A PERMANÊNCIA DO MITO: DO SACRO AO SIMBÓLICO11
Maria Celeste Tommasello RAMOS12
Guilherme Augusto Louzada Ferreira de MORAIS13
Resumo: Na Era Clássica, os poetas e dramaturgos gregos e romanos registraram os mitos que
eram carregados de valor sagrado. Com o advento da filosofia, os mitos perderam o seu caráter
sacro e passaram ter um valor simbólico e metafórico. Por essa razão, baseando-nos
principalmente em Campbell (1990) e Samoyault (2008), perpassaremos por algumas obras,
fílmicas e literárias, que resgatam os mitos e propiciam a permanência dos mitos na atualidade.
De natureza teórico-prática, buscaremos evidenciar as relações intertextuais detectáveis entre
as narrativas clássicas e as contemporâneas, visto que se percebe uma grande cadeia intertextual
que as une.
Palavras-chave: Mito. Literatura. Permanência.
Abstract: In the Classical Era, Greek and Roman poets and playwrights recorded the myths
that were loaded with sacred value. With the advent of Philosophy, the myths lost their sacred
character and came to have a symbolic and metaphorical value. For this reason, based mainly
on Campbell (1990) and Samoyault (2008), we will go through some works, filmic and literary,
that rescue myths and allow their permanence nowadays. From a theoretical-practical nature,
we will try to highlight the detectable intertextual relations between the classic and the
contemporary narratives, since we can notice a great intertextual string that unites them.
Keywords: Myth. Literatur. Permanence.
Apoio financeiro FAPESP (ver nota 13).
Livre-Docente em Literatura Italiana. Bolsista Produtividade em Pesquisa do CNPq.
Professora no Departamento de Letras Modernas da Universidade Estadual Paulista, UNESP IBILCE,
Campus de São José do Rio Preto SP, Brasil. Endereço eletrônico:
[email protected].
13
Mestrando em Estudos Literários pelo Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual
Paulista, UNESP IBILCE, Campus de São José do Rio Preto SP, Brasil. Bolsa FAPESP - Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Endereço eletrônico:
[email protected].
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Neste trabalho, resultado de pesquisas feitas por ambos os autores, que focam literaturas
italianas e norte-americanas, traçamos uma linha que une a literatura clássica, mais
especificamente, os mitos greco-romanos, à literatura contemporânea e outras mídias, como o
cinema e a série de televisão, de modo a entendermos de que maneira, no século XX, esses
mitos, embora destituídos do valor sacro, são recuperados e atualizados. Entendemos que os
mitos clássicos, ora resgatados pelas artes contemporâneas, formam um campo simbólico para
a estruturação de novas narrativas. Dessa forma, perpassamos por alguns dos grandes nomes da
antiguidade clássica, como Homero, Hesíodo, Ovídio, Sófocles, entre outros, com o objetivo
de evidenciar, com exemplos contemporâneos, como os mitos são reutilizados.
Vale ressaltar que nossas considerações, em vista da complexidade do tema, perpassarão
apenas por alguns casos encontrados nas literaturas e mídias atuais, de forma a compreender
que a mitologia e todas as suas narrativas nunca deixaram de existir, ou seja, encontramos os
mitos não somente na contemporaneidade, mas em todo o decorrer dos séculos e sob variadas
formas de representação, seja na literatura, na arquitetura, na história, nos resgates culturais
(como o de Mussolini e o resgate do mito romano) e nas mídias, como a televisão, o cinema e
os jogos de computador. Ademais, novos mitos são criados ou, pelo menos, reelaborados
constantemente, porque as perspectivas mudam conforme ocorre a evolução das sociedades e
colocar sua mente em contato com essa experiência de estar vivo. Ele lhe diz o que a experiência
é. Casamento, por exemplo. O que é o casamento. O mito lhe dirá o que é o casamento. É a
as narrativas clássicas, e toda a simbologia que as encapsula, são reutilizadas na
contemporaneidade pelo viés da intertextualidade.
Uma das perguntas que sempre aparece quando estudamos a relação mitologia e
literatura é a respeito do caráter sagrado ou fantástico dos mitos da antiguidade até os dias de
hoje, pois os significados dos mitos e de suas representações nas antigas sociedades, como a
grega, a romana e outras tantas, foram e continuam sendo amplamente enfocados por
pesquisadores, filósofos e pensadores ao redor do mundo, num contínuo retomar, pois os mitos
e seus significados profundos foram e seguem sendo muito importantes para o homem em sua
vida individual e em sociedade. Suas origens, seu caráter, sua função e seus desdobramentos
revelam a formação das sociedades primitivas, enraizadas em crenças promovedoras de
conhecimento sobre a gênese do homem, do mundo e dos fenômenos naturais por meio da ação
de deuses, semideuses e heróis.
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Segundo o estudioso Pierre Grimal (2011), os povos, em um determinado momento,
criaram histórias que narraram aos outros e acreditaram em seus relatos fabulosos. Para o
de cada ação dos grandes heróis (assim como suas condutas e façanhas), e das influências dos
deuses na vida do homem. Expõe, ainda, que
[...] a epopeia grega pretende essencialmente engrandecer os debates dos
homens e, através do mito, ampliá-los às dimensões do universo. Seus relatos,
tomados à letra, manifestam fé religiosa: Zeus e as divindades do Olimpo
intervêm nas questões humanas de modo concreto; é preciso honrá-los com
sacrifícios, acalmar seus ressentimentos, ganhar suas boas graças por todos os
meios. Mas, desde logo, a interpretação tende a ultrapassar a estreita
materialidade (GRIMAL, 2011, p.9-10).
Ou seja, na Grécia antiga, uma das funções do mito era a religiosa, pois os deuses e as
narrativas em torno deles eram tomados como sagrados, e a população rendia culto e sacrifícios
a eles por meio de ritos, e atribuía os acontecimentos a sua volta à intervenção deles na realidade
humana do dia-a-dia, agradecendo-os, culpando-os ou louvando-os.
Grimal (2011), em Mitologia grega, aborda os mitos pela perspectiva do pensamento
grego antigo, explicando as divergências entre os mitos de fundo religioso e os mitos de relatos
heroicos. Para ele, o mito gera a parte irracional do pensamento humano e se integra a todas as
atividades do espírito. Em consonância, Vernant (1973, p.303) relata que, na religião, o mito
exprime uma verdade essencial: é saber autêntico, modelo de realidade. Assim, é nítida a
interdependência entre o mito clássico, a religião e sacralidade.
dos astros, da Terra, dos homens, das plantas, dos animais, do fogo, da água, dos ventos, do
bem e do mal, da saúde e da doença, da morte, dos instrumentos de trabalho, das raças, das
mitos está no fato de nos fazerem remontar a uma época em
que o mundo era jovem e as pessoas tinham uma forte ligação com a terra, as árvores, as flores,
as montanhas e os mares, tudo muito diferente daquilo que nós próprios somos capazes de
Hamilton (1992, p.3) e, com efeito, inferimos que, quando as narrativas
mitológicas estavam sendo criadas (ou, então, narradas), quase não se distinguia o real do
irreal, entendendo aqui, que o real seria tudo aquilo que é, de certa maneira, explicado pela
ciência e irreal, tudo o que é fantasioso, artificial e fictício. Como já afirmamos em publicação
anterior (RAMOS, 2005, p.7):
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as muitas definições sobre o que são os mitos oscilam, normalmente,
entre as afirmações de que são uma espécie de ficção ou ilusão criada
pelos homens ou, então, que são ou foram histórias sagradas para um
povo, em alguma época. Assim, para alguns, os mitos têm um caráter
religioso e dogmático, enquanto, para outros, são registros fictícios de
sociedades arcaicas que procuravam compreender e explicar o mundo
por meio de relatos criativos (porém não sempre verdadeiros).
A veracidade ou não dessas narrativas mitológicas não era fundamental, pois a fé no
sagrado das entidades divinas descritas nelas já bastava por si só e explicava, mesmo que sem
comprovação material ou real dos fatos, sentimentos, reações que os homens da época não
podiam entender de forma racional (ou científica), como, por exemplo, o fato de relâmpagos
surgirem no céu e, muitas vezes, fulminarem animais, casas, plantas e até seres humanos não
era entendido como ação natural ocorrida por conta de descargas elétricas de intensidade
considerável que circulam na atmosfera, entre nuvens e solo eletricamente carregados. Os
homens primitivos não sabiam explicar os relâmpagos, então criaram uma narrativa que
constituía o raio como uma arma divina e a atribuía ao deus dos deuses pagãos
gregos e Júpiter para os romanos
Zeus para os
que, quando em fúria (daí os ventos, trovões e chuvas na
atmosfera), lançava contra a terra raios ou relâmpagos fulminantes, que aniquilavam seus
oponentes terrestres. Outro exemplo é o mito de Cupido, que explica e justifica, com suas
flechas da paixão, o amor à primeira vista que arrebata tantos corações entre homens e mulheres
e os levam às mais diversas e apaixonadas relações amorosas desde a antiguidade até hoje.
Porém, devemos considerar também que, nos primórdios, o mito era
[...] um discurso pronunciado ou proferido para ouvintes que recebiam como
verdadeira a narrativa, porque confiavam naquele que narrava; logo, é uma
narrativa feita em público, baseada na autoridade e confiabilidade da pessoa
do narrador. Essa autoridade vem do fato de que ele, ou testemunhou
diretamente o que está narrando, ou recebeu a narrativa de quem testemunhou
os acontecimentos narrados (PASCUTTI, 2005, p.61-62).
Essas grandes figuras, que narraram os mitos na Antiguidade Clássica, foram os poetas
ou rapsodos. Não obstante, acreditava-se que para ser poeta era necessário ser uma pessoa
especial, selecionada pelos
afirma Chauí (2000, p.28-la a quem o ouvia. O rapsodo responsável pela comunicação
do mito em forma de narrativa era, portanto, aquele que proferia a palavra sagrada desde que
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Assim, a multiplicidade de seus narradores (entre eles, Homero, Hesíodo e Ésquilo) fez
com que essas histórias fossem recontadas sob diversos pontos de vista, enquanto a passagem
do tempo preservou a sabedoria e os ensinamentos dos primórdios, também pelo caráter
exemplar e simbólico das histórias narradas. Grande parte das obras clássicas que retrataram os
mitos depende basicamente de Ovídio que, segundo Hamilton (1992, p.15), foi um compêndio
da mitologia, entendida como conjunto de mitos. Para Hamilton, nenhum poeta da Antiguidade
compara-se a ele, pois várias narrativas mitológicas que conhecemos hoje, chegaram a nós por
intermédio dele.
Homero, de modo semelhante, foi responsável por registrar as narrativas de caráter
mitológico empreendidas pelo heroísmo. Eliade (2002, p.131) aponta que sua capacidade
Ilíada e Odisseia contêm, de acordo com Hamilton (1992,
oia, a atuação do herói
Aquiles no combate, e o regresso do herói Ulisses à Ítaca (a segunda), nas quais o modelo
heroico é, então, retratado; Aquiles e Ulisses enfrentam inúmeras provações para, no fim,
obterem triunfo.
Hesíodo, outro grande poeta clássico, escreveu muito sobre deuses e, por conseguinte,
Teogonia
representa uma síntese religiosa já muito complexa, na qual se misturam e
organizam, num sistema quase histórico, divindades oriundas de todos os horizontes do mundo
(ELIADE, 2002, p.132); em consonância, Hamilton afirma que Teogonia
criação do universo e das gerações dos deuses, e tem grande importância para o estudo da
Temos, ainda, grandes poetas trágicos que ilustraram a mitologia através dos dramas
humanos. Sófocles, por exemplo, produziu mais de uma centena de tragédias, sendo, talvez,
Édipo-Rei a mais trágica de todas (e a mais conhecida, atualmente), na qual é explorada a trágica
história do infeliz rei tebano, cujo nome ficou ligado aos dois crimes que maior terror causavam
aos gregos de outrora: o parricídio e o incesto. Ao mesmo tempo, este mito trágico liga-se à
função organizativa da sociedade daquela época, pois foi criado num momento em que os
casamentos entre membros da mesma família comuns antes pela preocupação de manutenção
dos bens materiais sempre dentro da mesma linhagem, mas preocupante pelos problemas de
saúde congênitos que poderia gerar nos filhos frutos das uniões começou a ser condenado e a
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história que resultava num desfecho tão trágico quanto o suicídio de Jocasta e o ato punitivo
contra si mesmo promovido por Édipo de cegar-se para purgar os males causados por ele
involuntariamente ao se casar com sua própria mãe e com ela gerar quatro filhos.
Podemos citar, em paralelo, outros dois poetas trágicos: Ésquilo e Eurípedes. Ésquilo é,
segundo Hamilton (1992, p.17), o mais antigo dos três poetas trágicos e, das sete peças que se
conhecem, uma das mais grandiosas, pelo tema que focaliza, é Prometeu acorrentado, na qual
Júpiter, ao assumir o governo do universo, tornando-se deus supremo, cogitou conservar a
espécie humana em uma condição próxima da animalidade irracional, senão destruí-la,
substituindo-a por outra, de sua criação. Contrariando, porém, os desígnios da suprema
potestade, o titã Prometeu, condoído da sorte da humanidade, conseguiu apoderar-se de uma
faísca de fogo celeste, com a qual dotou o homem da razão e da faculdade de cultivar a
inteligência, as ciências e as artes. Ao ser descoberto por Júpiter, Prometeu foi condenado ao
suplício eterno de estar acorrentado e ter o fígado devorado, diariamente, por um abutre.
De acordo com Hamilton (1992, p.17), Eurípedes é o mais jovem dos três dramaturgos
gregos. Venceu o festival de teatro ateniense por cinco vezes, sendo que o último título lhe foi
atribuído postumamente. Por mais que suas obras tenham caráter mitológico, elas não retratam
negados e/ou vencidos como, por exemplo, Medeia, cujo perfil psicológico retratado foi o de
uma mulher carregada de amor e ódio. Medeia, furiosa, assassina os filhos que teve com Jasão,
a fim de vingar-se do marido traidor, que havia sido ajudado por ela, que, apaixonada, traíra o
próprio pai e matara o irmão para poder auxiliar e promover a fuga de Jasão da Cólquida.
Medeia representa a esposa renegada e estrangeira perseguida, rebelando-se contra o mundo
em que vive. De tal modo, ela é tida como uma das personagens femininas mais surpreendentes
do universo dramatúrgico.
Por fim, dentre os poetas latinos, Virgílio ocupa, de acordo com Hamilton (1992, p.18),
neles encontrou algo da natureza humana, e deu vida aos personagens mitológicos como
consequência, mais conhecida é Eneida, na qual contemplamos a viagem do troiano Eneias,
fugitivo da Guerra de Troia, guiado por sua mãe, Vênus, até o território italiano, onde edifica a
cidade de Roma. Trata-se, portanto, de uma elegia ao imperador Augusto, pois a obra certifica
aos romanos uma linha de antepassados essencialmente latinos (ao mesmo tempo em que
destaca uma ascendência divina).
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Verificamos, assim, o nascimento e o registro literário do mito e, de tal modo, quais
foram os primeiros autores a relatarem o mito pela perspectiva religiosa, dramática ou, como
Virgílio, um meio de se contar a origem e o berço de toda uma nação. O mito, com o passar dos
anos, no entanto, foi perdendo seu valor religioso enquanto a filosofia, por sua vez, ganhava
forças. Graziani (1998) nos diz que, no início do século XII, por exemplo, o mito foi classificado
como um discurso mentiroso que exprime a verdade em repre
definição assinala uma etapa decisiva na concepção que a Antiguidade tinha da função do mito.
Sabe-se que Platão opunha o mythos, enquanto mentira, ao logos
(GRAZIANI, 1998, p.482). Averiguamos, então, que a sacralização do mito foi posta em jogo
quando o pensamento grego buscava mais racionalidade.
sacralidade das obras.
Segundo ele, o mito foi desmitificado pelos próprios gregos, pois foi submetido pela cultura da
p.130). Para ele, foi a ascensão do racionalismo jônico (por volta do século V a.C.) que marcou
proclamaram há
História sacra (Hicra anagraphe), racionalizando os mitos ao lhes atribuir uma realidade
histórica, isto é, ele asseverava que os deuses eram antigos reis divinizados. Após a tradução
fato de a literatura e todas as artes plásticas terem produzido muitas obras em torno dos mitos
de deuses e heróis que a mitologia, mais uma vez entendida como conjunto de mitos, não foi
sagrado.
Assim, uma mitologia secularizada e um panteão evemerizado puderam
sobreviver e se converteram, a partir da Renascença, em objeto de
investigação científica, e isso porque a Antiguidade agonizante não mais
acreditava nos deuses de Homero nem no sentido original de seus mitos. Pelo
fato de não estar mais carregada de valores religiosos viventes, essa herança
mitológica pode ser aceita e assimilada pelo cristianismo. Ela se convertera
poetas, pelos artistas e filósofos. Desde o fim da Antigüidade quando não
eram mais tomados ao pé da letra por nenhuma pessoa culta os deuses e seus
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mitos foram transmitidos à Renascença e ao século XVII, pelas obras, pelas
criações literárias e artísticas (ELIADE, 2002, p.137).
Vale ratificar que essas criações literárias e artísticas continuam a transmiti-los sempre
que são chamadas ao diálogo intertextual, corroborando na construção de mais obras que os
atualizam, os recriam, e, com isso, os retransmitem, continuamente, por meio da construção de
novos textos. Assim, quando um novo texto faz referência a um nome mitológico, ele invoca
toda a narrativa simbólica, que foi sagrada nos primórdios, à qual aquele vocábulo faz alusão,
como, por exemplo, o nome dos heróis Aquiles e/ou Ulisses, ou do titã Prometeu e/ou de Édipo
trazem à mente do leitor, que tem alguma bagagem cultural, as obras Ilíada, Odisseia, Édipo
Rei e Prometeu acorrentado, como já citamos, duas das primeiras que registraram, na literatura,
os mitos orais da comunidade humana que os criou por ter necessidade deles.
Porém, há mais de meio século,
os eruditos ocidentais passaram a estudar o mito por uma perspectiva que
contrasta sensivelmente com a do século XIX, por exemplo. Ao invés de
tratar, como seus predecessores, o mito na acepção usual do termo, isto é,
como fábula, invenção, ficção, eles aceitaram tal qual era compreendido pelas
sociedades arcaicas, onde o mito designa, ao contrário, uma história
verdadeira e, ademais, extremamente preciosa por seu caráter sagrado,
exemplar e significativo. Mas esse novo valor semântico conferido ao
vocábulo mito torna seu emprego na linguagem um tanto equívoco. De fato, a
palavra é hoje empregada tanto no sentido de ficção ou ilusão, como no
sentido familiar sobretudo aos etnólogos, sociólogos e historiadores de
religiões de tradição sagrada, revelação primordial, modelo exemplar
(ELIADE, 2002, p.7-8, grifo nosso).
e isso significa que o mito carrega uma dualidade semântica em que, ao mesmo tempo
que é considerado sagrado, é considerado como mentira ou, então, ficção. É verdade que o mito
conta uma história sagrada, já que a divindade
, p.1314), porém, a partir do século XX, ele foi despojado de seu caráter sacro.
exemplares de todos os ritos e atividades humanas significativas: tanto a alimentação ou o
isso, depreendemos que os mitos ainda têm muito a nos ensinar, ainda que, hoje, ele seja
antigas, houve mitos
que foram desligados de significação religiosa, transformando-se em lenda ou conto infantil.
Como já foi dito, o nascimento da filosofia quebrou a ordem religiosa e sagrada do mito
-se que a filosofia nasceu por uma ruptura radical com os mitos, sendo a primeira
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últimos séculos, estudos de antropólogos expuseram que os mitos são importantes para a
organização sociocultural das sociedades modernas e que, por isso, dizqualquer outro povo, acreditavam em seus mitos e que a filosofia nasceu, vagarosa e
p.30-31). Inferimos, assim, que a filosofia foi uma ramificação, racionalização ou, então, uma
exteriorização dos mitos e que, enquanto o mito não se importava com contradições, a filosofia
não as admitia e, além disso, exigia explicação lógica e sensata do mundo e de suas
manifestações. Em consenso, Vernant (1973, p.318) diz que a filosofia se desenvolve do mito
Entretanto,
as grandes mitologias consagradas por poetas como Homero e Hesíodo [...]
são cada vez mais solicitadas a narrar os gesta dos Deuses. E, em
determinado momento da História, sobretudo na Grécia e na Índia, mas
também no Egito uma elite começa a perder o interesse por essa história
divina e chega (como na Grécia) a não acreditar mais nos mitos, embora
pretendendo ainda acreditar nos deuses (ELIADE, 2002, p.100, grifo do
autor).
Desta forma, percebemos que há, até hoje, uma necessidade de retomar e reutilizar as
narrativas mitológicas. Basta olhar para o cinema para ver a grande concentração de longasmetragens que desfrutam dos temas mitológicos. Fúria de titãs (2010), dirigido por Louis
Leterrier, é um bom exemplo desse retorno aos mitos Clássicos. No filme, o protagonista Perseu
descobre que é o filho do deus supremo Zeus, mas se recusa a admitir tal situação. Entretanto,
para socorrer a cidade de Argos da cólera dos deuses do Olimpo e da vingança de seu tio Hades,
o herói começa uma perigosa jornada, luta contra terríveis criaturas como, por exemplo, a
Górgona Medusa para, no final, salvar os mortais e a bela Andrômeda do sacrifício para o
monstro Kraken. Podemos perceber, com clareza, a retomada do mito de Perseu no qual este,
na narrativa literária de origem, de mesmo modo, enfrenta a temível Górgona.
Outros títulos fílmicos podem ser citados como exemplos como Fúria de titãs 2 (2012)
continuação do primeiro; Imortais (2011) em que temos uma releitura do mito de Teseu; a
adaptação do primeiro livro do americano Rick Riordan para as telas em Percy Jackson e o
ladrão de raios (2010), bem como a adaptação do segundo livro Percy Jackson e o mar de
monstros (2013); Hércules (1997), animação produzida pela empresa Disney, direcionada ao
público infantil; Troia (2004), um filme que narra a épica guerra troiana; e Thor (2011), em que
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temos a releitura dos deuses e mitos nórdicos. Notamos que o cinema retorna aos mitos e revisita
as narrativas que eram tão significantes e sagradas para as sociedades arcaicas.
Percebemos a recuperação do mito também em muitas séries televisivas norteamericanas, como Once Upon a Time (em português, o título fora traduzido como Era uma
vez), série estadunidense da emissora American Broadcasting Company (ABC), que narra a
história de Emma Swan. A narrativa se passa na cidade fictícia Storybrooke, cujos moradores
são personagens dos mais variados contos de fadas; temos Branca de Neve, sua madrasta, o
Príncipe Encantado, Chapeuzinho Vermelho, Capitão Gancho etc. A narrativa gira em torno de
Emma, filha de Branca de Neve, e de uma maldição que fora lançada há muitos anos, o que faz
com todos os personagens dos contos de fadas saiam de suas histórias e passem a habitar o
nosso mundo. A intertextualidade é tão grande e simbólica, que os mitos também fazem parte
da história: na segunda parte da quinta temporada, mais especificamente no episódio intitulado
Labor of Love (Trabalho do amor) os personagens são levados ao submundo e, ali, encontramse Hades e Hércules.
Por meio de práticas intertextuais, a série mostra que Hércules fora amigo de Branca de
Neve antes de a maldição acontecer; enquanto jovens, foi o semideus quem a ensinou a ser
corajosa e destemida e, assim, poder enfrentar sua madrasta e ser heroína de seu povo.
Paralelemente a essa história, Hércules cumpria seus doze trabalhos. A série nos mostra que,
diferentemente do mito original, no qual o herói vence todos os obstáculos impostos por
Euristeu, Hércules falha em sua décima primeira missão: matar Cérbero. O herói é morto pelo
cão de três cabeças e enviado ao submundo e, quando os personagens precisam ir aos domínios
de Hades para resgatar o Capitão Gancho, encontram-no ali, sem esperanças de um dia receber
sua recompensa e morar no Olimpo. Então, os papéis se invertem: Branca de Neve ajuda-o a se
lembrar de que é um herói, Hércules finalmente derrota Cérbero e é levado ao Olimpo.
A literatura também faz alusões a esses mitos e se utiliza das grandes narrativas clássicas
para (re)produzir novas, pois os relê, lhes empresta novas significações, subverte gêneros,
formas, sentidos (levando à paródia); confirma gêneros, formas, sentidos (levando à paráfrase
ou estilização), reinventa histórias reagrupando unidades mínimas (mitemas) de diversas
narrativas mitológicas para compor uma novíssima história palimpsesticamente baseada nos
heróis de Homero, Hesíodo e tantos outros da Antiguidade, levando à apropriação, ou
bricolagem, ou recombinação; como as peripécias desempenhadas pelo protagonista Percy
Jackson, na série de livros do autor Rick Riordan, herói que revive as aventuras vividas por
Teseu, por Ulisses, por Hércules e por outros heróis mitológicos da Antiguidade ou ainda o
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protagonista Harry Potter, da autora J. K. Rowling, que encarna um misto de herói mitológico,
bruxo, feiticeiro, alquimista, ser humano normal, imbuído de valores morais positivos, lutando
contra monstros mitológicos como o Basilisco, auxiliado pela Fênix e por outros seres
mitológicos, vence o mal supremo e afirma-se como herói da saga, como Perseu ou Ulisses o
fizeram, nas obras mitológicas da Antiguidade. Por consequência, quando a literatura revisita
22).
Na literatura italiana, por exemplo, também temos diversos autores que dialogam
intertextualmente com os mitos por meio da reescritura dos mesmos em diversos formatos.
Entre tantos autores podemos citar Dante Alighieri (1265-1321) que insere diversos
personagens mitológicos como Ulisses, Helena, Cérbero e tantos mais em diversos locais da
viagem do Dante protagonista na Divina comédia, principalmente nos círculos do Inferno.
Pensando nos autores italianos contemporâneos, só para exemplificar, podemos citar dois deles
Alessandro Baricco (nascido em 1958) que reconta os principais acontecimentos da Ilíada
homérica ao reescrevê-la em forma de monólogo teatral cujo roteiro foi também publicado
como texto literário em Omero Iliade (Homero Ilíada).
Outro que podemos citar é Luciano De Crescenzo (nascido em 1928) que escreveu uma
trilogia, trocando o gênero de épico para romance (prosa, portanto) e mudando o tom do
recontar os mitos para um misto de narrativa e crônica, ao reconstruir a Ilíada homérica em
Elena, Elena, amore mio (Helena, Helena, meu amor), a Odisseia homérica em Nessuno
(Ninguém) e tanto a Ilíada quanto a Odisseia homéricas mescladas com diversos mitos
registrados na antiguidade clássica em sua obra Ulisse era un fico. Enfocando a primeira obra
da trilogia
Elena, Elena, amore mio
publicada em 1991, vemos que a narrativa começa no
ano em que se iniciou o litígio entre o guerreiro Aquiles e o chefe dos gregos, o rei Agaménon,
durante o assédio à cidade de Troia (narrado na Ilíada de Homero, texto-fonte de praticamente
toda essa recriação intertextual realizada por De Crescenzo). Retomando a trama mitológica da
obra homérica, o autor italiano, em pleno século XX, recontou sequências narrativas que
revisitam as de Homero numa moldura narrativa toda nova, criação sua que pode ser resumida
da seguinte forma: um personagem não homérico chamado Leonte protagoniza a narrativa;
caracterizado como um rapaz muito jovem. Ele vai até Troia, no ano final do cerco dos gregos
àquela cidade, para procurar seu pai desaparecido. Tendo como pano de fundo as batalhas
homéricas, as aventuras do jovem decrescenziano se desenvolvem em torno de uma paixão
despertada nele pela bela mocinha Ekto, uma jovem que espelha claramente as belezas e o
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fascínio que também Helena despertou nos homens de sua época. Para Leonte, Ekto é muito
mais do que simplesmente parecida com a amante de Páris, Ekto é a própria Helena.
Assim, temos o protagonista da moldura narrativa criada por De Crescenzo, no final
do século XX, completamente ajustado ao papel do herói clássico, tendo como modelo o
personagem Telêmaco, que também cumpre seu intento de encontrar o pai e retornar à sua pátria
(na Odisseia). Ao mesmo tempo, também pelo viés intertextual, há um modelo de herói
subjacente que equipara Leonte a Páris (o príncipe troiano que se apaixonou por Helena e a
Helena. No entanto, Leonte não age como Páris, ele abre mão de se unir à Ekto para poder
encontrar o pai, depois ele se resigna a acompanhá-los a Gaudos como filho de Neópulo e
enteado de Ekto, e, ao final da trama, o Destino recompensa Leonte de forma contrária ao
destino de Páris, que foi morto na guerra de Troia. Leonte se une legalmente à amada e se torna
rei de seu povo.
Ao analisarmos a perspectiva intertextual assumida na retomada da Ilíada no hipotexto
construído por Luciano De Crescenzo, no início da última década do século XX, poderemos
verificar o caráter estilístico nos planos narrativo e temático, com o empréstimo de modelo
também da Odisseia, na moldura pela qual os acontecimentos da Guerra de Troia são narrados
entremeados às aventuras de Leonte (o Telêmaco decrescenziano) e com a referência aos
principais acontecimentos presentes na Ilíada. O formato de poema épico, adequado para a
época de Homero, foi substituído pelo gênero romance, herdeiro da narrativa épica nos últimos
séculos e os versos pela narrativa.
Muitas outras narrativas fílmicas, televisivas e obras literárias
de videogames, HQs, etc.
e também plataformas
retornam aos mitos da literatura clássica, bem como seus
consagrados heróis, e os exemplos aqui poderiam continuar longamente. Esse conjunto de obras
recupera histórias e lendas de outras eras, que interagem com um ou mais textos (ou narrativas),
e lhes proporciona nova roupagem, demonstrando, assim,
enunciado é sempre reiterado e indefinidamente reA recuperação dos mitos através das mídias atuais evidencia a intersecção entre mitologia e
mídias contemporâneas, e isso se deve ao fato de o homem continuar se interessando pelos
assuntos e valores abordados nas histórias mitológicas registradas na literatura, pela primeira,
por Hesíodo, Homero, Sófocles, Ovídio, Virgílio, etc.
Campbell (1990, p.9-
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stra, então, como a sociedade (seja qual for)
de uma época longínqua se expressava. Ao
[...] recitar os mitos, reintegra-se àquele tempo fabuloso e a pessoa torna-se,
consequentemente, contemporânea, de certo modo, dos eventos evocados,
compartilha da presença dos Deuses ou dos Heróis. Numa fórmula sumária,
poderíamos dizer que, ao viver os mitos, sai-se do tempo cronológico,
ingressando num tempo qualitativamente diferente, um tempo sagrado, ao
mesmo tempo primordial e indefinidamente recuperável [...] (ELIADE, 2002,
p.21, grifos do autor).
De acordo com Roda (2012, p.162), a manutenção/permanência do mito, por meio da
[...] consagrados e se tornaram mitos, como, por exemplo, Gandhi, Martin
Luther King e outros tantos, pois levam consigo o valor do heroísmo que,
mesmo no mundo moderno, continua carregado de significados. Isso reflete
no pensamento humano em geral, nas dores, nas lutas e nos acontecimentos
da vida, pois há a necessidade de se espelhar em algo (MORAIS, 2013, p.56).
Os mitos, portanto, ainda suscitam sensações no homem de hoje, provocam o desejo de
entendê-los profundamente, já que a própria vida é vista, muitas vezes, como um mito, algo
fantástico, um mistério. O mundo contemporâneo, então, é repovoado por mitos e permanecerá
, p.56).
Assim, os heróis, os deuses e, de forma mais abrangente, os mitos são retomados pela literatura,
pelo cinema, pelas artes em geral, e dão continuidade a essas histórias que antigamente
explicaram o nascer do mundo e a relação entre os homens e continuam explicando tais fatos
aos seres humanos, que deles ainda dependem para re-significar o viver individual e em
sociedade.
Referências
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