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Cosa c'è in un nome

2021, Cadernos de Literatura em Tradução

Nesta entrevista tenho o prazer de conversar com Aurora Fornoni Bernardini, professora titular do departamento de letras orientais da FFLCH/USP, crítica literária e tradutora; autora de Aulas de Literatura Russa (2018), Premiada pela APCA, e com o Jabuti na categoria tradução.

436 Entrevista Cosa c’è in un nome? Entrevista com Aurora Fornoni Bernardini Mário Coutinho1 Nesta entrevista tenho o prazer de conversar com Aurora Fornoni Bernardini, professora titular do departamento de letras orientais da FFLCH/USP, crítica literária e tradutora; autora de Aulas de Literatura Russa (2018), Premiada pela APCA, e com o Jabuti na categoria tradução. Italiana radicada no Brasil aos 13 anos, Aurora tem uma riquíssima produção teórica e um grande número de traduções publicadas, dentre essas traduções o já clássico O Nome da Rosa de Umberto Eco (em parceria com Homero Freitas de Andrade), livro que completa quarenta anos em 2020 e é o foco de nossa conversa. Professora, em primeiro lugar eu gostaria de dizer que é uma grande honra poder ter essa conversa. Para começar eu gostaria que você nos contasse um pouco sobre seus anos e leituras formativas, e o que te fez tomar o caminho das Letras. Aconselho aos interessados o livro da coleção Palavra de tradutor da editora Medusa, onde dou uma longa entrevista sobre minha privilegiada formação livresca, pois devo sua origem a um ensino fundamental na Itália que, na época, estava entre os melhores do mundo. Ao mesmo tempo, no antigo ciclo ginasial, que na Itália se chama “Escola Média”, desenvolvi o gosto pelos estudos de língua e literatura, em geral. 1 Graduando em Letras – Português/Grego na Universidade de São Paulo Cadernos de Literatura em Tradução, n. 23, p. 436-440 E como fica a escolha entre sua língua nativa (o italiano) e o russo? Comecei a traduzir do italiano textos com os quais lidava na USP (os manifestos do Futurismo), e em seguida continuei com outros, no intuito de divulgar o que eu considerava importante (Gadda, Buzzati...) que o leitor brasileiro conhecesse. Quanto ao russo, foi um amor de adolescente. Aos 16 anos li Os irmãos Karamázov e fiquei fulgurada pela frase atualíssima de Ivan Karamázov: “se este é o mundo de Deus, devolvo o bilhete”. Decidi estudar sua língua e as circunstâncias ajudaram. A vizinha da casa onde morava (no limite de São Caetano do Sul) era uma grande dama russa (na casa da avó dela tocava o próprio Tchaikóvski) e estudei com ela quatro anos, visitando os bairros próximos de imigração russa. Depois de terminar o curso das “anglo-germânicas” dediquei-me ao russo, com o professor Bóris Schnaiderman que me indicou como assistente. Viajei à Russia e segui a carreira, mas também trabalhei (e trabalho) com literatura comparada, campo no qual pude dedicar-me, entre outras, à literatura italiana. Como você conheceu o professor Homero Freitas de Andrade? Homero foi meu aluno no Curso de Russo da USP quando eu era ainda instrutora voluntária, recém-egressa do curso de especialização em inglês, onde fui aluna de Kenneth Buthlay. Aprendi com esse professor a dar extrema importância, na investigação literária, não apenas à descoberta ao cerne da questão, mas ao witticism, ou seja, à maneira arguta e espirituosa de apresentar esse cerne. Foi justamente esta habilidade que me chamou a atenção quanto ao Homero. Ele tinha o dom do wit, não propriamente do wit erudito, que implica citações e alusões à tradição literária, mas do wit popular. Dou um exemplo. Estávamos nos referindo à obra de uma escritora qualquer, sem grande lustro, e Homero saiu-se com essa: “ela é a rainha do lugar-comum”. Achei que essa capacidade do Homero faria dele um bom tradutor, assim iniciei-o na literatura italiana pela qual ele se apaixonou. Em termos de língua italiana ele era autodidata, mas nos textos em que a redação era dele, o cotejo que fazíamos era rigoroso. Aliás, eu sempre insisti: se o tradutor não é nativo da língua original é obrigatório o cotejo linguístico com alguém que o seja. Eu mesma o pratico: as armadilhas da língua são sutis. Quando traduzo do russo sempre procuro um nativo a quem recorrer. Ano passado me lembro de ter procurado Homero no final de uma de suas aulas para conversar um pouco sobre a tradução d’O Nome. Ele me contou que vocês foram especificamente escolhidos 437 438 Entrevista por Eco para a tradução. Como era o relacionamento de vocês com o autor? E ainda neste tema, Eco, em paratexto de um de seus livros (agora me falha a memória) diz que mantinha um contato próximo com seus tradutores, em que implica esse contato no produto final? Eu conhecera Umberto Eco durante um curso de semiótica que ele deu na USP e, pessoalmente, nos encontros do Instituto Italiano de Cultura de S. Paulo, com o qual eu colaborava. Quando saiu O nome da rosa, que ambos lemos no original, nos entusiasmamos e tentamos traduzi-lo para o português. Não foi fácil conseguir a indicação que devemos não ao autor, mas a Haroldo de Campos, com quem eu colaborava em várias traduções do italiano que fizemos juntos. Digamos assim: Eco perguntou ao Haroldo e Haroldo nos indicou. A tradução foi épica. Palavra por palavra, tudo foi discutido. Infelizmente, na época, não existia o Google, de modo que, em edições subsequentes, tivemos que rever nomes e lugares que tiveram que ser reformulados. Ainda que eu conheça traduções até a seis mãos (posso citar a tradução de Apanhador no Campo de Centeio, assinada por Jorio Dauster, Álvaro Alencar e Antônio Rocha), traduções a quatro mãos ainda são relativamente incomuns. Quais são os desafios na padronização do texto final e nas escolhas feitas ao se traduzir um texto em parceria? Esta é uma questão crucial. Os critérios têm que ser bem claros, para não haver pastiches ou hibridações de estilo. Com Homero o contrato, no que se refere à literatura italiana, era o seguinte: vamos fazer um ensaio: ambos traduzimos o mesmo capítulo e checamos o efeito. Decidimos ambos, no fim, qual é o mais conveniente. Em Os Malavoglia, por exemplo, o do Homero ganhou. O que faz o outro parceiro? Uma coisa importantíssima que se chama revisão. Revisão gramatical, sintática, mas principalmente estilística, o que implica a escolha de sinônimos, a substituição de expressões, o cuidado com o ritmo etc. A esse respeito lembro um episódio de O que é a arte de Tolstói. Certa dama da sociedade levou a Tolstói um manuscrito de sua autoria pedindo ao mestre que desse sua opinião. Quando foi retirá-lo, o manuscrito estava pleno de riscos e de adendos e Tolstói foi lapidar: “aqui está, minha senhora, a diferença entre uma obra medíocre e uma obra literária”. No comment. Um mecanismo que Eco usa, e que eu acho particularmente brilhante, é o do “naturalmente, un manoscritto”, que escusa o autor de diversos problemas conceituais provenientes da escrita de um Cadernos de Literatura em Tradução, n. 23, p. 436-440 livro que emula a linguagem e a mentalidade do século XIV. Adicionado a este mecanismo temos o recurso da tradução: O original italiano é uma tradução de uma publicação em francês de um certo Abade Vallet, que por sua vez é uma tradução do manuscrito original de Adso em latim. Antes mesmo de chegarmos na primeira página do relato de Adso o texto já está envolto em tantas camadas de dissimulação narrativa. Como um tradutor deve receber um texto como este? No caso do manuscrito, como em outros casos em O nome da rosa nos ativemos o mais possível ao original. Curioso, os que não leram o original passaram a achar que a linguagem usada por Umberto Eco precisasse de interpretação ou mesmo – em alguns casos – de “recriação”, no sentido haroldiano. Nada disso; a linguagem de Eco é clara e até mesmo linear. Houve até literatos italianos que a criticaram por isso. Aproveitando que estamos falando de Eco: utilizando os conceitos d’A Obra Aberta o tradutor pode ser considerado autor de uma nova interpretação de um determinado texto e, por consequência, a tradução pode ser tomada como um desvio do original, suficientemente diferente para torná-la texto derivado? Eco escreveu ensaios importantíssimos sobre tradução, inclusive alguns que eu uso como “mandamentos” para o tradutor. Um desses mandamentos diz que a “fidelidade” literal não é garantia de uma boa tradução. Deve haver fidelidade ao “espírito” do original, cuja tradução pode variar conforme a língua e a cultura para o qual é vertido. Vejam-se, por exemplo, os Cantos do Paradiso que Haroldo traduziu e que Eco considerou a melhor tradução até hoje da obra dantesca. Outro aspecto de interesse no livro é a decisão do narrador de “manter” alguns trechos em latim, para efeito de verossimilitude, o original e as primeiras traduções não contêm as traduções destes trechos, o que levou muitos leitores a fazerem compilações das traduções; uma dessas é a The Key to the Name of the Rose. Em uma nova edição exclusiva da Amazon temos as traduções desses trechos por Ivone Benedetti. O que fez vocês optarem por não traduzir esses trechos como notas? Utilizamos essa chave – que foi publicada em italiano – e outras chaves para O nome da rosa. Mas decidimos manter os textos em latim macarrônico, não exatamente na versão original, mas de uma forma compreensível para o leitor culto de língua portuguesa. 439 440 Entrevista E por fim eu gostaria de perguntar se você tem algum conselho para um jovem tradutor de literatura? Sabe qual é o primeiro requisito? Que o futuro tradutor descubra seu próprio estilo. Escrevendo crônicas, diários, continhos, poemas. Afinal, descobrindo para qual gênero ele dá. No caso do Homero, como já disse, descobrimos que ele dava para a narrativa de cunho popularesco e nessa ele foi estupendo. (Veja-se Gadda e Moravia, por exemplo). Eu já tinha propensão para a literatura intimista ou metafísica e assim decidíamos a quem confiar a redação (a não ser para os textos russos, nos quais o papel de Homero era o de revisor estilístico). Segundo requisito (obrigatório): que o tradutor coteje sua tradução com um nativo da língua original. Não vou citar aqui, mas encontrei e encontro barbaridades em traduções do italiano, mas mesmo do russo (de Dostoiévski) e do alemão (de Walter Benjamin). Terceiro requisito, que Homero honrava sobremaneira: fundir rigor, conhecimento e... intuição. Publicamos esta entrevista em homenagem ao professor Homero Freitas de Andrade, falecido em março deste ano. Entrevista concedida a Mário Coutinho, graduando em Letras – Português/Grego na Universidade de São Paulo. Maio/2020