas que se registraram, apesar de apenas 25 delas terem pago uma taxa para receberem certificação ao final (YUAN; POWELL, 2013). Esses cursos costumam ser ofertados gratuitamente para qualquer pessoa com acesso à internet e têm curta duração, possuindode 3 a 12 semanas, geralmente. São promovidos e coordenados por renomadas instituições de ensino e disponibilizados em plataformas virtuais de aprendizagem em distintas áreas do conhecimento e em inúmeras opções. Em algumas situações, há certificação paga a quem desejar, (DAL FORNO; KNOLL, 2013). Todavia, em função da diversidade de cursos, plataformas, métodos pedagógicos, instituições e modelos de negócio que já caracterizam o universo desses cursos, algumas definições de MOOC enquanto um curso sempre aberto, massivo e online, não são extensivas a todas as experiências existentes. Em alguns casos, há cobrança de taxas para certificação, e a tendência é de que alguns MOOCs venham a ser pagos, como em universidades americanas. Nelas, já há um movimento para que os MOOCs sejam reconhecidos e validados como disciplinas de graduação ou pós-graduação. Muitos cursos divulgados como MOOCs também exigem inscrição, e o estudante participa em uma plataforma fechada. Além disso, nem todos os materiais têm código aberto ou são “Recursos de Educação Aberta” (REA), já que muitos estão protegidos por algum tipo de propriedade intelectual (MATTAR, 2013). Ainda que haja essas variações, instiga saber como a implementação dos MOOCs está ocorrendo no Brasil, e como vêm sendo explorados no Sistema Único de Saúde (SUS), inclusive na formação dos profissionais. Constana Constituição Federal a competência do SUS na ordenação da formação de recursos humanos na área da saúde, bem como o incremento do desenvolvimento científico e tecnológico em sua área de atuação (BRASIL, 1988). 406 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Em uma breve busca pela internet, é possível acessar dezenas de plataformas de MOOCs e selecionar apenas aquelas categorizados como cursos da saúde. Além dos sites das plataformas, observa-se informações de milhares de MOOCs no site do MOOCList.com (MOOC LIST, 2017). Trata-se de um diretório de MOOCs, em língua inglesa, que divulga cursos disponíveis em noventa provedores e com acesso aberto, embora seja permitida a opção de pagamento para certificação ou exame. Nele, mediante cadastro gratuito, é possível encontrar MOOCs utilizando vários filtros disponíveis em uma ferramenta de busca, entre eles: “áreas do conhecimento”, “novos cursos”, “cursos com início em breve”, “fornecedor”, “universidades”, “duração”, “categorias”, “tempo estimado de estudo semanal”, “idioma”, “país” e “lista de palavras-chave”. Os MOOCs abordam conteúdos de distintas áreas de conhecimento, embora não seja de modo proporcional. Ao realizar buscas nos sites de grandes plataformas e provedores de MOOCs (como Coursera, Udacity, Veduca, edX e MiríadaX), é possível constatar que se destacam as ciências, tecnologias, engenharias e matemática. Isso pode ser atribuído ao fato de historicamente os primeiros MOOCs serem dessas áreas das grandes universidades parceiras dessas plataformas serem consagradas nessas áreas. Na saúde, foram visualizados poucos MOOCs. Ao mesmo tempo, há uma baixa produção científica de dissertações e teses brasileiras sobre os assuntos “MOOC” e “saúde”. Torna-se difícil coletar dados sobre experiências similares de MOOCs desenvolvidas no Brasil, no que diz respeito às principais características desses cursos (online, abertos e massivos), uma vez que não há um diretório que centralize essas informações. Tal fato agrava-se quando a busca é restrita à área da saúde. Os MOOCs têm um imenso potencial no campo da Educação em Saúde.A adesão de medicamentos, a influência da genética para o desenvolvimento de câncer e a disponibilização de guias para iniciantes sobre saúde cardiovascular (SPRING, 2016), por exemplo, poderiam ser oferecidos nessa modalidade para permitir o acesso sem custos a centenas ou milhares de participantes. Além disso, os MOOCs são importantes na educação dos profissionais de saúde e dos usuários dos serviços de saúde, que poderiam se beneficiar em comunidades de apoio e com o acesso a conhecimentos atualizados (HOY, 2014). É nesse contexto, alicerçado pelos MOOCs e pelas indagações sobre seu uso na educação em saúde no Brasil, que este capítulo apresenta como objetivo realizar um mapeamento do que vem sendo produzido de MOOCs na saúde no Brasil, de dissertações e teses sobre esses cursose de iniciativas governamentais na área da saúde com características semelhantes aos MOOCs. 1. Percurso metodológico Internet e Saúde 407 Para cumprir com o objetivo deste estudo, de cunho exploratório e abordagem mista, algumas etapas foram percorridas. A fim de conhecer um pouco a realidade internacional dos MOOCs na saúde e como o Brasil se apresenta nesse cenário, um banco de dados, foi criado para análise dos cursos, a partir de busca no site do MOOC-List.com. Primeiro, entre as 32 categorias temáticasdisponíveis no site, selecionou-se no site apenas aquela denominada “saúde e sociedade”. Assim, foram localizados 376 cursos, apresentados brevemente no site. Cada nome de curso contém, no MOOC-List.com, um hiperlink com acesso a uma nova página virtual, na qual são detalhados os seguintes dados:nome do curso, provedor, instituição de ensino, instrutores, categoria, dia de início, duração, pré-requisitos, tipo de trabalho final, idioma, país e recursos didáticos utilizados. Esses elementos, coletados individualmente, foram inseridos no banco de dados. Foram incluídos todos os cursos disponíveis no diretório, independente da sua data de término ou começo, até a data de 22 de maio de 2016 - dia da última coleta. Nenhum curso, entre os 376 selecionados, foi excluído da análise. Uma vez conformado o quadro sintético de MOOCs, foi realizado um levantamento das ocorrências, para posterior análise e categorização. A partir da pesquisa acima, observou-se que as plataformas/provedores de MOOCs Canvas Network, Coursera, edX, France Université Numérique – FUN, FutureLearn, MiríadaX e TELELAB lideravam a elaboração de cursos na área da saúde, e a plataforma brasileira denominada “Veduca”. Foi então realizada uma etapa de análise documental a partir dos sites dessas plataformas, a fim de buscar informações sobre parcerias das referidas plataformas com instituições e organizações brasileiras, até a data de 12 de junho de 2017. Nesse mesmo período, foi realizada análise documental de dissertações e teses brasileiras sobre MOOCs, por meio da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD): portal de busca que reúne teses e dissertações defendidas em todo o Brasil e por brasileiros no exterior. A busca foi realizada por assunto “MOOC” e foram incluídas todas as dissertações e teses encontradas até 12 de junho de 2017. Os dados coletados nas etapas acima foram discutidos com base em análise documental dos sites do MS e MEC, com busca pelo assunto “MOOC”. Além disso, foi realizada análise dos seguintes sites: UAB, iniciativa do MEC que contém cursos para a área da saúde; UNA-SUS; Ambiente Virtual de Aprendizagem no SUS (AVA-SUS); Comunidade de Práticas (CdP); EAD da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP) da Fiocruz, que contém iniciativas do MS em cursos para a saúde. Todas as buscas nestes sites institucionais foram realizadas durante o período de outubro de 2017. 408 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) 2. Resultados e discussão 2.1. Os MOOCs no campo da saúde no mundo Antes de apresentarmos os dados brasileiros a respeito dos MOOCs voltados para a área da saúde, consideramos importante ressaltar que, mundialmente, a área da saúde tem pouca presença no universo de MOOCs quando comparada a outras áreas de conhecimento. A partir de busca no site do MOOC-List.com, constatou-se que os 376 cursos encontrados na categoria “saúde e sociedade” representaram apenas 8,19% dentre os 4.593 cursos disponíveis no diretório de MOOCs. Foi possível observar a criação recente e o crescimento gradativo de MOOCs na saúde ao longo dos anos. Os MOOCs foram criados em 2008. O ano de 2012 foi considerado por Pappano (2012) “o ano dos MOOCs” (PAPPANO, 2012). Este autor construiu desta designação devido ao rápido crescimento e à visibilidade alcançada pelos cursos nesse ano, tanto pelo número de alunos inscritos quanto pelo número de renomadas instituições de ensino que passaram a ofertar cursos por meio das plataformas provedoras. Entretanto, surpreendentemente, no mapeamento não se encontrou MOOC no campo da saúde em 2012. Os primeiros são datados de 2013, quando oito cursos foram disponibilizados. Os 376 cursos da saúde pertencem a 25 das 90 plataformas listadas no MOOCList.com. A americana Coursera tem ofertado mais cursos na área da saúde (37,77%), seguida da britânica FutureLearn (15,69%), das americanas edX (14.36%) e Canvas (7.18%), da ibero-americana MiríadaX (5.32%) e da francesa France Université Numérique - FUN (4.79%). As plataformas provêm MOOCs com conteúdos elaborados pelas instituições de ensino com as quais têm firmado parcerias. Assim, as três plataformas com maior número de MOOCs apresentam parcerias com instituições que possuem experiência na saúde. Em estudo sobre a visão de especialistas americanos e brasileiros sobre os MOOCs, Jacoski (2015) apontou que a plataforma Coursera detém mais instituições, mais cursos e vem crescendo significativamente, o que também pode explicar sua liderança em cursos para a saúde. Segundo seu site, a Coursera possuía em 2017 parceria com 150 instituições de 29 países (COURSERA, 2017), entre elas algumas com renome de produções técnicocientíficas no campo da saúde, como: Johns Hopkins Bloomberg School of Public Health, Stanford University, University of Copenhagen, Yale University, University of Michigan e The University of Manchester. Entre as parceiras da Futurelearn estão a University of Birmingham, London School Of Hygiene & Tropical Medicine, University Of Leeds e Taipei Medical University (FUTURELEARN, 2017). Já a edX conta com as renomadas Harvard University, University of Toronto, Boston University, entre outras (EDX, 2017). Internet e Saúde 409 As informações relacionadas ao país e idioma de origem de cada MOOC também estão intimamente ligadas à parceria entre instituições e plataformas. Em geral, uma universidade brasileira, por exemplo, produzirá o MOOC pelo menos emportuguês, podendo haver tradução para outras línguas. Posterioremente, tal curso será disponibilizado na plataforma parceira dessa instituição. Na pesquisa que serviu de base para a redação deste capítulo, foi constatado que os Estados Unidos da América são o líder de MOOCs para a saúde (43,62%), seguido do Reino Unido (18,35%), da França (5,85%), da Espanha (5,59%) e da Austrália (5,05%). O Brasil ocupa a 6ª posição, com 3,19% dos cursos. Esses dados são compatíveis com os idiomas encontrados. O inglês é predominante e está presente em 81,35% dos cursos oferecidos, seguido do espanhol (6,99%), do francês (5,18%) e do português (3,37%). Os resultados convergem com o estudo de Finardi e Tyler (2015), os quais encontraram, dentre os 2.800 MOOCs analisados, 2.326 deles (83%) em inglês. A liderança das universidades que oferecem MOOCs em inglês também é encontrada no ranking das melhores universidades do mundo e tem sido motivo de discussão sobre o papel e a relação entre globalização e línguas estrangeiras no processo de internacionalização do ensino superior (FINARDI; SANTOS; GUIMARÃES, 2016). Ao analisar o World Reputation Rankings 2016 (THE, 2016), é possível observar que oito instituições americanas estão entre as dez melhores universidades do mundo, todas anglófonas, possuem parcerias com a Coursera e a edX, ofertam cursos na área da saúde e produzem MOOCs, predominantemente, em inglês. Quadro 1. Ranking das melhores universidades do mundo, país e plataformas/parceiras Instituição Universidade de Harvard Instituto de Tecnologia de Massachussets Universidade de Stanford País Estados Unidos da América Estados Unidos da América Estados Unidos da América Idioma Principal Posição em 2016 Plataforma de MOOC Inglês 1 edX Inglês 2 edX Inglês 3 Coursera Ofertam cursos on-line, mas não são considerados MOOC Ofertam cursos on-line, mas não são considerados MOOC Universidade de Cambridge Reino Unido Inglês 4 Universidade de Oxford Reino Unido Inglês 5 Inglês 6 edX Inglês 7 Coursera Universidade da Califórnia, Estados Unidos da Berkley América Estados Unidos da Universidade de Princeton América 410 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Universidade de Yale Universidade de Columbia Instituto de Tecnologia da Califórnia Estados Unidos da América Estados Unidos da América Estados Unidos da América Inglês 8 Coursera Inglês 9 edX e Coursera Inglês 10 Coursera Fonte: As autoras (2017). Os achados reforçam dois aspectos: É necessário que o interessado/a possua conhecimentos de inglês e letramento digital para acessar as informações on-line e participar ativamente no mundo globalizado, e a língua inglesa ainda predomina nos conteúdos on-line (FINARDI; TYLER, 2015). Altbach (2014) alerta esta evidência pode indicar um possível controle de conhecimento. Segundo o autor, os conteúdos dos MOOCs são baseados em experiências acadêmicas e ideias pedagógicas norte-americanas. Mesmo quando se tenta diversificar com traduções para outros idiomas, tende a predominar o contexto americano ou europeu, já que esses dominam a literatura científica e possuem professores de renome que dão aulas e pesquisam em universidades de prestígio. Nesse sentido, Boal e Stallivieri (2015) também apontam que os MOOCs devem considerar uma internacionalização curricular e atentar para diferentes pontos de vista, contemplando distintas visões de mundo. 2.2. Os MOOCs no campo da saúde no Brasil Os primeiros registros de MOOCs no Brasil datam de 2012 (MARQUES, 2015). Porém, a disponibilização de cursos de universidades brasileiras nos portais americanos teve início somente dois anos depois, em setembro de 2014, em um acordo entre a Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e a Universidade de São Paulo (USP) com a Coursera. Naquele momento as instituições se comprometeram em produzir e disponibilizar MOOCs em diversas áreas do conhecimento, em português, mas com tradução para outros idiomas (SOUZA; CYPRIANO, 2016). Desde então, a produção de MOOCs para a saúde no Brasil vem crescendo. Até junho de 2017, algumas das plataformas que mais produzem MOOCs na área da saúde informaram a existência de parcerias com 13 instituições e organizações brasileiras para produção de MOOCs: Internet e Saúde 411 Quadro 2. Parcerias de Plataformas de MOOCs e instituições de ensino brasileiras Plataforma de Instituição de ensino brasileira MOOC Universidade de São Paulo (USP) Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Fundação Lemann Coursera Instituto de Ensino Superior e Pesquisa (Insper) Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) Fundação Instituto de Administração Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB) Universidade Anhembi Morumbi MiríadaX Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) Universidade de São Paulo (USP) Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). TELELAB Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Fonte: As autoras (2017). As plataformas Canvas Network, edX, FUN e FutureLearn ainda não possuem registros de parcerias com instituições brasileiras. Apesar de não constar no Quadro 2, por ainda não produzir MOOCs na saúde, é importante citar que o Brasil já conta com uma plataforma conhecida internacionalmente no mundo dos MOOCs: a Veduca. Ela iniciou as atividades em 2012 com um acervo de aulas das melhores universidades do mundo, como o Massachusetts Institute of Technology (MIT), Harvard, Yale, Stanford e USP, com legendas de vídeo aulas em português. Em 2013, a Veduca lançou seus primeiros MOOCs da América Latina, com certificação. Atualmente, além de professores da USP, trabalha com profissionais da Universidade de Brasília (UnB), Universidade Estadual de São Paulo (UNESP), Fundação Lemann/Instituto Península, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) (DING, 2014; SILVA, 2014; VEDUCA, 2016). Ao se observar a representatividade das instituições brasileiras para os MOOCs na área da saúde, no levantamento realizado no MOOC List, foram encontrados somente doze cursos ao restringirmos ao filtro “saúde e sociedade” ao país “Brasil”. Dez estão alocados na Plataforma TELELAB e são produzidos pela UFSC; um está na Coursera, produzido pela USP; e um está na MiríadaX, produzido pela PUCRS. São poucas as instituições de ensino superior (IES) envolvidas: três IES dentre as 2850 cadastradas atualmente no MEC. 412 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Diferente dos MOOCs da Coursera e da MiríadaX, aqueles da TELELAB têm foco em patologias (identificação, monitoramento, tratamento e cuidado), características auto instrucionais de aprendizado, estimativa de dedicação semanal de uma hora, além de exame e certificado de conclusão. Essas características possivelmente estão relacionadas ao perfil da instituição (UFSC) que produz os MOOCs para essa plataforma e às demandas do MS, que é o mantenedor da TELELAB, “um programa de educação continuada do Ministério da Saúde que disponibiliza cursos gratuitos, cujo público-alvo são os profissionais da área de saúde” (TELELAB, 2017). Os MOOCs variam quanto ao seu formato (metodologia, tecnologia e proposta pedagógica utilizadas), já que, além do perfil da plataforma provedora e do perfil da instituição que auxilia na produção dos conteúdos abordados, a escolha de um MOOC está imbricada com o tipo de construção que se quer para o curso. Por exemplo, na análise das quatro experiências brasileiras pioneiras em MOOC, cada uma possuía características próprias - quais sejam: “Jornal na sala de aula” (desenvolvido a partir do Veduca), a “Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira” (desenvolvidos a partir do Moodle), “MOOC Tutoria” (desenvolvidos a partir do Moodle) e “MOOC EAD” (desenvolvido a partir de Blog). Os pressupostos pedagógicos utilizados nessas experiências não eram uniformes, e o formato desses MOOCs não eram padronizados no que diz respeito à metodologia, à tecnologia e à proposta pedagógica (MARQUES, 2015). A produção científica brasileira sobre MOOCs nas IES no Brasil, considerando as dissertações e teses não é muito expressiva. Ainda que a produção tenha aumentado a partir de 2015. Pesquisando o acervo da BDTD constatamos que das 35.1831 dissertações e 130.660 teses de cem IES brasileiras, apenas 11 trabalhos sobre MOOC foram encontrados. Esta produção copncentrou-se em oito IES, sendo dez dissertações e uma tese, todas em português. N ão foram encontradas publicações na área da saúde. A produção das áreas de educação (oito dissertações e uma tese) e exatas (duas dissertações) buscam discutir os métodos e a visão dos autores em relação aos MOOCs realizados em suas respectivas áreas. Eles concluem demonstrando que tais cursossão eficaz e positivos. Issoconverge com os resultados do estudo de Almeida, Canabarro e Silva (2017). Nessa pesquisa, por meio de revisão integrativa, foram avaliados seis artigos encontrados sobre MOOCs na área da saúde. As autoras constataram um pequeno número de publicações científicas a respeito do desenvolvimento de MOOC. Eles também identificaram que a maioria dos artigos s discorria sobre a metodologia e opinião dos autores em relação aos cursos, demonstrando os MOOCs como eficaz e impactantes positivamente no ensinoaprendizagem na saúde (ALMEIDA; CANABARRO; SILVA, 2017). Os sites governamentais dão pouca visibilidade aos MOOCs. No site do MS não há nenhuma menção ao termo MOOC. O MEC sinaliza um investimento por meio de cooperação técnica firmada em maio de 2017 com o Instituto TIM. Inicialmente, seriam Internet e Saúde 413 oferecidos 25 MOOCs, por meio da Rede e-Tec Brasil2 sobre linguagens de programação, banco de dados, websites, desenho de jogos e design de interfaces (BRASIL, 2017). O Instituto TIM foi fundado em 2013 e em 2017 contava com 25 MOOCs (TIM TEC, 2017). Porém, nenhum deles era sobre saúde. 2.3. As iniciativas governamentais na saúde são MOOC? Mesmo com as buscas citadas, permaneceram três questionamentos. O que o Brasil vem produzindo de cursos on-lines na saúde? Tais cursos são MOOCs? O que os distancia ou os aproximam dos MOOCs? Ainda que o Brasil demonstre pouca experiência na produção de MOOCs, há iniciativas institucionais importantes de serem mencionadas no movimento de cursos online para a saúde, como os ofertados pela “Universidade Aberta do Brasil” (UAB), ligada ao MEC, e as iniciativas do MS: O “Sistema UNA-SUS”, o AVA-SUS e a Comunidade de Práticas (CdP). Abaixo, descreveremos essas experiências e suas características. A UAB é um sistema integrado por universidades públicas que oferece cursos de nível superior, por meio do uso da EAD, para camadas da população que têm dificuldade de acesso à formação universitária. O público prioritário são professores, dirigentes, gestores e trabalhadores da educação básica. Funciona como um instrumento para a universalização do acesso ao ensino superior e para a requalificação do professor em outras disciplinas, fortalecendo a escola no interior do Brasil, minimizando a concentração de oferta de cursos de graduação nos grandes centros urbanos e evitando o fluxo migratório para as grandes cidades. Foi criada em 2005, e atualmente 105 instituições integram a UAB (CAPES, 2017). O Sistema UNA-SUS (UNA-SUS, 2017) é um pouco mais recente que a UAB. Foi criado em 2010, com objetivo de atender as necessidades de capacitação e educação permanente dos profissionais de saúde que atuam no SUS. Três elementos compõem a UNA-SUS: a Rede Colaborativa de Instituições de Ensino Superior, o Acervo de Recursos Educacionais em Saúde (ARES) e a Plataforma Arouca. Todos os cursos são gratuitos e na modalidade EAD, a fim de facilitar o acesso dos profissionais de saúde. As ofertas possuem enfoque prático, baseado no cotidiano e necessidades dos profissionais, e os certificados são emitidos em diversos níveis de capacitação, conforme a carga horária. Os conhecimentos adquiridos nos cursos são documentados na Plataforma Arouca, por meio de provas on-line e emissão/inclusão de certificados. Os recursos educacionais são postados no ARES, que permite livre acesso a todo seu conteúdo. 2 A “Rede e-Tec Brasil” é uma iniciativa integrante das ações do “Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego” (Pronatec). 414 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Os cursos podem ser desenvolvidos tanto pelas 35 IES que compõem a Rede Colaborativa de Instituições de Ensino Superior quanto pela Secretaria Executiva da UNA-SUS. Ao acessar os cursos e plataformas, é possível observar que isso resulta em uma diversidade de formatos e critérios prévios para realização das inscrições, conforme a instituição e os objetivos do curso oferecido. Alguns, por exemplo, são destinados a um público específico; outros, são abertos apenas para um nível de escolaridade, autoinstrucionais, com tutores, com limitação de vagas, exigência de cumprimento de atividades para a certificação e, na maioria, com prazos de início e término. A UNA-SUS, até junho de 2017, mostrava em seu site 31 cursos (desses, 25 foram encerrados), que versavam sobre assuntos práticos do cotidiano e necessidades dos profissionais da saúde, em especial do SUS, e abordavm também casos clínicos. Esses cursos caracterizavam-se como massivos3. Apesar da instituição divulgá-los como abertos, alguns eram restritos a determinadas categorias profissionais ou apenas a profissionais – o que impede, por exemplo, que a comunidade em geral tenha acesso. Nem todos os cursos da UAB e da UNA-SUS são massivos. Em sua maioria, há necessidade de cadastro, e o número de vagas é limitado. Recentemente houve investimento em cursos massivos e abertos, tal como os MOOCs, mas as instituições não utilizam essa nomenclatura. Em setembro de 2015, o MS, em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), lançou mais uma estratégia de educação aberta aos profissionais do SUS: o AVA-SUS. Trata-se de um ambiente desenvolvido para profissionais e alunos da área da saúde, cujo objetivo principal é qualificar a formação, a gestão e a assistência no SUS. Com financiamento do MS, são disponibilizados módulos educacionais elaborados pela UNA-SUS e disponibilizados pelas instituições. São compostos por diversos recursos, como textos, áudios e vídeos, abordando temas clínicos e a organização do processo de trabalho no SUS. O AVA-SUS tem base no Moodle, uma vez que a maioria dos parceiros da UNASUS utilizam essa plataforma de ensino a distância baseada em software livre. Porém, a equipe da UFRN desenvolveu um layout que parecesse mais intuitivo e atrativo que o Moodle, além de ser responsivo4 – isto é, sua aparência se adapta a dispositivos móveis. O trabalho visual também é perceptível à medida que apresenta um conjuntode cursos e materiais com base em um perfil do usuário, traçado conforme os dados fornecidos, como profissão e áreas de interesses, e acessos. É permitido ao participante escolher seu itinerário de aprendizagem, selecionando módulos de seu interesse, que estão sempre disponíveis, uma vez quenão há prazo para conclusão. Um certificado de curso livre é emitido para cada módulo educacional concluído, sendo também possível a certificação em 3 Um curso é considerado massivo quando tem a capacidade de permitir o acesso expressivo de pessoas ao mesmo tempo. 4 O site responsivo é aquele que possui um design que identifica a largura de cada dispositivo, o espaço disponível e como a página será mostrada. Ele também ajusta dimensões das imagens, das fontes e dos demais elementos para que não fiquem desproporcionais. Internet e Saúde 415 nível de aperfeiçoamento no caso de conclusão de, no mínimo, 180 horas dos módulos educacionais. (AVA-SUS, 2017). Aparentemente, o AVA-SUS cumpre os requisitos de cursos on-line e massivos. O que ainda o distancia dos MOOCs é a restrição de acesso. Os cursos são restritos a determinadas profissões e/ou grau de escolaridade, considerando a sugestão da IES que elaborou os conteúdos e questões éticas implicadas. No momento do cadastro, é preciso informar um código do cadastro brasileiro de ocupações, que direciona o perfil do educando aos cursos. Por exemplo, um curso relacionado ao atendimento clínico médico não é visualizado por um agente comunitário de saúde (ACS)5. Pelo mesmo motivo, esse impedimento também pode ser observado em alguns cursos da UNA-SUS. Além das ofertas educacionais disponíveis no AVA-SUS, o sistema incentiva o uso de outras ferramentas de aprendizagem do MS, como a Comunidade de Práticas (CDP, 2016), criada em 2012 e financiada com recursos públicos. A Comunidade de Práticas (CdP) do AVA-SUS é um espaço virtual no qual gestores e trabalhadores da saúde, em especial aqueles que atuam na Atenção Básica, podem se encontrar e compartilhar experiências, conformando uma rede colaborativa voltada para a melhoria das condições de trabalho e da qualidade do cuidado à saúde da população. Com mais de 45 mil inscritos, esta CdP conta com chat, relatos de casos e espaços para discussões temáticas criados pelos participantes e com um ambiente de cursos gratuitos on-line. O primeiro curso nessa plataforma foi lançado em fevereiro de 2014. Em 2016, já contava com onze cursos gratuitos e on-line. Apesar de ter relativamente poucos participantes (ao todo, são 29.688), se comparada aos outros ambientes virtuais acima citados, todos os cursos são massivos e abertos. O curso mais procurado, “Autocuidado: como apoiar a pessoa com Diabetes - nível superior”, por exemplo, tem 6.281 participantes. Esse curso, diferente dos oferecidos na UNA-SUS ou no AVA-SUS, não tem limitação de participantes, não tem prazo para conclusão, está sempre disponível e, apesar de ser indicado para profissionais de nível superior, qualquer pessoa pode acessá-lo. Petra et al. (2015) e o MS não nomeam os cursos oferecidos na CdP como MOOCs. A nosso ver, entretanto, estas são as experiências que estão mais próximas das características principais dos MOOCs (on-line, massivos e abertos). Os cursos da CdP são coinstrucionais6, abertos, sem turmas definidas e sem a presença de tutor. Materiais são disponibilizados, mas há uma valorização da contribuição dos participantes, principalmente nos espaços de interação assíncrona. Com base nos REA, utilizam licença Creative Commons, permitindo que os alunos ressignifiquem os materiais ao baixá-los, modificá-los e reproduzí-los em outros ambientes. No caso de conclusão de um curso, a certificação é emitida pelo MS, o que pode não ser reconhecid em concursos públicos ou em seleções em instituições de ensino, mas possibilita um registro de formação ao profissional de saúde (PETRA et al., 2015). 5 A inclusão digital de Agentes Comunitários de Saúde é discutida no capítulo 17. Cursos coinstrucionais são realizados a distância, sem tutoria, mas com possibilidade de interação entre os participantes por meio de fórum de discussões. 6 416 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Outra experiência digna de nota é desenvolvida pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz. A EAD/ENSP/Fiocruz é uma iniciativa para formação e qualificação, por meio da modalidade a distância, de profissionais que atuam na saúde e áreas afins. Possui uma equipe de profissionais multidisciplinar com expertise em diversas áreas de atuação. Criada em 1998, conta com 59.793 alunos egressos, 100.942 alunos matriculados, 2.247 docentes/tutores formados ao longo dos seus 59 cursos desenvolvidos nas categorias de Especialização, Aperfeiçoamento, Atualização e Formação Continuada. Seus cursos não se caracterizam como MOOC. Apesar de on-line, a maioria não tem acesso aberto nem é massiva, já que restringe o acesso por critérios de inclusão/formação, inclue seleção para um número limitado de vagas e tem tempo restrito de duração. Em junho de 2017, somente um dos cursos, denominado “Formação para Responsáveis Técnicos de Agências Transfusionais”, a nível de atualização, era possível ser cursado, mas mediante aprovação em seleção, para número restrito de vagas (FIOCRUZ, 2017). Mesmo com a análise dessas iniciativas do governo brasileiro de cursos on-line na saúde, não é possível garantir que os cursos da UNA-SUS, AVA-SUS, UAB, EAD/ENSP/Fiocruz e CdP sejam MOOCs. Isso se justifica pela variabilidade das suas características, inclusive dentro da mesma iniciativa - por exemplo, variam os critérios massivos e de acesso aberto. Também se explica por uma situação mais global: a dificuldade de definir os próprios MOOCs, uma vez que eles variam em sua construção e processo de aprendizagem. Marques (2015) admite que, sendo tão recentes, os MOOCs trazem consigo muitas incertezas no campo de pesquisa científica. É possível, neste momento, apenas afirmar que há iniciativas brasileiras trilhando no caminho dos MOOCs. Todos os cursos são on-line; portanto, compartilham do potencial dado pela conectividade via internet de levar o conhecimento sobre saúde a inúmeros locais e possibilitar uma ampla troca de experiências. São todos produzidos em português, o que permite a compreensão por muitos brasileiros. Porém, isso pode ser um fator impeditivo de ampliar para um acesso internacional a esses cursos e divulgar amplamente o que vem sendo produzido pelas instituições de ensino na saúde. O MOOC é uma ferramenta nova na saúde e pode ampliar o escopo de oportunidades educacionais e de formação de profissionais e estudantes da área (PARKINSON, 2014). Essa tem sido a prioridade das iniciativas do MEC e MS. Positivamente, cumpre com os compromissos constitucionais previstos quanto à formação de profissionais, mas, em contrapartida, acaba por limitar o acesso à populaçao em geral. Essa restrição pode estar embasada em impedimentos profissionais. Por exemplo, por questões éticas, não se pode disponibilizar um ensinamento de procedimento clínico amplamente, sob pena de risco à saúde, estando este permitido apenas a pessoas com formação específica para tal. Porém, reverbera num distanciamento dos demais cidadãos, não profissionais, do acesso ao aprendizado e de temas relevantes à saúde, em especial à saúde pública/coletiva. Internet e Saúde 417 3. MOOCs brasileiros na saúde: desafios e tendências Nossa intenção foi conhecer o que o Brasil produz relacionado aos MOOCs ou que iniciativas vêm sendo produzidas no país, para a saúde, e que possui características de cursos on-line, massivos e/ou abertos. Porém, este capítulo não abrange todos os MOOCs, uma vez que pode haver cursos não listados no MOOC-List.com ou não encontrados nos sites institucionais buscados durante a realização do levantamento em 2017. Não foi possível afirmar que há MOOCs na área da saúde incentivados pelo governo brasileiro, mas já é possível identificar iniciativas no caminho desse tipo de curso. Isso pode contribuir com reflexões e discussões acerca do planejamento e implantação de novos MOOCs, para participantes e instituições interessados no tema da saúde. Faltam estudos sobre os MOOCs no Brasil e exploração do potencial desses cursos na saúde. Talvez isso ocorra porque o tema é recente ou não tenha despertado o interesse acadêmico ou de instituições de ensino. Talvez porque o maior desafio da saúde nos MOOCs seja a proposta de inovação desse tipo de iniciativa. Os MOOCs dependem de um investimento financeiro, principalmente pelo custo de elaboração, manutenção e disponibilidade de plataformas que permitam com qualidade o acesso de milhares de pessoas ao mesmo tempo. Isso é dificultado no cenário de recessão econômica vivida no país e, consequentemente, de baixo investimento em pesquisas científicas. Além disso, o MOOC provoca uma mudança de postura, em especial nas instituições de ensino tradicionais brasileiras, apegadas a um modelo presencial de ensino, em relação à exigência de conclusão de um módulo/conteúdo para poder acessar outro e à importância da certificação. Esse movimento dos MOOCs também exige do educando uma adaptação à tecnologia e a aceitação de poder escolher seu percuso formativo. Tais exigências se deparam com um modelo de educação que, além de fazer uso da internet, na maioria das vezes é autoinstrucioinal, não tendo a presença de um professor/tutor. Esses fatores podem ser considerados desafios, mas também interessantes avanços, quando superados, no caminho de um novo modo de aprender. Diferente da área de ciências exatas, que são pioneiras no desenvolvimento e uso dos MOOCs, as questões éticas e corporativas também se apresentam como um desafio na área da saúde. Ainda é preciso que a comunidade acadêmica, os conselhos profissionais e os provedores de MOOC, sejam governamentais ou não, avancem na discussão do que é ou não possível divulgar e ensinar amplamente à população, em termos de conteúdos, e na produção de cursos para além da perspectiva clínica, explorando o uso na educação em saúde a toda população brasileira. A combinação da educação, tecnologia e saúde promovida pelo MOOC é um avanço a ser usufruída por milhares de pessoas. O desenvolvimento de um curso desse tipo requer, além de intenso trabalho e dedicação, planejamento, conhecimento de tecnologias e 418 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) metodologia para guiar a produção – algo possível mediante parcerias institucionais. Por fim, sugerimos que a oferta de MOOCs na área de saúde, no mundo e no Brasil, deveria considerar, principalmente: a educação permanente e continuada dos trabalhadores; a troca de experiências entre estudantes, profissionais e usuários de diversos locais do mundo, nos quais, por exemplo, uma mesma patologia ou até uma epidemia pode se manifestar de forma diferente; e o conhecimento como modo de fortalecer a autonomia e melhorar as condições de saúde da população. Um país onde já se faz uso de educação mediada por ferramentas on-line, com um grande número de trabalhadores de saúde e milhões de pessoas acompanhadas por um dos maiores sistemas de saúde público do mundo, parece sinalizar uma demanda, ainda que pouco conhecida, e um cenário favorável e pouco explorado ao uso de MOOCs. Referências ALMEIDA, L. M.; CANABARRO, S. T.; SILVA, H. T. H. Ferramenta de ensinoaprendizagem na área da saúde Massive Open Online Courses. Revista Emrede – Revista de Educação à Distância, v. 4, n. 1, p. 130-142, 2017. ALTBACH, P. G. Moocs as neocolonialism: who controls knowledge? International Higher Education, n. 75, p. 5-7, 2014. DOI 10.6017/ihe.2014.75.5426. AVA-SUS. Ambiente virtual de aprendizagem do SUS. AVA-SUS, Brasília, 2017. Disponível em: https://avasus.ufrn.br. Acesso em: 5 mar. 2020. BOAL, H. M. C.; STALLIVIERI, L. Os MOOCs e o processo de internacionalização das instituições de ensino superior. 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Este trabalho busca identificar as contribuições atuais da Literacia Digital em interface com a saúde nas publicações brasileiras. Trata-se de uma revisão integrativa de 18 trabalhos publicados nas bases do SciELO e da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS). Em relação aos resultados, destacam-se a diversidade quanto às palavras-chave das publicações mapeadas, prevalecendo os seguintes termos: informática, informação e tecnologias. A maior parte dos trabalhos identificados foi publicada em 2015. Nos estudos analisados, também foram observados o uso básico de computadores e sistemas de informação na saúde; a relevância da utilização das tecnologias digitais de informação e comunicação como ferramenta pedagógica na educação em saúde; e a necessidade de capacitação para seu uso no trabalho em saúde. A revisão integrativa realizada indica que a literacia digital crítica favorece o acesso, interpretação e análise da informação. Ela revela ainda que, a partir da gestão de conhecimento, os indivíduos podem investir na sua saúde e, consequentemente, na sua qualidade de vida Palavras-chave: Alfabetização digital; Competência em informação; Tecnologia da informação; Saúde; Meios de comunicação. Referência: Sousa, R. A. et al. Literacia Digital e interfaces com a saúde: uma revisão integrativa. In: PEREIRA NETO, A.; FLYNN, M. (orgs.). Internet e saúde no Brasil: desafios e tendências. 1 ed. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2020. p. 421-443. *Grupo de pesquisa Promoção em Comunicação, Educação e Literacia para a Saúde no Brasil (ProLiSaBr), Departamento de Serviço Social, Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Brasil. E-mail: [email protected] Internet e Saúde 423 Introdução Mediante o contexto globalizado, são vários os recursos disponibilizados pela internet que possibilitam a participação das pessoas. São inúmeras informações recebidas, acessadas, postadas e compartilhadas, diariamente, pelos nativos e imigrantes digitais1 (PRENSKY, 2001). Essa participação é afetada por aspectos sociais, culturais, ideológicos, pessoais ou profissionais. Com isso, tanto o acesso como a leitura e a compreensão das informações no contexto digital sofrem interferências das capacidades pessoais em conferi-las e divulgálas. Segundo Zattar (2017), A busca informacional, na maioria das vezes, tem como ponto de partida o Google, assim como a produção de informações tem crescido significativamente em meios como o Facebook ou WhatsApp. Tais atitudes exigem práticas informacionais críticas e éticas sob a perspectiva de ações solidárias e competentes para a busca, produção, uso e compartilhamento de informações nos mais diferentes contextos. (ZATTAR, 2017, p. 286). Observa-se que uma parcela significativa da população mundial vivencia boa parte de suas experiências em conexão com a rede. Através dela algumas pessoas, ao invés de utilizar os dados disponíveis na rede para participação política e social ou para promover acesso a conhecimentos e contribuir para a transformação social, assumem um papel passivo de consumidor de informações, podendo contribuir para a divulgação de conteúdos falsos e para a desinformação em massa em diversas temáticas (CARVALHO; MATEUS, 2018). Devemos analisar os aspectos que contribuem para o crescimento desse processo de desinformação. Também é importante considerar que a falta de acesso a informações e conhecimentos dificultam para que uma grande parcela da população saiba diferenciar notícias fidedignas de fatos, dados ou informações que sofreram manipulações por diversos motivos. Para Zattar (2017, p. 288), “A exigência de práticas informacionais éticas e críticas evidenciam a importância de verificação das fontes de informação usadas no cotidiano, o que coloca em xeque a avaliação do que é informação ou desinformação em determinado contexto”. Com isso, pode se inferir que a avaliação do que é informação ou desinformação deve ser uma capacidade ou habilidade da pessoa que pesquisa notícias, dados, fatos, conhecimentos por meio das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs). Isso posto, o foco desloca-se das facilidades ou dificuldades de uso das TICs enquanto ferramentas para disponibilizar o acesso a informações e passa a se centrar nas capacidades do sujeito 1 O capítulo 6 discute questão dos nativos digitais e o consumo de informação on-line sobre saúde. 424 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) em discernir a qualidade das notícias e informações acessadas, analisando-as a partir de uma atitude crítica e ética. Nesse tipo de atitude, pode-se reconhecer a capacidade para acessar, compreender e analisar as informações, interpretando-as criticamente e construindo suas próprias concepções a partir dos conhecimentos e informações anteriormente acumulados. Neste sentido a American Library Association define competência em informação da seguinte forma: Para ser competente em informação, uma pessoa deve ser capaz de reconhecer quando uma informação é necessária e deve ter a habilidade de localizar, avaliar e usar efetivamente a informação... Resumindo, as pessoas competentes em informação são aquelas que aprenderam a aprender. Elas sabem como aprender, pois sabem como o conhecimento é organizado, como encontrar a informação e como usá-la de modo que outras pessoas aprendam a partir dela. (AMERICAN LIBRARY ASSOCIATION, 1989). Em relação à busca de informação sobre saúde on-line, muitas pessoas apresentam dificuldades ou não sabem como pesquisar fontes fidedignas de postagens ou como aplicálas para melhorar sua saúde e qualidade de vida (OKAN; MESSER; SØRENSEN, 2020; SABOGA-NUNES et al., 2020). As TICs em saúde estão em uso para formação e atualização dos profissionais. Também são utilizadas na relação com o usuário do Sistema Único de Saúde (SUS), por meio de agendamento de consultas, manutenção de dados e atualização de informações em prontuários eletrônicos e divulgação de informações em saúde nas diferentes mídias. Com o avanço do ideário neoliberal e a ampliação das desigualdades sociais, a população mais empobrecida, oriunda da classe trabalhadora, está cada vez mais à mercê dos interesses do mercado, do lucro e, consequentemente, da exclusão das TICs. A superação dessa realidade exige a articulação de ações intersetoriais, com investimentos nas políticas públicas, que possam garantir a dignidade social da população. Um dos caminhos possíveis aponta para o reconhecimento da competência informacional como elemento principal a ser desenvolvido na educação formal e não formal da classe trabalhadora. Tal perspectiva ratifica a urgência da democratização no acesso e uso das informações disponibilizadas nas diversas mídias sociais e da universalização de oportunidades de desenvolvimento de competências informacionais, desde a escola infantil até o ensino técnico ou superior (ALVES, 2014; SOUSA; FRANÇA, 2017). Com isso, o Brasil poderá avançar no âmbito das habilidades e competências para o uso das tecnologias de forma crítica e ética, com a perspectiva do acesso à informação e ao conhecimento de forma ampla e comprometida com a transformação da sociedade. (SOUSA; FRANÇA, 2017). Internet e Saúde 425 Nessa perspectiva, consideramos que o aprofundamento do conhecimento sobre literacia digital no contexto da saúde se faz necessário e imprescindível. Assim, este capitulo objetiva identificar as contribuições atuais no campo da Literacia Digital em interface com a saúde nas publicações brasileiras. Para tanto, as reflexões apresentadas dialogam com conceitos como alfabetização digital, letramento digital e literacia digital, literacia para a saúde digital, que serão abordados a seguir. 1. O mundo virtual e o acesso a informações e conhecimentos: da alfabetização digital à literacia digital A Literacia Digital como a competência no uso dos recursos tecnológicos exige desenvolvimento contínuo de habilidades relacionadas à pesquisa e avaliação da credibilidade das informações acessadas; à compreensão das postagens de modo crítico; e ao uso criativo e responsável de conteúdos nas mídias. Ela pode ser percebida como um instrumento para adquirir os recursos necessários para o desenvolvimento ativo e criativo (ALVES, 2014; MATUSSE; FOFONCA, 2017). A Literacia Digital possibilita uma sociedade participativa e implica mais que usar o computador e seus recursos. Ela pressupõe o desenvolvimento de capacidades que permitem compreender e dominar a linguagem codificada e subjacente à cultura midiática (ALVES, 2014; MATUSSE; FOFONCA, 2017). E, com essa dinâmica alterada nos modos de viver, o professor, aqui compreendido como educador (que pode ser o profissional de saúde em ação educativa), tem duas escolhas: Por um lado, eles [os professores] podem optar por ignorar os seus olhos, ouvidos e intuição, fingir que a questão do Nativo Digital/Imigrante Digital não existe, e continuar a usar os seus métodos tradicionais muito menos eficazes até se aposentarem e os Nativos digitais assumirem o protagonismo. Ou podem escolher aceitar o fato de eles se tornaram Imigrantes em um novo mundo Digital, e olhar para a própria criatividade, para seus alunos Nativos Digitais [...] para ajudá-los a comunicar seu conhecimento ainda valioso e sabedoria em uma nova linguagem. A rota que por fim escolherem– e a educação dos seus alunos Nativos Digitais – depende muito de nós. (PRENSKI, 2001, p. 7, tradução nossa). A partir dessa concepção, pode-se estabelecer que na Literacia Digital espera-se que o sujeito vá além do acesso a informações e atualizações sobre os assuntos de seu interesse, englobando também uma interação. Com isso, o desenvolvimento de habilidades e competências no âmbito da Literacia Digital possibilita que a população possa aprender 426 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) (ato de adquirir conhecimento) e apreender (ato de captar e incorporar) os novos conhecimentos adquiridos, de modo a provocar transformações em seu cotidiano – a isso designou Paulo Freire conscientização (FREIRE, 1979). Estudos, trabalho, notícias, serviços e entretenimento, entre outros, podem ser realizados por meio de equipamentos digitais, que tem se tornado essenciais para grande parte da sociedade atual. Assim, as pessoas têm vivido em constante contato com os espaços virtuais. Em 2020, isso foi acentuado mundialmente pelos novos delineamentos de vida impostos pela pandemia provocada pelo COrona VIrus Disease - COVID-19 (OKAN; MESSER; SØRENSEN, 2020) incluindo isso o campo da saúde (SABOGANUNES et al., 2020). É inegável que o uso das TIC intensifica–se, e “a sociedade [...] dá forma à tecnologia de acordo com as necessidades, valores e interesses das pessoas que utilizam as tecnologias” (CASTELLS, 2006, p. 17). A expansão tecnológica digital de informação e comunicação se faz presente, e a cada dia criam-se novos produtos, que por sua vez são produtores de ideias, conceitos de interesses políticos, econômicos. Este fenômeno provoca duas reações distintas. Por um lado, aumenta e facilita o acesso, fácil e em tempo real às informações por meio da internet e, principalmente, dos celulares. Por outro, acarreta exclusão entre os povos ou grupos sociais mais empobrecidos economicamente. Muitos locais ou pessoas não possuem equipamentos adequados, rede de interconectividade ativa ou habilidade para lidar com o mundo das TICs (OLIVEIRA, 2017). Algumas pessoas não conseguem selecionar informações relevantes. O excluído digital tem uma dificuldade maior, pois não tem acesso aos recursos físicos para o uso das redes. Por esta razão está despreparado para acessar as informações desse meio (e.g. compartilhadas na internet). Diante disto, dois aspectos que se inter-relacionam podem ser identificados: a exclusão digital e social. Isso se explica porque sem acesso aos recursos econômicos e educacionais para a utilização dos benefícios do mundo digital, a pessoa também enfrenta dificuldades para inserir-se socialmente (SOUSA; FRANÇA, 2017). Esse é um dos maiores desafios da sociedade brasileira: a exclusão (também é) digital. Acredita-se na articulação da Literacia Digital com a saúde, e o aprofundamento da discussão sobre esses dois mundos obriga a entender o significado de alfabetização, letramento e Literacia Digital. A alfabetização digital se ocupa da aquisição da escrita, por uma pessoa ou grupos de pessoas. Na perspectiva da língua, a escrita vive uma revolução dada por outras formas de produção, circulação, distribuição e apresentação. Na perspectiva do sujeito que se pretende alfabetizar, o trânsito no espaço virtual é uma competência que proporciona diferentes modos de ler e escrever (COLL; ILLERA, 2010; FERREIRO, 2013; MOLINARI; FERREIRO, 2013). Segundo Colello (2016), Internet e Saúde 427 Para aqueles que superam as dimensões restritas do codificar e decodificar, isso significa também investir nos modos como o sujeito se relaciona com seu mundo. Sem necessariamente descartar esse entendimento, a compreensão do termo ‘alfabetização’ pode se estender para áreas específicas do universo letrado, justificando o aparecimento de termos específicos como ‘alfabetização literária’ e ‘alfabetização gramatical’. Por vezes, o termo aparece também no plural, como é o caso da expressão ‘múltiplas alfabetizações’, correspondendo à ideia das ‘múltiplas linguagens’. (COLELLO, 2016, p. 6). Para a alfabetização digital, é necessário ter um domínio funcional das tecnologias de leitura e escrita para ter acesso ao conhecimento numa sociedade em que a informação é relevante. Ou seja, é preciso aceitar que o domínio e o gerenciamento das TICs são básicos nessa sociedade informacional, assim como as aprendizagens relacionadas ao domínio de leituras e da escrita são nas sociedades letradas (COLL, ILLERA, 2010; COLELLO,2016). No Brasil, a palavra letramento é a mais utilizada para a tradução do termo literacy, que tem sua origem no inglês. “O termo letramento tem suas raízes nas palavras “letra” -littera (latim) e o termo cy, que aponta qualidade, condição ou estado, ou seja o vocábulo letramento corresponde a condição de ser letrado” (SABOGA-NUNES et al., 2019, p. 19). O conceito de letramento configura-se para além do processo de alfabetização, que se limita à aquisição da escrita, do ler, do fazer cálculos. “O letramento, pensado aqui como um processo mais amplo que a alfabetização e que a contém e determina, está relacionado com a existência e a influência de um sistema de escrita, socialmente vigente em uma sociedade letrada” (TFOUNI; PEREIRA; ASSOLINI, 2018, p,17). O letramento digital, portanto, vai além da alfabetização digital, pois refere-se à utilização da capacidade de compreensão. A pessoa interage, seleciona as informações e identifica as melhores fontes de dados. Porque o termo literacia não é utilizado por nós como sinônimo de letramento num patamar superior situamos o conceito da literacia digital. Literacia digital se refere à capacidade que a pessoa possui de processar as informações obtidas, por meio da leitura e da escrita, na sua vida diária, com objetivos e significações, a fim de intervir no seu cotidiano de forma autônoma em diversos contextos, como a literacia histórica, informacional entre outras (OLIVEIRA, 2017). A literacia digital é uma das estratégias relevantes para a busca de modelos salutogênicos que incluem a cultura de paz, habitação, família, educação, espiritualidade, lazer, determinantes,e condicionantes e a promoção da saúde em tempos de uma sociedade informacional (MOREIRA; MARTINS; SABOGA-NUNES, 2020). relacionar a Literacia Digital e sua interface com a saúde. A seguir, iremos 428 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) 2. Interfaces da Literacia Digital com a Saúde A utilização das TICs para a contribuição em vários espaços, entre eles, a saúde é imprescindível e poderia auxiliar de forma significativa na melhor compreensão de fatores para a prevenção de doenças e sobretudo na promoção da saúde e qualidade de vida das pessoas. Pode auxiliar também na definição ou redefinição de políticas de saúde e no trabalho da equipe de profissionais (SILVA, 2017). O papel da informação na promoção da saúde no Brasil tem um breve histórico. Na década de 1990, foi promulgada a Lei nº 8080/1990 (BRASIL, 1990), que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Esta determinação legal ressaltou o papel do Estado na organização de uma política pública para garantir a sistematização e disseminação de informações em saúde. O artigo 47 da referida Lei (BRASIL, 1990) já estabelecia que O Ministério da Saúde, em articulação com os níveis estaduais e municipais do Sistema Único de Saúde (SUS), organizará, no prazo de dois anos, um sistema nacional de informações em saúde, integrado em todo o território nacional, abrangendo questões epidemiológicas e de prestação de serviços. (BRASIL, 1990). Em dezembro de 2000, com a expansão das tecnologias de informação e comunicação, o Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT) publicou o livro “Sociedade da Informação no Brasil - Livro Verde”, produzido pelo Programa Sociedade da Informação (Socinfo) (TAKAHSKI, 2000). A referida obra apresenta, na dedicatória, a seguinte citação do livro “Tempo Morto e Outros Tempos” de Gilberto Freyre: “...nunca [...] plenamente maduro, nem nas ideias nem no estilo, mas sempre verde, incompleto, experimental” (TAKAHSKI, 2000, p. iii), que dá pistas sobre o subtítulo da produção. Esse livro foi apontado pelo governo, na época, como o marco para a implantação de políticas de inclusão digital no Brasil. Ainda na apresentação do “Livro Verde”, organizado por Takahski (2000), destaca-se a seguinte descrição: Esse livro contempla um conjunto de ações para impulsionarmos a Sociedade da Informação no Brasil em todos os seus aspectos: ampliação do acesso, meios de conectividade, formação de recursos humanos, incentivo à pesquisa e desenvolvimento, comércio eletrônico, desenvolvimento de novas aplicações. Esta meta é um desafio para o Governo e para a sociedade. (TAKAHSKI, 2000, p. v). Internet e Saúde 429 No início do século XXI, o Brasil buscava estabelecer propostas de avanços na infraestrutura, organização e oferta de serviços com o uso das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) aliadas à implantação de programas de inclusão digital. Porém, na área de saúde, a “Política Nacional de Informação e Informática em Saúde” (PNIIS) só foi instituída em 20 de maio de 2015, pela Portaria nº 589 do Ministério da Saúde (BRASIL, 2015). Tanto o “Livro Verde” como a PNIIS ressaltam o compromisso de instituições públicas e privadas da área de saúde em garantir a democratização do acesso a informações em saúde no âmbito individual e coletivo, de modo a facilitar e promover a participação social e o controle social das políticas públicas pela população brasileira. Mediante esse contexto, cabe a indagação sobre os motivos da implantação de uma política de informação em saúde ter ocorrido 15 anos após sua necessidade ter sido indicada pela Lei 8080/90 (BRASIL, 1990). Concomitante a isso, também é importante analisar quais as ações que foram realizadas, tanto na área de saúde como também numa perspectiva multisetorial, para o desenvolvimento de habilidades e competências relacionadas à busca de informações, inclusive sobre saúde, especialmente com o uso das TICs. A informação desempenha um papel controverso na saúde. Consideramos que a informação em saúde seja um componente crucial na comunicação em saúde. No entanto, a informação em saúde no Brasil reflete a predominância do chamado modelo biomédico de assistência à saúde, ou seja, a compreensão do processo saúde-doença a partir de uma única área, a medicina (SABOGANUNES et al., 2019). Ele é caracterizado por uma comunicação centrada na doença, com taxações e imposições de comportamentos e condutas por meio da informação transmitida. Esse modelo se distancia da população, dos conhecimentos no contexto da saúde e dos próprios profissionais de saúde, dificultando a ampliação das ações no âmbito da promoção da saúde (CORIOLANO-MARINUS et al., 2014; VARGAS; PINTO; MARINHO, 2019). Tal modelo caracteriza-se também pela verticalização da informação, ou seja, utiliza de uma comunicação na qual considera que apenas o profissional da saúde possui conhecimentos, e que lhes cabe transmitir a informação científica. Utiliza-se um fluxo de comunicação emissor-receptor-mensagem, cujo educador (profissional da saúde) assume um papel ativo ao desconsiderar os conhecimentos e experiência popular, e o usuário do SUS, um papel passivo. (CORIOLANO-MARINUS et al., 2014; VARGAS; PINTO; MARINHO, 2019). Na prática, as informações em saúde no Brasil, compartilhadas nas ações educativas por profissionais de saúde, são apresentadas em sua maioria a partir de um sentido patogênico, com enfoque nos sinais e sintomas. Entretanto, sabendo-se da amplitude e do conceito positivo de saúde, a informação em saúde deveria abranger temas voltados para a ampliação das condições de saúde, também conhecidos como temas salutogênicos. Nessa direção, ressalta-se a relevância da abordagem de aspectos 430 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) relacionados à promoção da saúde, como repouso, exercício físico, reposição hídrica, utilização do sol e síntese da vitamina D (MOREIRA; MARTINS; SABOGA-NUNES, 2020). Cabe salientar que a importância de informações em saúde em abordagem salutogênica já é reconhecida pelos órgãos governamentais brasileiros. Por outro lado, é sabida a dificuldade em superar o modelo biomédico e seus reflexos na atenção à saúde centrada na doença e seu tratamento (MOREIRA; MARTINS; SABOGA-NUNES, 2020). Assim, persiste a divulgação de campanhas informativas sobre doenças, suas causas, sinais, sintomas, de orientações para procurar atendimento médico e, às vezes, para prevenir complicações, ratificando o enfoque na patogenia. Junto a égide do modelo biomédico na difusão de informações de saúde outra questão merece destaque. A nosso ver não há investimento em ações e políticas públicas voltadas para o desenvolvimento da capacidade de acesso, compreensão e análise crítica de informações, inclusive sobre saúde, para a população, especialmente para aquela oriunda da classe trabalhadora. Historicamente, a grande massa populacional brasileira está alijada da perspectiva de saber como buscar outras informações e conhecimentos para analisar criticamente as questões que envolvem a saúde e seus condicionantes. A literacia digital não é inata ao sujeito: ela precisa ser apropriada, aprendida e apreendida. É necessário que o Estado crie oportunidades, por meio de políticas públicas, rumo a inclusão digital (SEBASTIÃO, 2014). A modernização digital pertence à realidade da sociedade contemporânea e por ela é produzida, e nesse movimento dialético há mudanças que devem ser efetivadas. As informações em saúde divulgadas nas mídias têm muito a avançar no Brasil. Considerando a perspectiva salutogênica, salienta-se a urgência na atualização dos profissionais de saúde para atuar com as TICs e na divulgação de informações com credibilidade. Nesse contexto, há uma aparente contradição entre um mundo conectado, que apresenta relativa facilidade e diversidade em acesso a informações em saúde, e a realidade de muitos utilizadores das TICs que não investigam a credibilidade e fonte das postagens para melhoria dos níveis de saúde e qualidade de vida. Além disso os profissionais de saúde utilizam as TICs para formação, atualização, atendimento e registro dos usuários do SUS. Por esta razão, faz-se imprescindível aprofundar o conhecimento sobre literacia digital no contexto da saúde. 3. Metodologia Este estudo apresenta uma revisão integrativa da literatura, que possibilita identificar o estado atual de boa parte dos conhecimentos produzidos no Brasil sobre as Internet e Saúde 431 temáticas da alfabetização digital, letramento digital e literacia digital em interface com a saúde e suas lacunas. Para a realização da revisão, foram desenvolvidas 6 etapas: identificação do tema e elaboração da pergunta norteadora; estabelecimento dos critérios para inclusão e exclusão dos estudos na busca em base de dados; definição das informações para categorização dos trabalhos; avaliação dos estudos incluídos; interpretação dos resultados; e apresentação da síntese do conhecimento (ERCOLE; MELO; ALCOFORADO, 2014). A questão norteadora para o presente trabalho foi: Que papel que os autores conferem a Literacia Digital para a saúde da população brasileira? A pesquisa ocorreu no mês de junho de 2020 nas bases Scientific Electronic Library Online (SciELO) e Biblioteca Virtual em Saúde (BVS). Para o levantamento nas bases, não foi utilizado nenhum filtro, nem mesmo limite temporal. Os descritores para a busca na SciELO foram "letramento digital" AND "saúde" AND “literacia digital”. Na BVS, foram os termos “alfabetização digital” AND “saúde”. Na segunda etapa da revisão integrativa adotou-se os seguintes critérios de inclusão para análise e discussão: disponibilidade on-line de artigo completo, texto em português e não ser artigo de revisão. Para a seleção da amostra, utilizaram-se quatro fases: busca na base de dados com refinamento pelos critérios de inclusão mencionados acima; leitura dos títulos e exclusão de trabalhos sem relação com o tema da Literacia Digital; leitura dos resumos e exclusão de trabalhos sem relação com o tema da Literacia Digital; leitura na íntegra dos artigos e exclusão de trabalhos que não atendiam aos critérios de inclusão. 4. Resultados A busca na base SciELO resultou em 2 publicações referentes a "letramento digital" AND "saúde" e 3 a “literacia digital”. Na pesquisa realizada na BVS com os termos “alfabetização digital” AND “saúde”, obtiveram-se 22 trabalhos; porém, 4 se repetiram por constarem em duas revistas diferentes e na mesma base de dados. Assim, foram considerados 18 trabalhos para selecionar a amostra. Em relação aos resultados obtidos na SciELO referente aos termos "letramento digital" AND "saúde", considerou-se apenas 1 dos 2 artigos encontrados para compor a amostra, pois o outro era um artigo de revisão. Os 3 trabalhos encontrados nessa base utilizando o descritor “literacia digital” compuseram a amostra. Ou seja, após o uso dos critérios de inclusão no refinamento da amostra, leitura dos títulos, resumos e trabalhos, definiu-se uma amostra de 4 publicações oriundas do levantamento na SciELO. Em relação aos 18 trabalhos identificados na Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) a partir dos termos “alfabetização digital” AND “saúde”, considerou-se somente 14 432 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) publicações após refinamento pelos critérios de inclusão, leitura dos títulos e resumos. 4 artigos foram excluídos: 1 por ser artigo de revisão, e 3 por não apresentar relação com a temática (um era sobre categorização de obras espíritas, outro era sobre classificação de Robson referente a partos, e o terceiro era sobre desenvolvimento de prontuário eletrônico com poucas informações em modalidade pôster). Depois destes refinamentos construímos uma amostra fruto da soma dos resultados obtidos no Scielo (4) com os títulos encontrados na BVS (14), perfazendo 18 títulos. Quadro 1. Artigos selecionados para análise bibliográfica AUTORES ANO PALAVRAS-CHAVE BERALDO, R. M. F.; MACIEL, D. A. 2016 Psicologia cultural; Redes Sociais; Competência CAMPEIZ, A. F. et al. 2017 CARLOS, V.; POMBO, L.; LOUREIRO, M. J. 2018 CARVALHO, E.; ARANTES, R. C.; CINTRA, A. S. R. 2016 CORRAL, H. H. A. 2015 (sem palavras-chave) Apresentação FERREIRA, D. P. et al. 2015 (sem palavras-chave) Apresentação GOMES, P. A. R. et al. 2019 GONÇALVES, L. S. 2013 GONÇALVES, L. S. et al. 2016 GONÇALVES, L. S.; CASTRO, T. C.; FIALEK, S. A.. 2015 LEMOS, A. F. et al. 2019 Educação; Tecnologia de Informação; Adolescentes; Enfermagem Pediátrica Edulabs; Integração Pedagógica das TIC; Desenvolvimento Profissional Docente; Prática reflexiva; Boas Práticas Idoso; Envelhecimento; Inclusão Digital; Cognição; Novas Tecnologias Registro Eletrônico de Saúde; Registros de Enfermagem; Atenção Básica à Saúde. Não tem palavras-chave, mas apresenta assuntos: Informática em Enfermagem; Alfabetização Digital, Informática Médica; Pesquisa em Enfermagem; Estudantes de Enfermagem Informática em Enfermagem; Conhecimentos em Informática; Atitude Frente aos Computadores Enfermagem; Informática em Enfermagem; Conhecimentos em Informática Educação; Educação em Saúde; Especialização; Atenção Primária à Saúde; Política de Saúde DESCRITORES “alfabetização digital” AND “saúde” “alfabetização digital” AND “saúde” “literacia digital” “alfabetização digital” AND “saúde” “alfabetização digital” AND “saúde” “alfabetização digital” AND “saúde” “alfabetização digital” AND “saúde” BASE BVS BVS Scielo BVS BVS BVS BVS “alfabetização digital” AND “saúde” BVS “alfabetização digital” AND “saúde” BVS “alfabetização digital” AND “saúde” BVS “letramento digital” AND “saúde” Scielo Internet e Saúde 433 LUCAS, M. et al. 2019 PADRINIANDRADE, L. et al. 2019 PARRO, M. C. 2015 PESSONI, A.; AKERMAN, M. 2015 ROBERTO, M. S.; FIDALGO, A.; BUCKINGHAM, D. 2015 SILVA, L. M. G. 2017 TOMBERG, J. O. et al. 2018 DigComp; Impacto; Avaliação; Literacia Digital; Informação; Comunicação; Colaboração Informática médica; Sistemas de Informação; Sistemas de Informação em saúde; Análise de Sistemas; Ciência da Informação; Profissional de Saúde. Não tem palavras-chave., mas apresenta assuntos: Ambiente Virtual de Aprendizagem; Educação Continuada; Enfermagem; WebQuest (Tese) Educação; Comunicação; Rede Social; Apoio Social; Metodologia Infoexclusão; Literacia Digital; Nativos Digitais; Teórico-Prático Por ser um editorial, não tem palavras-chave Mas, apresenta os seguintes assuntos: Humanos; Computadores; Desenvolvimento Tecnológico; Enfermagem; Alfabetização Digital; Registros Eletrônicos de Saúde Tuberculose; Atenção Primária à Saúde; Serviços de Saúde; Conhecimentos em Informática “literacia digital” Scielo “alfabetização digital” AND “saúde” BVS “alfabetização digital” AND “saúde” BVS “alfabetização digital” AND “saúde” BVS “literacia digital” Scielo “alfabetização digital” AND “saúde” BVS “alfabetização digital” AND “saúde” BVS Fonte: Os autores (2020). A partir da 3ª e 4ª etapas da revisão integrativa, referentes à categorização e avaliação dos estudos, foi observado na amostra final, composta por 18 trabalhos, diversidade quanto às palavras-chave apresentadas. Em 8 publicações, foram identificadas as palavras-chave “Informática médica/enfermagem”; “Sistemas de informação”; “Sistemas de informação em saúde”; “Conhecimentos em informática”; “Tecnologia de Informação”, “Novas Tecnologias”. Em 6 estudos, constavam as palavras “Profissional de saúde”; “Enfermagem Pediátrica”; “Enfermagem”; “Estudantes de Enfermagem”. Em 4 trabalhos, foram mapeadas as palavras “Educação”; “Educação em Saúde”; “Educação continuada”. Em 3 publicações, havia as palavras-chave “Atenção básica/primária à saúde”. Em 2 trabalhos constavam o termo “Literacia Digital”; em 2, “Alfabetização Digital”; em 2 “Registro Eletrônico de Saúde” e “Registros de Enfermagem”; em 2, “Atitude Frente aos Computadores” e “Computadores”; em 2, “Comunicação”; e em 434 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) 1, “competência”. Nenhum trabalho apresentou o descritor “Letramento Digital”. Ou seja, as palavras-chave utilizadas diferiram bastante entre os estudos. 8 palavras-chave estavam relacionadas a informática, informação e tecnologias (44,44%); 06, a profissional de saúde e enfermagem (33,33%); e 4, a educação (22,22%). Na sequência, descritores relacionados a atenção básica e primária constaram em 16,66%. 11,1% dos trabalhos apresentam palavras-chave relativas a Literacia Digital, alfabetização digital, registro em saúde, computadores e comunicação. Em ordem decrescente de publicação por ano, tem-se: 2015 (33,33%), 2019 (22,22%), 2016 (16,66%), 2017 e 2018 (11,1% cada). Apenas 1 estudo foi publicado em 2013. Após a leitura minuciosa e a análise dos trabalhos, foi observado que todos utilizaram descritores e/ou fundamentação teórica das áreas de Informática, Sistema de Informação, Novas Tecnologias, Tecnologia de Informação e Comunicação (TIC) ou Registro de Informática. Em sua maioria, os estudos abordaram o tema da instituição de ensino (7 de 18 trabalhos: 6, 7, 8, 11, 16, 17 e 18), seguido por ações na Atenção Primária à Saúde (4 de 18 trabalhos: 1, 2, 4 e 10) e ambiente Hospitalar (3 de 18 trabalhos: 3, 12 e 13). Um trabalho abordou a questão de enfermeiros com conhecimento em informática independentemente do local de trabalho (9). Outro trabalho, em formato de Editorial, não apresentou referência a local de trabalho (5). 2 publicações eram relativas à Secretaria Municipal de Saúde de um Estado brasileiro (14 e 15). Ainda, foi identificado mais referência ao profissional da enfermagem (7 dos 18 trabalhos: 2, 5, 6, 9, 10, 12 e 13), seguido de professores/alunos (5 dos 18 trabalhos: 7, 11, 16, 17 e 18), profissional de saúde contemplando diversas categorias (3 de 18 trabalhos: 1, 3 e 4), e idosos (1 dos 18 trabalhos: 8). 5. Análise e discussão As categorias encontradas se referiram às TICs no campo da saúde (com 3 subcategorias) e às barreiras na efetivação das novas tecnologias para o serviço de saúde. As 4ª, 5ª e 6ª etapas da revisão integrativa serão abordadas a seguir, apresentando a avaliação dos estudos conforme as categorias encontradas, a interpretação dos resultados e a síntese do conhecimento. 5.1. As TICs no campo da saúde Para melhor avaliação, essa categoria foi subdividida em 3 subcategorias: Internet e Saúde 435 • As TICs na relação entre profissional de saúde e comunidade As novas tecnologias estão presentes no cotidiano dos indivíduos no que se refere à saúde, seja no uso do computador, do celular, de sistema de registro em saúde ou de equipamentos hospitalares (SILVA, 2017; CARVALHO; ARANTES; CINTRA, 2016). As TICs são ferramentas que podem auxiliar a educação e ressignifica o papel do professor/educador (BERALDO; MACIEL, 2016). Como estratégia pedagógica na educação em saúde, as TICs favorecem a aprendizagem, a partir de metodologias ativas, reflexivas e problematizadoras, como o uso de jogos eletrônicos e realidade virtual (CAMPEIZ et al., 2017). A utilização na escola de novas tecnologias na atenção à saúde pode potencializar a aprendizagem dos nativos digitais (CAMPEIZ et al., 2017). Desse modo, as redes sociais digitais podem ser usadas como ferramentas educativas, recomendando que os professores/educadores se sensibilizem e capacitem para o uso das mídias mais referenciadas: YouTube e Facebook (PESSONI; AKERMAN, 2015). Também foi identificada a relação das tecnologias digitais com bem-estar e qualidade de vida em idosos, que mantiveram suas atividades de vida diária (AVDs), levarando seus companheiros para também participar, e buscavam na aprendizagem uma oportunidade primeira de integração social - para se comunicar com amigos e familiares (CARVALHO; ARANTES; CINTRA, 2016). A partir dos 4 artigos na área de instituição de ensino em interface com saúde (CAMPEIZ et al., 2017; BERALDO; MACIEL, 2016; CARVALHO; ARANTES; CINTRA, 2016; PESSONI; AKERMAN, 2015), percebeu-se a escola como campo de trabalho para promover saúde. Alguns autores consideram extremamente relevante educação em saúde utilizando as TICs na escola (CAMPEIZ et al., 2017; PESSONI; AKERMAN, 2015). Para tal, estes autores admitem que os profissionais de saúde deveriam apresentar competências e habilidades no uso de tais novas tecnologias (CAMPEIZ et al., 2017; BERALDO; MACIEL, 2016; CARVALHO; ARANTES; CINTRA, 2016; PESSONI; AKERMAN, 2015). Analisando estes estudos concluímos que há um consenso sobre a possibilidade de as TICs serem um importante auxílio para professores e profissionais de saúde. Elas devem ser usadas como uma ferramenta pedagógica ativa e potencializadora da interação com os jovens no ensino aprendizagem de conteúdos, inclusive na área da saúde. Para os idosos, essas tecnologias são um importante instrumento para a integração social. Porém, ainda se apresenta de modo limitado o uso de recursos na interação entre profissionais de saúde e comunidade para promoção da saúde e prevenção de doenças. Destaca-se a relação promissora entre a educação em saúde na escola mediada pelo uso das TICs. • As TICs na formação e atualização profissional 436 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) As novas tecnologias estão presentes na formação de profissionais de saúde (LEMOS et al., 2019). Em uma das publicações, foi identificado que a educação presencial não é suficiente para atender todos os municípios; assim, têm sido construídas estratégias pedagógicas inovadoras de um curso à distância de especialização para profissionais de saúde em atenção básica, que resultou em menor taxa de evasão e na reflexão sobre a prática, seguida de mudança. Foram usados casos clínicos interativos, jogos educacionais e realidade virtual. A maior parte dos profissionais que cursaram eram médicos (96,8%), seguido de enfermeiros (2,3%) e dentistas (0,9%). O maior quantitativo de profissionais era dos estados de São Paulo, Bahia e Ceará (LEMOS et al., 2019). Ou seja, a TICs foi utilizada para pós-graduação de profissionais de saúde. Os autores ressaltam que os temas dos trabalhos de conclusão de curso (TCC) se referiram a doenças, problemas e condições de saúde (doenças crônicas não transmissíveis – DCNT, tumores, problemas relacionados à gravidez, parto e puerpério), mesmo sendo um programa de atenção primária a saúde. Enquanto porta de entrada do SUS, a atenção primária preconiza a promoção da saúde e prevenção de doenças, com abordagem positiva da saúde. Ainda no quesito da formação, foram apontadas 318 competências necessárias para a prática profissional do enfermeiro nos diversos locais de trabalho no Brasil (GONÇALVES, 2013). A formação, desde a graduação, e a constante atualização são necessárias para que o profissional de enfermagem adquira competência digital nos 3 níveis de proficiência (básico, intermediário e avançado) e em 5 áreas – informação e literacia em dados e informação, comunicação e colaboração em ambientes digitais, criação de conteúdo digital, segurança e resolução de problemas (SILVA, 2017). As novas tecnologias foram utilizadas também na educação continuada de enfermeiros hospitalares, fruto de uma iniciativa de criação, implementação e avaliação de um ambiente virtual de aprendizagem. Os resultados da experiência foram positivos; com relato dos enfermeiros participantes de interesse, facilidade e agilidade na tomada de decisão após uso do recurso (PARRO, 2015). E, apesar do uso de computador fazer parte do trabalho dos enfermeiros no hospital, o uso é restrito a atividades administrativas, sendo apontada a necessidade de abordar esta temática durante a formação (GONÇALVES; CASTRO; FIALEK, 2015). Foram identificados estudos de uso da TICs apenas na educação continuada e pósgraduação para com os profissionais de saúde, e nenhum durante a graduação. Nesse contexto, é necessário que a Literacia Digital seja estimulada desde a formação inicial do profissional da saúde, ou seja, a partir da graduação. Foram apontadas competências e habilidades necessárias quanto ao acesso, à compreensão e ao uso criativo. Ressaltamos que a perspectiva patogênica apresentada pelos profissionais na elaboração do TCC da especialização em Atenção Primária à Saúde é resultante e resultado do modelo biomédico do processo saúde-doença. Internet e Saúde 437 • As TDICs no trabalho em saúde Em relação à aplicação das Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDICs) no trabalho em saúde, muitos autores analisados apontaram que tais tecnologias foram relevantes aos cuidados em saúde, sendo utilizadas como banco de dados e gerenciamento. Porém, foi identificado que as Novas Tecnologias são subutilizadas em relação a todo o seu potencial. A implementação de um prontuário eletrônico pode contribuir no processo de trabalho por meio da organização do serviço, compartilhamento de informação, continuidade ao cuidado integral e banco de dados (GOMES et al., 2019). Um sistema de informação implementado no serviço hospitalar neonatal foi apontado como um importante banco de dados para tomada de decisão, gestão, supervisão e investimento financeiro (PADRINI-ANDRADE et al., 2019). Foi reforçada a necessidade de avaliar os sistemas de informação implementados nos serviços de saúde. Foi apresentado um sistema informatizado que qualificou a agilidade dos registros, a comunicação entre profissionais de saúde e serviços de saúde e a reflexão sobre a tuberculose, em unidades de atenção primária à saúde (TOMBERG et al., 2018). Com os avanços, há um vislumbre para novos modelos de práticas em saúde, que exigirá dos enfermeiros aquisição de competências para atuação profissional e para a gestão dos processos assistenciais. A proposta das novas tecnologias apresenta impacto positivo no cuidado, organização e coordenação dos serviços, além possibilitar modelos de ensino e gestão (SILVA, 2017). O uso do computador foi constatado no gerenciamento de dados clínicos e administrativos (registro, armazenamento, compartilhamento e acesso). Porém, não há a utilização de todo o potencial do computador: foi identificada menor frequência de uso de sistemas de informação quanto a registro de anotação de enfermagem e registro de avaliação da enfermagem (GONÇALVES et al., 2016). O uso do computador foi mais para atividades administrativas (dados, solicitação de equipamentos ou materiais) (12), e para sistema cadastral (CORRAL, 2015; FERREIRA et al, 2015). Em três artigos referentes a pesquisas em Portugal no campo da educação (LUCAS et al., 2019; CARLOS; POMBO; LOUREIRO, 2018; ROBERTO; FIDALGO; BUCKINGHAM, 2015), foram utilizados o descritor “Literacia Digital” (LUCAS et al., 2019; ROBERTO; FIDALGO; BUCKINGHAM, 2015) e Comunicação (LUCAS et al., 2019). Esses trabalhos, apesar de não abordarem a realidade brasileira ou a área da saúde, são oriundos do levantamento realizado na SciELO com o descritor “Literacia Digital”, e demonstram aplicabilidade para questões de saúde. Lucas et al. (2019) investigaram o impacto do uso de tablets no desenvolvimento de competências digitais de alunos do 3º ciclo do ensino básico de 2 escolas de Portugal. Como resultado foi constatado reduzido impacto no nível de desenvolvimento das competências digitais. Sendo apontado limitações do estudo, proposta para investigações futuras e sugestão de que o resultado pode estar relacionado ao tipo de acompanhamento ou 438 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) orientação insuficiente por parte do professor. Desse modo, para o campo da saúde, inferese que o uso de TDICs sem a presença da interação não é vantajoso no desenvolvimento das competências digitais: ou seja, apenas inserir novas tecnologias não é suficiente para a real incorporação de suas capacidades. Para tanto, faz-se necessária a educação continuada, somada à implementação dos aparatos e sistemas digitais. Carlos, Pombo e Loureiro (2018) apresentam resultados de formação para 13 professores em Portugal. A experiência foi considerada positiva, apresentando progresso e enriquecimento para o processo de ensino-aprendizagem, com destaque do posicionamento dos participantes. Ao integrar o uso das novas tecnologias, tais participantes transformaram as aulas, que passaram a ser mais dinâmicas, eficazes e motivadoras, contribuindo para aprendizagem ativa e significativa. Para o campo do trabalho em saúde, pode-se transpor para a implantação de uma estratégia formativa no campo dos recursos digitais. Tal estratégia favoreceria a implantação e uso das TDICs para melhoria da assistência e de demais áreas, como avaliação de dados e educação continuada, já que foi observada motivação para uso criativo dos recursos após a formação. Roberto, Fidalgo e Buckingham (2015) apresenta a questão da infoexclusão e aponta algumas variáveis sob a perspectiva dos nativos digitais – participaram da pesquisa 135 estudantes universitários de Lisboa. Constatou-se que os estudantes tinham competência digital básica – ou seja, esses nativos digitais sabiam o modus operandis funcional da TDICs. Porém, eles apresentam uma visão redutora no plano crítico e reflexivo. Isso reforça a necessidade de existir uma formação teórico-prática para desenvolvimento da literacia digital. Os trabalhos de Lucas et al. (2019), Carlos, Pombo e Loureiro (2018), Roberto, Fidalgo e Buckingham (2015) se complementam nas conclusões apresentadas e são aplicáveis para o campo da saúde no Brasil. Nota-se a importância de atingir maiores níveis de literacia digital, tendo em vista o uso básico do computador, da Web 2.0, da internet e dos sistemas de informação no trabalho em saúde, que ficam restrito ao banco de dados, atividades administrativas e gerenciais. Tópicos como pesquisa, análise e interpretação dos dados, acesso e compreensão de informações complexas, uso criativo para educação continuada não foram mencionados nas publicações analisadas. Cabe destacar que a implementação das novas tecnologias não é garantia de seu uso, sendo necessário formação dos profissionais de saúde. 5.2. Barreiras na efetivação das novas tecnologias para o serviço de saúde As dificuldades podem ser divididas em barreiras estruturais, relativa ao ambiente físico, e habilidades dos profissionais, sendo estas mencionadas com maior frequência. Internet e Saúde 439 Gomes et al. (2019) abordaram a resistência dos profissionais pela inabilidade em usar ferramentas informatizadas por serem em sua maioria imigrantes digitais, com necessidade de capacitação e educação permanente. Tomberg et al. (2018), por sua vez, analisaram a adaptação dos profissionais a novas rotinas, além da exigência de habilidades antes não essenciais. Ainda relativo às mudanças, Campeiz et al. (2017) discutiram a função mediadores de informação que professores e profissionais de saúde devem assumir, repensando a educação direcionada à geração digital e incorporando ao ensino novas linguagens e inovações com situações práticas significativas, problematizadoras e reflexiva. Foi observado que os professores estão menos familiarizados com as ferramentas educativas em formato de redes sociais digitais, necessitando ser capacitados (PESSONI; AKERMAN, 2015). Os alunos já são, em sua maioria, mais competentes no uso tecnológico e na navegação pelo ciberespaço do que os professores; porém, ainda caberia ao professor compartilhar sobre como acessar, filtrar dados na Web. Isso exigiria posturas abertas, dialógicas e emancipatórias do educador e descentralização dos saberes. É necessário criatividade e inovação para a profissionalização de professores rumo às seguintes competências: autodidata, motivação, fazer a diferença, construir o novo, co-construção com o grupo (BERALDO; MACIEL, 2016). Apesar de se classificar como proficientes e avançado, a maioria dos enfermeiros utilizavam o computador e a informática apenas em atividades administrativas (GONÇALVES et al., 2016; GONÇALVES; CASTRO; FIALEK, 2015). Parte dos enfermeiros não possuía conhecimento das funções relativas à realização de pesquisa com análise de dados, ao uso de tutoriais educativos ou à procura de livros e artigos. No gerenciamento, há pouca análise dos dados para planejamento de ações futuras (GONÇALVES et al., 2016). Assim, há necessidade de inclusão de conhecimentos, habilidades e atitudes relacionadas à informática nos projetos pedagógicos de cursos de graduação e pós-graduação em enfermagem (SILVA, 2017; GONÇALVES, 2013). Foi identificado que pessoas idosas apresentaram dificuldades em usar o mouse e o teclado (CARVALHO; ARANTES; CINTRA, 2016). Quanto às barreiras estruturais há: necessidade de suporte e manutenção da rede; falta de equipamento (GOMES et al., 2019); gestão de erros do programa e impossibilidade de customização (PADRINI-ANDRADE et al., 2019); dificuldade de acesso aos equipamentos de informática e disponibilidade da internet (TOMBERG et al., 2018). Além das dificuldades apontadas nos trabalhos, também foram identificadas sugestões de melhorias. É possível observar que as maiores barreiras mencionadas se referem à falta de competências e habilidades no uso das TDICs. Desse modo, a Literacia Digital mostra-se imprescindível na ampliação dos níveis de habilidade dos profissionais de saúde. A partir dela, poderá ser incrementada a aptidão para atuação nos diversos locais de trabalho; a interação com a comunidade e colegas de trabalho; a formação e atualização profissional. Poderá também contribuir para: o acesso, compreensão e o uso 440 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) criativo das informações, auxiliando a divulgação de informações salutogênicas, confiáveis, seguras e capazes de melhorar a qualidade de vida e bem estar. 6. Considerações Finais No contexto atual, o uso das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) está cada vez mais incorporado ao cotidiano da população, exigindo o desenvolvimento de habilidades e de competências digitais. Tais competências implicam, além do conhecimento e da utilização de ferramentas digitais, a compreensão crítica e o uso responsável dos conteúdos divulgados nas mais variadas mídias. A utilização das TICs, se realizada de forma crítica, pode favorecer o indivíduo no acesso à informação, além de contribuir para sua interpretação e análise, de modo que consiga, a partir da gestão de conhecimento, investir em sua saúde. Assim uma nova categoria pode ser introduzida na ampliação do uso das TICs neste novo campo que é a saúde. Nesse sentido, a Literacia para a Saúde Digital pode contribuir para a melhoria da qualidade de vida e dos níveis de saúde da população, sendo inclusive reconhecida sua importância pelos órgãos e políticas públicas de saúde. Além disso, o uso das TICs e a necessidade de Literacia para a Saúde Digital estão presentes no cotidiano dos profissionais de saúde, seja por meio de processos de formação e atualização profissional, ou no atendimento e registro dos usuários dos serviços de saúde. Desse modo, é relevante conhecer as contribuições atuais no campo da Literacia Digital em suas interfaces com a saúde, proposta que esperamos ter se concretizado com o presente estudo na introdução desta categoria da Literacia para a Saúde Digital. Referências ALVES, E. J. Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola. In: ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO, 17., 2014, Fortaleza. Anais [...]. Fortaleza: UECE, 2014. p. 02746-02758. AMERICAN LIBRARY ASSOCIATION. Presidential Committee on Information Literacy: Final Report. American Library Association, Chicago, 1989. Disponível em: http://www.ala.org/acrl/publications/whitepapers/presidential. Acesso em 25 jul. 2020. BERALDO, R. M. F.; MACIEL, D. A. 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Internet e Saúde 445 Capítulo 16 Letramento digital: significados existentes e a proposição de um conceito Fernanda R. Rosa* e Maria Carolina Nogueira Dias (in memoriam) Resumo Este capítulo propõe um conceito de letramento digital que possa ser quantificado por um indicador voltado a mensurar as habilidades digitais da população brasileira. Por meio de pesquisa bibliográfica sistemática e entrevistas em profundidade, mapeamos os usos dos termos alfabetismo/letramento digital (em inglês, digital literacy), tanto na literatura nacional e internacional, como entre especialistas das áreas de educação e inclusão digital no Brasil. Como resultado, definimos letramento digital como a condição que permite ao sujeito usufruir das tecnologias de informação e comunicação (TICs) para se desenvolver autonomamente e atender às necessidades do seu meio social. A operacionalização do conceito se dá por meio da conjunção de duas dimensões complementares de habilidades funcionais que um indivíduo deve possuir: habilidades técnico-operacionais em TIC e habilidades informacionais em TIC. Ambas dimensões requerem pensar em letramento digital de forma não estática, distanciando-se de oposições como letrado(a)/ não letrado(a) digital, e apontando para um contínuo entre esses dois extremos. Palavras-chave: Alfabetização; Alfabetismo; Alfabetização Digital; Competência em Informação; Letramento em Saúde. Referência: ROSA, F. R.; DIAS, M. C. N. Letramento digital: significados existentes e a proposição de um conceito. In: PEREIRA NETO, A.; FLYNN, M. (orgs.). Internet e saúde no Brasil: desafios e tendências. 1 ed. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2020. p. 444-471. * Annenberg School for Communication, Universidade da Pensilvânia. E-mail: [email protected]. 446 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Considerações iniciais Este capítulo foi originalmente escrito como parte integrante de nossa dissertação de mestrado (ROSA; DIAS, 2012)1. Seu objetivo foi mapear os usos dos termos alfabetismo/letramento digital2 (em inglês, digital literacy), tanto na literatura nacional e internacional, como entre especialistas das áreas de educação e inclusão digital no Brasil. Com isso pretendia-se embasar a construção do conceito-chave a partir do qual um indicador de letramento digital pudesse ser desenvolvido para mensurar habilidades digitais o da população brasileira. Quase dez anos após sua construção, essa pesquisa continua relevante. Ela permite chamar atenção para a conexão entre desafios atuais e discussões de longa data fundadas e influenciadas pelo campo da educação, e aqui sintetizadas pelo termo “letramento digital”. A crescente disseminação de “informações problemáticas” (JACK, 2017, p. 1, tradução nossa), produtos de conteúdos mal intencionados (desinformação) ou de baixa qualidade (má-informação) que, mesmo sem intenção, levam a interpretações errôneas e outras consequências (JACK, 2017), permite visualizar a dimensão do problema. Em áreas como a saúde, por exemplo, a disseminação de teorias da conspiração e a intensificação de movimentos negacionistas e anti-vacinas, ainda que possuam fundamentos diversos (CARUSI, 2020; VICENTIN; ROSA, 2020), requerem também observar a habilidade de indivíduos em avaliar fontes de informação criticamente, num cenário em que a busca por informação na internet é lugar comum inclusive em estratos mais marginalizados da população3 (PEREIRA NETO; BARBOSA; MUCI, 2016). Nesse contexto, torna-se fundamental um olhar para as bases que concernem o conceito de “letramento digital”. A presente pesquisa se baseia em duas principais abordagens metodológicas. A primeira é uma revisão bibliográfica sistemática focada na interdisciplinaridade intrínseca ao nosso objeto. Buscamos estudos que fizessem uso dos termos “alfabetismo/letramento digital” e “digital literacy” no campo da ciência da informação, comunicação, educação, linguística e serviço social. Ao mesmo tempo, também levantamos visões do setor público governamental, do setor privado atuante no campo digital e de organizações multilaterais, em documentos disponíveis em meio on-line. Adicionalmente à pesquisa bibliográfica, efetuamos a coleta de dados primários por meio de entrevistas em profundidade. Tais entrevistas se constituíram em importante instrumento para contextualizar os resultados encontrados no levantamento de dados secundários e para elucidar a percepção existente no nível da prática educacional e da inclusão digital no Brasil sobre o tema. 1 O texto foi mantido como o original, com exceção das seções inicial e final, que foram adicionadas, e edições textuais pontuais. 2 O capítulo 15 aborda o tema da literacia para a saúde. 3 O capítulo 6 trata sobre perfil de consumo de informação on-line de saúde entre jovens com diferentes condições socioeconômicas. Internet e Saúde 447 A seleção dos atores entrevistados levou em consideração os projetos em que estavam envolvidos(as), posições ocupadas e instituições a que pertenciam. Em relação às instituições, buscamos diversificar os setores. Entrevistamos representantes de políticas públicas de empresas de tecnologia como o Google; representantes de organizações sociais que atuam com inclusão digital ou educação: o Coletivo Digital; a Ação Educativa e o Instituto para o Desenvolvimento e Inovação Educativa (Idie); uma representante do Ministério das Comunicações; e um representante da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro. Também contamos com um representante do Centro de Estudos sobre as Tecnologias da Informação e da Comunicação (CETIC.br), parte do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), que administra recursos críticos da internet no país e tem pesquisas de referência voltadas ao acesso das tecnologias de informação e comunicação (TICs). Ao total, realizamos sete entrevistas em profundidade. Após a realização dessas duas etapas, que incorporaram fontes de informação primárias e secundárias, seguiu-se uma discussão dos conteúdos levantados com especialistas do então Instituto Paulo Montenegro (IPM)4 – ação social do Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (IBOPE). Esse instituto, juntamente com a organização não-governamental Ação Educativa, foi responsável pela idealização do “indicador de alfabetismo funcional” (Inaf) no Brasil. O Inaf desloca a discussão de alfabetização da oposição alfabetizado(a)/não-alfabetizado(a) e do foco em anos de escolaridade e se propõe a mensurar habilidades funcionais, ou seja, valoriza o contexto e o meio onde as práticas sociais são realizadas (AÇÃO EDUCATIVA; INSTITUTO PAULO MONTENEGRO, 2018). Esse indicador utiliza testes com pesquisa probabilística junto a indivíduos de 15 a 64 anos que simulam desde a leitura de pequenos bilhetes até transações com dinheiro comuns no dia a dia. A edição do Inaf 2018 aponta que, enquanto 8% da população brasileira é analfabeta, 29% pode ser considerada analfabeta funcional por apresentar dificuldades para realizar tarefas simples que envolvem números e leitura – o que mostra o quadro complexo de letramento no Brasil. O Inaf e sua forma de conceber “alfabetismo funcional”, ou letramento, a partir da prática social e cotidiana serviram como base fundamental na presente pesquisa para construção de um conceito de letramento que leve em consideração o ambiente digital. Buscamos tratar “letramento digital” não de maneira estática, que oponha letrado(a) e não-letrado(a), mas que considere um contínuo entre esses dois extremos. A seguir, discutimos os resultados da pesquisa para, ao final, propormos um conceito autoral que possa ser quantificado com um indicador voltado a medir habilidades e competências da população brasileira na sua relação com as TICs. 4 Disponível em: https://ipm.org.br/. 448 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) 1. O conceito de digital literacy na literatura internacional Uma especificidade importante do conceito “letramento digital” na língua inglesa é o fato de o termo literacy significar tanto alfabetização como letramento, além de estar altamente associado a habilidades ou skills. De acordo com Soares (2004), o termo literacy, sem adjetivos, ganha ênfase no campo da educação e da linguagem nos anos 1980 em vários países, incluindo Estados Unidos e Inglaterra. Ele se contrapõe aos termos reading instruction, emergent literacy e beginning literacy, associados às habilidades mais mecânicas da língua: o saber ler e escrever, ou à alfabetização, como se convencionou chamar no Brasil. Naquele momento, “[...] a população, embora alfabetizada, não dominava as habilidades de leitura e de escrita necessárias para uma participação efetiva e competente nas práticas sociais e profissionais que envolvem a língua escrita” (SOARES, 2004, p. 6). Essa visão contribuiu para a emergência da preocupação com as práticas sociais relativas ao ler e escrever. Segundo Soares (2004), um pouco antes desse período, no final da década de 1970, a UNESCO ampliava o conceito de literate para funcionally literate (letrado(a) funcionalmente). Essa ampliação pautou mudanças nos testes internacionais que mensuravam competências de leitura e escrita, de modo que deixassem de focar apenas na alfabetização, mas avançassem em termos da aplicação desses conhecimentos em contexto, captando o letramento funcional (functional literacy). Talvez por esta raiz, o termo digital literacy começou a ser aplicado na década de 1990, no universo digital, como a habilidade de ler e compreender informação em formato hipertexto ou multimídia (BAWDEN, 2008). Ainda que essa conceituação tenha se transformado ao longo dos anos, a ideia de habilidade está presente na maior parte das definições que têm se estabelecido no campo. Paul Gilster (1997), um escritor da área de humanidades que lançou o livro Digital Literacy nos Estados Unidos, conceitua o termo como “uma habilidade para entender e usar informação de uma variedade de fontes digitais quando é apresentada via computadores” (GILSTER, 1997, p. 1, tradução nossa). Gilster (1997) é citado como um dos responsáveis pela difusão do termo e já apresenta nessa definição a habilidade que vai além do saber fazer e inclui o fazer uso deste conhecimento disponível em meios digitais. O autor reitera essa ideia quando diz: “o conceito de letramento vai além simplesmente do saber ler; significa a capacidade de ler com significado, e entender” (GILSTER, 1997, p. 2, tradução nossa, grifos nossos). Yoram Eshet (2002), professor na área de Educação e Psicologia na Open University of Israel e fundador do Centro de Pesquisa para Integração da Tecnologia na Educação (Research Center for the Integration of Technology in Education) já definia que “[...] letramento digital é mais do que uma proficiência física em operar programas de computadores, como muitos estudos descrevem. É um tipo especial de mentalidade; uma Internet e Saúde 449 forma especial de pensar” (ESHET, 2002, p. 2, tradução nossa). Posteriormente, Eshet (2004) propõe um modelo composto por diferentes letramentos necessários para compor o letramento digital5. Esse modelo, citado por diversos autores, inclusive no Brasil (BAWDEN, 2008; CAPOBIANCO, 2010; OSTERMAN, 2012), parte de alguns achados de Gilster (1997) e compreende cinco letramentos em sua primeira versão e seis, na revisão feita em 2008 (ESHET-ALKALAI, 2004; 2008), conforme segue: • Letramento foto-visual (photo-visual literacy) – habilidade de ler intuitivamente e livremente interfaces gráficas e compreender instruções e mensagens representadas visualmente. Numa lógica diferente daquela utilizada pelo alfabeto moderno, na qual as letras são sinais gráficos desprovidos de sentido, no ambiente digital, os ícones e símbolos utilizados vastamente já detêm os significados que devem ser decifrados, como nos sistemas de alfabetos em ideogramas, formados por desenhos. • Letramento de reprodução (reproduction literacy) – habilidade de criar um trabalho de interpretação significativo, autêntico e criativo, integrando, com originalidade, peças de informação independentes e já existentes. • Letramento ramificado (branching literacy) – habilidade de navegar no moderno ambiente de hipertexto da era digital e construir conhecimento a partir de uma larga quantidade de informações independentes, acessadas de uma maneira não linear e desordenada, exigindo amplo pensamento multidimensional. • Letramento da informação (information literacy) – capacidades cognitivas de avaliar informação de maneira efetiva, identificando erros e informações irrelevantes, e de maneira crítica, atestando a qualidade da informação. • Letramento socioemocional (socio-emotional literacy) – habilidade para sair de armadilhas num ciberespaço descrito como uma “selva de comunicação humana” (ESHET-ALKALAI, 2004, p. 102, tradução nossa), em que existem várias regras não escritas, com informações verdadeiras e falsas, provindas de instituições solicitando ajuda, pessoas em salas de bate-papo, e-mails de pessoas desconhecidas etc. • Habilidade de pensar em tempo real (real-time thinking skill) – habilidade de processar e avaliar grande volume e informações e estímulos em tempo real e em rápida velocidade, como ocorre em jogos de computador e salas de bate papo. Ao caracterizar esses letramentos, Eshet-Alkalai (2004) busca redefinir letramento digital como uma habilidade de sobrevivência na era digital, que enfatiza aspectos cognitivos de vivência em ambiente informacional. Na opinião do autor, “empregando diferentes tipos de letramento digital, usuários melhoram sua performance e ‘sobrevivem’ 5 Optamos por traduzir literacy como letramento apesar de Capobianco (2010) traduzir como literacia. Baseamo-nos na visão de Soares (2002) de que literacia é o termo em uso em Portugal, que detém o mesmo sentido de letramento, conforme utilizado no Brasil. Em alguns momentos, o termo também poderá ser traduzido como alfabetização, por deter os dois significados em inglês. 450 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) a uma variedade de obstáculos que se encontram no caminho dentro desse meio especial” (ESHET-ALKALAI, 2004, p. 102-103, tradução nossa). Em linha semelhante, o projeto DigEuLit, iniciado em janeiro de 2005 e coordenado por Allan Martin, da Universidade de Glasgow na Escócia, define o termo letramento digital como um conjunto de outros letramentos. Esse projeto surgiu a partir da publicação “e-learning: Better e-learning for Europe”, feita pela Comissão Europeia (Europe Comission) em 2003, e seus objetivos incluíam, entre outras ações, mapear o significado do conceito digital literacy na Europa; identificar projetos, ações e pesquisas sobre o tema em andamento; e criar uma matriz para ser aplicada a cursos e ações educacionais na região. O conceito do qual a equipe partiu para dar andamento ao projeto é reproduzido a seguir: Letramento digital é o conhecimento, a atitude e a habilidade de indivíduos fazer uso apropriadamente de instalações e ferramentas digitais para identificar, acessar, gerenciar, integrar, avaliar, analisar e sintetizar recursos digitais, construir novos conhecimentos, criar expressões de mídia, e se comunicar com outros, no contexto de situações de vida específicas, com o objetivo de permitir a ação social construtiva e refletir sobre esse processo (MARTIN, 2005, p. 135-136, tradução nossa, grifos nossos). Esse conceito amplia a abrangência do termo, superando a ideia de habilidades para incluir conhecimento e atitude como fatores importantes. Além disso, a proposta de contextualização do conhecimento de acordo com cada indivíduo e momento de vida agrega outros elementos. O conceito exposto, resumidamente, parte do pressuposto de que o letramento digital envolve a capacidade de realizar ações digitais bem sucedidas como parte de situações da vida. Trata-se de uma abordagem mais ampla que o letramento em TIC, por incluir elementos do letramento da informação, letramento midiático e letramento visual. Letramento digital, nesse caso, varia de acordo com a situação de cada indivíduo, ao mesmo tempo que é um processo contínuo ao longo do desenvolvimento da vida. Envolve aquisição e utilização de conhecimentos, técnicas, atitudes e qualidades pessoais, além de incluir a capacidade de planejar, executar e avaliar ações digitais na solução de tarefas da vida, e a capacidade de refletir sobre o próprio desenvolvimento de seu letramento digital. (MARTIN, 2005). Infelizmente, o projeto DigEuLit parece não ter seguido adiante, uma vez que não foi possível encontrar os resultados das ações nas páginas do projeto, hoje inexistentes, nem no portal E-Learning Europa6, que buscava concentrar as ações europeias das áreas de educação e tecnologia. Em direção um pouco diferente à ideia de que letramento digital é composto de diversos letramentos ou habilidades, Mark Osterman (2012), pesquisador na Florida 6 Disponível em: https://web.archive.org/web/20030320024506/http://elearningeuropa.info/. Internet e Saúde 451 International University, encontrou na literatura a concepção de que letramento digital é apenas um novo letramento (com letras minúsculas), como também o é letramento de informação, compreensão de leitura on-line etc. Eles fariam parte do largo campo de Novos Letramentos (com letras maiúsculas) (OSTERMAN, 2012). De fato, foi comum encontrarmos em nossa pesquisa menções a diferentes letramentos, com significados similares entre si, tais como: letramento computacional, letramento em internet, letramento midiático, letramento da informação, letramento em tecnologias de informação e comunicação etc. Vale, por isso, comentarmos sobre essas outras denominações presentes no debate. 1.1. Letramento da informação De acordo com Spitzer, Eisenberg e Lowe (1998), o termo “letramento da informação” data da década de 1970, quando se identificava o aumento constante de informação disponível e a necessidade de manuseá-la de maneira adequada. O conceito foi crescendo em importância com o advento do computador na década de 1980, que já mostrava sua força na manipulação e multiplicação de dados. Em 1990, surgiram definições sobre o que seria uma pessoa letrada em informação (information literate), o que, àquela época, envolvia conseguir localizar, avaliar e usar de maneira efetiva informações necessárias (SPITZER, EISENBERG; LOWE, 1998). A difusão do termo ocorreu no campo da ciência da informação, educação e bibliotecas, sob a preocupação de desenvolver um bom aprendizado da sociedade na então chamada “era da informação”. Foi nesse contexto de uso da informação em variadas formas que surgiram termos como computer literacy (letramento computacional) e network literacy (letramento em rede), respondendo ao aparecimento das ferramentas digitais que emergiam naquele período. Spitzer, Eisenberg e Lowe (1998) assim definem letramento da informação: O grupo de habilidades e conhecimento que não somente nos permite encontrar, avaliar e usar a informação de que precisamos, mas talvez de maneira mais importante, nos permite filtrar a informação de que não precisamos. As habilidades de letramento da informação são as ferramentas necessárias que nos ajudam a navegar com sucesso pela paisagem presente e futura da informação. (SPITZER; EISENBERG; LOWE, 1998, p. 71, tradução nossa). As críticas a essa visão pautaram-se no fato de que os modelos difundidos sob esse conceito acabaram sendo estruturados em termos de habilidades de localização, síntese e avaliação de informação, considerados insuficientes para abarcar a grande variedade de situações que o universo digital proporciona (OSTERMAN, 2012). 452 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Já em 2012, a Associação Americana de Bibliotecas (American Library Association – ALA), com sede em Washington DC, uma das principais organizações a pautar a discussão sobre letramento da informação nos Estados Unidos, definiu seu conceito de letramento digital como: “a habilidade de usar tecnologias de informação e comunicação para buscar, avaliar, criar e comunicar informação requerendo tanto habilidades cognitivas quanto técnicas” (ALA, 2012, tradução nossa). Essa definição demonstra avanços no sentido sintetizado por Osterman (2012), já que inclui a criação e comunicação de informação como partes integrantes do conceito. 1.2. Letramento midiático O termo “letramento midiático” (media literacy) surge no contexto dos estudos da comunicação que requerem indivíduos críticos perante fontes escritas e audiovisuais tradicionais, como televisão e rádio. Desde o surgimento da internet, no entanto, esse conceito tem sido ampliado juntamente com a expectativa de transformações e surgimento de usuários(as) mais ativos(as), menos consumidores de informação e mais participantes de sua construção. Como aponta Sonia Livingstone, pesquisadora da London School of Economics and Political Science, “[...] letramento midiático não é redutível a uma característica ou habilidade do usuário, mas é melhor entendido como uma coprodução de um engajamento interativo entre tecnologia e usuário” (LIVINGSTONE, 2003, p. 2, tradução nossa). A definição do termo pode ser mais específica como “capacidade de lidar com formatos de informação ‘empurrados’ [pushed] sobre o(a) usuário(a)” (BAWDEN, 2008, p. 30, tradução nossa). Pode ser também mais abrangente: “a capacidade de acessar, entender e criar comunicações em diversos formatos”, como a apresentada pela Ofcom – agência reguladora de telecomunicações do Reino Unido (LIVINGSTONE; BOBER; HELSPER, 2005, p. 6, tradução nossa). 1.3. Letramento em Internet O termo “letramento em internet” (internet literacy), apesar de receber sentidos mais específicos como internet skills, isto é, “a capacidade de eficientemente e efetivamente achar informação na Web” (HARGITTAI, 2002, tradução nossa), também tem sido amplamente problematizada, aproximando-se dos conceitos já apresentados de “letramento digital”. É assim que podemos entender Livingstone (2003), quando define letramento em internet em termos de acesso (hardware, conteúdos, serviços); entendimento (capacidade de avaliação crítica da informação); e criação (indivíduo como Internet e Saúde 453 receptor e produtor de informação, por meio da interatividade e participação on-line) (LIVINGSTONE, 2003). Por outro lado, Thomas Friemel e Sara Signer, da Universidade de Zurique, na Suécia, com o conceito de Web 2.0 literacy, também incluem dimensões como conhecimento, uso, recepção e produção de informação (FRIEMEL; SIGNER, 2010). 1.4. Diante de muitas denominações, uma junção possível Frente a todos esses conceitos e letramentos que se entrelaçam, Bawden (2008) propôs uma rica síntese e uma categorização das várias dimensões que aparecem na literatura por ele pesquisada. Buscamos sintetizar suas ideias no quadro a seguir: Quadro 1. Componentes do letramento digital Categoria Componentes do letramento digital Explicação Habilidades tradicionais e paralelas, que podem ser consideradas ou parte do letramento digital, como habilidades básicas, ou assumidas como um conhecimento à parte e anterior. Entendimento de como a informação digital e não digital é criada e comunicada, bem como os vários recursos resultantes delas. 1. Alicerces • Letramento per se • Letramento computacional/ Letramento em TIC 2. Conhecimentos de fundo • O mundo da informação • Natureza dos recursos de informação 3. Competências centrais • Leitura e entendimento de formatos digitais e não digitais • Criação e comunicação de informação digital • Avaliação de informação • Conjunção de conhecimentos • Letramento de informação • Letramento midiático Conjunto de habilidades e competências básicas que devem, segundo o autor, ser consideradas em qualquer conceito de letramento digital. • Aprendizado independente • Letramento social/moral Constituem a ligação entre o conceito de letramento digital e a ideia anterior de letramento. O aprendizado independente inclui a apropriação do conhecimento. O letramento social/ moral reflete a necessidade de saber se comportar em ambiente digital, levando em consideração temas como privacidade e segurança. 4. Atitudes e perspectivas Fonte: Quadro elaborado pelas autoras com conteúdo de obtido em Bawden (2008). Assim, os diferentes letramentos que emergem na discussão de letramento digital mostram a complexidade de uma discussão que ocorre em meio a inúmeras transformações 454 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) do objeto estudado. Se fazia sentido falar em “letramento computacional” na década de 1990, associado aos dispositivos que se popularizavam à época, o seu uso atualmente seria inadequado e excludente, uma vez que o fenômeno da convergência digital, que reconduz diversos processos sociais (SILVEIRA, 2008), permite acessar as TICs por outros dispositivos de hardware como celulares, tablets etc. Por outro lado, esse cenário nos permite visualizar uma necessidade premente de ampliar o sentido das habilidades requeridas por um universo supostamente específico e desconhecido - o das ferramentas digitais - para outro mais abrangente, ilimitado e difuso. Esse universo mais abrangente traz de volta uma discussão anterior, e que diz respeito, como vimos, a conceitos como “letramento midiático” e “letramento informacional”. 2. Os conceitos de alfabetização e letramento digital na literatura nacional No Brasil, especificamente, faz-se necessário compreender os sentidos dados aos conceitos de alfabetização, alfabetismo e letramento digital. No campo da educação formal, a alfabetização indica a aprendizagem inicial de leitura e escrita, quando se desenvolvem habilidades mais mecânicas da língua, ou o ler e escrever (Soares, 2004). Similarmente no campo das TICs, nossa pesquisa mostra que o sentido de “alfabetização digital” é mais comumente associado aos primeiros estágios de contato de um indivíduo com o universo das tecnologias, com foco principal nas habilidades técnicas do sujeito frente ao uso de ferramentas digitais. O “Livro Verde”, lançado pelo Governo Federal em 2000, define as metas e as diretrizes para a construção da “Sociedade de Informação no Brasil” (BRASIL, 2000, p. V). Nele, é possível ver prenunciado o sentido de alfabetização digital, com ênfase às habilidades de internet em vários trechos. No glossário, por exemplo, alfabetização é definida como “processo de aquisição de habilidades básicas para o uso de computadores, redes e serviços de Internet” (BRASIL, 2000, p. 165). Também pode ser verificado esse sentido no capítulo que versa sobre a universalização dos serviços de informação e comunicação. Diz o relatório: “o nível de alfabetização digital da população brasileira é muito baixo. As oportunidades de aquisição de noções básicas de informática indispensáveis para acesso à rede e seus serviços são insuficientes” (BRASIL, 2000, p. 38). No documento “Padrões de competência em TIC para professores(as)”, um marco normativo para a reforma educacional voltado para a formação de docentes, a UNESCO (2008a) estipulou a meta de alfabetização digital como o primeiro de três estágios do seu desenvolvimento profissional. Segundo este documento, nessa etapa, “os docentes devem ter habilidade tecnológica e conhecimento dos recursos da web necessários para utilizar a tecnologia na aquisição de disciplinas adicionais e conhecimento pedagógico em apoio ao Internet e Saúde 455 desenvolvimento profissional do professor” (UNESCO, 2008a, p. 10). Na discriminação das diretrizes para implementação, há menções, para essa etapa do aprendizado, que visa lograr operações básicas de computadores, usar processador de texto, programa de apresentação, planilha e recursos de internet como e-mail e sites de busca (UNESCO, 2008b). Fica mais evidente a associação da alfabetização digital a um nível básico de competência quando a comparamos ao segundo nível descrito pelo documento, chamado de “Gestão e orientação”, no qual a UNESCO prescreve que: Os docentes devem ter as habilidades e o conhecimento necessário para criar e administrar projetos complexos, colaborar com outros professores e fazer uso das redes para ter acesso às informações, aos colegas e a especialistas externos em apoio a seu próprio desenvolvimento profissional. (UNESCO, 2008a, p. 11). O terceiro nível de desenvolvimento profissional esperado, denominado de “Professor como aluno-modelo”, também sinaliza uma distância da definição do termo alfabetização digital por incluir o constante aprendizado e a interação em redes sociais digitais de produção de conhecimento como focos. É afirmado que: “os professores também precisam ter a habilidade e a inclinação para experimentar e aprender e usar constantemente as TIC para criar comunidades profissionais de conhecimento” (UNESCO, 2008a, p. 12). Ainda que esse documento seja restrito ao campo da formação de professores(as), chama atenção o fato de que, além de explicitar um sentido de alfabetização digital como um estágio inicial, o conceito da UNESCO ilustra um significado mais avançado que aqueles datados do início da década de 2000. Ele se volta para o conhecimento de ferramentas que permitam ao público-alvo avançar em suas atividades profissionais, apresentando, portanto, um sentido funcional voltado para o atendimento das necessidades sociais dos(as) professores(as). No âmbito das empresas, a Microsoft Educação, divisão voltada à área educacional da marca que detém a liderança na venda de software proprietário7 para escritório, expõe em seu curso denominado “Alfabetização Digital” que o objetivo é: “apresentar o mundo digital e suas possibilidades a iniciantes e pessoas com pouca familiaridade com o tema”, explicitando uma clara preocupação de alfabetização como iniciação ao universo digital (MICROSOFT EDUCAÇÃO, 2012). Também é possível encontrar esse sentido em pesquisas do campo da educação. Buscando contrapor alfabetização digital à inclusão digital, Souza e Bonilla (2009), pesquisadoras de Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), explicam: 7 Software proprietário são programas produzidos por empresas que mantêm, sob sua propriedade, seu códigofonte e cobra pelo seu uso, normalmente por meio da compra de pacotes e licenças. 456 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Ressaltamos que é necessário considerar que alfabetização e inclusão digital se distinguem, já que o primeiro se limita apenas a conhecimentos básicos para utilizar o computador e o segundo é um processo mais amplo, que ultrapassa a lógica de apenas o acesso à máquina. (SOUZA; BONILLA, 2009, p. 140). As autoras problematizam que a alfabetização digital permite ao sujeito a aquisição de habilidades e competências para manusear o computador, mas não possibilita o acesso às “competências necessárias que lhe possibilite ter uma atuação efetiva na produção de serviços e conhecimentos de forma a contribuir para as suas necessidades sociais” (SOUZA; BONILLA, 2009, p. 141). Se, na área da educação, o sentido de ir além do conhecimento dos símbolos e códigos e fazer uso social de tal conhecimento dizem respeito ao conceito de letramento, no universo digital, as pesquisadoras associam tais desdobramentos à inclusão digital. Paralelamente a essa conceituação, autores(as) influenciados pela discussão na educação transpõem a ideia de letramento para o conceito letramento digital. Justifica-se, assim, a aplicação desses conceitos para o campo digital: O acesso às TICs exige competências diferenciadas, o que levou à necessidade de ampliação do conceito de letramento, alfabetização e literacia para que compreendesse também as habilidades para realizar tarefas, comunicar-se e obter informações em ambiente digital. (CAPOBIANCO, 2010, p. 86). Em direção semelhante, baseando-se em entrevista de Marcelo Buzato, doutor em Linguística e professor na UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas), publicada em 2003 (BUZATO, 2003), Helena Silva e colegas, do Instituto da Ciência da Informação na UFBA, traçam um paralelo entre o sentido de letramento na educação formal e no universo digital: O letramento [na Educação] [...] é a competência em compreender, assimilar, reelaborar e chegar a um conhecimento que permita uma ação consciente, o que encontra correspondente no letramento digital: saber utilizar as TICs, saber acessar informações por meio delas, compreendêlas, utilizá-las e com isso mudar o estoque cognitivo e a consciência crítica e agir de forma positiva na vida pessoal e coletiva. (SILVA et al., 2005, p. 33). Na entrevista acima referida, Buzato (2003) define letramento digital como sendo “o conjunto de conhecimentos que permite às pessoas participarem nas práticas letradas mediadas por computadores e outros dispositivos eletrônicos no mundo contemporâneo” (BUZATO, 2003). O conceito deve abarcar mais do que o uso do computador e seus Internet e Saúde 457 equipamentos, incluindo: a habilidade para construir sentido a partir de textos multimodais, com palavras, figuras e elementos sonoros numa mesma superfície; capacidade para localizar, filtrar e avaliar criticamente informações disponibilizadas eletronicamente; e familiaridade com as normas que regem a comunicação com outras pessoas por meio do computador. Buzato (2009), em artigo publicado anos mais tarde, explica o porquê usar o conceito de letramento digital e critica a sua confusão com a ideia de alfabetização: Não se trata apenas de reconhecer que o acesso às TIC pressupõe a capacidade de receber e produzir informações por meio de dispositivos digitais, algo que a compreensão leiga de inclusão digital costuma denominar “alfabetização digital”. Trata-se de ampliar qualitativamente o debate sobre inclusão e tecnologia, contrastando a ideia mais restrita de alfabetização com a noção mais ampla e socialmente significativa de letramento. (BUZATO, 2009, p. 4). 3. Convergência entre a literatura nacional e internacional: a fluência e os letramentos digitais Enquanto o termo letramento digital (digital literacy) difundiu-se em diversos países, já em 1999, o Conselho Nacional de Pesquisa dos Estados Unidos (National Research Council), em Washington, por meio do Comitê de Alfabetização em Tecnologias da Informação (Commitee of Information Technology Literacy), criticava o termo literacy aplicado às habilidades computacionais (NATIONAL RESEARCH COUNCIL, 1999). Segundo o conselho, o significado de alfabetização indicava um conhecimento estável, que ao ser adquirido perduraria no tempo. Entretanto, no universo da tecnologia, essa característica de perenidade desapareceria, já que as transformações constantes não garantiriam que uma pessoa alfabetizada digitalmente hoje o seria daqui a algum tempo. Diante do surgimento de novas ferramentas, sempre seria necessário aprender novamente e se familiarizar mesmo com operações básicas, como o reconhecimento de ícones, que se alteram, ou o uso de menus, que mudam de nomenclatura e de posição: Geralmente, alfabetização computacional [computer literacy] tem adquirido uma conotação de “habilidades” [skills], o que implica competência em algumas das aplicações de computadores de hoje em dia, como processamento de texto e e-mail. Alfabetização é muito modesta como objetivo em vista da presença de mudanças rápidas, porque lhe falta o necessário “poder de permanência”. (NATIONAL RESEARCH COUNCIL, 1999, p. 2, tradução nossa). 458 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Para solucionar essa questão, o comitê adotou o termo fluência (fluency) para denotar um nível avançado de competência, ampliando o termo alfabetização computacional para “fluência em tecnologia da informação”: Pessoas fluentes em tecnologia da informação [FIT persons] são capazes de expressar-se criativamente, reformular conhecimento, e sintetizar novas informações. Fluência em tecnologia da informação [por exemplo, o que o relatório chama de FITness] implica um processo de aprendizado vitalício em que os indivíduos continuamente usam o que sabem para adaptar-se a mudanças e adquirir mais conhecimento a fim de serem mais efetivos no uso da tecnologia da informação em seus trabalhos e em suas vidas. (NATIONAL RESEARCH COUNCIL, 1999, p. 2, tradução nossa). No Brasil, podemos também encontrar as ideias de processo e continuidade atreladas ao conceito de letramento. Marcelo Buzato (2009), por exemplo, tematiza a diversidade e a instabilidade do letramento digital utilizando, para isso, o seu plural, “letramentos digitais” (BUZATO, 2009, p. 21). Tal uso expressa tanto a variedade de práticas e tecnologias que constroem os sentidos compartilhados socialmente, quanto os diferentes significados e funções que as práticas adquirem em contextos socioculturais diversos – ou, em outras palavras, as diferentes maneiras com que se compreendem essas práticas, a depender da posição social do indivíduo. Assim, Buzato (2009) dá um sentido relacional ao conceito, mostrando sua instabilidade e saindo da dicotomia letramento tradicional da educação versus digital. Nesse sentido, propõe a seguinte definição para letramentos digitais: “redes complexas e heterogêneas que conectam letramentos (práticas sociais), textos, sujeitos, meios e habilidades que se agenciam, entrelaçam, contestam e modificam mútua e continuamente, por meio, virtude ou influência das TIC” (BUZATO, 2009, p. 22). Essa definição contribui para a reflexão sobre a dimensão do sentido que o usuário dá às ferramentas digitais e às transformações que elas proporcionam durante o uso, a partir de sua história de vida e sua posição social. Conforme vimos no projeto DigEuLit (MARTIN, 2005) e em Bawden (2008), é sugerido contextualizar as experiências em ambiente digital, tanto no que se refere aos momentos de vida, como entre diferentes indivíduos, que apresentam diferentes necessidades. Conforme afirma Bawden (2008), “não é sensível sugerir que um modelo específico de letramento digital será apropriado por todas as pessoas ou, na verdade, por uma pessoa ao longo de sua existência” (BAWDEN, 2008, p. 28, tradução nossa). Internet e Saúde 459 4. Os conceitos de alfabetização, alfabetismo e letramento digital entre especialistas Nesta etapa da pesquisa, fizemos uso de metodologia qualitativa, articulando a pesquisa bibliográfica em base nacional à realização de sete entrevistas em profundidade no Brasil. Nosso objetivo foi explorar sentidos dos conceitos para consolidarmos uma definição de letramento digital. Essa definição visou nortear as etapas seguintes de acepção das dimensões de um indicador de letramento digital, a fim de torná-lo quantificável (HAIR JR et al., 2005, p. 175). Nas entrevistas realizadas com pesquisadores(as), ativistas e profissionais que atuam no campo de inclusão digital ou educacional (identificados(as) abaixo como Digital e Educação, respectivamente), perguntamos: “O que entende por alfabetismo digital?”, “E o que entende por letramento digital?”. Com isso, buscamos conhecer a percepção e as possíveis diferenças existentes no campo. Para a grande maioria dos(as) entrevistados(as), alfabetismo foi associado à alfabetização, limitando seu significado aos conhecimentos básicos das ferramentas do universo digital. Abaixo, listamos alguns verbatims (informação verbal) que apontam nessa direção. Alfabetização digital é o conhecimento dos elementos básicos que te permitem usar o aparelho digital e a internet. (Educação). Alfabetização digital é aprender a mexer. [Nos telecentros] defendíamos cursos rápidos, de familiarização com a máquina, para aprender a usar o computador: começava na internet, usando a rede, e ia para o editor de texto e depois para as planilhas. Por exemplo, as planilhas eram usadas para fazer um orçamento familiar, o editor para fazer um texto para mandar pelo e-mail, e assim por diante. (Digital). O PISA 2003 traz algumas questões que identificam o que seria essa alfabetização digital: sabe ligar o computador, sabe gerenciar arquivos, sabe mandar e-mail. O SIMCE TIC do Chile também identifica esse nível básico que poderíamos chamar de alfabetização digital. 8 (Educação). O alfabetismo digital está mais relacionado a uma utilização mais básica, os primeiros passos. (Educação) 8 O exame PISA (Programme for International Student Assessment) é elaborado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD) (https://www.oecd.org/pisa/), enquanto o SIMCE TIC foi um exame do Programa Enlaces do Ministério da Educação do Chile (http://www.enlaces.cl/evaluacion-dehabilidades-tic/simce-tic/presentacion/). 460 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Essa compreensão é diferente do que entende o Instituto Paulo Montenegro (IPM), no contexto do Inaf, para o qual letramento e alfabetismo são termos que detêm o mesmo significado e dizem respeito ao uso social do conhecimento em contexto. Nesse sentido, para o IPM, alfabetismo diferencia-se de alfabetização, já que esta é associada ao uso mecânico da língua ou do ler e escrever. Uma definição em linha com o IPM pode ser notada na definição a seguir, oferecida por um dos entrevistados. Apesar de abarcar o sentido de habilidades básicas no uso das ferramentas digitais, a construção abaixo aponta para um uso funcional do conteúdo que o indivíduo terá acesso. Vai além, portanto, dos apontamentos dos(as) entrevistados(as) citados anteriormente: [Alfabetização digital é saber] manipular minimamente o computador, saber buscar informações na internet que vão ser úteis para sua vida profissional, social e para seu lazer, e usar estas informações para tornarse mais produtivo em vários âmbitos. Um exemplo é uma pesquisa por financiamento. O sujeito deve saber buscar os juros cobrados pelos bancos na rede, tratar, manipular a informação numa planilha contendo os diversos bancos e taxas para, em seguida, tomar uma decisão. (Digital). Essa visão se aproxima daquela apresentada por Cristina Mori (2011) em sua tese de doutorado sobre inclusão digital, defendida na Universidade de Brasília (UnB). Para a pesquisadora, que não utiliza o conceito de letramento digital em nenhum momento em seu trabalho, alfabetização digital ganha sentido de letramento digital por sua aplicação em contexto, conforme se lê a seguir: A primeira habilidade fundamental é a própria alfabetização literária, sem a qual um indivíduo não explora plenamente os conteúdos digitais, ainda que consiga acessá-los. Já a chamada alfabetização digital consiste em aprender a usufruir das tecnologias da informação e da comunicação, de modo a empregá-las em consonância com necessidades individuais e coletivas. (MORI, 2011, p. 70). Assim como Mori (2011), nossos(as) entrevistados(as) que, como a autora, atuam no campo da inclusão digital, não utilizam o conceito de letramento digital e expõem um entendimento esparso do termo, como veremos nos verbatims a seguir. Conforme esperado, uma situação diferente ocorre junto aos(às) entrevistados(as) do campo da educação, para os quais letramento vem carregado de sentido e é transposto ao campo digital para significar o uso social que se faz dos conteúdos acessados. Letramento digital é estranho, não associo a nada. Talvez seja algo bem inicial, de letrar, bem no início. (Digital). Internet e Saúde 461 Letramento talvez seja uma etapa anterior à alfabetização. Como conhecer o abecedário, como se formam as sílabas. Na alfabetização, você faz uso efetivamente disso. (Digital). Para mim, letramento digital e alfabetização digital é a mesma coisa. (Digital). Como um adolescente pode fazer uma boa pesquisa no universo digital se não tiver um nível de letramento avançado? São habilidades que se correlacionam, e as habilidades necessárias para usar os recursos digitais têm muito a ver com as habilidades de letramento e “numeramento” [da educação formal]. É possível traçar um paralelo direto entre o alfabetismo e o letramento com o letramento digital. (Educação). A partir da alfabetização digital, o nível e a qualidade da utilização de meios digitais influenciam o letramento digital, que tem relações com a visão de si, do meio e do mundo de cada um. (Educação). Por fim, uma única entrevistada, que produziu uma tese de doutorado sobre alfabetismo e é uma das idealizadoras do conceito do Inaf, em que alfabetismo significa letramento, discute ambos como faces da mesma questão: Estou pensando nisso agora com vocês, mas entendo que alfabetismo digital se refere a elementos básicos que te permitem usar o aparelho digital e a internet. Letramento digital seria a mesma coisa, é um conceito que reúne as ferramentas básicas para se desenvolver em algum campo. (Educação). O estágio posterior à alfabetização digital foi associado, por um(a) de nossos(as) entrevistados(as) à inclusão digital, de forma similar ao abordado por Souza e Bonilla (2009). Nesse estágio, além de receber informações, o indivíduo é capaz de produzi-las e compartilhá-las: Se você é um alfabetizado digital até onde vai sua inclusão digital? Essa é a questão. Inclusão digital não é só alfabetismo digital. Essa é a primeira etapa. O objetivo é transformar as pessoas em sujeitos de produção de conteúdo. (Digital). Podemos associar essa visão ao que Mori (2011) chama de “vertente da informática comunitária”, que dialoga com a visão que a autora tem de inclusão digital: A vertente da informática comunitária dialoga com o paradigma multidimensional e participativo de políticas de “inclusão digital”. Não 462 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) pretende restringir a “inclusão digital” ao acesso, nem à “alfabetização digital”, e se enquadra no conceito de “inclusão digital” como apropriação crítica das TICs, tendo como finalidade o desenvolvimento local e voltado aos direitos de cidadania. Também não se limita aos aspectos econômicos. Ao se preocupar com desenvolvimento local e autonomia de indivíduos e comunidades deixadas de lado pelo mercado, mostra-se convergente às premissas da garantia de direitos humanos universais. (MORI, 2011, p. 61). 4.1. Síntese dos significados encontrados na discussão brasileira A partir das definições apresentadas, chamamos atenção a seguir aos significados dos termos letramento digital e alfabetização digital encontrados no campo, com vistas ao recorte que faremos para um conceito de letramento digital que possa ser operacionalizado por um indicador. Para isso, propomos uma análise de dois aspectos, que chamaremos de técnico-operacional e informacional. Quando se sobressai a abordagem técnico-operacional na definição, são enfatizados o uso das ferramentas e aplicativos digitais e o desenvolvimento de habilidades requeridas para uma plena utilização desses instrumentos. Já nas definições que dão ênfase a habilidades informacionais, desprendese a preocupação com um sujeito que não apenas saiba manusear as ferramentas, mas que deve pensar e agir criticamente frente a um universo amplo de informações, as quais precisam ser não somente localizadas, mas integradas, avaliadas e transformadas frente às diferentes necessidades do cotidiano. Buscamos classificar a bibliografia brasileira consultada (Quadro 2) e as entrevistas realizadas (Quadro 3) considerando esses dois significados. Quadro 2. Quadro-síntese da revisão bibliográfica brasileira DEFINIÇÕES ENCONTRADAS NA LITERATURA Significado Termo Definição Autor Instituição Setor Técnicooperacional Alfabeti zação digital Processo de aquisição de habilidades básicas para o uso de computadores, redes e serviços de internet Brasil (2000) Ministério da Ciência e Tecnologia Governo X Informacion al Internet e Saúde 463 Letram ento digital Habilidade tecnológica e conhecimento dos recursos da web necessários para utilizar a tecnologia na aquisição de disciplinas adicionais e conhecimento pedagógico em apoio ao desenvolvimento profissional do professor Conhecimento do mundo digital e suas possibilidades a iniciantes e pessoas com pouca familiaridade com o tema Conhecimentos básicos para utilizar o computador, lógica de acesso à máquina Conjunto de conhecimentos que permite às pessoas participarem nas práticas letradas mediadas por computadores e outros dispositivos eletrônicos no mundo contemporâneo (construção de sentido, capacidade de localizar, filtrar e avaliar criticamente informações, familiaridade com as normas que regem a comunicação via computador) Saber utilizar as TICs, saber acessar informações por meio delas, compreendê-las, utilizá-las e com isso mudar o estoque cognitivo e a consciência crítica e agir de forma positiva na vida pessoal e coletiva UNESCO (2008a, 2008b) UNESCO Multilate ral X X Microsoft Educação (2012) Microsoft Educação Empresa X X Souza e Bonilla (2009) Universidade Federal da Bahia Universid ade X Buzato (2003) Universidade Estadual de Campinas Universid ade X X Silva et al. (2005) Universidade Federal da Bahia Universid ade X X 464 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Letram entos digitais Redes complexas e heterogêneas que conectam práticas sociais, textos, sujeitos, meios e habilidades que se agenciam, entrelaçam, contestam e modificam mútua e continuamente, por meio, virtude ou influência das TICs Universidade Estadual de Campinas Buzato (2009) Universid ade X X Fonte: As autoras (2020). Quadro 3. Quadro-síntese das entrevistas ENTREVISTAS Significado Termo Definição Campo Técnicooperacional Informacional Conhecimento dos elementos básicos que permitem usar o Educação X Digital X Digital X Educação X Educação X aparelho digital e a internet Aprender a mexer, familiarização com a máquina, aprender a usar o computador Manipular minimamente o computador, saber buscar informações na internet que vão Alfabetização ser úteis para sua vida digital profissional, social e para seu X lazer, e usar estas informações para tornar-se mais produtivo em vários âmbitos. Saber ligar o computador, saber gerenciar arquivos, saber mandar e-mail, etc. Relacionada a uma utilização mais básica, os primeiros passos Letramento digital O letramento digital tem relações com a visão de si, do meio e do Educação X Digital X mundo de cada um Inclusão Transformar as pessoas em digital sujeitos de produção de conteúdo Internet e Saúde 465 Apropriação crítica das TICs, tendo como finalidade o desenvolvimento local e voltado Digital X aos direitos de cidadania Fonte: As autoras (2020). Esses quadros são qualitativos, o que nos impede de expandir os resultados para o campo como um todo. Porém, é consistente o fato de que tanto na literatura como entre os(as) entrevistados(as), há uma incidência maior de associação a aspectos técnicooperacionais quando se usa o termo alfabetização digital, enquanto termos como inclusão digital e letramento digital são mais frequentemente relacionados a aspectos informacionais. Pela análise desse conteúdo, chegamos a um importante resultado. Entendemos que discutir um indicador de letramento digital no Brasil não pode prescindir da abordagem do uso da máquina, ainda que os aspectos centrais para aplicação social do conhecimento que norteiam o presente trabalho se concentrem nos aspectos informacionais. Em outras palavras, ter habilidades técnico-operacionais aplicadas às necessidades das práticas sociais é uma condição importante para que o sujeito possa fazer uso dos recursos digitais e obter seus benefícios na vida cotidiana. Na concepção de indicador em que estamos nos baseando para essa construção conceitual, o Inaf, não são contemplados os aspectos mecânicos da língua, como o ler e escrever, por considerar que tais habilidades, sozinhas, não são suficientes para fazer uso social desse conhecimento. Desse modo, fazemos um paralelo, entendendo que no ambiente digital os aspectos técnicooperacionais também não se encerram em si mesmos; porém, prescindem de medição, porque, diferentemente do ler e escrever, essas competências não são reconhecidas ainda como direito. Ao serem levadas em consideração na construção de indicador de letramento digital, acreditamos que as habilidades técnico-operacionais poderão receber maior atenção de políticas públicas, provocando quiçá uma incidência positiva no debate. 5. Seleção de pressupostos para o conceito e seus desdobramentos 5.1. Seleção de pressupostos para a criação do conceito 466 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) A partir do conteúdo exposto, tecemos as seguintes considerações sobre os pressupostos que irão embasar o conceito a ser construído: a) Para definir o nível de uma pessoa letrada digitalmente é necessário levar em consideração não apenas o uso, mas também a produção ou a transformação autoral de conteúdo em rede feita pelo indivíduo em seu contexto social. b) Há funções que um indivíduo letrado digitalmente precisa saber que é possível realizar, ainda que não saiba como. Para isso, precisa entender a natureza dos recursos de informação, não em seu sentido técnico-operacional – como se programa um site de busca, por exemplo – mas em seu sentido informacional – que o conteúdo encontrado por um buscador é determinado por uma programação humana, que utiliza palavras chaves etc. c) Não é possível pensar letramento digital em uma única dimensão: letramento em TICs, informacional, midiático e em internet são faces de uma mesma questão. d) Atitudes em relação à segurança e à privacidade no ambiente digital devem fazer parte dos requisitos necessários para o pleno uso dos recursos disponibilizados em rede, já que os cuidados que se tem no dia a dia não podem ser esquecidos no ambiente digital, onde também se está exposto a normas e riscos9 semelhantes10. e) O conceito de letramento digital deve ter como fim último a educação autônoma, na qual os indivíduos, apropriando-se dos recursos disponíveis pelas TICs e sabendo como funcionam a nível informacional, possam continuar a se desenvolver de maneira independente, respondendo com fluência a necessidades individuais e de seu meio social. f) No universo digital, alfabetismo ou alfabetização, mesmo se entendidos com sentidos diferentes, são conceitos estáticos, que não traduzem as transformações constantes do campo, no qual as tecnologias exigem aprendizados e reaprendizados constantes. Por isso, no universo digital, sugerimos denominar o processo de aprendizagem do uso das ferramentas – por alguns chamado de alfabetização digital –, de aprendizagem de habilidades técnico-operacionais em TIC, e a dimensão de letramento, de aprendizagem de habilidades informacionais em TIC. Nos dois casos, trata-se de habilidades funcionais, evidenciando que o processo envolve o uso social do conhecimento aplicado pelo indivíduo em contexto. Em virtude disso, também poderíamos chamar o primeiro processo de letramento técnico-operacional em TIC e o segundo, de letramento informacional em TIC. 9 O capítulo 10 aborda o tema dos riscos na Internet. Tais atitudes são denominadas como “letramento socioemocional” por Eshet-Alkalai (2004) e por “letramento social/moral” por Bawden (2008). 10 Internet e Saúde 467 5.2. A proposição de um conceito: letramento digital Letramento digital é a condição que permite ao sujeito usufruir das tecnologias de informação e comunicação para se desenvolver autonomamente e atender às necessidades do seu meio social. A sua operacionalização se dá por meio da conjunção de duas dimensões complementares de habilidades funcionais que um indivíduo deve possuir: “habilidades técnico-operacionais em TIC” e “habilidades informacionais em TIC”. Chamamos de “habilidades técnico-operacionais em TIC” os conhecimentos necessários para o manuseio das tecnologias de informação e comunicação e de suas ferramentas para lograr alguma ação em ambiente digital. Para exemplificar, se a ação é comunicar-se com outra pessoa virtualmente via e-mail e um computador, o(a) letrado(a) técnico-operacional em TIC deve saber: ligar um equipamento; acessar um navegador de internet; encontrar a barra apropriada para digitar um endereço, seja de uma rede social ou de um provedor de e-mail; acessar sua conta; digitar a mensagem no local apropriado; e enviá-la. A execução dessas atividades com sucesso denota um letramento técnicooperacional adequado aos dias atuais. “Habilidades informacionais em TIC”, por outro lado, implica ter a capacidade de manusear e integrar informações de diferentes níveis e formatos no ambiente digital para que se transformem em informações úteis para responder a finalidades intencionais do indivíduo. Implica também possuir a capacidade de avaliar informações e situações a que está submetido(a) no uso das TICs e de compreender padrões de funcionamento que o permitam se desenvolver autonomamente nesse ambiente. Nesse processo, para se comunicar com outra pessoa, um(a) letrado(a) informacional em TIC deve saber fazer uso adequado da linguagem em relação ao meio. Ele(a) deve conseguir se expressar dentro das normas esperadas diante da atividade executada, elaborando sua mensagem com diferentes elementos de linguagem, não apenas textual, se necessário, com consciência sobre a veracidade e segurança da informação e da situação. Por ora, cabe ressaltar que, ao mensurarmos as “habilidades técnico-operacionais em TIC”, estaremos diante de conhecimentos transitórios e instáveis, que necessariamente precisarão passar por revisões constantes, na medida em que novas soluções tecnológicas surgirem. Por outro lado, as “habilidades informacionais em TIC” tendem a ser mais perenes, por guardarem semelhanças com as habilidades cognitivas do universo não digital, no entanto, sem confundirem-se com elas, já que exigem o conhecimento de uma linguagem multimodal, composta de letras, imagens e sons, até agora. 468 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) 6. Considerações finais Considerando a ubiquidade das tecnologias móveis e as soluções das indústrias de tecnologia, que têm optado pela facilitação da comunicação via voz e vídeos, faz-se importante refletir sobre os tipos de letramentos necessários para acessar conteúdos que levam à desinformação versus conteúdos confiáveis e de qualidade. São os letramentos requeridos para acessar esses dois tipos de conteúdos os mesmos? É possível distinguir facilmente uns dos outros? Podemos supor que não. Por um lado, ainda que, à primeira vista, o letramento técnico-operacional possa parecer menos urgente no contexto atual, dado que a conversão de muitos serviços da internet em aplicativos acessíveis via celular permite acesso com poucos toques na tela a tais conteúdos, devemos atentar para o que não é, a partir de seu design, tão acessível. Por exemplo, um indivíduo recebe uma notícia falsa, uma informação problemática ou um conteúdo inverídico em seu aplicativo de mensagens no contexto de uma pandemia. Essa pessoa é capaz e se vê motivada a sair em busca de outras fontes confiáveis para confirmar ou não tal informação, que pode recomendar desde o consumo de um remédio sem comprovação científica até mesmo de um desinfetante via discursos de presidentes da república11? “Sair em busca” parece aqui uma boa metáfora, porque é necessário deixar a janela do aplicativo que concentra os conteúdos acessados, lançar-se a um buscador utilizando palavras-chave para, em seguida, avaliar o conteúdo disponível e ranqueado via algoritmos. As plataformas digitais, baseadas num design que explora e eleva a outro patamar a economia da atenção (BOYD, 2010; WU, 2017), possuem navegações intermináveis e rastreio do acesso para monetizar tais informações. Assim, elas não facilitam a contento essa tarefa e, de certa maneira, ajudam a atrofiar as habilidades técnico-operacionais, já que, baseadas em interesses comerciais, buscam a todo custo manter os(as) usuários(as) em seus próprios ambientes privativos. Isso restringe o contexto e o universo das práticas sociais desses(as) usuários(as), que acabam sendo restritas à mediação das ferramentas de plataformas mais populares. Por outro lado, o letramento informacional torna-se ainda mais relevante para auxiliar o indivíduo a romper as barreiras das plataformas digitais e considerar a possibilidade de consultar novas fontes e validar a informação. Nesse sentido, considerando a vasta quantidade de informação a que uma pessoa poderá ter acesso facilmente, ou aquela que precisará realizar alguns passos a mais para acessar – como ocorre com jornais e revistas com conteúdo restrito a assinantes ou usuários(as) cadastrados(as) – o letramento informacional, assim como o técnico-operacional, requer pensar em um contínuo, e não na oposição letrado(a)/iletrado(a). 11 Exemplos reais ocorridos no Brasil e nos Estados Unidos no contexto da COVID-19 (BBC, 2020; GRAGNANI, 2020). Internet e Saúde 469 A definição de uma matriz de habilidades e competências que responda aos desafios atuais e que dê suporte a experimentos que permitam aferir os letramentos digitais da população é uma etapa futura desejável para uma melhor compreensão da inclusão digital no Brasil no contexto atual12. O avanço da exploração de dados pessoais disponibilizados nas plataformas digitais para fins de lucro, característica dos chamados capitalismo de vigilância (ZUBOFF, 2015), capitalismo de plataforma (SRNICEK, 2017), e capitalismo rentista (SADOWSKI, 2020), desafia a compreensão pública de tecnologia pela falta de transparência e accountability de grandes empresas de tecnologia, e gera novos desafios para definir os letramentos digitais necessários em tal cenário. Esperamos que a discussão aqui proposta contribua nessa direção. Referências AÇÃO EDUCATIVA; INSTITUTO PAULO MONTENEGRO. INAF Brasil 2018: Resultados Preliminares. São Paulo: IPM, 2018. 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Mendonça*, Elizabeth Alves de Jesus Prado, Natália Fernandes Andrade, Donizete Moreira, João Paulo Fernandes da Silva e Maria Fátima de Sousa Resumo Este capítulo descreve a experiência do projeto de inclusão digital realizada entre 2016 e 2018, no estado de Goiás, com agentes comunitários de saúde, no tocante à gestão do conhecimento e ao fortalecimento de capacidades, habilidades e atitudes para prevenir, cuidar e promover a saúde dos indivíduos, famílias e comunidades. O caminho didáticopedagógico adotado para a capacitação desses(as) profissionais de saúde foi o ensino a distância, a partir de processos de ambientação tecnológica para o uso do Moodle. Os resultados alcançados indicam a existência de um profissional ainda alheio ao universo das Tecnologias de Informação e Comunicação, apesar do nível médio de escolaridade e do alcance da inclusão digital no país. Os depoimentos dos(as) participantes reiteram o mérito do projeto. Estratégias dessa natureza devem ser adotadas pelos gestores municiais de saúde, uma vez que o Brasil é um país com dimensões complexas em suas faces econômica, política e sociocultural. Palavras-chave: Inclusão Digital; Agentes Comunitários de Saúde; Gestão do Conhecimento; Atenção Primária à Saúde; Sistema Único de Saúde. Referência: MENDONÇA, A. V. M. et al. Inclusão digital de agentes de saúde de Goiás: relato de uma iniciativa pedagógica. In: PEREIRA NETO, A.; FLYNN, M. (orgs.). Internet e saúde no Brasil: desafios e tendências. 1 ed. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2020. p. 472-487. * Faculdade de Ciências de Saúde, Universidade de Brasília, Brasil. E-mail: [email protected]. 474 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Introdução Há quem afirme que o tema da inclusão digital1 (ID) no Brasil tenha sido superado. É possível que tenha sido minimizado. Mas ele ainda não foi atendido no âmbito das especificidades que demandam a gestão da informação e do conhecimento. Esse problema é ainda mais intrincado em um país diverso em suas dimensões política, econômica e sociocultural, com complexos processos organizacionais de sistemas municipais de saúde, principalmente em municípios que optam pela Atenção Primária à Saúde (APS) como o ponto inicial e circular da organização das atenções e serviços de saúde. Além disso, a inclusão digital não engloba agentes comunitários de saúde e a Estratégia Saúde da Família como caminho possível nos processos do cuidar da saúde-doença, rumo a redes integradas em um sistema de saúde universal, descentralizado, público e de qualidade. Essas opções constituem estratégias de organização e estruturação do sistema de saúde brasileiro. O Sistema Único de Saúde (SUS), pressupõe a saúde como um direito social. O modelo de atenção à saúde brasileiro deveria promover ações e serviços de saúde resolutivos. Nessa perspectiva, optou-se por estruturá-lo com base na Atenção Primária em Saúde (APS) como coordenadora do cuidado. Isso significa que cabe à APS acompanhar o indivíduo, promovendo um cuidado longitudinal, e referenciar pacientes que procuram os serviços de saúde para outros níveis de complexidade e atenção especializada, coordenando o cuidado. A APS é uma alternativa de transformação da lógica das práticas de saúde, baseada no conceito de família e intervenções nos domicílios (BRASIL, 2006). Na APS a compreensão do processo de adoecimento e cura, ou processo saúde/doença, é olhada de forma integral e multicausal, sendo determinado por fatores individuais, familiares, sociais e ambientais. Nesse sentido, o sistema de saúde brasileiro, ao implementar a APS como coordenadora do cuidado, com vistas a alcançar o indivíduo considerando seu contexto econômico e social, estruturou-se em torno das Equipes de Saúde da Família. Elas são compostas por médico, enfermeiro, técnico de enfermagem e agentes comunitários de saúde (ACS). Os ACS são indivíduos residentes no território de atuação desta equipe. Eles são responsáveis por realizar visitas domiciliares e acompanhar os indivíduos e famílias. São, portanto, o elo de comunicação das necessidades de saúde apresentadas no território. Esta iniciativa denomina-se Estratégia de Saúde da Família. Em 2007, foi iniciado um projeto de inclusão digital dos(as) agentes comunitários de saúde nos estados da federação brasileira, por compreender que, em um país com inúmeras diversidades e complexidades, incluir os(as) profissionais que primeiro “batem à porta” dos domicílios para promover saúde fazia-se urgente e necessário. 1 O capítulo 3 aborda um projeto de inclusão digital pioneiro no Brasil. Internet e Saúde 475 O estado de Goiás convidou o Núcleo de Estudos em Saúde Pública (NESP) vinculado ao Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM) da Universidade de Brasília (UnB) para ser o parceiro preferencial no desenvolvimento de um projeto estratégico ao desenvolvimento da inclusão dos seus ACS, em todos os municípios daquela Unidade Federada. Isso ocorreu devido aos resultados alcançados positivamente na iniciativa realizada em 2007, e, sobretudo, ao reconhecimento de que os agentes de saúde não poderiam ficar à margem das novas revoluções tecnológicas. Nesse sentido, foi firmada uma cooperação entre o NESP e a Secretaria de Estado da Saúde de Goiás (SES-GO) para desenvolver o “Projeto de Melhoria da Qualidade do Trabalho dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS)”. Do que estamos falando? De um número considerável de trabalhadores(as) da saúde no Centro Oeste do Brasil que precisavam cursar, na modalidade a distância, módulos de qualificação para o trabalho em rede, mas que não possuíam conhecimentos, habilidades ou atitudes diante das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs). Assim, neste capítulo, será feita uma reflexão acerca deste cenário de prática, bem como os perfis desses(as) profissionais e suas dificuldades. Também será apresentado o trabalho conjunto realizado para que essas pessoas pudessem ascender um degrau a mais na escala de inclusão digital e informacional, a fim de que pudessem ter maior êxito em seus propósitos de formação em serviço. Antes, porém, faz-se necessário relembrarmos que o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), criado em 1991, é uma estratégia que visa promover a saúde e melhorar a qualidade de vida dos indivíduos, famílias e comunidades vinculadas a uma equipe multiprofissional que atua em territórios específicos (BRASIL, 2009; 2011). Posteriormente ampliado e consolidado no Programa Saúde da Família (PSF), o trabalho dos ACS propõe um novo modelo de atenção à saúde, que aprimora ambientes saudáveis, protege as pessoas contra ameaças à saúde e possibilita às comunidades a expansão de suas capacidades e oportunidades de se desenvolver (MENDONÇA et al., 2017). No Brasil, até o final de 2017, existiam 257.872 agentes comunitários de saúde. Desse montante, 8.132 atuam em Goiás (BRASIL, 2018). 1. Capacita ACS/ACE – informação e conhecimento em rede “Capacita ACS/ACE” foi um curso de capacitação para ACS e agentes de combate a endemias (ACE). Seu objetivo foi qualificar os processos de trabalho desses(as) profissionais para atuarem junto às suas equipes multiprofissionais, visando a melhoria da qualidade do seu trabalho nas ações de cuidado e promoção à saúde de indivíduos e grupos sociais, em domicílios e coletividades. O curso teve carga horária de 220h e foi realizado em Ambientes Virtuais de Aprendizagem (AVA), na modalidade à distância e 476 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) teve início em dezembro de 2016, com término previsto para final de 2018. O primeiro módulo para a primeira turma, das 14 previstas até o final do projeto, teve 881 inscritos. A segunda turma contou com 764 inscritos, enquanto a terceira turma teve 1700 inscritos. No total, o curso contou com 3345 agentes na condição de participantes ativos. Ao final, tivemos mais de 11 mil agentes em todo o curso. Os(as) participantes foram selecionados pela SES/GO e convidados para se inscreverem no curso via e-mail. Na mensagem, havia um link com um formulário eletrônico, no qual os(as) participantes deveriam responder perguntas sobre os seus perfis social, profissional e tecnológico. Vejamos a seguir algumas informações sobre os inscritos. 2. Perfil dos(as) participantes do curso EAD Quanto ao perfil social, destacamos as categorias sexo, portador de necessidade especial, escolaridade e renda familiar. Dos 3345 inscritos nas três primeiras turmas, 2566 (76,7%) foram do sexo feminino e 779 (23,3%), do sexo masculino. Em relação a ser portador de alguma deficiência, 63 (1,9%) informaram positivamente. Para eles, havia no questionário uma pergunta subsequente sobre o tipo de deficiência que possuíam. Dentre as opções listadas, os inscritos podiam indicar se tinham deficiência visual, intelectual/cognitiva ou outra. Em relação à escolaridade, observa-se a prevalência do ensino médio completo (58,36%) entre os ACS e ACE, seguida do ensino superior completo (17,43%), ensino superior incompleto (11,36%), ensino médio incompleto (4,93%), ensino fundamental completo (3,35%), ensino fundamental incompleto (1,49%) e pós-graduação (3,08%). Essa informação evidencia o nível acadêmico dos(as) agentes, principalmente quando se compara o percentual de inscritos com ensino superior completo com o percentual daqueles com nível superior incompleto. Em relação à renda familiar, 97,7% dos inscritos informaram possuir renda de até quatro salários-mínimos. No que compreende o perfil profissional, destacam-se as seguintes perguntas: “Atua como ACS”; “Vínculo profissional com a Prefeitura”; “Tempo de serviço como ACS”; “Fez o curso de formação para atuar como ACS”; “Participou de cursos de capacitação para o exercício das atividades de agente”; e “Município de atendimento”. Do total de 524 inscritos, apenas 4,4% trabalhavam com regime de contrato com a Secretaria de Saúde. Esse dado indica o alto índice de fragilidade nas relações de trabalho dos(as) agentes comunitários de saúde. Em relação ao tempo de serviço como agente, 27,1% dos inscritos tinham tempo de trabalho entre 9 e 11 anos;16,8%, entre 15 e 18 anos; e 15,3%, entre 12 e 14 anos de serviço. Internet e Saúde 477 Com essa informação, foi possível identificar que são profissionais experientes, uma vez que 63,5% dos inscritos possuíam nove anos ou mais de serviço. Ainda construindo o perfil profissional, os(as) agentes foram consultados quanto ao curso de formação de ACS: isto é, se haviam realizado capacitações para o exercício de suas atividades. Quanto ao curso de formação, 17,8% afirmaram não ter feito. Em relação a capacitações, 22,1% também apontaram não ter realizado. Os resultados dessas perguntas atentam para o quantitativo de agentes que não realizou o curso de formação ou mesmo capacitações posteriores. Isso pode evidenciar uma fragilidade nos processos de formação profissional, assim como uma deficiência no processo de gestão da informação e da comunicação em saúde a eles atribuída e esperada. Para finalizar o perfil profissional, os inscritos responderam sobre seus municípios de atuação. Foram informados 80 municípios, com destaque para: Anápolis, com 428 inscritos; Águas Lindas de Goiás, 258; Aparecida de Goiânia, com 248; Luziânia, com 189; Rio Verde, 174; e Planaltina de Goiás, com 131. Os demais municípios apresentaram menos de 100 inscritos. 3. O perfil tecnológico Nesta seção do questionário, foi consultada a frequência com que os(as) agentes têm acesso às TICs. As perguntas estavam relacionadas ao acesso de tecnologias como computador, tablet e celular smartphone, com conexão à internet. As respostas sobre a frequência consistiam em: “1 a 3 vezes por semana”, “de 4 a 6 vezes por semana”, “diariamente” e “não tenho acesso”. Em relação ao computador, 24,9% dos inscritos afirmaram não ter acesso. Quanto aos tablets, a ausência de acesso entre os(as) participantes foi de 83,1%. Em relação ao uso de smartphone, 24% disseram não ter acesso a essa tecnologia. Esses dados mostraram que 25% dos inscritos não têm acesso aos dois tipos de TIC mais utilizadas, a exemplo dos tablets. Ademais, tratando-se de um curso realizado em Ambientes Virtuais de Aprendizagem, esse número torna-se ainda mais significativo, uma vez que o acesso às tecnologias é pré-requisito fundamental no processo de aprendizagem. Após o tópico sobre acesso às TICs, a próxima pergunta procurou saber onde esses acessos aconteciam. Foi observado que 90% dos inscritos que tinham acesso à internet se conectavam à rede em casa ou no trabalho. Para encerrar o perfil tecnológico e o questionário, foi perguntado se os(as) ACS/ACE conheciam plataformas de Ensino a Distância (EAD) e, para os que respondessem positivamente, se já haviam feito algum curso a distância. No questionário, 43,8% afirmaram conhecer plataformas de educação a distância, sendo que desse total 59,5% já participaram de algum curso a distância por intermédio dessas plataformas. 478 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Considerando o problema de acesso e o desconhecimento por parte dos(as) agentes em plataformas de educação a distância, o Laboratório de Educação, Informação e Comunicação em Saúde (LabECoS) e o NESP/UnB, com o apoio da SES/GO, elaboraram um cronograma de oficinas de inclusão digital voltadas para os ACS e ACE com maiores dificuldades. Essa demanda surgiu após a avaliação dos dados coletados na inscrição dos(as) alunos(as) da primeira turma, na qual foi identificado, em três municípios, um número grande de ACS/ACE sem acesso às TICs, em relação ao total de inscritos na localidade. Os municípios que mais chamaram a atenção com esse problema foram: Posse, com 38 agentes sem acesso entre os 81 inscritos; São Miguel do Araguaia, com 29 de 58 inscritos; Cavalcante, com 26 de 34 inscritos; São Domingos, com 16 de 31 inscritos; e São Simão, com 15 de 50 inscritos. Logo, esses resultados, associados a um percentual de 48,8% que afirmou desconhecer plataformas EAD, somente na primeira turma foi identificada a necessidade de oficinas para capacitar ACS e ACE no uso das Tecnologias de Informação e Comunicação. Isso era necessário não apenas para os(as) agentes seguirem o curso, mas também para que pudessem se incluir no universo virtual, consolidando o acesso à informação para absorção e gestão de conhecimentos (MENDONÇA, 2009; MENDONÇA et al., 2009). Haja vista a realidade encontrada, a necessidade de capacitação desses(as) profissionais tornou-se inerente à realização do curso, por compreender o papel do educador e para superar os desafios postos (MENDONÇA, 2007). Assim, serão descritos a seguir o perfil das oficinas realizadas e o desenvolvimento das atividades na prática. 4. Perfil dos(as) participantes das aulas de Inclusão digital A oficina de inclusão digital foi uma atividade teórico-prática com carga horária de 8 horas. Seu objetivo foi capacitar os ACS e ACE não incluídos digitalmente no uso das Tecnologias de Informação e Comunicação, como smartphone, notebook, tablet, computador e outros. O conteúdo teórico buscou despertar nos ACS/ACE as competências necessárias para cursar o Capacita ACS/ACE. Os(as) participantes da oficina se autodeclararam não incluídos digitalmente e responderam, no início da aula, a um novo questionário semiestruturado, no qual relataram as suas principais dificuldades quanto ao uso das Tecnologias de Informação e Comunicação. A análise subsidiou a elaboração de um perfil dos(as) participantes das oficinas, bem como direcionou a condução dos conteúdos teóricos abordados durante as sessões de estudo em grupo. O perfil descrito a seguir buscou identificar qual(is) TIC(s) os(as) agentes tinham maior familiaridade e facilidade de manusear no dia a dia, seja para uso pessoal ou no trabalho. A oficina de inclusão esteve voltada para profissionais cadastrados na plataforma Internet e Saúde 479 do curso, instalada a partir do software livre Moodle; porém, nem todos os(as) matriculados(as) no curso participaram da oficina. Foram realizadas uma primeira atividade em um município de Goiás e outras oficinas em seis municípios no período de agosto a novembro de 2017. Até final de dezembro de 2017, foram incluídos(as) 524 profissionais, com o intuito de conhecer a plataforma e atuarem, posteriormente, como facilitadores locais. A iniciativa das oficinas teve por objetivo proporcionar a autonomia dos sujeitos em rede, seja para mobilização social nos seus processos de trabalho ou para seu fortalecimento como cidadão (FREIRE, 2002; TORO; WERNECK, 2004). O questionário possuía 12 perguntas, elaboradas com base nas necessidades do curso. Dentre elas destaca-se aquela que buscava verificar: qual(is) as TICs mais usadas pelos ACS; Quantos ACS possuíam acesso à internet ou a alguma atividade na rede (Facebook, Instagram, Twitter, blog etc.); e, por fim, quais as principais dificuldades que os ACS tinham no acesso à internet. As perguntas foram baseadas na necessidade do nosso curso, por ser um curso a distância. A participação maior dos ACS (364) em relação aos dos ACE (154), pode ser justificada pelo fato de existirem mais ACS que ACE no estado de Goiás. Iniciou-se o questionário perguntando aos(às) agentes se faziam uso de algum dispositivo de TIC, como computador, celular (smartphone) ou tablet. Foram analisados 476 questionários. 82% (393) responderam que faz uso de uma das tecnologias citadas; 12% (56) responderam que não usam; e 6% (27) deixaram em branco. A maioria faz uso de algum dispositivo de Tecnologia de Informação e Comunicação. Ao questioná-los sobre quais eram os dispositivos mais utilizados, foi identificado que o celular aparece na frente, com 63% (277), seguido de 14,5% (55) que usam o notebook e 7% (31) que usam o tablet. A popularização dos smartphones2 pode ser explicada, entre outros, pelo fato de ter mais funções conhecidas e consideradas úteis pelos usuários (CGI.BR, 2017). Em atividades dessa natureza, é ideal que o(a) participante dedique cerca de uma hora por dia ao curso, fazendo leitura do material disponibilizado, realizando as atividades e consultando as referências complementares, para que tenha um maior domínio do conteúdo apresentado. A dificuldade no acesso ao curso pode estar refletida na taxa de evasão (SILVA, 2016). No intuito de identificar tais dificuldades, foi pedido aos(às) agentes que elencassem as principais dificuldades no uso da internet. Muitos relataram dificuldade em digitar, acessar algum site, realizar pesquisas e acessar ao e-mail. Porém, o mais comentado foi o quesito insegurança. Esta dificuldade estava relacionada ao medo de danificar algo. Isso pode ser verificado na fala da agente que disse: “todos temos medo de acessar programas e deletar as normas.” O acesso à internet pode ser mais simples se o usuário já se sentir familiarizado com a ferramenta. Muitos realizam atividades na rede; porém, não se dão conta de que 2 O capítulo 18 analisa o tema da mhealth. 480 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) estão fazendo uso da internet por meio de mídias sociais, como Facebook, Twitter, Instagram, blogs e outros, que também estão conectados à internet (MENDONÇA et al., 2009). Assim, foi questionado se os(as) participantes realizavam alguma atividade na rede (Blog, Twitter, Facebook etc.) e, em caso afirmativo, quais eram essas atividades. Dos(as) 370 agentes que responderam essa pergunta, 73% (271) realizavam alguma atividade na rede. As atividades mais comentadas foram o Facebook e o aplicativo de mensagens WhatsApp. Também foram citados Instagram, Youtube, e-mail e LinkedIn. Em síntese, o perfil dos(as) participantes das oficinas de ID destacou um novo perfil de inclusão digital, no qual, embora não se considerem incluídos digitalmente, os(as) agentes possuem e utilizam celulares, além de desenvolverem atividades em mídias sociais. Ademais, as maiores dificuldades apresentadas referem-se à insegurança e ao medo no uso das TICs. A seguir, será descrito o relato dos(as) oficineiros(as), bem como a avaliação dos(as) profissionais quanto às sessões de inclusão digital realizadas. O objetivo deste relato é identificar as potencialidades das oficinas para a multiplicação dos saberes, a percepção dos(as) agentes e a difusão do conhecimento entre eles. Foi observado o avanço do conhecimento dos(as) profissionais na gestão da informação e no uso de Tecnologias de Informação e Comunicação para melhorias da sua qualidade de vida e trabalho, além das singularidades desse processo. 5. O que nos ensina a experiência? Os cursos presenciais de inclusão digital para os ACS foram realizados a partir do questionário de inscrição para o curso Capacita ACS, que apresentou, à época, 25% (837) dos(as) agentes excluídos digitalmente. A primeira percepção do grupo de oficineiros(as) responsáveis pelo curso foi a de ser imprescindível conhecer os(as) participantes de cursos mediados por TICs. O senso comum aponta que idealmente todos que participam de cursos em AVA sabem, minimamente, manusear e utilizar as TICs necessárias para sua realização. Porém, a realidade pode indicar que os(as) educandos(as), apesar de querer participar de atividades na modalidade EAD, não possuem conhecimentos suficientes para seguir no curso, como fora a realidade encontrada no Capacita ACS. Cabe então a reflexão: esses(as) agentes não incluídos nunca terão condições viáveis de se inserir no meio digital? Ademais, sempre ficarão à margem de capacitações e aperfeiçoamento profissionais em AVA? Desse modo, o ponto de partida escolhido no Capacita ACS foi qualificar esses(as) profissionais para que pudessem prosseguir no curso. As oficinas de Inclusão Digital (ID) foram realizadas geralmente aos sábados, em Internet e Saúde 481 municípios estratégicos que permitiam reunir o maior número de agentes. Com duração de oito horas, elas consistiam, basicamente, em atividades práticas. Os municípios considerados como estratégicos, a princípio, deveriam estar em uma localização que favorecesse o deslocamento dos educandos e que dispusessem de espaços com infraestrutura tecnológica suficiente para acomodar o maior número de alunos(as). A opção por elencar um município da região para realização da oficina foi justificada pela dimensão do estado de Goiás. Localizado na região Centro-Oeste do país, esse estado tem extensão territorial com mais de 340 mil km², sendo um pouco maior que a Finlândia. Com população estimada em 6,7 milhões de habitantes, Goiás possui 246 municípios que estão agrupados em 17 regiões de saúde (IBGE, 2017). Quanto ao acesso às TICs, o estado apresenta índices acima da média nacional, quando comparado com os indicadores brasileiros de domicílios com acesso à internet, telefone móvel e computador, divulgados na publicação “PNADC 2016 - Acesso à internet e à Televisão e Posse de Telefone Móvel Celular para Uso Pessoal”, 71,8% dos domicílios goianos possuem acesso à internet (Brasil - 69,3%); 95,6% possui telefone móvel (Brasil - 85,5%); e 46,7% possui computador ou tablet (Brasil - 45,3%) (IBGE, 2016). O conteúdo abordado durante as sessões versava sobre: conceitos de computação, partes e peças do computador, sistemas operacionais, programas, operações básicas em ambiente computacional gráfico, editores de texto, navegadores, a apresentação da plataforma AVA, na qual seria ofertado o curso, auxiliando-os em seu primeiro acesso. Esse conteúdo foi adaptado conforme o nível de conhecimento dos(as) agentes. Por exemplo, no município de Posse, onde foi realizada a primeira oficina, a maioria dos(as) agentes não tinha feito contato com o computador, tão pouco sabia ligá-lo. Já em Goianésia, um terço dos(as) agentes nunca tinham tido contato com o computador, enquanto os demais já os sabiam ligar, mas se sentiam inseguros e incapazes para operá-lo. Na oficina de ID, diversas foram as realidades encontradas. Em todas as localidades, não houve problemas relacionados à adesão dos(as) agentes ou à assiduidade. Assim, a adversidade comum aos diferentes municípios foi o espaço físico solicitado. Dos sete, nenhum possuía infraestrutura de laboratórios que contemplasse a demanda das oficinas. Os locais com melhores condições foram Luziânia (Instituto Federal de Goiás Campus Luziânia), Anápolis (Universidade Evangélica) e Aparecida de Goiânia (Instituto Federal de Goiás – Campus Aparecida), que se destacaram pelo quantitativo de computadores em funcionamento e com acesso à internet. Iniciadas as aulas, o principal desafio identificado foi de ordem física. Ou seja, conseguir com que as pessoas tocassem no computador. Ao observar os(as) agentes em sala, percebemos em suas fisionomias que eles se encontravam desacreditados e com medo de se aproximarem dos aparelhos. Aos poucos, com exercícios práticos, incentivando-os e pegando literalmente em suas mãos para juntos, tocar o mouse, os(as) participantes conseguiram ligar os computadores e iniciar os exercícios propostos. Nesse exato momento, foi notada a primeira quebra de barreiras: os(as) agentes vibravam a cada pasta de 482 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) documentos criada ou uma frase finalizada no editor do Word que passava a fazer sentido para eles. Os(as) agentes que participaram das oficinas encontravam-se na faixa etária entre 25 e 65 anos, predominando entre 35 e 45 anos, e majoritariamente pertencentes às classes C e D. A maioria não possuía computador em casa, e os que possuíam não faziam uso do aparelho, relatando que os usuários eram os filhos. A oficina de ID baseia-se num modelo de educação construtivista, em que o sujeito é ativo e corresponsável pelo seu aprendizado (MENDONÇA et al, 2009). Desde o início, foram identificadas pessoas que nunca tiveram contato com o computador e outras que tinham acesso às tecnologias e não sabiam como manusear, mas tinham muita vontade de aprender. Muitos(as) participantes mostraram insegurança por medo de quebrar a máquina, danificar o sistema operacional, apagar o que não devia ou estragar o computador. Assim, todas as atividades realizadas nas oficinas foram explicadas, demonstrando sua importância e aplicabilidade prática para a realização do curso, para seu trabalho como agente e para facilitar as suas atividades da vida pessoal. As aulas abordaram, portanto, a aquisição de conhecimentos básicos sobre como operar o computador, a edição de textos e o acesso à internet, com e posterior início do curso na plataforma Moodle. Foram realizadas atividades práticas na plataforma virtual de aprendizagem, como a participação em fóruns de discussão e o, envio de arquivos produzidos pelos(as) agentes em período anterior. Era repetido, quantas vezes fosse necessário, quais eram os comandos e como executá-los. Foi distribuído ainda um manual orientador, com o passo a passo básico do que foi ensinado em sala e com outros ensinamentos sobre informática básica para o dia a dia. Por fim, os ACS foram estimulados a se tornar ativos e buscar, intuitivamente, novas funcionalidades na plataforma de ensino e no computador. Percebeu-se que o maior desafio consistia não em ensiná-los, nas poucas horas práticas, tudo o que poderiam realizar utilizando o computador, mas induzi-los criticamente a se reconhecer como operadores do computador. O intercâmbio entre a prática em sala de aula e a funcionalidade da ação nas atividades laborais e pessoais dos(as) agentes contribuíram para a ampliação dos resultados desse processo, não somente para o aprendizado em rede, bem como para aplicação no serviço. Nesse âmbito, as ações de ID foram de suma importância para incluir os indivíduos. Conforme descrito no perfil dos(as) participantes das oficinas, 82% faziam uso de celulares (smartphones) com acesso à internet, além de realizarem atividades em mídias sociais. Porém, os(as) agentes não se consideravam incluídos digitalmente. Isso ocorre porque, embora o celular seja atualmente um objeto de inclusão social, seus usuários muitas vezes desconhecem o que podem realizar com esses aparelhos para além do uso comum. As oficinas de ID não foram para esses(as) agentes apenas uma aula. Foram também um espaço ativo de autoconhecimento e confiança, uma vez que é por meio dessas aulas que iniciavam o processo de superação de seus medos e barreiras criados em relação Internet e Saúde 483 às TICs. O medo de danificar ou apagar algo, a sensação de incapacidade por eles mencionada e a insegurança foram aos poucos substituídas por afirmações como: “Eu sou capaz”, “Agora eu vou até comprar um computador”, “Vou mostrar pro meu filho que já sei usar o computador”, “Agora sim, eu vou reestudar tudo o que tem no manual para não esquecer”. Apesar dos vários cenários considerados adversos nesta experiência, como o curto período para realização das oficinas de inclusão digital, salas com a capacidade física ultrapassada e acesso precário à internet, iniciativas como esta são de suma importância para que possamos ressignificar o papel da educação. E aqui nos deparamos com o principal destaque de nossa experiência: educar é um processo vivo e que diz respeito a viabilizar o processo de aprendizagem do outro, aprendendo com ele como ensinar e ressignificando o conteúdo estudado (VASCONCELOS, 2010; ZITKOSKI, 2006). O(a) agente só será incluído se esta mudança tiver algum significado em sua vida, não é apenas ter acesso à informação, mas ser gestor de sua informação (DEMO, 2005). Assim, o conhecimento que se consolidou com essas oficinas é a valorização do uso das TICs no cotidiano dos(as) agentes. Eles construíram, com o grupo de oficineiros(as), formas possíveis de aplicabilidade dessas tecnologias em seus trabalhos. Tornar esses sujeitos gestores de sua informação é contribuir para a promoção da justiça social. 6. Avaliando os processos Os(as) participantes foram convidados a avaliar o curso por meio de uma entrevista semiestruturada e por um questionário ao final da aula, sendo essas atividades facultativas. As aulas foram avaliadas pelos(as) estudantes de acordo com as seguintes opções: “muito bom”, “bom”, “regular”, “ruim” ou “muito ruim”. De forma ampla, as aulas foram avaliadas positivamente pelos(as) 404 participantes que responderam a avaliação.76% (307) dos(as) alunos(as) avaliaram as aulas como “muito bom”; 21% (83), como “bom”; 2% (10), como “regular”; e apenas 1% (4), como “ruim” ou “muito ruim”. O primeiro ponto avaliado foi o significado do curso para o(a) participante e suas expectativas ao participar. O principal destaque fora que o curso havia superado as expectativas. Os(as) participantes se surpreenderam com o conhecimento adquirido e seus avanços durante a carga horária ofertada (8 horas, realizadas em um dia), conforme destacado no trecho: [...] Entrei nesse município há 14 anos. Para mim estar participando desse curso ao meu ver estar [sic] sendo muito gratificante, muito importante, estou gostando e tendo a absoluta certeza que todos os meus amigos 484 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) também estão satisfeitos. Era pra esse curso ter chegado para nós há mais tempo. Ah eu acredito que sim, até mesmo porque eu era meio leigo nisso e para mim hoje por incrível que pareça esses pequenos minutos e horas vai [sic] ser muito importante para nossa classe trabalhadora. (E7). Outro aspecto relevante encontra-se no fato de que os(as) agentes, embora tenham tempo médio de trabalho de nove anos como funcionários das Secretarias Municipais de Saúde, não tiveram nenhum processo de inclusão anterior que contemplasse conteúdos sobre o uso e acesso às TICs. Isso apontou para dois anseios dos(as) participantes: o primeiro, referente à necessidade de formação complementar, em especial incorporando temas referentes ao uso de tecnologias em saúde; e o segundo, referente à informatização do trabalho e substituição do papel por aparelhos tecnológicos, conforme pode-se perceber no relato a seguir: Para mim foi uma novidade muito boa, muito interessante, porque eu sou agente comunitário de saúde há 23 anos. Esse [sic] longo tempo que eu sou agente comunitário de saúde eu nunca vi coisa assim tão voltada para ajudar a gente até mesmo no trabalho. [...] Moro na zona rural a 100 km daqui e vim exatamente porque eu achei interessante. Nossa, e como vai contribuir. Eu ainda me vejo [sic] o ACS trabalhar sem nenhum papel, porque você sabe que o mundo caminha pra isso [pra], eliminar a maioria de papel que puder. E agora com esse curso aumenta ainda mais essa expectativa porque é isso aí que a gente estava esperando. (E8). Esse relato corresponde ainda a outro questionamento: quais as contribuições da aula para o(a) agente? Eles(as) destacaram que o aprendizado somava em suas vidas, tanto para melhorias na execução de atividades laborais quanto para sua vida pessoal. Os principais aspectos positivos mencionados pelos(as) participantes dizem respeito ao uso dos computadores, navegação em internet e uso de ferramentas de produção em geral. Cabe destacar que eles(as) consideravam-se incapazes de aprender a utilizar as TICs e sentiam-se com medo. Assim, outro aspecto destacado positivamente foi a contribuição da aula para o desenvolvimento de autoconfiança e de capacidades. Nas entrevistas, outro destaque positivo foi a didática utilizada pelos(as) professores(as). Segundo os(as) participantes, os(as) oficineiros(as) atuaram de forma clara e paciente, respeitando o tempo de aprendizagem de cada um dos grupos. Quando eu vim pra esse curso, vim ‘desestimulada’. Porque todos os outros cursos que nós fizemos, realmente, não renderam ao que a gente esperava. E esse curso agora, de hoje, é cativante, entendeu? Estimula a vontade da gente [sic] de concluir o curso, de saber como é que vai ser. A aula é bastante dinâmica... Acho que vai ser muito interessante, principalmente porque, pelo o que eu vi, pelos colegas ali, fez com que eles tivessem a Internet e Saúde 485 vontade de aprender a mexer com computação. Muitos [falam] [...] ‘ah não gosto de mexer com computador, não gosto de mexer com essa máquina’, e agora funciona, agora vou querer ter um. Mal começou a aula e o pessoal já estava bem interessado. Eu acho que realmente é ‘estimulante’. [...] No final a gente vai sair lucrando bastante. Vale a pena. (E12). Os trechos destacados reforçam que iniciativas de ID ainda são necessárias atualmente, apesar de Silva (2016) já apontar que metade dos domicílios brasileiros possuem acesso à internet, representando 32,3 milhões de domicílios no país. A Pesquisa TIC Domicílios conduzida em 2015 pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) teve como base 67.038.766 domicílios. Nela, observa-se que a região Centro Oeste, onde se localiza Goiás, possui 48% dos seus domicílios com acesso à internet. O terceiro maior percentual de acesso, atrás das regiões Sul e Sudeste do Brasil. Entende-se que o acesso à informação por meio do uso das TICs permanece como um desafio para a população brasileira (CGI.br, 2016). Além de se sentirem incapazes, conforme mencionado no relato anterior, os(as) agentes consideravam-se deslocados(as), nesse tipo de aprendizado devido à diferença geracional, afirmando que “computador é coisa de jovem”. Ao final do dia, foi observada uma transformação em seus discursos, que demonstravam motivação a partir dos conhecimentos adquiridos. Isso pode ser identificado no seguinte relato: “Vi que nunca é tarde para aprender” (E17). Torna-se, portanto, imprescindível aos(às) educadores(as) em saúde perceber que iniciativas de inclusão digital dos(as) profissionais já atuantes são de suma importância para a melhoria de suas condições de trabalho e qualidade de vida. No que diz respeito aos pontos negativos, o principal foi a carga horária das aulas. Segundo os(as) estudantes, o curso deveria ter uma carga horária maior. Além disso, a infraestrutura também foi um item de desagrado dos(as) participantes. Em alguns municípios, os(as) alunos(as) trabalharam em duplas compartilhando o mesmo computador, o que, segundo eles(as), prejudicou o aprendizado e tornou mais morosa realização das tarefas propostas pelo projeto. 7. Caminhos a percorrer: o devir A aposta do sistema de saúde brasileiro para o alcance de uma saúde pública descentralizada, integral e universal passa, necessariamente, pelo aprofundamento da democratização da saúde. Com isso, fortalece e amplia as potencialidades do trabalho dos ACS e da Atenção Primária à Saúde como ordenadora e coordenadora dos sistemas locais de saúde. Isso possibilita um cuidado afetuoso, vinculatório e circunscrito às reais necessidades de saúde dos indivíduos, famílias e comunidades, que se tornam 486 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) protagonistas dos atos de cuidar e dos seus processos de prevenção e promoção de saúde em seus territórios de vida e trabalho. Assim, está configurado o acesso aos serviços de saúde. Segundo Sousa (2007), esse acesso é a interrelação estabelecida entre os indivíduos, famílias e comunidades, gestores e equipes do PSF. Ele é permeado pelo vínculo e pela corresponsabilidade, num exercício permanente de geração de oportunidades e capacidades entre os sujeitos nos processos de cuidar da saúde-doença-morte como expressões de respeito, autonomia e participação. Tornar agentes de saúde gestores de sua própria informação, seja ela adquirida ou produzida, é promover justiça social a partir da inclusão tecnológica, além de subsidiar a melhoria na qualidade do trabalho por eles ofertada. Esses indivíduos, por estarem em contato direto com a população e por serem moradores de seu território de atuação, tornam-se atores-chave na promoção da saúde3 da população. Portanto, iniciativas como esta possuem influência direta no acesso à informação e, consequentemente, no auxílio aos(às) usuários(as) do SUS em seu território de saúde. Promover a inclusão digital de agentes de saúde é subsidiar um modelo de comunicação promotora da saúde da população. As ações de inclusão digital dos indivíduos são, portanto, ações necessárias. Os ganhos advindos dos avanços tecnológicos são imensuráveis, em especial no que dizem respeito à prevenção de agravos e à recuperação da saúde dos indivíduos. Todavia, os ganhos não são menores quando nos referimos à promoção da saúde dos indivíduos e à capacitação dos(as) profissionais para atuarem junto a essas frentes, sendo a educação mediada por tecnologias um destaque nesse sentido. É necessário tornar esse modelo de educação viável. Para além da oferta da tecnologia, precisamos saber como utilizá-la. Tecnologias sem significado são apenas aparelhos que ficam subutilizados; portanto, é preciso torná-las palpáveis, utilizáveis e úteis. O Brasil é um país de dimensões continentais e marcado pelas desigualdades territoriais e de acesso à educação e à informação. Nesse contexto, iniciativas como as de oficinas de ID tomam significado e importância, sendo uma forma de promover a gestão do conhecimento e multiplicar saberes. No decorrer da elaboração deste capítulo, o Ministério da Saúde do Brasil e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) selecionaram o Projeto de Inclusão Digital dos ACS do Estado de Goiás, fruto da parceria da Universidade de Brasília com a Secretaria de Estado da Saúde de Goiás, entre 251 experiências de Educação Permanente em Saúde recebidas pela comissão de avaliação do Laboratório de Inovação em Educação na Saúde. É esperado que esta iniciativa seja reconhecida pelos resultados alcançados uma vez que seu objetivo não só a incluir dos ACS, mas induzir autonomia nos seus processos de trabalho, sobretudo a partir do desenvolvimento de projetos permanentes de educação voltados para a qualificação do trabalho. Também é esperado que esta iniciativa 3 O capítulo 19 discute o tema das TICs e promoção da saúde. Internet e Saúde 487 transforme esses(as) profissionais em educadores e promotores da saúde em suas comunidades, edificando assim territórios saudáveis. Referências BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política nacional de atenção básica. Brasília: Ministério da Saúde, 2006. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. O trabalho do agente comunitário de saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2009. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.488, de 21 de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, para a Estratégia de Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2011. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt2488_21_10_2011.html. Acesso em: 5 abr. 2020. BRASIL. Ministério da Saúde. Sala de Apoio à Gestão Estratégica. Ministério da Saúde, Brasília, 2018. 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Essa área se caracteriza pelo uso de tecnologias móveis para o diagnóstico, monitoramento e intervenção sobre condições de saúde. Inseridas em universo mais amplo, que compreende a Internet das Coisas (IoT), as soluções de mhealth começam a surgir e a encontrar aplicações reais. O horizonte de aplicações baseadas em mhealth já desenha um cenário, no qual esse novo conjunto de tecnologias será o responsável por modificar a lógica vigente de prestação de serviços de saúde. Apesar disso, há inúmeros desafios para que a mhealth possa dar concretude a toda potencialidade que lhe é associada. O contexto brasileiro é marcado por peculiaridades em relação aos desafios para a massificação da mhealth. Esses desafios são discutidos ao longo deste capítulo, em conjunto com as demais questões que tangenciam o status atual de desenvolvimento vinculado à mhealth. Palavras-chave: Equipamentos e Provisões; Dispositivos de Armazenamento em Computador; Aplicativos Móveis; Literatura de Revisão como Assunto. Referência: ROCHA, T. A. H. et al. Mhealth: dispositivos vestíveis inteligentes e os desafios de um contexto refratário. In: PEREIRA NETO, A.; FLYNN, M. (orgs.). Internet e saúde no Brasil: desafios e tendências. 1 ed. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2020. p. 489-515. *Duke University/M.A.T.H Consortium, Durham, North Carolina, USA. E-mail: [email protected]. Internet e Saúde 491 Introdução Hoje vivemos em um mundo conectado. Em 2014 havia cerca de 5 bilhões de telefones móveis no mundo, cerca de um para cada habitante com mais de 15 anos (MALVEY; SLOVENSKY, 2015). Hoje o número de dispositivos conectados à internet já supera o número de pessoas que acessam a rede. A conectividade sem fio e portátil nos permite ter acesso à informação e nos comunicar em qualquer lugar e a qualquer tempo. Essas características do mundo moderno têm contribuído para mudar a forma como trabalhamos, nos divertimos e vivemos. Os desdobramentos da internet reconfiguraram nossa forma de vida de maneira irreversível. As repercussões das inovações associadas à possibilidade de comunicação ilimitada também reverberaram pela saúde, abrindo caminho para a difusão da mobile health, ou mhealth. Esse termo, cunhado há mais de vinte anos por Robert Istepanian, busca sumarizar as novas possibilidades de oferta e consumo de serviços de saúde permeadas pela lógica da conectividade onipresente (ISTEPANIAN; JOVANOV, 2008). Apesar de suas múltiplas definições, mhealth pode ser entendida como a oferta de serviços médicos e/ou de saúde pública que se valem do apoio tecnológico de dispositivos móveis, como telefones celulares, sensores e outros equipamentos vestíveis inteligentes, diretamente conectados ao usuário, para o monitoramento ou realização de intervenções em saúde (WHO, 2011). Cabe especificar que dispositivos vestíveis inteligentes são equipamentos utilizados de forma adjacente ao corpo, capazes de realizar o monitoramento e intervenção sobre diversos parâmetros de saúde. O desenvolvimento do conceito de mhealth está intrinsecamente relacionado aos desdobramentos de outra tecnologia denominada Internet das Coisas, ou Internet of Things (IoT), em inglês. A IoT é definida pela utilização de dispositivos com capacidade de conexão à internet, permitindo a interação com outros dispositivos, serviços e/ou pessoas, em grandes possibilidades de escalabilidade (MUKHOPADHYAY, 2014). O termo IoT foi proposto pela primeira vez em 1999, originalmente introduzido pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). À época a definição podia ser entendida como a extensão de capacidades de comunicação às coisas, permitindo que elas se comuniquem entre si e com as pessoas (ASHTON, 2009). Assim, a IoT permite que dispositivos e equipamentos, que antes estavam isolados, passem a atuar de forma integrada à internet e a interagir entre si. Evans (2011) é um dos autores que espera que em 2030 a IoT seja a maior produtora de informação da internet, e não mais as pessoas. Os conceitos de IoT e mhealth se aglutinam em uma área mais ampla, denominado ehealth. Ela se refere à oferta de serviços de saúde de modo remoto, edificada sobre tecnologias como internet, dispositivos vestíveis1 inteligentes (DVI), prontuários 1 O capítulo 21 discute o tema dos dispositivos vestíveis. 492 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) eletrônicos, telessaúde, computação em nuvem (cloud computing) e smartphones. Parte integrante desse ecossistema, a mhealth aglutina aquelas soluções amparadas em tecnologias móveis e de IoT para ofertar serviços por meio de dispositivos vestíveis inteligentes (smart wearable devices). As aplicações de soluções baseadas em mhealth são diversas e têm a potencialidade de revolucionar o modo como ações de oferta de serviços de saúde são realizadas. A nosso ver ao longo dos próximos anos, as formas tradicionais de prestação de serviços de saúde serão profundamente modificadas. Os prontuários médicos estarão disponíveis de forma ubíqua, graças a soluções de armazenamento em nuvem e blockchain (cloud computing). Consultas com profissionais de saúde poderão ser realizadas eletronicamente, contando com a mesma disponibilidade terapêutica e de informações de diagnóstico que as atuais consultas presenciais. Fato esse já amplamente disseminado durante a pandemia de COVID-19. Exames laboratoriais pontuais não serão mais necessários, uma vez que já existem dispositivos eletrônicos de testagem no ponto de cuidado (DTPC), capazes de levantar dados laboratoriais de forma não invasiva e com a mesma precisão dos métodos tradicionais, podendo ainda ser utilizados ininterruptamente. Intervenções preventivas baseadas em modelos de inteligência artificial serão priorizadas, de modo a evitar a ocorrência de episódios agudos, entre outras inúmeras possibilidades. Discutir os elementos que caracterizam os conceitos de mhealth e IoT é fundamental para entender os desafios que regem as Internet das Coisas e que repercutem em obstáculos para a disseminação de soluções de mhealth, especialmente no contexto brasileiro. Para tanto, há a necessidade de conhecer o estado da arte em relação a ambos os temas. Esta tarefa é desafiadora, visto a relevância que o tema tem recebido nos últimos 10 anos. Como analisaremos a seguir, tentativas iniciais de rastrear essa literatura permitiram perceber a complexidade do assunto e a amplitude da atual produção científica no cenário global. Apesar disso, o tema se configura como emergente no contexto brasileiro. Dessa forma, para contextualização da discussão, realizamos neste trabalho um mapeamento de estudos de revisão da literatura, que permitissem desenhar o cenário de utilização e desenvolvimento de soluções de mhealth. A partir disso, discutiremos a realidade brasileira nesse cenário. Uma vez caracterizado o estado da arte, serão abordados neste capítulo os diferentes papéis dos múltiplos agentes que atuam nesse campo. Também serão apontados os desdobramentos decorrentes dos avanços, já materializados no campo da mhealth, que têm a potencialidade de modificar a lógica da prestação de serviços de saúde ao longo dos próximos anos. Serão discutidos, finalmente, os desafios presentes na realidade brasileira e como eles se relacionam com as perspectivas de incorporação de soluções baseadas em mhealth. Internet e Saúde 493 1. Um panorama sobre tecnologias móveis em saúde Dado o caráter recente dos estudos dedicados à mhealth, pode-se dizer que os grupos de pesquisa, universidades, empresas e outros stakeholders inseridos nesse ecossistema assumem posições ainda incipientes. Cabe salientar que é considerado um stakeholder um indivíduo, grupo, instituição ou organização com a capacidade de afetar as operações e o sucesso dos demais agentes inseridos em um determinado ecossistema, estando sujeito também a ser afetado pelas decisões e ações de outros (MALVEY; SLOVENSKY, 2015). Os relacionamentos entre os diferentes stakeholders na saúde é muito mais recíproco do que unidirecional. Nesse sentido, as evidências sobre o impacto, o grau de relevância e a importância relativa no campo ainda estão dispersas ou em fase de consolidação, pois há diversos agentes produzindo informações acerca de mhealth sem que haja uma hegemonia consolidada. Apesar disso, já é possível identificar países, pesquisadores e centros que vem enveredando esforços para se consolidar na área. Para fornecer um panorama geral sobre os principais stakeholders no contexto da mhealth, utilizamos um estudo recente conduzido por Sweileh et al. (2017), que fizeram uma análise bibliométrica da produção sobre mhealth entre os anos de 2006 a 2016. Com isso, foi possível identificar os principais agentes que vêm protagonizando o desenvolvimento do campo, sua localização, instituições de filiação e rede de parceiros. A bibliometria pode se entendida como um método estatístico utilizado para avaliar a qualidade e a quantidade de literatura produzida em um determinado contexto (SANTHA KUMAR; KALIYAPERUMAL, 2015). Ela permite ainda a identificação de tendências, análise de impacto de trabalhos, a partir das citações, bem como a contribuição nacional e internacional de um conjunto de estudos em um campo do saber (FATEHI; WOOTTON, 2012). Especificamente, no contexto da mhealth, foram analisados por Sweileh et al. (2017) as seguintes dimensões: crescimento no número de publicações, contribuição de cada país, colaboração internacional, análise de impacto pela via das citações, principais autores e universidades, e principais vias de comunicação sobre o tema. Os dados foram extraídos da base de dados Scopus, e foram identificados 5.464 trabalhos. Nesse estudo, pode-se observar que, o volume de trabalhos sofreu um aumento expressivo no período analisado (SWEILEH et al, 2017). A quantidade de publicações por ano sofreu um aumento de quase dez vezes, o que acena para a possibilidade de ampliação do debate sobre mhealth e suas potenciais aplicações. Segundo estes autores, alguns fatores podem ter contribuído para o crescimento de trabalhos relacionados ao tema. São eles: aumento de dados disponíveis; maior propensão de stakeholders para o desenvolvimento de projetos-piloto; e divulgação da importância do adequado manejo de informações para o desenho de estratégias voltadas à solução de problemas pode permitir o aumento de trabalhos relacionados ao tema. 494 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Paralelamente ao trabalho de análise de volume, foram processados e categorizados os principais temas abordados em cada estudo, para permitir a realização de análises de rede (SWEILEH et al., 2017). As redes criadas permitem analisar temas correlatos, principais categorias e formas de relacionamento entre os diferentes atores. Quanto aos temas identificados, os autores destacam o manejo de condições crônicas, aplicações voltadas para a saúde mental, prevenção de doenças e atividades físicas. Quanto às condições crônicas, o tópico do autogerenciamento foi algo recorrente nos trabalhos analisados. A adesão ao tratamento foi um tópico transversal que se relacionou ao controle de condições crônicas, como diabetes e hipertensão, e à prevenção de doenças. Os temas de cessação da adição e do uso de tabaco e de aplicações relacionadas à saúde mental foram discutidos em conjunto por diversos dos trabalhos considerados no estudo (SWEILEH et al., 2017). Por último, questões associadas ao controle de ganho de peso, atividade física e promoção da saúde também estiveram presentes nas publicações mapeadas por Sweileh et al. (2017). No entanto, os autores assinalam que diversos tópicos importantes para o desenho de abordagens preventivas não foram contemplados satisfatoriamente pelos trabalhos até então desenvolvidos, entre os quais se destacam a saúde do trabalhador e as doenças negligenciadas. Essa lacuna suscitou em Sweileh et al. (2017) um questionamento sobre um nicho com potencialidade para discussões adicionais, mas com carência de proposições contextualizadas. Quanto à contribuição dos países, houve um destaque para Canadá, Estados Unidos, Reino Unido, Austrália, Coréia do Sul, Índia, Alemanha, China, Espanha, França, Holanda, Suíça e Suécia – todos possuíam mais de 100 trabalhos publicados sobre o tema. Os dois países mais proeminentes foram Reino Unido e Estados Unidos. Eles se configuraram como polos de produção de conhecimento sobre mhealth, sendo responsáveis pela produção de mais de 40% de todos os trabalhos analisados por Sweileh et al. (2017) (Figura 1). Internet e Saúde 495 Figura 1. Distribuição geográfica da produção sobre mhealth Número de artigos Fonte: Sweileh et al. (2017). Quanto às instituições de maior destaque, há uma sobreposição no volume de publicações dos países que mais produzem trabalhos sobre mhealth. Os centros de pesquisa de destaque em mhealth estão majoritariamente localizados nos Estados Unidos e Canadá: entre os 10 mais importantes, 9 estão nesses países. Outro tópico que chamou a atenção por Sweileh et al. (2017) foi a quantidade de universidades na lista dos principais centros de pesquisa no mundo sobre o tema. Quanto aos principais veículos de comunicação sobre mhealth, foi identificada uma hegemonia de periódicos científicos. O veículo mais influente sobre mhealth foi o Journal of Medical Internet Research (JMIR). Mas também podem ser considerados influentes os seguintes periódicos: Artificial Intelligence in Medicine, Journal of the American Medical Association (JAMA), American Journal of Preventive Medicine, Lancet e Plos One (SWEILEH et al., 2017). Há uma predominância de periódicos internacionais renomados em outras áreas como veículos consolidados de comunicação sobre avanços relativos à mhealth. A partir do estudo de Sweileh et al. (2017), foi possível observar que a produção internacional sobre mhealth era extensa entre 2006 e 2016 no cenário internacional. No contexto brasileiro, entretanto, o que se observa sobre o tema é uma carência de estudos: há poucos trabalhos sobre o tema publicados na língua portuguesa (ROCHA et al., 2016). Uma pesquisa realizada em janeiro de 2018 sobre as publicações brasileiras cadastradas na base SCIELO retornou somente duas publicações abordando a temática de mhealth. Além disso, pesa uma postura resistente de instituições, acadêmicos e de formuladores de políticas quanto ao tema. Os periódicos melhor classificados na área de saúde brasileira não possuíam, até meados do segundo semestre de 2017, publicações sobre mhealth. O caráter pioneiro desse tipo de tecnologia, associado à escassez de debate no contexto 496 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) brasileiro, têm favorecido que o debate sobre as potencialidades de mhealth no Brasil seja relegado a um plano secundário (ROCHA et al., 2016). Apesar de iniciativas pontuais da realidade brasileira, o cenário geral é de defasagem em relação ao debate que existe no contexto internacional. Os veículos de comunicação científica no Brasil, especialmente aqueles da área da saúde, são marcados por uma postura tradicionalista e resistente ao debate sobre inovações. Além disso, pesa uma questão corporativista que cerceia o acesso de pesquisadores discutindo temas inovadores e pouco tratados na literatura nacional. Assim, a postura adotada pelos periódicos científicos brasileiros cria uma blindagem negativa, na qual novos debates e discussões são repelidos por não fazerem parte do que é tradicionalmente discutido na ceara científica nacional. O resultado é um debate ensimesmado, com pouca capacidade propositiva. As consequências do posicionamento atual dos meios brasileiros de divulgação científica contribuem para uma defasagem e um distanciamento de discussões mais profícuas e com grande potencial disruptivo. Isso prejudica a formação de novas opiniões no contexto nacional; dificulta a disseminação de tecnologias inovadoras; retarda a inserção de temas inovadores no âmbito de políticas em saúde; e favorece a dependência de conhecimento estrangeiro. Apenas há cerca de dois anos que debates sobre aplicações e projetos baseados em mhealth começaram a surgir no cenário nacional. Quanto aos grupos de pesquisa, as iniciativas dedicadas ao exame do impacto de soluções de mhealth na saúde no contexto brasileiro são escassas. Independente da baixa produção acadêmica consideramos que há uma pujante realidade referente a startups. Há diversas empresas atuantes no setor de mhealth tentando produzir soluções capazes de manejar os desafios da prestação de cuidados em um contexto de IoT. Alguns estudos sinalizam que existem iniciativas dedicadas a prontuários eletrônicos, administração de serviços médicos, desenvolvimento de devices, genômica, gerenciamento populacional, engajamento de pacientes, Big Data, desenvolvimento de apps, telemetria, bem estar e marketing em saúde (BELLE et al., 2015; BISSONNETTE; BERGERON, 2017; GATZOULIS; IAKOVIDIS, 2007; GROSSGLAUSER; SANER, 2014; HANDEL, 2011; MARTIN, 2012; NICHOLAS et al., 2015; SOH et al., 2013; SRIVASTAVA et al., 2015; WEST et al., 2012). Acreditamos que as próximas duas décadas possam testemunhar uma mudança sem precedentes no que tange à forma de ofertar serviços de saúde. Tal oferta será impactada de diversas maneiras, e espera-se que haja uma melhoria nas condições gerais observadas hoje. Passaremos a examinar, a seguir, os agentes centrais desse processo e as limitações e potencialidades vinculadas ao papel que cada um deles exerce neste cenário. Internet e Saúde 497 2. Protagonismo em tecnologias disruptivas na saúde: principais stakeholders envolvidos no desenvolvimento de soluções de mhealth Um primeiro passo para melhor entender os stakeholders atuantes num determinado contexto é classificá-los segundo similitude de atuação ou por origem de poder de influência. De modo simplificado, as fontes de poder de um stakeholder provêm de um ou vários dos seguintes elementos: controlar os recursos necessários; dominar habilidades críticas para o design ou operação de processos; inserir-se como provedor de serviços necessários; deter influência política; possuir poder de veto; e ser o responsável por grandes volumes de compra ou de movimentação financeira. Levando-se em conta essas fontes, podemos pensar em uma contextualização para o cenário relativo à mhealth. Assim os principais stakeholders nesse cenário seriam: os pacientes, organizados ou não em grupos; médicos e outros profissionais da saúde; instituições provedoras de cuidado; agentes responsáveis pela cobertura de custos de cuidado, tais como governo e operadores de saúde; instituições farmacêuticas; companhias de tecnologia; e provedores serviços de comunicação (MALVEY; SLOVENSKY, 2015). Todos atuam de forma imbricada, contribuindo para a caracterização do ecossistema associado à mhealth. Essas tipologias associadas aos stakeholders são apenas uma aproximação no sentido de definir categorias para os principais agentes atuantes nesse ecossistema. Analisaremos a seguir como cada um dos stakeholders atua. 2.1. Os pacientes O principal item valorizado pelos pacientes, no que tange à mhealth, é o consumo de soluções de saúde que simplifiquem a resolução de problemas atuais enfrentados por quem busca serviços de saúde. Soluções complexas que contribuam para o incremento de dificuldade, tais como monitoramento de parâmetros biomédicos, impertinência de comunicados e avisos e/ou curva de aprendizado elevada, têm sido marcadas pelo abandono de usuários (MALVEY; SLOVENSKY, 2015). Os pacientes são confrontados com um volume muito grande de dispositivos vestíveis inteligentes, informações médicas e apps para monitoramento de condições de saúde. A despeito disso, aquelas soluções que obtêm maior grau de aceitação são marcadas por características de empoderamento, simplificação do processo de resolução de problemas associados à obtenção de cuidado e melhoria de acesso a cuidados médicos (SIAU; SHEN, 2006). 498 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) 2.2. Médicos e outros profissionais de saúde Médicos e demais profissionais de saúde até então assumiram uma posição de porta-vozes em relação às estratégias terapêuticas e ao fornecimento de informações relacionadas à saúde. As tecnologias de informação e comunicação têm modificado esses papéis e empoderado os consumidores de serviços de saúde com informações antes não disponíveis. A mhealth irá aprofundar essa tendência, uma vez que não apenas informações clínicas, mas também dados fidedignos para apoio diagnóstico estarão mais acessíveis. A disponibilidade de informações precisas permitirá que os próprios pacientes possam se enveredar pelas nuances do diagnóstico diferencial. Isso irá exigir um rearranjo nos papéis desempenhados pelos profissionais de saúde. A medicina é uma área resistente à incorporação das novas tecnologias de informação e comunicação. Não só a relação com os pacientes será modificada, mas também a forma como os profissionais desempenham suas atividades cotidianas. Não será mais preciso contar com o suporte de um serviço de apoio diagnóstico e terapêutica no formato que existe hoje. Os profissionais poderão fazer exames e examinar múltiplas possibilidades de diagnóstico, com dados referentes a marcadores biomédicos, diretamente em seus consultórios, sem a necessidade desenvolver os serviços de terceiros, especialmente para questões mais simples. O aumento no uso de smartphones no contexto clínico já é um intermediário dessa tendência (NERMINATHAN et al., 2017). Um estudo conduzido por um instituto de pesquisa da Flórida observou que o uso de prontuário eletrônico por médicos da atenção primária em seus respetivos tablets ou smartphones vem sofrendo um incremento significativo. Isso indica que os profissionais têm optado por acessar as informações clínicas de seus pacientes utilizando plataformas de nuvem. Esse tipo de plataforma é similar àquelas que os centros de telemetria de mhealth podem propiciar (ROCHA et al., 2016). É necessário superar os obstáculos que ainda se fazem presentes, principalmente em relação à resistência dos profissionais de saúde em utilizar soluções das tecnologias de informação e comunicação. Eles precisam ficar no horizonte daqueles stakeholders interessados no desenvolvimento de soluções de mhealth. Evidências de estudos recentes demonstram que começa haver uma abertura para a disseminação de soluções baseadas em mhealth, mas esse cenário ainda não está completamente configurado e a resistência de alguns grupos de profissionais é um fator a ser superado (BERATARRECHEA et al.,2017). Malvey e Slovensky (2015) destacaram que, entre as especialidades médicas, ortopedistas, oftalmologistas e otorrinolaringologistas são os mais resistentes à incorporação de novas tecnologias de informação e comunicação são. Além disso, esses autores apontaram que incentivos governamentais para fomentar a incorporação dessas Internet e Saúde 499 novas tecnologias foram eficazes em sensibilizar grupos anteriormente resistentes sobre a importância de adoção de novas soluções. Assim, essa pode ser uma via para facilitar a disseminação de aplicações de mhealth. 2.3. Provedores de cuidado e sistemas de saúde Os provedores de serviços de saúde são players fortemente interessados na massificação de soluções de mhealth. Iniciativas têm sido empreendidas com o objetivo de ampliar a utilização de aplicações de mhealth, devido ao potencial de incrementar a qualidade de vida dos pacientes e reduzir os custos de prestação de serviços de saúde. A capacidade de monitorar de forma contínua marcadores biomédicos e de vincular os resultados desse monitoramento a prontuários eletrônicos com identificação unívoca abre a possibilidade de aplicação de soluções de healthcare analytics para a realização de análises preditivas. Elas podem ser utilizadas para diferentes fins, entre eles: estratificar o risco de uma determinada população ou grupo de usuários; desenhar intervenções para a promoção da saúde e a prevenção de doenças; impedir que episódios agudos, como acidentes vasculares, infartos e amputações por complicações médicas, aconteçam, entre outras possibilidades. Muitas empresas têm se aproveitado desse nicho para atuação. O desenvolvimento de soluções preditivas dedicadas a minimizar custos de oferta de cuidado tem sido recebido com euforia pelo mercado e propiciado a criação de startups. Empresas como Welltok2 têm adotado uma política agressiva de aquisições para cobrir a maior gama possível de serviços associados ao fornecimento de soluções preditivas em saúde nos Estados Unidos. No Brasil, ainda são escassas as iniciativas dessa natureza, mas já há algumas startups procurando desenvolver soluções na área da saúde, como a Hekima3 e Piron health4. Para os sistemas de saúde, os benefícios são ainda maiores, em função do volume de atendimento e dos potenciais benefícios que podem ser auferidos para a população como um todo. Em termos de gastos, as possibilidades de economia, junto à melhora na qualidade de vida da população, são expressivas. No Brasil, está em desenvolvimento, há alguns anos, uma solução de prontuário eletrônico, denominada cartão SUS (BRASIL, 2015). A ideia é fornecer um número de cadastro nacional de saúde para cada usuário do sistema público, a fim de permitir o acompanhamento de demandas de forma mais precisa. Esse tipo de dispositivo de registro de dados de saúde abre a possibilidade para que sejam desenvolvidas aplicações de 2 Disponível em: https://www.welltok.com/analytic_services/. Disponível em: https://twitter.com/hekima_br?lang=en. 4 Disponível em: https://www.facebook.com/ScientieHealth. 3 500 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) monitoramento de saúde populacional e potencializadas ações de prevenção de agravos e promoção à saúde. O cartão SUS deverá reunir um Conjunto Mínimo de Dados (CMD) buscando unificar nove sistemas adotados no Sistema Único de Saúde (SUS)S: Boletim de Produção Ambulatorial (BPA), Autorização de Procedimento Ambulatorial (APAC), Registro das Ações Ambulatoriais de Saúde (RAAS), Autorização de Internação Hospitalar (SISAIH01), Coleta da Comunicação de Informação Hospitalar e Ambulatorial (CIHA01), Sistema de Informação Ambulatorial (SIA), Sistema de Informação Hospitalar (SIH), Processamento da Comunicação de Informação Hospitalar e Ambulatorial (CIHA02) e Sistema de Regulação, Controle e Avaliação (SISRCA) (BRASIL, 2017). O registro das informações no Conjunto Mínimo de Dados (CMD) deverá ser realizado por todos estabelecimentos de saúde públicos e privados em território nacional e poderá ser enviado por meio dos sistemas já existentes que serão integrados ao DATASUS. A disponibilização desses dados irá criar condições para que novas aplicações sejam desenvolvidas para o SUS, potencializando soluções baseadas em análises preditivas. 2.4. Instituições farmacêuticas Em função dos grandes investimentos em pesquisa e dos volumes vultosos de recursos financeiros movimentados, a indústria farmacêutica é considerada um agente importante no contexto da mhealth (MALVEY; SLOVENSKY, 2015). O desenvolvimento de soluções inovadoras para o tratamento de doenças perpassa a pesquisa sobre novas drogas e a utilização de nanotecnologia para administração de medicamentos de forma mais eficaz (REDDY; AGGARWAL, 2015; RODRIGUES et al., 2016). O potencial disruptivo dessas soluções é imenso. A forma como os medicamentos são descobertos, prescritos, comercializados e administrados irá mudar substancialmente ao longo dos próximos anos em função de inovações associadas à mhealth. Já existem dispositivos vestíveis inteligentes capazes de administrar medicamentos e responder em tempo real as variações metabólicas dos pacientes. Dessa forma, terapias medicamentosas serão modificadas, em função de novas possibilidades de administração e controle de dosagem de drogas, apresentando impactos sobre protocolos clínicos. 2.5. Empresas de tecnologia e investidores privados O ambiente de desenvolvimento de novas aplicações ancoradas nas tecnologias de informação e comunicação (TIC) possui uma lógica própria de funcionamento. A criação de Internet e Saúde 501 startups, aplicativos e soluções de plataforma ou serviços usualmente contam com o suporte de incubadoras e aceleradoras que procuram instrumentalizar os empreendedores com as habilidades necessárias para aumentar as chances de sucesso de possíveis negócios. Há diversos fundos dedicados para o financiamento de ideias inovadoras em saúde. Há iniciativas globais nesse sentido com possibilidades em praticamente todos os continentes. O estudo para desenho do plano de ação para IoT no Brasil, contém toda uma seção de análise e benchmarking de iniciativas de financiamento de pesquisa em IoT no mundo (BNDES, 2016). No Brasil há iniciativas de financiamento junto ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e ao Programa FINEP Startup, da agência pública Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP). A busca por dar concretude às ideias desenvolvidas no ambiente das startups tem produzido alguns resultados interessantes, principalmente devido ao direcionamento para a resolução de problemas práticos de forma escalável. Algumas startups têm se dedicado ao desenvolvimento de soluções de hardware com resultados bastantes expressivos. A Bragi5, uma startup alemã, é um exemplo. Um desafio para disseminação de dispositivos vestíveis inteligentes é a possibilidade de captação multimodal de parâmetros biomédicos. Esse tipo de captação permite que dados de múltiplos sensores sejam coletados de forma simultânea, criando novas possibilidades de monitoramento. Poucos dispositivos vestíveis inteligentes têm essa capacidade e ela é fundamental para a melhoria de qualidade das informações geradas por devices de IoT dedicados à saúde. Sem esse tipo de captação de dados, todo o potencial associado à mhealth não consegue transcender o campo das promessas, uma vez que interoperabilidade entre soluções é um obstáculo. A empresa Bragi desenvolveu um fone de ouvido com capacidade multimodal, bateria de longa duração, ergonomia excelente e preço razoável, denominado DASH. Esse aparelho materializa aquilo que os dispositivos vestíveis inteligentes precisam ser em termos conceituais. Assim, algumas iniciativas já começam a apresentar soluções para o mundo real com potencial de materializar aquilo que a mhealth se propõe a fazer. O papel dos investidores privados e das empresas de tecnologia inseridos no ecossistema de mhealth é abordar os desafios materiais existentes no campo, na tentativa de superá-los e permitir que todo o potencial da área se concretize. Há inúmeras iniciativas de grandes empresas de tecnologia, como Google, Amazon, IBM, Oracle, Samsung e Apple, voltadas para saúde. O processo global de transição epidemiológica tem contribuído para que essa área receba muita atenção, em função do seu mercado potencial. Por último, um desafio que ainda se faz presente é a demonstração de capacidade de monetização associada à mhealth. Por se tratar de uma tecnologia recente, ainda não há modelos de negócio validados. Em função disso, alguns investidores preferem adotar uma postura mais conservadora quanto ao embarque em soluções amparadas em mhealth. A capacidade de se mostrar rentável está vinculada à apresentação de resultados capazes 5 Disponível em: https://www.bragi.com/. 502 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) de agregar valor aos stakeholders envolvidos. Essa é outra peculiaridade associada à questão dos investimentos privados (MALVEY; SLOVENSKY, 2015). 2.6. Provedores de serviços de comunicação A mhealth depende, fundamentalmente, de uma sólida infraestrutura de comunicação. Sem que seja possível transmitir dados de modo confiável, e em tempo real, perde-se o principal beneficiado decorrente desse tipo de tecnologia. O papel associado aos provedores de serviços de comunicação é crucial para permitir a disseminação da mhealth. A infraestrutura disponível na maior parte do mundo ainda é precária para suportar o trânsito de informações de acordo com os padrões exigidos por soluções amparadas em IoT. Globalmente, ainda há questões a serem abordadas para que se consiga propiciar um ambiente adequado de transmissão confiável de dados. Sem o adequado manejo dessas circunstâncias, a ampla difusão de aplicações de mhealth será cerceada por barreiras de acesso e de qualidade vinculadas aos serviços de comunicação. Para concluir esta breve apresentação sobre os principais stakeholders envolvidos no desenvolvimento de soluções de mhealth cabe salientar que o cenário é complexo, marcado por múltiplos agentes sendo modulados por diversos fatores determinantes. Entender de que forma estão imbricados os diferentes stakeholders na área da inerentes à mhealth é fundamental para o estabelecimento de parcerias, seleção de tendências para monitoramento, bem como acompanhamento de formadores de opinião. Conhecer os tais stakeholders, suas aspirações, importância e redes de relacionamento são aspectos essenciais para a criação de circunstâncias mais favoráveis ao gerenciamento de um ambiente instável, como aquele observado na mhealth. A partir dos papéis desempenhados pelos diferentes agentes supracitados, é possível vislumbrar uma série de modificações quanto às maneiras de se ofertar cuidados em saúde. Assim, passaremos ao exame de como as tecnologias vinculadas à mhealth podem promover mudanças, além de analisar as formas de apresentação dos diferentes dispositivos (devices) para monitoramento inteligente de condições de saúde. 3. Potencialidades associadas aos dispositivos vestíveis inteligentes: novas perspectivas do cuidado As formas atuais de provimento de ações de saúde deverão ser alteradas considerando os desdobramentos da massificação de dispositivos vestíveis inteligentes Internet e Saúde 503 (DVI). Sob uma perspectiva populacional, os DVI podem facilitar diferentes processos, entre eles: a disseminação de informações de saúde; a melhoria de aspectos de vigilância epidemiológica; e a ampliação do volume de dados disponíveis para fins de pesquisa. Além disso, o fomento a melhorias na estruturação de redes de atenção à saúde, de perfis de utilização de serviços e de parâmetros de acessos poderão ser modelados em tempo real, com base em dados de geolocalização. Diferentes exemplos podem ser dados atestando as potencialidades associadas aos dispositivos vestíveis inteligentes. Intervenções para promoção da saúde e prevenção de agravos poderão ser feitas baseadas em informações preditivas, a partir da análise de biomarcadores dos pacientes. Tal abordagem contribuirá para minimizar as consequências negativas de eventos agudos, tais como complicações do diabetes, hipertensão e síndrome coronariana aguda. Além disso, os pacientes poderão assumir um papel mais ativo e centrado na autogestão do cuidado, com foco no gerenciamento mais preciso de condições crônicas, uma vez que poderão fazê-lo com base em dados coletados pelos dispositivos vestíveis inteligentes. Médicos poderão acompanhar seus pacientes de forma contínua, utilizando dados de séries temporais, ao invés de exames laboratoriais pontuais, que não permitem o monitoramento preciso de situações. Pacientes transportados em unidades móveis de urgência podem ser recebidos nos centros de emergência com a infraestrutura de retaguarda já ajustada para suas necessidades, graças ao monitoramento por telemetria de condições de saúde. Procedimentos voltados para o diagnóstico de agravos poderão ser realizados diretamente nas unidades de saúde, ou até mesmo nas residências, uma vez que já existem dispositivos capazes de monitorar a presença de biomarcadores de forma não invasiva. A utilização de nanosensores contribuirá para que as possibilidades diagnósticas sejam ainda mais amplas e possam ser realizadas em tempo real, envolvendo doenças como câncer ou afeções infecciosas. Hábitos de vida poderão ser vinculados padrões de marcadores biomédicos auxiliando aos profissionais e pacientes a delinear as melhores estratégias para manejo de doenças crônicas. A Figura 2 destaca as diferentes capacidades já existentes em relação aos dispositivos vestíveis inteligentes, no que tange a potencialidades vinculadas à mhealth, considerando quatro grandes áreas, a saber: monitoramento, transmissão de dados, análises e diagnóstico e terapêutica. 504 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Figura 2. Possibilidades já consolidadas em relação aos dispositivos vestíveis inteligentes Fonte: Rocha et al. (2016). Os dispositivos vestíveis inteligentes também podem ser classificados em função das empresas fabricantes. Vandrico6 é um banco de dados de dispositivos vestíveis. No segundo semestre de 2017, ela mapeou s, apenas para dispositivos vestíveis inteligentes de uso externo, 406 aparelhos de 273 diferentes empresas, sendo que 51 empresas fabricavam mais de um dispositivo. Essa lista de dispositivos foi construída de modo colaborativo e conta com uma cobertura satisfatória do ponto de vista de mapeamento de soluções e de manutenção de dados atualizados. A lista disponibilizada nesse website é extensa; porém, não é exaustiva. Entretanto, há poucas iniciativas sistematizadas de mapeamento de aparelhos, uma vez que a indústria produz soluções de modo célere, o que torna difícil a manutenção de um repositório central atual. Há alguns trabalhos, como o de Chan et al. (2012), que buscaram fornecer um panorama das tecnologias existentes e dos fabricantes inseridos nesse contexto, mas que já estão desatualizados em um campo no qual inovações surgem a todo momento. Todas essas inovações se configuram como o passo inicial da revolução que deverá ser promovida pela ampliação do uso de soluções de mhealth. A principal vantagem associada a esse tipo de tecnologia está vinculada ao uso de informações. Ao tornar possível a captação de dados de forma contínua, a mhealth cria a base para o desenvolvimento de soluções de healthcare analytics. Parte de um campo científico incipiente denominado 6 Disponível em: https://vandrico.com/wearables.html?redirect=true. Internet e Saúde 505 Ciência de Dados (Data Science), a cátedra de healthcare analytics aglutina saberes de ciência da computação, estatística, epidemiologia e saúde pública para transformar dados em saúde em um substrato efetivo para a gestão do cuidado com base em evidências (REDDY; AGGARWAL, 2015). A aplicação de soluções analíticas ao cuidado em saúde possui o potencial de transformar a entrega de serviços de uma perspectiva reativa em uma abordagem proativa. A análise de dados clínicos baseada nesse conjunto de técnicas permite a identificação de padrões ocultos nos dados, propiciando condições para que pacientes obtenham melhor saúde. Também propicia condições para que profissionais desenvolvam programas terapêuticos singulares e com maiores chances de serem efetivos e para que gestores possam organizar os sistemas de saúde com base nos pressupostos estipulados por Porter e Lee (2013). O manejo adequado desses dados pode, efetivamente, materializar a noção de Era da Informação, mas, para tanto, um novo conjunto de técnicas se faz necessário. As ferramentas dedicadas a extrair padrões não óbvios a partir de grandes volumes de dados pertencem ao campo da Inteligência Artificial (Artificial Intelligence), particularmente da subseção denominada Aprendizagem das Máquinas (Machine Learning). Essa subárea dedica esforços para permitir que sistemas computacionais possam depreender padrões a partir de dados e, a partir disso, executar atividades de forma automatizada (ALI et al., 2016). Intrinsecamente associado à área de aprendizagem das máquinas está o campo que aborda a realização de modelos preditivos. A modelagem preditiva objetiva prever o comportamento futuro de um determinado objeto de análise, baseando-se em seu comportamento pregresso. Para isso, apoia-se em técnicas de mineração de dados e modelagem estatística (SHMUELI; KOPPIUS, 2011). A adoção de técnicas de healthcare analytics carrega o potencial de modificar as formas vigentes de organização e oferta de cuidado em saúde. As novas perspectivas que se abrem podem contribuir para a superação de desafios inerentes à saúde que persistem há algum tempo. Como tivemos a oportunidade de apresentar neste capítulo, são inúmeras as possibilidades de aproveitamento das Tecnologias de Informação e Comunicação na saúde. À primeira vista, pensa-se nos benefícios para a assistência e a clínica individual. Entretanto com a massificação do uso dessas soluções, os potenciais avanços saem da esfera do indivíduo e transitam pelos escopos populacionais e da gestão macrossistêmica. Apesar de todas essas perspectivas, os desafios para consolidar esse tipo de tecnologia ainda são grandiosos. Quando se examina o cenário global, há inúmeros tópicos que precisam ser abordados para permitir a disseminação desse conjunto de tecnologias. No cenário local brasileiro, os desafios são ainda maiores. Assim, passaremos ao exame dos gargalos tecnológicos atualmente existentes que acabam por retardar as possibilidades de ampliação desse conjunto de inovações. 506 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) 4. Os desafios loco-regionais do contexto brasileiro Os desafios loco-regionais brasileiros que serão apresentados a seguir estão baseados na pesquisa realizada com o apoio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDES) e outros estudos que abordaram os desafios que perpassam a realidade do nosso país. O diagnóstico realizado pelo BNDES apontou diversos desafios tecnológicos sobre mhealth específicos da realidade brasileira, entre eles: a carência de infraestrutura, complexidade legal e falta de mão de obra qualificada. Assim, os obstáculos para consolidação de aplicações de mhealth no Brasil são permeados por determinantes adicionais relacionados às nossas características loco-regionais (BNDES, 2016). O primeiro elemento tratado no relatório do BNDES versa sobre a infraestrutura de redes de comunicação locais. Atualmente há poucas empresas atuando nesse setor no Brasil, e há a necessidade de realização de investimentos voltados para melhorias. Não há cobertura de internet de alta velocidade no país inteiro, sendo que há regiões sem nenhum tipo de cobertura. Assim a expansão é algo fundamental para viabilizar projetos baseados em mhealth (BNDES, 2016). A abertura do setor para a atuação de empresas privadas acelerou o processo de melhora de infraestrutura, mas ainda não foi suficiente para garantir o suporte necessário para o desenvolvimento operacional de aplicações de IoT. A regulação setorial atual determina a prestação de serviços de telecomunicação por meio de outorga. Dessa forma, há questionamentos, sem resposta, sobre quem deveria receber a outorga de serviços empacotados de IoT. O roaming internacional de dados é outra questão. As soluções de IoT e o tráfego associado de dados não respeitam necessariamente os limites geográficos dos países (BNDES, 2016). Assim perguntamos: Como fica a questão de tributação em relação aos serviços prestados? Sem repensar o marco legal vigente e estruturar ações de estímulo à melhora de infraestrutura de redes de comunicação, tributação e forma de concessão de outorgas, a questão da infraestrutura deverá se configurar como obstáculo para o trânsito de informações em alta velocidade intrínseco à IoT. Outro elemento crítico perpassa a qualidade de serviços. As aplicações de IoT têm diferentes necessidades em termos de qualidade de transmissão, velocidade, latência e largura de banda. Assim, será preciso refletir sobre quais nichos irão demandar que tipo de padrão de transmissão e com que exigência de qualidade. A definição de um único padrão de qualidade não parece adequada ao contexto de IoT, e será necessário diferenciar as conexões/serviços de telecomunicação que irão operar como infraestrutura de IoT. O uso de radiofrequência no Brasil exige autorização prévia. Algumas aplicações de IoT prescindem desse bem escasso, e será preciso pensar em estratégias para a flexibilização os limites de aplicações para espectros não licenciados; o eventual uso de Internet e Saúde 507 White spaces (frequências de transmissão de dados não utilizadas); e a possibilidade de promover a realocação de faixas (BNDES, 2016). A homologação de equipamentos tem sido outro limitador para a adoção mais célere de soluções de telecomunicações no Brasil. A Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) somente permite que equipamentos homologados possam ser comercializados. Com o advento da IoT, espera-se que ocorra um aumento significativo na quantidade de pedidos de análise para homologação. Esse processo pode levar meses e, portanto, pode se configurar como um obstáculo para a adoção de soluções. É necessário repensar esse processo para lhe conferir celeridade, garantindo os níveis de segurança e de interoperabilidade (BNDES, 2016). Quanto aos sistemas de IP (Internet Protocol), a migração de IP versão 4 para IP – versão 6 ainda não está totalmente concluída no Brasil. É importante examinar quais empecilhos ainda estão vigentes e adotar medidas para sobrepujá-los, pois o IPv6 é imprescindível para a conexão de dispositivos de IoT (BNDES, 2016). O volume de dispositivos a serem registrados deverá sofrer aumentos constantes e sem perspectiva de redução ao longo dos próximos anos. Os padrões de interoperabilidade são outro ponto nodal na realidade brasileira. A exigência de padrões muitas vezes se baseia na tentativa de evitar práticas lock-in7. Deixar que os próprios agentes definam os padrões a serem utilizados tem fomentado um ambiente de competição, e não tem contribuído para a padronização. A falta de padronização dificulta a integração de soluções entre diferentes fabricantes, prejudicando o desenvolvimento de aplicações. A regulação de padrões não nos parece salutar, mas, por outro lado, a não intervenção pode criar obstáculos ao desenvolvimento de aplicações integradas no Brasil. O cenário legal brasileiro8 acrescenta mais uma nuance ao complexo contexto apresentado anteriormente: a ausência de legislação específica destinada à proteção de dados pessoais. A ausência dessa regulamentação pode criar um ambiente de insegurança para usuários e empresas que pode impactar negativamente o desenvolvimento de aplicações de IoT. A necessidade de desenvolver um marco que proteja aos usuários sem, entretanto, engessar o setor parece ser um desafio técnico e político ainda sem solução (BNDES, 2016). A regulação governamental pode representar um fator constritor de inovações. Barreiras erigidas por leis, órgãos e regulamentações podem dificultar a adoção mais célere de soluções de IoT e, por consonância, de mhealth. Do ponto de vista de negócios, não há modelos testados e validados relativos à mhealth que possam servir de guia para investidores e empreendedores. Um estudo destacou que há poucas evidências de capacidade de monetização e lacunas quanto à percepção dos consumidores, além de não existir estudos evidenciando a eficácia de soluções baseadas em mhealth (MALVEY; SLOVENSKY, 2015). Outro aspecto 7 8 Venda de produtos com contratos de manutenção extensos e de elevado custo. O capítulo 2 discute a questão do Marco Civil da Internet. 508 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) característico do setor da saúde identificado pela literatura é a resistência à adoção de tecnologias disruptivas (CHRISTENSEN; BOHMER; KENAGY, 2000). Malvey e Slovensky, (2015) apontam, ainda, que o tempo médio, para que uma inovação passe a figurar como padrão clínico é de 17 anos. Essa cultura é fruto do direcionamento adotado, usualmente, pelo corpo de profissionais médicos, os quais geralmente assumem uma posição mais conservadora quanto à adoção de inovações (MALVEY; SLOVENSKY, 2015). As soluções mhealth são comumente introduzidas usando uma abordagem de cima para baixo. As mudanças são promovidas por uma pessoa com autoridade hierárquica, tendo como objetivo garantir que os profissionais de saúde adotem políticas, protocolos e fluxos de trabalho preestabelecidos. Como tal, muitos programas perdem a oportunidade de melhorar seus designs com a participação dos profissionais de saúde e do paciente na concepção dos projetos e implantação. A adaptabilidade aumenta quando os usuários finais fazem parte do processo (WHITTAKER et al., 2012). O Brasil não está imune a esses problemas. Estudos indicam que há resistências por parte de agentes locais sobre a incorporação de tecnologias associadas à mhealth e à IoT (POETAS.IT., 2016). Por último, o maior desafio existente na realidade brasileira é humano. As aplicações de saúde eletrônica e de mhealth possuem grande promessa de melhorar a saúde global. À medida que esses projetos se desenvolvem, os gestores precisam estar conscientes da necessidade de uma força de trabalho adequada que possibilite sua implantação e compreenda os cuidados de saúde, a tecnologia da informação, os canais de comunicação, as pessoas envolvidas e os desafios organizacionais9. Apesar dessas necessidades, identificamos um cenário de escassez de mão de obra. De acordo com o World Health Report de 2006, um déficit de mão de obra na saúde foi documentado em 57 países, sendo o pior cenário no Sudeste Asiático (WHO,2006). De acordo com algumas estimativas nacionais, o mundo precisava em 2006 de mais de quatro milhões de médicos, enfermeiros, farmacêuticos, técnicos de laboratório, parteiras, trabalhadores comunitários de saúde e outros profissionais de saúde de primeira linha (WHO,2006)). No Brasil, a categoria profissional da saúde com o maior déficit é a médica. Os dados apresentados por um estudo publicado em 2018 indicam que a proporção de profissionais médicos por mil habitantes no Brasil se encontrava próximo a 2 por 100.000 habitantes. Apesar desse volume geral para o país, há grandes variações internas quanto à essa proporção de médicos por habitantes. As regiões Norte e Nordeste, que são aquelas com menor desenvolvimento econômico, apresentam as menores taxas, ao passo que a região mais desenvolvida possui um índice bem maior (SCHEFFER, 2018). A carência dos recursos humanos no setor da saúde é um gargalo identificado para alcançar o acesso universal a cuidados de saúde de qualidade. No entanto, também há falta de capacitações, orientações e oportunidades de educação continuada de qualidade para profissionais de saúde, a fim de fazer frente aos programas de treinamento vinculados a inovações (HERSH et al., 2010). Quanto ao mercado de trabalho em saúde, são 9 O capítulo 22 discute o impacto da digitalização na saúde. Internet e Saúde 509 necessárias mais pesquisas específicas para caracterizar melhor a força de trabalho necessária para o uso dos dispositivos móveis, juntamente com os papéis, competências e níveis de educação dos trabalhadores (HERSH et al., 2010). O contexto do mercado de trabalho dos profissionais de TI é semelhante ao dos médicos, porém com um agravante: eles estão entre as profissões que apresentam grande escassez de profissionais nos mercados brasileiro e mundial. A situação em relação a uma nova categoria de especialistas denominados cientista de dados é ainda mais delicada. O Brasil tem grande carência desse profissional, contando com menos de 200 indivíduos em todo o país. O cientista de dados é capaz de manipular grandes volumes de dados (Big Data), integrar bancos de dados, analisar dados estruturados e não estruturados e conceber modelos preditivos, características indispensáveis para o trabalho com mhealth. Sendo assim, Pereira (2017) percebe que a escassez constatada pode interferir na implantação de projetos e programas, dado que a disputa por esse profissional é acirrada. Um bom cientista de dados é especialista em, no mínimo, quatro campos do saber: comunicação, estatística, programação e área de negócio. A demanda por posições dessa profissão em todo o mundo será maior do que o volume de profissionais que estão sendo formados. Além disso, esse tipo de talento é difícil de produzir, levando anos de treinamento no caso de alguém com habilidades matemáticas intrínsecas (MCKINSEY & COMPANY, 2011). A remuneração será, naturalmente, um fator agravante para conseguir disseminar as potencialidades associadas ao trabalho dos cientistas de dados. Além disso, em sondagem informal sobre prioridades de cientistas de dados, o relatório da Mckinsey e Company (2011) revelou algo ainda mais importante: esse profissional quer estar no comando do processo. Considerando a dificuldade de encontrar e reter cientistas de dados, é possível supor que uma boa estratégia fosse contratá-los como consultores. A maioria das firmas de consultoria, no entanto, ainda não tem muitos profissionais do gênero. Até as grandes empresas, como Accenture, Deloitte, IBM Global Services, estão progredindo lentamente quando o assunto é desenvolver projetos de Big Data para seus clientes. As competências dos cientistas de dados que já integram as equipes estão sendo aplicados basicamente a problemas de análise quantitativa mais convencionais (DAVENPORT; PATIL, 2012). Tamanha escassez faz com a que disputa por profissionais seja grande. Também contribui para que os cientistas de dados optem por grandes corporações. A empresa Microsoft, isoladamente, possui mais especialistas nessa profissão que todo o resto do Brasil. Quanto à adequação dos profissionais que já se encontram no mercado, os países em situação de carência não podem preencher essa lacuna simplesmente mudando os requisitos de pós-graduação, esperando que as pessoas se formem com mais habilidades ou importando talentos - Porém, essas podem ser ações importantes a serem tomadas. Será necessário reciclar uma quantidade significativa de talentos no local e investir em educação. Em suma, o cenário permeado pela IoT e pela mhealth é complexo e com múltiplos atores. A sua complexidade parte, propriamente, do objeto em relação ao qual todo esse 510 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) contexto procura abordar. A saúde é complexa e multifacetada. Desenvolver soluções para os seus problemas exige um trabalho coordenado entre diferentes stakeholders visando a criação de valor, tanto para aqueles que consomem serviços, quanto para aqueles responsáveis pela prestação de cuidado. Os desafios associados ao desenvolvimento tecnológico de IoT e, por consequência, da mhealth ainda não foram integralmente abordados. Em relação a esse aspecto, Mukhopadhyay (2014) afirma que, entre os principais pontos a serem abordados, pesam questões relacionadas ao seguintes aspectos: miniaturização; disponibilidade de internet; desenvolvimento de sensores de Wireless Sensor Networks (WSN) e de Radio Frequency Identification Devices (RFID); aperfeiçoamento de padrões de segurança e privacidade; necessidade de barateamento de componentes; tolerância a falhas; consumo e economia de energia; aceitabilidade do usuário; e formação de especialistas. Essas questões ainda apresentam obstáculos que não foram completamente superados e que limitam, em determinados contextos, as potencialidades associadas a soluções de IoT e mhealth. Como mencionamos anteriormente, outro ponto chave é a disponibilidade de internet de forma onipresente. De modo geral, o panorama observado é um cenário desafiador que ainda carece de amadurecimento. 5. Considerações finais: o que o futuro reserva para as soluções de mhealth? Apesar do conceito ter mais de vinte anos, ainda não podemos dizer ao certo para onde a disseminação da mhealth irá nos levar. Qualquer tentativa nesse sentido está no plano especulativo, em função da complexidade e dos desafios adjacentes à área. O que se sabe é que a mhealth se configura como uma inovação disruptiva, marcada por um imenso potencial, uma vez que cria possibilidades de reorganizar a forma como a saúde era, até então, tratada. Apesar do desenvolvimento recente, pode-se dizer que a abordagem dos desafios relacionados à mhealth não é feita de forma linear. Malvey e Slovensky (2015) entendem que sua estrutura se assemelha mais uma escada, na qual há períodos de estagnação, seguidos por avanços abruptos). Aplicações como FitBit, por exemplo, surgiram como um dispositivo (device) para monitoramento de treinamentos. Recentemente, com a incorporação de alguns sensores, foram redirecionados para fazer o acompanhamento de variações de pressão arterial e ritmo cardíaco de pacientes que se submeteram a cirurgias cardíacas (ALHARBI et al., 2016). O percurso que vem sendo trilhado pela mhealth não difere daquele já percorrido por outras inovações que tiveram repercussão na área da saúde. Automóveis, no início do século XX, permitiram que a lógica de visita a médicos, por parte de pacientes, fosse Internet e Saúde 511 modificada, em função das facilidades de deslocamento (MALVEY; SLOVENSKY, 2015). Hospitais se tornaram os principais realizadores de cirurgias complexas, graças à disponibilidade de serviços de apoio diagnóstico e de anestesia (MALVEY; SLOVENSKY, 2015). Todas essas mudanças levaram tempo e foram sendo incorporadas no arcabouço da saúde de forma gradual. A incorporação gradual de inovações é uma marca da saúde. No início da década de 1980, os computadores eram utilizados em hospitais para realizar procedimentos de processamento de contas a pagar e outros elementos de cunho financeiro. O início do uso desse tipo de tecnologia para apoiar a oferta de cuidado somente foi realizada em um segundo momento. Malvey e Slovensky (2015) entendem que para que haja a incorporação de uma tecnologia junto ao sistema de oferta de serviços de saúde, é preciso que existam evidências sobre o impacto positivo na melhora de indicadores de resultado em saúde; na promoção de comportamentos mais saudáveis na população; no aumento de engajamento de pacientes junto às diretrizes terapêuticas fornecidas; e na melhoria na eficiência na prestação de cuidado (). Para muitos desses itens, a mhealth ainda é uma promessa, sem que evidências sólidas tenham sido ainda produzidas. Apesar disso, a busca pela geração de tais evidências tem sido cada vez maior, vide a ampliação do debate sobre mhealth e seus desdobramentos (SWEILEH et al., 2017). Mudanças sistemáticas serão necessárias para catalisar as mudanças necessárias para permitir que a mhealth ganhe concretude frente aos benefícios potenciais anunciados. A primeira mudança está relacionada ao desenvolvimento de uma cultura de inovação. Esta é diferente da mera incorporação de inovações (MALVEY; SLOVENSKY, 2015). Uma cultura de inovação permite que os diferentes aspectos necessários para que uma solução atinja potencial máximo sejam considerados de forma simultânea. Isso significa reinventar a lógica de prestação de cuidado, de modo que passe a levar em conta um sistema de oferta diferente, novos papéis associados aos players atuantes nesse sistema, nova infraestrutura de operação e eventuais equívocos que serão cometidos ao longo do processo de aprimoramento. O futuro da mhealth é visto hoje como algo fluido, tênue e dependente de múltiplos fatores. Apesar disso, as novas possibilidades oriundas da mobilidade são uma tendência que parece não ter regresso. Malvey e Slovensky (2015) entendem que a mobilidade associada ao cuidado de saúde oferece a oportunidade para corrigir as disparidades do cuidado, especialmente entre as minorias e as populações desprivilegiadas. O fortalecimento de soluções de conectividade móvel associadas à saúde é algo que irá se consolidar ao longo dos próximos anos; para os demais pontos, a única certeza é a incerteza. O contexto brasileiro e as perspectivas que acenam no horizonte são desafiadoras. Superar os obstáculos que existem em nossa realidade local exigirá esforços coordenados em múltiplas áreas e setores para permitir o delineamento de um ambiente propício ao desenvolvimento de soluções de mhealth. Cientes do tamanho desse desafio, o primeiro 512 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) ponto a ser abordado seria a diluição das resistências que deixam o contexto brasileiro refratário ao uso e à incorporação de novas tecnologias. A área da saúde possui algumas percepções cristalizadas, muito em função do perfil de profissional que ocupa as posições de decisão, o que acaba por conduzir ao contexto de resistência à mudança. Essas resistências infundadas, frente ao volume de evidências existente no contexto internacional, parecem estar baseadas na necessidade de manutenção de uma agenda já ultrapassada, em certa medida. Porém, essa agenda seria capaz de sustentar projetos e recursos para campos já solidificados, beneficiando alguns agentes em posição de decisão. Superar esse primeiro obstáculo pode começar a criar condições mais adequadas para que sejam desenvolvidas aplicações disruptivas no contexto brasileiro. Referências ALHARBI, M. et al. Validation of Fitbit-Flex as a measure of free-living physical activity in a community-based phase III cardiac rehabilitation population. Eur. J. Prev. Cardiol., v. 23, n. 14, p. 1476–1485, 2016. ALI, A. et al. Big data for development: applications and techniques. Big Data Analytics, v. 1, n. 1, p. 2, 2016. ANLIKER, U. et al. AMON: A wearable multiparameter medical monitoring and alert system. IEEE Trans. Inf. Technol. Biomed., v. 8, n. 4, p. 415–427, 2004. 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Rosário, Zelia Andrade e Lise Renaud Resumo A promoção da saúde é uma prática comportamental, política e social voltada para o atendimento das necessidades e aspirações individuais e coletivas dos cidadãos. A partir da Carta de Ottawa (1986), as Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) são compreendidas como parte integrante da promoção da saúde e estão presentes nos documentos internacionais que definiram as prioridades para o tema desde então. Este capítulo visa analisar a produção acadêmica brasileira sobre a utilização das TICs na promoção da saúde. Foi realizado um levantamento na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações um portal de acesso aberto. Foram encontradas seis teses de doutorado e dezoito dissertações de mestrado, que foram agrupadas tematicamente. O capítulo concluiu que os estudos brasileiros que apresentaram e analisaram a utilização das TICs na promoção da saúde seguem uma lógica biomédica, com foco em patologias específicas ou grupos etários particulares. Com isso, esses estudos parecem estar afastados da discussão sobre o tema iniciado oficialmente em 1986. Palavras-chave: Promoção da Saúde; Tecnologias de Informação e Comunicação; Bases de Dados Bibliográficas; Pesquisa Qualitativa; Internet. Referência: PEREIRA NETO, A. et al. O uso das Tecnologias da Informação e Comunicação na promoção da saúde: iniciativas brasileiras. In: PEREIRA NETO, A.; FLYNN, M. (orgs.). Internet e saúde no Brasil: desafios e tendências. 1 ed. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2020. p. 516-550. * Laboratório Internet, Saúde e Sociedade, Centro de Saúde Escola Germano Sinval de Faria, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Brasil. E-mail: [email protected]. 518 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Introdução A promoção da saúde é um conceito associado à ideia de que a saúde é uma prática comportamental, política e social, voltada para o atendimento das necessidades e aspirações individuais e coletivas. Para sua consecução, o cidadão e as coletividades devem ser capazes de lidar e mudar o meio ambiente que os cerca (WHO, 1986). A Carta de Ottawa, promulgada em 1986, sob os auspícios da Organização Mundial da Saúde (OMS), é considerada um marco no processo histórico que levou à constituição desse conceito e prática social. Esse evento foi precedido por outros, como a Conferência Internacional de Atenção Primária de Saúde de Alma-Ata (1978) e o “Relatório Black sobre as Desigualdades em Saúde” (BARROS, 2017). A importância simbólica da Carta de Ottawa reside no fato desse documento apresentar uma visão que supera a compreensão individualista dos estilos de vida como responsáveis pela condição de saúde e doença e destaca a importância dos ambientes e políticas sociais na saúde do indivíduo e das coletividades. Ele enfatiza o contexto e o significado das ações de saúde e os determinantes sociais que permitem as pessoas seremou não saudáveis (HAESER; BUCHELE; BRZOZOWSKI, 2012). A Carta de Ottawa é dividida em três partes. A primeira busca definir o conceito promoção da saúde”; a segunda estabelece os meios para alcançá-la e exercê-la; e a última indica os compromissos para que suas ideias se tornem realidade. A primeira parte é composta por quatro itens, a saber: “pré-requisitos para a saúde”, “defender”, “mediar” e “permitir”. Entre os “pré-requisitos para a saúde”, constam “paz, abrigo, educação, comida, renda, um ecossistema estável, recursos sustentáveis, justice social e equidade.” (WHO, 1986, p. 2, tradução nossa). Segundo esse documento, a mediação deve ser realizada por diferentes segmentos sociais, como organizações (não) governamentais e “autoridades locais, [...] indústria e [...] a mídia” (WHO, 1986, p. 3, tradução nossa, grifo nosso). Para que as pessoas alcancem seu potencial máximo, a Carta de Ottawa considera importante “uma base segura em um ambiente solidário, acesso à informação, habilidades de vida e oportunidades para tomar decisões saudáveis” (WHO, 1986, p. 2, tradução nossa, grifo nosso). Assim, no documento de 1986, consta o papel desempenhado pela mídia e uma menção ao acesso a informação como partes integrantes da definição da promoção da saúde. A segunda parte da Carta de Ottawa é dedicada às possibilidades de ação de promoção da saúde. Essa parte está subdividida em cinco itens. O primeiro está voltado para a construção de uma política pública para que o setor ultrapasse os limites institucionais. O segundo preocupa-se com a criação de “condições de vida e de trabalho que são seguras, estimulantes, satisfatórias e agradáveis”. O terceiro enfatiza a importância da ação comunitária. Ele estabelece que “no centro desse processo está o empoderamento das comunidades, seu domínio e controle sobre seus próprios esforços e Internet e Saúde 519 destinos” (WHO, 1986, p. 3, tradução nossa). Segundo o documento, “isso exige acesso total e contínuo à informação, oportunidades de aprendizado para a saúde, assim como apoio financeiro” (WHO, 1986, p. 3, tradução nossa, grifo nosso). O quarto item destaca o papel do desenvolvimento das habilidades pessoais “por meio do fornecimento de informação, educação para a saúde e incremento das habilidades de vida” (WHO, 1986, p. 4, tradução nossa, grifo nosso). O último item valoriza a reorientação dos serviços de saúde, que precisam de “canais abertos entre o setor da saúde e os componentes social, político, econômico e do ambiente físico mais amplos” (WHO, 1986, p. 4, tradução nossa). Assim, o acesso e o oferecimento de informação representam duas possibilidades de ação de promoção da saúde, acompanhadas, desta vez, da noção de empoderamento. Na terceira parte, a Carta de Ottawa apresenta os compromissos assumidos pelos 38 países signatários do documento1, entre os quais destacam-se: entrar na arena da política pública de saúde defendendo o princípio da equidade em todos os setores; combater a ação dos produtos, ambientes e alimentos que fazem mal a saúde; concentrar a atenção nas questões relacionadas com a poluição e os riscos ocupacionais e habitacionais; reconhecer que a comunidade é a voz essencial em matéria de saúde, de condições de vida e de bem-estar; e compartilhar o poder com outros setores, outras disciplinas e, o mais importante, com as próprias pessoas. Ao final, a Carta de Ottawa (WHO, 1986) estabelece que: A Conferência está firmemente convencida que, se as pessoas em todas as esferas da vida, organizações voluntárias e não-governamentais, governos, a Organização Mundial da Saúde e todos os outros organismos juntassem forças para introduzir estratégias para a promoção da saúde, alinhados aos valores morais e sociais que constituem a base desta carta, Saúde para Todos até o ano 2020 se tornará uma realidade. (WHO, 1986, p. 5, tradução nossa). Logo após sua promulgação, algumas autoridades e intelectuais manifestaram apoio à Carta de Ottawa. Para Breslow (1999), com a Carta de Ottawa a saúde passou a significar um “recurso para viver o dia a dia” (BRESLOW, 1999, p. 1030, tradução nossa). Dra. Emília Nunes, presidente da Direcção da Associação Portuguesa de Promoção da Saúde Pública, declarou durante a celebração do 25º aniversário da Carta de Ottawa que este documento “influenciou de modo significativo a formulação de objetivos na área da saúde pública. Pela pertinência da sua visão, dos seus princípios e das suas propostas estratégicas, este 1 Carta de Ottawa foi assinada pelos representantes dos seguintes países: Antígua, Austrália, Áustria, Bélgica, Bulgária, Canadá, Tchecoslováquia, Dinamarca, Irlanda, Inglaterra, Finlândia, França, República Democrática Alemã, República Federal da Alemanha, Gana, Hungria, Islândia, Israel, Itália, Japão, Malta, Países Baixos, Nova Zelândia, Irlanda do Norte, Noruega, Polônia, Portugal, România, São Cristóvão e Névis, Escócia, Espanha, Suécia, Suécia, Suíça, União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, Estados Unidos, Wales e Iugoslávia. 520 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) documento ganhou um estatuto próprio, integrando hoje o corpo teórico de referência da saúde pública” (Nunes, 2011, p. 200). Entretanto, transcorridos mais de 40 anos da data de sua promulgação, os objetivos definidos em 1986 estão longe de terem sido alcançados. Nos últimos anos, vários autores têm debatido o significado desse documento. Potvin e Jones (2011), parafraseando a analogia proposta por Kickbusch (2006), entendem que a promoção da saúde não é uma árvore, e sim um rizoma - um tipo de caule que cresce horizontalmente, geralmente subterrâneo, mas que pode também ter porções aéreas. Para essas autoras, a emergência de novos desafios para o campo da promoção da saúde reforça a relevância da Carta de Ottawa. Elas afirmam que: Promoção da saúde está sendo ativamente definida por meio de práticas acontecendo ao redor do mundo. Utilizando a analogia de Kickbusch (2006), as raízes da promoção estão se espalhando como um rizoma. A emergência de novos desafios para o campo não nega a relevância da Carta de Ottawa. Ao contrário, a significância da Carta de Ottawa reside em sua longevidade como uma porta-voz para o campo da promoção da saúde. Ela continua a confirmar uma visão, orientar a ação e sustentar os valores que compreendem a promoção da saúde hoje. Construir capacidade de força de trabalho, organizações e infraestruturas para a promoção da saúde será o ponto crucial para avaliar a próxima rodada de conquistas. (POTVIN; JONES, 2011, p. 247, tradução nossa). Labonté (2016) também analisou as intenções da Carta de Ottawa. Ele considera que a crise e a desigualdade econômica e ecológica atuais são muito complexas e inscritas em um mundo multipolar. Segundo ele, essa realidade coloca desafios diferentes daqueles vividos em 1986. Naquela época a austeridade neoliberal estava apenas começando, e o mundo estava dividido entre a matriz capitalista e a comunista. O autor destaca que hoje em dia a realidade é bem diferente. Segundo Labonté (2016): […] Temos uma desigualdade desenfreada na qual o cada vez menor 0,000 000 01% da humanidade – apenas 62 pessoas – agora detém tanta riqueza global e comanda tantos recursos e poderes políticos quanto o resto dos 7,4 bilhões de residentes do planeta. (LABONTÉ, 2016, p. 675, tradução nossa). Diante desse quadro, Labonté (2016) “urge promotores da saúde a apoiar movimentos sociais e ativistas da sociedade civil que trabalham em escalas nacionais e global para fazer pressão por reforma econômica e salvação ecológica” (LABONTÉ, 2016, p. 680, tradução nossa). No final de 2016, foi realizada na China a 9ª Conferência Global de Promoção da Saúde. Nela foi aprovado o esboço da Shanghai Declaration on Health Promotion in the 2030 Agenda for Sustainable Development (WHO, 2016). Internet e Saúde 521 A Declaração de Shanghai, como ficou conhecida, ratificou uma agenda que contém os 17 “Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável até 2030”, definidos pela Organização das Nações Unidas (ONU) em setembro de 2015. A resolução das ONU (UNITED NATIONS, 2015) estabelece que: Os novos objetivos são únicos, pois chamam a ação de todos os países, pobres, ricos e de média renda, para promover prosperidade enquanto protegem o planeta. Eles reconhecem que o fim da pobreza deve andar de mãos dadas com as estratégias que constroem o crescimento econômico e atendem a uma série de necessidades sociais, incluindo educação, saúde, proteção social, e oportunidades de trabalhos, enquanto enfrentam a mudança climática e a proteção ambiental. (UNITED NATIONS, 2020a, tradução nossa). Esse documento da Organização das Nações Unidas reconhece que a saúde e o bemestar são essenciais para alcançar o desenvolvimento sustentável, definido da seguinte forma: Garantir vidas saudáveis e promover o bem-estar para todas as idades são essenciais para o desenvolvimento sustentável. Avanços significativos foram tomados no aumento da qualidade de vida e na redução de algumas das causas comuns associadas à mortalidade materna e infantil. Grandes progressos têm sido feitos no aumento do acesso à água limpa e ao saneamento, na redução da malária, tuberculose, pólio e da disseminação do HIV/AIDS. Porém, muitos esforços ainda são necessários para erradicar totalmente uma ampla gama de doenças e resolver muitos diferentes problemas de saúde emergentes e persistentes. (UNITED NATIONS, 2020b, tradução nossa). Em relação à informação e a comunicação, a resolução das Nações Unidas de 2015 estabelece que: A disseminação de tecnologias de informação e comunicação e da interconexão global tem grande potencial para acelerar o progresso humano, reduzir a exclusão digital e desenvolver sociedades do conhecimento, assim como inovações tecnológicas entre áreas tão diversas como medicina e energia também podem fazê-lo. (UNITED NATIONS, 2015, p. 9, tradução nossa, grifo nosso). O acesso às Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) passou a ser visto como um instrumento capaz de acelerar o progresso humano e desenvolver as sociedades nas mais diferentes áreas do conhecimento. 522 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) A Declaração de Shanghai enfatiza ainda alguns aspectos que consideramos fundamentais. Ela entende que a promoção da saúde está presente em todos os Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável, na medida em que todos podem ser considerados determinantes sociais da saúde. Nesse sentido, a Declaração de Shanghai se refere a qualidade da água, à fome, ao desemprego etc. Além disso, a desigualdade no acesso aos serviços de saúde é considerada inaceitável e exige uma ação política em vários setores e regiões. Nesse caso o documento sugere que seja priorizada a boa governança, a ação local nas cidades e comunidades e o empoderamento das pessoas por meio do acesso à informação em saúde. Apesar de não estar escrito dessa forma, podemos admitir que a promoção da literacia em saúde2 pode ser realizada por meio dos diferentes dispositivos disponíveis nas redes sociais digitais. Constam ainda alguns compromissos públicos assumidos pelos signatários da Declaração de Shanghai, entre os quais destacamos uma seção que aborda o problema da saúde nos centros urbanos, “onde pessoas vivem, amam, trabalham, compram e se divertem” (WHO, 2016, p. 2, tradução nossa). A declaração estabelece que “não aceitará que residentes urbanos em áreas pobres sofram desproporcionalmente com má saúde e tenham dificuldade de acessar serviços de saúde” (WHO, 2016, p. 2, tradução nossa). Em relação às Tecnologias de Informação e Comunicação, os signatários da Declaração de Shanghai se comprometem a: Priorizar políticas que criem co-benefícios entre saúde e bem-estar e outras políticas da cidade, fazendo uso completo da inovação social e de tecnologias interativas, aumentem o controle do cidadão sobre sua própria saúde e seus determinantes, por meio do aproveitamento do potencial da tecnologia digital. (WHO, 2016, p. 2, tradução nossa, grifos nossos). Assim, percebemos que as tecnologias de informação e comunicação estão presentes na agenda dos documentos internacionais que definem as prioridades para o desenvolvimento sustentável e a promoção da saúde, desde a Carta de Ottawa (1986). No Brasil, a Portaria n° 687 do Ministério da Saúde instituiu, em 2006, a Política Nacional de Promoção da Saúde (BRASIL, 2006). Ela visa promover a equidade e a melhoria das condições e dos modos de viver, ampliando a potencialidade da saúde individual e coletiva e se propõe ainda a reduzir a vulnerabilidade e os riscos à saúde decorrentes dos determinantes sociais, econômicos, políticos, culturais e ambientais. Em 2013, essa portaria sofreu modificações visando seu aprimoramento. Assim, em 2015 o Ministério da Saúde promulgou a revisão do documento de 2006. A Política Nacional de Promoção da Saúde passou, então, a estar embasada em valores e princípios que deveriam orientar as ações no campo da promoção da saúde, a saber: 2 O capítulo 15 e 16 discute o tema da literacia. Internet e Saúde 523 a) reconhece a subjetividade das pessoas e dos coletivos no processo de atenção e cuidado em defesa da saúde e da vida; b) considera a solidariedade, a felicidade, a ética, o respeito às diversidades, a humanização, a corresponsabilidade, a justiça e a inclusão social como valores fundantes no processo de sua concretização; c) adota como princípios a equidade, empoderamento, a a participação intersetorialidade, social, a a autonomia, intrassetorialidade, o a sustentabilidade, a integralidade e a territorialidade. (BRASIL, 2015, p. 10). A revisão da Política Nacional de Promoção da Saúde (2015) definiu oito temas prioritários, a saber: I. Formação e educação permanente [...] para o desenvolvimento de ações de educação em promoção da saúde; II. Alimentação adequada e saudável […]; III. Práticas corporais e atividades físicas [...]; IV. Enfrentamento ao uso do tabaco e de seus derivados [...]; V. Enfrentamento do uso abusivo de álcool e de outras drogas [...]; VI. Promoção da mobilidade segura [...] [para] redução da morbimortalidade decorrente do trânsito; VII. Promoção da cultura da paz e dos direitos humanos, ao promover, articular e mobilizar ações que estimulem a convivência, a solidariedade, o respeito à vida e o fortalecimento de vínculos [...]; VIII. Promoção do desenvolvimento sustentável: promover, mobilizar e articular ações governamentais e não governamentais [...] permitindo a interação entre saúde, meio ambiente e desenvolvimento sustentável na produção social da saúde. (BRASIL, 2015, p. 22-23). No contexto da “promoção da cultura da paz e dos direitos humanos”, consta que devem ser desenvolvidas “tecnologias sociais que favoreçam a mediação de conflitos, o respeito às diferenças” e produzidas informações qualificadas e capazes de “gerar intervenções individuais e coletivas, contribuindo para a redução das violências e para a cultura da paz” (BRASIL, 2015, p. 23). Transcorridos mais de 10 anos, a Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS) tem sido objeto de análise de diferentes autores. No Brasil, grande parte da produção científica está vinculada aos programas de pós-graduação, principalmente via grupos de pesquisa inscritos no Diretório do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ). Minowa (2016) analisou identificou 102 grupos de pesquisa em promoção da saúde no Brasil em sua dissertação de mestrado. Yamaguchi e colaboradores (2016) realizaram esforço semelhante, produzindo um estudo na literatura científica nacional e internacional sobre a PNPS em duas bases bibliográficas. Ao final, os autores identificaram 88 publicações relacionadas à Política Nacional de Promoção da Saúde. Assim, o debate sobre a avaliação da Política de Promoção da Saúde tem mobilizado 524 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) diferentes instituições, grupos de pesquisa, órgãos governamentais e setores da sociedade civil que avaliam seus resultados, avanços e desafios (MALTA et al 2018). No entanto, como sinalizam Hartz et al. (2014), o uso de abordagens multiestratégicas para avaliar iniciativas e programas de promoção da saúde, tais como a theory based evaluation, (avaliação baseada na teoria), ainda é limitado. Por essa razão, entendemos que essa política carece de avaliações mais consistentes. Uma crítica apresentada por Pinto (2008), em sua dissertação de mestrado, merece destaque. Segundo Pinto (2008), essa política: [...] Mantém a ênfase tradicional na orientação para a modificação dos comportamentos, destacando o aspecto individual, e o faz de forma vertical e autoritária. Tal perspectiva, ao responsabilizar o sujeito, contribui para despolitizar o conceito de saúde (PINTO, 2008, p. 7) Minowa (2016) e Yamaguchi e colaboradores (2016) não identificaram nem analisaram a produção acadêmica brasileira sobre o uso das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) na promoção da saúde. Lintonen, Konu e Seedhouse (2008) fizeram um levantamento em 15 diferentes periódicos internacionais para tratar dessa questão. Eles encontraram 1.352 artigos publicados entre 2003 e 2005. Desses, apenas 56 continham um conteúdo relacionado com o uso das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) na promoção da saúde. Para eles, esse número revela que as pesquisas nesse campo estavam apenas começando. Lintonen, Konu e Seedhouse (2008) agruparam esses 56 títulos em quatro grupos. Cada um deles reúne uma possibilidade de aplicação das TICs na promoção da saúde. Na primeira constam artigos sobre o uso da tecnologia da informação como um “intervention medium” (meio de intervenção). Dos 56 artigos analisados, 20 foram incluídos nesse grupo, entre os quais destacamos aquele publicado por Irvine et al. (2004), que analisa a “efetividade de um programa multimídia interativo para influenciar hábitos alimentares” (IRVINE et al, 2004, p. 290, tradução nossa). No mesmo grupo, há outro artigo que avalia a aceitação de uma campanha para interromper o hábito de fumar pela internet (PARLOVE; COWDERY; HOERAUF, 2004). Foi identificado ainda outro trabalho que avalia um projeto desenvolvido, via computador, incentivando a atividade física (VANDELANOTTE; DE BOURDEAUDHUIJ, 2003). O segundo grupo elaborado por Lintonen, Konu e Seedhouse (2008) reuniu 12 dos 56 títulos analisados. Nesse caso, os artigos abordam o “uso de tecnologia da informação como um ‘foco da pesquisa’” (LINTONEN; KONU; SEEDHOUSE, 2008, p. 563, tradução nossa). Ele inclui trabalhos sobre a avaliação da qualidade ou usabilidade da informação de saúde disponível on-line, como o de Charnock e Shepperd (2004) e Ragon (2004), que exploram as maneiras pelas quais as pessoas utilizam a tecnologia da informação para buscar informações sobre problemas de saúde. Internet e Saúde 525 Dez artigos integram o terceiro grupo criado por Lintonen, Konu e Seedhouse (2008). Ele inclui trabalhos onde a informação tecnológica é vista como um instrumento de pesquisa, seja na busca de dados ou na procura de temas de pesquisa, como foi o caso do artigo de De Vet et al. (2005), que realizaram um estudo utilizando o Delphi. Para Lintonen, Konu e Seedhouse (2008), esse grupo de trabalhos se justifica porque “aplicação de formulários eletrônicos de pesquisa para coletar dados relacionados à saúde na WWW está se tornando popular conforme o acesso à Internet disseminou-se no mundo industrializado” (LINTONEN; KONU; SEEDHOUSE, 2008, p. 563, tradução nossa). A última forma de utilização das Tecnologias de Informação e Comunicação na promoção da saúde está associada, segundo Lintonen, Konu e Seedhouse (2008), aos artigos que abordam o papel das Tecnologias de Informação e Comunicação no desenvolvimento profissional. Nesse grupo os autores encontraram 14 títulos, entre os quais alguns se dedicam à educação a distância, como o de Bernhardt et al. (2003). Além disso, “questões teóricas e conceituais relacionadas ao uso da tecnologia da informação na promoção da saúde foram estudadas e discutidas em vários artigos” (LINTONEN; KONU; SEEDHOUSE, 2008, p. 563, tradução nossa). Lintonen, Konu e Seedhouse (2008) construíram uma figura que resume o trabalho de classificação da produção acadêmica que realizaram sobre utilização das Tecnologias de Informação e Comunicação na promoção da saúde da seguinte forma: Figura 1. O uso de Tecnologia de Informação na promoção da saúde – Análise de artigos de pesquisa publicados Fonte: Lintonen, Konu e Seedhouse (2008). 526 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Neste capítulo será realizado esforço semelhante. Será realizado um levantamento bibliográfico na produção acadêmica brasileira, para que sejam identificados estudos que abordem diferentes possibilidades de aplicação e apropriação das tecnologias de informação e comunicação na promoção da saúde. Esses títulos, uma vez identificados, serão agrupados como fizeram Lintonen, Konu e Seedhouse (2008). 1. Metodologia O levantamento bibliográfico que serviu de base para a elaboração deste capítulo foi realizado na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações3. Esse portal brasileiro, de acesso aberto, tem por objetivo reunir teses de doutorado e dissertações de mestrado defendidas em todo o país e por brasileiros no exterior, em todas as áreas do conhecimento. Esse portal foi concebido e é mantido pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), com apoio da Financiadora de Estudos e Pesquisas (FINEP): empresa pública brasileira vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. A Biblioteca Digital Brasileira de Teses Dissertações foi concebida no âmbito do Programa da Biblioteca Digital Brasileira e se tornou disponível na internet no final de 2002. Ela segue os preceitos da “Iniciativa de Arquivos Abertos” (OAI), adotando assim o modelo baseado em padrões de interoperabilidade. A Biblioteca Digital Brasileira de Teses Dissertações é uma rede distribuída de sistemas de informação que gerenciam teses e dissertações, com texto completo. Sua gestão é possível graças à existência de dois atores principais: os “provedores de dados”, que administram o depósito e publicação, expondo os metadados para harvesting; e os “provedores de serviços”, que fornece serviços de informação com base nos metadados coletados junto aos provedores de dados. Assim, as instituições de ensino e pesquisa atuam como provedores de dados, e o IBICT fornecem serviços de informação sobre esses metadados e os expõem para coleta para outros provedores de serviços. No momento da realização da pesquisa que serviu de base para a realização deste capítulo, estavam disponíveis nesse portal os trabalhos de conclusão de mestrado e doutorado dos seis mil quatrocentos e setenta programas de pós-graduação stricto sensu existentes e reconhecidos pelo Ministério da Educação em todo o território nacional. Assim, a Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações é a mais completa base bibliográfica de teses e dissertações do Brasil. 3 Disponível em: http://bdtd.ibict.br. Internet e Saúde 527 Para realizar o levantamento bibliográfico, combinamos a expressão “promoção da saúde” e “Tecnologias, Informação e Comunicação” (TICs), além de outros termos relacionados, como: “Internet”, “Redes Sociais”, “Web”, “Facebook”. O resultado desse primeiro levantamento foi o seguinte: Quadro 1. Resultado geral do levantamento bibliográfico Redes Termos TICs Internet Tese 4 10 7 5 Dissertação 11 26 14 24 3 78 Total 15 36 21 29 3 104 sociais Web Facebook Total 26 Fonte: Os autores (2018). Lintonen, Konu e Seedhouse (2008), sem revelar as fontes pesquisadas, informam que fizeram a pesquisa em quinze “jornais relevantes entre 2003 e 2005” (LINTONEN; KONU; SEEDHOUSE, 2008, p. 560, tradução nossa). Eles também não informaram as palavras-chave utilizadas na busca, que encontrou 1.352 títulos “56 dos quais continham conteúdo relacionado ao uso de tecnologia de informação no contexto da promoção da saúde” (LINTONEN; KONU; SEEDHOUSE, 2008, p. 560, tradução nossa). Assim, do total da amostra obtida inicialmente, apenas 4,1% foi analisada por esses autores. No nosso caso, foram encontrados 104 títulos. Para fazer nossa segunda seleção, acompanhamos as recomendações feitas por Lintonen, Konu e Seedhouse (2008). Sendo assim, dos estudos inicialmente encontrados, foram descartados os duplicados e, em seguida, lidos os resumos. Chegamos a 24 títulos a serem analisados neste trabalho (Anexo I). Dessa forma, incluímos em nossa análise 23% do total da amostra obtida inicialmente. Trata-se de 6 teses de doutorado e 18 dissertações de mestrado. Alguns comentários merecem devem ser feitos sobre esta coletânea. Dos vinte e quatro estudos, apenas dois foram defendidos em programas de pósgraduação fora do eixo das regiões Sul/Sudeste do país, onde reside a população de maior poder aquisitivo e com maior índice de escolaridade do Brasil. Esses dados não coincidem com os resultados encontrados por Cirani, Campanario e Silva (2015) acerca da evolução da pós-graduação stricto sensu no Brasil entre 1998-2011. Esses autores constataram que houve, em geral, uma tendência à homogeneização regional da pós-graduação. Em nossa amostra apenas dois estudos estão vinculados a instituições privadas de ensino, e a metade deles foi escrito por mulheres. Nesse caso, os dados encontrados em nossa amostra coincidem com o estudo de Cirani, Campanario e Silva (2015), que revelaram que a pós- 528 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) graduação stricto sensu4 no Brasil está concentrada em instituições públicas, vinculadas a governos estaduais ou ao governo federal, além de constatarem que o Brasil passou a integrar o grupo seleto de países que conseguiram alcançar igualdade de gênero no nível mais elevado da formação educacional. Para classificar esses 24 estudos, adotamos um procedimento individual e coletivo. Inicialmente cada um dos autores começou a se familiarizar com os trabalhos, lendo seus resumos. Em seguida, procuramos identificar individualmente a tecnologia de informação e comunicação analisada em cada um dos 24 textos. Finalmente, procuramos inserir os trabalhos na classificação proposta por Lintonen, Konu e Seedhouse (2008). Para concluir esse trabalho de classificação, realizamos uma reunião em que discutimos o resultado da classificação obtido por cada autor até chegarmos a um consenso. Com isso, o procedimento adotado para a realização deste estudo foi semelhante àquele adotado por Lintonen, Konu e Seedhouse (2008), pois: Foi executado em um processo consensual, envolvendo dois pesquisadores, para reduzir o papel de avaliações subjetivas. A identificação e condensação abordaram temas de natureza fatual – isso tornou a obtenção do consenso relativamente simples. O resultado da análise é um padrão de categorias descritivas geradas a partir dos dados. (LINTONEN; KONU; SEEDHOUSE, 2008, p. 562, tradução nossa). Assim, os resultados, apresentados a seguir, são fruto de um consenso entre os autores deste capítulo. 2. Resultados Como mencionamos anteriormente, este capítulo irá verificar se os parâmetros de classificação dos trabalhos acadêmicos utilizados por Lintonen, Konu e Seedhouse (2008) são válidos para a amostra brasileira selecionada. Esses autores criaram “four broad thematic application areas” (LINTONEN; KONU; SEEDHOUSE, 2008, p. 560, tradução nossa), a saber: 4 No Brasil costuma-se dividir os programas de pós-graduação em dois tipos: stricto sensu e lato sensu. A pósgraduação stricto sensu compreende os programas de mestrado (durante dois anos) e doutorado (durante quatro anos), com 360 e 540 horas anuais respectivamente. Para sua conclusão, o candidato deve apresentar uma tese que será defendida perante uma banca de avaliação pública. A pós-graduação lato sensu compreende cursos de especialização e MBA (durante um ano, com no mínimo 360 horas) e as residências na área da saúde (durante dois anos com carga horária mínima de 2.800 e máxima de 3.200 horas anuais). A conclusão desses cursos não está, obrigatoriamente, condicionada a apresentação de um trabalho escrito e defendido perante uma banca de avaliação pública. Internet e Saúde 529 Uso da tecnologia da informação como meio de intervenção, uso da tecnologia da informação como objeto de pesquisa, uso da tecnologia da informação como um instrumento de pesquisa e uso da tecnologia da informação para desenvolvimento profissional. (LINTONEN; KONU; SEEDHOUSE, 2008, p. 560, tradução nossa). A classificação das dissertações e teses que construímos segue, em linhas gerais, aquela sugerida por Lintonen, Konu e Seedhouse (2008), com algumas alterações. Esses autores identificaram quatro grupos temas, nos quais os artigos foram reunidos. No nosso caso, foram identificados apenas três grupos, sendo que o terceiro difere dos mencionados por Lintonen, Konu e Seedhouse (2008). O primeiro grupo reúne os trabalhos que analisaram as Tecnologias de Informação e Comunicação como um meio de intervenção na promoção da saúde. O segundo grupo agrupa artigos em que as TICs foram objeto de pesquisa. O terceiro grupo congrega estudos preocupados com o perfil de busca por informações de saúde na internet e seus impactos no comportamento do cidadão. 2.1. TICs como meio de intervenção na promoção da saúde Oito dos vinte e quatro trabalhos acadêmicos, identificados na amostra selecionada para o presente estudo, utilizaram as Tecnologias de Informação e Comunicação como um meio de intervenção na promoção da saúde. Dois deles apresentaram propostas concretas. Os outros seis, além de apresentar, avaliaram suas propostas. No primeiro grupo incluem-se as dissertações de mestrado de Bevilaqua (2012) – “Televisão digital e saúde: proposta para a produção de conteúdos” – e de Sant’Ana (2012) – “Criação de uma ferramenta hipermídia para a promoção da saúde auditiva em jovens usuários de dispositivos sonoros portáteis individuais”. O trabalho de Bevilaqua (2012) foi defendido no mestrado profissional5 do Programa de Pós-Graduação em Mídia e Tecnologia (PPGMiT) da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), na cidade de Bauru, interior do estado de São Paulo. Esse programa de pós-graduação merece ser destacado nesse caso pela estreita relação que tem com o sentido geral deste livro. Em seu site, esse programa se apresenta como parte do campo da investigação acadêmica relacionado aos “estudos de mídia e de tecnologia, especificamente no desenvolvimento de linguagens, métodos, tecnologia, 5 Mestrado profissional é uma modalidade de pós-graduação stricto sensu voltada para a capacitação de profissionais, nas diversas áreas do conhecimento, mediante o estudo de técnicas, processos, ou temáticas que atendam a alguma demanda do mercado de trabalho. Seu objetivo é contribuir com o setor produtivo nacional, no sentido de agregar um nível maior de competitividade e produtividade e inovação a empresas e organizações, sejam elas públicas ou privadas (BRASIL, 2009). 530 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) processos e produtos disponíveis à sociedade”6. Ele está dividido em duas linhas de pesquisa, “Gestão midiática e tecnológica” e “Tecnologias Midiáticas”, que abordam temas como: uso de mídias inovadoras e seus efeitos; convergência midiática; culturas digitais; indústrias criativas; realidade virtual e realidade aumentada; mundos virtuais interativos; mídia e interatividade; serious games7; e-learning, e-commerce, e-business, egoverno; fotografia; audiovisual; edutretenimento; televisão digital; cidades digitais; gestão de conhecimento; planejamento e gestão para sistemas de mídia e tecnologia; design gráfico de interfaces midiáticas, entre outras. Consultando a Plataforma Lattes8, constatamos que Leire Mara Bevilaqua graduou-se em Comunicação em 2006, concluiu o mestrado em 2012 e o doutorado em 2019 na mesma instituição e atua profissionalmente na TV Universitária da UNESP. Em sua dissertação, Bevilaqua (2012) procurou apresentar uma estrutura para a produção de conteúdos de saúde “fundamentada na possibilidade de participação da audiência e na convergência entre as plataformas digitais” (BEVILAQUA, 2012, p. 68). Segundo a autora, a saúde foi escolhida pelo fato de ser um assunto de grande interesse entre os brasileiros que buscam informação e pela televisão aberta não priorizar a divulgação de hábitos e práticas saudáveis. Seu objetivo foi, portanto, “desenvolver uma estrutura para a produção de conteúdos de saúde que atenda os princípios da promoção, capaz de auxiliar o cidadão a adotar hábitos saudáveis e a reconhecer quando é preciso buscar ajuda médica [...]” (BEVILAQUA, 2012, p. 120). Assim, podemos dizer que esse trabalho atende a um dos temas prioritários da Política Nacional de Promoção da Saúde (2015), a saber: promover a “alimentação adequada e saudável” (BRASIL, 2015, p. 22). Outro exemplo de dissertação que tenha utilizado a informação tecnológica como um meio de intervenção foi defendida pela fonoaudióloga Nicolle Sant'Ana, na Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo, em Bauru, em 2012. Seu objetivo foi criar uma ferramenta hipermídia9 para a promoção da saúde auditiva em jovens usuários de dispositivos sonoros portáteis individuais. A autora parte do seguinte problema: segundo ela, a perda auditiva induzida por níveis de pressão sonora elevada decorre do advento da música amplificada e da crescente popularidade dos dispositivos sonoros portáteis individuais entre crianças e adolescentes. O objetivo de sua dissertação de mestrado foi desenvolver um material hipermídia sobre dispositivos sonoros portáteis individuais e suas consequências na saúde auditiva. Assim, 6 Disponível em: http://www.faac.unesp.br/#!/pos-graduacao/mestrado-e-doutorado/midia-e-tecnologia/. O capítulo 20 aborda o tema dos jogos na saúde. 8 A Plataforma Lattes é uma plataforma virtual, criada e mantida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), na qual estão disponíveis os currículos de todos os pesquisadores, sejam eles estudantes de graduação ou professores de pós-graduação. Qualquer cidadão pode criar gratuitamente seu currículo nessa plataforma, e todos podem recuperar as informações, pois seu acesso é aberto. 9 Hipermídia, segundo Gosciola (2007), é um grupo de meios que permitem simultaneamente acesso a textos, imagens e sons de modo interativo, ao invés de linear, possibilitando que usuários façam links entre os elementos na mídia, controlem a navegação do conteúdo e até mesmo extraiam texto, imagens e sons em uma sequência que se constituirá como uma versão pessoal desenvolvida pelo usuário. 7 Internet e Saúde 531 sua proposta pode ser vista como uma iniciativa no campo da educação e conscientização de crianças e adolescentes. O CD-ROM foi escolhido, por ela, como mídia. Ele foi programado para ser aplicado com fones auriculares para facilitar a demonstração da forma adequada de utilização dos dispositivos sonoros portáteis individuais. Observamos que esses dois trabalhos estão calcados em uma visão de promoção da saúde associada à ideia de hábitos e práticas saudáveis dos indivíduos, e não das coletividades. Ambos se concentram em problemas específicos (alimentação e audição), centrados no modelo biomédico. Como mencionamos anteriormente, nesse primeiro grupo, 6 dos 24 trabalhos acadêmicos utilizaram a informação tecnológica como um meio de intervenção e fizeram, ao mesmo tempo, uma avaliação desta iniciativa. Esse foi o caso de Silva, R. (2009) em sua dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação de Saúde Coletiva da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Silva, R. (2009) construiu e avaliou um modelo de rádio na internet. A rádio Web foi disponibilizada publicamente com 30 áudios. A avaliação contou com a participação de alunos da Universidade Aberta à Terceira Idade10 da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Segundo Silva, R. (2009), a proposta da Rádio UNIFESP não se transformou em um portal com áudios. A rádio manteve uma programação contínua com vinhetas, programas, intervalos contando ainda com a participação de ouvintes ao vivo. Silva, R. (2009) conclui seu trabalho afirmando que: O modelo da rádio web proposto destaca-se como um protótipo aberto a todos os aprimoramentos possíveis, que devem ser constantes, levando em consideração a experiência dos profissionais de comunicação e dos profissionais de saúde envolvidos e os avanços tecnológicos que surgirão. (SILVA, R., 2009, p. 81). A avaliação realizada pela autora indica que essa iniciativa detém altos índices de credibilidade, clareza, utilidade e usabilidade. Duas outras iniciativas de produção e avaliação de Tecnologias de Informação e Comunicação para a promoção da saúde foram voltadas para os idosos11. A primeira foi desenvolvida por Arakawa (2015) em sua tese de doutorado, defendida na Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo, em Bauru. Ela criou e avaliou um website com informações sobre a Doença de Alzheimer. Para elaborar esse website, Arakawa (2015) coletou informações em livros e artigos científicos. Ela 10 As Universidades da Terceira Idade existem em diferentes partes do mundo. No Brasil elas começaram a ser organizadas desde a década de 1970. Elas são pautadas por ações interdisciplinares comprometidas com a inserção do idoso como cidadão ativo na sociedade. Elas visam contribuir para a promoção da saúde física, mental e social das pessoas idosas, lançando mão das possibilidades existentes nas universidades. No Brasil, existem mais de 150 programas dessa natureza (VERAS, 2012). 11 O capítulo 7 discute Tecnologias de Informação e Comunicação e envelhecimento. 532 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) preocupou-se também em tornar a linguagem utilizada mais simples, clara e com conteúdo conciso. O grupo de avaliadores foi composto por 16 idosos, 12 cuidadores de idosos e 28 fonoaudiólogos. O conteúdo do website foi avaliado como excelente e atingiu o percentil correspondente a fácil no índice de legibilidade Flesch12. A segunda foi produzida por Moreira (2016). Ele desenvolveu seu trabalho de dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Informática Aplicada (PPGIA) da Universidade de Fortaleza, no Ceará, no Nordeste do Brasil. Esse programa de pós-graduação atua desde 1999 na formação de profissionais para pesquisa, ensino, desenvolvimento e aplicação de novas tecnologias na área de informática. Seu objetivo é incentivar o desenvolvimento de pesquisas em informática que busquem soluções para problemas atuais e importantes da sociedade, envolvendo órgãos governamentais, empresas, além de parcerias com outras universidades e institutos de pesquisa, a fim de contribuir para o desenvolvimento científico e tecnológico da região do Ceará e Nordeste. Moreira (2016) desenvolve em sua dissertação diferentes Tecnologias de Informação e Comunicação para a promoção da saúde, a saber: um aplicativo para móvel, uma aplicação Web, uma cartilha interativa e um ambiente virtual. Essas iniciativas estavam voltadas para promoção e prevenção da saúde bucal dos idosos. Para validação das tecnologias propostas, quatro odontólogos utilizaram e avaliaram as ferramentas com o objetivo de identificar suas vantagens e desvantagens. Moreira (2016) concluiu seu trabalho afirmando que as tecnologias desenvolvidas foram capazes de conscientizar e orientar a população idosa sobre os procedimentos e técnicas adequadas para promoção e prevenção da saúde bucal. O interesse pela população idosa, presente nesses dois trabalhos, tem uma justificativa plausível. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) publicou, em 2016, uma síntese de indicadores sociais e concluiu que, entre 1950 e 2000, a proporção de idosos na população brasileira estava abaixo de 10%. Esse percentual era semelhante ao encontrado nos países menos desenvolvidos. A partir de 2010, esse indicador aproximase daquele projetado em países desenvolvidos. Em 2070, a estimativa é que a proporção da população idosa brasileira seja de 35%: indicador superior ao previsto para o conjunto dos países desenvolvidos (IBGE, 2016). Os três próximos trabalhos acadêmicos que produziram e, ao mesmo tempo, avaliaram Tecnologias de Informação e Comunicação para a promoção da saúde, estão voltadas para públicos específicos, a saber: profissionais da beleza (VIEIRA JUNIOR, 2014), promotores de saúde (SILVA, A., 2009) e pessoas em sofrimento psíquico (BITTENCOURT, 2012). 12 O conceito de índice de legibilidade foi originalmente proposto para o inglês por Rudolf Flesch e busca uma correlação entre tamanhos médios de palavras e sentenças e a facilidade de leitura. A adaptação para o português do índice proposto por Flesch foi realizada por uma equipe de pesquisadores da Universidade de São Paulo (São Carlos), responsável também pelo desenvolvimento do Programa Redação Língua Portuguesa. Mais informações em: http://www.niee.ufrgs.br/eventos/SBC/2000/pdf/semish/semi001.pdf Internet e Saúde 533 Vieira Junior (2014), em sua tese de doutorado, defendida na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, apresentou e avaliou um curso para o treinamento dos profissionais que atuam nos salões de beleza usando a “Teleducação Interativa”13. Seu projeto de pesquisa partiu do seguinte problema: Muitas doenças podem ser transmitidas quando não se seguem os hábitos adequados de higienização das mãos e esterilização de materiais em atividades que podem gerar ferimentos ou traumas na pele, como ocorrem nos salões de beleza [...] incluindo as doenças sexualmente transmissíveis, como as verrugas, as hepatites B e C, e o HIV. (VIEIRA JUNIOR, 2014, p. XIX). O curso foi concebido a partir de uma matriz de objetivos e competências e inserido numa plataforma educacional baseada no Moodle, com ambientes interativos de aprendizagem e ferramenta de gestão educacional. Cinquenta e cinco profissionais da beleza se matricularam no curso, sendo 46 do sexo feminino e 9 do sexo masculino. Para avaliar o conhecimento dos profissionais da beleza, foi criado um simulador de situações práticas baseado em situações cotidianas que podem gerar a transmissão de doenças. O sucesso dessa experiência levou a Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da Universidade de São Paulo a transformá-lo em um curso a distância. O outro trabalho esteve voltado para promotores de saúde. Ele foi desenvolvido por Ana Cláudia Silva (SILVA, A., 2009) em sua tese de doutorado intitulada “Educação apoiada em tecnologias: desenvolvimento e avaliação de recursos didáticos para a formação de promotores de saúde”, defendida na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Silva, A. (2009), construiu e avaliou duas TICs: um blog14 e um grupo de emails – ambos voltados para a formação de promotores de saúde. Sua proposta de trabalho está baseada na ideia de que a “adição de recursos on-line em cursos presenciais pode ser visto como um potencial facilitador da educação permanente de profissionais de saúde, devido à sua capacidade interativa, assíncrona e sem barreiras geográficas” (SILVA, A. 2009, p. VIII). O trabalho de avaliação de sua proposta envolveu 211 alunos dos cursos de atualização e especialização em promoção da saúde, nas edições de 2006, 2007 e 2008. Ela concluiu afirmando que: Embora a utilização do blog e grupo de e-mails tenha aumentado durante o estudo, a inclusão progressiva das NTICs no ensino da promoção da saúde não alterou significativamente o ganho de conhecimento e de 13 De acordo com Vieira Junior (2014), a teleducação ou educação a distância é uma maneira de educar sem que haja a obrigatoriedade de presença física do educando em 100% do curso. Essa prática é anterior ao advento da internet. A “teleducação Interativa” é a união criteriosa dos recursos de informática e telecomunicação baseados em modelos educacionais que estimulem a participação constante de educandos e educadores através de meios de comunicação que favoreçam que o conhecimento seja compartilhado (WEN, 2003). 14 Disponível em: http://promosaude2007.blogspot.com.br/. 534 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) habilidades, e tampouco desencadeou mudanças efetivas nos comportamentos profissionais ou pessoais dos alunos. (SILVA, A. 2009, p. X). Essa conclusão nos parece importante, pois enfatiza a ideia de que as Tecnologias de Informação e Comunicação não promovem obrigatoriamente alterações nos padrões de comportamento nos indivíduos. O terceiro trabalho foi apresentado por Bittencourt (2012). Ela revelou que a participação de pessoas em sofrimento psíquico na elaboração de um blog pode promover alterações no comportamento. Bittencourt (2012) defendeu sua dissertação de mestrado na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Alagoas. Ela apresentou e analisou uma experiência criativa de promover a saúde mental, utilizando as Tecnologias de Informação e Comunicação. Bittencourt (2012) reuniu quatro cidadãos em sofrimento psíquico, acompanhados pelo Centro de Atenção Psicossocial15 (CAPS), para que eles construíssem um blog. Essa atividade foi desenvolvida ao longo de seis meses em 12 encontros presenciais. Bittencourt (2012) concluiu seu estudo afirmando que: O exercício da produção proporcionou o reconhecimento das suas potencialidades, por eles mesmos, por seus familiares e pelos profissionais da equipe do CAPS. O blog se constituiu em um espaço de expressão sobre o que era significativo para eles, como também para demonstrarem os seus sentimentos quanto ao desejo de mudança no comportamento e atitudes da sociedade, que os vêem com medo, preconceito e discriminação. As atividades proporcionaram uma aprendizagem compartilhada, troca de experiências, socialização, interação, companheirismo, satisfação e o fortalecimento dos laços entre todos os participantes (BITTENCOURT, 2012, p. 91). Os estudos que analisaram o uso das Tecnologias de Informação e Comunicação como um meio de intervenção estão, portanto, distantes dos primados da promoção da saúde. Não foi identificado, nesse caso, um só estudo que avalie a contribuição das TICs para o fim da miséria e o desemprego, como prega a Declaração de Shanghai (WHO, 2016). 2.2. TICs na pesquisa em promoção da saúde 15 Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são órgãos vinculados às secretarias municipais de saúde do Brasil que realizam atendimento gratuito a usuários com transtornos mentais graves e persistentes e pessoas com sofrimento e/ou transtornos mentais em geral, sem excluir os transtornos decorrentes do uso de crack, álcool ou outras drogas. Disponível em: https://www.saude.gov.br/noticias/693-acoes-e-programas/41146centro-de-atencao-psicossocial-caps. Internet e Saúde 535 O segundo grupo reúne artigos que utilizam as TICs como objeto de pesquisa na área da promoção da saúde. Nesse caso estão reunidos estudos que avaliam a qualidade de ambientes virtuais ou de ferramentas digitais disponíveis na Web. Identificamos 9 trabalhos com esse objetivo. Um avalia a qualidade de vídeos; cinco preocuparam-se com portais, bibliotecas virtuais e sites; dois, com games; e um realiza uma revisão da literatura sobre programas educacionais de promoção da saúde auditiva para crianças e adolescentes. Vejamos com mais detalhe cada um deles. Moraes (2004) avalia, em sua tese de doutorado, a qualidade dos vídeos finalistas da III Mostra Nacional de Vídeos em Saúde, promovida pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e realizada no Rio de Janeiro, em 1998 – uma época em que a internet não estava ainda difundida como está hoje em dia graças à popularização dos smartphones. Para autora, a ação informacional na prevenção de doenças e na promoção da saúde pode desencadear mudança comportamental no indivíduo. Ela identificou nesses vídeos diferentes estratégias informacionais, definidas como discursivas, comunicacionais, cognitivas, socioculturais, educacionais e de poder. A autora conclui seu trabalho recomendando o uso simultâneo de mais de uma das estratégias na produção de futuros vídeos. Cinco estudos preocuparam-se com a avaliação da qualidade da informação disponível em portais, bibliotecas virtuais e sites de saúde16. Um deles foi desenvolvido por Lemos (2009) em sua dissertação de mestrado, defendida no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Metodista de São Paulo. Ela analisa o conteúdo latente (insinuado), a linguagem manifesta, a apresentação do layout e alguns tópicos de avaliação da usabilidade nos Portais Nacionais das Sociedades Científicas “Cardiol” e “Diabetes”. A autora conclui seu trabalho afirmando que os “exemplares analisados indicam que nos enunciados, compreendidos como unidades reais da comunicação discursiva, os editores falam pelo especialista – caracterizando, assim, também, como gênero científico” (LEMOS, 2009, p. 11). O outro foi apresentado por Berbel (2012) no Programa de Pós-Graduação Ciência Tecnologia e Sociedade (PPGCTS) da Universidade Federal de São Carlos (São Paulo). Em seu trabalho, intitulado “A comunicação da ciência nas campanhas de saúde online: um estudo de caso do Portal da Saúde”, Berbel (2012) investigou como as campanhas de alimentação saudável, vacinação e medicamentos17 dialogam com o público. Seu objeto de análise foi o Portal da Saúde do Ministério da Saúde. Berbel (2012) conclui seu estudo afirmando que “apesar dos recursos disponíveis, as campanhas on-line ainda preservam um modelo que privilegia o enquadramento da autoridade médica ou científica, a prestação de informações e a modelagem de comportamentos” (BERBEL, 2012, p. 6). 16 17 O capítulo 9 discute a avaliação da qualidade da informação de sites de saúde. O capítulo 12 aborda a relação entre medicamentos e Internet. 536 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) O terceiro estudo que se mostrou preocupado com a avaliação da qualidade da informação disponível on-line na promoção da saúde foi realizado por Lourenço (2013). Sua dissertação de mestrado foi defendida no o Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação (PPGCI), organizado pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT/UFRJ) e pela Escola de Comunicação (ECO) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Esse programa tem duas linhas de pesquisa. Uma enfatiza a relação entre comunicação, organização e gestão da informação e do conhecimento, e outra dedica-se às questões relacionadas com as configurações socioculturais, políticas e econômicas da informação. Lourenço (2013) procurou em seu trabalho conhecer o potencial de interatividade comunicacional entre uma biblioteca virtual de saúde e os usuários leigos de baixa renda. Conclui sua dissertação apontando “dificuldades, barreiras e expectativas dos usuários em relação às buscas efetuadas na biblioteca virtual” (LOURENÇO, 2013, p. 6). O quarto trabalho desse segundo grupo foi apresentado por Picolini (2013) em sua dissertação de mestrado, defendida na Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo, em Bauru. Ela utilizou a ferramenta de ensino cybertutor para mensurar a efetividade do programa de capacitação sobre síndromes genéticas disponível no site do “Programa Jovem Doutor”18. O estudo foi realizado em duas escolas da rede pública e outra da rede privada de ensino, envolvendo 21 alunos, de ambos os sexos, na faixa etária entre 13 a 14 anos. Os resultados indicam altos índices de satisfação dos participantes em relação à “Teleducação Interativa”. Como anunciamos anteriormente, dois estudos dedicaram-se a fazer avaliação de games disponíveis na internet. Um foi apresentado por Finco (2010), e outro por Vasconcellos (2013). Finco (2010) defendeu sua dissertação no Programa de Pós-Graduação em Ciências do Movimento Humano, da Escola de Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Seu estudo não parte de um problema, mas de uma constatação. Para Finco (2010), os vídeo games são “uma das mais fortes correntes da indústria do entretenimento” (FINCO, 2010, p. 8). Sua presença é sentida na Educação Física, aonde alguns “novos artefatos digitais” (FINCO, 2010, p. 8) possibilitam a interação corporal, entre os quais se destaca o vídeo game Wii Fit. Sua dissertação avalia como os usuários compartilham os preceitos de vida saudável veiculados por esse vídeo game. Finco (2010) conclui seu estudo afirmando que “o jogo Wii Fit não apenas promove a prática de atividades físicas regulares, mas também permite conscientizar seus usuários quanto à melhoria da qualidade de vida” (FINCO, 2010, p. 8). Vasconcellos (2013) investigou, em sua tese de doutorado, o potencial de Massively Multiplayer On-line Roleplaying Games (MMORPGs) para a Comunicação e Saúde, sob o enfoque da promoção da saúde. Segundo Vasconcellos (2013), as mídias tradicionais (impressos, rádio, televisão): 18 Disponível em: http://jovemdoutor.org.br. Internet e Saúde 537 [...] Apresentam limitações advindas de sua matriz comunicacional, que produz uma prática caracterizada por um enfoque normativo e prescritivo e pela centralização da produção, com a decorrência de não atender a diversidade e as especificidades dos múltiplos contextos culturais e sanitários de um país como o Brasil, além de estabelecer um padrão comunicativo unidirecional, sem espaço para interlocução com os cidadãos. (VASCONCELLOS, 2013, p. 5). Ele concluiu seu estudo, defendido no Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz, confirmando o potencial dos Massively Multiplayer On-line Roleplaying Games para a promoção da saúde. O trabalho de análise bibliográfica foi realizado por Daniel dos Santos (2012), em sua dissertação de mestrado, sobre programas educacionais de promoção da saúde auditiva para crianças e adolescentes. Seu estudo incluiu ensaios clínicos, revisões de literatura, resumos, monografias, dissertações, teses, livros e websites. Para tanto, realizou uma busca em bases eletrônicas de dados, tais como o Índice da literatura científica e técnica da América Latina e Caribe - LILACS19, PUBMED20 – motor de busca de livre acesso à base de dados MEDLINE de citações e resumos de artigos de investigação em biomedicina – e a Scientific Electronic Library Online (SciELO)21 - uma biblioteca eletrônica que abrange uma coleção selecionada de periódicos científicos brasileiros. Ele concluiu seu estudo afirmando: “Alguns programas aperfeiçoaram as técnicas e estruturas de outros. Infelizmente, o que falta são mais estudos publicados de efetividade e eficácia dos programas revistos” (SANTOS, 2012, p. VIII). Patrick Ribeiro (2013) defendeu sua dissertação de mestrado no Programa de PósGraduação em Ciência da Informação, do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) e da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Seu trabalho buscou verificar a aplicação das Tecnologias de Comunicação e Informação (TICs) na área da saúde, dando ênfase às esferas da Vigilância em Saúde e da promoção da saúde. Trata-se de outro estudo teórico que utilizou a método de revisão sistemática para conhecer a produção de artigos sobre o tema, para verificar como era abordada a questão da integração de sistemas de informação. Os estudos nesse segundo grupo têm um caráter essencialmente teórico. Eles não avaliaram as políticas públicas que tenham gerado bem-estar nem o uso das tecnologias digitais que aumentem o controle dos cidadãos sobre sua própria saúde, como pregam os signatários da Declaração de Shanghai (WHO, 2016). 19 Disponível em: http://lilacs.bvsalud.org/. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/. 21 Disponível em: https://scielo.org/. 20 538 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) 2.3. O impacto das TICs no comportamento do cidadão O terceiro grupo de estudos identificados no levantamento realizado não encontrou similar no trabalho de Lintonen, Konu e Seedhouse (2008). Trata-se de estudos preocupados com o perfil de busca por informações de saúde na internet e seus impactos no comportamento do cidadão. Seis trabalhos foram incluídos nesse grupo. Um deles foi apresentado por Moretti (2012) em sua tese de doutorado, defendida na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Moretti (2012) procurou conhecer o perfil do usuário e as tendências de busca por informações de saúde na internet. Sua pesquisa foi feita com 1.828 indivíduos, que responderam a um questionário eletrônico disponibilizado em um portal de saúde de grande acesso. Ele verificou o predomínio de usuárias do sexo feminino que buscam informações para própria saúde (90%), consideram a internet uma de suas principais fontes de informação em saúde (86%) e passam de 5 a 35 horas na Web por semana (62%). Moretti (2012) concluiu seu estudo constatando que a “Internet tem se mostrado uma fonte de informação em Saúde de grande relevância para população” (MORETTI, 2012, p. XIV). Para ele, “a certificação de sites é uma estratégia a ser considerada, na perspectiva de melhoria da qualidade das informações e promoção da Saúde Pública” (MORETTI, 2012, p. XIV). Giacomini (2011) teve um interesse mais específico. Ele analisou em sua dissertação de mestrado, as interações entre as pessoas que vivem com HIV/AIDS (PVHA) em comunidades virtuais na internet. Se objetivo foi compreender em que medida a interação nessas comunidades pode configurá-las como espaços virtuais de mútua ajuda, no âmbito coletivo, e pode promover comportamentos de auto-cuidado e práticas de promoção da saúde no âmbito individual. Giacomini (2011) conclui seu estudo afirmando que: Foi observado o potencial das comunidades virtuais enquanto espaços de promoção da saúde e de incentivo ao autocuidado, fundamentais à adesão ao acompanhamento médico e ao tratamento antirretroviral das PVHA em seguimento nos serviços de atenção e cuidados à saúde. (GIACOMINI, 2011, p. 6). O tema do cuidado com o idoso voltou a aparecer em nossa amostra. Dessa vez, nos trabalhos de Carleto (2013) e Miranda (2009). Carleto (2013) defendeu sua dissertação de mestrado no Programa de pósGraduação em Bioengenharia, da Universidade de São Paulo (USP), na cidade de São Carlos, interior do estado. O objetivo de seu estudo foi verificar como o acesso às Tecnologias de Informação e Comunicação afeta as relações geracionais de idosos. A amostra de conveniência foi composta por 160 sujeitos, especificamente 80 idosos Internet e Saúde 539 participantes de programas de inclusão digital, 40 idosos não participantes de programas de inclusão digital e 40 familiares das cidades de Uberaba (Minas Gerais) e Ribeirão Preto (São Paulo). Ele concluiu afirmando que as TICs exercem uma influência positiva nas relações intergeracionais dos idosos. No entender de Carleto (2013), [...] o domínio destes recursos tecnológicos no cotidiano tende a favorecer o sentimento de autoeficácia dos sujeitos e consequentemente a sua autoestima, ampliando a participação destes nesta sociedade tecnológica e permitindo novos papéis sociais e a experiência de que continua fazendo parte da sociedade. (CARLETO, 2013, p. 7). Miranda (2009) desenvolveu sua dissertação de mestrado no Programa de Pósgraduação em Educação Física, da Universidade Federal de Santa Catarina. Ela investigou a contribuição do site “Saber+Saúde”22 na promoção de hábitos de vida saudáveis para a população idosa. Sua pesquisa foi realizada durante quatro meses e envolveu quarenta cidadãos (22 mulheres e 18 homens) com mais de 60 anos, usuários da internet que não estivessem praticando atividade física. Grande parte da amostra estudada afirmou utilizar a internet de 4 a 7 vezes por semana, com duração de 21 minutos a uma hora. Miranda (2009) concluiu seu estudo afirmando que “um site com objetivos de informar e intervir sobre atividade física e saúde, personalizado para a população idosa, pode ser efetivo e obter bons resultados” (MIRANDA, 2009, p. vii). Assim, esses dois trabalhos não avaliam o site e sim seu impacto na promoção de hábitos de vida saudáveis para a população idosa. Por isso foram reunidos nesse terceiro grupo de trabalhos. Outro assunto recorrente foi o estilo de vida saudável. Dessa vez, esse tema foi identificado na tese de doutorado defendida na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) por Freitas (2012). Seu objetivo foi descrever as características sociais, econômicas e epidemiológicas e os estilos de vida dos cadastrados no “Portal Estilo de Vida Saudável”. Pouco mais de 10% dos cadastrados nesse Portal participaram desse estudo transversal. Ela concluiu seu estudo afirmando que “[...] embora ainda sejam limitadas as evidências de que o uso da Internet possa influir na educação nutricional esta é uma ferramenta inovadora e promissora para motivar as pessoas a desenvolverem vidas mais saudáveis” (FREITAS, 2012, p. 9) A tese de doutorado de Fraga (2005) foi transformada em livro, publicado no ano seguinte (FRAGA, 2006). Seu trabalho discute a estratégia impetrada pelas Tecnologias de Informação e Comunicação visando persuadir os sujeitos sobre a importância da realização de trinta minutos diários de atividades físicas moderadas. Ele analisa como a promoção de atividades físicas integra diferentes estratégias de governo dos corpos, 22 De acordo com o descrito na dissertação, esse foi um site experimental com acesso limitado aos participantes da pesquisa durante 120 dias, tendo sido iniciado em 1 de setembro de 2008 e finalizado em 1 de janeiro de 2009. 540 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) possibilitando estruturar no seu entorno uma rede de disseminação de informações que toma a vida ativa como um objeto de valor pleno na educação dos corpos, na regulação da saúde e no governo de si. Segundo Goellner (2009), que fez a resenha desse livro, Fraga Recorre à genealogia foucaultiana para analisar como se dá a construção do que denomina ‘maquinaria do agito’ e as formulações de Deleuze sobre a sociedade de controle para compreender como, hoje, os corpos estão sujeitos a uma rede de técnicas, procedimentos e saberes que regulam os estilos de vida (GOELLNER, 2009, p. 673). Finalmente, Caran (2015) preocupou-se com os deficientes visuais. Em sua dissertação de mestrado, ele apresenta sua pesquisa sobre fatores facilitam e dificultam o acesso à informação pelo deficiente visual. A realização desse trabalho contou com a participação dos integrantes do grupo “Low Vision” do Facebook. Caran (2015) conclui afirmando que “os resultados gerais da pesquisa apontaram para um conjunto variado de fatores intervenientes no acesso à informação, de caráter multidisciplinar, sobrepostos e interrelacionados” (CARAN, 2015, p. 9). 3. Considerações Finais O artigo de Lintonen, Konu e Seedhouse (2008), que nos serviu de referência, baseou-se na análise de artigos publicados em jornais acadêmicos, submetidos à avaliação entre pares. A base empírica do presente estudo foram as dissertações e teses publicadas no Brasil. Essa é uma primeira distinção entre os dois estudos. A esse respeito, cabe destacar outra diferença entre o nosso trabalho e o de Lintonen, Konu e Seedhouse (2008) em relação à construção da amostra. Eles não deixaram claro quais foram os “15 periódicos relevantes” (LINTONEN; KONU; SEEDHOUSE, 2008, p. 560) selecionados, nem as razões que os levaram a escolher esses periódicos especificamente. Não ficou clara também qual foi a rota de busca adotada. No nosso, as bases bibliográficas consultada, a rota de busca e seus resultados e a relação das dissertações e teses analisadas foram explicitados. Como no estudo Lintonen, Konu e Seedhouse (2008), as conclusões apresentadas por nosso estudo são provisórias, pois a amostra é pouco representativa. Conforme afirmam Lintonen, Konu e Seedhouse (2008), “de qualquer modo, é provável que alguns artigos relevantes tenham sido ignorados e, como resultado, a extensão do uso da tecnologia da informação observada é uma subestimativa” (LINTONEN; KONU; SEEDHOUSE, 2008, p. 563). Embora provisórias, algumas considerações finais merecem ser feitas. Internet e Saúde 541 Em primeiro lugar, cabe salientar que o crescimento exponencial das Tecnologias de Informação e Comunicação na vida dos cidadãos não se refletiu, nos dois casos, no número de trabalhos que associam essa inovação à promoção da saúde. Assim como observaram Lintonen, Konu e Seedhouse (2008), poucos foram os estudos críticos. No nosso caso, cabe destacar o trabalho de Fraga (2005) como uma exceção. Ele revela que o primado dos “estilos de vida” tão recorrente na literatura sobre promoção da saúde pode ser analisado como uma estratégia de passagem da “sociedade disciplinar”, presente no pensamento de Foucault (1975), para a “sociedade do controle” de Deleuze (1990)23. Lintonen, Konu e Seedhouse (2008) agruparam os 56 títulos encontrados no levantamento bibliográfico em quatro grupos (Figura 1). Cada um deles reúne uma possibilidade de aplicação das TICs na promoção da saúde. Nosso trabalho aproveitou dois desses grupos e sugere a criação de um terceiro, voltado para a avaliação dos usuários em relação ao impacto que a Tecnologias da Informação e Comunicação têm na promoção da saúde do cidadão, conforme é apresentado na Figura 2: Figura 2. O uso das TICs na promoção da saúde - Análise da produção acadêmica brasileira. Fonte: Os autores (2018). 23 A influência das contribuições de Foucault nos campos da medicina social e da saúde pública no Brasil é muito grande. Para maiores detalhes, consultar Rodrigues (2016). 542 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Para concluir este capítulo, um último comentário merece destaque. Boa parte dos estudos brasileiros seguiu uma lógica biomédica e se afastou dos parâmetros definidos pelas conferências internacionais de promoção da saúde. Alguns estudos estiveram focados em patologias específicas, e outros, em grupos etários particulares. Os cinco itens presentes na Carta de Ottawa (WHO, 1986) não puderam ser observados nos estudos encontrados. Não identificamos um só estudo que estivesse preocupado com a construção de uma política pública que ultrapasse os limites institucionais, ou de um aplicativo que valorizasse a importância da ação comunitária ou a construção de um ambiente saudável. Não observamos igualmente trabalhos que procurassem enfatizar a reorientação dos serviços de saúde, incluindo a dimensão social, política e ambiental. Nesse sentido, nosso estudo chegou a conclusões semelhantes ao Lintonen, Konu e Seedhouse (2008), na medida em que identificou trabalhos cujo “o principal uso parece ter sido apoiar intervenções voltadas para pessoas individuais” (LINTONEN; KONU; SEEDHOUSE, 2008, p. 564, tradução nossa) Em larga medida, os estudos brasileiros estão apegados a uma compreensão individualista do estilo de vida como responsável pela condição de saúde e doença do cidadão. Poucos destacam a importância dos ambientes e das políticas sociais para que indivíduo e coletividades adotem um estilode vida saudável. Além disso, o contexto em que as ações de saúde são realizadas, com o apoio ou a mediação das Tecnologias de Informação e Comunicação, não foi valorizado suficientemente. Assim, identificamos um desafio para a produção acadêmica brasileira preocupada em associar as Tecnologias de Informação e Comunicação à promoção da saúde. Trata-se da inclusão na agenda de pesquisa dos aspectos exaustivamente apresentados nas inúmeras reuniões internacionais realizadas a respeito, como aquele que prega que a teoria e a prática da promoção da saúde estejam asssociadas à ideia de “condições de vida e trabalho que são seguras, estimulantes e agradáveis” (WHO, 1986, p. 3, tradução nossa). Referências ALLEYNE, G. The director’s message. In: PAN AMERICAN HEALTH ORGANIZATION. Annual Report of the Director. Washington, DC: Pan American Health Organization, 2001. ARAKAWA, A. Portal dos idosos: desenvolvimento e avaliação de um website com informações sobre a doença de Alzheimer e suas consequências para a comunicação. 2015. Tese (Doutorado) – Faculdade de Odontologia de Bauru, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. Internet e Saúde 543 BARROS, M. B. Social inequality in health: revisiting moments and trends in 50 years of publication of RSP. Rev. Saúde Pública, v. 51, n. 17, 2017. BERBEL, D. 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Portal dos idosos: desenvolvimento e avaliação de um website com informações sobre a doença de Alzheimer e suas consequências para a comunicação. 2015. Tese (Doutorado) – Faculdade de Odontologia de Bauru, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. 2. BERBEL, D. A comunicação da ciência nas campanhas de saúde online: um estudo de caso do Portal da Saúde. 2012. Dissertação (Mestrado em Multidisciplinar) – Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2012. 3. BEVILAQUA, L. Televisão digital e saúde: proposta para a produção de conteúdos. 2012. Dissertação (Mestrado em Televisão Digital) – Faculdade de Arquitetura, Universidade Estadual Paulista, Bauru, 2012. 4. BITTENCOURT, I. G. S. O processo de habilitação psicossocial de pessoas em sofrimento psíquico na interface com produção de blog. 2012. Dissertação (Mestrado em Educação Brasileira) – Centro de Educação, Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2012. 5. CARAN, G. O acesso à informação pelo deficiente visual e suas implicações para a Promoção da Saúde. 2015. Dissertação (Mestrado) – Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. 6. CARLETO, D. Relações intergeracionais de idosos mediadas pelas tecnologias de informação e comunicação. 2013. Dissertação (Mestrado) – Escola de Engenharia de São Carlos; Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto; Instituto de Química de São Carlos, Universidade de São Paulo, São Carlos, 2013. 7. FINCO, M. D. Wii fit: um videogame do estilo de vida saudável. 2010. Dissertação (Mestrado em Ciências do Movimento Humano) – Escola de Educação Física, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010. 8. FRAGA, A. B. Exercício da informação: governo dos corpos no mercado da vida ativa. 2005. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2005. 9. FREITAS, A. H. P. 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Jogos digitais podem apresentar o conteúdo de saúde em formatos atraentes, fomentar uma instância ativa na busca desse conteúdo, e até mesmo ampliar a participação social da população. Para debater este tema, analisamos perspectivas teóricas da produção de sentidos em jogos, como os conceitos de jogos sérios, retórica procedimental e jogos como participação. Nossos métodos de pesquisa incluíram entrevistas com 22 jogadores de um jogo digital popular on-line. Elas foram realizadas com o intuito de extrair conclusões sobre o potencial dos jogos digitais para comunicar temas de saúde e ilustrar questões da saúde coletiva. Palavras-chave: Comunicação em Saúde; Jogos de Vídeo; Jogos e Brinquedos; Participação da Comunidade. Referência: VASCONCELLOS, M. S.; CARVALHO, F. G. Jogos e comunicação em saúde: o ponto de vista dos jogadores brasileiros. In: PEREIRA NETO, A.; FLYNN, M. (orgs.). Internet e saúde no Brasil: desafios e tendências. 1 ed. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2020. p. 551-573. * Polo de Jogos e Saúde, Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (ICICT), Fundação Oswaldo Cruz, Brasil. E-mail: [email protected]. Internet e Saúde 553 Introdução1 A comunicação em saúde é um elemento importante para as políticas de saúde pública e essencial para o acesso democrático aos serviços de saúde e à melhoria da qualidade de vida da população. O Sistema Único de Saúde, (SUS), um dos maiores sistemas de saúde do mundo, gerencia a saúde pública e a maioria da comunicação em saúde no Brasil, baseado no princípio de que a saúde é um direito de todos e um dever do estado. O SUS adota um conceito expandido de saúde, englobando não apenas o bem-estar físico e mental, mas todos os fatores sociais, econômicos, culturais, étnicos, psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e seus fatores de risco na população (BUSS; PELLEGRINI FILHO, 2007). O SUS busca prover assistência preventiva, curativa e a promoção da saúde de modo abrangente e universal, fornecendo serviços de saúde para toda a população e promovendo a participação da comunidade em todos os níveis administrativos (VICTORA et al., 2011). Para atingir esse fim, o Ministério da Saúde dá muita importância às estratégias de comunicação, utilizando mídia impressa, grandes campanhas de saúde no rádio e na televisão. Ultimamente tem sido utilizado também sites e mídias sociais para fornecer à população informações sobre prevenção de doenças, epidemias e diretrizes para uma melhor qualidade de vida (VICTORA et al., 2011). Entretanto, tais iniciativas, particularmente as grandes campanhas de comunicação em saúde, frequentemente falham devido à sua produção centralizada e à incapacidade de atender a grupos específicos. Além disso, elas usam um estilo impessoal, desprovido de referências culturais, unidirecional e focado em difundir normas e mudar comportamentos das pessoas. Tais características parecem inadequadas em um país tão diversificado quanto o Brasil, pois alienam diversos grupos da sociedade, limitando a eficácia dessas campanhas (ARAÚJO; CARDOSO, 2007; ARAÚJO; CARDOSO; MURTINHO, 2009). As novas mídias têm sido usadas em iniciativas de comunicação em saúde pública, como sites para campanhas de vacinação, perfis de Facebook para os setores de saúde pública e contas especializadas no Twitter que abordam temas importantes de saúde, como AIDS, dengue e zika. Porém, elas ainda reproduzem práticas antigas, limitando-se a espalhar mensagens ao público e oferecendo poucas oportunidades para o diálogo com os cidadãos. Afinal essa abordagem de comunicação em saúde pública reduz o incrível potencial da internet ao se tornar apenas um quadro de avisos eletrônico (ARAÚJO; CARDOSO; MURTINHO, 2009; VASCONCELLOS, 2013). Essa tendência é claramente visível em muitas mensagens de saúde pública para a prevenção da AIDS entre os jovens. Há muitas informações disponíveis para adolescentes, 1 As conclusões apresentadas neste capítulo foram originalmente apresentadas como um artigo na Third International Conference on Serious Games and Applications for Health — SeGAH 2014, ocorrida no Rio de Janeiro, Brasil. Este capítulo atualiza e expande aquele trabalho. 554 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) mas o número de novos casos de HIV continua a crescer. Em 2010, dados do Ministério da Saúde mostraram que, embora 97% da população entre 15 e 24 anos reconhecesse a importância da profilaxia, apenas 60,9% dos jovens os utilizavam na primeira relação sexual (SANTOS, 2010). A título de exemplo, estudos anteriores realizados pela Fundação Oswaldo Cruz nos anos 2000 em um bairro pobre do Rio de Janeiro coincidem com os dados do Ministério da Saúde a respeito do conhecimento sobre a AIDS. A pesquisa confirmou que a informação de saúde estava amplamente disponível, mas os adolescentes não conseguiam se apropriar dos conceitos de saúde para suas próprias vidas. Os sujeitos da pesquisa reclamaram do estilo impessoal das informações de saúde sobre a AIDS, seu foco na prescrição de medidas clínicas e sua desconexão com outras esferas da vida (por exemplo, amor, amigos, status social etc.). Eles também se queixaram do tipo de linguagem usada em materiais educativos, também distantes de sua cultura local. Finalmente, eles ficavam irritados com a constante repetição do que para eles eram mensagens sem sentido, o que acabava se tornando um fator de rejeição. Como resultado desses problemas, o estudo revelou que os jovens não reconheciam o risco do HIV e que consideravam as comunicações oficiais de saúde exageradas, ficções ou algo que poderia ser um risco apenas para outras pessoas (CARDOSO; LERNER, 2009). Por isso, nos parece importante buscar alternativas para a comunicação de conteúdos de saúde a diversas populações, particularmente para as gerações mais jovens2, de forma que se conectem efetivamente com suas vidas, criem possibilidades de diálogo e fomentem sua busca ativa por informações. Defendemos que os jogos digitais online, que unem o apelo dos jogos ao alcance e ubiquidade da internet, podem ser mais eficazes no engajamento da população para aprender mais ativamente sobre a saúde. O jogo é uma mídia baseada na agência dos jogadores, que logo aprendem a ser mais ativos não apenas dentro do jogo, mas também na vida real (YEE; BAILENSON, 2007). Talvez isso tenha o benefício adicional de contribuir para criar uma instância mais participativa na sociedade. Em seu aspecto mais amplo, a participação refere-se aos cidadãos exercendo influência por meio da organização política, consumo e produção. No campo das mídias, participação significa a capacidade do público de contribuir e influenciar o aparato de produção de mídia (SCHÄFER, 2008). O fato de a participação cidadã na construção de políticas públicas de saúde ser um dos princípios do SUS, como mencionado anteriormente (VICTORA et al., 2011), enfatiza ainda mais essa importância. Tais qualidades podem contribuir para preencher a lacuna deixada pela mídia tradicional e pelos modos tradicionais de comunicação em saúde. Uma pesquisa realizada de 2010 classificou o Brasil como o quarto mercado mundial de jogos digitais, com cerca de 35 milhões de pessoas jogando regularmente (NEWZOO, 2011). 2 O capítulo 6 aborda o tema dos nativos digitais e saúde. Internet e Saúde 555 A Pesquisa Game Brasil3 apresentou o resultado das principais tendências e hábitos de consumo do Gamer brasileiro. Em 2017 esse público não se limitava a crianças e adolescentes. Na verdade, a maioria dos jogadores brasileiros tinha entre 25 e 34 anos, distribuídos uniformemente em ambos os sexos (PESQUISA GAME BRASIL, 2017). Outro estudo, realizado em 2010, relatou que 90% das crianças de 5 a 9 anos tiveram suas primeiras experiências em computadores e na internet, por meio de jogos on-line (CGI.BR, 2011). Os jogos não são apenas populares, mas apresentam uma rica combinação de texto, áudio, gráficos e interação, permitindo maior flexibilidade para apresentar conteúdos de saúde de maneiras interessantes. A interatividade, talvez a característica mais típica dessa mídia, estimula o usuário a agir em vez de receber passivamente informações. O jogo online intensifica tal interação, criando muitos tipos de conexões sociais pelo meio digital. Essas características podem propiciar o diálogo com o público que a mídia convencional não possui. Os jogos também adaptam seu conteúdo a cada jogador de acordo com sua habilidade, conhecimento e ações no jogo. Ao mesmo tempo, é possível medir as respostas dos usuários à mídia, informando os criadores do jogo sobre as oportunidades de melhoria (LIEBERMAN, 2001). Existem projetos inovadores que aplicam jogos digitais para fins educacionais, como o Quest Atlantis (BARAB et al., 2005), e até jogos on-line para ajudar no tratamento de depressão, como o jogo Sparx (LEASCA, 2012; MERRY et al., 2012). Nosso objetivo com este capítulo é explorar o potencial de iniciativas semelhantes no Brasil, questionando se os jogos digitais podem representar uma forma mais efetiva de comunicação em saúde para a contemporaneidade, contribuindo para superar as limitações da mídia mais tradicional, focada na difusão de conteúdo. Para responder essa questão, discutiremos o tipo de jogos que visam transmitir informação mais do que apenas entreter o usuário, chamados “jogos sérios” (MICHAEL; CHEN, 2006), suas definições e aplicações. Em seguida, apresentaremos a “retórica procedimental” (BOGOST, 2007), a principal teoria para explicar como os jogos digitais produzem sentido. Também iremos debater alguns problemas potenciais que derivam de um foco exagerado nessa teoria, propondo uma posição mais proeminente do jogador em relação aos efeitos dos “jogos sérios”. Adotamos o conceito de jogos como um tipo de “cultura midiática participatória” (RAESSENS, 2005). Em seguida, apresentaremos nossa pesquisa baseada em entrevistas com jogadores do videogame online World of Warcraft. A partir da análise dos dados, apresentamos conclusões sobre a participação dos jogadores no jogo e o potencial dos jogos online para comunicação em saúde no Brasil. Apesar de lidarmos com o potencial dos jogos digitais online como novas estratégias de comunicação em saúde pública no Brasil, as reflexões apresentadas aqui se aplicam potencialmente a outros cenários e sociedades. Acreditamos ser relevante a discussão sobre o uso de jogos online como parte das políticas públicas de saúde em benefício de toda a 3 Disponível: https://www.pesquisagamebrasil.com.br/pt/. 556 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) população, enquanto a maior parte da literatura sobre o uso de jogos para a saúde tende a se concentrar mais no aspecto de entrega de conteúdo e muito menos na agência e na participação do jogador, que são aprimoradas pela articulação de jogos digitais e conexões on-line. 1. Jogos sérios para saúde Muitos pesquisadores e educadores defendem o uso de jogos digitais para educação, treinamento e outras finalidades. Eles argumentam que os jogos digitais fazem com que os alunos desenvolvam uma abordagem ativa de solução de problemas, permitindo uma progressão do conteúdo que seja adaptável ao desempenho do aluno e capaz de simular situações típicas do local de trabalho, sendo mais útil à vida real do que memorizar informações (GEE; SHAFFER, 2005; PRENSKY, 2004). No campo da Saúde, os jogos digitais surgiram em diferentes áreas e, nos últimos vinte anos, têm sido utilizados na formação profissional, terapia, autocuidado, promoção da saúde4 e comunicação em saúde (PAPASTERGIOU, 2009). Em 2006, o jogo Re-Mission, por exemplo, tornou-se um exemplo notório do grande potencial dos jogos digitais para a saúde, demonstrando sucesso na promoção do conhecimento e da autoestima em jovens pacientes com câncer, ao mesmo tempo em que reforçava sua adesão ao tratamento (KATO et al., 2008). Os jogos usados para outros fins além do entretenimento são chamados de “jogos sérios” (MICHAEL; CHEN, 2006). Apesar de apresentarem conteúdo educacional, eles tendem a se concentrar mais em valores de entretenimento do que os tradicionais jogos educativos ou educacionais (MICHAEL; CHEN, 2006). Desde o surgimento do termo “jogos sérios”, tanto seus apoiadores quanto seus críticos têm lutado para chegar a um consenso sobre sua definição (RITTERFELD; CODY; VORDERER, 2009). Raessens (2010) argumenta que “jogos sérios são jogos que são projetados e usados com a intenção ou propósito de abordar as questões mais prementes de nossos dias e de ter consequências na vida real” (RAESSENS, 2010, p. 95, tradução nossa). Essa definição é útil para o propósito da comunicação em saúde, pois deixa clara a correlação entre o jogo e a experiência ativa do jogador, sugere que os tópicos abordados por jogos sérios têm relevância social e destaca uma conexão entre o jogo e o mundo físico. Conectar os mundos (virtual e físico) é uma característica essencial dos jogos sérios para a saúde, já que os usuários podem levar o aprendizado no jogo para o dia a dia. Por isso, é importante entender como cada um produz sentido ao jogar um jogo sério e qual é a contribuição específica dessa mídia para construir tal sentido (RAESSENS, 2005). 4 O capítulo 19 debate o uso das Tecnologias de Informação e Comunicação na promoção da saúde. Internet e Saúde 557 Bogost (2007) apresentou o conceito de “retórica procedimental” como a principal forma de produção de sentido em jogos digitais. O autor afirma que, apesar da dependência dos jogos em texto, imagens, sons e outros tipos de formatos de representação, sua característica única é a capacidade de comunicação por meio de processos e regras, criando metáforas dinâmicas para processos do mundo real. Os sentidos de um jogo sério emergem quando o jogador interage com suas regras, semelhante ao conceito aristotélico de entimema: um silogismo que esconde uma as premissas e delega ao ouvinte o preenchimento do espaço para completar o argumento. Sob esse ponto de vista, um jogo consiste em entimemas procedimentais que o jogador completa interagindo com o sistema em questão, descobrindo assim a mensagem do jogo. Tal interação segue parâmetros e regras previamente definidas pelo game designer, e o papel do jogador é preencher a lacuna entre as regras do jogo e sua individualidade, o que Bogost (2007) chama de “lacuna de simulação”. Ao reconstruir o sentido embutido nas regras, o jogador poderá resolver ou vencer o jogo e ser persuadido pela mensagem em suas regras (BOGOST, 2007). Assim um jogo sério requer planejamento cuidadoso para construir um argumento procedimental com as lacunas de simulação corretas a fim de transmitir a mensagem adequada ao jogador. A retórica procedimental afirma que o significado de um jogo está contido em suas regras. Assim, a pessoa que joga o jogo assumiria forçosamente uma maneira previsível de realizar esta atividade, sem espaço para desvios ou adições de suas contribuições (SICART, 2012). Apesar da importância da retórica procedimental para os game studies, uma ênfase exclusiva ou exagerada em seus princípios levanta algumas implicações que nos parecem problemáticas. Em primeiro lugar, limitar o sentido de um jogo digital às suas regras desconsidera elementos narrativos que dão sentido às regras e mecânicas, tornando o game designer o principal responsável pelo jogo e desvalorizando outros profissionais que participam de sua criação, como escritores, artistas, músicos, animadores e outros profissionais. Em segundo lugar, a ênfase na retórica procedimental promove uma visão determinista da mídia, uma vez que muitas vezes o papel do jogador é relegado a conectar os pontos previamente estabelecidos pelo game designer (FERRARI, 2010). O jogo corre o risco de se tornar instrumental, determinado pela razão e sujeito a regras rígidas, objetivos e sistemas, muito distante do ato de jogar (SICART, 2012). Sob essa ótica, haveria também um jeito tido como certo para experimentar um jogo, definido pela autoridade do game designer. Assim, os jogos digitais seriam criados em caminhos estritos, supondo que a recepção adequada do jogo resultaria em uma perfeita transferência de conhecimento (VASCONCELLOS, 2013). Em última análise, a retórica procedimental desconsidera o potencial criativo dos jogadores. Alguns estudos empíricos sobre a experimentação de jogos confirmaram, há muito espaço para imperfeições, distorções e cocriação na apropriação do conteúdo do jogo pelos indivíduos (GLAS, 2012). Os jogadores frequentemente ignoram as regras, jogam propositalmente errado ou até subvertem as regras por diversão (FERRARI, 2010). No entanto, não devemos ver isso como falhas, mas como atos legítimos de 558 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) apropriação ativa do jogo pelos jogadores e, ao fazê-lo, confirmam o potencial expressivo do meio, reconhecendo os jogadores como cocriadores da experiência lúdica (VASCONCELLOS, 2013). Esse aspecto pessoal da produção de sentido é ainda mais visível em jogos de múltiplos jogadores. O impacto da internet no campo dos jogos não pode ser ignorado, uma vez que, quando os jogos começaram a permitir conexões entre usuários, surgiam uma gama de novas possibilidades. Os jogos online agora podem oferecer não apenas diversão online, mas também contato com outros jogadores em todo o mundo. Muitas vezes, as regras do jogo online se tornam meras desculpas para interação social com outros jogadores (SICART, 2012). Assim, qualquer processo de produção de sentido em jogos digitais deve necessariamente levar em conta a intervenção do jogador, uma vez que a experiência de jogar um videogame resultará das inter-relações entre regras, jogadores e cultura (VASCONCELLOS, 2013). A esse respeito, Raessens (2005) argumenta que a participação é uma característica distintiva dos jogos digitais, descrevendo não apenas sua especificidade, mas também a cultura midiática em torno deles. Relacionada à participação está a cultura participatória, abordada por Jenkins et al. (2006). que opera em um ambiente de participação social, apresenta baixas barreiras à expressão cívica e artística, promove a orientação e coloca valor no compartilhamento, contribuição, feedback e conexão social. A cultura dos jogos digitais compartilha muitas dessas características, o que permite sua classificação, por Raessens (2005), como uma “cultura midiática participatória”, facilitando ou promovendo a participação pública em três aspectos: “interpretação”, “reconfiguração” e “construção”. Vejamos como Raessens (2005) nos apresenta estes três aspectos. Segundo este autor, a “interpretação” refere-se a como o jogador percebe a mídia dos jogos digitais. Embora não seja tão diferente da interpretação que ocorre em outras mídias, como televisão e cinema, ela é ativa e participatória. A interpretação é socialmente situada, incorporando três estratégias de leitura, que, em termos de jogos, são a “dominantehegemônica” (aceitar um jogo segundo a ideologia dominante), “oposicional” (jogar contra tal ideologia) e “negociada” (com variados graus de adaptação) (RAESSENS, 2005). Para Raessens (2005) a “reconfiguração” existe nos jogos de duas formas. A primeira é a liberdade que o jogador tem para explorar um jogo. Diferentemente de mídias como o filme, em que o espectador segue a narrativa a partir de um ponto fixo, um jogo digital fornece ao indivíduo uma ampla gama de meios para analisar estrategicamente e reposicionar seu ponto de vista para descobrir novas interpretações, como caminhar, verificar atributos de personagens, armas e a pontuação. A segunda forma de reconfiguração significa manipular elementos do jogo para obter algum efeito, como construir uma fazenda, disparar uma arma ou pressionar um botão para abrir uma porta. A reconfiguração está relacionada ao ato de fechar a “lacuna de simulação” (BOGOST, 2007). A nosso ver, esta talvez seja a mais típica participação em jogos digitais. No entanto, isso acontece dentro de um espaço de possibilidades criado pelos game designers. Essas Internet e Saúde 559 possibilidades são fixas, programadas no código que dá forma ao jogo digital (RAESSENS, 2005). Nos jogos digitais, a interpretação e a reconfiguração tendem a acontecer juntas na maior parte do tempo, já que o jogador está continuamente interagindo com as mudanças nos sistemas de jogo. A “construção” é para Raessens (2005) o terceiro domínio da participação em jogos digitais. Ela permite que o usuário crie e adicione elementos ao jogo. Ela engloba uma gama de atividades que incluem alteração de aspectos narrativos e regras de um jogo, adição de objetos, interfaces, sistemas ou funções, e até mesmo reutilização de partes de jogos digitais para criar novos jogos de diferentes gêneros. De acordo com Raessens (2005), a “construção” depende principalmente de habilidades de programação. Assim, o autor admite que diante da capacidade necessária para intervir com sucesso na estrutura do código interno do jogo digital, essa participação tende a ser muito menos comum do que a “interpretação” e a “reconfiguração”. Apesar de sua dependência de aspectos técnicos, a construção muitas vezes faz parte de movimentos sociais e culturais – por exemplo, quando um jogador reprograma o jogo para mudar o gênero do protagonista como uma declaração política (JOHNSTON, 2012). Outro exemplo talvez possa transmitir melhor o impacto das práticas de “construção” em um contexto social. Atualmente, vários jogos permitem o uso de mods, pequenos pedaços de código que podem alterar significativamente as regras de um jogo, adicionando até mesmo novos conteúdos. Esses mods são dados gratuitamente pelos seus criadores, chamados de modders. Mas em 2015 a Steam, a maior loja de jogos online, decidiu permitir que os criadores de mods do popular jogo Skyrim cobrassem pelas suas criações (CAMPBELL, 2015). Subitamente, um debate violento ocorreu, com muitos jogadores condenando essa prática e questionando seus aspectos éticos. Talvez o ponto mais interessante desse conflito foram os “mods de protesto”, que denunciaram violentamente a venda de mods, ridicularizando os fundadores da Steam, colocando um preço de milhares de dólares ou simplesmente sendo descaradamente inúteis (CHALK, 2015; GRAYSON, 2015). Dessa forma, os jogadores apropriaram-se de uma das funções do jogo para criar protestos contra a cobrança de mods dentro do próprio jogo onde ela estava sendo feita. Este é um bom exemplo que demonstra como a retórica procedimental do funcionamento interno de Skyrim foi subvertida pelos jogadores para alimentar suas iniciativas ativistas. Embora Raessens (2005) defina a “construção” como a mudança do jogo por meio de programação, acreditamos que outros comportamentos criativos dos jogadores também possam ser incluídos nessa categoria. Esse tipo de “construção” adicionaria uma novidade ao jogo digital sem necessariamente depender da programação. Ela inclui, entre outras práticas, eventos de interpretação (role-playing) em jogos on-line, como encenações coletivas de festas, casamentos entre personagens, intrigas políticas entre os grupos de jogadores e até mesmo a criação da história dos personagens (VASCONCELLOS, 2013). De modo similar, a busca por brechas nas regras e no sistema de jogo, e até mesmo trapaça para ganho pessoal, também poderiam ser considerados exemplos de “construção” (GLAS, 2010). Assim, além da construção na forma de programação, é possível inferir que há 560 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) também outra forma de “construção” que acontece socialmente, o que para muitos jogadores é um dos maiores apelos dos jogos on-line. Enquanto muitos jogos digitais para a saúde tendem a se concentrar no domínio da “interpretação”, apresentando informações de saúde ao jogador, acreditamos que a “reconfiguração” e a “construção” são os domínios mais promissores para a comunicação em saúde nos jogos. A “reconfiguração” proporciona maior liberdade ao público para aprender sobre a saúde de uma forma gradual e personalizada, envolvendo o jogador em uma busca ativa de conhecimento enquanto ele está jogando. A “construção”, embora mais difícil de ser promovida, pode ser ainda mais eficaz, pois permite que os jogadores compartilhem suas ideias e criatividade. Acreditamos que esse domínio de participação, em particular, poderia ser uma contribuição única da mídia do jogo digital para fomentar uma sociedade mais socialmente participativa, especialmente no campo da comunicação em saúde. 2. Métodos A fim de confirmar se os resultados teóricos correspondiam às práticas reais no mundo virtual de um jogo online, realizamos entrevistas com jogadores do estado do Rio de Janeiro, que jogavam principalmente online. Nossa intenção era avaliar suas opiniões sobre o uso de jogos digitais para outros objetivos além da diversão, como eles os usavam como meio de comunicação, e se e como eles se envolviam em atividades participativas, nos domínios de “interpretação”, “reconfiguração” e particularmente “construção” (RAESSENS, 2005). As entrevistas foram realizadas pelos autores presencialmente e gravadas digitalmente. Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz5. As condições para participar deste estudo foram residir no estado do Rio de Janeiro, ser maior de 18 anos e jogar World of Warcraft. Esse jogo foi selecionado porque é o jogo online com a maior comunidade no Brasil e o único jogo massivo online, ou Massively Multiplayer Online Roleplaying Game (MMORPG), completamente traduzido e adaptado para a língua e cultura brasileiras (VASCONCELLOS, 2013). World of Warcraft é o maior MMORPG do mundo, tendo chegado a 12 milhões de jogadores em 2010 (VG247, 2013). Sua popularidade gerou uma grande quantidade de produtos relacionados, como figuras de ação, jogos de tabuleiro, livros, brinquedos e muitas produções criadas por fãs. Nele, os jogadores compartilham um mundo de fantasia mágica povoado de raças e monstros humanoides. O cenário é inspirado em jogos de fantasia medieval e obras literárias anteriores, mas os criadores adicionaram gradualmente 5 Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE): 0072.0.408.000-12 Internet e Saúde 561 elementos de outras fontes, como ficção científica e cultura pop. Cada jogador cria um personagem, seu avatar, e com ele explora o mundo, interage com o ambiente, criaturas e outros jogadores. O combate é proeminente no jogo, e os jogadores podem cooperar na batalha contra os inimigos controlados pelo sistema ou podem lutar entre si. Como a maioria dos MMORPGs, seu mundo virtual é persistente, tridimensional e hospeda muitas comunidades e grupos de jogadores dentro dele (GLAS, 2010). Vários estudiosos da área de game studies recomendam que os pesquisadores de jogos digitais adquiram alguma experiência em jogar os títulos que estão pesquisando para saber quais perguntas fazer e entender o contexto do jogo. Assim eles colheriam benefícios de uma experiência direta com o jogo, mesmo que não estejam especificamente trabalhando com observação participante ou outros métodos etnográficos (GLAS, 2010; AARSETH, 2003). Assim, dedicamos três meses para explorar muitas facetas do jogo, utilizando diferentes personagens, explorando várias estratégias e participando de várias atividades. Essa experiência nos permitiu entender melhor as respostas que vieram das entrevistas. Com relação aos sujeitos da pesquisa, os principais membros brasileiros da International Game Developers Association (IGDA) sugeriram os primeiros nomes, seguidos por uma amostra de bola de neve de outros jogadores referenciados pelos primeiros entrevistados. Entramos em contato com os sujeitos selecionados por telefone ou e-mail, que, após concordarem em participar do estudo, assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE). A confidencialidade foi assegurada aos 22 participantes que foram entrevistados. As entrevistas foram semiestruturadas, e as questões referentes ao presente estudo foram divididas em três categorias: experiência com jogos, opiniões sobre jogos sérios e jogos de saúde, e comportamento dentro do jogo e com outros jogadores. As perguntas foram: A. Experiência com jogos 1. Há quanto tempo você joga jogos digitais? 2. Há quanto tempo você joga jogos on-line? 3. Há quanto tempo você joga World of Warcraft? 4. Você já jogou com mais de um personagem? B. Opiniões sobre jogos sérios e jogos de saúde 5. Qual a sua opinião sobre jogos sérios? 6. Você acha que é possível usar jogos digitais para comunicação em saúde? 7. Como você imagina esses jogos? 8. O que atrairia você para jogar esses jogos? C. Comportamento dentro do jogo e com outros jogadores 562 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) 9. Como é o seu relacionamento com outros jogadores? Você faz parte de grupos regulares ou de uma guilda6? 10. Você já conheceu alguém em um jogo que você mais tarde contatou on-line ou cara a cara? 11. Você participa de fóruns, blogs ou sites sobre World of Warcraft? 12. Você usa ou cria mods? 13. Você se envolve em trapaça, ganking ou griefing? 7 14. Você já criou alguma mídia relacionada ao jogo como um post em blogs ou redes sociais, desenho, desenho animado, história em quadrinhos, vídeo ou machinima? 8 Ao analisar as respostas, concentramo-nos principalmente nos aspectos de reconfiguração e construção relatados pelos jogadores. Como os diferentes aspectos da participação não acontecem de maneira neutra, mas implicam fatores como o jogador, sua herança cultural e o ambiente que o cerca, também utilizamos em nossa análise conceitos oriundos de um modelo de jogo que enfatiza os aspectos sociais da comunicação e participação, o “Modelo de Análise Relacional de Jogos: Contextos, Participação e Dispositivo” (Model for Relational Analysis of Games: Contexts, Participation and Apparatus — MoRAG). Ele descreve as principais relações entre o jogo como objeto e o jogador sob uma visão participativa. Entende o jogo como uma atividade socialmente inserida e que reverbera em toda a sociedade (VASCONCELLOS; CARVALHO; ARAÚJO, 2017). Sob a perspectiva do MoRAG, uma fusão de vários contextos condiciona a forma como um jogador produz sentidos a partir da mídia do jogo. É possível definir quatro contextos, mutuamente constituídos em um processo dinâmico e contínuo. O contexto existencial refere-se à individualidade do jogador e seu histórico pessoal. O contexto situacional diz respeito à posição do jogador na sociedade em um dado momento, também chamado de lugar de interlocução. O contexto intertextual inclui referências a outros textos, previamente integrados à bagagem de cada indivíduo ou grupo. Por fim, o contexto tecnológico descreve todos os aspectos tecnológicos que envolvem a experiência dentro de um jogo digital, como a competência tecnológica, recursos de hardware, conexão à internet, controles de jogos e até mesmo práticas abusivas como o uso de programas não autorizados para trapaça (VASCONCELLOS; CARVALHO; ARAÚJO, 2017). Esses contextos nos ajudaram a entender melhor as respostas dos participantes. A “guilda” é uma maneira de estruturar grupos maiores de jogadores de uma forma mais estável. Ela é o principal espaço comunitário em World of Warcraft. 7 Ganking é a prática de usar um personagem muito poderoso para derrotar o personagem de outro jogador claramente menos poderoso. Griefing é causar aflição, irritação ou raiva em outros jogadores de propósito. 8 Machinima vem de machine + animation, denominando filmes de animação feitos dentro de um jogo. 6 Internet e Saúde 563 3. Resultados e discussão As entrevistas realizadas nos permitiram chegar a três ordens de resultados. Um primeiro guarda relação com a percepção que os sujeitos da pesquisa têm sobre o que seja um “jogo sério”. O segundo estabelece uma reflexão sobre o papel social dos jogos digitais. Finalmente os depoentes nos revelaram como conseguem interferir na estrutura do jogo apesar de não dominarem programação. 3.1. Jogos sérios e jogos de saúde Quando questionados sobre o significado dos jogos sérios, os jogadores a princípio interpretaram equivocadamente o termo, como sinônimo de jogos educativos ou educacionais, e foram muito críticos em relação a esses tipos de jogos. Vários participantes enfatizaram que os jogos educativos eram chatos, mal executados e ineficazes. Na opinião dos entrevistados, qualquer jogo, mesmo com fins educacionais, deve ser divertido e envolvente. Esse equívoco é compreensível, uma vez que a expressão “jogos sérios” ainda é recente. No entanto, a forte rejeição dos jogos educacionais pelos sujeitos da pesquisa confirmou a percepção generalizada de que os jogos voltados para a educação e outros propósitos, como a saúde, seriam monótonos e ineficazes para o aprendizado, mesmo quando feitos com as melhores intenções. Uma das razões que levaram os participantes a perceberem os jogos educativos como algo negativo está associada ao fato da abordagem utilizada ser considerada excessivamente direta e o conteúdo ser imposto, sem despertar o interesse dos jogadores. Outro motivo mencionado está relacionado à percepção que os entrevistados têm de que nos jogos educativos ocorre uma a adaptação pobre do conteúdo temático, que muitas vezes é transplantado diretamente para o jogo, tornando os jogos educativos semelhantes aos livros didáticos. Eles também se queixaram que os jogos educacionais desconsideram a diversão e o engajamento. Alem disso, tais produções são amadoras, carecem de originalidade, história, gráficos e têm regras inferiores aos jogos de entretenimento. Vários entrevistados sugeriram até mesmo que fossem abandonados termos como “jogo educacional” e “jogo educativo”, devido aos fracassos anteriores de muitos produtos de baixa qualidade. Na opinião dos entrevistados, uma maneira de corrigir esses problemas seria tornar o conteúdo educacional implícito no jogo, dando ao jogador a chance de descobri-lo por conta própria. Alguns também enfatizaram a importância de fornecer um contexto apropriado à informação de saúde tanto em termos das regras quanto em termos da história apresentada no jogo. Neste caso, sugeriram incluir personagens bem desenvolvidos com vidas críveis, 564 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) permitindo que os jogadores vivenciem problemas de saúde por meio da perspectiva desses avatares. No que diz respeito ao uso de jogos digitais para comunicação em saúde, todos os entrevistados afirmaram que tais mídias poderiam ser muito eficazes, devido à sua capacidade de colocar os jogadores em diferentes situações, capacitando-os a treinar novas habilidades e a reunir conhecimento e experiência sobre outras situações da vida, proporcionando relaxamento e socialização. Essas vantagens tornariam os jogos digitais muito superiores aos meios tradicionais quando aplicados adequadamente para fins de instrução. Os entrevistados reconhecem o problema do alto custo dos consoles e computadores pessoais no Brasil, especialmente levando em conta os níveis de renda da população. Apesar disso, os participantes ainda acreditavam que os jogos digitais sejam economicamente acessíveis para o público em geral. Este ponto de vista se baseia no progressivo barateamento de equipamentos e conexões de internet e no surgimento de novas iniciativas públicas de inclusão digital, mesmo entre a população pobre9. A proliferação de cybercafés em áreas de baixa renda e a possibilidade de alugar computadores com acesso à internet a preços muito baixos são fatores importantes de inclusão digital no Brasil. Por fim, a consolidação de plataformas móveis, como smartphones e tablets, também contribuem para o aumento do público potencial dos jogos digitais (CGI.BR, 2010). Alguns entrevistados apresentaram ideias para jogos de saúde. Eles sugeriram cenários em que o jogador deveria identificar doenças ou lidar com epidemias, semelhantes aos seriados médicos de televisão. Outros propuseram que os jogos fossem capazes de ensinar noções de saúde aos jogadores por meio de cenários históricos, como um jogo ocorrendo durante a peste negra. O que nos pareceu comum nessas propostas foi a fundamentação desses hipotéticos jogos de saúde em histórias e narrativas fortes como meio de garantir a imersão no assunto. Este foi um aspecto que muitos participantes consideravam essencial para atrair interessados para esses jogos. Alguns participantes também sugeriram estratégias que não fossem confinadas ao mundo virtual. Assim, sugeriram que o jogo fosse expandindo-as para o mundo físico, como combinações de jogos digitais, jogos de cartas e jogos de tabuleiro. Da mesma forma, um entrevistado sugeriu jogos envolvendo tanto tarefas online quanto atividades no mundo físico, como, por exemplo, combinar pesquisas na internet sobre saúde com visitas a hospitais, centros de pesquisa e comunidades pobres, colocando os jogadores em contato com situações mais realistas e até mesmo fomentando ações de cidadania e solidariedade em favor de grupos mais carentes. Tais sugestões permitem inferir que os jogadores parecem prontos a aceitar e testar diferentes modos de se abordar a saúde nos jogos digitais que utilizam. No jogo World of Warcraft, embora existam doenças, o termo geralmente se refere a efeitos mágicos, e não há intenção de criar semelhanças com doenças reais. A representação 9 O capítulo 3 discute o “Programa Piraí Digital”, uma iniciativa brasileira de inclusão digital. Internet e Saúde 565 da saúde de um personagem é abstrata, na forma de uma barra horizontal que diminui com os golpes recebidos em combate. Quando essa barra termina, o personagem morre. A morte, no entanto, tem implicações insignificantes para o jogador: seu personagem ressuscita em um cemitério próximo e retorna ao jogo. No entanto, os participantes buscam ativamente melhorar o seu poder físico e o bem-estar de seus personagens, já que situações de deficiência, como perda de movimento, força ou habilidades, são comuns no jogo. Assim, a morte é um mero inconveniente, enquanto as limitações ou deficiências em seus personagens podem prejudicar o desempenho do personagem. Esta percepção parece ser confirmada pelos acontecimentos em torno da Corrupted Blood, a maior pandemia ocorrida no jogo World of Warcraft. Paradoxalmente, a representação mais realista da doença em Wold of Warcraft aconteceu por causa de um sistema de jogo defeituoso, o evento Corrupted Blood, em setembro de 2005. Essa assim chamada “praga” originou-se de um efeito mágico comum de drenagem de vida no jogo que saiu de controle, sendo transmitido a personagens vulneráveis. Assim, foi iniciada a uma epidemia virtual que matou os personagens de milhões de jogadores. Posteriormente, dois grupos de epidemiologistas relataram que o comportamento dos jogadores durante o evento tinha notáveis semelhanças com comportamentos relatados em populações humanas durante surtos reais, sugerindo que os mundos virtuais poderiam funcionar como laboratórios dinâmicos para estudos epidemiológicos (BALICER, 2007; LOFGREN; FEFFERMAN, 2007). Um dos participantes experimentou essa epidemia e narrou detalhadamente os momentos de perplexidade que experimentou ao encontrar as grandes cidades do jogo desertas, com centenas de cadáveres espalhados pelo chão. Uma vez contaminado, ele enfrentou uma luta constante para preservar a vida de seu personagem, enquanto observava impotente as pessoas ao seu redor morrendo às dezenas. Mais tarde, pensando no evento, ele concluiu que contrair uma doença degenerativa dentro de World of Warcraft de alguma forma o fez entender melhor a experiência de seu falecido pai, que morreu após uma longa batalha contra o câncer. 3.2. Atividades sociais As atividades sociais são uma parte inerente dos jogos on-line. Em World of Warcraft, há uma distinção entre combate com inimigos controlados pelo jogo (player vs. environment - PvE) e combate com outros jogadores (player vs. player - PvP). Nesse caso, os entrevistados relataram que, em ambos os casos, é comum para os jogadores cooperarem para alcançar seus objetivos. Muitos sujeitos da pesquisa relataram que jogar em grupo era essencial para aproveitar o jogo. Dois participantes afirmaram nunca terem jogado sozinhos. Assim, apesar de o jogo em grupo ser desenvolvido como uma maneira de superar 566 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) os desafios de World of Warcraft, alguns entrevistados declararam explicitamente que a principal razão para estar online era a interação em um grupo dentro do mundo virtual. Enquanto alguns participantes relataram ter iniciado amizades em World of Warcraft e algumas vezes encontrado essas pessoas no mundo físico, a maioria dos participantes jogaram com amigos ou conhecidos que já conheciam no mundo real (físico). Nesse sentido, deduzimos que World of Warcraft não nos parece ser um polo para novas amizades e sim um novo espaço social para um grupo de amigos, integrando sua rotina das atividades sociais. De modo similar, os entrevistados revelaram que muitos sujeitos geralmente não se comunicam com jogadores fora de seu círculo de amigos, com exceção dos membros de suas guildas. Em alguns casos, isso era feito intencionalmente, com o objetivo de evitar o contato com jogadores que não eram proficientes no jogo ou que não teriam polidez. Estas situações tendem a atrapalhar o bom andamento das sessões de jogo. No geral, os entrevistados revelaram que os grupos formados por estranhos experimentam menos coesão, pois os laços se quebram facilmente e a experiência é menos agradável. As guildas de jogadores foram introduzidas em World of Warcraft como maneira de estruturar grupos maiores de jogadores de uma forma mais estável. Normalmente, o jogador individual se relaciona com seus amigos mais próximos, joga com um pequeno grupo e, finalmente, tende a pertencer a uma guilda. Embora a afiliação da guilda esteja relacionada aos objetivos do jogo, à medida que o tempo passa, a relação entre os seus membros torna-se mais pessoal. Embora os participantes tenham mencionado episódios em que formaram grupos temporários com estranhos para vencer desafios específicos, a maioria de seus relacionamentos ocorreu no nível individual entre amigos offline ou membros da guilda. Assim, a guilda é o principal espaço comunitário em World of Warcraft. Embora o termo comunidade seja usado com muita frequência para descrever a população de jogadores em um jogo online como o World of Warcraft, é importante ter em mente que essa comunidade não é necessariamente um todo integrado, já que vários pequenos enclaves, representados pelas guildas, mantêm pouco ou nenhum contato com outras guildas. Muitos participantes relataram desenvolver um senso de dever para com sua guilda, modificando seu comportamento no jogo de muitas maneiras, a fim de ajudar o coletivo. Além disso, casos de tutoria são comuns. Eles ocorrem quando um jogador mais experiente ajuda um iniciante, fornecendo orientação para que este aprenda as regras, dando itens ou recursos, ou mesmo ajudando nas batalhas. Esse senso de dever atua como um ponto de apoio para muitos jogadores. Os participantes apontaram que o relacionamento com os amigos no jogo é o principal motivo que os manteve jogando World of Warcraft. O cruzamento entre o mundo físico e o virtual geralmente ocorre também no contexto coletivo, com grupos e guildas de jogadores organizando reuniões em bares e restaurantes para socializar ou até mesmo combinar sessões de jogos conjuntas em cybercafés. Assim, no que diz respeito às atividades sociais, os entrevistados nos revelaram que a maioria dos contatos entre os jogadores de World of Warcraft foram transferidos do Internet e Saúde 567 mundo físico. Uma vez que o jogador tenha amigos e se torne parte de uma guilda no jogo, ele tende a focar suas relações sociais nesse grupo social. Embora não seja possível dizer que todas as comunidades em World of Warcraft existem por causa de grupos de amigos offline, esse parece ser um fator significativo. A importância do elemento social para manter os jogadores em World of Warcraft se alinha com outras pesquisas sobre jogos online realizados em outras sociedades (NARDI; HARRIS, 2006). 3.3. Construção em World of Warcraft Entre os domínios de participação em jogos digitais, provavelmente o que tem mais potencial para aplicação em políticas públicas de comunicação em saúde é o domínio da “construção”. Embora a “interpretação” e a “reconfiguração” geralmente ocorram juntas, a construção ocorre em menos instâncias, que por sua vez são mais demarcadas. World of Warcraft foi projetado principalmente para os domínios de “interpretação” e “reconfiguração”, mas é possível que os jogadores criem add-ons, isto é, mods que afetam de modo limitado o comportamento do jogo. Embora mudanças radicais na operação de World of Warcraft não sejam possíveis, já que o núcleo do jogo roda em servidores seguros, add-ons podem ser ferramentas bastante versáteis para personalizar a experiência do jogador, permitindo a reorganização da interface do jogo, o que pode ter efeitos significativos no desempenho dos usuários. Existem add-ons para ajudar os líderes do grupo a organizar suas missões, marcar os tesouros encontrados no mapa e muitos outros. Os entrevistados relataram o uso frequente de add-ons, mas apenas dois entrevistados estavam interessados em criá-los, dado o conhecimento específico de programação que sua produção exige. Como mencionamos anteriormente, embora o domínio da “construção” nos jogos seja definido por Raessens (2005) como a mudança do código de um jogo digital por meio da programação, há uma ampla gama de práticas que estão relacionadas aos aspectos criativos sem afetar diretamente a mecânica de jogo, e parece apropriado categorizá-las como subtipos de construção. Uma prática comum é fazer capturas de tela durante o jogo, registrando cenas estranhas, engraçadas ou inspiradoras, poses de vitória sobre inimigos poderosos e até imagens que subvertem a imersão no jogo, como bugs que causam eventos bizarros. Essas imagens são compartilhadas em sites ou redes sociais digitais, registrando eventos significativos no nível individual ou social e mostrando aos outros as aventuras no jogo. Dois participantes, um jovem casal no mundo físico, criaram um álbum de fotos no Facebook, contendo apenas fotos de seus personagens juntos em diferentes regiões de World of Warcraft, como uma lembrança de seu relacionamento. 568 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Atividades criativas mais sofisticadas também foram mencionadas. Algumas pessoas escreveram biografias para seus personagens, tentando dar-lhes motivações e dramas existenciais, enquanto outros escreveram histórias sobre eventos vivenciados no jogo, como as guerras em que participaram. Há também criação de desenhos animados, quadrinhos, ilustrações e fotomontagens cômicas. Os participantes também gravaram vídeos durante o jogo, para compartilhá-los online e convertê-los em machinimas, curtasmetragens feitos dentro do jogo. Um dos participantes, que também gostava de jogos de tabuleiro, até criou um jogo de tabuleiro sobre World of Warcraft como uma homenagem. Em geral, eles não estavam preocupados com o ganho além da satisfação pessoal, e mencionaram que essas atividades eram apenas formas de aproveitar mais o World of Warcraft. Nesses exemplos, os jogadores aprimoravam suas experiências de World of Warcraft, ajudando a manter a ilusão de um mundo dinâmico vivenciado coletivamente. Mesmo quando eles registravam bugs e falhas, quebrando o tom épico do jogo, é possível notar sua familiaridade com o ambiente, como estar confortável o suficiente para brincar com os elementos do jogo sem medo de quebrar o encanto. Essa prática talvez também possa ser vista como uma maneira de se divertir com uma rotina diária virtual bem estabelecida. A participação criativa com contornos mais estruturados envolve: a criação de tutoriais em texto e vídeo que ensinam os iniciantes a jogar o jogo; guias detalhando profissões, classes, regiões ou raças; e outros artigos que explicam aspectos do World of Warcraft. Além disso, os participantes relataram participar de fóruns, buscando ajuda ou respondendo a perguntas de novatos sobre o jogo. Nesses espaços, a participação ultrapassa os limites do mundo virtual, e pesquisas mostram que pelo menos 30% dos jogadores participam de discussões sobre World of Warcraft, um número alto comparado com taxas típicas de participação entre culturas de fãs (GLAS, 2010). É possível dizer que todo um ecossistema de sites, fóruns, blogs, fanpages, canais do YouTube e outras formas de comunicação surgiu em torno de World of Warcraft, expandindo enormemente sua influência, mesmo quando os participantes não estão realmente jogando (VASCONCELLOS, 2013). Há também outro tipo de participação que adiciona elementos ao jogo sem manipular seu código. Esse aspecto da construção acontece por meio do contato social entre os atores, que criam procedimentos e costumes, trabalhando dentro das regras gerais do jogo digital e gerando práticas específicas dentro dele. Exemplos encontrados nas entrevistas vão desde simples momentos de interpretação dramática de um personagem até simulações complexas de eventos sociais realizados em um jogo, como festas diplomáticas e casamentos. Esse tipo de construção nem sempre é orientado pela ética, e muitos jogadores desenvolvem comportamentos que violam a experiência do jogo conforme planejada pelos game designers. Esses atos incluem trapaça (usando programas ilegais), ganking e griefing em geral, que inclui roubar, assediar, zombar, insultar, golpear ou interromper as Internet e Saúde 569 atividades de outros jogadores por diversão. Apenas um entrevistado relatou o uso de programas para trapaça, enquanto outro relatou fazer ganking com frequência. No entanto, a maioria dos participantes foi muito crítica em relação a esses comportamentos limítrofes. Embora sejam condenados por muitos jogadores, tais atos podem levar a desenvolvimentos curiosos. Um entrevistado relatou uma ocasião em que ele e um grupo de amigos iniciaram uma guerra entre as principais facções do jogo por meio de uma sequência complexa de mentiras, intrigas e subterfúgios. A guerra continuou por semanas com conflitos generalizados entre as duas facções, até que coalizões de guildas de ambos os lados se reuniram em um conselho e decidiram fazer um tratado de paz. Segundo ele, o que começou como uma piada se tornou um conflito mundial e, posteriormente, foi resolvido de forma política. Meses depois desses eventos, as pessoas ainda contavam suas histórias de guerra, e o participante sentiu que contribuiu para tornar o jogo mais memorável para todos. A política está frequentemente presente nas relações entre os jogadores. Muitos participantes relataram participar de eleições para escolher os líderes de suas “guildas” ou votar para decidir atividades ou missões. Além disso, há toda uma gama de relações interpessoais necessárias para conquistar aliados ou influenciar outros jogadores, seja em uma “guilda” ou fora dela. Assim, os sistemas de jogo que formam o World of Warcraft podem ser vistos como uma espécie de matéria-prima ou suporte onde os jogadores se organizam para criar inovações nos aspectos sociais do jogo, muitas vezes construindo estruturas sociais e políticas sofisticadas. Esse pode ser um exemplo da visão de Huizinga (1955), que ressaltava o caráter do jogo como um espaço peculiar, separado da vida comum por regras socialmente acordadas. Embora as regras e mecânicas que formam os sistemas do World of Warcraft sejam tecnologicamente codificadas e os jogadores preenchem as lacunas, construindo seus próprios sistemas e conteúdos sobre as regras básicas, a fim de criar seus sentidos específicos para a experiência de jogar o jogo digital. 4. Conclusões As queixas sobre os jogos educativos, no que se refere ao foco excessivo no conteúdo e à falta de adaptabilidade, refletem as críticas anteriormente mencionadas pelos jovens sobre a comunicação em saúde sobre AIDS. Essa forte rejeição ao conteúdo estático e à falta de diversão nos jogos educativos devem orientar futuras iniciativas para não se repetir tais erros. A nosso ver, os jogos digitais podem ser muito mais ricos para a comunicação em saúde do que meros canais de disseminação de conteúdo. Eles permitem que os jogadores experimentem outras histórias de vida e repensem sua saúde, como o exemplo mencionado do jogador que ganhou uma nova compreensão da morte de seu pai após experimentar a 570 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) doença no jogo. Assim, este estudo sugere que os jogos incentivam as ações dos jogadores não como operadores, mas como participantes ativos, engajando-se muito além das regras do jogo. Isso pode ser percebido nos jogos online, onde as conexões via internet possibilitam interações com muitas outras pessoas, criando oportunidades de cooperação, ação organizada, ativismo político, e até mesmo fomentando a criação de comunidades e um sentimento de cidadania dentro do mundo de um jogo. Nesta pesquisa, também foi possível expandir a definição original de “construção” para incluir produções culturais e sociais dos jogadores inspiradas ou baseadas em um determinado jogo. Um resultado dessa cultura participativa é a dissolução das fronteiras entre produtor e consumidor, podendo tornar os atores mais emancipados, criativos e voltados para a comunidade. Eles criam conteúdo tanto dentro do jogo, por meio de suas ações, quanto fora do jogo. Tais contribuições são essenciais para a amplitude do jogo digital e uma parte fundamental da riqueza da experiência de se jogar. Os atos participativos de construção representam formas inovadoras de se apropriar do mundo virtual, pelas quais os jogadores produzem continuamente sentidos para si mesmos. A partir dessas atividades, cada jogador desenvolve novas formas de se divertir, interagindo uns com os outros, melhorando o ambiente de jogo e apropriando-se de aspectos do mundo virtual. Apesar do perigo de uma fé exagerada nos benefícios da cultura participativa, a “construção” em seus vários aspectos é uma parte crucial do potencial dos jogos digitais para a saúde. É um movimento de empoderamento de jogadores, à medida que os participantes se tornam coprodutores dos jogos e colaboradores de uma comunidade. Ambos os aspectos se alinham aos princípios de promoção da saúde. Dessa forma, um hipotético jogo digital online para promoção da saúde fomentaria o protagonismo dos jogadores, criando uma sociedade dinâmica e participativa no mundo virtual, na qual tais indivíduos poderiam contribuir com propostas e estratégias de saúde. Essas ideias poderiam ser trazidas para o debate público, incentivando tais atores para serem mais ativos na sociedade. Assim, tal jogo poderia fomentar a comunicação em saúde, dando voz e oportunidade de ação à população. Os gerentes de saúde poderiam entrar no mundo virtual para se comunicar com o público e aprender com sua produção cultural e ativismo. Nossa pesquisa também confirmou que um jogo digital pode funcionar enquanto um agregador social entre os participantes. Mais do que um jogo a ser ganho, World of Warcraft, como o nome sugere é um mundo, não apenas por sua geografia e história, mas principalmente devido às relações que se estabelecem entre suas comunidades. As conexões entre o mundo virtual e o mundo físico são possíveis, permitindo a migração das relações feitas dentro do jogo para outras áreas da vida e vice-versa. No aspecto social, a construção pode ser ainda mais rica para iniciativas de comunicação em saúde pública, pois pode destacar o aspecto coletivo da promoção da saúde. Interagindo com outros jogadores por meio de competição, cooperação ou combate, um jogador verificaria em primeira mão que na sociedade todos têm um papel e algum nível de influência. Responsabilidade com os outros, companheirismo em face de perigo e doença, colaboração para efetuar mudanças e Internet e Saúde 571 debate público para definir estratégias são atividades que potencialmente poderiam mostrar aos jogadores novas maneiras de entender a saúde pública, nas quais a saúde de um indivíduo não é mais um assunto pessoal isolado, mas parte de um todo maior. Finalmente, os jogos digitais dedicados à comunicação em saúde podem ser versáteis o suficiente para modelar muitas situações e cenários, a fim de desafiar as concepções dos jogadores sobre a saúde individual e coletiva. Tais situações não se limitariam a questões epidemiológicas, como aconteceu na epidemia de World of Warcraft. Elas poderiam incluir aspectos políticos e sociais, tornando o jogo um espaço fértil para experimentação virtual e ensaio de novas abordagens para políticas de saúde pública. A comunicação em saúde mais eficiente não é apenas dependente da população, mas é parte integrante de processos políticos mais amplos. Assim o uso de jogos on-line poderia contribuir muito para melhorar esse processo, aumentando o interesse dos cidadãos em efetivamente participar de políticas públicas de saúde, desde a identificação de prioridades de saúde até a sua implantação e recepção. Isso tende a qualificar tais jogos como uma proposta com potencial inovador de comunicação em saúde. Esperamos que os novos avanços no uso de jogos digitais on-line para comunicação em saúde fomentem a participação de jogadores em muitos níveis, permitindo que as lições sobre saúde aprendidas no mundo virtual sejam usadas frutiferamente em sua contraparte física, a fim de beneficiar toda a sociedade. Referências AARSETH, E. Playing research: methodological approaches to game analysis. In: SPILFORSKNING.DK CONFERENCE, 2003, Dinamarca. Anais [...]. Dinamarca: Spilforskning.dk, 2003. Disponível em: http://heim.ifi.uio.no/~gisle/ifi/aarseth.pdf. Acesso em: 25 mar. 2020. ARAÚJO, I. S.; CARDOSO, J. M. Comunicação e saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007. ARAÚJO, I. S.; CARDOSO, J. M.; MURTINHO, R. A comunicação no Sistema Único de Saúde: cenários e tendências. Revista Latinoamericana de Ciencias de la Comunicación, v. 6, n. 10, p. 104-115, 2009. BALICER, R. D. Modeling infectious diseases dissemination through online role-playing games. Epidemiology, v. 18, n. 2, p. 260-261, 2007. 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Os achados apontam que, embora tais tecnologias se sustentem pelo discurso de valorização de uma vida saudável, os comportamentos adquiridos pelos usuários sugerem uma maior vontade de produção de dados para o sistema. Verificou-se, ainda, que as interfaces de visualização de dados propõem um enunciado de saudável apoiado no volume do movimento corporal generalizado. A SP atua como um “dispositivo comunicacional retórico” na associação usuários-wearables. As negociações entre os regimes de expressão do movimento em disputa traduzem a prática da atividade física desvinculando a performance corporal do contexto da ação. Palavras-chave: Internet das Coisas; Comunicação; Dispositivos Eletrônicos Vestíveis; Sensibilidade Performativa; Saúde Digital. Referência: LEMOS, A.; BITENCOURT, E. "Basta mover para ser saudável": sensibilidade performativa e experiências corporais mediadas por dispositivos vestíveis no Brasil. In: PEREIRA NETO, A.; FLYNN, M. (orgs.). Internet e saúde no Brasil: desafios e tendências. 1 ed. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2020. p. 574-598. * Departamento de Comunicação, Universidade Federal da Bahia, Brasil. E-mail: [email protected]. 576 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Introdução Esta investigação tem como objeto de interesse as transformações e reflexos observados no campo das experiências corporais mediadas pelas tecnologias vestíveis. Desdobramento da Internet of Things (IoT), os wearables, ou dispositivos vestíveis, integram um espectro mais amplo das ferramentas computacionais de quantificação individual também denominadas de personal informatics (LUPTON, 2014; RAPP; CENA, 2016). De modo mais específico, os eles são objetos pessoais com propriedades infocomunicacionais (LEMOS, 2013) capazes de extrair informações detalhadas sobre os padrões corporais dos usuários; fornecer narrativas individuais construídas mediante ação algorítmica; e convocar o corpo a participar da mesma rede sociotécnica que ele integra 1 (IoT). A essa habilidade senciente dos objetos da IoT, atribuímos o rótulo de sensibilidade performativa (SP) (LEMOS, 2016). Essa característica geral da IoT também se faz presente nos dispositivos vestíveis (LEMOS; BITENCOURT, 2018; 2017), viabilizando processos de dataficação das experiências corporais (SMITH, 2016; SUMARTOJO et al., 2016). A SP, portanto, amplia as propriedades da computação vestível para além da simples disponibilização informacional constante no espaço pessoal do usuário, como propôs inicialmente Steve Mann (1998), a quem se atribui a primeira definição desse modelo de computação. Entre as múltiplas categorias de dispositivos existentes no mercado, os wearables dedicados ao monitoramento da saúde, os denominados fitness trackers, figuram como os principais responsáveis pelo crescimento do mercado no setor de wearables. Os dados mais recentes da pesquisa da International Data Corporation (IDC, 2016) apontam que os fitness trackers representaram 85% do segmento em 2016, com 23 milhões de unidades comercializadas apenas no último quadrimestre fiscal do mesmo ano. O último relatório da empresa Tratica (2016) também prevê que essa categoria de wearables deve saltar das atuais 2,5 milhões de unidades comercializadas por ano para 97,6 milhões de unidades anuais até 2020. Dedicados à extração constante de dados corporais em troca de orientações para uma vida mais saudável, os fitness trackers também vêm ganhando destaque no mercado da saúde digital (CHUNG et al., 2016; MERCER et al., 2016). Isso ocorre sobretudo, em função do interesse crescente das políticas públicas sustentadas no argumento da responsabilização individual em relação à prevenção de doenças e à construção de um corpo sadio (DE VOGLI, 2011; AYO, 2012). O relatório da Comissão Europeia sobre mobile health de 2014 (EUROPEAN COMMISSION, 2014) projetou que o mercado de gestão da saúde por meio dos dispositivos vestíveis atingiria 23 bilhões de dólares em 2017, sendo 1 Senciência aqui se refere à capacidade dos objetos perceberem a si mesmos, se comunicarem com outros e com o ambiente, de maneira autônoma mediante a agência dos algoritmos na rede. Ver Lemos e Bitencourt (2018). Internet e Saúde 577 60% das implementações seriam dedicadas ao monitoramento remoto de pacientes para fins de tratamento. Ainda de acordo com o relatório citado, o uso dessas tecnologias é um importante aliado na redução de até 99 bilhões de euros em verbas de saúde, com destaque para os setores de bem-estar, prevenção, tratamento e monitoramento, com potencial de economizar cerca de 69 e 32 bilhões de dólares, respectivamente. No Brasil e no México, as previsões não são tão diferentes. Tripathi et al. (2013) 2 afirmam que o emprego da mobile health pode oferecer acesso à saúde para 28 milhões de pessoas no Brasil e 15 milhões no México, sem a necessidade de investimentos adicionais com médicos. Os autores estimam que a implementação da gestão remota da saúde pode reduzir os custos públicos e privados no setor em até 14 bilhões de dólares no Brasil e 3 bilhões de dólares no México. Adicionalmente, as pesquisas da Logicalis Inc. (LOGICALIS INC., 2012) sugerem que 75% dos usuários de wearables pertencentes às economias emergentes – incluindo Brasil, Rússia, Índia, Emirados Árabes Unidos e Malásia –, demonstram forte propensão a permitir que seus empregadores usem os dados dos wearables pessoais no ambiente de trabalho em troca de descontos nos programas de saúde corporativo – prática popularmente conhecida por Bring Your Own Device (BYOD) . 3 Entre os posicionamentos favoráveis à computação vestível, presentes na literatura, destacam-se os trabalhos que defendem que ela reduz os custos com seguros de saúde (SPRINGBUK, 2016), aumenta os poderes especiais aos usuários (RAJ; HABROOKSHIRE, 2016) e previne sintomas mediante predições algorítmicas promovidas (AALBERS et al., 2015; PELLANDA; PELLANDA, 2016; ICR, 2017). As perspectivas mais críticas, entretanto, questionam a efetividade das informações oferecidas e os modelos de engajamento promovidos pelos dispositivos vestíveis. Os argumentos mais recorrentes são: o alto índice de abandono nos primeiros seis meses de uso (LEDGER, 2014; 2016; LEDGER; MCCAFFREY, 2014); a baixa confiabilidade dos dados (HILTS; PARSONS; KNOCKEL, 2016); a diminuição do engajamento com o aumento do tempo de uso (SCHAEFER et al., 2016); o esforço extenuante em registrar os dados (CHOE et al., 2014); a pouca integração com as atividades cotidianas; a baixa relevância ou dificuldade para interpretar as informações oferecidas pelas interfaces (RAPP; CENA, 2016); e a indisponibilidade de ferramentas que permitam responder às questões específicas dos usuários a partir do histórico de dados armazenados (LI; DEY; FORLIZZI, 2011). Embora os dispositivos vestíveis já se apresentem como um fenômeno de interesse internacional, a literatura brasileira sobre o tema ainda se mostra extremamente escassa. No portal de periódicos da CAPES – maior base indexada do país –, a busca por artigos 4 publicados em periódicos revisados por pares em língua portuguesa nos últimos 20 anos indicam apenas seis ocorrências. Destas, somente quatro elegem o tema dos dispositivos 2O capítulo 18 aborda o tema da mhealth. de Bring Your Own Device, em tradução livre, “traga o seu próprio dispositivo”. 4 A busca foi realizada em 30 de maio de 2017 com os marcadores wearables e vestíveis. Esse achado, embora proveniente de uma fonte representativa, não reflete a totalidade das publicações nacionais sobre o tema. 3 Acrônimo 578 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) vestíveis como questão central do texto. Os trabalhos mais recentes prezam pela contextualização dos wearables como tecnologias de prevenção primordial de fatores de risco cardiológicos (PELLANDA; PELLANDA, 2016). Também prezam pela reflexão sobre as reconfigurações dos processos de produção, acesso e consumo da comunicação frente aos reflexos da computação vestível na tecnosfera (SQUIRRA, 2016). As publicações anteriores ao último quinquênio propõem uma caracterização das interfaces que colocam a ação e a performance corporal como o centro do procedimento de input de dados – enactive (DONATI, 2008). Além disso, fomentam a discussão acerca da definição dos wearables e das potências que eles representam para a reconfiguração do corpo e do espaço (DONATI, 2004). Nota-se, contudo, que em nenhum dos quatro trabalhos mencionados há uma exploração empírica que tome por base as experiências de uso envolvendo os dispositivos já disponíveis no mercado. Sobre esse tipo de investigação em território nacional, tem-se apenas o registro de uma pesquisa de campo com 505 sujeitos, conduzida pela empresa Carenet Longevity (2015). Os dados dessa investigação apontaram que, do total de pessoas investigadas, 79% (399) tinham conhecimento sobre o significado do termo wearables, e desse montante apenas 27% (108) já havia adquirido esse tipo de tecnologia para monitoramento das suas atividades físicas. Entre os 292 sujeitos que ainda não possuíam um dispositivo vestível, 91% (265) estariam dispostos a pagar por um, embora 57% (143) desses propensos consumidores mencionaram o preço como o maior impedimento à 5 aquisição. Complementarmente, em uma entrevista recente , o empresário Immo Oliver, Chief Executive Officer (CEO) da Carenet, também considerou como um dos principais entraves para a baixa popularidade dos wearables no país a alta carga tributária brasileira e a ausência de grandes cadeias internacionais de varejo no mercado nacional. Diante desse cenário, este capítulo se propõe a contribuir com o campo teóricoempírico sobre o tema no país, refletindo sobre o papel da agência infocomunicacional (SP) dos wearables nos corpos a partir de um mapeamento das experiências de uso desse tipo de tecnologia no Brasil. Como principais motivações, investigou-se as principais transformações corporais observadas pelos usuários e as possíveis relações existentes entre as mudanças corporais percebidas e os programas de ação promovidos pelos sistemas dos wearables utilizados. Os dados foram coletados por meio de um questionário eletrônico disponibilizado nas redes sociais (Facebook e Twitter) e via listas de e-mail. 5 Durante a etapa de coleta de dados realizou-se uma entrevista aberta com o CEO da Carenet. Atualmente, a empresa é a maior representante nacional no setor de tecnologias vestíveis. Internet e Saúde 579 1. O que não é um dispositivo wearable: objetos sensíveis VS objetos sencientes Inicialmente definidos como “computadores subordinados ao espaço pessoal do sujeito, controlado pelo usuário e com constância operacional e interacional” (MANN, 6 1998, tradução nossa), o dispositivo vestível popularizou-se enquanto ferramenta dedicada à disponibilização instantânea da informação. No princípio, esse modelo de computação pessoal era focado na liberação das mãos durante o acesso aos dados e na difusão rápida de informação em esferas militares e industriais (VISEU, 2003). Mais recentemente, com o incremento da microinformática e da conexão pervasiva às redes de comunicação, o dispositivo vestível passou a ser definido metonimicamente a partir de qualidades como responsividade, sensibilidade, (VISEU, 2003), companhias digitais (ÖZCAN et al., 2016) e segunda pele (DONATI, 2004). Como afirma Lupton (2016a), esses objetos passaram a operar como repositórios de comunicação dos usuários, não apenas trocando informação, mas interpretando os corpos aos quais se acoplam (LUPTON, 2012). A capacidade interpretativa dos wearables, contudo, não é exclusiva ao objeto, mas dispersa na plataforma da qual ele faz parte. Advogamos que os dispositivos vestíveis são atores-rede (LATOUR, 2012; LEMOS, 2013). Consequentemente, eles não podem ser definidos apenas pelos atributos presentes no objeto, como possuir um sensor, fornecer informação constantemente, ou ser usado no corpo. A peculiaridade dos wearables reside justamente na capacidade de extrair dados corporais, trocar e produzir informações, bem como performatizar ações a partir de um processamento compartilhado. Consequentemente, os wearables se caracterizam mais pela capacidade de circular, processar, interpretar e produzir informações corporais em rede que pela exclusiva presença da eletrônica e dos sensores embarcados na materialidade do objeto. Eles diferenciam-se dos demais dispositivos eletrônicos dedicados ao corpo em função de quatro aspectos fundamentais: a senciência, a materialidade orientada ao corpo, o ecossistema modelo-plataforma e a sensibilidade performativa. Analisaremos a seguir cada um destes aspectos. Os wearables são sencientes pois não reagem apenas a estímulos. Essa capacidade caracterizaria os objetos como sensíveis. Os wearables são sencientes pois são dotados de uma identidade numérica, identificam seu posicionamento na rede e percebem o entorno mediante a extração de dados via sensores e processamento computacional. Essa percepção autônoma, entretanto, depende da segunda característica, a conectividade. É a presença de interfaces físicas e de software que viabilizam a conexão do objeto em uma rede mais ampla de processamento de informação, conferindo autonomia em relação ao 6 Texto original: “A wearable computer is a computer that is subsumed into the personal space of the user, controlled by the user, and has both operational and interactional constancy” (MANN, 1998). 580 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) usuário. Logo, a autonomia do wearable é dependente da conexão à rede, e não uma propriedade garantida apenas pela computação existente no dispositivo vestível. Adicionalmente, os wearables distinguem-se dos demais dispositivos móveis uma vez que sua materialidade é prioritariamente orientada ao corpo – quer nos protocolos de interatividade voltados à performance, quer nas interfaces dedicadas ao acoplamento corporal. Embora um smartphone possa detectar movimentos e dados biométricos, os dispositivos vestíveis são dedicados à extração de informações específicas relacionadas aos padrões corporais, como ritmos circadianos, índices glicêmicos, estresse, variação de temperatura etc. Diferentemente dos objetos eletrônicos meramente sensíveis, a computação vestível depende de um ecossistema modelo-plataforma (GILLESPIE, 2010) para processar grandes volumes de dados e produzir informação fundamentada nos padrões verificados. É por meio da plataforma que as propriedades computacionais dos objetos se ampliam, permitindo a construção de narrativas e a tomada de decisões com base em uma ampla rede de objetos, empresas e terceiros. As características supracitadas vinculam-se diretamente à última particularidade, a sensibilidade performativa (LEMOS, 2016). Tendo em vista que o dispositivo wearable é um ator-rede, a sensibilidade que atribuímos a ele diferencia-se das demais propriedades sensíveis exclusivas aos sensores presentes no objeto. A SP é um agenciamento de sensibilidade e performance algorítmica, viabilizada pelo processamento e interpretação em rede das informações extraídas do ambiente, no caso mais geral da IoT, e do corpo, no caso dos wearables. Dizemos, então, que a SP é uma sensibilidade cuja performatividade é distribuída e atua em rede. Por conseguinte, ela não se localiza apenas no dispositivo, mas produz agências informacionais por meio dele (LEMOS; BITENCOURT, 2018). Consequentemente, sem a rede, o dispositivo é apenas um objeto sensível – indiferenciado de um termômetro de pulso, medidor de pressão arterial ou um glicosímetro, por exemplo. E sem o objeto, a plataforma também não é capaz de sentir o corpo. Conectados, entretanto, a rede corpo-objeto-plataforma é ativada pela SP, fazendo circular informação e produzindo discursos (sobre o corpo, a saúde, o objeto, a empresa…) sistemicamente. Nesse sentido, a SP opera como um media, um dispositivo comunicacional que não apenas direciona narrativas, mas as produz mediante sua procedimentalidade algorítmica em rede. Dessa forma, compreendemos a computação vestível menos a partir das subespecificidades materiais do objeto (hearables, ingestibles, implantables, patches etc.) e mais pelos modos como a SP dos dispositivos traduzem as experiências corporais dos usuários. Em outros termos, defendemos que os wearables são objetos sencientes, conectados em rede, com uma materialidade (física e digital) orientada a processos 7 autônomos de dataficação corporal e que agem mediante a sensibilidade performativa dispersa na plataforma econômica da qual fazem parte. 7 Dataficação é a prática de transformar diversos aspectos de vida quotidiana em dados que são posteriormente transformados em informação percebida como uma nova forma de valor. Internet e Saúde 581 2. Procedimentos de coleta e análise Foi realizada um survey com amostragem não probabilística. O instrumento de 8 coleta de dados foi um formulário composto por 37 questões, sendo 13 de múltipla escolha, 17 de escolha única, 3 de escala de avaliação modelo Likert e 4 abertas. As questões foram divididas em quatro grupos, a saber: perfil demográfico do usuário, práticas de monitoramento pessoal, captura de dados pessoais e reflexo do uso dos wearables. O instrumento foi divulgado em perfis pessoais e institucionais como a página do Laboratório 9 10 de Pesquisa em Mídia Digital, Redes e Espaço - Lab404 no Facebook , no Twitter e por email. Na primeira divulgação, utilizou-se o recurso link patrocinado, com direcionamento de audiência para o público nacional, faixa etária entre 18 e 60 anos e interessados por temáticas relacionadas a bem-estar, atividades físicas e tecnologia. Adicionalmente, o formulário também foi divulgado em comunidades e grupos do Facebook destinados ao compartilhamento de informações sobre wearables e dispositivos das marcas mais populares do segmento no mercado global – Apple, Fitbit, Garmin, Samsung e Xiaomi (IDC, 2016). No total, foram coletadas 124 respostas (121 válidas) durante o período da coleta, compreendido entre 20 de dezembro de 2016 – data da divulgação do formulário –, e 16 março de 2017. É importante destacar que na ocasião da pesquisa não era possível encontrar dados oficiais acerca do número de usuários brasileiros de wearables. Três das cinco maiores marcas do mercado global citadas já comercializam dispositivos no país (Garmin, Apple e Samsung). Porém, não há informação oficial sobre o volume de vendas ou percentual de participação no mercado brasileiro. Mesmo com o destaque do dispositivo vestível nos jogos olímpicos do Rio de Janeiro (ALVAREZ, 2016; COMSTOCK, 2016), os relatórios globais sobre o tema são lacônicos em relação ao volume do consumo desses dispositivos no país. Nos poucos registros disponíveis sobre essa população no Brasil, a pesquisa conduzida pela Carenet Longevity (2015) apontou que, entre as 505 pessoas entrevistadas, apenas 107 já haviam experimentado um dispositivo vestível. Dessa maneira, embora a presente investigação foque apenas nos usuários de wearables e conte com um expressivo número de sujeitos investigados que utilizam esses dispositivos (n=121), o desconhecimento do universo de consumidores brasileiros desse tipo de tecnologia impede uma generalização dos achados. Os dados da survey foram tabulados e inseridos no software de análise qualitativa Atlas.ti. As alternativas que compuseram as 37 questões disponíveis no questionário foram transformadas em categorias de investigação, de modo a auxiliar o processo de 8 O formulário usado para a pesquisa pode ser acessado no link: https://goo.gl/forms/jqVtkY8g9UsEQAqk1. Disponível em: http://www.lab404.ufba.br/. 10 O capítulo 8 discute o tema Facebook e saúde. 9 582 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) agrupamento das respostas para tratamento posterior. A análise dos dados buscou caracterizar o perfil das experiências com a tecnologia vestível a partir dos seguintes parâmetros: tempo de experiência com os dispositivos, intensidade do uso, engajamento, percepções gerais após o uso, hábitos adquiridos após o uso dos dispositivos e reflexos positivos observados no cotidiano (Tabela 1). Tabela 1. Detalhamento das categorias utilizadas para a análise com base nos resultados do questionário aplicado Grupo Categorias* Variáveis Definição Até 6 meses Tempo de experiência com o wearable Até 1 ano Mais ano de 1 Mais anos de 2 Moderado ou Intenso Parâmetros de análise Intensidade do uso do wearable Contextual ou interrompid o Abortou a experiência Ativo Experiência de uso e interativida de Engajamento Experiência s corporais Percepções Gerais de si após o uso Abandonou Perda roubo ou Atento corpo ao Possui entre um mês até 6 meses de uso Possui de 6 a 12 meses de uso Possui de 13 a 24 meses de uso Possui mais de 24 meses de uso Retira o wearable apenas para dormir, tomar banho ou carregar (de acordo com a limitação do dispositivo) Utiliza o vestível apenas em contextos de treino, prática de atividades físicas ou utiliza de maneira irregular. Fez uso apenas ocasional e desistiu Usa até o momento Abandonou Uso interrompido por causas externas Usuários passaram a se preocupar com o sono, com os alimentos, com o peso ou com o sedentarismo Quantidade de usuários por resposta Total de respondentes Tipo da questão 119 Resposta única 33 21 32 33 77 119 Resposta única 120 Resposta única 14 5 88 21 8 70 115 Múltipla escolha Internet e Saúde 583 Motivado p/Atividade física Cobrado por metas Frustrado sem o dispositivo Comportame nto Interativida de Hábitos adquiridos após o uso Percepção Corpo Reflexos positivos observados no cotidiano Esporte Saúde Usuários sentem-se mais motivados e propensos à prática de esportes ou atividade física Usuários passaram a se sentir cobrados a atender as metas e estatísticas estabelecidas pelo sistema Usuários sentem-se frustrados sem o dispositivo. As atividades que não foram registradas parecem perder o sentido (andar, dormir, comer etc.) Hábitos alimentares; movimentamse mais; hábitos de sono Checagem de gráficos e dados; tenta cumprir metas; tenta conseguir passos extras Limite do corpo baseado no sistema; decide pelo dado; autoavalia o estado geral de bem-estar; autoavalia o estresse e as emoções Perdeu peso; desenvolveu tiques relacionados ao dispositivo Usuários passaram a praticar esportes ou melhoraram a performance Usuários melhoraram índices médicos como 70 39 12 80 76 120 Múltipla escolha 119 Múltipla escolha 51 36 65 64 584 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Comportame nto Imagem pessoal glicemia, colesterol etc. Usuários passaram a dormir ou se alimentar melhor Usuários sentem-se mais “cool” ou na moda 35 33 Fonte: Os autores (2020). * As categorias de análise foram compostas com base no objetivo das questões disponibilizadas no questionário aplicado. 3. Perfil dos usuários Figura 1. Wearables mais populares, marcas mais citadas e percentual de abandono. Fonte: Os autores (2020). Os resultados obtidos sobre o perfil dos respondentes indicam que os usuários de wearables investigados pertenciam ao gênero masculino (83,5%), com faixa etária entre 26 e 40 anos (47%) e renda acima de R$ 5.000 (59,5%). A maior parte era das regiões Sudeste (40,5%) e Nordeste (31,4%), usava sistema operacional da Apple (50,4%) e também fazia uso de outros aplicativos móveis para monitorar a saúde (95,3%). Com relação ao tipo do dispositivo, as respostas destacaram as pulseiras inteligentes (73,7%) e relógios inteligentes (53,4%) como preferências. Os fones de ouvido e os clipes inteligentes representaram respectivamente apenas 6,8% e 5,9% das escolhas dos participantes (Figura 1). Na população investigada, registrou-se que apenas 18% dos sujeitos abandonaram os wearables, percentual menor que o percentual de 33% indicado nas pesquisas de Ledger (2014; 2016) e Ledger e Mccaffrey (2014). As marcas mais populares entre os respondentes divergiram do posicionamento global das empresas líderes de mercado indicadas pelo relatório da empresa IDC (IDC, 2016). Enquanto no ranking internacional a Fitbit lidera as vendas, seguida pela Xiaomi, Internet e Saúde 585 Garmin e Apple, entre os participantes do formulário, a Xiaomi (38%) liderou as preferências, ficando à frente da Apple (31,6%) e da Fitbit (24%). Cabe frisar que, entre as marcas mais citadas pelos sujeitos, os dispositivos da Xiaomi possuem um menor custo – 11 a miBand 2 pode ser adquirida por 55 dólares, já com os custos de importação . Em contrapartida, as iniciativas nacionais como aquelas da Netshoes e da Carenet representaram, respectivamente, 3,3% e 2,5% dos dispositivos usados. Adicionalmente, embora a pesquisa da Carenet (CARENET LONGEVITY, 2015) tenha indicado que 35% dos participantes possuíam um vestível da marca Polar e 24% da All4One, na presente investigação, apenas um usuário mencionou a marca Polar (0,8%). A All4One não foi citada. Entre as instrumentalizações promovidas pelos wearables, a possibilidade de conhecer melhor o próprio corpo (65%), a sensação de poder obter informação instantânea sobre a saúde (60%) e a otimização dos treinos e atividades físicas (47,1%) foram os aspectos do uso mais valorizados pelos participantes. Nesse quesito, o número de passos dados (72,7%), os batimentos cardíacos (72,7%) e os padrões de sono (65%) figuraram entre as informações mais relevantes fornecidas pelos dispositivos. As premiações recebidas em função das metas conquistadas foram listadas como importantes para apenas 10% da população investigada. Figura 2. Percepção dos usuários em relação às informações mais importantes da interface, as vantagens de usar o vestível e o dado digital em si. Fonte: Os autores (2020). Em relação ao fluxo de informações pessoais, 67% dos sujeitos reconhecem que sabem muito pouco ou que não possuem informação em relação às políticas de gestão e 11 A Xiaomi esteve no Brasil durante 2015 e 2016. No momento da pesquisa o consumo dos wearables da marca era possível apenas mediante importação conforme indica a reportagem do link http://www.zdnet.com/article/xiaomi-downsizes-brazil-operations/. Depois de três anos inativa em território nacional, a empresa retomou as atividades de distribuição no país em 2019: https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2019/05/23/agora-vai-xiaomi-volta-ao-brasil-com-pe-no-peito-ecercada-de-duvidas.htm 586 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) armazenamento dos dados. Adicionalmente, para o imaginário coletivo de 50,4% dos sujeitos, somente a marca e o próprio usuário teriam acesso às informações e aos padrões corporais registrados. Apenas 32% dos usuários de dispositivos vestíveis sugerem ter consciência de que os dados individuais são compartilhados com empresas parceiras da marca, clientes corporativos e instâncias governamentais. Apesar do desconhecimento acerca dos processos que envolvem o dado pessoal na plataforma do wearable, 95% dos usuários avaliavam o dado como uma vantagem; 80% atribuíam credibilidade às informações corporais que recebem dos seus dispositivos; 65% não se interessavam sobre casos envolvendo a exposição de dados pessoais das marcas de vestíveis que consomem; 9% conheciam totalmente as políticas de privacidade; e somente 5% da população investigada demonstrou conhecer os principais pontos pelos quais o dado pessoal circula na rede (Figura 2). 4. Mapeando as experiências de uso Para averiguar as mudanças na esfera pessoal, privilegiou-se a análise das respostas que abordassem três aspectos principais: os reflexos positivos observados no cotidiano, a percepção geral de si e a aquisição de novos hábitos após o uso. Embora muito próximos esses aspectos investigados foram apresentados no formulário com diferentes abordagens (Tabela 1). Figura 3. Reflexos positivos e percepção de si dos usuários após o uso de wearables Fonte: Os autores (2020). Em linhas gerais, os dados apontam que os principais reflexos positivos reportados pelos usuários foram nas esferas do esporte, saúde, comportamento, alimentação, sono e Internet e Saúde 587 imagem pessoal. 54,6% dos sujeitos reconheceram que tiveram um aumento no desempenho das práticas esportivas; 53,7% perceberam melhoria nos índices de açúcar, colesterol etc.; 29,4% afirmaram ter mudado a postura diante dos hábitos de sono e alimentação; e 27,7% atribuíram ao vestível uma melhoria da imagem pessoal, fazendo-os parecer modernos ou “cool” (Figura 3). Entre as mudanças mais identificadas na percepção de si, 60,8% dos respondentes se consideraram mais atentos ao corpo e ao ritmo do sono e também mais motivados para prática de atividades físicas. A terceira alteração mais expressiva foi a aquisição da sensação de cobrança para atender às metas estipuladas pelos sistemas dos vestíveis (33,9%). Tendo em vista que a avaliação da aquisição dos hábitos demanda reconhecer os padrões de engajamento entre os sujeitos e os dispositivos, as respostas desse quesito foram combinadas com outras duas categorias de análise: a intensidade do uso e o tempo de experiência que os usuários possuíam com o dispositivo. Dessa forma, o detalhamento dos achados foi subdividido em dois tópicos: hábitos adquiridos em relação a intensidade de uso e hábitos adquiridos em relação ao tempo de uso. Figura 4. Hábitos adquiridos em relação ao tipo de intensidade de uso. Fonte: Os autores (2020). Para essa análise, os usuários foram agrupados de acordo com a intensidade de uso em: 1. Uso moderado ou intenso – aqueles que retiram o wearable somente para tomar banho, carregar a bateria ou dormir (quando o dispositivo não permite); 2. Uso contextual ou interrompido – o wearable é utilizado apenas em ocasiões de treino ou de maneira irregular; 3. Abandono – sujeitos interromperam o uso por perda, roubo ou desistência. 588 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) De acordo com esses critérios, registrou-se que 84% faziam uso moderado ou intenso, 11,7 % colocavam o wearable somente para treinos esportivos ou ocasiões esporádicas e 4% interromperam o uso. Entre os que faziam uso intenso do wearable, as mudanças observadas com maior destaque foram: aumento no movimento (64%), mobilização para cumprir as metas do sistema (52%) e checagem frequente de gráficos (51%). Para os usuários que faziam apenas uso contextual, as categorias continuaram proporcionalmente com o mesmo destaque – 57% passaram a se movimentar mais, 29% olhavam gráficos com frequência. Nessa categoria de usuários, a perda de peso ganhou expressividade equivalente à visualização de gráficos (29%). Embora a perda de peso também apareça em percentual próximo (30%) entre os usuários que fazem uso intenso e moderado, ela ganhou menos destaque em relação ao percentual das classes de variáveis mais reportadas por esse grupo (movimentar mais e olhar gráficos). Observou-se que, independentemente da intensidade do uso, 21% dos sujeitos indicaram que passaram a desenvolver comportamentos que têm por objetivo conseguir passos extras para enriquecer as estatísticas pessoais. Em outros termos, os sujeitos que faziam uso intenso do dispositivo observaram aquisição de hábitos relacionados à interatividade com o sistema. Das três mudanças com maior destaque, duas delas dizem respeito a procedimentos que buscam atender metas e visualizar gráficos (Figura 4). Tais rotinas ganharam mais destaque que as mudanças nos hábitos alimentares (18%) ou nos rituais de sono, por exemplo. Isso também ocorreu entre os sujeitos que faziam uso mais moderado dos dispositivos. O aumento no movimento e a checagem de gráficos foram mais reportadas do que as melhorias na alimentação (7%) ou no sono (14%). Nota-se ainda que, mesmo entre os usuários que interromperam, o uso as mudanças observadas foram relativas ao aumento do movimento (80%) e ao foco em cumprir as metas do sistema (20%). No tocante ao tempo de uso, os resultados obtidos com a população investigada foram os seguintes: 27,7% dos sujeitos possuíam menos de seis meses de relacionamento com o dispositivo; 17,6% tinham até um ano; 26,8% já utilizavam o vestível por menos de 2 anos; e 27,7% acumulavam mais de dois anos de experiência com a tecnologia (Figura 5). Tomando como referência o tempo de uso, nota-se que, durante o primeiro ano de contato com o wearable, os usuários tendiam a supervalorizar as transformações observadas, em função do contraste verificado entre as rotinas já estabelecidas e os hábitos mais recentes. Quem tinha até seis meses de uso reportou principalmente que passou a se movimentar mais (55%) e a checar gráficos com frequência (39%). Para esse grupo, a terceira mudança mais observada foi “decide pelo dado” (27%) e “tenta cumprir metas do sistema” (27%). Quem possuía mais de 1 ano também notou principalmente um aumento em sua movimentação (72%), uma maior propensão a checar gráficos com frequência (50%), inclinação a atender as metas do sistema (47%) e perda de peso (34%). Para aqueles que Internet e Saúde 589 possuíam mais de dois anos de experiência, o aumento do movimento continuou sendo o hábito mais percebido (70%), seguido pela checagem dos gráficos (48%), a necessidade de cumprir metas (48%), as melhorias no sono (33%) e a perda de peso (30%). Destaca-se, ainda, que a percepção de mudança vinculada à aquisição de hábitos de interatividade (olhar gráficos, cumprir metas) foi mais frequente entre os usuários com mais tempo de uso. 59% dos que registraram essa mudança possuíam entre menos de dois e mais de dois anos de uso. No entanto, os usuários menos experientes, abaixo de seis meses, registraram mais aquisição de rotinas de interatividade (23%) que os sujeitos que já possuíam um ano (19%). É esperado que a aquisição de comportamentos voltados à produção de dados ocorra com maior frequência nos primeiros contatos com o wearable – isto é, quando os sujeitos precisam alimentar o sistema em troca de informações relevantes. Porém, esse padrão de comportamento voltou a ganhar destaque entre os usuários com mais tempo de experiência, ao passo que não foi observado um ganho significativo nas demais rotinas associadas à promoção do bem-estar físico, emocional dos investigados (Figura 5). 5. A generalização do movimento e a agência da SP como um dispositivo comunicacional e retórico Como visto, o aumento da movimentação foi a mudança mais reportada pelos respondentes. Cerca de 62% do total de usuários alegaram que passaram a se movimentar mais, e 80% dos sujeitos que abandonaram o dispositivo também reconheciam um ganho na movimentação enquanto o utilizavam. Verificou-se, ainda, que o aumento na produção de passos cresceu proporcionalmente em relação ao tempo de uso e também acompanhou a evolução de hábitos associados à interatividade com os sistemas (cumprir metas e visualizar dados). Complementarmente, observa-se que, embora a saúde e o esporte sejam as principais esferas nas quais os sujeitos identificam transformações após terem passado a usar um wearable, a maior parte dos hábitos adquiridos referem-se preponderantemente às performances corporais orientadas à interatividade com os sistemas do dispositivo vestível. Em termos concretos, o hábito de olhar gráficos pessoais com muita frequência (44%) é mais citado que a perda de peso (26,6%), as mudanças na rotina do sono (24%), a avaliação geral do estado geral do bem-estar corporal (17,5%) ou das emoções (15%) (Figura 5). 590 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Figura 5. Percepções x aquisição de hábitos após o uso dos wearables Fonte: Os autores (2020). O mesmo ocorreu com o costume de tentar cumprir as metas de passos (42,5%) ou conseguir passos extras para atender os requisitos do sistema (17%). Eles foram mais citados que a aquisição de novos hábitos alimentares (14%) ou a observação das metas estipuladas como o próprio limite físico do corpo (15%). Embora a implementação de uma rotina mais ativa seja uma atitude valorizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o ganho do movimento exclusivamente não é garantia de um modelo de vida saudável. Entre os usuários investigados, é possível inferir que o amplo destaque na aquisição de hábitos voltados à movimentação não é acompanhado por incrementos efetivos em outras esferas corporais relacionadas ao bem-estar geral dos sujeitos. Contrariamente, verificase uma supervalorização da produção de passos, ou steps, como um índice absoluto para a avaliação do grau de saúde dos sujeitos. Embora as interfaces de visualização de dados presentes nos dispositivos mais citados na pesquisa contemplem análises de sono, ganhos calóricos e rotinas alimentares, o movimento continua sendo a ação mais privilegiada para os wearables, usuários e plataforma. Como visto, apesar de 65% dos investigados terem apontado “a possibilidade de conhecer melhor o corpo” enquanto a principal vantagem de usar um dispositivo vestível, o número de passos e o batimento cardíaco foram as informações mais valorizadas (72%). Soma-se a esse achado o fato de que a maior parte dos usuários percebiam ganhos nas esferas do esporte (54,6%) e da saúde (53,7%), ainda que tenham desenvolvido um repertório comportamental com ênfase na produção de passos e visualização de dados. Internet e Saúde 591 Esses achados sugerem uma possível “tradução” (LATOUR, 2012) na percepção do saudável mediada por discursos que valorizam a quantificação corporal, já apontada nas pesquisas de Nascimento e Bruno (2013) e Nascimento (2014). Entretanto, no caso dos wearables, o acompanhamento dos ganhos da saúde corporal sofre a agência direta da sensibilidade performativa (SP) que caracteriza a computação vestível. As interfaces de dashboard, os gráficos de visualização, as premiações são a face material de uma narrativa de si construída pela SP. Tal construção é feita a partir do agenciamento algorítmico dos dados provenientes dos sensores e processados de acordo com os programas de ação que orientam as heurísticas da plataforma da computação vestível. Em uma investigação anterior, Fritz (2014) registrou que os usuários de fitness trackers tendiam a privilegiar as atividades que eram contabilizadas na interface dos dispositivos vestíveis, em detrimento de outras práticas fitness. O foco em acumular passos tornava seções de levantamento de peso menos atrativas que caminhar no shopping, por exemplo. A pesquisa de Li (2009) demonstrou que o foco excessivo na quantificação dos movimentos observado nas interfaces de wearables não contribuiu para que os usuários relacionassem a atividade física e o contexto dessas práticas. Tanto as pesquisas relatadas quanto os achados aqui verificados corroboram com a tese de que há uma mediação retórica da SP que tende a valorizar um modelo de acoplamento informacional wearable-usuário pautado na formatação de enunciados corporais. Tais enunciados são construídos a partir dos recortes heurísticos dos dados que também são privilegiados pelo regime da plataforma. Nesse sentido, o ganho do movimento seria um denominador comum que atende às demandas dos principais atores envolvidos na associação: um corpo em processo de instauração (LATOUR, 2013) que busca aperfeiçoar-se pelo controle, pelo treino e pelo exercício (FOUCAULT, 1990); um objeto que se instaura pela extração e compartilhamento de dados; e uma plataforma políticoeconômica que produz valor a partir da circulação do dado na rede. Nesse processo, cada um dos atores demanda condições favoráveis para participar da rede. Para usar o wearable, o corpo busca informações detalhadas da saúde; para funcionar apropriadamente, o wearable depende do deslocamento do corpo no espaço; para atingir o equilíbrio financeiro, a plataforma precisa dos dados corporais extraídos pelo wearable. Isso implica reconhecer que há, pelo menos, três regimes de expressão 12 (DELEUZE; GUATTARI, 1995) do movimento que precisam ser atendidos. Para o corpo, o movimento é uma atividade física; para o objeto, o movimento é um deslocamento do corpo no espaço; para a plataforma, o movimento é uma comodity heurística. 12 Para Deleuze e Guattari (1995), “assim como há expressões assemióticas ou sem signos, há regimes de signos assemiológicos, signos assignificantes, simultaneamente nos estratos e no plano de consistência” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 84). Nesse sentido seriam necessários “agenciamentos para que seja organizada a unidade de composição envolvida num estrato, isto é, para que as relações entre tal estrato e os outros, entre esses estratos e o plano de consistência, sejam relações organizadas e não relações quaisquer” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 87). 592 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) A computação vestível só existe nessa disputa. Como propõe Latour (2013), o que define os wearables são condições de subsistência em uma rede viabilizando a instauração da computação vestível. Sugerimos anteriormente que é a partir da negociação entre os interesses das trajetórias de instauração envolvidas – corpo, objeto e plataforma – que a computação vestível se configura. Nessa rede, importará menos o que cada um dos atores conquista em si e mais as condições favoráveis para que todos os atores obtenham o necessário para continuarem subsistindo enquanto rede. É preciso que o corpo se mantenha motivado a monitorar, que o objeto continue extraindo e compartilhando os dados e que a plataforma permaneça gerando valor a partir das narrativas procedimentais para que a computação vestível se instaure. De outra forma, é necessário que o corpo perceba os ganhos da atividade física para que o objeto continue extraindo dados corporais e a plataforma siga promovendo serviços e predições de acordo com os perfís digitais construídos mediante a dataficação dos hábitos. Afirmamos que a SP opera justamente como o dispositivo comunicacional que compatibiliza os diferentes regimes de expressão (DELEUZE; GUATTARI, 1995) do movimento e garante o funcionamento do ator-rede wearable. As narrativas da SP são procedimentais: obedecem a um modelo de escrita não representacional, um texto no qual “as palavras fazem coisas” 13 (THRIFT, 2005, p. 241, tradução nossa). O substrato da sintaxe da SP reside nas categorias heurísticas que ordenam os protocolos de funcionamento dos algoritmos na rede. Isso implica que a narrativa heurética da SP compatibiliza o movimento diante dos regimes representacionais envolvidos. A SP apresenta o movimento ao usuário a partir do próprio regime de expressão do sujeito (o discurso visual), classificando-o como atividade física, com base em um modelo de enunciação valorizado pela ciência (estatísticas, linhas de tendências, gráficos) e presentificado em um ambiente de interface pessoal, no qual a informação sobre o movimento do usuário é uma condição para o conhecimento de si. Como reflexo dessa agência retórica da SP, é possível observar um processo de desvinculação entre a percepção da atividade física e a natureza do contexto em que a ação é executada. Os usuários investigados demonstraram perceber os ganhos na saúde e no esporte em função do aumento do movimento. Entretanto, o aumento da atividade física (62%) não acompanhou a formação de outras rotinas saudáveis. Ele esteve diretamente relacionado à aquisição de hábitos voltados à visualização e ao acúmulo do movimento segundo os parâmetros estabelecidos pela plataforma do wearable. 44% passaram a olhar os gráficos com frequência e 42% passaram a tentar cumprir as metas. Em uma pesquisa anterior, que conduzimos com membros da comunidade Fitbit, notamos que os usuários também não associam os steps produzidos à ação de caminhar, de modo que as atividades eram qualificadas positivamente em função do número de steps que proporcionavam acumular no sistema (LEMOS; BITENCOURT, 2017). Em 13 Tradução livre do extrato presente na citação “software does not fit this representational model, for its texts concerns words doing things [...]” (THRIFT, 2005, p. 241). Internet e Saúde 593 investigação posterior, notou-se que os sujeitos também tendiam a associar qualquer atividade voltada ao acúmulo de steps a uma prática fitness. (BITENCOURT, 2019). Nessa mesma linha, Ruckenstein (2014) e Pantzar e Ruckenstein (2015) verificaram uma ressignificação das atividades domésticas de usuários de monitores cardíacos em função do valor que essas atividades passaram a ter para o enriquecimento das estatísticas pessoais. Ao desvincular a ação do corpo e o contexto corporal da ação, a SP cria as condições necessárias para que o corpo, o objeto e a plataforma mantenham-se em associação, viabilizando a subsistência do ator-rede corpo-wearable. De um lado, ela viabiliza que plataforma do vestível leia os movimentos corporais a partir da lógica de categorização de dados nativa da rede; do outro, filtra toda atitude corporal do usuário, apresentando-a por meio de um regime de enunciação que agrega o valor de saudável a qualquer movimento que priorize as heurísticas do sistema. Como reflexo, os dados corporais tendem a ser percebidos com uma pronunciada confiabilidade – 80% dos investigados julgam críveis as informações que recebem dos wearables –, e avaliados como uma grande vantagem para a gestão de si (95%). Esses aspectos contrastam com o movimento expressivo de alienação em relação aos processos que envolvem a tradução do movimento do que é saudável ou do que é cuidado de si, apresentados na rede do dispositivo. Apenas 9% dos sujeitos conheciam totalmente as políticas de privacidade e apenas 5% demonstraram estar consciente dos principais pontos pelos quais o dado circula na rede. A SP simplifica o processo para a instauração de um corpo saudável, garantindo as condições favoráveis para o funcionamento da rede em um argumento: “basta mover para ser saudável”. 6. Considerações finais Foram analisadas as respostas válidas de 121 usuários de dispositivos vestíveis obtidas a partir de um questionário disponibilizado no Facebook, no Twitter e em listas de e-mail, entre o período de 20 de dezembro de 2016 e 16 de março de 2017. Os dados foram inseridos no software de análise Atlas.Ti, permitindo que as respostas fossem analisadas a partir de combinações e coocorrência. Os achados demonstraram que, embora a maioria dos sujeitos investigados reconheçam melhorias na esfera do esporte (54,6%) e da saúde (53,7%), a aquisição dos hábitos mais reportados revelam a construção de rotinas que envolvem um aumento na movimentação (61,6%), uma tendência à visualização frequente de gráficos e estatísticas pessoais (44%) e uma necessidade de atender às metas de passos estabelecidas pelo sistema (42,8%). Verifica-se, ainda, que não há ganho tão expressivo em relação às mudanças nas formas de dormir (24%), de se alimentar (14%) ou de gerenciar as emoções 594 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) (15%). Nesse sentido, os resultados demonstram certa centralidade no acúmulo do movimento enquanto categoria fundamental para a percepção das atitudes saudáveis do corpo. Apresentamos uma proposta para a definição da computação vestível que trata o wearable como um ator-rede que não se limita ao sensor nem às características ergonômicas da materialidade do objeto. Nossa proposta destaca a importância das interfaces de conexão, dos procedimentos de dataficação autônoma, do modelo econômico de plataformas e da agência da SP como características que os diferenciam dos artefatos eletrônicos meramente sensíveis. Defendemos que a agência da SP no corpo é a principal chave para compreender os processos comunicacionais que envolvem a produção de narrativas procedimentais sobre o corpo e a percepção dos corpos em função dessa informação construída algoritmicamente em rede. Embora os dados analisados não permitam generalização dos resultados, os rastros explicitados nos levam ao argumento de que a SP opera como um “dispositivo comunicacional retórico” responsável pela compatibilização entre os regimes de expressão (DELEUZE; GUATTARI, 1995) do movimento entre usuário, wearable e plataforma. Demonstramos que não há um movimento em jogo, mas diferentes formas de sua expressão – a atividade física, o deslocamento e as heurísticas. As negociações entre os regimes de expressão do movimento pela SP traduzem a prática da atividade física para os usuários, desvinculando a performance corporal do contexto da ação. Defendemos, então, que a SP opera como essa chave discursiva e retórica que transita entre “regimes de signo” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 75) distintos, respeitando as leis de expressão 14 de cada território de modo a garantir as condições de existência dos atores envolvidos na associação. Por fim, reconhecemos que, embora o fenômeno da Internet das Coisas aplicado à gestão da saúde e do corpo se apresente como um mercado em ascensão (CHUNG et al., 2016; MERCER et al., 2016) e venha despertando o interesse cada vez mais frequente no campo de pesquisa das Digital Humanities (GINA; DAWN, 2016; NAFUS, 2016; LUPTON, 2016b; CHENEY-LIPPOLD, 2017), ainda existem desafios a serem superados no contexto brasileiro. Entre os entraves mais evidentes, destaca-se: o alto custo dos dispositivos decorrentes dos tributos sobre importação e a ausência de cadeias de varejo que oportunizem a popularização da tecnologia e sua subsequente aplicação nos mais diversos setores sociais. No campo teórico, o avanço das abordagens com uma orientação às novas materialidades (MILLER, 2005; BENNET, 2010; DOURISH, 2017; FINN, 2017), à ontologia orientada aos objetos (HARMAN, 2011; 2016) ou ao caráter social da agência dos não-humanos (DOURISH, 2004; LATOUR, 2012; 2013; LEMOS, 2013) ainda carece de Para Deleuze e Guattari, “[…] um regime de signos é muito mais que uma língua: atuam antes como agentes determinantes e seletivos, tanto para a constituição das línguas, das ferramentas, quanto para seus usos, suas comunicações e difusões mútuas ou respectivas” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 75). 14 Internet e Saúde 595 maior adesão por parte dos estudiosos no campo das ciências sociais aplicadas. Juntos, o acesso restrito aos objetos empíricos e as disputas epistemológicas nas esferas teóricas se mostram como algumas das limitações e, ao mesmo tempo, possíveis tendências para o avanço das pesquisas em IoT no Brasil. Referências AALBERS, T. et al. Using an ehealth intervention to stimulate health behavior for the prevention of cognitive decline in dutch adults: a study protocol for the brain aging monitor. JMIR Research Protocols, v. 4, n. 4, p. e130, 2015. ALVAREZ, E. Wearable tech will be everywhere at this year’s Olympics. Engadget, [S. l.], 2016. Disponível em: https://www.engadget.com/2016/07/29/olympics-wearable-tech/. Acesso em: 1 abr. 2020. AYO, N. Understanding health promotion in a neoliberal climate and the making of health conscious citizens. Critical Public Health, v. 22, n. 1, p. 99–105, 2012. BENNET, J. Vibrant matter: a political ecology of things. Durham; London: Duke University Press, 2010. BITENCOURT, E. C. 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Capítulo 22 Modelos de inovação para promover a digitalização dos serviços de saúde Luís Velez Lapão* Resumo Os sistemas de saúde estão enfrentando muitos desafios, desde variações demográficas até multimorbidades associadas ao aumento da demanda por mais serviços. As novas tecnologias são consideradas como uma solução para esses problemas. No entanto, resolvêlos com a digitalização dos cuidados de saúde implica saber inovar, combinando o uso adequado de tecnologias a processos de trabalho integrados e profissionais de saúde qualificados. Para explorar esse assunto, este capítulo está dividido em cinco seções principais. Na primeira seção, serão destacados os desafios associados à inovação para a digitalização da saúde; na segunda, será discutida a implementação da inovação de serviços digitais, considerando um método de design de serviços de internet; na terceira, será abordado o impacto da digitalização no desempenho da força de trabalho em saúde. Finalmente, este capitulo examina as respostas da inovação aos desafios da digitalização para o futuro. Um processo adequado de digitalização pode permitir mudanças no paradigma da prestação de cuidados de saúde, bem como no mecanismo de participação e envolvimento dos doentes. A sustentabilidade da saúde dependerá da eficiência com que sejamos capazes de inovar no design dos serviços digitais. Palavras-chave: Saúde Digital; Telemedicina; Computadores de Mão; Registros Eletrônicos de Saúde; Estratégias de eSaúde. Referência: LAPÃO, L. V. Modelos de inovação para promover a digitalização dos serviços de saúde. In: PEREIRA NETO, A.; FLYNN, M. (orgs.). Internet e saúde no Brasil: desafios e tendências. 1 ed. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2020. p. 599-616. * Global Health and Tropical Medicine, Instituto de Higiene e Medicina Tropical, Universidade Nova de Lisboa, Portugal. E-mail: [email protected] Internet e Saúde 601 Introdução Os sistemas de saúde precisam ser fortalecidos para enfrentar os novos e os futuros desafios. O crescimento populacional aumentará a demanda por mais serviços. As comorbidades resultantes também estão tornando o sistema mais caro e complexo. As novas tecnologias são consideradas como uma contribuição positiva para mitigar esses problemas. A revolução digital está transformando a sociedade todos os dias; no entanto, essa transformação na saúde parece estar atrasada (JORGENSON, 2001; LAPÃO, 2018). Pode-se identificar uma desproporção entre o atraente lançamento de serviços inovadores e o seu impacto na economia real e na criação de emprego (MCAFEE; BRYNJOLFSSON, 2017). Entre os especialistas, duas ideias estão dominando, uma contra a outra. Por um lado, o quadro cético sobre o retorno econômico da saúde digital. Por outro lado existe a necessidade de lidar com a reorganização da saúde devido ao baixo nível de crescimento econômico diante da crescente demanda por serviços. O processo de digitalização mostra potencial de impacto no desemprego decorrente de mudanças nos serviços de saúde, tal como acontece nas outras indústrias (GREGÓRIO; CAVACO; LAPÃO, 2014). Por outro lado, há autores que estão, no entanto, mais convencidos com a promessa da inovação em saúde, acreditando que os ganhos econômicos da revolução digital ainda estão por vir (AHERN, 2007). A internet e as demais tecnologias digitais estão também produzindo um crescimento significativo de informações na área da saúde. Evidências emergentes apontam alguns efeitos benéficos de sistemas digitais interativos (LAPÃO; SILVA; GREGÓRIO, 2017). Contudo, muitos desafios continuam a existir particularmente no que diz respeito a compreensão das formas de implementação e de avaliação das tecnologias digitais para enfrentar os desafios reais da saúde. As atuais reconfigurações na área de saúde estão tentando abordagens muito diferentes. Elas incluem processos de reorganização e estratégias de combinação de competências; educação e formação das equipes profissionais; sistemas adequados de remuneração e incentivos baseados no desempenho; e desenho de novos serviços digitais. Espera-se que esses novos serviços, assim como ocorreu no setor bancário, sejam uma maneira eficaz de melhorar e ampliar o acesso ao sistema de saúde (EYSENBACH, 2001). Existe uma grande lacuna entre as promessas e as evidências de benefícios (BLACK et al., 2011); e ainda há muito a aprender e a estudar sobre como superar as barreiras que limitam esse processo de transformação. É essencial entender quais serão os efeitos da digitalização dos serviços de saúde na reorganização da prestação de cuidados. Além disso, precisamos saber como as teleconsultas e o telemonitoramento podem aumentar a disponibilidade, acessibilidade, 602 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) aceitabilidade e qualidade (AAAQ)1 da força de trabalho e, assim, ampliar sua capacidade de fornecer serviços mais eficientes (WHO, 2013). As doenças crônicas são identificadas como as principais causas de mortalidade em toda a Europa. e seu impacto no custo dos cuidados ameaça a sustentabilidade dos sistemas de saúde (CASALINO et al., 2003). Elas estão se tornando um desafio para as economias de média e baixa renda devido às transições demográficas e epidemiológicas em curso (WHO, 2011). A crescente prevalência de tais doenças está induzindo reformas nos sistemas de saúde, com a colaboração interprofissional na atenção primária emergindo como um modelo de prestação integrada de serviços (WHO, 2008; ROTHMAN; WAGNER, 2003). Esse é um terreno extraordinário para a inovação digital. Nesse cenário, o objetivo é transformar o cuidado diário de doentes crônicos, envolvendo médicos, mas também atribuindo papéis importantes a outros profissionais, como farmacêuticos comunitários e enfermeiros (CRANOR; BUNTING; CHRISTENSEN, 2003; MAKOWSKY et al., 2009; BODENHEIMER; WAGNER; GRUMBACH, 2002). O foco em modelos multidisciplinares de atendimento e as consequentes reformas na atenção primária estão incentivando a repensar os papéis desses profissionais (KENNIE- KAULBACH et al., 2012). Por exemplo, a orientação da farmácia comunitária para uma prática centrada no doente tornou-se o novo paradigma da prática farmacêutica, apoiada na construção de um perfil clínico para farmacêuticos comunitários e de um papel mais ativo para os doentes na gestão de sua condição (CHISHOLM-BURNS et al., 2010). Esse novo paradigma levou ao desenvolvimento do conceito de "serviços farmacêuticos" (MOULLIN et al., 2013, p. 989). Na atenção primária, os enfermeiros estão cada vez mais mediando as interações entre pacientes com doenças crônicas e médicos. A boa comunicação entre profissionais e entre profissionais e pacientes é essencial na prática multidisciplinar da saúde digital, tornando os sistemas e tecnologias de informação (STI) um pré-requisito para os serviços de saúde do futuro (KATZ; MOYER, 2004). O desenvolvimento contínuo dos STI levou ao surgimento da saúde digital, que pode ser definida como um conjunto de aplicações subdivididas em: (a) sistemas de informação clínica; (b) telemedicina e atendimento domiciliar, sistemas e serviços de saúde personalizados para monitoramento remoto de pacientes, teleconsulta, telecare, telemedicina e telerradiologia; (c) redes regionais/nacionais integradas de informação sanitária, sistemas digitais de saúde distribuídos e serviços associados, como prescrições eletrônicas ou referências eletrônicas; e (d) uso secundário de sistemas não clínicos (como sistemas especializados para pesquisadores ou sistemas de suporte, como sistemas de cobrança) (CALLENS, 2010). Os STI na área da saúde têm sido usados principalmente para melhorar a gestão administrativa. No entanto, a implementação de serviços de saúde digital também tem o potencial de promover um melhor acesso às informações por doentes e provedores, incrementar a qualidade e a segurança dos serviços de saúde e incentivar estilos de vida mais saudáveis (BATES; GAWANDE, 2003; NEUHAUSER; KREPS, 2010; 1 No inglês, a sigla AAAQ corresponde à expressão “availability, accessibility, acceptability, and quality”. Internet e Saúde 603 PIOT, 2012). Investir nos STI pode significar a modernização da arquitetura dos serviços de saúde (por exemplo, a atenção primária) e pode ser considerado um passo necessário e crítico para a difusão de novas práticas mais centradas nos usuários (GREGÓRIO; CAVACO; LAPÃO, 2014). Os serviços de saúde digital podem ser desenvolvidos nos próximos anos para aproveitar todo o potencial de uma maior aproximação aos usuários, aumentando seu papel na rede de assistência e apoiando suas atividades na gestão de doenças crônicas (GEORGE et al., 2010). No entanto, dificuldades na implementação da saúde digital são frequentemente relatadas (KREPS; NEUHAUSER, 2010; KUHN et al., 2007). A maioria dessas dificuldades é frequentemente atribuída a fatores organizacionais e comportamentais (PETRAKAKI; BARBER; WARING, 2012). Para as resolvers, Armstrong e Powell (2008) propõem que uma abordagem centrada no usuário seja promovida para garantir que os serviços de saúde digital atendam efetivamente as necessidades dos doentes (ARMSTRONG; POWELL, 2008). A abordagem centrada no usuário também reforça a apropriação do sistema pelo paciente, resultando em um uso contínuo do sistema e uma maior conformidade a ele (THURSKY; MAHEMOFF, 2007; PAULO; LONEY; LAPÃO, 2017). As características complexas dos problemas que afetam os sistemas de saúde em todo o mundo exigem novas ideias e inovações, visando serviços de saúde mais dinâmicos e flexíveis (CHRISTENSEN; BOHMER; KENAGY, 2000). A implementação de serviços digitais requer planeamento e gestão adequados, especialmente quando falta experiência em inovação e conhecimento sobre os doentes. Por exemplo, os serviços digitais exigem a avaliação do potencial da prestação de serviços clínicos na interação com os doentes e na promoção de sua educação para a saúde. Além disso, os serviços devem abordar aspectos como aceitabilidade, viabilidade, sustentabilidade e adaptabilidade a mudanças futuras. Para atingir esses objetivos, um serviço de saúde digital pode ser concebido, desenhado, desenvolvido, demonstrado e avaliado usando a Design Science Research Methodology (DSRM) (PEFFERS et al., 2007; HEVNER et al., 2004; LAPÃO; SILVA; GREGÓRIO, 2017). Um serviço pode ser considerado como um artefacto para a DSRM e poderia apoiar, por exemplo, a gestão da doença o monitoramento terapêutico dos doentes. Este capítulo está dividido em cinco seções. Na próxima seção, serão destacados os desafios associados à digitalização da assistência à saúde; na segunda, será abordada a implementação de serviços digitais, considerando o uso de um método de inovação para desenhar, demonstrar e avaliar serviços (PEFFERS et al., 2007). Em seguida , será analisado o impacto da digitalização na força de trabalho em saúde, considerando seus muitos desafios. Na quarta seção, será feita uma análise mais detalhada sobre a evolução dos serviços digitais em saúde. A seção de discussão examinará os desafios da digitalização com mais detalhes. O artigo termina com uma conclusão que inclui as principais lições aprendidas e a importância de novos trabalhos futuros. 604 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) 1. Digitalização dos cuidados de saúde As três dimensões da digitalização dos serviços de saúde incluem: um domínio significativo das novas tecnologias digitais e da inovação (MARQUES et al., 2017); um domínio dos processos de trabalho, e por último, a existência de uma força de trabalho qualificada digitalmente (LAPÃO; SILVA, GREGÓRIO, 2017). A tecnologia é um factor importante, mas somente quando alinhada adequadamente aos processos de trabalho. Novas tecnologias como big data analytics, Internet das Coisas2, inteligência artificial (AI), impressão 3D são cada vez mais relevantes, mas também exigem alguma evidência de sua utilidade concreta. A AI, em 10 a 20 anos, permitirá uma melhor compreensão dos padrões dos sistemas de saúde, como alguns comportamentos dos doentes ou de utilização de serviços , permitindo melhor uso dos recursos e criação de valor. As empresas IBM e Google estão investindo grandes quantias de dinheiro nessa área, mas até agora os resultados ainda não atingiram um valor significativo para os sistemas de saúde. A Internet das Coisas na área da saúde traz outros desafios (MARQUES et al., 2017), também com o potencial de serem apresentados dentro de uma década. A qualidade dos dados e a sustentabilidade de uma rede de sensores de saúde estão entre os mais importantes. No entanto, a integração com serviços de saúde adequados (por exemplo, ePharmacare) e a certificação dos sensores e aplicativos móveis podem representar avanços importantes. Curiosamente, a impressão 3D é um dos grandes sucessos na área da saúde. Por exemplo, ela tem sido utilizada na educação como tem sido realizado na Universidade de São Paulo e na produção de novos materiais para fins de implantes cirúrgicos. A chave para a digitalização bem-sucedida é a existência de profissionais altamente qualificados. Um profissional qualificado digitalmente saberá como desenvolver melhor os serviços digitais de atendimento, de maneira que possa melhorar a qualidade e reduzir custos. Uma das principais áreas de atuação desses profissionais é o desenvolvimento de serviços de teleconsultas (LAPÃO; SILVA; GREGÓRIO, 2017). 2. Metodologia: inovação pela implementação de serviços digitais 2 O capítulo 21 aborda o tema da Internet das Coisas. Internet e Saúde 605 A digitalização da saúde depende da implementação de serviços de saúde digitais inovadores. O desenvolvimento de tais serviços parece ser o caminho para o futuro e uma nova área de pesquisa. Será discutido a seguir o caso do serviço ePharmacare (serviço digital de farmácia) um serviço farmacêutico digital produzido a partir da operação das seis etapas da DSRM. As conclusões que serão apresentadas neste capitulo são fruto de uma pesquisa recente (LAPÃO; SILVA; GREGÓRIO, 2017; GREGÓRIO, CAVACO; LAPÃO, 2014 e GREGÓRIO, CAVACO; LAPÃO, 2017 ). . Consideramos o caso do serviço ePharmacare é um bom exemplo, pois implica a interação entre profissionais de saúde (por exemplo, farmacêuticos e médicos) de forma colaborativa com os doentes crônicos. Etapa 1: Identificação do problema real e da motivação para resolvê-lo A atividade de identificação de problemas é crucial para ajudar a focar o DSRM e garantir o envolvimento dos doentes. Três abordagens complementares foram usadas para ajudar a definir o problema: um exercício de cenário (por exemplo: , estratégia), uma análise da literatura (por exemplo: análise de mercado) e um estudo observacional (por exemplo: compreensão dos processos organizacionais). a) Exercício de cenários: a análise de cenários destacou que o desenvolvimento de um novo papel para os farmacêuticos comunitários (ou qualquer outro profissional) depende do ambiente econômico e legislativo em que esses profissionais operam. Também está sujeita à de sua capacidade interna da organização para inovar e desenvolver novos serviços. Num cenário em que os serviços farmacêuticos digitais seriam uma realidade em todo o país, novas regulamentações de saúde precisariam estar em vigor, ao lado de um mercado farmacêutico mais competitivo. Além disso, seria necessária uma abordagem inovadora da gestão das farmácias. b) Analise de literatura: essa etapa ajudou a identificar os dois principais problemas: a falta de incentivos financeiros para a implementação de serviços digitais farmacêuticos e a falta de apoio e orientação de organizações profissionais. c) Estudo observacional: para melhor se entender os processos de trabalho, foi realizado um estudo observacional em várias farmácias comunitárias (GREGÓRIO; RUSSO; LAPÃO, 2016). Foram encontrados cerca de 54 minutos de tempo livre ou ocioso por farmacêutico. Em relação à prestação de serviços farmacêuticos, 29,9% do tempo do farmacêutico foi gasto com prescrição e 13,2%, com medicamentos de venda livre (OTC). Também é relevante o percentual de 4,3% do tempo do farmacêutico gasto em aconselhamento de doentes sem dispensar nenhum medicamento. Os STI foram utilizados para apoiar as vendas, detectando possíveis interações e identificando efeitos adversos dos medicamentos dispensados. 606 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) d) Estudo de custos: em geral, os custos de serviços farmacêuticos nas farmácias participante foram semelhantes. Essa etapa também identificou as atividades mais caras na prestação de serviços farmacêuticos (GREGÓRIO; CAVACO; LAPÃO, 2017). Nessas farmácias, a validação e dispensa da prescrição e a gestão de inventário e de outros registros foram considerados as atividades de maior custo. Essas atividades são os principais alvos da inovação e dos processos de digitalização. Etapa 2: Definir os objetivos de uma solução O DSRM propõe a definição de objetivos para uma solução. Quando as pessoas foram questionadas sobre os novos serviços de farmácia desejados, a entrega em domicílio e os pedidos de medicamentos pela internet foram os mais referidos, seguidos pela integração dos serviços de farmácia com os cuidados primários – por exemplo, agendamento de consultas com o médico e acompanhamento do doente. Apoiados nos resultados desses estudos, as principais metas para o novo serviço puderam então ser definidas. O serviço farmacêutico digital devia permitir o atendimento farmacêutico de doentes crónicos sem sobrecarregar o trabalho dos farmacêuticos, e ter um custo comparável a um serviço de triagem. Ele também devia abordar o monitoramento da terapia dos doentes, abrangendo análises de medicamentos, interações medicamentosas, adesão e a gestão de medicamentos), juntamente com recursos que visam testar a integração de serviços com a atenção primária à saúde – por exemplo, emissão de relatórios para o médico) (LAPÃO; SILVA; GREGÓRIO, 2017; GREGÓRIO, CAVACO; LAPÃO, 2014 e GREGÓRIO, CAVACO; LAPÃO, 2017). Etapa 3: Desenho e desenvolvimento A partir dos resultados obtidos nas atividades anteriores, pode ser proposto o desenho de uma plataforma digital de gestão de doença crônica para apoiar serviços de assistência farmacêutica. A plataforma foi chamada de ePharmacare (LAPÃO; SILVA; GREGÓRIO, 2017). O propósito da plataforma é o armazenamento de informações de tratamento do doente e a possibilidade de melhorar essas informações, permitindo que farmacêuticos e doentes insiram novos dados. Depois que os profissionais registarem os usuários na plataforma, é possível fornecer o serviço de gestão da doença a vários níveis, entre eles: estimativa de datas de preenchimento, fornecendo ao farmacêutico uma previsão de quando é necessário encomendar mais medicamentos e fazer nova prescrição para um doente específico; monitoramento de resultados terapêuticos; detecção precoce de reações adversas, abordando outras doenças ou consultas relatadas pelos doentes. Permitir o monitoramento em tempo real dos parâmetros do paciente, como pressão arterial ou níveis de glicemia, é outro aspecto importante da plataforma. Atualmente, o monitoramento e registro do progresso terapêutico é feito em papel. O ePharmacare Internet e Saúde 607 permite que doentes e farmacêuticos insiram e armazenem essas informações em um banco de dados. Os profissionais podem então organizar e interpretar os dados de uma maneira mais conveniente. Para os usuários, o potencial desse recurso está na possibilidade de acessar seus próprios dados terapêuticos e de gestão da doença crônica em casa, ajudando a sua tomada de decisão. Etapa 4: Demonstração O farmacêutico utilizou a plataforma para realizar reuniões mensais com os doentes, observando, discutindo e registrando dados clínicos. Essas reuniões terminaram com uma sessão de informações sobre diferentes temas de saúde, geralmente de acordo com o contexto da doença crônica, como uso adequado de medicamentos, interações de medicamentos e produtos à base de plantas etc. A troca de informação digital entre doentes e farmacêutico foram relacionadas a modificações terapêuticas, auto-administração de medicamentos (tomar o medicamento) ou automedicação (adquirir o medicamento por iniciativa propria, sem prescrição médica) com medicamentos de venda livre e produtos à base de plantas. Entre os parâmetros analisados, a pressão arterial e a glicemia pósprandial apresentaram melhorias significativas. Etapa 5: Avaliação Para ajudar na avaliação da usabilidade da plataforma digital, foram utilizados óculos especiais de rastreamento ocular. Verificou-se que um farmacêutico demorou em média 7:38 minutos para executar as tarefas de teste. Essa é uma descoberta importante, pois esse período se encaixa no tempo livre encontrado na atividade um. No entanto, é importante destacar que, para usar esse tempo livre de forma eficiente, é necessário fazer uma reorganização dos processos de trabalho nas farmácias e definir os papéis entre os profissionais. Para os doentes, o tempo para realizar um conjunto de tarefas foi considerado menos relevante, pois eles podem usar a plataforma sempre que lhes for mais conveniente. As dificuldades no uso dos STI são comuns nessa faixa etária de doentes com mais de 65 anos e geralmente são abordadas em estudos de usabilidade (KAUFMAN et al., 2003). Etapa 6: Comunicação Essa etapa é responsável pela partilha e discussão dos resultados da implementação do novo serviço digital como uma solução para o problema inicial. Tanto os pesquisadores quanto os farmacêuticos apresentaram os resultados em várias oficinas e conferências técnicas, bem como publicaram em revistas científicas e profissionais (LAPÃO; SILVA; GREGÓRIO, 2017). 608 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) O desenvolvimento de um novo serviço farmacêutico digital pode ser uma importante contribuição para a gestão eficiente de doenças crônicas. Cabe salientar que o monitoramento e a partilha de informações permitiram detectar sinais precoces de reações adversas ou interações potencialmente perigosas entre medicamentos e produtos sem receita médica. No final da atividade de demonstração, os doentes estavam tão envolvidos que perguntaram se era possível continuar usando a plataforma para registro de dados, porque já estavam familiarizados com o seu funcionamento (LAPÃO, SILVA, GREGÓRIO, 2017). Essa é uma visão do futuro. Essa perspectiva implica uma nova forma de trabalhar nas farmácias comunitárias. Alguns autores referem que é necessário criar novas organizações para integrarem os serviços digitais, bem como incorporá-los aos seus modelos de negócios (NICOLE; ROUSE, 2010). Do lado dos doentes e prestadores de cuidados, um sistema integrado pode melhorar a avaliação das necessidades dos profissionais, fornecendo informações personalizadas, por meio de um fluxo de comunicação mais frequente, a baixo custo, gerando um serviço de gestão de doenças de alto valor. A inovação é um processo que implica a transformação de ideias sobre um problema percebido num novo produto, processo ou serviço. Na área da saúde, ela geralmente tem um impacto direto na qualidade dos serviços de assistência e na vida dos doentes. Os desafios colocados pela crescente prevalência de doenças crônicas exigem novas estratégias para a inovação em saúde (GARDNER; ACHARYA; YACH, 2007). O objetivo final da tecnologia e da inovação é melhorar a qualidade de vida. No entanto, com muita frequência, a introdução de novas ferramentas é decidida por formuladores de políticas e especialistas sem envolver genuinamente usuários futuros e aqueles que enfrentam os riscos potenciais. Teece (2010) entende que bons projetos de modelos de negócios sejam dependentes do contexto em que são desenvolvidos, e sua implementação provavelmente envolva processos interativos. 3. O impacto da digitalização na força de trabalho em saúde A maioria dos estudos sobre serviços digitais de saúde concentram-se estritamente nos sistemas de mensagens de texto para alterar o comportamento do doente. Poucos estudos examinaram sistemas para fortalecer os serviços digitais (LAPÃO, 2018). A literatura sobre eficácia clínica, custos e aceitabilidade do doente é limitada. Numa scoping review, encontramos apenas 4 artigos sobre requisitos de capacidades digitais para profissionais (TSIKNAKIS; KOUROUBALI, 2009; CHRISTIANSEN et al., 2014; QUAGLIO et al., 2016; TIAN et al., 2017). Além disso, foram identificados estudos com o registro de protocolos de ensaios clínicos de intervenções digitais multidimensionais em Internet e Saúde 609 larga escala, sugerindo que a atual base de evidências se expandirá nos próximos anos. Desse modo, nota-se que, apesar da promessa ousada das ferramentas digitais para melhorar a saúde, ainda resta muito a saber se e como isso será conseguido. A literatura consultada sugere que a saúde digital pode ser usada como ferramenta para enfrentar os desafios do envelhecimento saudável3 e do acesso universal aos serviços de saúde no contexto da crescente carga de doenças crônicas (GREGÓRIO; CAVACO; LAPÃO, 2014). Os autores consultados destacaram que ela mostrou capacidade especificamente para: • Promover a adoção de estilos de vida saudáveis e autocuidado (TSIKNAKIS; KOUROUBALI, 2009); • Melhorar o acesso a uma ampla gama de serviços de saúde, cobrindo áreas como saúde mental, doenças cardíacas e cerebrovasculares, diabetes e câncer (GREGÓRIO; CAVACO; LAPÃO, 2017); • Beneficiar serviços de radiologia e reabilitação (VAN DEURSEN; VAN DIJK, 2011; BASHSHUR et al., 2009); • Aumentar a eficiência na tomada de decisão clínica e na prescrição por meio da comunicação mais fácil entre os profissionais de saúde (GREGÓRIO; CAVACO; LAPÃO, 2014; VAN DEURSEN; J VAN DIJK, 2011); • Promover atendimento individualizado e centrado no doente a um custo menor (BASHSHUR et al., 2009); • Aumentar a eficácia do manejo de doenças crônicas tanto em instituições de longa permanência quanto em domicílio (GREGÓRIO; CAVACO; LAPÃO, 2014; VAN DEURSEN; VAN DIJK, 2011; BASHSHUR et al., 2009). No início dos anos 2000, a Comissão Europeia adotou uma política para incentivar o desenvolvimento da saúde digital (EYSENBACH, 2001). Foram identificadas as formas pelas quais os serviços digitais poderiam ajudar os doentes, principalmente aqueles que vivem em áreas remotas ou enfrentam condições que podem não ser tratadas com a frequência necessária. Outros benefícios específicos também foram identificados, tais como: melhorar o acesso aos cuidados de saúde, conectando pacientes a especialistas que não estão disponíveis localmente; no nível organizacional, ajudar a reduzir as listas de espera de doentes a otimizar o uso de recursos, permitindo ganhos de produtividade. Na última década, várias iniciativas europeias foram lançadas em apoio ao desenvolvimento da saúde digital no âmbito do Programa de Competitividade e Inovação, em particular seu Programa de Apoio a Políticas e suas experiências-piloto. Ressaltam-se tambémprojetos europeus do programa de financiamento 7th Framework Programme (FP7), como Renewing Health, United4Health e Agenda digital para a Europa. As principais ações políticas, como o Horizonte 2020, a Parceria Europeia de Inovação e o 3 O capítulo 7 discute o tema das NTICs e o envelhecimento. 610 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) Plano de Ação Europeu para a Saúde em 2030, destacaram o valor do uso de tecnologia digital. A Telemedicina Sustentável da organização European Health Telematics Association (EHTEL) ajudou a definir os novos paradigmas de cuidados de saúde para o futuro, além de propor boas práticas no uso dos STI no atendimento integrado (WHO, 2016). A implantação da saúde digital já é o objetivo de várias iniciativas europeias. Atualmente, a saúde digital existe em três tipos principais de serviços: • Diagnóstico: os resultados dos exames de raio-x, ultrassom etc. são enviados digitalmente a partir de um dispositivo de diagnóstico para o profissional de saúde apropriado, que, por sua vez, faz um diagnóstico enviado digitalmente ao médico ou clínica de referência. • Monitoramento: os dados de dispositivos (e.g. sensores) que medem os sinais vitais do doente são rastreados por um centro de monitoramento ou por um profissional médico. Podem-se utilizar algoritmos ou orientações clínicas para apoiar esse processo. Se ocorrer um evento incomum, o monitoramento pode gerar uma resposta na forma de um alerta, contato com um médico ou alguma forma de orientação ao doente. • Consulta: acontece quando uma visita ou diálogo virtual ocorre em vez de, ou além de, uma consulta presencial. 4. O impacto dos serviços digitais no desempenho da força de trabalho Os serviços digitais devem ser desenvolvidos visando melhorar o desempenho da força de trabalho em saúde. No entanto, a literatura permanece escassa sobre como esses novos serviços afetam os trabalhadores. Examinamos o que a literatura indica sobre as dimensões AAAQ (disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade e qualidade) da força de trabalho e chegamos a algumas breves conclusões em relação a disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade e qualidade: • Disponibilidade: Alguns autores indicam que a utilização de serviços de saúde digital potencializa um aumento na produtividade dos médicos graças a práticas de economia de tempo, menor quantidade de trabalho em papel e acesso mais rápido às informações. A maior produtividade se traduz em maior disponibilidade e capacidade de prestar serviços a mais usuários, mesmo que o número absoluto de profissionais de saúde permaneça o mesmo (LAPÃO, 2013; TSIKNAKIS; KOUROUBALI, 2019; CHRISTIANSEN et al., 2014). • Acessibilidade: Van Deursen e Van Dijk (2011) entendem que a acessibilidade à saúde melhora à medida que os provedores de cuidado intervêm à distância, com a Internet e Saúde 611 capacidade de diagnosticar problemas e monitorar as condições do doente por meio de dispositivos. Tian et al. (2017) concluiram que os especialistas, que normalmente se concentram em áreas urbanas e hospitais, tornam-se acessíveis à medida que interagem com seus colegas ou diretamente com os doentes independentemente da distância. Segundo eles, isso permite a expansão da assistência domiciliar e integração de serviços. Aceitabilidade: Alguns autortes admitem que os serviços de saúde digital tornam a comunicação com os doentes mais fácil, direta e adaptada às necessidades de cada indivíduo, aumentando potencialmente a aceitabilidade dos fornecedores de cuidado. Isso é mais provável com pessoas jovens que estão familiarizadas com a utilização de computadores e dispositivos móveis. Estratégias para facilitar seu uso por idosos podem, portanto, ser necessárias (GREGÓRIO; CAVACO; LAPÃO, 2014; BASHSHUR et al., 2009). • Qualidade: Para outros autores, os serviços de saúde digital proporcionam aos provedores de cuidado acesso rápido a informações válidas, segundas opiniões e orientações, contribuindo para ampliar as competências e o cumprimento dos padrões profissionais e, assim, melhorar a segurança do doente (WHO, 2013; TSIKNAKIS; KOUROUBALI, 2009; CHRISTIANSEN et al., 2014). O uso da estrutura AAAQ é relevante para detalhar como se pode organizar a digitalização da saúde para incrementar o desempenho da força de trabalho. Portanto, todo projeto de digitalização deve considerar a avaliação adequada do impacto dos serviços digitais na eficiência dos profissionais e equipes de saúde (i.e., em tempo, no acesso aos dados e na melhoria da comunicação). 5. Discussão Os serviços digitais já estão mudando muitos setores da economia, mas são relativamente novos na saúde (MCAFEE; BRYNJOLFSSON, 2017). Especialistas concordam que isso levanta questões sobre o que pode facilitar sua utilização e quais barreiras precisam ser superadas para tornar reais os potenciais ganhos no desempenho dos trabalhadores e serviços de saúde (MARQUES et al, 2017; TOPOL, 2019). A digitalização em saúde não é uma panaceia, mas oferece oportunidades significativas para melhorar o acesso aos cuidados, conter custos e aumentar a qualidade (TOPOL, 2019). Nesse contexto, foram identificados facilitadores e barreiras, entre eles: indivíduos, doentes, provedores e gestores, associações profissionais, organizações científicas, e o ambiente institucional e regulatório. A recente evolução dos STI é uma oportunidade importante para a integração de novas funções aos serviços digitais, permitindo um papel mais ativo dos doentes na gestão 612 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) das suas doenças. O uso de plataformas, como ePharmacare, apresenta um possível ponto de virada na maneira como os serviços são realizados na atenção primária, alcançando novos canais e mudando o foco da venda de produtos para a prestação de serviços. Os padrões de uso do tempo do farmacêutico, os estudos de custo e as formas de prestação e demanda de serviços refletem a necessidade de reorganizar a gestão das farmácias (ou de outras unidades de saúde) e adquirir capacidades adicionais para fazer a prestação de serviços farmacêuticos digitalmente. A plataforma digital ePharmacare oferece a farmácias e médicos uma maneira de monitorar melhor seus pacientes e, portanto, aumentar a qualidade de seu tratamento. Ao viabilizar uma ferramenta necessária, a plataforma atende à necessidade detectada de STI na prestação de serviços farmacêuticos, oferecendo aos doentes uma nova maneira de interagir com seus dados e fazer parte de seu próprio tratamento como membros ativos no gerenciamento de doenças. A qualidade e a usabilidade da plataforma ePharmacare são críticas. Mas a plataforma não é tudo. Desenvolver e implementar serviços digitais requer profissionais devidamente treinados e motivados. Os serviços farmacêuticos digitais precisam ser mais integrados nas práticas diárias atuais, e alguns esforços de comunicação e marketing precisam ser feitos para recrutar e demonstrar o valor aos doentes crônicos. Consideramos fundamental repensar o modelo de negócios das farmácias comunitárias para integrar de maneira eficaz e coerente seus serviços aos futuros modelos de sistemas de saúde, onde os doentes terão um papel crescente na gestão das suas doenças. A aquisição ou o desenvolvimento de capacidades digitais pelos profissionais de saúde é fundamental. Como observamos neste capitulo a incorporação destas habilidades tem implicações para a educação dos trabalhadores da saúde, a gestão dos serviços, a formulação de políticas e a pesquisa. A implementação adequada de serviços digitais requer ajustes na prestação de cuidadose na organização do trabalho. Consideramos o domínio, as competências para trabalhar em um ambiente digitalizado como essenciais.Os profissionais de saúde devem tê-las, a fim de fornecer os serviços que atendem às necessidades atuais e futuras das populações. O desafio político é as instituições educacionais adaptarem o conteúdo dos currículos e as estratégias de aprendizagem visando preparar futuros profissionais para novas formas de praticar. Há também a necessidade de ajudar a força de trabalho existente a adquirir capacidades digitais, que não existiam quando foram formado s. O impacto da digitalização na prestação de serviços afetará a disponibilidade da força de trabalho em saúde, dependendo do tipo de serviço. Em alguns casos, isso pode levar a uma redução das necessidades, se a produtividade aumentar e a demanda permanecer constante. O mais provável é que tal impacto gere necessidades adicionais e novas, como a profissão de analista de dados de saúde. Como os profissionais agora podem monitorar os doentes remotamente, serão necessários mais médicos e enfermeiros para responder a uma demanda em rápido crescimento de uma população de doentes com condição crônica ou mental. Novas categorias de profissionais Internet e Saúde 613 em tele-enfermagem (ou eNursing, em inglês), para a tomada de decisão inteligente etc. também serão necessárias. Como mencionamos neste capitulo, muitos dos especialistas consideram que a grande parte dos facilitadores e barreiras à difusão de serviços digitais não são muito diferentes daqueles relacionados a outras inovações. Alguns fatores podem desempenhar um papel positivo nesse cenário. Entre eles, estão: o envolvimento de partes interessadas na implementação de mudanças; a visibilidade das vantagens e da facilidade de uso; a liderança; o acesso à formação; o comprometimento e o apoio dos gestores; um bom planejamento; um financiamento favorável; e o ambiente legislativo. Uma barreira típica é a resistência dos trabalhadores mais velhos, que se torna menos problemática à medida que as novas ferramentas se tornam mais fáceis de usar e sua utilidade para o trabalhador e os doentes é quase imediatamente aparente. Outro argumento é que a tecnologia parece estar mudando mais rapidamente do que o ambiente organizacional e institucional. Questões ligadas à responsabilidade legal, à definição legal do âmbito da prática (e.g. legislação permitindo as consultas de telemedicina), à remuneração e reembolso e à padronização das ferramentas estão começando a ser abordadas de forma mais séria. Por isso o Design Science, que foi utilizado no desenho da plataforma ePharmacare, é um bom método para inovar e envolver todos os atores no desenho de uma plataforma digital. Outro desafio é o planejamento da futura força de trabalho em saúde num contexto de rápidas mudanças tecnológicas, demográficas, epidemiológicas, econômicas e sociais. A forma como vamos usar e gerir plataformas digitais para enfrentar os desafios da saúde é um aspecto fundamental para as novas políticas de saúde e uma questão de pesquisa a ser estudada nos próximos anos. 6. Conclusão Os serviços digitais de assistência médica são empreendimentos complexos que podem se beneficiar com as metodologias de implementação de sistemas de informação. O uso do DSRM para implementar um serviço inovador de assistência médica digital oferece um envolvimento maior às partes interessadas, permitindo o alinhamento adequado aos processos e as capacidades dos profissionais. Esse envolvimento mostrou o potencial para desenvolver um sistema de informação personalizado. Os novos modelos de trabalho colaborativo também trazem a necessidade de inovação na força de trabalho em saúde, sendo que a inclusão de enfermeiros nesse processo pode ser benéfica para a eficiência do cuidado. As novas tecnologias são estratégicas no cenário atual; porém, requerem um excelente conhecimento de suas funcionalidades e custos para integrá-las adequadamente aos processos existentes de trabalho dos profissionais de saúde. Também se beneficiam de 614 André Pereira Neto & Matthew B. Flynn (orgs.) uma abordagem de co-design quando os profissionais de saúde lideram e assumem sua utilização. Assim, cria-se uma cultura de inovação digital. Por esses motivos, a adoção de serviços digitais tem demorado. Seus benefícios não virão espontaneamente. Os formuladores de políticas estarão interessados na economia da utilização desses serviços. Os custos diretos podem ser reduzidos, e pode haver economia com menos visitas e hospitalizações. Mas os custos indiretos também precisam ser avaliados, seja para formação ou devido ao aumento da demanda, induzida pela maior acessibilidade facilitada pelas tecnologias. O planejamento de um impacto positivo da digitalização dos serviços de saúde no desempenho da força de trabalho em saúde é essencial. Uma avaliação rigorosa dos serviços de saúde deve ser executada como um processo contínuo de melhoria. A digitalização da assistência à saúde apoiará as mudanças no paradigma da prestação de cuidados, bem como no mecanismo de participação e envolvimento dos doentes. A sustentabilidade da assistência à saúde dependerá da eficiência presente no desenho de novos serviços digitais. Agradecimentos: Esta pesquisa é baseada no projeto ePharmacare, financiado pela Fundação Portuguesa de Ciência e Tecnologia (FCT) e por fundos da FCT (UID/ Multi/04413/2019). Referências AHERN, D. Challenges and opportunities of eHealth research. American Journal of Preventive Medicine, v. 32, p. S75–S82, 2007. ARMSTRONG, N.; POWELL, J. Preliminary test of an Internet-based diabetes selfmanagement tool. J Telemed Telecare, v. 14, n. 3, p. 114–116, 2008. BASHSHUR, R. et al. National telemedicine initiatives: essential to healthcare reform. Telemedicine and e-Health, v. 15, n. 6, p. 600–610, 2009. BATES, D. W.; GAWANDE, A. A. Improving safety with information technology. 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