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A permanência do mito: do sacro ao simbólico

2017

Na Era Clássica, os poetas e dramaturgos gregos e romanos registraram os mitos que eram carregados de valor sagrado. Com o advento da filosofia, os mitos perderam o seu caráter sacro e passaram ter um valor simbólico e metafórico. Por essa razão, baseando-nos principalmente em Campbell (1990) e Samoyault (2008), perpassaremos por algumas obras, fílmicas e literárias, que resgatam os mitos e propiciam a permanência dos mitos na atualidade. De natureza teórico-prática, buscaremos evidenciar as relações intertextuais detectáveis entre as narrativas clássicas e as contemporâneas, visto que se percebe uma grande cadeia intertextual que as une.

A PERMANÊNCIA DO MITO: DO SACRO AO SIMBÓLICO11 Maria Celeste Tommasello RAMOS12 Guilherme Augusto Louzada Ferreira de MORAIS13 Resumo: Na Era Clássica, os poetas e dramaturgos gregos e romanos registraram os mitos que eram carregados de valor sagrado. Com o advento da filosofia, os mitos perderam o seu caráter sacro e passaram ter um valor simbólico e metafórico. Por essa razão, baseando-nos principalmente em Campbell (1990) e Samoyault (2008), perpassaremos por algumas obras, fílmicas e literárias, que resgatam os mitos e propiciam a permanência dos mitos na atualidade. De natureza teórico-prática, buscaremos evidenciar as relações intertextuais detectáveis entre as narrativas clássicas e as contemporâneas, visto que se percebe uma grande cadeia intertextual que as une. Palavras-chave: Mito. Literatura. Permanência. Abstract: In the Classical Era, Greek and Roman poets and playwrights recorded the myths that were loaded with sacred value. With the advent of Philosophy, the myths lost their sacred character and came to have a symbolic and metaphorical value. For this reason, based mainly on Campbell (1990) and Samoyault (2008), we will go through some works, filmic and literary, that rescue myths and allow their permanence nowadays. From a theoretical-practical nature, we will try to highlight the detectable intertextual relations between the classic and the contemporary narratives, since we can notice a great intertextual string that unites them. Keywords: Myth. Literatur. Permanence. Apoio financeiro FAPESP (ver nota 13). Livre-Docente em Literatura Italiana. Bolsista Produtividade em Pesquisa do CNPq. Professora no Departamento de Letras Modernas da Universidade Estadual Paulista, UNESP IBILCE, Campus de São José do Rio Preto SP, Brasil. Endereço eletrônico: [email protected]. 13 Mestrando em Estudos Literários pelo Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual Paulista, UNESP IBILCE, Campus de São José do Rio Preto SP, Brasil. Bolsa FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Endereço eletrônico: [email protected]. 11 12 Intersecções Edição 22 Ano 10 Número 1 maio/2017 p.24 Neste trabalho, resultado de pesquisas feitas por ambos os autores, que focam literaturas italianas e norte-americanas, traçamos uma linha que une a literatura clássica, mais especificamente, os mitos greco-romanos, à literatura contemporânea e outras mídias, como o cinema e a série de televisão, de modo a entendermos de que maneira, no século XX, esses mitos, embora destituídos do valor sacro, são recuperados e atualizados. Entendemos que os mitos clássicos, ora resgatados pelas artes contemporâneas, formam um campo simbólico para a estruturação de novas narrativas. Dessa forma, perpassamos por alguns dos grandes nomes da antiguidade clássica, como Homero, Hesíodo, Ovídio, Sófocles, entre outros, com o objetivo de evidenciar, com exemplos contemporâneos, como os mitos são reutilizados. Vale ressaltar que nossas considerações, em vista da complexidade do tema, perpassarão apenas por alguns casos encontrados nas literaturas e mídias atuais, de forma a compreender que a mitologia e todas as suas narrativas nunca deixaram de existir, ou seja, encontramos os mitos não somente na contemporaneidade, mas em todo o decorrer dos séculos e sob variadas formas de representação, seja na literatura, na arquitetura, na história, nos resgates culturais (como o de Mussolini e o resgate do mito romano) e nas mídias, como a televisão, o cinema e os jogos de computador. Ademais, novos mitos são criados ou, pelo menos, reelaborados constantemente, porque as perspectivas mudam conforme ocorre a evolução das sociedades e colocar sua mente em contato com essa experiência de estar vivo. Ele lhe diz o que a experiência é. Casamento, por exemplo. O que é o casamento. O mito lhe dirá o que é o casamento. É a as narrativas clássicas, e toda a simbologia que as encapsula, são reutilizadas na contemporaneidade pelo viés da intertextualidade. Uma das perguntas que sempre aparece quando estudamos a relação mitologia e literatura é a respeito do caráter sagrado ou fantástico dos mitos da antiguidade até os dias de hoje, pois os significados dos mitos e de suas representações nas antigas sociedades, como a grega, a romana e outras tantas, foram e continuam sendo amplamente enfocados por pesquisadores, filósofos e pensadores ao redor do mundo, num contínuo retomar, pois os mitos e seus significados profundos foram e seguem sendo muito importantes para o homem em sua vida individual e em sociedade. Suas origens, seu caráter, sua função e seus desdobramentos revelam a formação das sociedades primitivas, enraizadas em crenças promovedoras de conhecimento sobre a gênese do homem, do mundo e dos fenômenos naturais por meio da ação de deuses, semideuses e heróis. Intersecções Edição 22 Ano 10 Número 1 maio/2017 p.25 Segundo o estudioso Pierre Grimal (2011), os povos, em um determinado momento, criaram histórias que narraram aos outros e acreditaram em seus relatos fabulosos. Para o de cada ação dos grandes heróis (assim como suas condutas e façanhas), e das influências dos deuses na vida do homem. Expõe, ainda, que [...] a epopeia grega pretende essencialmente engrandecer os debates dos homens e, através do mito, ampliá-los às dimensões do universo. Seus relatos, tomados à letra, manifestam fé religiosa: Zeus e as divindades do Olimpo intervêm nas questões humanas de modo concreto; é preciso honrá-los com sacrifícios, acalmar seus ressentimentos, ganhar suas boas graças por todos os meios. Mas, desde logo, a interpretação tende a ultrapassar a estreita materialidade (GRIMAL, 2011, p.9-10). Ou seja, na Grécia antiga, uma das funções do mito era a religiosa, pois os deuses e as narrativas em torno deles eram tomados como sagrados, e a população rendia culto e sacrifícios a eles por meio de ritos, e atribuía os acontecimentos a sua volta à intervenção deles na realidade humana do dia-a-dia, agradecendo-os, culpando-os ou louvando-os. Grimal (2011), em Mitologia grega, aborda os mitos pela perspectiva do pensamento grego antigo, explicando as divergências entre os mitos de fundo religioso e os mitos de relatos heroicos. Para ele, o mito gera a parte irracional do pensamento humano e se integra a todas as atividades do espírito. Em consonância, Vernant (1973, p.303) relata que, na religião, o mito exprime uma verdade essencial: é saber autêntico, modelo de realidade. Assim, é nítida a interdependência entre o mito clássico, a religião e sacralidade. dos astros, da Terra, dos homens, das plantas, dos animais, do fogo, da água, dos ventos, do bem e do mal, da saúde e da doença, da morte, dos instrumentos de trabalho, das raças, das mitos está no fato de nos fazerem remontar a uma época em que o mundo era jovem e as pessoas tinham uma forte ligação com a terra, as árvores, as flores, as montanhas e os mares, tudo muito diferente daquilo que nós próprios somos capazes de Hamilton (1992, p.3) e, com efeito, inferimos que, quando as narrativas mitológicas estavam sendo criadas (ou, então, narradas), quase não se distinguia o real do irreal, entendendo aqui, que o real seria tudo aquilo que é, de certa maneira, explicado pela ciência e irreal, tudo o que é fantasioso, artificial e fictício. Como já afirmamos em publicação anterior (RAMOS, 2005, p.7): Intersecções Edição 22 Ano 10 Número 1 maio/2017 p.26 as muitas definições sobre o que são os mitos oscilam, normalmente, entre as afirmações de que são uma espécie de ficção ou ilusão criada pelos homens ou, então, que são ou foram histórias sagradas para um povo, em alguma época. Assim, para alguns, os mitos têm um caráter religioso e dogmático, enquanto, para outros, são registros fictícios de sociedades arcaicas que procuravam compreender e explicar o mundo por meio de relatos criativos (porém não sempre verdadeiros). A veracidade ou não dessas narrativas mitológicas não era fundamental, pois a fé no sagrado das entidades divinas descritas nelas já bastava por si só e explicava, mesmo que sem comprovação material ou real dos fatos, sentimentos, reações que os homens da época não podiam entender de forma racional (ou científica), como, por exemplo, o fato de relâmpagos surgirem no céu e, muitas vezes, fulminarem animais, casas, plantas e até seres humanos não era entendido como ação natural ocorrida por conta de descargas elétricas de intensidade considerável que circulam na atmosfera, entre nuvens e solo eletricamente carregados. Os homens primitivos não sabiam explicar os relâmpagos, então criaram uma narrativa que constituía o raio como uma arma divina e a atribuía ao deus dos deuses pagãos gregos e Júpiter para os romanos Zeus para os que, quando em fúria (daí os ventos, trovões e chuvas na atmosfera), lançava contra a terra raios ou relâmpagos fulminantes, que aniquilavam seus oponentes terrestres. Outro exemplo é o mito de Cupido, que explica e justifica, com suas flechas da paixão, o amor à primeira vista que arrebata tantos corações entre homens e mulheres e os levam às mais diversas e apaixonadas relações amorosas desde a antiguidade até hoje. Porém, devemos considerar também que, nos primórdios, o mito era [...] um discurso pronunciado ou proferido para ouvintes que recebiam como verdadeira a narrativa, porque confiavam naquele que narrava; logo, é uma narrativa feita em público, baseada na autoridade e confiabilidade da pessoa do narrador. Essa autoridade vem do fato de que ele, ou testemunhou diretamente o que está narrando, ou recebeu a narrativa de quem testemunhou os acontecimentos narrados (PASCUTTI, 2005, p.61-62). Essas grandes figuras, que narraram os mitos na Antiguidade Clássica, foram os poetas ou rapsodos. Não obstante, acreditava-se que para ser poeta era necessário ser uma pessoa especial, selecionada pelos afirma Chauí (2000, p.28-la a quem o ouvia. O rapsodo responsável pela comunicação do mito em forma de narrativa era, portanto, aquele que proferia a palavra sagrada desde que Intersecções Edição 22 Ano 10 Número 1 maio/2017 p.27 Assim, a multiplicidade de seus narradores (entre eles, Homero, Hesíodo e Ésquilo) fez com que essas histórias fossem recontadas sob diversos pontos de vista, enquanto a passagem do tempo preservou a sabedoria e os ensinamentos dos primórdios, também pelo caráter exemplar e simbólico das histórias narradas. Grande parte das obras clássicas que retrataram os mitos depende basicamente de Ovídio que, segundo Hamilton (1992, p.15), foi um compêndio da mitologia, entendida como conjunto de mitos. Para Hamilton, nenhum poeta da Antiguidade compara-se a ele, pois várias narrativas mitológicas que conhecemos hoje, chegaram a nós por intermédio dele. Homero, de modo semelhante, foi responsável por registrar as narrativas de caráter mitológico empreendidas pelo heroísmo. Eliade (2002, p.131) aponta que sua capacidade Ilíada e Odisseia contêm, de acordo com Hamilton (1992, oia, a atuação do herói Aquiles no combate, e o regresso do herói Ulisses à Ítaca (a segunda), nas quais o modelo heroico é, então, retratado; Aquiles e Ulisses enfrentam inúmeras provações para, no fim, obterem triunfo. Hesíodo, outro grande poeta clássico, escreveu muito sobre deuses e, por conseguinte, Teogonia representa uma síntese religiosa já muito complexa, na qual se misturam e organizam, num sistema quase histórico, divindades oriundas de todos os horizontes do mundo (ELIADE, 2002, p.132); em consonância, Hamilton afirma que Teogonia criação do universo e das gerações dos deuses, e tem grande importância para o estudo da Temos, ainda, grandes poetas trágicos que ilustraram a mitologia através dos dramas humanos. Sófocles, por exemplo, produziu mais de uma centena de tragédias, sendo, talvez, Édipo-Rei a mais trágica de todas (e a mais conhecida, atualmente), na qual é explorada a trágica história do infeliz rei tebano, cujo nome ficou ligado aos dois crimes que maior terror causavam aos gregos de outrora: o parricídio e o incesto. Ao mesmo tempo, este mito trágico liga-se à função organizativa da sociedade daquela época, pois foi criado num momento em que os casamentos entre membros da mesma família comuns antes pela preocupação de manutenção dos bens materiais sempre dentro da mesma linhagem, mas preocupante pelos problemas de saúde congênitos que poderia gerar nos filhos frutos das uniões começou a ser condenado e a Intersecções Edição 22 Ano 10 Número 1 maio/2017 p.28 história que resultava num desfecho tão trágico quanto o suicídio de Jocasta e o ato punitivo contra si mesmo promovido por Édipo de cegar-se para purgar os males causados por ele involuntariamente ao se casar com sua própria mãe e com ela gerar quatro filhos. Podemos citar, em paralelo, outros dois poetas trágicos: Ésquilo e Eurípedes. Ésquilo é, segundo Hamilton (1992, p.17), o mais antigo dos três poetas trágicos e, das sete peças que se conhecem, uma das mais grandiosas, pelo tema que focaliza, é Prometeu acorrentado, na qual Júpiter, ao assumir o governo do universo, tornando-se deus supremo, cogitou conservar a espécie humana em uma condição próxima da animalidade irracional, senão destruí-la, substituindo-a por outra, de sua criação. Contrariando, porém, os desígnios da suprema potestade, o titã Prometeu, condoído da sorte da humanidade, conseguiu apoderar-se de uma faísca de fogo celeste, com a qual dotou o homem da razão e da faculdade de cultivar a inteligência, as ciências e as artes. Ao ser descoberto por Júpiter, Prometeu foi condenado ao suplício eterno de estar acorrentado e ter o fígado devorado, diariamente, por um abutre. De acordo com Hamilton (1992, p.17), Eurípedes é o mais jovem dos três dramaturgos gregos. Venceu o festival de teatro ateniense por cinco vezes, sendo que o último título lhe foi atribuído postumamente. Por mais que suas obras tenham caráter mitológico, elas não retratam negados e/ou vencidos como, por exemplo, Medeia, cujo perfil psicológico retratado foi o de uma mulher carregada de amor e ódio. Medeia, furiosa, assassina os filhos que teve com Jasão, a fim de vingar-se do marido traidor, que havia sido ajudado por ela, que, apaixonada, traíra o próprio pai e matara o irmão para poder auxiliar e promover a fuga de Jasão da Cólquida. Medeia representa a esposa renegada e estrangeira perseguida, rebelando-se contra o mundo em que vive. De tal modo, ela é tida como uma das personagens femininas mais surpreendentes do universo dramatúrgico. Por fim, dentre os poetas latinos, Virgílio ocupa, de acordo com Hamilton (1992, p.18), neles encontrou algo da natureza humana, e deu vida aos personagens mitológicos como consequência, mais conhecida é Eneida, na qual contemplamos a viagem do troiano Eneias, fugitivo da Guerra de Troia, guiado por sua mãe, Vênus, até o território italiano, onde edifica a cidade de Roma. Trata-se, portanto, de uma elegia ao imperador Augusto, pois a obra certifica aos romanos uma linha de antepassados essencialmente latinos (ao mesmo tempo em que destaca uma ascendência divina). Intersecções Edição 22 Ano 10 Número 1 maio/2017 p.29 Verificamos, assim, o nascimento e o registro literário do mito e, de tal modo, quais foram os primeiros autores a relatarem o mito pela perspectiva religiosa, dramática ou, como Virgílio, um meio de se contar a origem e o berço de toda uma nação. O mito, com o passar dos anos, no entanto, foi perdendo seu valor religioso enquanto a filosofia, por sua vez, ganhava forças. Graziani (1998) nos diz que, no início do século XII, por exemplo, o mito foi classificado como um discurso mentiroso que exprime a verdade em repre definição assinala uma etapa decisiva na concepção que a Antiguidade tinha da função do mito. Sabe-se que Platão opunha o mythos, enquanto mentira, ao logos (GRAZIANI, 1998, p.482). Averiguamos, então, que a sacralização do mito foi posta em jogo quando o pensamento grego buscava mais racionalidade. sacralidade das obras. Segundo ele, o mito foi desmitificado pelos próprios gregos, pois foi submetido pela cultura da p.130). Para ele, foi a ascensão do racionalismo jônico (por volta do século V a.C.) que marcou proclamaram há História sacra (Hicra anagraphe), racionalizando os mitos ao lhes atribuir uma realidade histórica, isto é, ele asseverava que os deuses eram antigos reis divinizados. Após a tradução fato de a literatura e todas as artes plásticas terem produzido muitas obras em torno dos mitos de deuses e heróis que a mitologia, mais uma vez entendida como conjunto de mitos, não foi sagrado. Assim, uma mitologia secularizada e um panteão evemerizado puderam sobreviver e se converteram, a partir da Renascença, em objeto de investigação científica, e isso porque a Antiguidade agonizante não mais acreditava nos deuses de Homero nem no sentido original de seus mitos. Pelo fato de não estar mais carregada de valores religiosos viventes, essa herança mitológica pode ser aceita e assimilada pelo cristianismo. Ela se convertera poetas, pelos artistas e filósofos. Desde o fim da Antigüidade quando não eram mais tomados ao pé da letra por nenhuma pessoa culta os deuses e seus Intersecções Edição 22 Ano 10 Número 1 maio/2017 p.30 mitos foram transmitidos à Renascença e ao século XVII, pelas obras, pelas criações literárias e artísticas (ELIADE, 2002, p.137). Vale ratificar que essas criações literárias e artísticas continuam a transmiti-los sempre que são chamadas ao diálogo intertextual, corroborando na construção de mais obras que os atualizam, os recriam, e, com isso, os retransmitem, continuamente, por meio da construção de novos textos. Assim, quando um novo texto faz referência a um nome mitológico, ele invoca toda a narrativa simbólica, que foi sagrada nos primórdios, à qual aquele vocábulo faz alusão, como, por exemplo, o nome dos heróis Aquiles e/ou Ulisses, ou do titã Prometeu e/ou de Édipo trazem à mente do leitor, que tem alguma bagagem cultural, as obras Ilíada, Odisseia, Édipo Rei e Prometeu acorrentado, como já citamos, duas das primeiras que registraram, na literatura, os mitos orais da comunidade humana que os criou por ter necessidade deles. Porém, há mais de meio século, os eruditos ocidentais passaram a estudar o mito por uma perspectiva que contrasta sensivelmente com a do século XIX, por exemplo. Ao invés de tratar, como seus predecessores, o mito na acepção usual do termo, isto é, como fábula, invenção, ficção, eles aceitaram tal qual era compreendido pelas sociedades arcaicas, onde o mito designa, ao contrário, uma história verdadeira e, ademais, extremamente preciosa por seu caráter sagrado, exemplar e significativo. Mas esse novo valor semântico conferido ao vocábulo mito torna seu emprego na linguagem um tanto equívoco. De fato, a palavra é hoje empregada tanto no sentido de ficção ou ilusão, como no sentido familiar sobretudo aos etnólogos, sociólogos e historiadores de religiões de tradição sagrada, revelação primordial, modelo exemplar (ELIADE, 2002, p.7-8, grifo nosso). e isso significa que o mito carrega uma dualidade semântica em que, ao mesmo tempo que é considerado sagrado, é considerado como mentira ou, então, ficção. É verdade que o mito conta uma história sagrada, já que a divindade , p.1314), porém, a partir do século XX, ele foi despojado de seu caráter sacro. exemplares de todos os ritos e atividades humanas significativas: tanto a alimentação ou o isso, depreendemos que os mitos ainda têm muito a nos ensinar, ainda que, hoje, ele seja antigas, houve mitos que foram desligados de significação religiosa, transformando-se em lenda ou conto infantil. Como já foi dito, o nascimento da filosofia quebrou a ordem religiosa e sagrada do mito -se que a filosofia nasceu por uma ruptura radical com os mitos, sendo a primeira Intersecções Edição 22 Ano 10 Número 1 maio/2017 p.31 últimos séculos, estudos de antropólogos expuseram que os mitos são importantes para a organização sociocultural das sociedades modernas e que, por isso, dizqualquer outro povo, acreditavam em seus mitos e que a filosofia nasceu, vagarosa e p.30-31). Inferimos, assim, que a filosofia foi uma ramificação, racionalização ou, então, uma exteriorização dos mitos e que, enquanto o mito não se importava com contradições, a filosofia não as admitia e, além disso, exigia explicação lógica e sensata do mundo e de suas manifestações. Em consenso, Vernant (1973, p.318) diz que a filosofia se desenvolve do mito Entretanto, as grandes mitologias consagradas por poetas como Homero e Hesíodo [...] são cada vez mais solicitadas a narrar os gesta dos Deuses. E, em determinado momento da História, sobretudo na Grécia e na Índia, mas também no Egito uma elite começa a perder o interesse por essa história divina e chega (como na Grécia) a não acreditar mais nos mitos, embora pretendendo ainda acreditar nos deuses (ELIADE, 2002, p.100, grifo do autor). Desta forma, percebemos que há, até hoje, uma necessidade de retomar e reutilizar as narrativas mitológicas. Basta olhar para o cinema para ver a grande concentração de longasmetragens que desfrutam dos temas mitológicos. Fúria de titãs (2010), dirigido por Louis Leterrier, é um bom exemplo desse retorno aos mitos Clássicos. No filme, o protagonista Perseu descobre que é o filho do deus supremo Zeus, mas se recusa a admitir tal situação. Entretanto, para socorrer a cidade de Argos da cólera dos deuses do Olimpo e da vingança de seu tio Hades, o herói começa uma perigosa jornada, luta contra terríveis criaturas como, por exemplo, a Górgona Medusa para, no final, salvar os mortais e a bela Andrômeda do sacrifício para o monstro Kraken. Podemos perceber, com clareza, a retomada do mito de Perseu no qual este, na narrativa literária de origem, de mesmo modo, enfrenta a temível Górgona. Outros títulos fílmicos podem ser citados como exemplos como Fúria de titãs 2 (2012) continuação do primeiro; Imortais (2011) em que temos uma releitura do mito de Teseu; a adaptação do primeiro livro do americano Rick Riordan para as telas em Percy Jackson e o ladrão de raios (2010), bem como a adaptação do segundo livro Percy Jackson e o mar de monstros (2013); Hércules (1997), animação produzida pela empresa Disney, direcionada ao público infantil; Troia (2004), um filme que narra a épica guerra troiana; e Thor (2011), em que Intersecções Edição 22 Ano 10 Número 1 maio/2017 p.32 temos a releitura dos deuses e mitos nórdicos. Notamos que o cinema retorna aos mitos e revisita as narrativas que eram tão significantes e sagradas para as sociedades arcaicas. Percebemos a recuperação do mito também em muitas séries televisivas norteamericanas, como Once Upon a Time (em português, o título fora traduzido como Era uma vez), série estadunidense da emissora American Broadcasting Company (ABC), que narra a história de Emma Swan. A narrativa se passa na cidade fictícia Storybrooke, cujos moradores são personagens dos mais variados contos de fadas; temos Branca de Neve, sua madrasta, o Príncipe Encantado, Chapeuzinho Vermelho, Capitão Gancho etc. A narrativa gira em torno de Emma, filha de Branca de Neve, e de uma maldição que fora lançada há muitos anos, o que faz com todos os personagens dos contos de fadas saiam de suas histórias e passem a habitar o nosso mundo. A intertextualidade é tão grande e simbólica, que os mitos também fazem parte da história: na segunda parte da quinta temporada, mais especificamente no episódio intitulado Labor of Love (Trabalho do amor) os personagens são levados ao submundo e, ali, encontramse Hades e Hércules. Por meio de práticas intertextuais, a série mostra que Hércules fora amigo de Branca de Neve antes de a maldição acontecer; enquanto jovens, foi o semideus quem a ensinou a ser corajosa e destemida e, assim, poder enfrentar sua madrasta e ser heroína de seu povo. Paralelemente a essa história, Hércules cumpria seus doze trabalhos. A série nos mostra que, diferentemente do mito original, no qual o herói vence todos os obstáculos impostos por Euristeu, Hércules falha em sua décima primeira missão: matar Cérbero. O herói é morto pelo cão de três cabeças e enviado ao submundo e, quando os personagens precisam ir aos domínios de Hades para resgatar o Capitão Gancho, encontram-no ali, sem esperanças de um dia receber sua recompensa e morar no Olimpo. Então, os papéis se invertem: Branca de Neve ajuda-o a se lembrar de que é um herói, Hércules finalmente derrota Cérbero e é levado ao Olimpo. A literatura também faz alusões a esses mitos e se utiliza das grandes narrativas clássicas para (re)produzir novas, pois os relê, lhes empresta novas significações, subverte gêneros, formas, sentidos (levando à paródia); confirma gêneros, formas, sentidos (levando à paráfrase ou estilização), reinventa histórias reagrupando unidades mínimas (mitemas) de diversas narrativas mitológicas para compor uma novíssima história palimpsesticamente baseada nos heróis de Homero, Hesíodo e tantos outros da Antiguidade, levando à apropriação, ou bricolagem, ou recombinação; como as peripécias desempenhadas pelo protagonista Percy Jackson, na série de livros do autor Rick Riordan, herói que revive as aventuras vividas por Teseu, por Ulisses, por Hércules e por outros heróis mitológicos da Antiguidade ou ainda o Intersecções Edição 22 Ano 10 Número 1 maio/2017 p.33 protagonista Harry Potter, da autora J. K. Rowling, que encarna um misto de herói mitológico, bruxo, feiticeiro, alquimista, ser humano normal, imbuído de valores morais positivos, lutando contra monstros mitológicos como o Basilisco, auxiliado pela Fênix e por outros seres mitológicos, vence o mal supremo e afirma-se como herói da saga, como Perseu ou Ulisses o fizeram, nas obras mitológicas da Antiguidade. Por consequência, quando a literatura revisita 22). Na literatura italiana, por exemplo, também temos diversos autores que dialogam intertextualmente com os mitos por meio da reescritura dos mesmos em diversos formatos. Entre tantos autores podemos citar Dante Alighieri (1265-1321) que insere diversos personagens mitológicos como Ulisses, Helena, Cérbero e tantos mais em diversos locais da viagem do Dante protagonista na Divina comédia, principalmente nos círculos do Inferno. Pensando nos autores italianos contemporâneos, só para exemplificar, podemos citar dois deles Alessandro Baricco (nascido em 1958) que reconta os principais acontecimentos da Ilíada homérica ao reescrevê-la em forma de monólogo teatral cujo roteiro foi também publicado como texto literário em Omero Iliade (Homero Ilíada). Outro que podemos citar é Luciano De Crescenzo (nascido em 1928) que escreveu uma trilogia, trocando o gênero de épico para romance (prosa, portanto) e mudando o tom do recontar os mitos para um misto de narrativa e crônica, ao reconstruir a Ilíada homérica em Elena, Elena, amore mio (Helena, Helena, meu amor), a Odisseia homérica em Nessuno (Ninguém) e tanto a Ilíada quanto a Odisseia homéricas mescladas com diversos mitos registrados na antiguidade clássica em sua obra Ulisse era un fico. Enfocando a primeira obra da trilogia Elena, Elena, amore mio publicada em 1991, vemos que a narrativa começa no ano em que se iniciou o litígio entre o guerreiro Aquiles e o chefe dos gregos, o rei Agaménon, durante o assédio à cidade de Troia (narrado na Ilíada de Homero, texto-fonte de praticamente toda essa recriação intertextual realizada por De Crescenzo). Retomando a trama mitológica da obra homérica, o autor italiano, em pleno século XX, recontou sequências narrativas que revisitam as de Homero numa moldura narrativa toda nova, criação sua que pode ser resumida da seguinte forma: um personagem não homérico chamado Leonte protagoniza a narrativa; caracterizado como um rapaz muito jovem. Ele vai até Troia, no ano final do cerco dos gregos àquela cidade, para procurar seu pai desaparecido. Tendo como pano de fundo as batalhas homéricas, as aventuras do jovem decrescenziano se desenvolvem em torno de uma paixão despertada nele pela bela mocinha Ekto, uma jovem que espelha claramente as belezas e o Intersecções Edição 22 Ano 10 Número 1 maio/2017 p.34 fascínio que também Helena despertou nos homens de sua época. Para Leonte, Ekto é muito mais do que simplesmente parecida com a amante de Páris, Ekto é a própria Helena. Assim, temos o protagonista da moldura narrativa criada por De Crescenzo, no final do século XX, completamente ajustado ao papel do herói clássico, tendo como modelo o personagem Telêmaco, que também cumpre seu intento de encontrar o pai e retornar à sua pátria (na Odisseia). Ao mesmo tempo, também pelo viés intertextual, há um modelo de herói subjacente que equipara Leonte a Páris (o príncipe troiano que se apaixonou por Helena e a Helena. No entanto, Leonte não age como Páris, ele abre mão de se unir à Ekto para poder encontrar o pai, depois ele se resigna a acompanhá-los a Gaudos como filho de Neópulo e enteado de Ekto, e, ao final da trama, o Destino recompensa Leonte de forma contrária ao destino de Páris, que foi morto na guerra de Troia. Leonte se une legalmente à amada e se torna rei de seu povo. Ao analisarmos a perspectiva intertextual assumida na retomada da Ilíada no hipotexto construído por Luciano De Crescenzo, no início da última década do século XX, poderemos verificar o caráter estilístico nos planos narrativo e temático, com o empréstimo de modelo também da Odisseia, na moldura pela qual os acontecimentos da Guerra de Troia são narrados entremeados às aventuras de Leonte (o Telêmaco decrescenziano) e com a referência aos principais acontecimentos presentes na Ilíada. O formato de poema épico, adequado para a época de Homero, foi substituído pelo gênero romance, herdeiro da narrativa épica nos últimos séculos e os versos pela narrativa. Muitas outras narrativas fílmicas, televisivas e obras literárias de videogames, HQs, etc. e também plataformas retornam aos mitos da literatura clássica, bem como seus consagrados heróis, e os exemplos aqui poderiam continuar longamente. Esse conjunto de obras recupera histórias e lendas de outras eras, que interagem com um ou mais textos (ou narrativas), e lhes proporciona nova roupagem, demonstrando, assim, enunciado é sempre reiterado e indefinidamente reA recuperação dos mitos através das mídias atuais evidencia a intersecção entre mitologia e mídias contemporâneas, e isso se deve ao fato de o homem continuar se interessando pelos assuntos e valores abordados nas histórias mitológicas registradas na literatura, pela primeira, por Hesíodo, Homero, Sófocles, Ovídio, Virgílio, etc. Campbell (1990, p.9- Intersecções Edição 22 Ano 10 Número 1 maio/2017 p.35 stra, então, como a sociedade (seja qual for) de uma época longínqua se expressava. Ao [...] recitar os mitos, reintegra-se àquele tempo fabuloso e a pessoa torna-se, consequentemente, contemporânea, de certo modo, dos eventos evocados, compartilha da presença dos Deuses ou dos Heróis. Numa fórmula sumária, poderíamos dizer que, ao viver os mitos, sai-se do tempo cronológico, ingressando num tempo qualitativamente diferente, um tempo sagrado, ao mesmo tempo primordial e indefinidamente recuperável [...] (ELIADE, 2002, p.21, grifos do autor). De acordo com Roda (2012, p.162), a manutenção/permanência do mito, por meio da [...] consagrados e se tornaram mitos, como, por exemplo, Gandhi, Martin Luther King e outros tantos, pois levam consigo o valor do heroísmo que, mesmo no mundo moderno, continua carregado de significados. Isso reflete no pensamento humano em geral, nas dores, nas lutas e nos acontecimentos da vida, pois há a necessidade de se espelhar em algo (MORAIS, 2013, p.56). Os mitos, portanto, ainda suscitam sensações no homem de hoje, provocam o desejo de entendê-los profundamente, já que a própria vida é vista, muitas vezes, como um mito, algo fantástico, um mistério. O mundo contemporâneo, então, é repovoado por mitos e permanecerá , p.56). Assim, os heróis, os deuses e, de forma mais abrangente, os mitos são retomados pela literatura, pelo cinema, pelas artes em geral, e dão continuidade a essas histórias que antigamente explicaram o nascer do mundo e a relação entre os homens e continuam explicando tais fatos aos seres humanos, que deles ainda dependem para re-significar o viver individual e em sociedade. Referências CAMPBELL, J. O poder do mito. Trad. de Carlos F. Moisés. São Paulo: Palas Athena, 1990, p. 3-36. CHAUÍ, M. Convite à filosofia. 12. ed. São Paulo: Ática, 2000. ELIADE, M. Mito e realidade. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2002. Intersecções Edição 22 Ano 10 Número 1 maio/2017 p.36 GRAZIANI, F. Imagem e mito. In: BRUNEL, P. (Org.) Dicionário de Mitos Literários. Tradução de Carlos Sussekind et al. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olymnpio, 1998. p. 482-489. GRIMAL, P. Mitologia clássica: mitos, deuses e heróis. Trad. Héldewr Viçoso. Lisboa: Texto & Grafia, 2009. _______. 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