O hegelianismo do jovem Engels (1839-42)
Felipe Cotrim1
Resumo: O artigo tem por objetivo reconstituir o percurso da evolução
filosófica de Friedrich Engels entre os anos de 1839 a 1842 com a finalidade de
apreender e explicitar sua adesão à filosofia hegeliana. Consideramos que uma
compreensão adequada do hegelianismo de Engels entre os anos de 1839-1842
é fundamental para o esclarecimento sobre o método por ele empregado tanto
na investigação quanto na exposição de sua pesquisa sobre as classes
trabalhadoras inglesas entre os anos de 1842 a 1844.
Palavras-chave: Friedrich Engels; Filosofia clássica alemã; F. W. J.
Schelling; G. W. F. Hegel; História econômica; Teoria e historiografia do
pensamento econômico.
Young Engels’ Hegelianism (1839-42)
Abstract: The purpose of the essay is to reconstruct Friedrich Engels’ course
of philosophical evolution from 1839 to 1842 in order to grasp and make
explicit his adherence to Hegelian philosophy. We consider that an adequate
understanding of Engels’ Hegelianism between the years 1839-1842 is
essential to clarifying the method he employed in the investigation and in the
exposition of his research on the English working classes between 1842 to
1844.
Keywords: Economic History, Friedrich Engels, F. W. J. Schelling, German
Classical Philosophy, G. W. F. Hegel, Theory and Historiography of Economic
Thought.
1 Mestrando pela Universidade de São Paulo (USP). Bolsista Capes (2018-2020). E-mail:
[email protected].
DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.557
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Introdução
O “Esboço de uma crítica da economia política”2, publicado na revista
Deutsch-Französische Jahrbücher, foi um dos primeiros textos sobre
economia política escrito e publicado por Engels. Tratou-se de uma obra
pioneira do ponto de vista de sua abordagem metodológica da economia
política em razão de sua combinação da dialética hegeliana com o materialismo
feuerbachiano, chamando a atenção de Karl Marx (1818-83) para o estudo
dessa teoria social. Posteriormente, Marx veio a fazer referências tanto nos
seus manuscritos – Cadernos de Paris e Manuscritos econômico-filosóficos3
– quanto em suas obras de maturidade – Contribuição à crítica da economia
política e o Livro 1 de O capital4.
Neste artigo, visamos a resgatar as primeiras leituras de Engels dos
textos do filósofo alemão G. W. F. Hegel (1770-1831). Por meio desse exercício,
buscaremos reconstituir o percurso da evolução filosófica de Engels entre os
anos de 1839 a 1842, sua apreensão, compreensão e seu uso da filosofia
hegeliana, a fim de melhor compreender a metodologia por ele empregada no
Esboço de 1844. Para tanto, utilizaremos os ensaios de crítica literária e
filosófica e da correspondência de Engels entre os anos de 1839 a 1842,
selecionando as passagens nas quais ele fez referências e comentários à
filosofia hegeliana.
Organizaremos esse acervo documental em duas partes. A primeira
parte corresponderá aos textos e à correspondência engelsiana do período de
Bremen (1839-41). Entre os textos desse período a serem examinados se
encontram: “Sinais retrógrados do tempo”; “Réquiem para a gazeta da
aristocracia alemã”; “Ernst Moritz Arndt”; e “Polêmica moderna” 5. Entre a
correspondência, examinaremos as cartas enviadas aos irmãos Wilhelm e
Friedrich Graeber (1820-95; 1822-95) – ex-colegas de Engels do ginásio de
Elberfeld – entre os anos de 1839 a 1841. A segunda parte corresponderá aos
textos engelsianos do período de Berlim (1841-2), sendo examinados os
seguintes textos: “Schelling sobre Hegel”; Schelling e a revelação. Crítica a
mais recente tentativa da reação contra a filosofia livre; e Schelling, o filósofo
em Cristo, ou a transfiguração da sabedoria do mundo em sabedoria divina.
2 “Umrisse zu einer Kritik der Nationalökonomie” (Paris, n. 1-2, fev.). [Edição brasileira:
Temas de Ciências Humanas, v. 5, pp. 1–29, 1979; in Engels (São Paulo: Ática, 1981. p. 53–
81. Col. Grandes Cientistas Sociais, v. 17).]
3 Pariser Manuskripte (Paris, 1844); Ökonomisch-philosophischen Manuskripte (Paris,
1844).
4 Zur Kritik der politischen Ökonomie (Berlim, 1859); Das Kapital: 1. Band (Hamburgo, 1867).
5 “Retrograde Zeichen der Zeit” (Telegraph für Deutschland, Hamburgo, n. 26-28, fev. 1840);
“Requiem für die deutsche Adelzeitung” (Telegraph für Deutschland, Hamburgo, n. 59, abr.
1840); “Ernst Moritz Arndt” (Telegraph für Deutschland, Hamburgo, n. 3, jan. 1841);
“Moderne Polemik” (Mitternachtzeitung für gebildete Leser, Brunswick, n. 83-87, 21-22, 2526, 28 maio 1840).
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Para cristãos fiéis que desconhecem a linguagem filosófica6 – posteriormente
editados e reunidos sob o título de Anti-Schelling.
Todas as fontes mencionadas acima e que examinaremos em nosso
artigo se encontram disponíveis nas coleções Marx-Engels-Werke (MEW) e
Marx & Engels Collected Works (MECW).
1.
Nesta primeira seção do artigo, examinaremos as primeiras imersões de
Engels na filosofia hegeliana durante seu período em Bremen (1838-41).
Diferentemente do jovem Marx, em textos como a Crítica da filosofia
do direito de Hegel (1843, Kreuznach), o jovem Engels não produziu um
estudo sistemático por meio do qual possamos examinar suas considerações
sobre a filosofia de Hegel. Desta forma, a fim de estudarmos o hegelianismo do
jovem Engels tivemos de recolher uma série de passagens dispersas em artigos,
ensaios e cartas. Através dessa coletânea de passagens dispersas identificamos:
(1) as primeiras menções de Engels à leitura e ao estudo da filosofia hegeliana;
(2) o percurso de Engels em direção à filosofia hegeliana a partir da teologia de
D. F. Strauss; (3) a compreensão de Engels da concepção hegeliana da teologia
e da história; e, por fim, (4) a tese engelsiana de juventude da necessidade da
fusão da práxis política de Börne com a filosofia de Hegel.
A seguir, apresentaremos breve exposição dos temas listados acima.
1.1.
A primeira menção de Engels sobre a filosofia hegeliana por nós
identificada foi em carta a Wilhelm Graeber, de 24 de maio a 15 de junho de
1839 (MECW 2, pp. 451-2; MEW 41, pp. 397–8). Nessa carta, Engels
apresentou uma síntese crítica do panfleto Os hegelistas. Fragmentos de
documentos e provas para a denúncia da denominada verdade eterna7, de
Heinrich Leo (1799-1878), historiador e jornalista conservador alemão
(MECW 2, p. 631). Nesse panfleto, Leo, oponente da filosofia de Hegel,
antagonizou os Jovens Hegelianos, a quem se referia por meio do termo
6 “Schelling über Hegel” (Telegraph für Deutschland, Hamburgo, n. 207-208, dez. 1841);
Schelling und die Offenbarung. Kritik des neuesten Reaktions versuchs gegen die freie
Philosophie (Leipzig, mar. 1842); Schelling, der Philosoph in Christo, oder die Verklärung der
Weltweisheit zur Gottesweisheit. Für gläubische Christen, denen der philosophische
Sprachgebrauch unbekannt ist (Berlim, maio 1842).
7 Die Hegelingen. Actenstücke und Belege zu der s. g. Denunciation der ewigen Wahrheit
(1838, Halle)
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depreciativo Hegelings (MECW 2, 600, nota 49). Mais do que a primeira
menção à filosofia hegeliana, tomamos conhecimento, também, da primeira
defesa dela pelo jovem Engels. A iniciação de Engels na leitura e estudo das
obras hegelianas ocorreu no contexto da dissolução da filosofia hegeliana como
filosofia “oficial” do reino da Prússia, sendo Leo um de seus principais e mais
inflamados adversários. Ao final da carta a Wilhelm Graeber mencionada
acima, Engels observou a relação entre a emergente oposição à filosofia
hegeliana e ao reacionarismo político, que caminhavam como que de mãos
dadas no cenário filosófico e político alemão nas décadas de 1830-1840
(MECW 2, p. 452; MEW 41, p. 398).
***
Na parte seguinte, trataremos, a partir de excertos da correspondência
de Engels, de sua progressiva leitura, estudo e adesão à filosofia hegeliana.
1.2.
Ao longo do período no qual Engels morou em Bremen, podemos
observar por meio de sua correspondência seus primeiros passos na leitura,
imersão e gradual adesão ao sistema filosófico hegeliano.
Em carta de 29 de outubro de 1839 a Friedrich Graeber, Engels declarou
haver aderido à doutrina hegeliana: “Estou com a doutrina Hegeliana” (MECW
2, p. 477; MEW 41, p. 426)8.
Em passagem de carta a Wilhelm Graeber, de 13 a 20 de novembro de
1839, Engels expressou ser favorável ao racionalismo declarando se encontrar
“a ponto de se tornar um hegeliano”, e complementou: “Se eu vou me tornar
um ainda não sei, é claro, mas Strauss acendeu as luzes em Hegel para mim, o
que torna a coisa bastante plausível para mim”. Ademais, Engels mencionou,
pela primeira vez em carta, ter lido a Filosofia da história9, de Hegel, e que
este livro estava como que “escrito como do meu próprio coração” (MECW 2,
p. 486; MEW 41, p. 435).
Aproximadamente duas semanas depois, em outra carta a Friedrich
Graeber, de 9 de dezembro de 1839 a 5 de fevereiro de 1840, Engels declarou
que havia adentrado no caminho em direção ao hegelianismo, absorvendo os
aspectos mais importantes de seu sistema, e que havia aderido à concepção
hegeliana de Deus. E mais adiante, nessa mesma carta, Engels escreveu:
“Estou estudando o Geschichtsphilosophie de Hegel, um gigantesco trabalho;
o leio com atenção todas as noites e seus pensamentos extraordinários me
envolvem profundamente”, citando, como exemplos, o princípio hegeliano de
8 Essa e as demais traduções da MEW e da MECW para o português foram feitas pelo autor.
9 Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte (1837, Berlim).
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que “humanidade e divindade são em essência idênticas” e “o pensamento de
que a história mundial é o desenvolvimento do conceito de liberdade”. Nessa
mesma carta, Engels também caracterizou o sistema hegeliano como sendo um
“edifício ciclópico” (MECW 2, pp. 489-91; MEW 41, p. 438-40).
Ainda sobre a imersão do jovem Engels nas obras hegelianas, o
marxólogo Norman Levine (2006, cap. 2) acredita que Engels também tenha
lido tanto a Enciclopédia10 – em razão de ter feito menção a ela no ensaio
“Ernst Moritz Arndt” (MECW 2, p. 142; MEW 41, p. 124), de janeiro de 1841 —
quanto a obra Filosofia do direito11. Sobre essa última, Levine (2006, cap. 2,
nota 97) diz que, conforme documentado pelas edições MEGA-2 (IV/32, p.
316), Engels possuía tanto em 1841 quanto nos últimos anos de vida uma
edição do Filosofia do direito em sua biblioteca pessoal.
***
A partir dos fragmentos acima é possível observar o quanto Engels ficou
profundamente impactado com o poder e a capacidade da teoria hegeliana em
justificar a filosofia, a história e a teologia. A seguir, examinaremos a
compreensão engelsiana da filosofia da história de Hegel.
1.3.
No ensaio “Sinais retrógrados do tempo”12, publicado em fevereiro de
1840, Engels, sustentado na filosofia da história de Hegel, apresenta
considerações próprias sobre a concepção hegeliana da história. Desde já
crítico e antagônico ao pensamento conservador e reacionário alemão, o jovem
Engels expõe as implicações políticas das concepções da história que negam o
caráter transitório e, portanto, histórico das sociedades.
Iniciando sua argumentação sobre as verdades absolutas, Engels
escreveu que elas não resistem às mudanças impostas pelo tempo ao longo da
história, por mais que existam conservadores que lutem em prol da estagnação
e contra o progresso (MECW 2, p. 47; MEW 41, p. 27).
Desdobrando a concepção de história apresentada por Karl Gutzkow
(1811-78) – escritor e editor da revista Telegraph für Deutschland – em Para
a filosofia da história13, onde ele havia descrito o movimento histórico como
uma espiral, o jovem Engels elabora uma ilustração da história similar a uma
elipse, que se expande gradualmente a cada novo ciclo e que internaliza – ou
10 Encyclopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1817, Heidelberg).
11 Grundlinien der Philosophie des Rechts, oder Naturrecht und Staatswissenschaft im
Grundrisse (1820, Berlim).
12 “Retrograde Zeichen der Zeit” (Telegraph für Deutschland, Hamburgo, n. 26-28).
13 Zur Philosophie der Geschichte (1836, Hamburg).
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acomoda – as contradições em camadas cada vez mais amplas e complexas e,
portanto, mais contraditórias.
Mas prefiro uma espiral desenhada à mão livre, cujas voltas não são
executadas com muita precisão. A história começa seu curso
lentamente a partir de um ponto invisível, fazendo languidamente
suas voltas ao seu redor, mas seus círculos tornam-se cada vez
maiores, o voo torna-se cada vez mais rápido e animado, até que
finalmente a história dispara como um cometa flamejante de estrela
em estrela, muitas vezes contornando seus antigos caminhos,
muitas vezes cruzando-os, e a cada volta se aproxima do infinito. –
Quem pode prever qual será o fim? E nos pontos onde a história
parece retomar um caminho antigo novamente, pessoas míopes que
não veem mais longe do que seus narizes se levantam e gritam
alegremente que é exatamente como eles pensavam! E aí estamos
nós: não há nada de novo sob o Sol! Então nossos heróis da
estagnação chinesa, nossos mandarins do retrocesso são jubilosos e
fingem ter cortado três séculos dos anais do mundo como uma
excursão inquisitiva a regiões proibidas, como um sonho delirante –
e não conseguem ver que a história só se precipita pelo caminho
mais direto para uma nova resplandecente constelação de ideias,
que com sua magnitude semelhante à do Sol logo cegará seus olhos
débeis. (MECW 2, p. 48; MEW 41, pp. 27-8)
A partir da passagem acima podemos identificar a tradução do jovem
Engels da concepção hegeliana da história: um processo em aberto onde
nenhum sujeito pode prever seu final e permeado de contradições que a
impulsionam a avançar, inevitavelmente, para a suprassunção [Aufhebung]
delas, a despeito do esforço conservador e reacionário dos “mandarins do
retrocesso” [Rückschrittsmandarine], que, segundo escreveu Engels,
fracassam em compreender que a história marcha necessariamente para frente
em direção a “uma nova constelação de ideias”. Mais adiante, Engels concluiu
essa passagem identificando o tempo presente de sua época como sendo um
ponto de inflexão da história, onde ocorria o conflito – e sua futura e inevitável
suprassunção – entre o pensamento reacionário feudal-absolutista e o
revolucionário liberal-ilustrado (MECW 2, p. 48; MEW 41, p. 28).
1.4.
Nessa parte trataremos da tese de maior originalidade do pensamento
engelsiano durante seu período em Bremen: a fusão da práxis política de Börne
com a filosofia de Hegel. Tratava-se, então, de uma tese ousada, pois
antagonizava com o entendimento predominante no Jovem Alemanha 14, que
14 Ciclo de artistas e intelectuais liberais alemães no qual Engels integrou durante o período
em que morou em Bremen (1838-1841).
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considerava o cosmopolitismo de Börne antagônico e incompatível com o
sistema filosófico de Hegel, considerado, então, por muitos intérpretes como
sendo um germanista (MECW 2, pp. 140-1; MEW 41, pp. 121-3). Entretanto,
para o jovem Engels a fusão entre Börne e Hegel não somente era viável como
consistia na tarefa histórica de sua geração. Sendo fundamental para o
progresso da consciência política alemã, a combinação entre a práxis política
[politischen Praxis] de Börne e a filosofia de Hegel enriqueceria tanto a prática
quanto a teoria do movimento republicano e democrático alemão,
indispensável para a organização política capaz de impulsionar e realizar a
formação do estado nacional germânico – projeto político no qual Engels
esteve engajado durante a década de 184015.
***
O escritor alemão Ludwig Börne (1786-1837), ao lado de Hegel, esteve
entre os pensadores de maior influência no pensamento estético e político do
jovem Engels. A proposta de redação e a estrutura literária de ensaios
engelsianos de juventude, tal como as “Cartas de Wuppertal”16, foram
inspiradas na série Cartas de Paris17, de Börne. Encontramos ao longo da
leitura e exame dos artigos e ensaios, além da correspondência do jovem
Engels, passagens onde ele demonstrou sua admiração tanto pela obra literária
quanto pela prática e teoria política de Börne (MECW 2, p. 43; 448; MEW 41,
p. 24; 395). De acordo com o marxólogo russo Davíd Riazánov (1927, cap. 2),
Börne foi o primeiro jornalista político da Alemanha, e influenciou
profundamente a evolução do pensamento político alemão de seu tempo e das
gerações posteriores. Democrata radical, Börne antagonizou com o estado
autocrático prussiano em favor da liberdade política. Segundo o marxólogo
russo L. F. Ilitchev (1986, p. 19), Engels encontrou em Börne “um homem de
prática política” e se entusiasmou “pelo apelo” dele “à luta contra o feudalismo
e o absolutismo, o obscurantismo e o servilismo fátuo”.
A tese engelsiana de juventude sobre a fusão de Börne e Hegel foi
apresentada no ensaio “Ernst Moritz Arndt” (MECW 2, p. 142; MEW 41, p. 1234), publicado em janeiro de 1841, no qual Engels argumentou que em ambos –
sendo, cada um à sua maneira – trabalharam no desenvolvimento do espírito
moderno alemão, e que sua relação de complementaridade não fora
reconhecida até a morte de ambos. Mais à frente, Engels iniciou crítica ao que
considera como sendo um falso antagonismo entre o cosmopolitismo de Börne
e o germanismo, estabelecendo-o acima do conflito entre essas duas
15 Ao final do ensaio “Ernst Moritz Arendt”, Engels advogou a favor de um estado alemão
unitário e democrático (Telegraph für Deutschland, Hamburgo, n. 4, jan. 1841, in MECW 2,
p. 146; MEW 41, p. 127).
16 “Briefe aus dem Wuppertal” (Telegraph für Deutschland, Hamburgo, n. 49-52, 57, 59, mar.abr. 1839).
17 Briefe aus Paris (1833, Paris).
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tendências. Engels também exaltou o caráter não especulativo dos escritos de
Börne e de seu comprometimento com o democratismo e a expansão da
liberdade. Ao final, Engels valorizou Börne por ter sido o primeiro a
demonstrar concretamente a relação histórica entre a Alemanha e a França,
muito antes dos hegelianos que então se encontravam, escreveu Engels,
ocupados em decifrar a Enzyklopädie – isto é, a Enciclopédia das ciências
filosóficas18, de Hegel.
A seguir – ainda no ensaio “Ernst Moritz Arndt” – Engels iniciou o
exame sobre Hegel, particularmente o vínculo de seu sistema filosófico com o
estado prussiano. Segundo Engels, Hegel foi o homem do pensamento e
formulador do sistema completo da nação. Por essa razão, o estado prussiano
se apropriou e instrumentalizou o sistema filosófico hegeliano –
particularmente, sua filosofia do direito. Entretanto, após a morte de Hegel,
sua “filosofia do estado” passou por uma renovação crítica que se voltou contra
o prussianismo (MECW 2, p. 143; MEW 41, p. 124).
Apesar de o sistema filosófico hegeliano ter sido adotado como uma
espécie de doutrina oficial pelo estado prussiano, Engels nega o caráter
imanentemente conservador dessa filosofia. A apropriação do sistema
filosófico hegeliano pelo estado prussiano, segundo Engels, impulsionou uma
crítica de caráter potencialmente revolucionário, crítica que partia dos
pressupostos da própria filosofia hegeliana – isto é, como se o feitiço se
voltasse contra o próprio feiticeiro. Essa crítica encontrou sua melhor
formulação entre os Jovens Hegelianos, reanimando a dimensão
revolucionária da filosofia de Hegel. Entre os autores que arquitetaram tal
crítica, Engels menciona D. F. Strauss, no campo da teologia, e os filósofos
hegelianos radicais Eduard Gans (c. 1798-1839)19 e Arnold Ruge (1802-80), no
campo da teoria política (MECW 2, p. 143; 626; 635; MEW 41, pp. 124-5).
Nesses comentários de Engels, observa-se sua adesão à tese de que
haveria no núcleo da filosofia de Hegel dois caminhos opostos de
interpretação: um baseado no sistema e o outro na dialética. O primeiro
caminho teria dimensões conservadoras, o que justificaria a apropriação da
filosofia hegeliana como doutrina oficial do estado prussiano. Já o segundo
caminho – ao qual Engels se subscreveu – teria uma dimensão revolucionária,
identificada na dialética, capaz de fornecer os fundamentos teóricos para a
crítica do estado prussiano como, também, dos demais resquícios da ordem
feudal-absolutista (LUKÁCS, 2009b, pp. 124-5).
18 Encyclopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1817, Heidelberg).
19 Gans foi amigo e colega de Hegel na Universidade de Berlim. Após a morte de Hegel em
1831, Gans organizou um grupo formado por professores e estudantes batizado de “amigos do
eterno”, que assumiu a tarefa de editar e publicar ao longo dos anos 1830 as obras completas
de Hegel. Conforme informado no índex de literatura citada e mencionada das coleções MECW
e MEW, foi por meio dessas edições organizadas por Gans que Marx e Engels estudaram a
filosofia de Hegel (LEVINE, 2006, cap. 2; MECW 2, p. 626).
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No artigo “Réquiem para a gazeta da aristocracia alemã”,20 publicado
em abril de 1840, Engels escreveu que Hegel foi “servil na frente, como provou
Heine, e revolucionário por trás, como provou Schubarth” (MECW 2, p. 66;
MEW 41, p. 62) 21 – tese que voltaria a defender décadas mais tarde no ensaio
“Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã” (1886, Stuttgart)22.
Engels encerrou o ensaio “Ernst Moritz Arndt” afirmando que a tarefa
de sua geração seria a de completar a fusão entre Hegel e Börne – isto é,
completar a fusão entre o pensamento e a ação (MECW 2, p. 144; MEW 41, p.
125).
***
Por volta do mesmo período dos textos examinados acima, Engels
buscou aplicar o método dialético hegeliano, como também a terminologia
hegeliana, em seus ensaios de crítica literária e sobre a história da literatura
alemã, por exemplo, na série de ensaios intitulados “Polêmica moderna” 23,
publicados em 21, 22, 25, 26 e 28 de maio de 1840. Logo, “Polêmica moderna”
consiste em importante fonte de investigação da apreensão e compreensão do
jovem Engels da dialética e da metodologia hegeliana.
Em síntese, o período de Engels em Bremen foi o período de
aproximação e das primeiras leituras da obra de Hegel. Contudo, não se tratou
de leituras e estudos sistemáticos, mas do uso e da aplicação dessa obra com a
finalidades de examinar e compreender a Alemanha de seu tempo, como,
20 “Requiem für die deutsche Adelzeitung” (Telegraph für Deutschland, Hamburgo, n. 59), in
MECW 2, p. 66; MEW 41, p. 62.
21 Sobre a afirmação a respeito do escritor alemão Heinrich Heine (1797-1856), Engels,
provavelmente, fez referência ao ensaio História da religião e filosofia na Alemanha [Zur
Geschichte der Religion und Philosophie in Deutschland], escrito por Heine entre 1833 e 1834
durante seu exílio em Paris. Nesse ensaio, Heine formulou pela primeira vez, segundo György
Lukács (2009, pp. 124-5), a tese de que haveria na filosofia hegeliana uma dimensão de caráter
revolucionário – a dialética – e outra de caráter conservador – o sistema. Essa tese foi
dominante entre os Jovens Hegelianos. Por sua vez, Marx, em sua tese de doutorado,
Diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro (1841), conforme examinou
Lukács, questiona a divisão feita pelos Jovens Hegelianos radicais entre um Hegel
revolucionário e outro conservador. Para Marx, a acomodação de Hegel e de sua filosofia ao
poder prussiano “tem sua raiz mais profunda numa insuficiência […] do seu próprio
princípio”; isto é, deve-se buscar a compreensão e a justificativa para a acomodação política
de Hegel no núcleo de sua filosofia, e não formular uma divisão arbitrária e seletiva dela. Sobre
a afirmação a respeito do professor e escritor conservador alemão Karl Ernst Schubarth (17961861), Engels, provavelmente, fez referência ao livro Sobre a incompatibilidade da ciência
política hegeliana com o princípio da vida e do desenvolvimento absoluto do estado
prussiano [Ueber die Unvereinbarkeit der Hegel’schen Staatslehre mit demobersten Lebensund Entwickelungsprinzip des Preussischen Staats] (1839, Breslau) (MECW 2, p. 66, nota c,
pp. 657; 626).
22 Em “Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã”, Engels defendeu a tese de que
o elemento conservador da filosofia hegeliana se encontrava no sistema. Por sua vez, o
elemento revolucionário se encontrava na dialética, ou “a álgebra da revolução” (ENGELS,
1982, cap. I; MEW 21, pp. 265-73; LUKÁCS, 2009, p. 44).
23 “Moderne Polemik” (Mitternachtzeitung für gebildete Leser, Brunswick, n. 83-87), in
MECW 2, pp. 81-93; MEW 41, pp. 45-58.
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também, de recurso metodológico para seus ensaios sobre literatura. Ademais,
o hegelianismo do jovem Engels em Bremen era complementado com as
contribuições de filósofos e teólogos hegelianos contemporâneos, por
exemplo: Strauss, Gans e Ruge.
***
Na próxima seção, examinaremos a etapa seguinte do hegelianismo do
jovem Engels, que teve lugar durante o período no qual morou em Berlim
(1841-2).
2.
Entre os textos mais marcantes de Engels em Berlim se encontram
aqueles referentes aos debates sobre a nova política imposta à Universidade de
Berlim pelo rei Frederico Guilherme IV, após o estabelecimento de F. W. J.
Schelling como professor da cátedra de filosofia.
Durante o período em que residiu em Berlim, Engels frequentou uma
série de conferências proferidas na Universidade de Berlim e integrou os
efervescentes debates que ocorriam então. Seu envolvimento nesses debates
impulsionaram uma nova fase da sua evolução filosófica e política.
As conferências ministradas na Universidade de Berlim haviam se
tornado um campo de disputa filosófica e política, fazendo com que o ambiente
universitário fosse efervescente e estimulante para o autodidata Engels. Entre
as mais importantes dessas conferências foram aquelas ministradas por
Schelling. Schelling tinha por intenção apresentar em Berlim sua nova filosofia
e prometia sobrepor a filosofia hegeliana.
Engels redigiu artigos e ensaios filosóficos sobre a filosofia de Schelling
apresentada durante a série de conferências ministradas em Berlim entre os
anos de 1841 e 1842. Nosso propósito nesta seção é extrair do texto engelsiano
suas considerações sobre a filosofia hegeliana visando evidenciar sua
compreensão por Engels. Para tanto precisaremos extrair tais referências entre
os textos sobre Schelling. Ademais, seria inviável tratarmos do hegelianismo
do jovem Engels sem algum esclarecimento sobre a filosofia de Schelling, pois
Engels expôs suas considerações sobre Hegel a partir de sua crítica a Schelling.
Assim, antes de adentramos efetivamente nas considerações de Engels sobre
Hegel, apresentaremos um breve esboço da vida e da obra de Schelling e o
contexto de suas conferências em Berlim.
Felipe Cotrim
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2.1.
O esboço da vida e da obra de Schelling abaixo consiste em uma síntese
produzida a partir dos estudos de Bowie (2016), Breazeale (1993, pp. 138-80),
Lukács (1959, pp. 103-25) e Plant (2000) sobre Schelling e a filosofia clássica
alemã. Também fizemos uso do esboço biográfico “Schelling: vida e obra” e do
texto “História da filosofia moderna: Hegel”, de Schelling (1979, pp. v-xiv; 15578), ambos publicados na coleção Os pensadores.
***
O filósofo alemão Friedrich Wilhelm Joseph Schelling (1775-1854) foi,
ao lado de Immanuel Kant (1724-1804), Johann Gottlieb Fichte (1762-1814) e
G. W. F. Hegel (1770-1831), um dos mais importantes filósofos do idealismo
alemão.
Filósofo precoce, Schelling teve sua obra de juventude, particularmente
durante o denominado período de Jena (1798-1806), reconhecida desde o
princípio pela originalidade e ousadia de suas teses; por exemplo, a
assimilação da substância infinita de Spinoza ao eu transcendental de Fichte;
a crítica ao caráter excessivamente mecanicista e newtoniano da concepção
kantiana e fichtiana da natureza; e a identidade cartesiana entre o pensamento
e o ser24. Schelling destacou-se também durante o período de Jena pela
formulação da filosofia da natureza [Naturphilosophie], que consistia na fusão
da filosofia transcendental [Transzendentalphilosophie] dos filósofos alemães
Kant e Fichte com a física especulativa. A filosofia de Schelling em Jena,
portanto, culminou na harmonização entre a filosofia da natureza e a filosofia
transcendental por meio da denominada filosofia da identidade
[Identitätsphilosophie]25.
O período de Schelling em Jena foi também de intensa colaboração com
Hegel, que, poucos anos antes, foi seu colega de estudos e amigo no seminário
teológico de Tübingen. Em parceria com Hegel, Schellling mergulhou num
vasto campo de investigação filosófica e teológica, editou o Kritisches Journal
24 Do período anterior ao de Jena (pré-1798) se destacaram as seguintes textos de Schelling:
Do eu como princípio da filosofia ou sobre o absoluto no conhecimento humano [Vom Ich als
Princip der Philosophie oder über das Unbedingte im menschlichen Wissen] (1795) e Ideias
para uma filosofia da natureza [Ideen zu einer Philosophie der Natur] (1797). Nos textos desse
período, o pensamento de Schelling foi marcado pela adesão a filosofia de Fichte (“Schelling:
vida e obra”, in OS PENSADORES, 1979, pp. vi–vii).
25 Entre os principais textos de Schelling durante o período de Jena (1798-1806), destacaramse: Sistema do idealismo transcendental [System des transzendentalen Idealismus] (1800);
Da alma do mundo [Von der Weltseele] (1798); Exposição do meu sistema filosófico
[Darstellung meines Systems der Philosophie] (1801), Bruno, ou sobre o princípio divino e
natural das coisas [Bruno oder über das göttliche und natürliche Prinzip der Dinge] (1802),
Filosofia e religião [Philosophie und Religion] (1804); e Sistema reunido da filosofia e da
filosofia da natureza em particular [System der gesammten Philosophie und der
Naturphilosophie insbesondere] (1804) (“Schelling: vida e obra”, in Schelling (Os pensadores)
(São Paulo: Abril Cultural, 1979), pp. viii-x).
Felipe Cotrim
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der Philosophie entre 1802 e 1803 e, após receber notícias sobre os primeiros
eventos referentes à Revolução Francesa de 1789, plantou com Hegel uma
árvore em homenagem à liberdade. Ambos, Schelling e Hegel, partilhavam da
consciência de que a modernidade trouxe consigo uma série de bifurcações, ou
fragmentações, nas sociedades humanas; por exemplo, a fragmentação entre a
sociedade e o espírito [Geist]; a sociedade e a natureza; e a sociedade e os
sujeitos individuais. A partir da crítica filosófica dessas fragmentações,
Schelling e Hegel formularam uma série de categorias analíticas, tal como a da
alienação, que viriam a caracterizar profundamente a obra subsequente dos
dois filósofos (PLANT, 2000, pp. 15; 19-26). Apesar de inicialmente Schelling
e Hegel trabalharem de forma colaborativa na formulação e defesa da filosofia
da identidade, foram justamente as divergências resultantes do
aprofundamento e desenvolvimento dela que gerou a subsequente ruptura
entre eles.
A obra filosófica de Schelling após o período em Jena (pós-1806) foi
marcada pelo desenvolvimento e defesa da filosofia da identidade, estudos de
estética e teologia, a aproximação da tradição gnóstica e a ruptura definitiva
com Hegel – que ele acusou de tê-lo plagiado em Fenomenologia do espírito26.
A partir de então, Schelling aproximou-se de grupos sociais conservadores, ao
mesmo tempo em que se manteve afastado da vida intelectual e pública.
Durante o referido período – que coincide, aproximadamente, com a
Restauração (1815-48) –, Schelling também passou a defender a aliança
reacionária entre o trono e o altar, advogando, portanto, a favor do estado
teocrático e se identificando como oponente do jacobinismo e do Iluminismo,
aderindo, assim, às fileiras da contrarrevolução.
Após aproximadamente três décadas de quase reclusão e completa
imersão na filosofia e na teologia – exceto alguns períodos nos quais lecionou
de forma intermitente na Universidade de Munique –, Schelling como que
reemerge na história da filosofia na década de 1840 ao assumir o cargo de
conselheiro da corte do rei da Prússia, Frederico Guilherme IV, e a cátedra de
professor de filosofia na Universidade de Berlim – cargo que até 1831 foi
ocupado por Hegel. A indicação de Schelling para o cargo de professor em
Berlim fez parte de um projeto político do rei Frederico Guilherme IV, que
visava o desmonte institucional e filosófico do hegelianismo tanto na
Universidade de Berlim quanto no espírito dos intelectuais e artistas alemães
do período. A filosofia e a teologia irracionalista, gnosticista e reacionária que
Schelling gestou ao longo das décadas de 1810-30 servia, aos olhos da
monarquia prussiana, com perfeição para o cumprimento desse projeto.
Em oposição à filosofia negativa de Kant, Fichte e Hegel – assim como
a própria filosofia durante o período de Jena (1798-1806) –, Schelling
26 Phänomenologie des Geistes (1807, Bamberg & Würzburg).
Felipe Cotrim
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caracterizou sua nova perspectiva filosófica como positiva. Desta forma,
Schelling, por meio da filosofia da revelação, voltou-se contra o período
ascendente e progressista do idealismo alemão e aderiu à contrarrevolução
política e ao romantismo filosófico do período da Restauração (1815-48).
***
Após se mudar de Berlim em 1842, Schelling retornou ao estilo de vida
recluso e introspectivo, até falecer em 1854 aos 79 anos de idade na cidade
suíça de Bad Ragaz, para onde havia se retirado a fim de recuperar-se de um
resfriado.
2.2.
“Schelling sobre Hegel”27, publicado em dezembro de 1841 sob o
pseudônimo de Friedrich Oswald, foi o primeiro texto de Engels
correspondente à série de escritos sobre a filosofia de Schelling. Schelling
iniciou as conferências na Universidade de Berlim em novembro de 1841 e
ministrou as últimas conferências em março de 1842. Portanto, “Schelling
sobre Hegel” corresponde às primeiras dessas conferências. Engels não omite
o caráter parcial do texto em questão. Ao longo das páginas de “Schelling sobre
Hegel”, Engels expressou abertamente sua intenção de desafiar a filosofia da
revelação de Schelling e defender de forma apaixonada o legado filosófico de
Hegel (MECW 2, p. 185; MEW 41, pp. 167-8).
Por sua vez, Schelling e a revelação. Crítica à mais recente tentativa da
reação contra a filosofia livre28, redigido entre o fim de 1841 e o início de 1842
e publicado anonimamente29 no formato de brochura em Leipzig em março de
1842, é o mais extensivo e minucioso dos três textos de Engels publicados
contra a filosofia mística e irracionalista do Schelling pós-Jena (1806-54),
sendo, assim, o principal deles. Schelling e a revelação repercutiu nos mais
variados ciclos intelectuais da Alemanha. Os seguidores de Schelling
descreveram a crítica engelsiana como “ataques absurdos”. Os Jovens
Hegelianos, por sua vez, aplaudiram a brochura de Engels (MECW 2, pp. 6078, nota 121). Arnold Ruge, por exemplo, a resenhou positivamente nos
27 “Schelling über Hegel” (Telegraph für Deutschland, Hamburgo, n. 207-208), in MECW 2,
pp. 181-7; MEW 41, pp. 163-70).
28 Schelling und die Offenbarung. Kritik des neuesten Reaktions versuchs gegen die freie
Philosophie, in MECW 2, pp. 189-240; MEW 41, pp. 171-221.
29 Engels confirmou ser o autor de Schelling e a revelação no ensaio “Alexander Jung,
“Conferências sobre a literatura moderna alemã” [Alexander Jung, „Vorlesungen über die
moderne Literatur der Deutschen“] (Deutsche Jahrbücher für Wissenschaft und Kunst,
Leipzig, n. 161, 8 jul. 1842), assinado sob o pseudônimo de Friedrich Oswald (MECW 2, p. 295;
MEW 1, p. 443).
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Deutsche Jahrbücher;30 e, ao saber ser Engels o autor anônimo da brochura, o
contatou em carta, convidando-o para contribuir regularmente no jornal31.
Schelling, o filósofo em Cristo, ou a transfiguração da sabedoria do
mundo em sabedoria divina. Para cristãos fiéis que desconhecem a
linguagem filosófica32 foi o último dos três textos de Engels sobre as
conferências de Schelling em Berlim, encerrando, assim, a série. Sua redação
ocorreu, provavelmente, no início de 1842, sendo publicado em Berlim no
formato de brochura no início de maio daquele ano. Assim como Schelling e a
revelação, Schelling, o filósofo em Cristo foi publicado anonimamente
(MECW 2, p. 68, nota 127; MEW 41, p. 245).
Nessa nova ocasião, Engels teve por foco não os aspectos filosóficos das
conferências de Schelling, mas questões referentes a suas interpretações sobre
a trindade; o Novo e o Velho Testamento; a vida e a natureza divina ou humana
de Jesus; a vida dos 12 apóstolos; as fases históricas da Igreja; as relações entre
o paganismo e o monoteísmo dos hebreus e dos cristãos etc. Marcante na
exposição de Schelling sobre esses temas é a permanente presença do
sobrenatural na história mundial—na verdade, o papel do sobrenatural como
efetivo sujeito da história. Esses temas já haviam sido examinados
criticamente por Engels em Schelling e a revelação. Porém, em Schelling, o
filósofo em Cristo, eles retomam em uma linguagem exotérica, acessível
àqueles que não dominavam a linguagem esotérica da filosofia de Schelling—
conforme proposto em seu subtítulo: “Para cristãos fiéis que desconhecem a
linguagem filosófica”.
Schelling, o filósofo em Cristo teve como público-alvo cristãos católicos
e protestantes. Schelling, o filósofo em Cristo demonstra que Engels não
queria deixar nenhum grupo da sociedade alemã de seu tempo escapar de sua
crítica à filosofia do Schelling pós-Jena (1806-54). Para tanto, Engels teve que
ajustar sua retórica.
O último texto de Engels sobre Schelling teve rápida repercussão entre
a imprensa conservadora alemã, que o criticou negativamente. A edição do
jornal pietista Elberfelder Zeitung de 8 de maio de 1842 descreveu o autor
anônimo de Schelling, o filósofo em Cristo como um “rabiscador frívolo”. O
Allgemeine Zeitung, jornal de Augsburg, em sua edição de número 139, de 15
de maio de 1842, o acusou de cinismo. Por sua vez, a Rheinische Zeitung – o
órgão de imprensa vinculado aos jovens hegelianos—defendeu a brochura nas
edições de número 138 e 157, respectivamente dos dias 18 de maio e 6 de junho
de 1842, louvando a originalidade e o caráter irônico e satírico pelo qual o autor
30 Leipzig, n. 126–128, 28, 30-31 maio 1842 (MECW 2, pp. 607-8, nota 121).
31 Conforme carta de Engels a Arnold Ruge (Berlim, 15 jun. 1842), in MECW 2, p. 543.
32 Schelling, der Philosoph in Christo, oder die Verklärung der Weltweisheit zur
Gottesweisheit. Für gläubische Christen, denen der philosophische Sprachgebrauch
unbekannt ist, in MECW 2, pp. 241-64; MEW 41, pp. 223-45.
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examinou as interpretações de Schelling dos textos bíblicos (MECW 2, p. 127,
nota 608).
***
Quando morreu em 1831, Hegel deixou como legado um sólido sistema
filosófico e um punhado de discípulos – entre professores e estudantes—que
se dedicaram ao longo da década de 1830 em organizar, publicar e divulgar
suas obras completas – trabalho dirigido por Eduard Gans (c. 1798-1839),
filósofo e professor alemão da Universidade de Berlim, e amigo de Hegel
(LEVINE, 2006, cap. 2; MECW 2, p. 626). Além do trabalho de organização,
publicação e divulgação das obras completas de Hegel, seus discípulos se
dedicaram também à atividade de realizar a crítica necessária à filosofia do
mestre a fim de melhor lapidá-la, dando-lhe uma linguagem mais humana e
acessível. Esse trabalho permitiu com que o hegelianismo transbordasse da
filosofia e da teologia para as demais áreas do conhecimento, como a
jurisprudência, a historiografia, a literatura etc. (MECW 2, pp. 195-6; MEW 41,
pp. 175-6). Assim, de uma filosofia que, inicialmente, circulava exclusivamente
entre eruditos, o hegelianismo se tornou acessível a um público mais amplo na
Alemanha.
O trabalho dos discípulos de Hegel em prosseguir o desenvolvimento da
obra do mestre foi, segundo Engels, necessário. Os fundamentos do sistema
hegeliano, escreveu Engels, foram completados antes de 1810 – considerando
que o livro Fenomenologia do espírito33 foi publicado em 1807. Já sua
concepção de mundo [Weltanschauung], por volta de 1820 – considerando
que o livro Ciência da lógica34 foi publicado entre 1812 e 1816, e Princípios da
filosofia do direito35 em 1820. Sua perspectiva política e suas considerações
sobre o estado e o direito possuíam as marcas do Congresso de Viena (1815) e
da Restauração (1815-48). Portanto, segundo Engels, a filosofia hegeliana
consistia na síntese – ou no reflexo em pensamento – de seu próprio tempo e
de sua personalidade. Para Engels tanto os méritos quanto as inconsistências
e contradições de Hegel se deviam a esses aspectos. Seus princípios dialéticos
eram integralmente livres de amarras e liberais, enquanto suas conclusões
fundamentadas no sistema expressas, por exemplo, na filosofia da religião e do
direito, eram, nos termos de Engels, ortodoxas, pseudo-históricas e iliberais.
Alguns de seus discípulos, como Ruge e Strauss, Bruno Bauer e Feuerbach,
apegaram-se aos princípios dialéticos e rejeitaram as conclusões da ortodoxia
do sistema, desenvolvendo, assim, uma corrente do hegelianismo de viés
liberal e revolucionário (MECW 2, pp. 196-7; MEW 41, pp. 176-7).
33 Phänomenologie des Geistes (Bamberg & Würzburg).
34 Wissenschaft der Logik (Nuremberg).
35 Grundlinien der Philosophie des Rechts (Berlim).
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Os discípulos hegelianos citados acima superaram os limites
precedentes da filosofia da religião de Hegel ao imporem à religião,
particularmente ao cristianismo, uma crítica radical. Segundo Engels, esses
filósofos hegelianos radicais fundaram uma nova era filosófica ao consolidar o
trabalho iniciado pelos filósofos modernos do passado – iniciando por
Descartes, passando pelos iluministas franceses do século XVIII e a filosofia
clássica alemã – Kant, Fichte e Hegel (MECW 2, p. 197; MEW 41, p. 177).
***
Nos parágrafos seguintes, acompanharemos os textos “Schelling sobre
Hegel”, Schelling e a revelação e Schelling, o filósofo em Cristo, visando a
extrair deles suas considerações sobre a filosofia de Hegel e o hegelianismo de
seu tempo, a fim de apreender o estágio da sua evolução filosófica durante o
período em Berlim.
***
A crítica à filosofia positiva de Schelling e a defesa da filosofia negativa
de Hegel por Engels não se fez por meio de um hegelianismo “puro”, mas a
partir das contribuições à filosofia hegeliana desenvolvida por seus sucessores,
como Feuerbach. Sustentado em Feuerbach, Engels compreende que a razão
[Vernunft] existe efetivamente na mente, ou no espírito [Geist]. Porém, a
mente, ou o espírito, deve necessariamente existir na natureza [Natur]. Desta
forma, qualquer concepção que afirmasse haver uma mente, ou um
pensamento livre da matéria real orgânica que constitui o universo, já se
encontrava, desde então, rechaçada por Engels (MECW 2, pp. 209-0; MEW 41,
pp. 189-90).
Mais adiante, Engels prosseguiu:
Schelling /…/ concebe a ideia como um ser extramundano, como um
Deus pessoal, uma coisa que nunca ocorreu a Hegel. Para Hegel a
realidade da ideia não é outra coisa senão a natureza e o espírito. É
também por isso que Hegel não tem o absoluto duas vezes. No final
da lógica a ideia está lá como ideal-real, mas por isso mesmo ela é,
evidentemente, também natureza. Se ela se expressa apenas como
ideia, é apenas ideal, apenas existindo logicamente. O ideal-real
absoluto, completo em si, nada mais é do que a unidade da natureza
e do espírito na ideia. O esquema, porém, ainda concebe o absoluto
como sujeito absoluto, pois, embora preenchido com o conteúdo da
objetividade, ele permanece sujeito sem se tornar objeto. (MECW 2,
p. 216; MEW 41, pp. 196-7)
Por sua vez, para Schelling, observou Engels:
Natureza e espírito são /…/ tudo o que é racional. Deus não é
racional. Por isso, aqui também se mostra que o infinito só pode
existir racionalmente na realidade quando aparece como finito,
como natureza e espírito, e que qualquer existência extramundana
do infinito deve ser relegada ao reino das abstrações. Essa filosofia
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positiva particular depende inteiramente da fé, como já vimos, e só
existe para a fé. (MECW 2, p. 236; MEW 41, p. 218)
Por essa razão, Engels concluiu:
Schelling, por outro lado, toma a razão realmente por algo que
também poderia existir fora do organismo mundial
[Weltorganismus] e assim coloca seu verdadeiro reino na abstração
oca e vazia, no “aeon antes da criação do mundo”, que, felizmente,
porém, nunca existiu e no qual a razão ainda menos se encontrou ou
mesmo se sentiu feliz. Mas aqui vemos como os extremos se
encontram: Schelling não consegue captar o pensamento concreto e
o conduz a mais vertiginosa abstração, que lhe aparece de novo como
uma imagem sensorial. (MECW 2, p. 210; MEW 41, pp. 190-1)
Engels concluiu que, se tudo que a filosofia negativa da identidade
contempla é verdadeiro na natureza [Natur] e no espírito [Geist], ela é,
portanto, real, e a filosofia positiva – que contempla uma existência vazia e
abstrata fora da relação natureza-espírito – é, portanto, supérflua (MECW 2,
p. 236; MEW 41, pp. 217-8).
De alguma maneira, mesmo para o idealismo de Hegel, a razão –
escreveu Engels – consistia no conteúdo do mundo na forma de pensamento
– motivo pelo qual Lukács se referiu ao idealismo de Hegel como idealismo
objetivo, isto é, um idealismo filosófico ancorado na realidade material da
natureza e das sociedades humanas, ainda que “de modo latente” (LUKÁCS,
2012, p. 282). Para Schelling, contudo, o absoluto existiria fora do mundo
material, da relação natureza-espírito, e antecederia a existência dessa relação.
Isso levou Engels a concluir que: “Esta confusão de abstração e concepção é
característica da forma de pensar místico-escolástica de Schelling” (MECW 2,
p. 210; MEW 41, p. 191).
***
Para sustentar a arbitrariedade, o irracionalismo e o misticismo da
filosofia positiva da revelação e da mitologia, Schelling, escreveu Engels,
recorreu frequentemente a princípios e forças sobrenaturais (MECW 2, p. 228;
MEW 41, p. 209). Consequentemente, a adesão à filosofia positiva de Schelling
era dependente da fé de seu interlocutor. Entretanto, nessa altura de sua
evolução filosófica, o racionalismo e o materialismo do jovem Engels
encontravam-se bem estabelecidos. Para Engels: “A razão que não vai além do
poder da cognição é chamada de irracional. Somente é aceita como razão
aquela que realmente se prova pela cognição, {da mesma forma que} um olho
somente é aceito como verdadeiro se ele vê”. Portanto, segundo Engels, um ser
que não se manifesta ativamente na realidade, na natureza, não pode ser um
ser, mas um não-ser, ou um ser impotente, pois, o ser “deve se manifestar, deve
reconhecer” [muß erkennen] (MECW 2, p. 208; MEW 41, pp. 188-9). Não
haveria, portanto, para o jovem Engels em 1842, razoabilidade em um
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reconhecer [erkennen] que não fosse provado por meio dos sentidos e
mediados pela razão [Vernunft]. Desta maneira, Engels resume a filosofia
positiva da revelação de Schelling nas seguintes palavras:
Um ensino que não tem fundamento nem em si mesmo nem em
qualquer outra coisa que tenha sido provada. Aqui, baseia-se num
pensamento liberto de toda a necessidade lógica, que é arbitrário,
pensamento vazio; ali, sobre algo de que precisamente a realidade
está em questão, e de que as reivindicações são disputadas, a saber,
a revelação. Que exigência ingênua que, para se curar da dúvida, é
preciso descartar a dúvida! “Bem, se você não acredita, não há
salvação para você!”. (MECW 2, p. 219; MEW 41, p. 200)
Observamos, assim, que o Engels de 1842 já estabelecia a realidade
efetiva do mundo – seja material ou espiritual [Geist], isto é, intelectual –
como o critério fundamental do conhecimento e da razoabilidade do real.
***
Enquanto a filosofia positiva da revelação e da mitologia de Schelling
encontrava-se na dependência da existência de uma força sobrenatural que
injetaria o princípio do vir-a-ser na realidade material do mundo, a filosofia
negativa de Hegel, escreveu Engels, prescindia da existência dessa força
sobrenatural, pois, conforme essa filosofia, tudo produz a si mesmo”, logo,
“uma personalidade divina é supérflua” (MECW 2, p. 236; MEW 41, p. 217).
Segundo Plant (2000, pp. 37-3), Hegel manteve em sua filosofia da
religião o conceito de Deus. Porém, para Engels—sustentado na tese exposta
por Feuerbach em A essência do cristianismo –, esse Deus não mais seria um
ser sobrenatural com existência autônoma e autoconsciente, mas seria “nada
menos que a consciência da humanidade em puro pensamento, a consciência
do universal” (MECW 2, p. 236; MEW 41, p. 217)36.
***
A adesão à tese materialista feuerbachiana sobre a natureza e o espírito
não significou que Engels se absteve de criticar Feuerbach quando ele
apresentou objeções a Hegel que o primeiro considerava equivocadas. Sobre
isso, Engels escreveu:
É curioso {Hegel} estar agora sob ataque duplo, pelo seu antecessor
Schelling e pelo seu discípulo mais novo, Feuerbach. Quando este
último acusa Hegel de estar profundamente preso ao velho, ele deve
considerar que a consciência do velho já é precisamente a nova, que
36 Décadas depois, Engels (2015, seção I, cap. VI–VIII, p. 87–116; MEW 20, p. 52–77)
retornou ao tema da origem do universo em Anti-Duhring (1877-1878, Leipzig). Entretanto,
naquela ocasião, não mais baseado em uma hipótese lógica e filosófica, como a expressa em
Schelling e a filosofia da revelação, mas naquelas que seriam as teorias científicas mais
avançadas de seu tempo. Em síntese, para o Engels do Anti-Dühring, o movimento constante
da natureza é o modo de existir da matéria e ele não pode ser criado nem destruído, mas
somente transmitido.
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o velho é relegado à história justamente quando foi completamente
trazido à consciência. Portanto, Hegel é de fato o novo como velho,
o velho como novo. Por isso, a crítica de Feuerbach ao cristianismo
é um complemento necessário ao ensinamento especulativo sobre
religião fundado por Hegel. Este atingiu seu auge em Strauss, por
meio de sua própria história o dogma se dissolve objetivamente no
pensamento filosófico. Ao mesmo tempo, Feuerbach reduz as
categorias religiosas às relações humanas subjetivas, não anulando
de forma alguma os resultados alcançados por Strauss, mas, ao
contrário, colocando-os à prova e, de fato, ambos chegam ao mesmo
resultado, que o segredo da teologia é a antropologia. (MECW 2, p.
237; MEW 41, p. 219)
A justa crítica materialista de Feuerbach do idealismo de Hegel,
portanto, não inverteu para Engels a hierarquia e o devido tributo à filosofia
formulada e estabelecida pelo último. Ademais, o reconhecimento por parte de
Engels da contribuição de Feuerbach ao desenvolvimento da filosofia
hegeliana não significou que ele se omitiu de identificar e apontar seus limites.
Citações com a transcrita acima demonstram, uma vez mais, a imanente
postura crítica do jovem Engels, mesmo diante de seus mestres. Se de um lado
Feuerbach corrigiu o idealismo até então presente na filosofia hegeliana,
invertendo a relação natureza-espírito, os princípios dialéticos dessa filosofia
deveriam ser mantidos como a matriz de quaisquer filosofias futuras. Portanto,
a despeito da postura crítica do jovem Engels à filosofia de Hegel, seu ponto de
partida, a matriz de seu pensamento filosófico, foi, desde o princípio, a própria
filosofia hegeliana. (Isso deve ser levado em consideração no exame de textos
de maturidade de Engels [1982, cap. I; MEW 41, p. 272], particularmente
perante afirmações como a presente em Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia
clássica alemã [1886, Stuttgart]37: “Momentaneamente fomos todos
feuerbachianos”. A verdade foi que, independentemente do momentâneo
entusiasmo geral para com as teses feuerbachianas em A essência do
cristianismo, o jovem Engels não se desviou de Hegel. Mas, justamente pelo
contrário, manteve Hegel como sua principal referência filosófica.)
***
Outro ponto relevante no exame crítico de Engels sobre a filosofia
positiva de Schelling foi no que se referia à relação necessidade-liberdade.
Para o Schelling pós-Jena (1806-54), necessidade e liberdade não
existiriam como categorias ou determinações reflexivas, mas antagônicas,
sendo que a liberdade somente poderia ser efetivada quando fosse emancipada
dos limites impostos pela necessidade – isto é, fora das determinações
materiais existentes na relação natureza-espírito.
37 Ludwig Feuerbach und der Ausgang der klassischen deutschen Philosophie (Die Neue Zeit,
n. 4-5).
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Em Schelling, escreveu Engels, a liberdade se confunde com a
arbitrariedade – o pensamento emancipado da negatividade da natureza
[freies Denken] e a autonomia existencial da tricotomia das potências perante
o vir-a-ser. Entretanto, prosseguiu Engels, em um mundo arbitrário – isto é,
desprovido de determinações e leis objetivas –, como poderiam os seres
atuarem em liberdade? Para Engels, a liberdade atuava em relação
imanentemente dialética com a necessidade – isto é, a liberdade germina no
solo da necessidade, pois a primeira emerge da consciência e da ação prática
do gênero humano sob a causalidade dos fenômenos materiais da natureza.
Assim, asseverou Engels em Schelling e a revelação: “Somente é verdadeira a
liberdade que contém em si a necessidade; de fato, a única verdade é a
razoabilidade da necessidade” (MECW 2, p. 236; MEW 41, p. 217).
A relação dialética imanente entre necessidade-liberdade é tratada pelo
jovem Engels em 1842 de forma abstrata e sustentada na lógica filosófica.
Décadas mais tarde, já sustentado sobre o instrumental teórico da concepção
materialista da história plenamente desenvolvida, Engels retomaria a questão
da relação necessidade-liberdade de forma mais concreta em Anti-Dühring
(1877-8, Leipzig) – como também por Marx no Livro 3 de O capital (1894,
Hamburgo)38.
Sobre essa questão, Engels escreveu no Anti-Dühring:
Quando a sociedade tomar posse dos meios de produção, será
eliminada a produção de mercadorias e, desse modo, o produto
deixará de dominar os produtores. A anarquia na produção social
será substituída pela organização consciente e planejada. Cessará a
luta pela existência individual. Só depois que isso acontecer, o ser
humano se despedirá, em certo sentido, definitivamente do reino
animal, abandonará as condições animais de existência e ingressará
em condições realmente humanas. O âmbito das condições de vida
que envolvem os seres humanos, que até agora os dominaram,
passarão para o domínio e o controle deles, que pela primeira vez se
38 Nos termos de Marx: “O reino da liberdade só começa onde cessa o trabalho determinado
pela necessidade e pela adequação a finalidades externas; pela própria natureza das coisas,
portanto, é algo que transcende a esfera da produção material propriamente dita. Do mesmo
modo como o selvagem precisa lutar com a natureza para satisfazer suas necessidades, para
conservar e reproduzir sua vida, também tem de fazê-lo o civilizado – e tem de fazê-lo em todas
as formas da sociedade e sob todos os modos possíveis de produção. À medida de seu
desenvolvimento, amplia-se esse reino da necessidade natural, porquanto se multiplicam as
necessidades; ao mesmo tempo, aumentam as forças produtivas que as satisfazem. Aqui, a
liberdade não pode ser mais do que fato de que o homem socializado, os produtores associados,
regulem racionalmente esse seu metabolismo com a natureza, submetendo-o a seu controle
coletivo, em vez de serem dominados por ele como por um poder cego; que o façam com o
mínimo emprego de forças possível e sob as condições mais dignas e em conformidade com
sua natureza humana. Mas este continua a ser sempre um reino da necessidade. Além dele é
que tem início o desenvolvimento das forças humanas, considerado como um fim em si
mesmo, o verdadeiro reino da liberdade, que, no entanto, só pode florescer tendo como base
aquele reino da necessidade. A redução da jornada de trabalho é a condição básica” (2017,
seção VII, cap. 48.III, pp. 882-3).
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tornarão senhores reais e conscientes da natureza, porque (e à
medida que) passam a ser senhores de sua própria socialização. As
leis do seu fazer social, com que até agora se defrontavam como leis
naturais estranhas, que os dominavam, passarão a ser empregadas
e, assim, dominadas pelos seres humanos com pleno conhecimento
de causa. A própria socialização dos seres humanos, até agora vista
como outorgada pela natureza e pela história, passará a ser ato livre
deles. As potências objetivas e estranhas que até agora governaram
a história passarão a ser controladas pelos próprios seres humanos.
Só a partir desse momento os seres humanos farão sua história com
plena consciência; só a partir desse momento as causas sociais
postas em movimento por eles terão, de modo preponderante e em
medida crescente, os efeitos que desejam. É o salto da humanidade
do reino da necessidade para o reino da liberdade. (2015, seção III,
cap. II, pp. 318-9; MEW 20, p. 264)
Independentemente do caráter abstrato no tratamento da relação
necessidade-liberdade de Engels em 1842, já era então possível identificar o
pressuposto materialista firmemente estabelecido nessa etapa de sua evolução
filosófica.
Por fim, sustentados nas passagens acima sobre a relação
imanentemente dialética entre necessidade e liberdade, podemos demonstrar
que a repetida afirmação de que Engels só viria a aderir ao materialismo
filosófico a partir de seu período em Manchester somente poderia se sustentar
enquanto sua obra durante o período em Berlim for ignorada pelos
pesquisadores. Passagens como as citadas acima demonstram que Engels
aderiu conscientemente ao materialismo filosófico nos anos de 1841 e 1842 em
Berlim, sem que ela causasse quaisquer agravos à matriz dialética de seu
hegelianismo.
***
Para Engels, a filosofia positiva da revelação e da mitologia, como,
também, a tricotomia das potências, expuseram o caráter fantasioso,
irrazoável e ilógico do pensamento do Schelling pós-Jena (1806-54),
terminando por compará-las a uma estrada com rumo ao nada (MECW 2, p.
207; MEW 41, p. 188). Segundo Engels, a tricotomia das potências não
consistia em nada além do que a unidade tripartite do curso do
desenvolvimento dialético da ideia-natureza-espírito da filosofia de Hegel, que
Schelling rebatizou com outros nomes e transformou em entidades autônomas
e sobrenaturais equivalentes à trindade cristã (MECW 2, pp. 206-7; 224-5;
MEW 41, pp. 186-7; 205-6).
O projeto de Schelling em Berlim de desmoronar a filosofia hegeliana
terminou por ser uma promessa não cumprida. Nas palavras de Engels:
Tudo saiu diferente {do planejado}. A filosofia hegeliana vive, na
tribuna, na literatura, nos jovens; ela sabe que todos os golpes que
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lhe foram infligidos até agora não lhe poderiam fazer mal e
prossegue calmamente no seu próprio curso de desenvolvimento
interior. Sua influência sobre a nação, como provado pelo aumento
da raiva e da atividade de seus oponentes, está crescendo
rapidamente, e Schelling deixou quase todos os seus ouvintes
insatisfeitos. (MECW 2, p. 192; MEW 41, p. 174)
Assim, para Engels, apesar das investidas filosóficas e institucionais, a
filosofia hegeliana permanecia viva e tinha muito a prosperar e contribuir no
desenvolvimento do conhecimento humano historicamente acumulado.
A conclusão de Engels tem um tom triunfalista. Por meio da filosofia
hegeliana a humanidade adquiriu a autoconsciência [Selbstbewusstein der
Menschheit] de seu lugar no mundo, como se o “heaven has come down to
earth” (MECW 2, pp. 238-40; MEW 41, pp. 219-1).
Confiante na vitória inevitável da razão sobre o obscurantismo, da
liberdade sobre a servidão, do racionalismo sobre o irracionalismo, Engels
encerra o ensaio convocando o leitor a se engajar nessa luta intelectual
iluminista contra a reação. Assim, Engels encerra o ensaio Schelling e a
revelação nas seguintes palavras:
Vamos esquecer esta perda de tempo. Há coisas mais finas para
contemplarmos. Ninguém vai querer nos mostrar este naufrágio e
afirmar que somente ele é um navio navegável, enquanto em outro
um porto uma frota inteira de fragatas orgulhosas está ancorada,
prontas para sair para o alto-mar. Nossa salvação, nosso futuro, está
em outro lugar. Hegel é o homem que abriu uma nova era de
consciência ao completar a velha. (MECW 2, p. 237; MEW 41, p. 219)
Considerações finais
Quando chegou em Berlim em meados de setembro de 1841, Engels era
um ensaísta de crítica literária e democrata radical de inspiração jacobina com
forte tendência para o ateísmo. Sua concepção de mundo [Weltanschaunng]
se alinhava – ainda que de forma incipiente – ao racionalismo e ao
hegelianismo.
Ao longo de seu período em Berlim, Engels solidificou seu ateísmo, sua
crítica à autocracia e à teocracia do estado prussiano e aderiu ao materialismo
de Feuerbach, rompendo com quaisquer elementos idealistas que havia trazido
consigo de Bremen. Entretanto, o materialismo feuerbachiano não significou
uma ruptura para com a sua matriz hegeliana. Mas, pelo contrário, essa foi
lapidada com o aprofundamento da leitura das obras de Hegel, dos textos de
seus discípulos mais radicais – particularmente, os Livres [die Freien] de
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Berlim – e por meio do próprio exercício crítico, expresso com maior nitidez
ao longo de seus textos contra Schelling.
Conforme foi demonstrado acima, o período em Berlim foi de
solidificação da dialética hegeliana do jovem Engels, o instrumento
metodológico por meio do qual viria a examinar criticamente a história, a
filosofia, a cultura, a sociedade e a economia capitalista durante seu primeiro
período em Manchester (1842-4). Contudo, não se tratou de um hegelianismo
abstrato, mas de um hegelianismo voltado para a ação prática na política e na
sociedade – uma filosofia da ação [Philosophie der Tat].
O período em Manchester entre os anos de 1842 a 1844, o contato com
as classes burguesas e trabalhadoras inglesas e a vivência naquele que era
então o centro do capitalismo mundial, conduziu o jovem Engels a submergir
não somente na leitura e no estudo de livros, mas, também, no estudo de
campo das grandes cidades industriais inglesas e seus habitantes, traçando
uma nova e sinuosa linha na espiral logarítmica de sua evolução filosófica. O
estudo e o exame da evolução filosófica do jovem Engels entre seu período em
Bremen e – particularmente – em Berlim (1838-42) é fundamental para
compreender a metodologia empregada por Engels em sua investigação
econômica e social, como também em sua atividade política de seu primeiro
período em Manchester (1842-4).
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Como citar: COTRIM, Felipe. O hegelianismo do jovem Engels (183942). Verinotio – Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio das
Ostras, v. 26, n. 2, pp. 61-84, jul./dez. 2020.
Data do envio: 20 abr. 2020
Data do aceite: 13 out. 2020
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