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Antologiaconto

ANTOLOGIA DO CONTO PORTUGUÊS CONTEMPORÂNEO ANTOLOGIA DO CONTO PORTUGUÊS CONTEMPORÂNEO SELECÇÃO, PREFÁCIO E NOTAS BIOBIBLIOGRÁFICAS DE ÁLVARO SALEMA MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO Título ANTOLOGIA DO CONTO PORTUGUÊS CONTEMPORÂNEO 1.ª edição – 1984 Instituto de Cultura e Língua Portuguesa Secretaria de Estado do Ensino Superior Ministério da Educação © Instituto de Cultura e Língua Portuguesa Divisão de Publicações Praça do Príncipe Real, 14-1º – 1200 Lisboa Direitos de tradução, reprodução e adaptação reservados para todos os países Tiragem 5000 exemplares Composto e impresso: Oficinas Gráficas de Veiga & Antunes, Lda. – Minerva do Comércio Fevereiro 1984 ÍNDICE ADVERTÊNCIA ..................................................................................5 PREFACIO ...........................................................................................6 RAÚL BRANDÃO – A casa de hóspedes .......................................... 12 AQUILINO RIBEIRO – A reencarnação deliciosa ...........................19 FERREIRA DE CASTRO – O Senhor dos Navegantes .....................30 JOÃO DE ARAÚJO CORREIA – As velhas são o Diado .................42 JOSÉ GOMES FERREIRA – A sombra ............................................50 JOSÉ RÉGIO – Os três reinos ............................................................55 VITORINO NEMÉSIO – Mau agoiro ............................................... 63 JOSÉ RODRIGUES MIGUÉIS – O viajante clandestino .................70 DOMINGOS MONTEIRO – Ressurreição ........................................81 BRANQUINHO DA FONSECA – Histórias da meia noite ..............87 MIGUEL TORGA – O Alma-Grande ................................................95 ALVES REDOL – O rapaz não gostava das mãos .......................... 102 MANUEL DA FONSECA – Maria Altinha .................................... 107 LUÍS FORJAZ TRIGUEIROS – Desportos de Inverno ................... 114 MÁRIO DIONISIO – A lata de conserva ........................................ 120 VERGÍLIO FERREIRA – Mãe Genoveva ....................................... 126 FERNANDO NAMORA – O rapaz do tambor ............................... 134 SOPHIA DE MELO BREYNER ANDERSEN – O Homem ........... 146 JORGE DE SENA – O grande segredo ............................................ 151 CARLOS DE OLIVEIRA – Os corvos ............................................ 157 MÁRIO BRAGA – Balada .............................................................. 161 AGUSTINA BESSA-LUÍS – Filosofia verde ................................... 165 URBANO TAVARES RODRIGUES – A meia hora de sol .............. 172 JOSÉ CARDOSO PIRES – Os caminheiros ................................... 177 AUGUSTO ABELAIRA – Ode (quase) marítima ........................... 190 DAVID MOURÃO-FERREIRA – Nem tudo é história ................... 198 HERBERTO HELDER – O quarto .................................................. 205 MARIA ONDINA BRAGA – A lição de inglês ...............................210 LÍDIA JORGE – Os dois viajantes ..................................................220 VERGÍLIO ALBERTO VIEIRA – O dia perfeito ............................231 ADVERTÊNCIA A presente Antologia, editada pelo Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, destina-se principalmente a apoiar a acção pedagógica exercida através dos Leitorados que o Instituto mantém em dezenas de Universidades estrangeiras onde é ministrado o ensino da língua portuguesa e divulgada a nossa cultura, bem como a outras instituições que prossigam os mesmos objectivos. Numa amostragem que teve de ser necessariamente confinada para que o volume não excedesse as convenientes proporções, são aqui apresentados – em reprodução integral – contos escolhidos de trinta autores que figuram entre os mais representativos da nossa literatura nos últimos anos. E, na sua diversidade e significação, pretende-se que com eles sejam testemunhados não só alguns dos valores fundamentais dessa literatura como também uma maneira de ser portuguesa em que se reflectem a identidade e a originalidade nacionais, alimentadas por oito séculos de história. As breves notas biobibliográficas que precedem os textos dos autores seleccionados contêm um mínimo de informação e de caracterização literária que visa a sugerir o seu estudo mais demorado, sobretudo no âmbito do ensino ou da leitura orientada em que esta Antologia deverá inserir-se. Pela mesma razão – e como antecipada afirmação de confiança no professorado, com conhecimento ou iniciação já definidos na língua e na cultura portuguesas – se dispensou na estrutura do volume a acumulação de anotações e comentários esclarecedores dos textos. É apenas um contributo no essencial que com esta colectânea se intenta fornecer ao ensino e divulgação da literatura portuguesa no estrangeiro – e com ela a implícita homenagem do Instituto aos que têm devotadamente servido essa missão, do mais alto e perene interesse para o Portugal de hoje e de amanhã. 5 PREFÁCIO De raízes tão alongadas em dimensão histórica como a própria nacionalidade, com os seus já ultrapassados oito séculos de existência autónoma, a literatura portuguesa acumulou no decurso desse dilatado tempo um somatório de valores que podem legitimamente alinhar com largueza no património cultural da humanidade. A estreiteza da sua divulgação e projecção em outras línguas, por motivos que têm sido versatilmente analisados e que não se limitam à barreira linguística por outros povos superada, constitui flagrante injustiça a reclamar reparação – e a publicação no estrangeiro de antologias traduzidas poderá ser para esse efeito instrumento valioso. Mais rica e mais altamente qualificada em certos géneros do que em outros, como todas as literaturas nacionais, nem por isso a diversidade daqueles valores tem deixado de testemunhar na literatura portuguesa o que se afirma e documenta nela de representativo das vivências multiformes de um povo com iniludíveis características que o diferenciam dos demais. É nos géneros mais cultivados, mais valorizados e mais significantes dessas vivências, porém, que se poderá encontrar em maior plenitude a genuinidade de um «estar no mundo» especificamente português, ao mesmo tempo que as criações de mais generalizável interesse para leitores estrangeiros. Tais géneros serão, na literatura portuguesa – parece que mais reconhecidamente, em mais amplo consenso – a poesia e o conto. Na poesia, para além de inevitáveis dificuldades na tradução em outras línguas, algumas figuras maiores têm conseguido transpor o obstáculo conquistando uma audiência mundial que não cessa de alargar-se: é o caso de Camões (1525 ?-1580) e, já em notável medida, o de Fernando Pessoa (1888-1935). Mas no que 6 respeita ao conto, em que o obstáculo linguístico é incomparavelmente menos sensível, será lícito desejar e esperar que a irradiação internacional de autores portugueses assuma a amplitude que os seus incontestáveis valores estéticos e de expressão do humano fundamental justificam. A essa intenção e possibilidade se deve, primacialmente, a edição da presente antologia do conto português contemporâneo. A publicação em língua portuguesa será, intencionadamente, o ponto de partida para edições em outras línguas de larga utilização internacional. Arredando deliberadamente a tentação erudita de incluir na colectânea uma amostragem de textos de autores de distanciadas épocas, partiu-se do critério de que tal intuito, a realizar-se em termos significativos, não poderia deixar de avolumar excessivamente a dimensão do livro, além de implicar para tradutores e leitores a dificuldade de integração em épocas histórico-literárias, em temáticas e em estilos muito diferentes dos que alimentam o interesse e o gosto mais correntes da leitura. Por isso se balizou a antologia num âmbito de contemporaneidade que abrange os últimos sessenta anos. O que se pretende com esta edição, de facto, é o acesso tão aberto quanto possível, na versão portuguesa inicial para os leitores a que for acessível a língua, nas versões em outras línguas através do veículo da tradução para muitos mais leitores, a uma panorâmica do conto português com interesse vivo para largos públicos. Mais determinadamente: para estudantes e estudiosos de nacionalidades e de formações as mais diversas. Para além deste propósito pragmático, será oportuno salientar nesta anotação prefacial que a narrativa curta, condensando um episódio, um caso humano ou a perspectivação duma figura e da sua circunstancialidade, teve tradicionalmente grande lugar na literatura portuguesa. Desponta com os relatos lendários, mais ou menos efabulados, que povoam as crónicas medievais, os «livros de linhagens e as evocações hagiológicas dos frades cistercienses de Alcobaça; ganha forma novelística mais nítida com as narrativas cavaleirescas dos séculos XV e XVI; assume-se definidamente nos Contos e Histórias de Proveito e Exemplo (1575) de Gonçalo Trancoso; prossegue uma trajectória versátil nos séculos XVII e XVIII em narrativas apologéticas como as de Manuel Bernardes e da freira Maria do Céu e nas histórias epigramáticas de vários autores setecentistas. O Romantismo e, logo a seguir, o Realismo e o Naturalismo do século XIX renovaram e enriqueceram numerosamente o género nas temáticas e nos estilos, em afloração muitíssimo diversificada que vai de Garrett com as suas revivescências do romanceiro tradicional aos contos de composição multifacetada que preenchem em grande escala a obra de escritores de primeiro plano como Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Júlio Diniz, Teixeira de Queirós, Fialho de Almeida e tantos outros. Ao longo do século XX já decorrido o conto é o molde dilecto 7 da realização literária de escritores inúmeros, abrangendo vasta panorâmica em que se reflectem consubstanciadamente a evolução de correntes de raiz mais genuinamente nacional e as influências recebidas das mais várias origens. Nesse percurso se poderá constatar que o conto, como acentuou penetrantemente Andrée Crabbé Rocha, «casa-se bem com o temperamento português, feito de pronta emoção e rápida catarse». E outro qualificado historiador e crítico da literatura, Jacinto do Prado Coelho, observou com idêntica justeza que «é lugar-comum da teoria literária assinalar afinidades que aproximam o género ‘conto’ da poesia», corroborando assim o paralelo fluir dos dois géneros na história literária portuguesa, que traduz em ambos uma temperamentalidade ou ideossincrasia caracterizante nacionais. O conto português contemporâneo, de que se apresenta nesta antologia uma súmula necessariamente restringida a três dezenas de autores, dá testemunho flagrante, sem prejuízo das suas diversidades, da permanência duma longa tradição. E, ao mesmo tempo, reflecte o vigor e a qualidade das inovações de temática e de estilo resultantes da personalidade própria de cada um dos autores representados e da assimilação de influências recebidas das mais variadas origens. Na continuidade da linha nacional é evidenciada, em muitos casos, a perenidade da lição dos dois maiores prosadores e criadores ficcionistas portugueses do século XIX: Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós. Mas também se rastreiam os influxos de correntes epocais e de escritores estrangeiros de mais poderosa irradiação, amoldados pelos autores à «maneira» nacional e à própria especificidade da língua que é seu veículo na escrita. Em Raúl Brandão, por exemplo – como em José Régio e Agustina Bessa Luís, entre outros – desvenda-se a sugestão, que pode aliás volver-se em meras coincidências tendenciais ou similaridades de temperamento, do revolvente e inquieto génio de Dostoievski. Nos escritores revelados nas décadas que decorrem, grosso modo, entre 1920 e 1940 – como serão mais perceptivelmente os casos de Nemésio, Branquinho da Fonseca, ainda do citado Régio – poderão descortinar-se ecos mais ou menos nítidos de Marcel Proust e André Gide, de Valéry e Joyce. Nos contistas da corrente designada em Portugal por Neo-Realismo, (ou Realismo Socialista), como Redol, Manuel da Fonseca, Fernando Namora, Mário Dionísio, o exemplo de temas populistas e de intencionalidades sociais nas obras dos brasileiros Jorge Amado e Graciliano Ramos, dos americanos Steinbeck e Faulkner, dos soviéticos Gorki, Cholokov e Gladkov, do italiano Silone, fez-se sentir notoriamente. O surrealismo europeu aflora em José Gomes Ferreira e em Jorge de Sena, como o existencialismo sartriano tocou inegavelmente Vergílio Ferreira e parece ressuscitar em formas peculiares na ficção de Lídia Jorge. 8 Na teia das sugestões criativas que se entrecruzam num mundo cada vez mais urgentemente comunicante, a literatura portuguesa não poderia manter-se imune a influências externas, como as literaturas de quaisquer outros países. Sem prejuízo dos seus peculiarismos, não se fechou aos ventos que correm no mundo. Mas a força da sua personalidade própria permitiu-lhe – talvez até mais acentuadamente na época contemporânea do que em séculos anteriores – absorver e assimilar o que recebeu de fora, imprimindo-lhe com maior ou menor intensidade, consoante os autores, uma originalidade patente. Assim se verificará com evidência que a caracterização nacional dos ficcionistas portugueses mais representativos sobreleva os apports exteriores, denunciando no conjunto uma vincada realidade vivencial de raízes bem mergulhadas na sua terra e no seu povo. E essa revela-se na constante propensão poética, em todos infiltrada e em muitos extravasada fortemente, sem exclusão dos escritores de mais voluntarizado realismo, como Ferreira de Castro, Redol, Manuel da Fonseca e tantos outros; na tendência para a evasão em espaços de irrealidade, tomando a forma do visionário em Raúl Brandão, do místico em José Régio, do onírico em David Mourão-Ferreira, do fantástico em vários, incluindo Aquilino Ribeiro, como se atesta na narrativa escolhida para este livro; na frequência com que o burlesco se conjuga com o trágico, como é muito típico na maneira de ser portuguesa; no predomínio das atmosferas rústicas, significativas de um país que se tem mantido retardado nas vias da moderna industrialização e testemunhadas mais ostensivamente em autores da linha camiliana, como Araújo Correia e Domingos Monteiro, tal como nos neo-realistas de intenção social interventora; no regionalismo provincial, rústico ou de pequenos burgos, a traduzir obsessões evocadoras de tempos perdidos (reais ou sonhados) e a exprimir-se no sentimento da saudade; na reiterada exploração lírico-sentimental, que se afirma particularmente em escritores como Augusto Abelaira e Urbano Tavares Rodrigues, no entanto de vinculação muito europeia e moderna; e até na referenciação a situações de resistência e de luta contra a ditadura que dominou o país desde 1926 a 1974, mais declarada nas narrativas de Fernando Namora e de Urbano, latente em várias outras. Em tudo isso se representam formas múltiplas mas convergentes da maneira de ser e da experiência portuguesa na sua transposição para a escrita literária. A escolha dos autores que preenchem esta antologia, deixando de fora muitíssimos cuja presença seria aqui justificada, obedeceu a uma conjugação de critérios – muitíssimo discutível, sem dúvida – em que se procurou fundir vários factores; a qualidade artística intrínseca, a projecção nacional e internacional mais evidenciada, a significância dos textos como expoentes de tendências e de diversificadas linguagens, a representatividade do seu portuguesismo. Não deverá 9 esquecer-se, no entanto, como é óbvio mas justificadamente se tem dito em outras oportunidades, que uma antologia é sempre uma proposta e que esta é uma entre várias propostas possíveis, igualmente legítimas e igualmente contestáveis. Como proposta multi-condicionada se apresenta a leitores portugueses e estrangeiros – e, quanto a estes últimos, das mais diversas latitudes – com a esperança maior de que possa servir de incentivo a mais largas e autónomas pesquisas no âmbito dilatado da literatura portuguesa de hoje e de outrora. ÁLVARO SALEMA 10 AUTORES E TEXTOS RAÚL BRANDÃO (1867-1930) Foi precisamente com um livro de contos, Impressões e Paisagens (1890), muito impregnado de intenções naturalistas prevalecentes na época, que Raúl Brandão iniciou a sua trajectória literária, depois dispersada por variados géneros: o teatro, os livros de viagens e paisagismo, os esboços de interpretação de certos períodos da história portuguesa, o memorialismo – mas sempre avultando entre esses géneros as narrativas mais ou menos definidamente novelísticas de intenso impressionismo trágico e burlesco. Destacam-se, nesta direcção criativa, Os Pobres (1906) Húmus (1917), A Morte do Palhaço e o Mistério da Árvore (1926) e o livro póstumo O Pobre de Pedir (1931). A exaltação sentimental, o espraiamento do sonho, por vezes o fantástico lembrando Edgar Poe, a visão dostoievskiana da dor e do absurdo como essências da vida, o panteísmo lírico perante a natureza, um sentido constante de piedade em modulação anarquista na observação da miséria e dos miseráveis, são timbres permanentes na obra de Raúl Brandão e marcam-lhe um cunho inconfundível. Com ela teve início de facto a modernidade na literatura portuguesa, quanto aos temas e quanto às formas textuais, justificando a sua profunda influência em sucessivas gerações de escritores até à actualidade. Por outro lado, a espontaneidade tumultuária da linguagem e a ausência de composição estruturada no processo narrativo têm justificado as restrições da crítica mais objectiva à qualidade literária essencial da obra de Raúl Brandão, muito marcada pelo imediatismo com que a emoção é transportada à escrita e pelo simplismo no delineamento das personagens. Mas, para além de tudo isso, como acentuou o ensaísta e crítico Jacinto do Prado Coelho, este escritor apresenta-se como «um surpreendente precursor do romance-monólogo que se comunica pelo simbolismo de personagens-fantoches, atmosferas e farrapos de acção». O conto, como condensação narrativa e descritiva, é o género em que mais vivamente se configura, com todas as suas imperfeições e grandezas, o génio literário inovador de Raúl Brandão. 12 A CASA DE HÓSPEDES Singular ligação a destes tipos que o acaso reunira naquela casa de hóspedes da D. Felicidade: um doido, um anarquista, o Pita, a patroa, o Gregório, antigo chefe de repartição, que havia anos estava encarangado num quarto, uma velha que só saía de noite e essa figura amarga, o Palhaço, que passava horas e horas, como se só a si próprio se escutasse. Todos tinham chegado ao fim da vida, de unhas arrepeladas para o gozo, com o aspecto das coisas servidas que se deitam fora. Usados pela existência, pela ambição e pela febre, arregalavam os olhos para a vida. Neles havia o quer que era que inquietava e fazia pensar. Em vez de ficarem duma secura atroz, tendo analisado de perto todos os sentimentos, o amor e a amizade, a experiência dera-lhes tintas de sonho ao desespero: e era como se um bicho de esgoto criasse asas e se pusesse a voar. O Doido sonhava – e todas as suas visões vagas caminhavam, numa atmosfera de beleza, para de súbito, num pormenor, ficarem grotescas, aos pulos como um sapo. O Anarquista tinha gestos de profeta, e na sua eloquência havia rasgos de visionário: como um vendaval que arromba portas, assim ela entrava pelo sonho dentro, engrandecida. Evocava as multidões, a miséria humana, a dor humana. O Pita era um mixto de filósofo e de ladrão. Sabia tudo, vendia tudo. Amara princesas e trazia um velho chale-manta, que de tanto ter visto a miséria parecia arrepiado. A Velha passava o dia a contar as rugas diante do espelho, na raiva de se sentir escarnecida. Meditava quanto tempo podia amar ainda, enganava-se e convencia-se de que não estava velha nem feia. Punha flores no seio estancado e raso como uma tábua e arrepiava os cabelos. À noite saía, rodava nos sítios escusos à espera duma aventura de amor, ou, desvairada, ia pelas ruas da cidade, a arrastar um chale púrpura. 13 O Pita às vezes seguia-a e espiava-a, com o olho cheio de curiosidade, ruminando lá por dentro: – Encontro-as às vezes nas ruas, caiadas aos sessenta anos e sonhando ainda com a juventude. E são as que se atrevem, as que se expõem aos riscos, porque muitas como esta arrastam pelas casas de hóspedes o seu sonho inapaziguado de amor... Fá-la tímida e má o ter de viver duas vidas, uma de imaginação, outra de realidade. Por isso tem o olhar desvairado para dentro, de quem segue um sonho e anda neste mundo por acaso. Esta cidade trágica fez-lhe um cenário perfeito, com a noite em que a escumalha vem à tona, as ruas esganadas e o vício... Atrever-se-á ela?... Duvido... Viver é tudo!... viver!... Se todos estes seres se juntavam e conversavam, as suas palavras ardiam ou gelavam; causavam arrepios, como lâminas que de repente se desembainham e ficam no ar suspensas: eram feitas de cadáveres ou de claridades... Umas vezes pendiam para o sonho; outras para a terra. Vocês todos têm pensado na vida destas criaturas?... Desde a mocidade que não tiveram risos. Depois o pequeno emprego, nunca o gozo satisfeito, a imaginação e o apetite sempre alerta. As mulheres! ainda um dia hei-de ter aquela mulher, quando tiver dinheiro!... Nunca satisfizeram o seu amor e o seu desejo. Aturaram as insolências dos patrões e o desprezo do Metal. Nunca tiveram na vida ocasião para praticar um crime que lhes desse o oiro ou o poder. Correram casas de hóspedes, a ruminar idéias de ambição ou de ódio, e essas mesmas diluídas e derrancadas... São sórdidos, têm pequenas manias e inéditos recantos de alma, e nunca, como os pobres cavadores, viveram ao contacto da natureza, das grandes árvores, da água e da luz. Acontecia que à mesa, depois do jantar, na obscuridade que o Pita amava, ficavam de conversa. A princípio o Palhaço não falava... Quase sempre fugia para o quarto. Mas de uma vez, que se falara de amor, escutara e discutira: – daí ficaram no hábito de se exasperarem com conversas, que o Pita tingia de sonho. O Pita era um homem de barba hirsuta e olhar vivo nas órbitas fundas e sem pálpebras. Unhas, roera-as todas. Tinha a ciência da vida, visto que andara sempre aos pontapés de toda a gente e se dava com a ralé. Vivia à custa de mulheres, e como duma vez lhe perguntassem como arranjava ele, dono de semelhante caveira, que as mulheres o amassem, disse com desprezo: – A mulher é uma esfinge. Nessa noite o Anarquista lia uma proclamação para abrir o seu jornal A Miséria. Com o manuscrito na mão, o olhar incendiado, perguntou: – Pita, que lhe parece?... E ele, seco, respondeu: – Muita filosofia... 14 – Mas que diabo, Pita! Você sabe que estimo a sua sabedoria... Diga a sua opinião sincera... Todos se absorveram no Pita, que passou a mão pela bola de bilhar que usava em vez de cabeça e a seguir falou: – Não está mau de todo... Muito palavriado... Fale na terra e fale na miséria... Sabe que em Setúbal, nos arrozais, para ganhar apenas o pão negro, mulheres trabalham na água como bestas, até se cortarem pelas virilhas? Sabe que há pequenas de oito anos, que se chegam à sua beira com um ar de vício e têm esta frase trágica: – Eu faço tudo!... – ? Muito decorativo, citou o vício, que apenas noite corre como um esguicho de lama pelos recantos negros da cidade. É a fome?… É, disse ele. E além disso os burgueses estão dando à ralé, cheia de apetites e quimeras, um espectáculo desaforado... – Ó Pita!... – Desaforado... Cite factos, encha-me esse papel de factos e bote então se quiser a filosofia de fora. O palavriado não é mau, mas é porque os pobres conhecem melhor a miséria e o crime, que um desgraçado me falava uma noite em fazer saltar tudo... – A miséria e o crime – disse o Doido – são velhos como a terra... Você tem visto tudo e tem sido tudo: já foi rico e já viveu de arranjar mulheres para os outros... Mas escute: a questão é mais funda... Suponha que sobre esta mesa está a palpitar o Coração Humano... Há coisas eternas. O que fez crescer o anarquismo, como uma raivosa maré de lama – é esta coisa simples: o ódio aos ricos e a inveja... Você, eu, todos os que aqui estamos juntos, o que daríamos para ter o Oiro, o Oiro com que se pagam as mulheres mais lindas, as quiméricas mulheres todas feitas para o gozo, e sobre cujo olhar negro a gente se debruça como sobre um pássaro lendário; o Oiro com que se tem o amor e se deitam a perder os nossos inimigos?... Eu, vocês todos, temos feito de há muito este raciocínio: a vida dura dez, vinte anos, depois segue-se... – A cova... – O nada. Portanto vale a pena gozar de todo o nosso cérebro e de todos os nossos nervos. Deixar o coração bater o mais que puder, satisfazer a valer todas as paixões... Só o Oiro é que dá isso e ninguém recuará diante dum crime, certo da impunidade, para o obter. – Às vezes corre-se-lhe o risco... – Outrora esta vida era transitória... Quanto mais se sofria, mais duro era o pão e a dor mais negra, maior também na vida eterna era a felicidade. O ódio contra os ricos, os que gozam enquanto as mais criaturas sofrem, existia, mas havia a certeza que iam para o inferno. Pagavam caro os beijos, a felicidade, o sonho... 15 Agora a ilusão caíu por terra, a vida é sôfrega e a maré dos que estão ávidos de gozo sobe... E o Pita resmungou, com o olho a luzir: – Vai ser um rico saquesinho... – Com mulheres violadas, sangue, apetites desenfreados, vaias contra a arte e o belo... É o Oiro, é o Oiro que tudo pode e tudo faz!... O Oiro que era ainda capaz de fazer levantar da cama o próprio Gregório! E a dona Felicidade, que levantava os pratos, deu um suspiro tão fundo como se nela suspirassem todas as Donas Felicidades, desde a Dona Felicidade das cavernas até à Dona Felicidade contemporânea. Pita, a essa hora da noite, tinha espirros de génio pela caveira, numa excitação contra a vida e contra a dor. Pelo começo da noite é que Pita principiava a ser amargo, com um grande desprezo pela sociedade. Pita também a essa hora estava algo na mentira: embebedava-se com as decorações sobre a miséria e sobre o coração humano, e a fantasia fazia-o perder-se, fazer grande, como um pintor que na febre atirasse broxadas de génio para a tela. Pita parecia uma evocação de Poë. Pita sentia, depois da bebida, o frio dos desgraçados, a febre dos noctâmbulos: sabia a enxurro: e tinha na fantasia toda a púrpura e toda a lama que as borboletas têm nas asas, e que ele apanhara ao roçar-se pelos boeiros imundos da cidade: – Eis aqui tem o amigo... O raciocínio é um vício com o qual se chega a tudo – até a ministro... Teoria vai, teoria vem – palavras leva-as o vento... A verdade amarga e única é esta: é que na vida é preciso sonhar, para não se morrer transido, tantos são os pontapés que a gente leva na alma e noutra parte. Ou então tem a gente a necessidade de se endurecer e de pôr o coração como uma pedra. – Pita!... – Como um calhau... Vá a um sítio aonde se sofra – ao hospital. Tenho-o defronte da minha mansarda, o luzeiro sempre a arder nas janelas. O que está aquela pobre gente toda a noite a tecer?... Aquele estupor de alambique de sofrimento toda a noite resfolga... – De quê!... – De alambique – disse, seco. – É uma imagem... E há coisas que se não curam, que é o que me revolta... Deixo-os sonhar... O sonho é tão necessário p’ra a vida como o pão. – Eu, para meu uso, até os tenho inventado para certas horas de sofrimento – e quantas noites passo a imaginar ser rei ou ser carrasco!... – Atire-se-lhes com um pedaço de sonho, como se fosse um pedaço de pão!... – O pior, Pita amigo, é que o sonho desvaira-os... – Pois a questão essencialmente se reduz a isto: pertence aos homens de estado 16 saber canalizar o sonho da ralé, e desde que hoje ele se não pode aproveitar nem para fazer conquistas, nem para fazer heróis – todo o esforço deve tender a conservá-lo como lume sob cinzas inofensivo e latente. Destruí-lo, arrancá-lo, é uma tolice, pois que outro virá – creia na minha experiência da vida – substituí-lo, e quem sabe se mais perigoso!... Caíu em meditação o Pita. Oito horas da noite e a calva incendiada por entre o pelo sem cor. Nunca mais o puderam levar a falar sobre o mesmo assunto. Tinha um grande desprezo por esta porcaria da vida e fugia agora para o pequename, a tromba a bamboar-se-lhe sobre a boca, numa festa. Tirou da algibeira uma boquilha de âmbar com uma mulher em pelota e um prospecto da casa John & Fixley, London – Segurança e Método, preços módicos. Assassínio de todas as sogras com o maior respeito e sem intervenção da polícia. – Pita, estás aqui, estás na Penitenciária. Vê no que te metes, Pita!... E ele, descendo as escadas, com júbilos na voz rouca: – Vou-me até ao pequename. A vida é uma quimera!... O Pita sabia tudo: conhecia os segredos de todas as famílias e os vícios de todas as mulheres: em cada noite seria capaz de dizer quem estava para meter uma bala nos miolos, falido e desonrado, e quem adormecia no colo de nuvem da mais linda mulher da cidade. As suas conversas faziam frio: tinham dentro pesadelos e lama. Fora amigo íntimo dum banqueiro, jornalista assalariado para cobrir de infâmias os inimigos do outro. Tinha tido dias em que fora rico e pagara todas as suas fantasias – e noites em que tremera de frio à porta dos cafés, com a lista e preços das criaturas que se vendem. Das suas conversas com ele, o Palhaço saía sempre com a cabeça cheia de fantasia e com um sabor amargo à vida – lama negra, onde vestígios, espirros de oiro, tivessem sido esquecidos. A sua experiência do mal de viver dava-lhe, à fantasia rútila, recantos cheios de inédito e de amargura, e era como se a sua alma fosse sacudida diante dele de toda a poalha negra ou escarlate, que a existência lhe deixara... Depois do circo passeavam juntos até às primeiras tintas de alvorada. Àquela hora só noctâmbulos esguios quedavam pelas esquinas, figuras que, ao pé dos restos de cartazes púrpura, de grandes letras, faziam destaque e evocavam, perto da pompa e da grandeza, a miséria da cidade... Depois da conversa com o Pita, o cérebro em lume, ia pelo bairro pobre e desdentado, procurando ver materializado o rasto de que ele lhe falara, como um manto que cada um arrastasse, invisível e tecido a ideias e a sofrimentos... – Pois quê!... – lhe dissera o Pita – donde provém que as feiticeiras leiam no passado do homem?... Nada se perde, cada um traz consigo, cometa que arrasta a cauda de lama ou de oiro, todo o seu passado, vestígios de ideias, crimes, horas de amargura e horas em que se beijaram lábios de mulher, por quem a gente se perde... Creia na minha experiência da vida!... – E para ver?... para ver esse rasto, que cada um traz consigo a nimba-lo, 17 luaroso e ferido de lágrimas?... Serás tu, Pita amigo, o Diabo, e queres em troca a minha alma?... – Não, não sou, com pena o digo, o Diabo... Quem me dera ser o Diabo, para ser moço, ter todo o oiro e todas as lindas mulheres da terra! Ai o pequename de seios duros e lácteos de estátua! o oiro que dá o poder, a consideração pública, os sorrisos de lábios de papoula das moças e a riqueza dos bancos!... Não sou o Diabo! E, apontando com o seu dedo nodoso e descarnado para a cidade, disse: – Vai sofrer, espremer da Vida a experiência. Deixa que te calquem o coração, assiste ao despedaçar do teu sonho, à tua humilhação, e depois saberás... Tomando de respeito por tanto saber, com humildade se despediu: – Muito boas noites, senhor Pita!... Então não toma mais nada?... – Não tomo. Podes-te ir embora. Boa noite... Com a cabeça a escaldar, parecia-lhe agora ver realmente o que Pita lhe afiançara existir... Cada criatura que passava arrastava consigo uma cauda – poalha luminosa, d’oiro ou cinza, feita de luar ou de escarlate. Lentamente pôde distingui-los, classificá-los, conforme o manto régio ou pobre que traziam. E na noite havia-os que deixavam um grande rasto rútilo, como estrêlas cadentes, onde gemiam ais de mágoa, prolongados com um som de viola que se parte. Míseros, ressequidos e sacudidos pela dôr, traziam uma cauda côr de cinza, com chuveiros de miríades de centelhas de lágrimas, e a poetas nimbava-os uma pualha de luar e de oiro. Velhas ardidas eram – envolvidas por uma atmosfera baça, onde o imortal amor inda luzia. E alguns deixavam atrás de si restos de mantos todos púrpuras, que se iam perder na lama e no esquecimento; outros, criminosos decerto, caminhavam numa nuvem negra, onde pedaços sangrentos escorriam como punhaladas, e havia-os todos verdes, de cambiantes infinitas. Muitos arrastavam caudas enormes pela lama, despedaçavam-nas de encontro às esquinas, e alguns procuravam deitá-las fora para não mais pensarem num passado tenebroso. – O homem material – pensava o Palhaço – não existe. A vida é uma convenção. O que existe é sonho, o sonho é a única realidade. Sonhar! sonhar!... (De A morte do palhaço, 1926) 18 AQUILINO RIBEIRO (1885-1963) Com obra muito vasta, abrangendo cerca de sessenta títulos em que alternam o romance, o conto, a biografia, a crónica, o ensaio histórico e literário e, ainda, um volume de teatro, Aqulino Ribeiro é unanimemente reconhecido como o mais vigoroso e pujante prosador português neste século. Quer dizer: como criador de linguagem sobre um fundo vernáculo tradicional ou regional, dandolhe corpo numa escrita literária. De raíz rústica (da Beira interior e serrana) fortemente reflectida em grande parte da obra, o seu naturalismo visceral não exclui o humor, em que se tem apontado a inspiração de Anatole France, e a invenção novelística exuberante a ultrapassar com largueza o real observado ou experimentado e a aflorar por vezes o fantástico e o mítico. Foi com o livro de contos e novelas Jardim das Tormentas (1913), acolhido com notável êxito, que abriu caminho à publicação de sucessivas criações ficcionistas de ambientação rural ou citadina, entre as quais será justificado destacar pelo poder transfigurador da linguagem o romance A Vida Sinuosa (1918), a recolha de contos Estrada de Santiago (1922), a crónica romanceada A Casa Grande de Romarigães (1957), o romance Quando os Lobos Uivam (1958), etc. As biografias de Cervantes, de Camilo Castelo Branco e outras grandes figuras da literatura ou da história, além de poderosas criações de estilo – e para além do evidenciado pessimismo do Autor perante a natureza humana – representam amplos painéis evocadores que as situam ao nível dos bons romances. A evolução das correntes literárias, com a sucessão dos vários «modernismos» em Portugal desde 1915 e as alternâncias de subjectivismo individualista e realismo social que a foram demarcando, não tocaram de modo perceptível a personalidade literária profundamente original de Aquilino Ribeiro. O escritor prosseguiu o seu rumo até ao final da vida com inalterável identidade no processo novelístico e no casticismo da linguagem. A facúndia verbal do prosador pode ter motivado 19 um certo barroquismo no seu estilo mas teve a compensá-lo uma intensidade de expressão semântica com raros similares nas literaturas modernas. Foi o primeiro escritor português proposto à candidatura do Prémio Nobel, em 1960. 20 A REENCARNAÇÃO DELICIOSA Era uma velha, tão velha que ninguém diria quantos anos tinha. Dobrada sobre o bordão, já a cabeça lhe pendia para terra como abóbora carneira do galho duma árvore. E a corcunda tolhia-a de ver o céu. Vivia numa cabana, abandonada por leproso ou profeta, na altura da escarpa, antes de chegar ao lago, em que começava a aparecer no côncavo a aldeia de Tiberíade e os colmos negros das casas pareciam sargaços ao lume de água. Aérea, só pele e osso, não reparavam nela os ladrões da Samaria e é possível que a própria morte passasse sem a ver. Além disso, como era pobre, nunca à sua porta descia canastra de peixe, nem vinham bater, parada a cáfila no caminho, destas mulheres nómadas, negras e secas, a pedir por amor de Deus uma sede de água para o filho, cozido em febre nos seus braços. Necessitados que por ali transitassem deitavam adiante, uns porque sabiam quanto a velha estava impossibilitada de obséquio, outros a quem a choupana de adobes, coberta de musgos e com sardões em cada fenda, tresandava a bruxaria. Nuns tristes quintalinhos, com a sua figueirinha melancólica e duas cepas cansadas, deserto e silêncio à volta, se resumia o seu mundo todo. O maior sinal de vida davam-no em baixo as velas dos barcos quando saíam à pesca; e, ainda nessas horas, garças adormecidas não pairavam mais de manso. Eram os gritos dos pescadores: ala! arrasta! na faina de tirar as redes, quem quebrava o mudo espanto da terra em redondo. Mas a velha tinha rija perna. Apenas o sol nado, corria as ruas de Tiberíade; uns besugos, aqui, ao fazer a lota, a troco de qualquer demão; duas bocadas, ali, de almocreve mais liberal em maré de farto; um migalho de pão, acolá, «pelas obrigaçõezinhas» e assim acalentava os dias. 21 Nas vizinhanças da Páscoa ia para as dunas espreitar o horizonte. Costumavam atravessar por ali as caravanas que do Alto Jordão se dirigiam a Jerusalém, ora imponentes e rápidas, de dromedários, ora passeiras, com gente de pé e de cavalo, camelos de recova e burrinhos patriarcais, carregando levita ou beata sequiosa de purificação. Os pobres das aldeias esperavam-nas à borda dos caminhos e junto dos poços em que era costume acamparem e puxarem da merenda. Muitos ao faro da esmola que os ricos iam largar à Cidade Santa metiam de rusga com os arrieiros, resignados às suas chufas e picardias. E à porta do Templo, enquanto nos altares grelhava o anho pascal, punham ao léu, clamando e gemendo, as pústulas que o Senhor lhes dera e outras que faziam e agravavam por suas mãos. Cheios da beatitude do santo dos santos, os patrícios de barba em leque com nojo cuspiam o óbulo à chusma sórdida. Homens e mulheres engalfinhavam-se a apanharem a reles moeda de cobre, com grande risota dos mirones e legionários e ira dos vendilhões que expunham em tabuleirinhos de cedro que a branda aragem virava caramelos e bugigangas de barro. Páscoa fora, quando os estalajadeiros da Cidade Santa deitavam contas à ganhuça, punha-se o rebotalho das doze tribos a caminho dos seus lugares. Taleiga às costas, tanto mais taluda quanta a esmola era fraca, como sucede de ordinário na vida mendicante, lá iam de seu mole pelas intermináveis estradas romanas. E rezando à porta dos rabinos de teres, continuavam a amealhar o seu ceitil. Anos a fio fizera a velha de Tiberíade esta romaria; desde que se achou escassa de forças para tão grande jornada, ia postar-se debaixo das palmeiras à espera que passassem as caravanas. E a mão incansável, à falta do siclo de bronze, sempre colhia a sua côdea dura ou talhadinha de melancia deste ou daquele, a poder de responsá-los ao santo padre Abrãao. No peditório, matraqueando às portas com o seu pauzinho, ou recolhida na choupana, a velha falava alto consigo e com Deus. Com Deus, sobretudo, a quem as vezes que orava, acabava sempre por pedir que a levasse. Que andava ela a fazer no mundo? Porque não vinha a boa e caridosa morte buscá-la?... Falecia o pescador, pai de filhos; falecia o lavradorzinho deixando a mulher ao desamparo e o campo a monte; dela, que tinha os dias cheios, o Senhor Deus misericordioso não se lembrava! E por que razão? Não era útil a ninguém; não dava sombra a ser vivo; não fazia sentido algum na Terra! Deus tivesse piedade e a chamasse, e seria como raio de luz, o mais fraquinho raio de luz que se extinguisse em dia hibernal. 22 Uma tarde, ao entrar na choupana, sentiu grande angústia e apressou-se a dar graças, supondo que era chegado o seu fim. O Deus Senhor havia-a guardado uma longa vida, não lhe deixando sofrer enxovalho nem doença. Uma longa vida andara ela com o Deus Senhor tão perfeitamente o sentindo a seu lado, que o mesmo era vê-lo. Via-o em pleno ermo, na sombra dos sicómoros e na deliciosa consolação das cisternas à beira do deserto; via-o nas belas coisas e belas criaturas que se ofereciam à vista, torres e palácios, tendas de mercadores e alcaçarias do país filisteu, formosas nazarenas e príncipes de Israel esbeltos como ciprestes; nunca deixava de vê-lo na sua choça de paredes tão estreladas que a noite rompia por ela dentro como fera pelo covil; aquela mesma hora estava a vê-lo ali, aldeia de pescadores, no lago, azul líquido de dia, veludo negro recamado de oiro à noite, e até no próprio deserto, a tristeza do qual em tão invariável desdobre era flor ainda da sua bizarria. Um anjo podia vir buscá-la para a conduzir ao seio de Abraão, que não se achava em falta; podia vir que se não deixava saudades tãopouco as levava. Nunca amara, nunca fizera sofrer. E se era certo as cortesãs e os publicanos encontrarem por vezes abertas as portas do Céu, ela tão mofina da vida, tão desprezível do mundo, tinha assento marcado à direita do Eterno. Podia morrer em sossego. E confortada com semelhantes pensamentos se deitou e, dormindo, teve um sonho, sonho de fumo mais capitoso que a mirra pura. Voz azeda de profeta falavalhe e o seio dela pouco a pouco ia-se enchendo de confusão: – Velha, julgas que vais morrer e enganas-te. Tens ainda que durar, viver a tua vida. Como foi coisa que não fizeste, o Senhor não perdoou. Tens que recomeçar. Pobre de ti...!? Pobre de ti, se o Senhor te chamasse assim inútil e vã ao seu divino pretório! Porque a tua vida, velha, é como o rolo do papiro dado ao escriba para registar a lei e que o escriba deixou em branco; e, esquecido, saltando em claro, entrou com ele a traça e a ruína do templo. Que conceito pode merecer aos olhos do Senhor o escriba desmazelado? Pois tu pecaste como ele. Quando as tuas faces eram morenas e apetitosas como o pão à boca do forno e na tua garganta gorjeavam rouxinóis, não foste moça. Quando os seios te entumesceram e as ancas te arredondaram de modo a poderes trazer um Sansão ou um Messias, não foste mulher. Fizeste da falsa virtude barreira contra a verdade e murcharam entretanto as rosas do teu rosto e sorveu-se-te o peito como fruto desprezado na árvore. Pior que a figueira brava de que reza a escritura, que sempre dá sombra aos pássaros e lenha ao fogo, ficaste rebelde à ordem da natureza. Infeliz, olha em roda de ti para o mistério da criação; os seres todos lá vão exactos em cumprir os passos do trânsito incompreensível que é a vida, abrasando-se nas núpcias, tantas vezes o leito de amor derivando em leito de morte. Agora repara: dentro do conjunto de fatalidades que algemam a criatura ao mundo, a ela pertence a faculdade 23 de escolher caminho, tomar à direita ou tomar à esquerda, modelar em suma a vontade na vida corrente como o escriba afeiçoa as letras que hão-de traduzir os mandamentos da lei. Que uso fizeste do rolo que te deram a encher? Às cortesãs deparar-se-á misericórdia no seio de Deus porque sofreram; aos salteadores da Samaria perdão na sua magnanimidade porque penaram; aos publicanos graças em sua clemência porque terão amado e por seus joelhos engatinhado filhos. Não amaste, não geraste, não sofreste na carne, a tua vida não é mais que blasfémia. Mas Deus, em sua compaixão, amerceou-se de ti e quer que vivas. Sim, viverás até que ele debaixo de mil formas habite em teu corpo e alma. Acordou a pobre mulher e rompeu em choro desfeito. Era a vida que a chamava em vez da morte a levar. E chorando, repesa duma existência safra como pedra no meio de trigal, suspirou: – Meus verdes anos, meus verdes anos, quem mos dera! Um dia, à boca da noite, caía o Sol detrás dos montes, a velha cabeceava acocorada na soleira da porta. Os pescadores do lago tinham festejado o seu santo padroeiro e com os créscimos das bodeganas não houve pobre que não tirasse o ventre de misérias. Ela voltava cheia como uma urca. Arrastando o quadril, deixara-se cair para ali, com um olho irreal contemplando Deus e o mundo, com o outro, semimorto, dormitando. A certa altura apareceu Matatias o zorato, a pedir dois golinhos de água por alma de seu pai. Também estava com sede, e fez-lhe sinal para entrar dentro e buscar a infusa que ainda de manhã lhe enchera Ibraim. No céu nuvens pardas, com debrum de púrpura, pareciam um acampamento de tendas reais. Tocado pela aragem, o fumo das cozinhas de Tiberíade varria pelos campos, rescendente de cedro e tamarindo. Cheirava a peixe frito, o peixe frito do fim de função, e desta feita não lhe cresceu água na boca à ideia das mesas fartas com o bom azeite de Gaza alumiando nos pratos como sol. E estava nisto, chegou-se um mendigo a ela e pediu dormida. Vinha arrimado ao bordão e que era de Nazaré ou seu termo inculcavam-no os cabelos que lhe desciam para as costas em branca juba. Repetiu o pobre de Deus a cantilena e ela estava em mandá-lo para a aldeia onde as varreduras seriam de sobra para lhe matar a fome, mas ao vê-lo tão humilde, tão mortinho de fadiga, com cabeçorra de jumento, achou melhor dar-lhe pousada, embora não tivesse mais que meia tigela de farinha na arca e duas lágrimas de azeite na almotolia. Depois de cearem e renderem graças, alapardou-se o pedinte ao borralho e adormeceu. Manhã cedo, ainda o primeiro maçarico não andaria a bicar na greda do lago, a velha que tinha o sono leve ouviu dizer: – Santinha, santinha! Está a nascer o Sol, são horas de me pôr a caminho. Agora ouve: já que de tão boa mente recebeste o pobre de Deus, o pobre quer deixar-te uma lembrança. Pede por boca... 24 – Pede por boca – repetiu ela assombrada com o que via, pois o velho irradiava como a sar a de reb. Pede – tornou ele – que não pedirás em vão. Ela sorriu um sorriso que levou tempo a espairecer, visto em seu rosto há muito tempo nem alegria ou gra a desfranzir as rugas, mas ao clarão que derramava a fronte do homem e ainda por ser aquela terra de milagres acreditou de boa-fé e respondeu: – Quero ser rapariga! Ficou o pobre muito despeitado por ela não ter pedido a salva ão ou um pêlo da barba de Daniel, mas palavra dada não volta atrás. ardil, porém, é virtude contra o louco e o borracho e objectou: – em, mas para isso é necessário meter-te forma... – forma... ? Que é isso? – Antes de mais nada tenho de cortar-te em postas... meter tudo numa panela, e depois p r ao lume a cozer. uvindo enunciar a tremenda receita quedou a velha perplexa e confrangida de medo. Deveras não lhe causava pavor aquela morte que chega de improviso e zás! arranca com a pessoa como lobo com a cordeira: as lá a morte que dá senha porta, bate e torna a bater, agarra, e farta-se de puxar, irra! Por outra, tornar a orir mo a e bonita, reatar o fio da vida atrás, lá bem longe, quando certas bocas morriam pela sua boca tinha sal e inédito sabor. Era de resto o seu sonho, o sonho que a cometia tantas vezes quando julgava com ansiedade sempre viva que coros de anjos voadores vinham com tiorbas e pandeiros buscá-la para o reino da gl ria. Não valia, pois, a pena aceitar aquela espécie de morte, uma vez que não era o abismo negro, sem ar, sem luz e sem fundo, em que se cai para todo o sempre, mas um vau a passar, sem se dar conta, duma margem para outra, e ainda mais ela que se fartava de suspirar pelo ltimo dia! – ulher, faz-me d ver-te assim joguete do pr prio pensamento – proferiu em voz paternal o velho que parecia ler a descoberto nos cora es. – pensamento inventa, compara, distingue, mas a realidade terrestre é sempre a mesma inalterável realidade. Por onde quer que a tomes é sofrimento; como quer que a vivas é desilusão; por muito que tentes sofismá-la é a mesma igual, molesta realidade. A mulher, felizmente para ela, não compreendia a filosofia do bruxo e uma curiosidade nova, que imprevistamente se acendera em seu peito e que consistia em renovar em si o destino, decidiu-a a aceitar o lance. Pesava-lhe já o estéril passado; pesava-lhe ter deixado a vida em branco como o escriba desmazelado da parábola. Depois, como ouvira certo dia a um levita que apenas se não realizavam os sonhos que não têm formosura, afoitou-se. Ah, mas estaria muito tempo a cozer...?! 25 O homem abriu os braços em sinal de que a cozedura era condição de muitas coisas que não estavam bem nas suas mãos, e que mais valia ter um desejo menos metafísico... – Ora essa! mandaste-me pedir por boca, pedi. É pecado querer ser nova? – É loucura. Considera e torna a pedir. – Nada, nada! – interpôs ela, atravessando-se a qualquer endrómina do bruxo. – Quero ser rapariga e acabou-se. – Meu Deus, que vontade tão delirante para corpo tão desgraçado! – gemeu ele, torcendo-se todo num patético de mau gosto. – O meu santo prometeu, prometeu. Nesta altura da vida outra coisa não me tenta – tornou ela aferrada à sua entrevista miragem. Pediu ele uma vasilha em que havia de operar a sublime metamorfose. Ela que era avisada apresentou-lhe um pote grande, pançudo e bem assente nas três pernas, em que caberia o sarrabulho dum Golias e não se perderia osso com a fervura, por mais pequenino que fosse. Mas ele desejou coisa mais jeitosa e manejável. Trouxe então a mulher a infusa da água, a única vasilha mais que havia em casa, mas em que de sorte ela caberia, embora se tratasse dum recipiente de capacidade mais que mediana. O homem contemplou-a: era esbelta como a torre de David e delicada como palmeira nova. No bojo tinha mais harmonia que onda de água a subir em cisterna de alabastro; as asas que suspendiam o bocal ao alto, lembravam mãos a toucar uma fronte com diadema; a curva era lenta, ampla, melancólica e sumida como a linha surpreendida à mais requintada voluptuosidade. Toda ela de talhe tão excelso, gargalo alto, fundo estreito, asas tão altivas que a velha, reparando bem, mais assustada ficou. Era milagre se a infusa não tombasse e não se perdesse por lá bocadinho que fizesse falta, depois, à perfeição de rapariga. Mas o homem despótico proferiu: – Em que ficamos? E a velha entregou-se, cobiçosa de percorrer de novo a estrada em que, olhando do alto do seu desejo como de montanha pelo vale coberto de névoa, não destrinçava alegrias de tristezas, a Primavera do luto das almas, e todo o temível tropel de tormentas emboscadas no ténue gozo. Mal viu o facalhão que o feiticeiro sacou da túnica, a velha desmaiou. Quando volveu a si, ao romper o Sol dentre os cedros, dizia uma voz por cima dela: – Salta cá para fora... Estava dentro da infusa, muito moldada com o barro, mas encolheu-se, torceu-se com imprevista maleabilidade, e pulou fora. Soltando uns ah! uns ih! gritinhos agudos como de cotovia que escapa à gaiola, descobriu-se bonita de 26 corpo e um sorriso de blandícia iluminou-lhe o rosto especioso. Especioso sabia que era e, todavia, ainda se não vira ao espelho, traste diabólico-divino que nunca entrara naquela casa, pelo qual ela agora daria meio mundo. mas ao que abrangia com os olhos tinha a sensação física do que era o resto. E só então lhe acudiu que fora uma triste velha, muito velha, que andava a dormir de pé pelos caminhos – onde se assentava tomava-a o sono, irmão da morte, mais desalmado que um ladrão; riam dela por pancrácia; temiam-na por bruxa – e que um dos belos milagres da Galileia se havia representado em sua pessoa. E como houvesse guardado o sagaz instinto de mulher, bamboleando-se e admirando-se, disse para o velho, em frente dela baboso decerto com a obra e com mais nada: – Bem desfigurada me vejo, não há dúvida. Se não soubesse, não me reconhecia. Nenhum deita-gatos era capaz de consertar melhor uma tigela quebrada! Muito rico da graça de Deus és tu para assim obrares prodígios a troco dumas colheres de papas! – Tive pena de ti porque notei que o teu coração andava triste. – Consolaste-me. Que paga queres? – Nada em ti me seduz. Dá graças ao Inefável. – Manda, sou a tua escrava. – Essas palavras não me iludem. Tu o que adoras em mim é o poder e não o homem. Se te tomasse comigo, breve te arrependerias também. O homem, repara, morreu em mim quando reconheci que a felicidade não está nos bens do deleite. – Onde está então? – Onde menos se busca. – E onde é que menos se busca? Parece uma adivinha... – Na arte de se conformar a gente. Calou-se a deliciosa compreendendo que na palavra do velho todos os destinos se equivaliam, as galas da formosura não lhe acarretando mais venturas que a sua desamparada velhice. Mas tudo isso era retórica de jarretas, certa, já se deixa ver, e ela cria-o piamente, mas nada mais temerário em jovens. A questão toda era enterrar os dentes no fruto sem morder o caroço, que é amargo. E como o seu entendimento era advertido tornou: – Com que hei-de retribuir tão grande fineza? – Não tens nada que retribuir. As minhas mãos são rotas a dar e fechadas a receber. – Mas, por quem és, não me vais deixar aqui ao deus-dará...?! No rosto do velho perpassou um sorriso mau, reflexo talvez do seu desprezo pelas ilusões das criaturas. E disse: – Para mim não tens préstimo nenhum. – Com que cara o dizes! Ah, vocês os velhos a mim não me enganam. Por fora 27 parecem uns santos, por dentro são sacos de lacraus. Para que me vieste tirar ao meu sossego? – O destino esteve nas tuas mãos. – Querias que pedisse a salvação? Pois não pedia! Quis ser rapariga, acabou-se. Agora o que te pergunto é isto: que queres tu que eu faça de mim? – Conforma-te. – Conformam-se os defuntos com o caixão. Os vivos não. Põe lá na tua que o meu coração desejava mas não sabia mais que desejar. Calou-se o velho num instante e disse maneando a cabeça: – Minha rica, puseste-te fora da vida por teu belo gosto. Querias amar, sofrer, sentir o turbilhão da existência, julgando que não tinhas amado nem sofrido, e a tua alma desentranhava-se a amar e a sofrer. Acabavas de cumprir fadário igual ao dos outros mortais e não estavas satisfeita. Coitada! Uma noite que o Diabo soprou em teu peito bastou para te perder. A voz que ouvias era dele e de mais ninguém. E como lhe lançasse um olhar inconfundivelmente zombador, ela que se supunha forte e dominosa mirou-se e remirou-se com minúcia e desconfiança dos pés à cabeça, desde as linhas implexas às veladas, desde os membros livres às cabeças de pombo dos seios de neve. E ao cabo do exame, embora os desígnios transmitidos ao seu coração pelo canal do Demónio lhe parecessem os melhores, desatou a chorar em fonte com mais sinceridade do que malícia. Ai! a cintura dela, ao manear-se, parecia um anel suspenso; o pescoço, em vez de prender a cabeça, levantava-se para o céu, como se quisesse separá-la do tronco e oferecê-la de pasto às aves. As pernas, ah, as pernas que deviam ser feitas para subir aos montes e às árvores, eram de tal pulcritude e matéria que davam ideia do pórfiro quebradiço. – Para que me serve este corpo inútil? Dize lá, mandigueiro, homem maligno, para que me serve...? Chorava e tornava a chorar lágrimas que lhe banhavam o rosto, ela própria via correr um fio, sentia rolar em bagadas pelo seio como um rocio ao mesmo tempo pungente e agradável. Mas em vez da boa cabeça de jumento intonsa e taciturna, o homem que se debruçava para ela tinha a face esquálida, dois pêlos espetados à sovela no lábio superior e outros dois no queixo, e olhos pequeninos de azeviche. Por debaixo do fez saíam-lhe fiapos de cabelo sujo, e a sua voz era sibilada e diferente daquela com que travara despique, e essa voz pareceu-lhe conhecida ao proferir: – Então dorme para aqui ao relento sem se importar com a orvalhada? Está a ganhar a morte, mulher... 28 A velha esfregou os olhos, deu conta que era manhã, e negou-se com todas as veras da sua alma a aceitar a verdade desconsolada. Nessa esperança perguntou: – Tu não és Ibraim, o aguadeiro, pois não...? – Sou eu mesmo, pois quem havia de ser? Olha, olha, quebraram-lhe a infusa; onde deito agora a água? – Quebrou-se, sim, quebrou-se. Se tu soubesses! A velha fechou as pálpebras, decerto a retina interior espraiada em ameníssimas perspectivas, o que se adivinhava pela imobilidade e o silêncio, e acabou por dizer: – Tu querias voltar a ser novo, Ibraim? – Para quê...? Para carretar mais água...? A velha afundiu-se em seu mutismo e ele depois duma longa pausa impacientou-se, que estava atrasado. E enquanto despedia a aviar os fregueses, nada descontente por não ter que lhe encher a cantarinha, que já devia a semana, ficava ela a chorar, outra vez a chorar em fonte, não saberia dizer se o prejuízo que lhe dera o zorato, se o doce sonho realizado. (De Quando ao Gavião cai a pena, 1935) 29 FERREIRA DE CASTRO (1898-1974) Emigrante lançado desamparadamente na rudeza e nos espantos da selva amazónica aos doze anos, José Maria Ferreira de Castro colheu dessa experiência singular e dolorosa, logo a seguir dos amargores da luta pela vida e pelo êxito, as inspirações fundamentais da sua obra. Depois de versáteis tentativas juvenis como ficcionista, a publicação dos romances Emigrantes (1928) e A Selva (1930) deu ao escritor uma projecção literária que não tardou a alcançar extraordinária irradiação mundial. Para isso contribuiu consideravelmente a tradução francesa do segundo daqueles livros por Blaise Cendrars. Outros romances de temáticas diferenciadas, porém, consagraram posteriormente o romancista, não só no âmbito literário português como no de muitos outros países, em traduções nas mais diversas línguas. A simplicidade e naturalidade correntia da linguagem, sem prejuízo do seu poder de expressão dos sentimentos mais vivos no homem comum, a sensibilidade perante a dor, a expressa ou implícita esperança humanística no resgate da miséria e da opressão, fizeram de Ferreira de Castro um escritor francamente aberto às multidões, intérprete de um populismo generoso que capta espontaneamente a simpatia e a adesão. Pelas mesmas razões se deverá considerá-lo um precursor das gerações literárias que assumiram, desde o final da década de 30, uma missão social e interventora da arte, não só em Portugal e no Brasil como, decerto, em outros países. Foi sobretudo como romancista e como autor de livros de viagens – Pequenos Mundos e Velhas Civilizações (1937), A Volta ao Mundo (1944), As Maravilhas Artísticas do Mundo (1963) –, sempre a testemunhar a dramática experiência da humanidade no decurso dos séculos, que Ferreira de Castro afirmou primacialmente a sua individualidade literária. Mas o conto não está ausente na obra que escreveu, quer nas raras composições do género que se lhe conhecem, quer em muitos trechos de romance e até de livros de outra índole que condensam relances de casos e figuras inseridas no contexto. Sem flagrante originalidade de estilo 30 nem de invenção romanesca, que nas criações mais conseguidas se cinge essencialmente à experiência vivida ou directamente observada, a sua obra ascendeu à universalidade concreta – a de um largo público mundial – pela limpidez com que traduziu as vivências do homem sofredor, o sentimento de amor pelos humildes e a confiança no seu resgatado futuro. 31 O SENHOR DOS NAVEGANTES Branca, airosa, pequenita, erguida sobre o tope duma colina, a capela do Senhor dos Navegantes divisa-se de longe, como um farol. E a ela, mais do que a uma luz que brilhasse na noite atlântica, os pescadores enviavam esperanças e desesperos quando em graves riscos se viam nas cavas e lombas do mar. Porque ficava alta, ao fim de íngreme, pedregoso carreiro, raras gentes lá iam, salvo em dia de festa, com morteiros e filarmónica, uma vez cada ano. Faiscando pela sua solidão e largueza panorâmica, eu encontrara, porém, maneira de a atingir, naquelas tardes de estio, sem me fatigar. Para subir às montanhas, um livro vale mais do que um bordão – e, com um livro sob o braço, punha-me a caminho. Logo que as pernas se cansavam, sentava-me e lia, enquanto os melros iam cantando nas velhas árvores da encosta. Sem o livro, pequeno seria o meu repouso e continuaria a ascensão antes de refeito, que a tendência de quem anda, leve rodas, leve hélices ou apenas, modestamente, os pés com que nasceu, é, já se sabe, chegar com brevidade ao ponto de destino – mesmo que nada tenha lá que fazer. Com um livro, é outra coisa. Sendo bom, prende-nos mais tempo do que os braços duma mulher e só desejamos interromper a sua leitura no final dum capítulo ou em parágrafo onde possamos retomá-la facilmente. Entretanto, as pernas recobram forças. Naquela tarde, quando cheguei ao adrozito do Senhor dos Navegantes, demorei-me a contemplar o mar vasto que dali se descortinava, então muito sereno, com suas velas graciosas e fugidias. Em baixo, estendia-se a grande praia semi-selvagem. À direita, rompendo de entre um pinhal e com o seu verde contrastando, espaireciam casitas modernas, todas faceiras e coloridas, ao passo 32 que, da banda oposta, aglomeravam-se as barracas dos pescadores, em forma de ilha sobre a areia e tão velhas, negras e roídas pelos anos como se fossem as mesmas que deixaram ali os primeiros habitantes do litoral. Dir-se-ia que o tempo parara do lado onde se trabalhava rudemente ao sol, muitas vezes de colaboração com a morte, para se activar apenas naquele onde se descansava à sombra tranquila dos pinheiros. Após esse longo olhar de amor com que todos os dias eu envolvia o oceano, a terra e o céu, sentei-me e dispus-me a ler, como de costume. Logo, porém, que abri o livro, um rumor veio de dentro da capela. Surpreendido, voltei-me e notei que a porta estava semi-aberta. Era a primeira vez que isto me acontecia. Até então, eu encontrara sempre ali o maior silêncio, um abandono total, com esse sabor poético, fino, voejante, que parece destilado pelo ar e é próprio das ermidas que padroam as montanhas. Agora, os rumores continuavam. Senti e vi um homem transpor a porta. Trazia os braços fechados sobre numerosos ex-votos – barcos de cera e pequenos quadros, ingénuas pinturas feitas sobre madeira. Ao dar comigo, estacou, contrariado; teve, em seguida, uma expressão incerta, logo um movimento de indiferença, e dirigiu-se, resoluto, para o extremo do adro. Desse lado, o flanco da colina descia quase a pique, até um matorral que se estendia lá em baixo. Era um temível despenhadeiro e, para defesa de quem vinha ao Senhor dos Navegantes, haviam construído ali um murozito, que, da banda de dentro, formava bancada, em semi-círculo. Nessa parte do adro o homem se sentou, a uns quatro metros de mim. Descontente com a sua presença inoportuna, eu ia baixar, de novo, os olhos sobre o livro, quando ele me disse: – Provavelmente, o senhor pensa que sou um ladrão... Não é verdade? É certo que eu havia pensado isso, um momento antes. Havia mesmo avaliado as suas forças em relação às minhas e concluído que, em caso de luta, talvez ele me vencesse. Não que fosse mais novo; devia ter uns cinquenta anos maltratados, enquanto eu não chegara ainda aos trinta; mas o seu corpo era mais robusto e os braços muito mais possantes do que estes, tão franzinos, de que eu me servia para pegar no livro. Os seus olhos claros não precisavam de óculos, ao passo que os meus, sem o auxílio de vidros, não me permitiriam dar dois passos seguros, mesmo para fugir. E embora as linhas físicas dele não se mostrassem rudes, o fato que trazia, gasto, poeirento, e não sei mais o quê de seu todo, sugeriam a ideia de homem habituado a trilhar as estradas do Mundo, de varapau na mão, ao assalto da vida. Hesitei, talvez, alguns segundos a responder-lhe, porque ele, antes de me ouvir, acrescentou: 33 – Não, não sou um ladrão. Isto – e apontava os ex-votos – pertence-me. Eu é que não os mereço... Definitivamente perturbado, respondi, enfim, qualquer coisa, não me recordo o quê, uma necedade por certo, e ele voltou: – O senhor não é de cá, pois não? Está a veranear na praia? – Estou. – Logo vi. A gente da terra não tem tempo de vir ler aqui para cima. Bem lhe basta o trabalho. Não entendi logo se ele falava assim para me ser desagradável ou simplesmente para demonstrar a sua perspicácia. Os seus olhos voltaram a fixar-me. Pareceu-me ver neles um lume de ternura, mas senti-me novamente humilhado ao ouvi-lo dizer: – O senhor esteja à sua vontade. Eu não me demoro. E não tenha medo de mim. Não faço mal a ninguém. Todos nós, é certo, já algum dia fizemos mal – e eu fiz um grande mal, mas isso foi há muito ano... – A sua voz repetiu, de modo profundo: – Há muito ano... – É claro que não tenho medo – declarei, num tom frio. Na verdade, porém, eu enervara-me. Tornei a abrir o livro e fingi ler. O homem calou-se. Vergado sobre os ex-votos, as suas mãos iam desfazendo os barcos de cera e arremessando-os para o abismo, para o sarçal que havia lá no fundo. Deles reteve apenas a extremidade dum mastrozito com a sua bandeirola, que fez voltejar na ponta dos dedos, com o sorriso de meiguice que se tem para as coisas frágeis, e logo enfiou na botoeira do casaco. Depois, estendeu o braço, agarrou uma pedra e deu-se a partir os quadros onde se viam embarcações de pesca em luta com o mar embravecido e o Senhor dos Navegantes de pé sobre nuvens. Todos eles tinham datas, algumas seculares, e legendas de reconhecimento, com muitos erros ortográficos e mal desenhadas letras. O homem lia-as antes de despedaçar as pequenas tábuas onde elas estavam inscritas e, em seguida, lançava os destroços lá para baixo, para o mesmo lugar dos barquitos de cera. Entretanto, parecia falar sozinho: – Nunca salvei ninguém. Ninguém! Eu bem o desejaria fazer, mas já não tinha forças para isso. Se estes se livraram da morte, foi apenas por circunstâncias favoráveis... Levantou-se e voltou a entrar na capela. Pensei ser o momento de me retirar. Ele ia julgar que eu era cobarde, mas isso não me importava. «Verdadeiramente – disse a mim próprio – o que busco nesta colina é sossego, e sossego, hoje, não existe aqui». Antes, porém, de eu haver tomado uma decisão definitiva, o homem surgiu, novamente, no adro, com outra braçada de ex-votos. Eram, agora, mãos, seios, 34 cabeças e pés de cera. Ou por falta de paciência para os desfazer um a um ou por lhe ser anojoso partir aqueles símiles de membros humanos, que lhe acordariam, porventura, remotas superstições, ele acercou-se do murozito e lançou os ex-votos, duma só vez, para as profundidades do desfiladeiro. Depois, quedou-se, um momento, como eu fizera antes, a contemplar o oceano. – O senhor gosta disto? – perguntou, voltando-se ligeiramente para mim. – Isto é bonito – respondi-lhe. – É um magnífico panorama... – Sim, não é feio... – murmurou. – Podia ter saído muito melhor, mas, enfim... já os romanos gostavam deste sítio. Ninguém o sabe ainda, senão eu, mas a verdade é que houve aqui um crasto. Olhe, acolá, à esquerda, antes de se entrar no adro, se alguém escavar, encontrará restos de sepulturas... E à praia, lá em baixo, chegaram a vir muitas galeras... Existia, então, um pequeno porto, que o tempo assoreou... Surpreendiam-me os seus conhecimentos e a propriedade com que falava. Tentei examiná-lo melhor, mas o homem encontrava-se novamente de costas, sempre de olhos fixos ao longe. – Efectivamente – disse-me, depois – se olharmos bem para a terra, para o mar e para o céu e se pensarmos na grande variedade de seres que há no Mundo e em todo este admirável equilíbrio planetário, parece-nos que estamos perante um milagre. Não é assim? A si também não lhe parece o mesmo, quando pensa, por exemplo, nas vidas submarinas? – Sem dúvida, o Mundo é muito variado e... Ele interrompeu-me: – Eu sei que todos os homens pensam, sobre isto, mais ou menos o mesmo. Um simples insecto, que encontramos num monte e que podemos facilmente esmagar com o pé, se ele não fugir, é capaz de levar-nos a meditar sobre o mistério da criação, é capaz de arrastar o nosso pensamento por caminhos obscuros que, momentos antes, não tínhamos sequer admitido percorrer... O homem interrogou-me bruscamente: – O senhor o que é? Qual a sua profissão? Eu disse-lha e ele pareceu contente: – Ah, muito bem! Então pode compreender... Não é verdade que o Mundo parece feito por uma imaginação portentosa? Por uma inteligência que nenhum homem pode igualar? – Algumas vezes tenho reflectido sobre isso... – confessei, modestamente. – Aí está! – exclamou ele. – Aí está. Mas o senhor engana-se! Pelo menos, engana-se em metade... Aproximou-se mais de mim. Eu estava sentado, ele de pé; eu tinha de olhá-lo de baixo para cima e sempre com receio de que estendesse as mãos e me dominasse. 35 – Ora diga-me uma coisa. Nunca lhe pareceu que essa inteligência havia ficado a meio do seu trabalho? Que não tinha ido até onde parece que pretendia ir? – Não sei. A nossa razão tem limites. Para além da nossa razão podem existir outras razões, que não são explicáveis... – Era aí, justamente, onde eu queria chegar! – Ao dizer isto, o homem sentou-se ao meu lado, dobrando-se levemente para a frente, com os braços apoiados nas pernas e as mãos juntas. A sua voz adquiriu, então, um murmurejar de confidências e de quem não sente pressa alguma: – Tudo correu muito bem, a princípio – declarou, como se continuasse uma narrativa interrompida. – Eu tinha um poder infinito. E uma imaginação para além de todos os prodígios. Até eu próprio me admiro, hoje, disso. Bastava pensar uma coisa e o meu pensamento materializava-se rapidamente, adquirindo forma e vida. A minha fantasia não encontrava limite algum e os próprios habitantes das profundidades deste mar que estamos vendo o atestam. É um prazer que o senhor não conhece tornar realidade o próprio absurdo. Mas, nesse tempo, também eu não sentia esse prazer; eu não fazia ideia alguma do que era absurdo e do que era lógico, do que era belo e do que era feio, do que era bom e do que era mau. Estas definições só se estabeleceram mais tarde, justamente quando surgiram os limites... Eu criava, criava, como num delírio. E não há dúvida de que a minha principal obra foi isso a que os homens chamam Universo, a mecânica celeste, o Infinito... os senhores andam, com a vossa ciência, a colocar lá algumas balizas, mas é trabalho mais difícil do que se quisesse remover com uma colher de chá a terra duma montanha... Enquanto falava, o homem olhava para o chão, como se não desejasse ver nos meus olhos o efeito das suas palavras. Depois, mudou o tom de voz: – Um dia, porém, senti-me decadente. As aves, por exemplo, são um indício do meu declínio. Não sei se o senhor é viajado, se conhece a Ásia e a América, as grandes florestas tropicais onde há aves maravilhosas. Mas se não conhece, não importa; tem visto isso, pelo menos, nos livros com estampas multicolores. Parece-lhe – não é verdade? – que há uma diversidade deslumbrante, uma fantasia inesgotável no mundo das aves. Pois não é assim! Se observar bem, verá que não é assim. A minha imaginação havia já começado a diminuir, começava já a aproximar-se do que viria a ser a imaginação dos homens. Criei um pássaro e os outros foram apenas variantes. Utilizei o primeiro modelo e fi-lo de todos os tamanhos, desde a avestruz, tão grande que pode ser cavalgada, até o colibri, que, de minúsculo, se confunde com um insecto. A seguir, fi-lo de todas as cores e com todas as combinações de cores. Depois, em vez de criar, pus-me a exagerar determinadas parcelas do que já havia feito. E cheguei, assim, até à caricatura da minha própria obra. A algumas aves limitei-me a esticar-lhes 36 as pernas, as caudas ou os bicos, de tal forma que estes ficaram grotescos e muito maiores do que o corpo. A outras dei-lhes uma amplitude de asas de que não careciam ou deixei-lhes apenas uns simples cotos. Variei-lhes, também, o fulgor dos olhos e a composição dos seus gorgeios, deixando umas eternamente mudas e obrigando outras a cantarem até na hora da morte. Mas tudo isso eram simples pormenores, porque, no fundo, a ave, a ideia fundamental, era a mesma. Eu parecia um desses artistas que realizou, certo dia, uma descoberta feliz e passou, depois, o resto da vida a lutar desesperadamente para dar a ilusão de que não se repetia, quando, na realidade, não fazia outra coisa senão plagiar-se a si próprio... O homem calou-se subitamente e, soerguendo a cabeça, olhou-me pela primeira vez, desde que se havia sentado. – O senhor está a pensar que sou um louco, não é verdade? Foi, então que, por meu turno, baixei os olhos, admitindo de novo que ele poderia, em qualquer momento, lançar-me por cima do murozito de resguardo, como fizera aos ex-votos. – Não, senhor. Estou a ouvi-lo com muito interesse. O que acontece é que se vai fazendo tarde... Ele examinou atentamente o céu, como se medisse o Tempo: – Não, tarde, não é... São apenas cinco horas... Dê cá um cigarro. Passei-lhe o maço, ele meteu-lhe os dedos, riscou, devagar, um fósforo, soltou o fumo e tornou: – Com o mundo vegetal acontece a mesma coisa. O que é uma árvore? O que é uma planta? Uma raiz metida na terra. Para evitar a monotonia, tive de dar variedade às folhas, às flores, aos frutos e aos aromas. Mesmo aos troncos. Mas, apesar de tudo, é sempre uma raiz metida na terra. Ora não era isso que eu queria. Eu não queria o Mundo submetido a uma repetição perpétua. Eu desejava que ele se modificasse constantemente. O senhor já pensou que poderiam perfeitamente existir bosques aéreos e que o homem deveria andar no fundo dos mares ou no espaço celeste com tanta facilidade como anda aqui na terra? O senhor não vê que os homens estão todos os dias a procurar corrigir os defeitos do meu trabalho? O que é um avião ou um escafandro senão um remendo à minha obra? Mesmo os que me adoram, passam a vida a discordar de mim e a tentarem emendar o que eu fiz. Quando imploram as minhas graças para as suas infelicidades, não fazem, no fundo, outra coisa do que censurar-me, pois o que é uma súplica senão uma revolta que não se pode exteriorizar? – Sorriu vagamente e ajuntou: – Só não me amaldiçoam porque ainda me julgam mais forte do que eles... Voltou a calar-se. Depois, calcou o cigarro, ainda quase inteiro, e, com um tom doce, melancólico, confessou: 37 – Eles têm razão, coitados! Sucumbi antes de realizar integralmente a minha obra. O que devia ser mutável tornou-se imutável e as leis que ficaram a reger o Mundo são impiedosas. Eu só me lembrei de criar o homem muito tarde. Já havia feito os outros animais, já havia mesmo esgotado toda a fantasia no exagero dos pormenores, quando me ocorreu uma outra variante. A minha tendência fora, até aí, dar aos bichos quatro apoios sobre a terra ou sobre as árvores. Pois bem! Aos novos seres eu daria, como às aves, apenas duas patas. Mas o senhor não pode imaginar o que senti ao ver de pé, entre os outros, o novo casal. Eu estava a criar o canguru e tão impressionado fiquei que lhe pus logo dois embriões de pernas e deixei-o incompleto para todo o sempre. No meio dos outros bichos, que se moviam alegremente, com jubilosos ruídos na manhã da sua vida, o homem e a mulher, únicos que eram verticais, dir-se-iam dois pinguins entre um bando de pássaros chilreantes. Ele olhava ao longe, sem saber como orientar-se. Mostrava-se tão triste, tão incerto no seu destino, que tive de repente pena dele. Porque fora talhado ao alto, o seu próprio sexo se apresentava menos oculto do que o dos outros animais e parecia vexá-lo. No ocaso do meu poder, eu começara a atribuir, por fraqueza imaginativa, diferentes funções a um mesmo órgão. Para as aves bastara-me um tubo de vazão; para os outros viventes criei, inutilmente, dois – e ao segundo impus uma dupla utilidade. Quando verifiquei o erro, era demasiado tarde: dali em diante, a própria vida humana brotaria dum cano de esgoto. Assim, a piedade que eu senti pelo homem ia-se tornando cada vez maior. Hesitei um momento e decidi: «É a este que eu me darei. É a este que eu darei o que ainda resta de grande em mim» E fundi a minha decadência, o crepúsculo da minha potestade, naquele melancólico animal. Foi outro erro, o meu maior erro. O homem ficara com todas as aspirações dum deus e não era completamente deus. Surgiram, devido a isso, inúmeros conflitos. O homem queria ser eterno como o deus que ele guardava dentro de si e era, pelo contrário, tão efémero como os outros animais. Queria ser feliz, impelido por aquela obscura reminiscência de quando uma parte dele me pertencia a mim, sua divindade, e havia de passar milénios sobre milénios a lutar para ser feliz, sem nunca o poder ser por muito tempo. Só o era integralmente por alguns minutos e justamente quando fecundava novas dores humanas. Eu havia-o deixado tão desamparado e com tantos problemas a resolver, que a própria caverna, em vez de ser apenas um ponto de partida, foi, ao contrário, um ponto de chegada – a sua primeira conquista. O Mundo ficara imperfeito e o homem com uma ânsia de perfeição impossível. O Mundo ficara incompleto, injusto e sem finalidade visível e o homem deu-se a lutar para que o Mundo tivesse para ele tudo aquilo que o Mundo não tinha. Quando não pode lutar de outra maneira, recorre às hipóteses. São as hipóteses 38 que o têm amparado desde que ele vive. Eu sinto remorsos, creia, por tudo quanto fiz... Sinto especialmente remorsos por tudo quanto não cheguei a fazer... O meu interlocutor levantou-se, meteu as mãos nos bolsos e caminhou, como opresso, até à extremidade do muro que nos protegia do abismo. Vi-o olhar lá para baixo, para os destroços dos ex-votos, vi-o, depois, estender a vista até ao mar e, em seguida, voltar-se para mim: – Então, eu próprio comecei a lutar também contra a minha obra. É claro que, ao fundir-me no primeiro homem, fiquei mortal como ele. Mas gozo, ao contrário dos outros, o privilégio de guardar memória das muitas vidas que tenho vivido. Lembro-me de tudo desde o começo do Tempo, desde que fiz o Mundo. E nisso está o meu principal sofrimento, porque a memória, para quem praticou o mal, é, como se sabe, o maior castigo que existe. Sofro ainda porque os homens levam, às vezes, milhares de anos para acreditar no que é evidente. Quando lhes digo a verdade, eles maltratam-me. Quando lhes grito, por exemplo: «O Mundo está mal feito e é preciso, dentro das vossas possibilidades humanas, corrigir o Mundo» – os mais fracos, os mais ingénuos, ficam a olhar para mim, duvidosos ainda sobre se é ou não verdade o que lhes digo, enquanto os mais fortes mandam imediatamente perseguir-me. Se, para me defender, declaro: «Tenho a certeza de que está mal feito, pois fui eu próprio quem o fez» – então consideram-me louco, bruxo, hereje, visionário, e perseguem-me da mesma maneira. Poucas vezes tenho morrido na cama, como morrem os generais e a maioria dos outros homens. Ao contrário, tenho sido esquartejado, queimado vivo, crucificado, enforcado, fuzilado, guilhotinado, electrocutado e gaseado. A cada uma das minhas vidas foi sempre aplicada a moda a que cada época e cada povo obedecem para matar os seus inimigos. Disso não tenho que me queixar... – acrescentou, com um sorriso. – Há pouco, contei-lhe que, ali, à entrada do adro, se encontra um velho cemitério romano. Decerto, o senhor não acreditou. Compreendo perfeitamente: no seu lugar, eu também duvidaria. Mas pode ter a certeza de que estou lá... Ou, se já não existe resíduo algum do meu corpo de então, deve estar lá, pelo menos, uma fíbula que eu usava nesse período. Enterraram-me ali depois de me terem supliciado brutalmente, só por eu haver dito que, como criador que fora do Mundo, vivia a penitenciar-me do meu tremendo erro. Eles julgaram que, com isso, eu pretendia ser mais importante do que o imperador de Roma e liquidaram-me... Um bando de gaivotas ladeou a colina, sobrevoando a praia. A luz da tarde ia diminuindo de intensidade e dando cores suaves aos arredores da capelita, ao próprio adro, onde a voz do homem prosseguia: – Se eu lhe contasse o que observei e sofri através dos Tempos! Mas nunca mais acabaria e vejo que o senhor está com pressa... O que me valeu nos últimos séculos foi a invenção da tipografia. Sem isso, teria sofrido ainda mais, dado que 39 as minhas últimas vidas passei-as, quase inteiramente, nas prisões. Assim, sempre arranjo alguma coisa para ler. Tenho lido muito, muito; desde há quatrocentos anos quase não faço outra coisa. Por um lado, a leitura distrai-me, leva-me a esquecer a cadeia; por outro, tortura-me, pois é pelos livros dos homens que eu vejo, sobretudo, o drama que criei... Ultimamente, lá no manicómio, só queriam dar-me livros optimistas, livros em prol. Os médicos afirmavam que essas obras não me despertariam ideias sombrias... Mas eu protestei imediatamente... – Ah, o senhor esteve no manicómio? – perguntei; de modo tímido. – Estive – respondeu-me ele, com naturalidade. – Não tenha medo de me ofender, pois desde o princípio adivinhei que o senhor pensa que eu sou um louco. Não me ofende nada... Todos têm pensado de mim a mesma coisa, já lhe disse. Estive e lá estaria ainda se, ontem, não tenho conseguido fugir. Estava lá ia já para oito anos. E sabe porquê? Porque, um dia, entrei numa igreja e gritei aos crentes que se encontravam ajoelhados: «Não vos resigneis, pois o Mundo que eu fiz é muito imperfeito e, portanto, precisa mais do vosso esforço do que da vossa resignação. Imperfeito há-de ele ser sempre e vós também; contudo, em muita coisa podeis aperfeiçoar o Mundo e a vós próprios. Mas não é de joelhos que o fareis; é de pé e a lutar! Quem vos fala já foi Deus e sabe porque fala assim…» O homem olhou-me, como se, desta vez, lhe interessasse conhecer a minha reacção. Vendo que eu continuava calado, teve um sorriso melancólico e continuou: – O que eu fui dizer! Só as imagens dos santos ficaram impassíveis... Mas o Cristo, no altar-mor, parecia contemplar-me meigamente, com um ar secreto de cumplicidade. Dos fiéis, uns olhavam para mim, escandalizados, outros faziam esforços para não se rir... Junto do altar da Senhora dos Aflitos encontrava-se, ajoelhada, uma pobre mulher, a única que, naquela manhã, estava ali com verdadeira unção. Ela tinha um filho à morte e não tinha recurso algum, nem para o médico, nem para os medicamentos – para nada. Viera ali pedir ao céu que lhe salvasse o filho, pois era o céu a última esperança que lhe restava. Senti tanta pena por essa mãe infeliz, que me aproximei do altar, estendi os braços para a imagem de Nossa Senhora dos Aflitos e tirei-lhe do pescoço um dos muitos cordões de oiro que os devotos lhe haviam oferecido. Entreguei-o à mulher e disse-lhe: «Vende-o e vai a correr chamar o médico!» Mas a mulher, depois de limpar as lágrimas, encarou-me com repugnância, como se eu fosse o próprio diabo – e recusou o cordão. Teimei: «Despacha-te, senão o teu filho pode morrer!» Ela continuou a recusar e a olhar-me com desprezo. Então, sempre com piedade por ela e pelo filho, resolvi mentir: «Anda! Pega lá! Não tenhas escrúpulos!, Eu sou o instrumento de que Nossa Senhora dos Aflitos se serviu para te ajudar». Ela hesitou um momento. Olhou a imagem, olhou para mim, mas não cheguei a saber 40 se se havia decidido a aceitar aquilo. A igreja enchera-se de gritos: «É louco! É Louco! É ladrão! É ladrão! Quer roubar a Nossa Senhora dos Aflitos!» Um polícia, que estava também ajoelhado, levantou-se, avançou para mim, tirou-me o cordão e pô-lo, de novo, ao pescoço da imagem. Depois ordenou-me que saísse na sua companhia... O senhor está a ver o que aconteceu... Se, ontem, não apanho um guarda distraído e não salto o muro, não estaria agora aqui a falar consigo... Ofereci-lhe outro cigarro. Ele recusou-o com um gesto. – São horas de irmo-nos embora – disse, empregando o plural, como se estivesse certo de que eu partiria, com ele, do Senhor dos Navegantes. Realmente, eu deixara de o temer. Atravessámos o adro. Ao passarmos junto do local que ele me dissera haver sido um cemitério romano, vi-o deter-se. Os seus olhos pareciam buscar, sob as plantas silvestres, um determinado sítio. Encontrou-o, decerto, porque, vergando a cabeça, gritou para dentro da terra: – Cá estou! Ouves? Cá estou e vou continuar a lutar! (De A Missão, 1947) 41 JOÃO DE ARAÚJO CORREIA (1899-) Continuador a um século de distância da grande esteira narrativa e estilística aberta por Camilo Castelo Branco, sempre fixado com inalterável enraizamento regionalista nas terras e nas gentes do vale do Douro português, João de Araújo Correia criou uma vasta obra de contista com bem caracterizada individualização. Em muitos dos seus passos, essa obra quase se identifica com a do autor de crónicas, que também tem sido assiduamente, na transposição para a escrita literária de casos e situações observados no real imediato. Isso mesmo, porém, juntamente com um estilo de marcada inspiração nos clássicos da língua ou na autenticidade da linguagem popular, confere à criação ficcionista de João de Araújo Correia, representada em dezenas de títulos, uma vivacidade de expressão humana em que se condensa com plenitude a «solidariedade com os homens que (no Douro) mourejam, isto é, padecem». A experiência de médico rural, que foi durante longos anos, em contacto directo e diário com a dor, as lutas, os incidentes e também o pitoresco das populações camponesas e serranas, envolvendo-se consequentemente numa visão ácida da vida, alimenta em diversidade e autenticidade as narrativas curtas que preenchem a maior parte da obra deste escritor. Livros como Contos Bárbaros (1939), Contos Durienses (1941), Folhas de Xisto (1959), Rio Morto (1973), Tempo Revolvido (1974), entre muitos mais, documentam a energia e colorido da linguagem descritiva ou dialogal com que o Autor soube captar em traços breves, incisivos e flagrantes, as situações e o desenho de personagens. Na sua verdade, com frequência se dilatam do confinamento regional a um mais largo sentido de essencial humanidade. A concisão narrativa e descritiva é uma das características – e também uma força de comunicação – deste contista que ultrapassa a aparência de superficial visualidade dos seus quadros novelísticos pela intensidade dos 42 dramas vividos que neles se contêm. Não havendo atingido, talvez pela dispersão temática e ausência de estruturas romanescas, o primeiro plano da projecção literária em grande público, a obra de Araújo Correia é um filão de grande riqueza testemunhal e linguística. 43 AS VELHAS SÃO O DIABO Ninguém case com mulher velha. As velhas, ainda que pareçam santas, são o demónio. Que o diga o Frederico. Tinha feito casa e perdeu-a por via da mulher, mais velha do que ele trinta anos. Este disparate de idades pareceu acertado ao Frederico no dia em que se casou. Ele era um rapaz doente e pobre. Tinha-se estreado como cavador, mas não provara bem na enxada. Derreou-o a primeira cava para toda a vida. Era um pelém. Desistiu da vinha e fez-se comerciante. Melhor dizendo, fez-se feirão, porque a palavra, comerciante é fina de mais para se aplicar ao modo de vida do Frederico. Feirão, sim, porque o negócio do Frederico era vender na feira porcos de criação. Achou que fez bem, casando com uma velha, porque essa velha tinha alguma coisa de seu. Podia aumentar-lhe o negócio com o dote e dar-lhe respeito à casa com os cabelos brancos. Embora doente, o Frederico era activo e até ambicioso. Madrugava como um pássaro e só adormecia pela noite dentro, depois de ter feito de cabeça as contas do negócio. Esta labuta, em vez de o enfraquecer, fazia-o homem. O ar livre, respirado de costas direitas e independente, por feiras e caminhos, abria-lhe o apetite. Não tinha cor, mas, de ano para ano,. ia-se tornando menos seco e mais robusto. Quando casou, já não era o rapazinho débil que a primeira cava derreara. As moças, quando o viram na igreja receber-se com uma velha, exclamaram: mal empregado! Não há dúvida que o casório do Frederico foi interesseiro. A velha tinha de seu uma casa ampla, situada fora do povo, mas o quintal... era o melhor pedaço de 44 chão da freguesia. De todas as vezes que o Frederico por ali passava a caminho das feiras, namorava a casa e namorava a cerca. Parecia-lhe que as lojas subjacentes ao prédio e aquele gordo torrão ali ao pé seriam boa cama e refeitório farto para o seu gado. Antes de casar com a proprietária, enamorou-se da propriedade. Que, valha a verdade, a dona de tão bela regalia – casa e quintal – tinha também seu préstimo. Vivia sozinha e sozinha se desembaraçava de toda a sua lida, que não era pequena. Cavava a horta por suas mãos, fazia de comer, lavava os manachos, ia à lenha, ponteava as meias, remendava as saias e cuidava do vivo como ninguém. O vivo é o porco ou porcos que habitam uma corte. É a biologia sagrada de uma vivenda. O vivo! Significa o ser vivo por excelência. Ora, em sete freguesias pegadas, ninguém cuidava melhor dos entes que grunhem e não vêem o céu do que aquela mulher. O Frederico mercava-lhe as criações a olhos fechados. Da admiração da obra à admiração da autora mediou um passo. Mulher que tão asseados bichos criava em sua loja merecia que um homem olhasse para ela. Viva! A senhora Aninhas – chamava-se Aninhas – era mulher perfeita. Destes cumprimentos, destas exclamações sinceras, até ao casamento foi outro passo. A casa, o quintal e a corte passaram por encanto à categoria de empório comercial do Frederico. A loja, povoada de buliçosos bácoros muito limpos, sempre a coinchar com saudades da mama ou fome de lavagem, parecia uma creche de criancinhas ruças. No meio deles, com uma vide na mão, a senhora Aninhas figurava como ama sem touca, mas, com uma habilidade, um dedo para aquilo, que espantava o negociante. Com dois ou três monossílabos e umas cócegas feitas com a vide no serro dos inocentes – assim os comandava. Era manifesta a prosperidade do Frederico em bens comprados ao redor da casa – hoje uma leira, amanhã uma vinha, depois uma mata. Davam-lhe os vizinhos, em suas avaliações mentais um pouco invejosas, para cima de cem contos. Como o vissem assim, tão aumentado de teres, começaram a chamar-lhe Tio Frederico e até senhor Frederico. Tanto tens tanto vales. É raro que o homem sofra mais do que uma paixão. A paixão do Frederico era o negócio. Amava a mulher como auxiliar da sua prosperidade. Punha-a, no que é consideração, acima do cavalo que o levava à feira. Extasiar-se, só se extasiava diante dos bácoros, que representavam dinheiro. Chamava-os – bicá, bicá – com ternura utilitária. A mulher não era assim. Vivia para o marido. Solteira até aos cinquenta anos, delirou quando se viu casada... e casada com um rapaz novo! Cheia de lágrimas de júbilo na face arregoada pelos anos, arrumava a casa e fazia o jantar do marido. Por amor dele, tornou-se avarenta – sem deixar de ser limpa. Queria-lhe como 45 filho e como esposo. Sabendo-o de compleição delicada, alimentava-o a preceito com ovinhos crus furados com uma navalhinha. Obrigava-o a bebê-los assim, que era, na opinião dela, como faziam melhor. À noite, como o sentisse exausto das jornadas, não se punha a maçá-lo com candonguices. Deixava-o adormecer a contemplá-lo como as mães contemplam os filhos adormecidos no colo. O Frederico nunca se comovia com a ternura da esposa. Estimava-a como consorte, mas não lhe retribuía o dízimo do carinho. O fito da sua vida era o negócio. A esposa, a casa, o quintal, a corte, os bácoros, eram instrumentos do seu ganha-pão. Estava satisfeito, não arrependido de se ter casado. A senhora Aninhas, ainda que velha, era o seu braço direito na luta que travara contra a doença e contra a pobreza. Era sua sócia. Prezava-a como tal. No dia em que a senhora Aninhas percebeu que não passava de sócia do marido, quis morrer. Lembrou-se do pai e da mãe – teve saudades da vida de solteira. Ter-se-ia arrependido de casar se a não cegasse o orgulho de ter casado com um rapaz novo. Toda desvanecida, evocava a cena do casamento, o nó dado na igreja. Entretido com o negócio, o Frederico não pensava na mulher. Quando ia pelos caminhos fora, no passo travado do cavalicoque, à cata de porcos finos para criação, pensava em porcos. Nem nas feiras, no auge do barulho, a imagem da mulher lhe acudia. Era um feirão. Movia-o a ânsia de feirar. Hoje uma vinha, amanhã um campo, depois uma tojeira ou um matareco, a pouco e pouco o Frederico ia juntando as peças de um casal formoso. Parecialhe, de cada vez que comprava uma propriedade, que aumentava a força física. O desaire sofrido na primeira cava ia vingando. Toda a energia do Frederico se aguçava no faro do dinheiro. Sabendo-o casado com uma velha, algumas raparigas novas, vestidas de seda vegetal, diziam-lhe de soslaio a sua graça quando o viam nas feiras. Sem lhes dizer vade-retro, sorriamlhe de vontade, mas o sorriso dele era indulgente, não conivente com o intuito das moças. A senhora Aninhas não acreditava na inocência do Frederico. Não compreendia que rapaz tão novo jejuasse tanto. Ela não acreditava. Sentia-se preterida por outra ou outras mais novas do que ela. Chamava nomes feios a estas rivais imaginárias. Cheirava a roupa do homem, virava-lhe os bolsos do avesso e inspeccionava-os com minúcia para surpreender qualquer pequena prova de culpa marital. Um dia encontrou um pêlo preto aderente ao colete de pelúcio do marido. Pegou no pêlo, aproximou-o dos olhos do marido e exclamou: – Está aqui, ladrão! Hei-de pô-lo num relicário até a dona aparecer. Quem ma dera pilhar! Este cabelo é de cigana. Gostas de ciganas, ham? 46 – Ó mulher, isso não é um cabelo. É uma clina do nosso Mulato, explicou, com vontade de rir, o Frederico. «Olha, mulher, continuou. O Mulato está na manjadoira. Chega-te a ele e verás que lhe adita a clina. » A senhora Aninhas, meio sorridente, meio confusa, chegou-se a uma janela e soprou o pêlo. Assim ela varresse para sempre os zelos. Que não varria. Debalde defumava a casa. Debalde mandava às bruxas a camisa do homem para análise. As bruxas davam amiga e que eram precisas rezas e esconjuros: terra de cemitério, sal derramado, sapo cozido, etc. Pobre Aninhas! Cumpria à risca a receita das bruxas. Debalde! Debalde! O seu coração não se aquietava. Moeu dinheiro a senhora Aninhas para conseguir o apego carnal do Frederico. Embora... Foi contraproducente esse dispêndio. Ele, que a princípio lhe tolerava os ciúmes, a pouco e pouco os aborreceu. Tanto os aborreceu, que os repeliu certa noite com meia dúzia de socos vibrados no rosto velho da senhora Aninhas. Daí por diante, deixou de dormir com ela. Passou a dormir numa tarimba, na loja do Mulato, por cima da manjadoira. A casa do Frederico ressentia-se desta desavença. Casa que fora limpa antes de a senhora Aninhas se casar e durante anos depois do casamento, deixou de ser casa para ser montureira. Na corte, os bácoros, deitados em más camas, emagreciam antes de ser vendidos, à míngua de refeições pontuais. Cortava o coração ouvi-los grunhir de fome. O Frederico, homem que fora casto e trabalhador, amoleceu no negócio e deixou-se seduzir pelas moças que rondavam as feiras com o corpo metido em seda vegetal. Emagreceu como os bácoros. Perdeu o apetite. A senhora Aninhas chorava do coração a magreza do marido. De noite, não dormia. Espreitava-o da janela do quarto para ver se ele saía da cavalariça ou se metia dentro alguma marafona. Os desvarios do Frederico eram perpetrados em Lamego, na Régua e em Vila Real, durante as feiras. Não tinha pacto com vizinha. Em vão a senhora Aninhas espreitava o Frederico. Nunca o apanhou com a boca na botija, como ela dizia. Uma manhã porém, da janela do quarto, viu-o cavalgar e partir para uma feira. Responsou-o a Santo António como de costume. Alongou os olhos no rasto do marido. Pôs-se a chorar. Depois olhou indiferente para umas mulheres que passavam debaixo da janela. Provavelmente, iam também à feira. Deixá-las ir... Lá marchava, a rabo delas, sozinho como sempre, o sapateiro da terra. Amigo de passear, ia à vila por cinco réis de nada. Às vezes ia comprar um novelo de fio. Outras vezes, ia comprar meio quilo de sola. Não tinha quem lho comprasse? Farto fosse ele de passear neste mundo e no outro. Atrás do sapateiro, 47 caminhava uma mulher de idade, com o perico do cabelo erecto debaixo de uma mantilha rota. Era a Bártola alcoviteira. Ao lado da Bártola, a olhar para o chão, ia muito melada a Candidinha beata, rapariga linda e bem feita, mas triste como a noite. Que ia ela fazer ao lado de semelhante coira? Não a enojava a sombra de uma coruja? Qual enojava? Olhou a furto para a cavalariça do Mulato, coseu-se com a companheira e lá seguiram ambas por ali abaixo. Ter com quem? No peito da senhora Aninhas, deu-lhe salto o coração. Tate! A sonsa da Candidinha falava com o seu homem. Ficou a cismar, sem comer nem beber, presa à janela todo o santo dia. Ali ficou até o escurecer. Viu chegar o marido, passar diante da porta do sapateiro, com um rolo de sola debaixo do braço, e, na cauda do cortejo que regressava à aldeia, a sonsa da Candidinha, pisando a sombra da desavergonhada Bártola. Como de manhã, a Candidinha relanceou os olhos à loja do Mulato. Presa à janela sem comer nem beber, com o peito arfante contra os vidros, a Senhora Aninhas, ali especada, assim passou a noite. Rompia a manhã quando saiu da janela. Tocou o sino às avé-marias, rezou pelas bentas almas. Deitou água num alguidar e lavou a cara. Depois saiu do quarto, entrou a uma pequena sala e abriu uma gaveta. Fechou-a outra vez e fugiu para a rua pelas traseiras da casa. Fez isto tão subtil, que nem o marido nem os porcos deram fé. Caminhou para a aldeia. Entrou numa rua estreita, deu meia dúzia de passos e logo se esbarrou com a Candidinha, que ia para a missa. Nem bons dias, nem boas tardes. Levantou a mão direita, que levava escondida debaixo do avental. À luz matutina, com um brilho azul, cintilou uma navalha na mão da senhora Aninhas. Foi um relâmpago. A Candidinha caiu redonda, dizendo Jesus e deitando um rio de sangue pelo lado esquerdo do peito. Sangrada, ficou branca como uma açucena. Quando prenderam a senhora Aninhas, quando a levaram à presença do administrador, quando o carcereiro rodou sobre ela a chave da enxovia, ninguém lhe ouviu um lamento, ninguém lhe viu uma lágrima. Encarava as pessoas com expressão alegre. Voava-lhe ao vento a cabeleira branca como um pendão de vitória. A senhora Aninhas foi condenada a pena maior. Ao ouvir ler a sentença, deu uma grande risada. Recolheu à cadeia, entre duas praças da Guarda, com a cabeleira branca esvoaçante como um pendão de vitória. Com a justiça, o homem arruinou a casa, já desfalcada antes do crime por amor dos zelos da senhora Aninhas. No dia seguinte ao julgamento, o Frederico foi à cadeia visitara mulher. Mal que o viu, a velha atraiu-o às grades com palavras 48 meigas. Ele aproximou-se confiado e comovido, mas a senhora Aninhas, em vez de lhe fazer festas, escarrou-lhe na cara e ainda por cima lhe chamou porco. Chamou-lhe porco e riu-se como uma doida. Quando o Frederico, de volta ao lar deserto, a pé, que vendera o cavalo, se queixou aos amigos de tanta desgraça junta, consolaram-no os amigos, dizendo: – Olha, Frederico. As velhas são o Diabo! (De Terra Ingrata, 1946) 49 JOSÉ GOMES FERREIRA (1900-) Uma vasta e multifacetada experiência literária conduziu este escritor, que é também um dos mais relevantes poetas do século XX português, de tentativas novelísticas de juventude muito marcadas por formalismos precários a uma obra de narrador fortemente expressiva das inquietações e dramas do seu longo tempo de vida. Não sendo um surrealista na acepção definida do termo, há muito de surrealizante na sua propensão para representar em metáforas com carga simbólica paradoxal e por vezes desconcertante a sua maneira algo visionária de representar o real. Não sendo um neo-realista, quis deliberadamente alinhar com a geração que optou por essa via no sentido duma literatura política e socialmente «engagée», acentuando nos textos ficcionistas e memorialísticos uma insistente atitude de denúncia das injustiças na sociedade classista. Por isso a sua obra de poeta e de prosador é quase sempre de leitura mais ou menos complexa, esmaltada de barroquismos no desenho de figuras e casos e exigindo do leitor algum esforço de decifração nas relacionações do real com o simbólico. Em exemplo raro, só depois dos cinquenta anos de idade foi reunindo, refundindo ou criando para publicação colectâneas de contos, por vezes de evocações experienciais em andamento de «memórias», mas mesmo nesses casos assumindo-se na composição e na representação como matéria novelística. Na dupla mas conjugada linha assim praticada se situam obras como O Mundo dos Outros (1950), Tempo Escandinavo (1969), O Irreal Quotidiano (1971), etc. Em linhas mais libertas de fantasia e simbolização poética inserem-se os romances Aventuras de João Sem Medo (1963) e O Sabor das Trevas (1976). As narrativas de José Gomes Ferreira, como tem sido acentuado pela crítica, são jogadas reiteradamente entre os contrastes da trivialidade e do sonho, do «eu individual» e do «eu social», impregnando-se duma linguagem que tem muitas afinidades com a do poeta lírico e lhes enriquece virtualmente o íntimo sentido. 50 A SOMBRA A um dia assim como o de hoje costumo chamar, no meu calão, de poeta em férias, dia «incoincidente». O céu desde manhã que se conserva azul com gradações cruas de quadro mau; as árvores escorrem verde e chilreios de pássaros; as ruas riscam-se da rapidez das sombras. Uma serenidade tépida cinge toda esta paisagem de trapeiras e de ceroulas a secarem ao sol numa sinfonia natural de cores, pombas, luz e árvores com flores azuis no Largo do Rato. Pois foi precisamente hoje – dia de sol, de andorinhas, de árvores azuis, etc. – que os homens resolveram não coincidir com a natureza. Foi precisamente hoje que todos vieram para a rua com tempestades por dentro, num estoirar de trovoada interior a rasar as almas de lés a lés, como relâmpagos negros nos olhos sorumbáticos e trovões no furor justo daquela mulher, de giga à cabeça, aos berros para uma senhorita encostada ao parapeito da janela do seu terceiro andar com os braços papudos de nada fazer: – Se quiser, venha cá a baixo, sua gulosa! Mal deitei o nariz fora da porta, logo pressenti o desconcerto do dia, bem visível nesta não-coincidência do azul do céu com as carantonhas de palmo e meio das pessoas que me acotovelavam na rua. «A minha também deve estar de meter medo» – pensei. E disfarçadamente mirei-me no espelho lateral duma montra. Mas não cheguei a qualquer conclusão. Limitei-me a verificar mais uma vez o espanto de trazer por fora um ser tão completamente diferente de mim e pus-me de novo a caminho. 51 Agora, porém, já não ia só. Colada ao meu silêncio, com pinchos de tonta, saltitava uma velhota de farripas e chinelos rotos, com uma criança de mama ao colo, enrolada num xaile com rendas de miséria. Não me conhecia, mas falava-me com esse à-vontade dos velhos que já não perdem tempo a fazer cerimónias com a vida: – Veja o que a minha filhinha me deixou nos braços, nesta idade... Coitadinha! Está no hospital toda podre. Até cheira mal!... Tudo por causa da parteira que lhe carregou na barriga e... Ah, não! Hoje não me comoves, velha dos diabos! Hoje faz sol, há céu azul, a alegria canta nas águas das mangueiras dos regadores das ruas e não quero passar todo o dia com o peso do teu menino ao colo dentro de mim. Tenho muita pena, minha rica, lastimo muito o teu pequenino drama (para ti, talvez, o desabar de mil universos num quarto sem janelas), mas basta. Não consinto que venhas, pé ante pé, sub-repticiamente, esmagar-me o coração com essa mão encarquilhada de pobre velha que nunca teve céu azul. E tu vale-me também, Anjo da Fleuma. Salva-me! Pinta-me de frio; avulta mais os vincos desta bendita cara de pau que repele os homens, e tapa-me bem os ouvidos para não voltar a escutar mais confidências lastimosas nem carpires de dramas à guitarra. Mas qual! O queixume persegue-me como um rasto... Até no eléctrico. Logo hoje, em que me apetecia apenas existir como uma coisa qualquer a vegetar ao sol, é que encontrei o 26. Quem é o 26? Sei lá! – Sou o 26 da 4.ª B do Liceu de Camões... Não te lembras de mim, pá? Lembro-me lá agora. Não me faltava mais nada senão gastar cérebro a recordar-me do passado, com um futuro tão perto. Mas ele em compensação conhece-me bem. Até sabe a minha alcunha desses bons tempos de calções, de jogo da barra e de azedumes no Parque Eduardo VII: – Eras o «Cabeça», pá!... Pois eu sou o 26 da 4.a B. Não te lembras, pá? Não me lembro, mas digo-lhe que sim para não o desiludir. E, abro, com esforço enorme, um sorriso que mal cobre o frio da caveira. Mas ele repara lá no sorriso! O que quer é falar, falar, falar... Desde que deixou o liceu, nada mais de importante (de aristocrático ia eu a escrever) lhe sucedeu na vida, para sempre amarrada àquele passado da 4.a B. Aliás nem chegou a acabar o curso. «O meu pai morreu e...» (Lá vem história – pensei eu. Lá vem história!) E veio. Uma história análoga a milhões de histórias banais, sofridas por milhões de homens também banais, que não têm culpa de que a Dor na vida não possua a fantasia fidalga dos poetas. 52 – Fiquei com toda a família às costas: mãe e três irmãos. Não fazes ideia do que tenho passado, pá! Infelizmente, despediram-me do emprego e... Tudo isso é muito bonito, ó 26, mas hoje não quero afligir-me, percebeste? Escusas de perder o teu latim de queixas comigo. Conta-me partidas do liceu, se quiseres, naquela cerca do passado tão cheia de gritaria, de sol e de joelhos feridos... Mas lá nénias não. Não estragues o céu azul dos outros, 26. Adeus, ó 26! Tenho muito que fazer, ó 26! Desculpa, ó 26! E saltei do eléctrico. Em vão, porém. Hoje acordei com cara de muro das lamentações e não consegui intrujar o Destino. Estava escrito que, durante todo o dia, amigos, inimigos e indiferentes me chorassem no seio amores não correspondidos, tentativas de suicídio, filhos com sarampelo, doenças nervosas, desgraças, carestia da vida, pieguices, «V. Ex.ª quer ter a bondade de me emprestar dez tostões para uma sopa?», destroços, cantochão... E, principalmente, a Lamúria, o lacrimejar, o faduncho da impotência que parece ter substituído de vez o protesto viril, o soco na mesa, o silêncio firme do desespero calcado no coração ou as gargalhadas heróicas daquele meu amigo que certo dia me confidenciou, a rejubilar com os olhos tristes: – Estou contentíssimo. Imagina que me aconteceu um drama à Dostoievski... Não tenho cheta, perdi o emprego e hoje o senhorio deu-me ordem de despejo. Enfim: o coro da choradeira tornou-se tão insistente, tão forte que – confesso – me contagiou também. Pouco a pouco, senti galgar-me o desejo chorincas de desafogar, com a primeira pessoa que encontrasse, a primeira amargura amarela que me viesse à boca. Mas resisti. Alonguei ainda mais esta bendita cara de pau (não me abandones, Anjo da Fleuma!) e no meio da tarde, já febril, decidi regressar a penates, lívido de angústias alheias. Porém, ainda me restava atravessar a prova suprema. Ao dobrar a esquina de certa rua deserta, quando seguia distraído o deslizar da minha sombra no chão, eis que me surgiu de súbito na frente uma mulher alta, gorda, de pele oleosa e formas abundantes mal contidas por um vestido preto a luzir de sebo. Deitou-me um olhar rápido de análise e, de imprevisto, com agilidade de acrobata, agarrou-me nos pulsos, encostou-me à parede, entornou-se-me toda em cima do peito até me tirar a respiração e, apontando-me uma pistola, chorosa na voz implorativa, intimidou-me: – A minha mãezinha está a morrer! preciso absolutamente de 20 escudos. Dê-mos! 53 Zaranza, esmagado por aquela inundação de formas, sufocado com o cheiro a suor da flibusteira, não tive forças para resistir e entreguei-lhe a tremura duma nota de 20 escudos. Contente do êxito, tão fácil, a megera, lobrigando outras notas na carteira, resolveu voltar à carga. Meteu mais alguns cartuchos de lágrimas na pistola, fincou-me outra vez as mãos aos pulsos, entornou de novo todas as suas abundâncias em cima de mim e intimou-me numa voz sem tergiversações: – A minha mãezinha está moribunda. Preciso absolutamente de 42 escudos e 50 centavos para remédios. Dê-me mais 20 escudos. Mas desta vez não me verguei. Cheio duma cólera negra de vergonha que vinha do frio dos ossos, sacudi-a aos urros: não, não e NÃO! E fugi. Fugi vexado, espezinhado, torvo, condoído de mim mesmo, e com vontade trémula de começar também a lamurinhar, em objurgatórias de raiva e cinza nos cabelos: – Ai que desgraçado eu sou! Ai que triste vida a minha! Calei-me porque me aconteceu então uma coisa extraordinária... (O que vão ler, a seguir, é mentira evidentemente; mas façam de conta que acreditam, para esta reportagem poética ficar com um desfecho digno, sim?) Como ia dizendo, calei-me porque me aconteceu qualquer coisa de extraordinário. De repente, a minha sombra no chão levou um dedo à boca e impôs-me silêncio: – Psiu! Caludinha! Se queres lamentar-te, vai para casa e fecha-te num quarto às escuras para não maçares os outros. Mas caludinha, ouviste? E como ainda lhe parecesse ver nos meus olhos atónitos um lampejo de desobediência, a Sombra não esteve com meias medidas: ergueu-se e esbofeteou-me. E depois, tranquilamente, voltou a deitar-se ao sol no chão, a olhar para o céu azul... (De O Mundo dos Outros, 1950) 54 JOSÉ RÉGIO (1901-1969) Reflectindo em aspectos essenciais a grande vaga individualista e subjectivista do perturbado período que se seguiu à guerra de 1914-18 na Europa, fundador da revista Presença e principal inspirador do movimento estético que através dela se exprimiu, José Régio (José Maria Reis Pereira) foi como poeta, dramaturgo, romancista e contista, além de ensaísta e crítico, a figura mais relevante do Segundo Modernismo português. Superou na sua obra o destrutivismo anárquico da geração que o precedeu – e que teve como representação mais alta o poeta Fernando Pessoa –, impondo à criação literária, em todos os géneros que cultivou, uma disciplina de estilo que correspondeu seguramente à minúcia e rigor da análise psicológica. E foi esta a via que perfilhou reiteradamente para realizar (e sugerir a outros) uma «literatura viva», liberta de formalismos e convencionalidades. Para além da sua vasta obra poética e de romances como Jogo da Cabra Cega (1934) e o ciclo A Velha Casa (cinco volumes, 1945 a 1966, não concluído) são muito significativas do estilo e da temática de José Régio as duas recolhas de contos Histórias de Mulheres (1946) e Há Mais Mundos (1962). Neles confirma o Autor o seu processo de finura extrema na expressão da vida interior das personagens, de que os respectivos comportamentos são eco testemunhal, à maneira de Marcel Proust, mas com individualidade plena de problemática expressa e de estilo. A densidade da indagação introspectiva, a percepção aguda dos conflitos que se travam entre a aspiração da pureza e as fatalidades do quotidiano grosseiro, uma religiosidade que reveste a forma essencial de preocupações morais transcendentalizadas no debate do Bem e do Mal, uma linguagem sempre subtil e sinuosa, imprimem à obra de Régio uma caracterização inconfundível. Há nessa obra novelística, como lhe apontou Eugénio Lisboa, «um encanto intenso mas privado», envolvendo para muitos 55 leitores um certo risco de monotonia. Mas é nesse «encanto» que se define mais exactamente a atmosfera de que o escritor embebeu as suas narrativas, a projectarem no espaço literário português uma vasta corrente da literatura mundial neste século. 56 OS TRÊS REINOS Era uma vez um rei – é claro, que tinha um reino: o reino do rei. Além disso, o rei tinha dois filhos gémeos. A mãe-rainha morrera para os dar à luz. Importa saber que esse era o reino do rei, e que os dois filhos do rei eram gémeos. Desde já, porém, convém acrescentar que o rei tinha ainda um filho adoptivo, ou coisa que o valha. Também a mãe deste morrera, já viúva, deixando fama de um pouco ligeira de costumes (não demais) e muito formosa. O marido fora um dos cortesãos favoritos do rei. Toda a gente, pois, achou bonito que o pequeno se criasse no palácio, brincando familiarmente com os príncipes, e recebendo educação quase igual à sua. Toda a gente, sim, achou bonito! quase toda a gente. Mas, associando vários factos, muito à boca pequena murmuravam os maledicentes que não era só bonito como compreensível, natural... Adiante se esclarecerá este caso. Evidentemente se torna que, dos dois príncipes gémeos, um havia de ser considerado mais velho, – coisa que pertencia aos físicos determinar – ou, como quer que fosse, com mais direitos. Claro que seria esse o herdeiro do trono da coroa, do ceptro, do título de Majestade. O tempo foi passando, e os dois irmãos crescendo. Vieram os melhores sábios indígenas, e até estrangeiros, para os educar. Do mesmo passo educavam o filho adoptivo, que, como é natural, também ia crescendo. Ao herdeiro do trono eram dispensados cuidados especiais, porque reinar não é coisa fácil; nem de fácil ensinamento ou aprendizagem. Felizmente, o jovem príncipe revelava aptidões de excepção. Todos os Mestres contavam ao rei a sua paixão pelos livros e a sofreguidão da sua curiosidade. Mesmo nas horas de recreio o príncipe se recreava folheando os cartapácios de pergaminho; e a 57 sua cabeça loira dobrava sobre os alfarrábios – tão amorosamente como sobre um seio. Quando tal não sucedia, caía o príncipe numa espécie de alheamento, ou parecia mergulhar em abstracções, meditações, cogitações talvez não muito próprias dos seus verdes anos. Todos os Mestres? Mas não: O Mestre de esgrima, o de equitação e o de dança eram mais reservados nos seus louvores. Por esse tempo, o velho rei decidiu firmar um tratado de amizade com o rei do reino vizinho. Longos anos se haviam guerreado. Agora, estavam ambos velhos. A proximidade da sepultura restringe as ambições e faz embotar os impulsos bélicos. Nesse tratado ficou assente que a princesa real do tal reino vizinho casaria com o sábio príncipe. Ora a princesa noiva era feia, triste, cega dum olho, e até já falara em se meter freira. Todos lamentaram a sorte do jovem príncipe – assim sacrificado a razões de Estado. O próprio pai algoz o lamentava. Por fim, todos sorriram maliciosamente. Na corte da noiva feia, triste, cega dum olho e mística, havia donzelas e donas muito belas, de que falavam com entusiasmo os embaixadores. Homem experimentado, El-Rei sorriu também e deixou de lamentar o filho. Só o jovem príncipe parecia indiferente ao que se passava: Era como se nada daquilo houvesse de ser com ele. A sua cabeça loira pendia sobre os alfarrábios – tão amorosamente como sobre um seio. Quando se levantava dos alfarrábios, era para olhar não as estrelas da terra, mas as que cintilam demasiado longe. Finalmente, deu em fechar-se na sua câmara. Dizia-se que andava a escrever um grande livro. E saía de lá com olhos de cego, um ar quase de estátua, um sorriso alheio, feliz, idiota. A pedido do rei, um dos seus Mestres ousou, um dia, aconselhá-lo: Sua Alteza não devia abusar do seu grande amor pelos livros. Decerto muito ensinam os livros; mas o trato dos homens também; também as experiências pessoais e vivas. Aliás, quase perigava a saúde de Sua Alteza nessa vida sem ar que Sua Alteza levava. Convinha que Sua Alteza se prendesse mais aos costumes da corte, aos jogos e folguedos próprios da sua idade, aos acontecimentos do reino que havia de governar. Nisso tomasse exemplo em seu irmão; até naquele que, não sendo seu irmão, mais ou menos fora educado como tal, e tão ladino se mostrava na curiosidade por tudo que à sua volta decorria... O moço príncipe ouvia-o como se o não ouvisse, fitando-o, sem o ver, com os seus esplêndidos olhos de cego. Nesse mesmo dia, ao fim da tarde, estava-se à mesa, era na rica sala de jantar. O Mestre caiu na imprudência de uma breve alusão ao que de manhã, dissera ao seu educando. Então, o príncipe herdeiro levantou-se e respondeu: «O meu reino não é deste mundo.» Lera isto, num livro que fora de sua mãe. Todos ficaram primeiro atónitos, depois constrangidos. O rei nem repetiu os seus pratos favoritos. Tentou-se falar doutras coisas. E, no dia seguinte, o jovem príncipe 58 herdeiro apareceu morto. Envenenara-se com flores perigosas que havia na estufa. Estava nu, morria virgem, e tinha sobre o peito o livro que terminara essa noite. Mais tarde se viu que era um grande livro. Claro que houve gritos, espantos, choros, exéquias magníficas, exposição de grandes veludos negros e galões de oiro. A noiva do morto sempre se meteu monja. «Era o que tinha a fazer!» comentou o seu ex-futuro cunhado «Com aquele olho vesgo...» E começou ele, o irmão gémeo do morto, a ser preparado para o difícil ofício de reinar. Não, não empalidecia este sobre alfarrábios de pergaminho! Aos catorze anos, já comprometera uma nobre donzela da corte. As formosas donas um pouco ligeiras de costumes (não demais), só as não comprometia por já estarem comprometidas: pelo menos, com os respectivos maridos; pelo menos. Morrer virgem – não era com este. Como para a sua pessoa se haviam transferido, agora, aquelas particulares atenções que sempre se fixam sobre o herdeiro dum trono, até certos pormenores da sua infância eram agora recordados, repetidos com sorridente complacência: Que, por exemplo, fugia para os jardins nos dias de chuva; e lá davam com ele descalço, patinhando nas poças, ou estendido na relva, a apanhar a água do céu. Ou que se misturava com os rapazes da rua para ir aos ninhos, ou jogar à pedrada. Agora, perdia-se por caçadas. Bailava tão bem que nem parecia um príncipe. Conversava familiarmente com os pajens, os criados, os vilões. Certas noites, escapulia-se disfarçado para ir correr aventuras. Às vezes, fazia-se jardineiro: podava roseiras cantando canções da arraia miúda (nem sempre muito decentes) e até chegava a cavar com uma sachola! Dava esmola aos mendigos por sua própria mão. Duma vez, trouxera às costas um miserável que achara desfalecido no caminho. Era moreno, ágil, tinha bons músculos, um esplêndido apetite. E ninguém como ele para divertir as damas com histórias, anedotas, intrigas, mentiras, fantasias, e beliscões à socapa. Os seus Mestres resolveram limá-lo, podá-lo como fazia ele às roseiras. Compenetrado do seu papel de futuro rei, deixar-se-ia fazer um rei como se quer. Todos diziam: «Desta vez, temos homem!» Pelo contraste, um certo dó humilhante recaía sobre a memória do irmão suicida... O príncipe começou a apurar a sua educação intelectual; e, felizmente, o novo herdeiro revelava também aptidões de excepção. Todos os Mestres contavam ao rei a sua paixão pelas coisas e a viveza dos seus pontos de vista. Todos os Mestres? Mas não: O Mestre de línguas mortas, o de matemáticas e o de protocolo eram mais reservados nos seus louvores. Por esse tempo, o velho rei decidiu fazer jurar seu filho herdeiro do trono. Estava cansado, e sentia que a vida se lhe ia apagando. Mas, durante as cerimónias, o príncipe herdeiro teve excentricidades, liberdades insólitas, saídas de humor que chegaram a provocar o riso na ilustre assembleia, – pouco dignas da solenidade 59 do acto. De modo que, a pedido do rei, um dos seus Mestres se atreveu a aconselhá-lo: Sua Alteza não devia abusar da originalidade de seus espíritos. Atitudes há do entendimento, como formas de conduta, porventura apreciáveis em um qualquer; mas nem sempre convenientes num príncipe real. Urgia que Sua Alteza renunciasse a dadas particularidades do seu temperamento, em atenção ao alto papel que fora Deus servido distribuir-lhe... O príncipe ouvia-o sem nada dizer. A expressão do seu rosto é que era ambígua, como respirando uma ironia que nenhum dos seus traços acusava. Nesse mesmo dia, ao fim da tarde, estava-se à mesa, era na rica sala de jantar. O mesmo Mestre falava; embora subtil e indirectamente, continuava a morigerar seu ilustre aluno. Então, o príncipe real ergueu-se e respondeu: «O meu reino é deste mundo». Não lera isto em parte alguma. Todos ficaram sem compreender, e pouco à vontade. Tratou-se de coisas várias, com uma naturalidade fingida. O rei ergueu-se pouco depois. E, no dia seguinte, o jovem príncipe herdeiro tinha desaparecido do palácio. Em vão se fizeram as mais diligentes e minuciosas inculcas por todo o reino. Correu mais tarde que fugira numa carroça de saltimbancos nómadas. Claro que houve consternação geral. O rei caiu de cama; já todos temiam que não resistisse a este novo grande golpe. Ele que, durante tantos anos, habilissimamente retivera nas mãos a governação do seu reino tão policiado, tão submetido, tão dirigido, agora se via sem herdeiro natural que lhe sucedesse, e lhe continuasse a obra. Dois filhos legítimos tivera: gémeos e tão diferentes, senhores de extraordinários dons. Ambos como que o haviam renegado, renunciando à herança para que os preparara. E agora já no seu reino tão disciplinado fermentavam pequenos focos de anarquia, ainda pequenos mas que poderiam alastrar. Já as massas pressentiam a senilidade do pulso que tão energicamente as havia refreado. Neste desconsolo, perdidos os seus dois filhos legítimos, ainda foi o tal adoptivo que principiou a fazer-lhe companhia. Já quase o não podia dispensar o rei. Também o moço parecia não se poder afastar do seu leito. Sempre que lhe era permitido falar, El-Rei conversava com ele. Coisa interessante!, – nessas práticas achava grande prazer. Como se disse, recebera o moço instrução idêntica à dos príncipes, tendo sido educados quase no mesmo pé. Em certos assuntos, porém, que muito eram da especialidade do rei, mostrava uma curiosidade que nenhum dos príncipes mostrara. Na história política do reino, por exemplo; na sua geografia humana; nas suas actuais relações com o estrangeiro; na discussão das suas Leis, etc. E a inteligência que no tratamento destas questões manifestava – áridas, como geralmente são, para jovens – por atrevimento que seja afirmá-lo, não ficava atrás da que noutras haviam manifestado os príncipes. Ora, desaparecidos os dois herdeiros naturais do trono, chegado El-Rei ao 60 último quartel da vida, vários pretendentes ao mesmo disputavam entre si seus direitos. Já, no palácio, fervia a intriga na sombra. Já os pretendentes e partidários rivais se falavam com o sorriso amarelo nos lábios, o verdete do ódio nos corações. Um ponto único havia, em que todos se entendiam: a malquerença àquele moço que tão visivelmente seduzia o velho rei. Pelos meios de que dispunha cada um, cada um procurava desacreditar no espírito do velho rei o seu jovem amigo. Decerto não passava isto despercebido do jovem. E o resultado foi não ser este, mas eles, que eram pessoas da família real, quem o rei afastou da sua câmara, até do seu paço. Por maquinações do jovem? Sustentavam os escorraçados que sim! e espumavam de raiva e juravam tremendas vinganças futuras, – atribuindo àquele moço uma tão diabólica intuição na intriga que suplantava toda e qualquer experiência. A ser isto verdade, poderiam quaisquer manejos do moço passar incompreendidos do seu protector? O diabo sabe muito porque é velho; e a debilidade física do rei não se manifestava mentalmente. Dado o que depois se passou, poder-se-á admitir que «a velha raposa astuta» (como depois, lhe chamavam os seus parentes escorraçados) até apreciara o engenho com que o moço ia tentando exautorar, junto do seu real amigo, aqueles grandes senhores que, por seu turno, o procuravam desprestigiar a ele. Ora o que depois se passou, foi o seguinte: Uma tarde, ao fim da tarde, estavam reunidos na câmara real os importantes da corte. O rei para aí os convocara, pois há algum tempo dava grandes sinais de melhoras. («Ainda não é desta!» lamentavam os seus parentes tornados seus inimigos). E diante de todos, que estavam sumamente intrigados, se dirigiu o rei ao seu jovem protegido, dizendo: «Tive dois filhos legítimos, que um após outro sonhei me sucedessem. O reino dum não era deste mundo. O do outro era-o por demais. Tu, qual é o teu reino?» Um silêncio pânico se fez, pois todos achavam estranhíssima esta cena. Talvez o moço hesitasse um momento; não mais que um momento. Logo respondeu: «Que reino pode ser o meu senão o vosso?» Então o rei chamou-o a si, apertou a sua cabeça contra o peito. Como já não podia fugir à sensibilidade dos velhos, teve de fazer um grande esforço para não soluçar. Mais tarde declarou que sempre esse fora, secretamente, o mais amado dos seus filhos, embora filho natural; que esse ia ser perfilhado, jurado herdeiro do trono; e que sem demora ele, rei, resignaria no filho o poder real, pois não só estava cansado, como temia ver-se constrangido a fazer por força o que desde já faria de vontade... Isto disse ele sorrindo. Olhava complacentemente o filho. Impossível, porém destrinçar até que ponto no seu espírito de velha raposa astuta, esse conhecedor 61 dos homens brincava ou não. E assim se disse, assim se fez. De nada valeram as conspirações dos pretendentes despeitados. Com a satisfação de ter um digno sucessor para o seu reino, o velho rei restabeleceu-se, e ainda pôde viver alguns anos. Morreu de muito avançada idade. Laus Deo. (De Há mais Mundos, 1962) 62 VITORINO NEMÉSIO (1901-1978) Nascido na Ilha Terceira (Açores), em ambiente de enraizadas tradições localistas, Vitorino Nemésio (Mendes Pinheiro da Silva) iniciou a carreira literária como contista (Paço do Milhafre, 1924), logo consagrando a sua criativa vocação de ficcionista com o romance Varanda de Pilatos (1926) e mais tarde, em plenitude assumida de narrador e de prosador, com o romance Mau Tempo no Canal (1944). A inspiração regionalista açoriana marcou vivamente esses e outros livros que publicou, não só na localização das narrativas como na caracterização das personagens e muitas vezes na linguagem, não só descritiva como dialogal. Vitorino Nemésio dispersou-se, entretanto, como escritor multifacetado – em que o exercício do professorado universitário teve por vezes influência – em obras numerosas de historiografia literária, entre as quais são de definitivo e clássico mérito os seus estudos sobre Alexandre Herculano, de poesia nitidamente personalizada e original, de ensaio, biografia e crónica. Em todos os géneros demarcou sempre o escritor um estilo peculiar, pela fluência, vivacidade expressiva e, como acentuou Jacinto do Prado Coelho, pela presença em escrita «duma personalidade riquíssima e dúctil». Os seus livros de novelas, como A Casa Fechada (1937), os contos de O Mistério do Paço do Milhafre (1949), os textos de composição híbrida entre a crónica e a ficção como os de Corsário das Ilhas (1956) e Viagens ao Pé da Porta (1967), confirmam a adensada arte de sugestionador do vivido e de prosador de grande virtuosidade, conjugando a hábil captação da linguagem popular (regional açoriana e de outras áreas) com a aptidão do estilista culto. As raízes vindas de Camilo na representação de atmosferas provinciais, de Eça de Queirós na finura da cadência prosódica e na ironia, da novelística francesa e inglesa moderna no entrosamento complexo dos planos temporais e das situações humanas, fundem-se nas narrativas de Nemésio com mestria rara. Em toda a sua obra, como escreveu Manuel Antunes, foi «homem numeroso» e «de muitos 63 ritmos», mas sempre inserindo poesia na sua linguagem em que subjaz um sentimentalismo saudoso. Do perene fundo açoriano, que nunca se dissipou na diversidade dos géneros, alargou Nemésio o sentido essencial da sua obra a um universalismo que não teve ainda a consagração merecida nas versões para outras línguas. 64 MAU AGOIRO A Canada do Búzio era uma bocarra, um deserto. Não se via vivalma. Só as faias da terra e as do norte vingavam ali entre silvas... – suor de sangue! escorralho do Rei dos Reis coroado por mangação! O lugarejo molhava as suas abas naquele mar podre e morto, a matutar como um tolo nos penedos da Ponta do Cavalo vigiada dos garajaus – ou então, bravo e alto, fora de suas estribeiras, atirando a espuma às poças. Era daí que uns pinheiritos – poucos mas bons e baixos como uma quadrilha de ladrões – se atreviam a subir com os braços cheios de pinhas: uns, cornudos e torcidos; outros, esbracejando direitos no meio da lava e dos faiais. Pareciam talhados nos lombos verdes do mar e atirados vivos à costa. O vento carpinteiro levava-lhes a agulha e o cheiro delicado da resina. Vento excomungado, que parecia falar-lhes ao ouvido: «Abriguem-se vocês! Vá... Abaixem-se aí!» A casa da Cacena ficava plantada neste inferno. A Canada do Búzio parecia uma goela aberta à noite. Vizinhança – nenhuma. Só de verão havia um pouco de alegria e de cor nalguma maçã madura. O mês de Abril começava a consolar quem no via carregado de flores brancas e de botões cor-de-rosa. O pêssego amadurecia tarde, corado duma banda só. A faia do Norte, de casca sardenta, cobria-se de bagas meladas que era um louvar a Deus! Em Setembro as uvas tingiam as pernas dos homens enterrados nos lagares e o vinho esgichava nas dornas, enquanto as cisternas vazias mostravam os fundos cor de telha, e o grilo, nas gretas, era um saudoso namorado. De noite, a lua subia a terraço. De dia, o sol era um rei em seu balcão... 65 Ah! Mas, dobrado o cabo de Todos-los-Santos e dos Fiéis Defuntos, a casa da Cacena era uma barca à flor do mar das vinhas. Turvava-se tudo. O cebolinho de ao pé do forno ficava de cabelo ceifado: Aqueles casebres mais pareciam fojos de bruxas do que tectos de gente baptizada. Se não fosse algum molho de palha que o Menino Jesus sempre acende, o Inverno era frio como a neve e negro como um tição. Ora, seriam umas três da manhã (água, se Deus a dava!) quando João se ergueu do quente da enxerga e disse para a velha: – São horas, minha Mãe! Aqueça-me uma pinga de leite... A Cacena era uma triste mulher, sozinha neste mundo. O Rei, ou lá quem quer que é que bebe o sangue dos pobres, tirara-lhe o bordão da velhice mandandolhe o filho às sortes e levando-o para o Castelo. De nada serviram os pedidos ao Doutor, a este e àquele: os cambos de ofertas; os presentes; uma ave ou duas debaixo do lenço, algravitadas, bravas nos corredores. Tempo perdido! O rapaz ficou apurado para caçanha. E então veio a recruta, com madrugadas, frios, muito poucas dispensas... As correias da mochila levaram-lhe uma tira do lombo; as botas do Casão fizeram-lhe um calo de sangue. Enfim, já praça pronta, houve a peste numónica em Santa Bárbara e ele foi destacado lá para os quintos... Entretanto a triste Necessidade (a feiticeira!) fazia o seu pé de alferes à porta da casa sem homem. Primeiro, a coivinha atempou; passante disso, morreu a leitoa empachada. E um belo dia, de manhã, um tição de lume queimou as faias da cozedura, o fogo passou-se à copeira, e, emmentes o diabo esfrega um olho (cruzes!), o forro do sótio ardia todo. Acudiu-lhe a vizinhança em peso (ninguém está livre de trabalhos!) e à força de água e de machado salvaram o resto da poisada – seja pelo santo amor-Deus!. Quando João soube disto, no Castelo, chorou malaguetas curtidas e quase se pôs de joelhos: – Só uns dias meu promeiro! Foi a casinha que me ardeu... A prove da minha mãe stá pràli sozinha, sem ter quem no ganhe... Então o Capitão, com pena dele, fez «cantar à Ordem» aqueles três diazinhos «a benefício dos fundos do caldeiro», como se dizia na Peluda. João andou a tirar umas esmolas para ajuda da casa, com dois amigalhaços, como quem pede para toiros. Um deu vinte tábuas de forro; outro, uma mancheia de telha; outro, os barrotes, de amor-Deus. O Niquinha tirou dois dias de obras, e lá levantaram ambos a cozinha, com frechais e asnas novas. – Que mais quer, minha Mãe? – disse ele, cobrindo a velhota de beijos. – Nem que vossemecê se tornasse agora a casar... Nã l’há-de chover pinga dentro, se Dês quiser!... 66 E, com efeito, não choveu. Mas vem o caim dum pé de vento, uma noite, e leva de guinda o postigo envidraçado para cima duma riça de silvas. – Mais fizero a Nosso Senhor Jasu-Cristo! – cramou a Cacena resignada, de mãos postas. E pôs um rolho de trapos no buraco do seu postigo. Mas desde esse dia reparou que, muito madrugada, mal luzia o buraco, vinha um biquinho esfregar-se melgueiramente no chumaço, e logo, pela calada, três unhinhas de nada riscavam. Aquilo era no batente – ora, se não! O certo era que se não ouvia mais nada senão dali a um pedaço: Umas asinhas miúdas vinham espenujar-se no trapo; uns pios de aflição pareciam picar-nos o juízo como pontinhas de alfinetes. Era ao azular da hora de alva. No quarto da pobre Cacena, por cima da cama, a telha de vidro ia-se enchendo de flor de anil e azulão, a todo o comprimento; e, assim abaulada, cismava-se no caixão de um pagãozinho que um anjo levava para o céu. Três dias e três noites a fio a Cacena malucou naquilo. Afinal... – labandeiras! Eram as labandeiras! São passarinhos brandos de asa, de rabo de forquilha, que às vezes malucam nos caminhos em riba de burgalhaus, e que, ao ouvirem o passo mais à toa, tremem da passarinha, dão duas guinadas de espreita e põem-se ao fresco, todas repatanadas, até encontrarem solidão. Desde menina que a Cacena com elas vivia e labutava, mas benzendo-se: – não porque levem bruxedo, mas porque a triste sina se apega adonde elas apontam os biquinhos. A coderniz é pior. Quando Herodes mandou botar o bando e degolar os Inocentes, que José prantou a Senhora mai-lo Menino na burra e abalou para o Egipto, as codernizes, amassadas nos restolhos, davam fé daqueles santos pelingrinos e, voando baixo, toca a chocalheirar: – «Cá vão eles! Cá vão eles!» Mas as labandeiras vinham e, com a rabadilha em forquilha, lá iam apagando as passadas do santo carpinteiro e os sinais dos cascos da jumenta. Por isso o Senhor disse à paqueta da coderniz: – Deixa tu estar, corsaira, que não hás-de pôr pé em ramo verde! E Nossa Senhora apartou as labandeiras para suas galinhas. Mas lá que têm pitafe, têm. Donde lhe vem, não sei. Têm-no co elas… Agora, de mais a mais viúva e apartada do filho, à Cacena pareciam de propósito aquelas andadas dos bicos peneirando-se, salpicando o telhado com as asinhas de rasto, de ponta a ponta do cume. Uma tarde, estando a cardar lã de ovelha, à porta, deu fé de que uma delas aporfiava na dança. Era um gorgulho de ave, de olho vivo. Bateu-lhe as palmas, de cá; pegou numa pedrinha, uma coisa de nada, e varejou-lha rente. Mas o bicho fez a modo um pouco caso e veio tombando duma asa até lha passar rente à boca. 67 – Jasus! Disse isto e, em menos dum amén, o Trigueiro que passa da cidade: – Boa noite, tia Cacena! O sê João lá deu baixa ò espital. – Que me dizes?! Ai, s’o mê filho me morre!... – Não se aflija, serva de Deus! Aquilho não há-de ser nada... Veja mãis é se lhe manda coisa duma quarta de açucre. Essa noite desceu como um fugido à justiça; as cancelas do céu fecharam-se de repente. A terra ficou como uma furna negra, sem o mais leve clarão; a escuridão das canadas parecia tinta de escrever. Às vezes, dentro em casa, um vento parecia dançar de porta a porta, que batia, a moda do Pirolito que bate, que bate... Pirolito que já bateu... Como se lhe tivessem dado com um barrote nos peitos, a Cacena meteu-se para dentro de casa e afundou no xailinho a sua triste cisma. A panela da ceia cantava com água choca e feijões. Em baixo, na pedra do lar, a cinza e a sombra do lume jogavam à Pata-Cega. Passaram-se quase oito dias – e o Trigueiro sem trazer notícia de alívios do doente. Às vezes, para não ouvir a velha, furtava-lhe a volta e seguia pelo Rebalde até à Praia. A tia Cacena passava as manhãs no trabanaco, sentada a remendar; à tarde engaroupava-se no xailinho e esperava o carteiro à sua porta. Fazia para a ceia coives espernegadas. Daquela boca para baixo não lhe passava oitra coisa. Enfim, o Natal chegou. Chega sempre. Umas vezes é frio, outras chuva... Há anos sem uma coisa nem outra – e sempre pobreza! sempre desconsolos e lágrimas em casa de quem nas chora! Também há casas sem vagar nem água para vertê-las; outras são tão alegres ou tão tristes, que nem cara têm de coisíssima nenhuma! É na maior parte dessas casas que o Menino Jesus reina entre trigos sem terra, e é aí que se come bolo-rei, figo passado, cabaço, canja de galinha... – Dá Deus nozes a quem nã tem dentes! Ter u~a pessoa a mão incarangada a pontos de le custar a apanhar a ponta do xaile se Pele cai, e havê-las senhoronas, que é só chomar a aia que as venha vestir e calçar! Mum grande é o mundo, graces a Deus! E maior ainda a Mezricórdia Devina! «Quem fosse à Missa do Galo!... Galo? «Qu’é dele os esporães? Caldo de frango nunca fez mal a doente, nem a velha. Mãis o poleiro, deu-le o rato... foi-se toda a ninhada da pedrês. João, que é que tens? João, tu oives! A manta de fiampua está ali na caixa; queres-ia-a? Nã te dou lençóis de linho, que os nã tenho, meu home! Mãis stá calado, filho! Stá caladinho, qu’a mãe vai ò mato e já vem, meu amor! Vamos cozer de tarde, pois... ! Nã te dou pão de milho azedo, discansa! O milho amarelo secou no tirante e na burra estes dois meses, filho! 68 Faço-te um esfregalho... Faço-te um esfregalho... «E, vai daí, há casas ricas e casas proves. Deus dá o frio cunforme a roipa. Nosso Senhor Jesu-Cristo nasceu em Belém para nos remir e salvar e, vai, Herodes Antipas manda botar o bando: «Que toda a criença nacida por li seja degolada im cuntinente»... Por isso José pegou no bordão, escanchou a Senhora na burra co anjo de Deus ò colo e se largou prò Egito. Dá-me dali o bordãozinho, não oives? João stá pior... Burra na na tenho, mãis tenho pernas. O Egito será no Castelo? Quem tem boca vai a Roma. Só eu incaranguei Na Canada do Búzio o Natal desse ano não podia ser mais festejado. As estrelas próprias dum céu limpo e frio brilharam por cima da casinha consertada depois do fogo. Um soldado magro como um cão e de barba de dias deitava a mãe velha e tonta na cama e aquecia-lhe o caldo da panela. (De O Mistério do Paço do Milhafre, 1949) 69 JOSÉ RODRIGUES MIGUÉIS (1901-1980) Na diversidade das linhas de transição da novelística portuguesa ao longo dos decénios medianos deste século, oscilando entre o psicologismo e o realismo social, a obra de Rodrigues Miguéis singularizou-se pela superação dessa antítese ou combinação coerente das suas directrizes. Depois duma fugaz experiência de sugestão dostoievskiana com a novela Páscoa Feliz (1932), em simultâneo com actividades de pedagogo e de jornalista político o escritor teve de exilar-se nos Estados Unidos, com frequentes visitas a Portugal depois da II Guerra, mas só em 1946 voltou a publicar obra de ficção: o volume de contos e novelas Onde a Noite se Acaba, inicialmente publicada no Brasil. Outro intervalo longo se seguiu até à edição dos contos e novelas reunidos sob o título Léah (1958). Daí por diante foi Rodrigues Miguéis autor de contacto assíduo com o público, lançando em Portugal sucessivos romances, entre os quais Escola do Paraíso (1960) e O Milagre Segundo Salomé (dois volumes, 1975), narrativas de cunho autobiográfico e até policial e colectâneas de contos e novelas como Gente da Terceira Classe (1962). Neste livro, designadamente, predominam os temas ficcionais relacionados com a emigração portuguesa para a América do Norte. O processo naturalista na efabulação, vindo do final do século XIX, foi renovado por este Autor na descrição rigorosa de costumes – ou de emigrantes ou colhidas com frequência na evocação da vida lisboeta que conheceu na juventude. Essa observação minuciosa e estrita, porém, foi enriquecida pelo escritor com uma visão dramática dos caracteres e dos conflitos humanos, de que se desprende muitas vezes um timbre sarcástico subtil. O delineamento de tipos portugueses característicos não se reduziu, na descrição e análise de Miguéis, a esquematismos deformados. Está sempre nela associada, como acentuou David Mourão-Ferreira, «a um pensamento social definido mas vasto, uma imaginação psicológica libérrima e autónoma». Por isso a sua denúncia das opressões sociais e das injustiças, muitas vezes configuradas 70 como frutos inelutáveis de destinos colectivos sem remédio, não assume cunho panfletário nem politicamente intencionalizado. A observação exacta, servida por uma linguagem precisa, clara e sem especiosismos lexicais ou de composição, é o valor maior na criação ficcionista de Rodrigues Miguéis. 71 O VIAJANTE CLANDESTINO Nesse ano – hoje tão distante no tempo e nos usos dos homens, que por vezes julgamos viver noutro mundo – o Dezembro correu muito menos frio do que habitualmente ao longo da costa do Atlântico: nevoento e chuvoso, e morno até, como se a corrente, vinda lá de baixo, do Golfo, antes de se alongar a caminho da Europa, tivesse querido acercar-se do litoral para o aquecer e abrigar melhor das águas gélidas que descem da Gronelândia. O Natal estava à porta, e a neve sem chegar. Ora, um Natal sem neve nem frio não é festa nem é nada. Não rangem trenós nas encostas e caminhos, não se vêem homens de neve com um chapéu velho na cabeça e o cachimbo entre os dentes imaginários, não há batalhas de bolas de neve, e nos tanques e lagos, que não gelaram, não pode a gente patinar de mãos dadas, com as faces vermelhas, o cabelo solto, e o cachecol a esvoaçar ao vento; não há gritos de júbilo e susto no ar cristalino, nem o tinir das guizalhadas – Jingle bells, Jingle bells, Jingle all the way... – que enche as noites estreladas dum eco de tempos lendários. Nos relvados, em frente das moradias, as árvores de Natal não espalham na alvura fofa do chão os reflexos silenciosos e multicores das suas luminárias, a sugerir calor, intimidade e hospitalidade. A natureza escura e molhada, a névoa e a chuva, os arvoredos hirtos e desnudadas, tudo amortece o resplendor das casas, e abafa os repiques dos campanários, que de outro modo encheriam a vítrea sonoridade da noite. Através das janelas irrompem no escuro os doirados clarões da festa; lá dentro, 72 há sempre o mesmo entusiasmo e a mesma gula pelos presentes do Santa Klaus, empilhados em torno da árvore fulgurante de luzes, nas suas embalagens de luxo e fantasia. E o viajante solitário e sem família que passa na estrada pode entrever com melancolia os pares que dançam, ou os rostos saciados e felizes em volta da mesa bem guarnecida, a que preside um gordo e tostado peru. O Natal fica doméstico e recolhido, e perde a alegria pagã que ecoa de risos e apelos juvenis nos bosques e nos vales. Não, um Natal sem neve, um Natal que não seja «branco», não é festa nem é nada: parece um Thanksgiving que se atrasou no calendário. Ora isto deu-se (ou melhor, começou) em Baltimore, que é uma cidade algo sombria, pacata e ordeira, embora muito menos triste do que a visionou o nosso Poeta – «cidade triste entre as cidades, ó Baltimore!» Ou talvez os seus sinos tenham esquecido a rima do sinistro Never more, never more, que ele julgou ouvilos clamar, ecoando o Poe. É preciso sair do centro, e percorrer os subúrbios, para se encontrar a atmosfera própria da «estação festiva». Quanto aos cais, são soturnos, caóticos, confusos, e aqui e além ameaçam ruína os hangares e barracões grisalhos, como velhos pardieiros ou igrejas rústicas abandonadas. São tristes os portos decadentes, sobretudo de noite e nas épocas de crise! Mas respira-se uma poesia sugestiva nestes molhes de estacaria luminosa e negra, onde as marés, cansadas e oleosas, vêm bater de manso o ritmo da sua canção de amor à terra. Há cidades que parecem viver na intimidade dos dramas e segredos do mar; onde este está sempre presente, em convívio com os homens. E nada fala tanto ao coração do errante solitário, como este apelo eterno do mar, junto aos cais. Foi a um destes molhes meio esbarrondados que o navio atracou pela manhã de vinte e quatro de Dezembro, vindo do mar aberto e azul, da África e dos trópicos. Era um velho cargueiro esgalgado, de alta chaminé enfarruscada, com grandes remendos no casco a desfazer-se em ferrugem, e a linha de flutuação muitos palmos acima das ondas: uma dessas ruínas obscuras que singram vagarosamente os sete mares do mundo, coxeando em busca de freguês, com roupas mal lavadas a enxugar pelos cordames, e alguns marujos esquálidos acotovelados às amuradas, a olhar a terra estranha. Um navio, em suma, que podia ter inspirado um conto triste a Joseph Conrad ou a Pierre Mac Orlan. A sua carga era pobre e variada: óleo de palma, cocos, bananas verdes em começo de putrefacção, amendoim, duas dúzias de fardos de algodão, e um macaco mais ou menos domesticado, que adoecera em viagem e gemia numa cama de trapos, com febre, queixoso da invernia. Também vinha a bordo um passageiro, um só, de que não rezavam os livros de navegação e que não pagara a passagem, entregue ao cuidado cúmplice de 73 dois marinheiros: escondido nas entranhas gemebundas do calhambeque, num cubículo sem ar nem luz, junto das carvoeiras, na companhia das ratazanas. Quem era e donde vinha ele? Ah, mas são perguntas, essas, que se não fazem nunca a um destes homens magros, de rosto antes do tempo engelhado pelos trabalhos, as privações e os ventos forasteiros, com os olhos negros a luzir sombriamente de medo e desconfiança no fundo das órbitas encovadas. Viria de Marrocos, valhacouto de tantos desgraçados? das Ilhas Perfumadas? da Costa d’África? Ninguém o diria, nem que o soubesse, e ele menos que ninguém. A ilegalidade tem as suas leis, a sua moral e as suas combines, e o silêncio é a regra de ouro dos pobres deste mundo. Quem o pusera a bordo? Quem o mantinha e sustentava ali, durante a noite, em segredo, com os restos miseráveis do rancho da tripulação meio andrajosa? – Mistério, mistério! A solidariedade é outra lei sagrada entre os homens que vivem à margem da vida. Tinha embarcado pela calada da noite nalgum porto desolado das Áfricas ou dos Arquipélagos, e é tudo. Alguém o tinha guiado em silêncio no labirinto ressonante do cargueiro, e ali o deixara como um rato de porão. E ali, na sombra sufocante, tinha transposto as claridades sem limites do oceano tropical, para dar entrada no Inverno americano. O «Maria Alberta» – chamemos-lhe assim, escondendo-lhe o nome verdadeiro e a matrícula – cumpridas as formalidades da lei, despejou no cais deserto e cinzento a escassa mercadoria. Os guindastes e cabrestantes rangeram, as roldanas guincharam nos cadernais, os botalós descreveram no ar baço a sua incerta acrobacia, e os fardos, caixotes e engradados deram entrada nos hangares varridos de ventania. A noite chegou cedo, e tudo recaiu no silêncio. Os guardas e funcionários do cais foram-se quase todos embora, e o «Maria Alberta» sumiu-se no esquecimento e na obscuridade, como um cavalo cansado e lazarento ao fundo duma estrebaria. Era a véspera de Natal, e cada qual procurou o seu conchego, a família se a tinha, ou o recanto enfumarado dum bar de tectos baixos, com mulheres esgrouvinhadas e descoloridas sob a maquilhagem, a beberricar whisky de má raça e a meter moedas num juke-box trepidante de melodias quentes e ensolaradas, de Califórnias e coqueirais que só existem no sonho e no celulóide. Para os homens que rastejam à superfície do globo e da vida, de porto em porto como se pátria nenhuma os aceitasse, não há outro refúgio senão esse: e no fim, uma cama de aluguer e uns braços de empréstimo. O silêncio escorreu sobre os molhes e hangares, raras luzes brilhavam, poucas conseguiam vencer a espessura da névoa a desfazer-se em chuva. Os mastros dos cargueiros atracados em feixes perdiam-se no céu encarvoado. Mas a neblina cria sempre, em volta dos portos, um manto de abrigo e clandestinidade. 74 O capitão desembarcou à paisana, e foi à sua vida: tinha uns negócios quaisquer a tratar em Filadélfia. Atrás dele foi-se o imediato, depois alguns oficiais e pilotos, o enfermeiro, e até marinheiros. Alguns deles levavam uma garrafita duma aguardente intragável, a que chamavam brandy, com que esperavam lubrificar a boa vontade dos funcionários da Alfândega, de modo a passarem sem a apalpação da ordem nem a inspecção aos embrulhos. Os funcionários, quase todos irlandeses, nutridos, bem pagos e agasalhados nos seus quentes e macios uniformes, olhavam com um misto de dó e espanto ou ironia aqueles pobres marítimos magrizelas e mal barbeados, que tiritavam dentro das farpelas de ganga ou cotim desbotado, com remendos, raros deles envergando um jaquetão razoavelmente coçado, e com a gorra de malha ou a boina basca na cabeça. Que diacho de candonga é que eles podiam transportar? Nenhum trazia com certeza ouro, diamantes ou coca.... Aceitavam a garrafita e deixavam-nos passar: «Merry Christmas!» Depois voltavam ao seu póquer, ao cachimbo e ao copo de bourbon. Os marujos sorriam, humildes, esfregavam as mãos enregeladas, e desapareciam no escuro, com as calças enrodilhadas nas canelas, convencidos de que tinham ludibriado a vigilância do Departamento do Tesouro. E que iam eles fazer na terra dos dólares, em noite de Natal, com as suas pobres roupas e os seus magros bolsos de embarcadiços? O passageiro tinha subido, já noite fechada, das entranhas da carvoeira, para se esconder numa clarabóia do convés, sob a qual havia espaço para um homem se deitar, como num esquife. (Já ali tinham viajado outros, durante dias e até semanas, e um deles, por sinal, apanhado pela dura invernia do Norte – os cordames eram estendais de gelo! – com as roupinhas leves em que vinha do Brasil, ficara tolhido para o resto dos seus dias.) Não comia desde que, manhã cedo, lhe tinham levado o café amargoso e a bucha do pão; a fome roía-o, e depois do calor abafante das caldeiras, o frio húmido da noite inteiriçou-o. Ali encaixado, ouviu vozes de comando, risos, passos de homens que desciam a prancha, os ecos de ferro do navio despejado. Esperou que, tudo sossegado, o viessem pôr em liberdade. Mas o tempo corria, naquela imobilidade, e a impaciência dele cresceu: Que raio esperavam eles para o tirar da toca? Iriam esquecê-lo, deixá-lo a bordo sozinho, metido naquela urna a morrer de fome e de frio?... Haveria dificuldades imprevistas ao seu desembarque?... A noite avançava com um vagar exasperante, e ele tinha pressa. Apertava ao corpo, para se aquecer, o saco onde encerrara os parcos haveres. Tinha entrevisto na noite, ao chegar ali, os perfis dos barracões do porto, mais longe fábricas, prédios, o clarão mortiço da cidade. Estava na América,a dois passos do trabalho e do pão, a um salto do seu destino. E o coração batia-lhe de 75 anseio. Já tinha regularizado contas com os marujos que o tinham posto a bordo, escondido e alimentado. Se havia mais alguém por trás deles, isso não era da sua conta. Restavam-lhe algumas dolas no fundo de um bolso das calças. Junto delas, retinha na palma da mão suada um papel puído, com um endereço, esse ponto perdido na imensidade da América desconhecida: Patchogue ou coisa assim, para lá de Nova Iorque, em Long Island, a quantas léguas seria aquilo de Baltimore, e quanto teria ele que palmilhar às cegas, para alcançar o seu destino?! (Se lá chegasse...) E uma data de números, de portas e ruas, isso ele não entendia, não entendia nada, não sabia patavina de inglês, só sabia que estava ali à espera que dispusessem dele, para começar vida nova, ou então... Sozinho, diante do desconhecido. Não conhecia ninguém, nesta terra envolta em noite e humidade. Inquietava-o pensar em tudo isso, ali imóvel, impotente, com o coração do tamanho dum feijão a zumbir-lhe no peito apertado. Sonhava com a América havia muitos anos. Vinha em busca dela como, quatrocentos anos antes, e mais, os seus antepassados (isto é um modo de falar) tinham andado em demanda da Terra Firme, do El Dorado e do Xipango. Esses porém eram felizes, não precisavam de passaporte, o mundo era então um mistério aberto à curiosidade e ambição de todos! Ele viajava escondido, embora não buscasse oiro nem prata nem pimenta. Tinha dois braços, sabia pegar numa enxada ou picareta, queria trabalhar. E se o oiro não andava agora aos pontapés, quem caminhasse de olhos no chão ainda podia topar aqui e ali com algum penny perdido – assim tinha ouvido dizer a um trangalhadanças dum alemão que da América voltara com dois patacos, e ele conhecera algures. A lenda do Novo Mundo ainda não tinha morrido no coração, ou seria no estômago?, dos homens. Para alcançá-lo tomara pelo caminho mais curto, que é quase sempre o mais arriscado: a clandestinidade. Assim viera meter-se a bordo deste cargueiro de má-morte, um calhambeque a desfazer-se em ferrugem, asmático e claudicante. O tempo correu e ele dormitou. De repente acordou sobressaltado, e enclavinhou as mãos no saco. Uma voz rouca segredava-lhe ao ouvido: – Salte cá para fora, Seu Tomé! A clarabóia estava levantada. Atirou com as pernas entanguidas para fora do esquife, mas quando se quis pôr em pé elas recusaram-se a aguentá-lo; doía-lhe a barriga, tinha a bexiga a arrebentar, e uma sede de morte. – Não me posso mexer! O marujo murmurou qualquer coisa que ele não ouviu bem, uma praga com certeza, e pôs-se a esfregar-lhe com vigor as costas, as pernas e os braços. – Beba lá um gole de cachaça. Aqui é que vossemecê não pode ficar. Veja se se despacha, temos que aproveitar esta aberta, enquanto não anda nenhum guarda no cais. 76 Bebeu, sentiu um pouco de vida voltar-lhe aos membros, e pôde enfim andar. Foi verter águas junto dum turco dos salva-vidas. O outro fumava, impaciente, escondendo a brasa do cigarro na concha da mão morena. – Pegue lá uma bucha prà viage. E agora tenha cautela, há? Palpou o embrulho morno do farnel que o marujo lhe meteu na mão, e encaminhou-se atrás dele para o castelo da popa em trevas. Tinham retirado a prancha, mas nem que ela lá estivesse: mesmo àquela hora adiantada era perigoso desembarcar a descoberto. O que ele tinha a fazer era transpor a amurada e descer por um cabo da amarração, como uma ratazana. Chegara o momento difícil. Mas uma vez no cais, olho atrás olho adiante, cosido com as sombras e as paredes, fazendo-se parte delas, era sumir-se no desconhecido, e estava livre. – Meta o farnel no saco, homem. E pendure-o do pescoço, como é que você quer descer assim? Não tenha medo, agarre-se bem e ande prà frente. Trocaram um aperto de mão. O clarão frouxo da cidade, a distância, enegrecia mais, por contraste, as vizinhanças. Ajeitou a trouxa ao pescoço, e sentiu-se pálido. A que altura estariam do cais? O marujo segurou-o, ajudou-o a transpor a amurada fria e molhada, e ele agarrou-se à corda com força. Ouviu em cima um murmúrio: – Boa sorte! Vá com Deus. Ficou sozinho, encangonchado no grosso cabo, áspero e encharcado. Alguns metros abaixo dele, invisível, era o cais, a terra firme, a liberdade, o pão amassado com o suor do seu rosto. Saberia alcançá-lo? Coragem! Sim, mas tinha o comlicença que não lhe cabia nele uma agulha. Era como se estivesse entre mar e céu, com o Credo na boca por todo amparo. Devagar, com o saco pendurado ao pescoço a embaraçar-lhe os movimentos, e de pernas ensarilhadas, deixou-se escorregar. A palma das mãos ardia-lhe na aspereza do cabo. O peso do corpo puxava-o para o lado inferior, mas ele era magro e lá conseguiu resistir à gravidade e manter-se equilibrado a cavalo na amarra. Diante dos olhos só tinha agora o casco negro do navio, que não conseguia desfitar, como se a ele se quisesse prender pelo magnetismo da vista. A água clapotava contra a estacaria, que rangia brandamente. Aquela água era agora o seu terror, e talvez viesse a ser o seu túmulo. Se a olhasse podia-lhe dar uma vertigem, e então... Pela posição e balanço mais amplo do cabo percebeu que ia a meio caminho. Mas nem podia olhar para trás, nem via um palmo adiante do nariz, além do negrume do casco. Deixou-se escorregar mais um pedaço, com dificuldade, porque o cabo se aproximava da horizontal, e, segurando-se com firmeza, saltou e agitou uma perna, à procura do contacto com a terra. Mas esta devia estar 77 ainda fora do seu alcance. Descansou um migalho. O suor escorria-lhe na cara e no pescoço, encharcava-lhe as costas. Se agora caísse, era verdadeiramente um homem ao mar: ninguém dava por isso, e que dessem – de bordo ninguém lhe acudia. Nem do cais deserto. No dia seguinte, ou só Deus sabe quando, o cadáver seria pescado, meio roído dos peixes e dos caranguejos, ou inchado e fedorento, a escorrer água e lodo. Se o fosse!, porque também podia ir pelo mar abaixo... Seria mais um desaparecido, ou um cadáver anónimo, sem parentes, amigos nem conhecidos que o viessem identificar e reclamar. Longe, a família, à qual não escrevera em dois anos, continuaria por mais algum tempo à espera dele, ou de notícias: mas acabaria por esquecê-lo. De bordo ninguém dava por nada, ou calavam-se. Quanto aos destinatários, lá em cascos de rolha, que lhes importava? Nem sequer o conheciam. O comentário indiferente – «Aquilo, se calhar o homem nem chegou a embarcar!» – seria todo o seu responso e epitáfio. Era como se nunca tivesse existido. Impelido pelo súbito terror de não existir, escorregou mais, tornou a agitar a perna, em vão. Agora o corpo, na horizontal, e a oscilar com a amarra, não podia arrancar-se à gravidade nem recobrar a verticalidade. Ainda que o pé esbarrasse na beira do molhe, como é que ele ia soltar-se, dar uma reviravolta e um pulo, para cair em pé? Nem pensar em pendurar-se pelos braços: ficaria abaixo do nível do cais, e então é que não havia esperança. Não ousava desenvencilhar-se da espia que o prendia à terra e à vida, para se endireitar e dar um salto. Nem sequer podia virar a cabeça para avaliar a que altura estava. Mais alguns minutos, que tanto lhe durariam as forças, e a queda era fatal. Teve a clara visão do seu estado – a boca negra da morte à espera dele, em baixo, como um tubarão insaciável – e intimamente amaldiçoou a hora em que lhe dera para se meter nestas andanças: se não era marujo, não sabia trepar uma corda nem sabia nadar! Suspenso entre dois nadas. Encolheu-se todo e, com um esforço desesperado, conseguiu deslizar mais um pouco: o pé tocou por fim na beira do molhe, e um bafo de lume veio-lhe dele, subiu-lhe os membros, reanimou-o como um calor de ressurreição. O cais, molhado e escorregadiço, estava ao seu alcance! Mas por baixo era ainda o abismo de água. Encavalitado na amarra, crispado e dorido, desembaraçou a custo a outra perna, e agitou-as ambas, à procura de apoio. As solas delgadas patinavam na viscosidade do madeiramento gasto, ou no rebordo de aço. Se tentasse firmar-se nelas, podia escorregar, perder o suporte do cabo, e dar o mergulho definitivo. A suar em bica, trémulo do esforço, ficou com as pernas pendentes e imóveis. Voltar para cima, nem pensar nisso: já não tinha forças para marinhar, e que as tivesse, a bordo não o deixariam entrar nem ficar. Agora era respeitar o contrato, 78 e escapulir-se ou morrer. Como uma mosca teimosa, que se agita para escapar à armadilha, tornou a fazer esforços para se apoiar no cais, e soltou uma praga em voz alta: – Oh rais ta parta a minha sorte! Nesse instante sentiu que alguma coisa de duro, mão ou tenaz, o agarrava com violência pelos rins, dando-lhe a sensação dum ferro em brasa, e teve este pensamento de renúncia «Estou catrafilado!» Mas, é curioso, recobrou simultaneamente a calma e a esperança. O que quer que fosse puxou por ele com força, e ele deixou-se levar passivamente, até que, com o cordão do saco a estrafegá-lo, conseguiu endireitar o corpo e firmar-se nas pernas bambas. Aquela mão de ferro, invisível, arrepanhavalhe as roupas e as carnes, macerando-o e magoando-o. Depois, com um safanão supremo, quase o ergueu do chão e fê-lo dar uma reviravolta. Levantou os olhos e viu diante de si um grande vulto negro, um capote de oleado reluzente de chuva, uma farda com botões de metal e uma chapa cor de prata. O agente da polícia inclinou para ele o rosto vermelho e robusto: – Stowaway, eh? – e sacudiu-o com energia, como se o quisesse despertar do torpor. – Passageiro clandestino? – repetiu, e riu-se. – You speak English? Que pode um homem dizer em tais circunstâncias? Tinham-lhe recomendado: «Haja o que houver, não abra bico. Faça-se de trouxa.» Mas com aquela mão brutal não se brincava, e ele respondeu: – Eu não espique inglish, eu não espique! O agente largou uma risada de gozo e tornou a sacudi-lo: – No eespeek! No eespeek! Tinha um hálito quente, de tabaco e whisky. Na fria humidade de Dezembro, um homem precisa de alguma coisa que lhe aqueça as entranhas, para andar assim de ronda pelos cais desertos, entregue aos seus pensamentos. Depois, na noite de festa, de porta em porta ao longo das tabernas e saloons da borda-d’água – Merry Christmas, Mack! – há sempre quem tenha uma franqueza com a Autoridade, e a gente não é de pau, nem pode fazer uma desfeita, recusar... A verdade é que um trago ou dois dispõem muitas vezes um homem a ser mais tolerante com as fraquezas humanas. Ficaram assim um pedaço, frente a frente, ele à espera, a contar os minutos de vida, e o agente talvez a dar balanço à situação, a macerar-lhe devagar o ombro magro na tenaz de ferro da manápula, e repetindo a meia-voz: – No eespeek, no eespeek... Pequeno como um murganho, a tremer de medo e frio na fatiota leve, à espera da sentença – quem sabe até se o guarda, enraivecido, não lhe ia dar um empurrão, 79 atirá-lo à água? – o passageiro clandestino olhava fixamente os botões da farda, o cassetete comprido e polido. O agente disse ainda qualquer coisa que ele não entendeu, e apertou-lhe os ombros com mais força, a tactear-lhe os ossos, talvez a ensaiar esmagar-lhos pelo simples prazer de exercer forças naquela fragilidade. Depois, de repente, obrigou-o a dar meia volta, de cara à terra, apoiou-lhe a mão enorme e espalmada nas costas, e empurrou-o: – Now run! Não precisou de entender, e correu: correu sem saber aonde ia, nem se o guarda lhe ia dar um tiro pelas costas como a um ladrão das docas que desobedece à ordem de Alto!, ou se realmente o mandava embora, livre, sem o prender nem o forçar a regressar a bordo. Correu às cegas, a mastigar palavras sem tom nem som, a esbarrar em paredes, a trepar em caixotes, em fardos, em cordames, em máquinas, confuso e perdido, incapaz de encontrar a saída daquele labirinto. Foi quando a voz do polícia lhe atirou à distância, pela rectaguarda: – Hey! Merry Christmas!... O clandestino estacou, compreendendo vagamente, e só nesse instante se lembrou que era Noite de Natal. Então com a garganta apertada, a rir e a chorar, transpôs umas calhas ferroviárias, pulou uma vedação de rede de arame, e deitou a correr em campo aberto, nas trevas. De longe, o clarão agora mais vivo da cidade guiava-lhe os passos, como o reflexo de misteriosa estrela oculta, ou de lareira acesa, chamando-o à consoada. (De Gente de Terceira Classe, 1962) 80 DOMINGOS MONTEIRO (1903-1980) É uma personalidade literária particularmente bem marcada como contista, pela prontidão com que condensa em narrativas muitas vezes breves um caso humano, um episódio inesperado ou um estado acidental de consciência, a que Domingos Monteiro definiu em obra vasta e primacialmente confinada no género. Foi numa dolorosa experiência vivida que encontrou matéria de observação ambiental e psicológica para o seu primeiro livro: Enfermaria, Prisão e Casa Mortuária (1943). Mas, nascido e muito convivido em terras serranas de Trás-os-Montes, conservou desse fundo rústico o gosto pelos temas, meios sociais e mentalidades da região. Assim conjugou um realismo por vezes agreste com a expressão sentimental em que a gente camponesa envolve as suas típicas maneiras de idealização da realidade e, sobretudo, a sua propensão para o fantástico e o maravilhoso. Desse sedimento, intercalado pela descrição de casos não regionalizados, alargando-se do elementar ao complexo da condição humana, se alimentam, entre vários outros, livros como O Mal e o Bem (1945), O Caminho para Lá (1947), Contos do Dia e da Noite (1952), Histórias Castelhanas (1955), Histórias Deste Mundo e do Outro (1961), O Dia Marcado (1963), Contos do Natal (1964), Histórias das Horas Vagas (1966), A Vinha da Maldição e Outras Histórias (1969), O Destino e a Aventura (1971), O Sobreiro dos Enforcados (1978). O crítico e ensaísta António Quadros salientou especialmente em Domingos Monteiro «o dom natural de contar histórias, a noção do ritmo, a sábia preparação do climax, a possibilidade de criar um espaço imaginário em que o real se apresenta simultaneamente no mais patente e no mais simbólico». Tais características imprimem à arte de narrar deste contista um andamento e um fluxo de realidade evidenciada e de fantasias que tornam mais aliciante a leitura das suas narrativas. Representando uma linha tradicional 81 de temas e de estilo na novelística portuguesa, a obra de Domingos Monteiro assume-se com modernidade na contenção de rebuscados efeitos e na brusca intensidade com que precipita o dramático, o fantástico ou o pitoresco na sequência textual. 82 RESSURREIÇÃO A mulher tirou as mãos debaixo do avental e perguntou numa voz despida de qualquer inflexão amável: – O que deseja? – Depois, atentando melhor na figura miserável do interlocutor, acrescentou, asperamente elucidativa: – A entrada não é por aqui, é pela escada de serviço... Mas o homem não despegava. Tinha uma teimosia humilde e inabalável: – Quero falar ao senhor... Ele é que me mandou chamar... – A si? – Havia uma ironia maldosa na interrogação. – Ah, ele manda chamar muita gente e depois não a recebe... Às vezes é uma romaria... Calou-se um instante e fixou o homem. Nos olhos dele havia uma doçura atenta e compassiva. Parecia-lhe que aquele homem, com o fato remendado, o cabelo rapado, as alpercatas rotas, a tiritar de frio, o ar clássico do vagabundo das estradas, estava com pena dela. Sentiu-se chocada e, ao mesmo tempo, intimidada. A sua vaidade agressiva de porteira de casa rica, diluira-se. Pensou que era absurdo, que era o contrário do que devia ser, mas aquele homem estava com pena dela. Teve um sobressalto de vergonha e inquiriu quase humilde: – É por causa de algum anúncio, não é? – Sim, um anúncio a chamar por mim... Não o li, que não sei ler nem escrever. Foi um companheiro que me disse... – E quem digo ao senhor que é? – Diga-lhe que é Nosso Senhor Jesus Cristo. A mulher afastou-se deixando a porta entreaberta. 83 O homem ouviu o ruído de passos no corredor e depois bater a uma porta. – Está aqui um homem que quer falar com V. Ex.ª. – Quem é? – Diz que é Nosso Senhor Jesus Cristo. – Não conheço... Houve um instante de silêncio e depois, alguém gritou de dentro: – Ah, já sei... Espere... Mande entrar. – Por aqui... Foi guiando os passos do homem até à porta do fundo. – Já aqui está. – Que entre... O pintor ficou a olhar para o homem que acabava de chegar e desatou a rir. – Essa é boa! Essa é muito boa!... Então você julga que... Vestia com o trajo dos artistas de Montmartre – casaco de veludo, o cachimbo ao canto da boca, numa das mãos a paleta, e, na outra, o pincel. A luz entrava diluída pela cúpula envidraçada do «atelier», e caía em cheio sobre o modelo. Estava nua, apenas com um ligeiro sendal a envolver-lhe a cintura e o cabelo negro e comprido atirado para a frente a aflorar as pontas dos seios. Via-se que era uma pose procurada e um pouco artificial. Ironicamente, o pintor fez as apresentações: – O Cristo... A Madalena... – Ó filho, deixa-te de graças... Fecha mas é a porta que estou com frio. Nos lábios deslizou-lhe um sorriso, ao mesmo tempo, impúdico e contrafeito: – Posso vestir-me? – Podes. Num gesto lento foi fechar a porta. – A mim sucede-me cada uma... – Virou-se para o homem e inquiriu: – Você veio por causa do anúncio? Com certeza? Do anúncio em que eu pedia um modelo para o Cristo da minha alegoria: «Nosso Senhor voltou ao mundo»?... – Sim Senhor. – E você, com esses cabelos cortados à escovinha, as barbas rapadas, supunha-se nas condições? Ou pensa que basta ter fome, ter o rosto esquálido e os olhos lânguidos e sonhadores? – Estava agora junto dele e fitava-o curiosamente: – Foi a necessidade apenas que o trouxe, ou quê? Se eu pusesse um anúncio para me passear o cão, você também aparecia, não é verdade? – A voz compadeceu-se: – Eu bem sei que a necessidade não tem lei e é um topa-a-tudo. Em todo o caso... Espere... Ó Zulmira, vem cá... A cabeça da rapariga assomou por detrás do biombo ande estava a vestir-se. – Já vou... 84 Aproximou-se vagarosamente. Vestida, tornara-se numa rapariguinha da cidade, quase insignificante. Uma espécie de vergonha travava-lhe os passos. – Anda cá ver – gritou impaciente. – Tu já viste alguma vez uns olhos assim? – Sentia-se que estava impressionado. – É curioso! Repara bem... Tem o fulgor dos olhos dos grandes iniciados... E a boca, ahn? Que energia e que candura, ao mesmo tempo... E o queixo? Repara bem no vigor e na doçura desta linha... – O entusiasmo caiu-lhe de repente. – Mas sem barba e sem cabelo, nada feito. Não lhe vou pôr uma barba e um cabelo postiços, nem vou imaginá-las... Sou um realista, percebeu?... Preciso de ver e palpar... Só sei pintar assim: com pelos, com carnes, com sangue... Estava encolerizado. – Ó seu idiota!... Porque é que você rapou o cabelo e cortou as barbas? – Não fui eu, foram eles... – Eles, quem? – Eles, os guardas... Falava numa voz clara e harmoniosa, a voz bíblica das parábolas. – Prenderam-me... Disseram-me que era proibido andar a passear pelas ruas, sem fazer nada. Raparam-me o cabelo e cortaram-me a barba. Depois disseram-me que eu era um vagabundo e que se me tornassem a prender, me mandavam não sei para onde. Foi então que um companheiro me disse que o senhor queria falar com Nosso Senhor Jesus Cristo. Foi por isso que vim... – E porque havia de vir você especialmente? – É porque... Sabe?... Eu sou o próprio. – O quê?... Você é o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo? – Sou, embora não me acredite... Mas eu não levo a mal. Já sabia que me ia suceder isto... Foi o que aconteceu da outra vez. Na Judeia também poucos me acreditaram. Foi por isso que me prenderam... e me crucificaram. Mas já lhes perdoei. É a razão porque pedi a meu Pai para me deixar voltar... – Muito me conta... Estás a ouvir, Zulmira? E esta? A rapariga aproximara-se sem dizer palavra. Um fulgor inquieto acordara nos seus olhos e as mãos juntaram-se num jeito de oração. – Aposto, que estás tentada a lavar-lhe os pés com essências e a enxugá-los com os teus cabelos... Em todo o caso, não to aconselho. Ela lançou-lhe um olhar furioso e não respondeu. Depois numa voz suplicante, insistiu: – Conte... Não faça caso do que ele diz. É uma alma perdida... E depois? – Meu Pai não me queria deixar vir: «Não, Meu Filho, – disse-me Ele – é inútil como já foi outrora... E desta vez vão-Te fazer pior. Em vez de Te pregarem na 85 Cruz, terás de arrastá-la toda a vida! Terás de passar por todas as misérias! Hás-de sofrer a tortura da fome e do cárcere, hão-de internar-Te como louco e, o que é pior, não Te hão-de acreditar! Não, não consinto.» Mas eu supliquei: «Pai, a culpa não é deles, é nossa, principalmente Tua...» «Minha!» Não há nada que eu receie tanto como a cólera de Meu Pai, mas estava resolvido a afrontá-la: «Sim, Pai...» Mas Ele, com grande surpresa, interrogou com brandura: «Minha porquê, Filho?» «Porque nunca Te esqueceste de que Eu o era... Porque Me fizeste nascer sem pecado... Porque não Me deixaste correr os riscos dos outros homens e Me deste o poder de fazer milagres... Se não Me sentiam igual a eles, como havia Eu de redimi-los?». «Bem, vai – sentenciou Ele – mas depois não chames por Mim, nem invoques o Meu Nome!» «Não, pai. Suceda o que suceder, Eu não o farei...» – E Tua Mãe? – interrogou a rapariga, ansiosa: – E Nossa Senhora? – Nossa Senhora limitou-se a chorar como todas as Mães quando vêem partir um filho para uma aventura perigosa... Mas não me desencorajou e, pelo contrário, disse-me: «Vai, Filho, é a Tua obrigação! Uma tarefa deve levar-se até ao fim... e Tu ficaste a meio caminho. Estarei sempre a Teu lado!» E agora, sinto que é Ela que me fala pela tua voz... O pintor não desfitava o grupo formado pelos dois. O pincel tremia-lhe na mão e uma emoção violenta penetrava-o. Ah, ele bem a conhecia! Era a inquietação sublime dos momentos de inspiração. Em silêncio, afastou-se e começou a pintar. As figuras cresciam na tela, como que vindas de dentro, e tomavam corpo, tão humanas que quase tinha medo de as magoar. Era um Cristo estranho aquele, curvado sob um fardo e com as mãos cheias de calos, em vez de chagas. Dos olhos esparzia-se uma obstinada ilusão, e o suor escorria-lhe às bagadas dos músculos tensos, mais vivo e mais ardente do que o sangue. Uma figura diáfana de mulher, ia-lhe limpando a fronte, e da sua boca entreaberta nascia uma promessa imaterial de beijos puros. Quando o pintor levantou os olhos do seu trabalho, viu apenas o modelo que o observava atentamente. – E Ele? Ele onde está? – interrogou ansioso. – Foi-se embora... Disse que não te perturbasse e que a sua missão estava cumprida. Que já te tinha restituído a fé em ti mesmo e que, afinal também tinhas acreditado nele... (De Contos do Dia e da Noite, 1952) 86 BRANQUINHO DA FONSECA (1905-1974) Fundador, com José Régio e João Gaspar Simões, da revista Presença, em 1927, e membro destacado do movimento que ela representou sob o signo duma «literatura viva», voltada essencialmente para a análise psicológica e para os contrastes pessoalmente vividos entre a realidade e o sonho, António José Branquinho da Fonseca deu lugar predominante ao conto na sua criação ficcionista. A obra-prima que mais altamente a caracteriza, o Barão (1942), é uma novela de composição densamente trabalhada entre o real e o fantástico; e o romance Porta de Minerva ilustra a capacidade do escritor na construção de narrativas mais longamente estruturada, desdobrando-se em planos múltiplos com todos os ingredientes duma problemática de juventude. Mas foi com o livro de contos Zonas (1932) que deu começo à sua afirmação literária, confirmando-a nesse rumo com Caminhos Magnéticos (1938), Rio Turvo (1945) e Bandeira Preta (1956). Deu com estes livros a medida reiterada duma arte de composição novelística sabiamente ordenada, com delineamento rigoroso e dramatismo ostensivo de personagens e de situações. O desenho narrativo realista é conjugado por Branquinho da Fonseca com atmosferas frequentemente míticas, exprimindo-se numa linguagem finamente irónica ou lírica de grande pureza. A relativa escassez da obra do escritor será, talvez, significante duma lavra lenta e laboriosa em que procurou tenazmente a maior expressividade na maior depuração formal. Por esse rumo de artista literário exigente, que o situa ao nível de qualificados escritores europeus e americanos da sua época, evidenciou «o poder de sugerir um halo de mistério, de medo ou pesadelo indefinido, de constante surpresa na perseguição de um imprevisto ideal» que Óscar Lopes lhe atribuiu com justeza. E esse poder sugestivo foi posto à prova com idêntico conseguimento nos temas de ambiente rústico ou de ambiente citadino e ilocalizado, por vezes transpostos identicamente para um espaço imaginativo em que é dada a essência do «caricatural poético» ou do «lirismo no 87 grotesco», como José Régio acentuou relativamente a O Barão. Branquinho da Fonseca é, reconhecidamente, um dos ficcionistas portugueses contemporâneos com mais evidentes virtualidades de divulgação internacional, ainda não realizada. 88 HISTÓRIAS DA MEIA-NOITE – ... Serra negra, que onde não é pedra é urze e tojo... Tem pouca roupa como os pobres... E no Verão vêm os sóis queimar-lhe as costas, no Inverno, as pedras, que são os ossos, estalam do gelo e o vento canta a moliana a quem não se ativer a uma gabela de lanhiço. Hoje está branca dum camadão de geada, que dá gosto a gente chegar-se aqui à fogueira que ferve o caldo. Os lobos lá andam, a esta hora, batedores de ladeiras, até se desenganarem e descerem aos povoados onde agucem o dente... Está a fazer seis anos, dormi eu na toca dum castanheiro... – O menino quer freiras? – interrompia a criada velha, farta daquelas bazófias. Pedro, o filho dos patrões, com os seus catorze anos, tinha já uns modos de homenzinho e dava pouca confiança a velhas tontas. Para não interromper a treta do João Meco, só abanou com a cabeça, que sim. E a velhota, com um punhado de milho na mão, limpou da cinza o granito quente e atirou para a pedra requeimada os grãos que iam abrir em flor branca. João Meco não perdeu o fio ao discurso e voltou à história: – O patrão disse-me assim: amanhã vais ao pinhal da Sancha e marcas o desbaste. Ainda a madrugada não apontava nas tralhiscas, saltei da cama, peguei da roçadoira e ala, fajardo! – Lá estás tu a rasgar baeta!... – disse o moço dos bois, a entrar na cozinha. – Não estou, não. Há quem seja mais gabarola do que eu... – Essa não é pra mim. E olha que trago que contar: vi agora um fantasma. O rapaz da Ilda não podia ser, que o namoro acabou... A rapariga olhou-o com desprezo e baixou-se para apanhar dois grãos de milho que tinham estoirado. Mas a velha comentou: 89 – Não venhas já com invenções de tolo... – Eu?... (E acrescentou com ironia:) Não há fantasmas e almas do outro mundo? Então a mão cortada do Januário? – Pois sim... Mete-te com a tua vida. – Nega que contou? – Nego-te a ti, diabo negro. João Meco, interrompido em sua prosa, cortou a discussão: – Vocês não me dão licença que fale? – Espera aí que não abafas. E voltando-se para a velha, o moço dos bois, com o mesmo sorriso de troça, intimou: – E a alma do Elias Gordo? – Nem magro... – Eu lhes conto... O Januário era um criado cá de casa, antes de vocês. Ora uma certa noite houve mister de ir ao moinho e ali a ti Leonor desafiou uma mocita que também cá estava, para irem as duas com ele ao passeio. Estava uma noite negra, que não se via um palmo à frente do nariz. Iam passadas. Mas não queriam dar parte de fracas. E o Januário começa a moê-las com histórias da meia-noite... A candeia não dava luz, e elas abraçadas uma à outra, de cambulhada, e a rirem pra fingir... A lanterna, negra do fumo, alumiava cegos e só mexia sombras... E ele a dizer que se tinha trazido a luz não era para ver o caminho, que o passava de olhos fechados, mas para os lobisomens verem que era ele e fugirem a tempo. Neste comenos iam a chegar ao moinho e começam a ouvir um grande gemido, que elas as duas ficaram com o sangue coalhado. O Januário sabia o que era, mas fez-se lãzudo. – «Há-de ser o eixo da mó... Torceu com o peso da água... Ou não será?...» Nem bulia ponta de aragem e quando ele abre a porta do moinho vem de lá de dentro um sopro e apaga o raio da lanterna... – Foi mesmo verdade. – Ah! santinha! Quem diz que não? Eu estou a rir porque me rio só do que não deve ser... Diz vossemecê. – E digo. – Então deixe rir... Pois apaga-se a lanterna e ali a ti Leonor dá um grito e vai para se abraçar à Gracinda. A gente não pode pensar que era o Januário que se queria abraçar a alguma delas. O caso é que a tal Gracinda tinha desaparecido e não podia ter caído ao rio, que havia ali um muro. O Januário viu o caso mal parado e entrou no moinho para encher a taleiga. Nisto, a nossa ti Leonor sente uma coisa a mexer-lhe nas pernas e desalvora aos gritos. Valeu o Januário segurá-la, que ele segurava bem as raparigas, e explicar que era o cão, o Piloto... que nem ali estava... 90 – Pois não estava, não. Ri-te, que também há-de haver quem se ria de ti. – Pois há-de... Mas deixe contar, ah, santinha!... E ele lá traz a ti Leonor prò moinho, mais morta que viva. Mas mal ela entra, sente um puxão na saia. E o Januário a explicar que tinha sido entalada na mó... – E também não foi verdade que ele saiu de lá com a mão cortada cerce, que toda a gente disse que só podia ter sido com um machado? E ao outro dia alguém viu na mó sinal de sangue? Cala-te lá! Deixa estar a verdade quieta onde ela está. Valha-te o poder de Nosso Senhor Jesus Cristo... – Aí está que foram fantasmas ou almas do outro mundo. É esta a sua verdade?... Pois onde as houver, dessas almas, vou eu lá e trago um saco delas. Ah, tiazinha! Temer é dos vivos, cantés dos mortos!... João Meco interrompeu, com seu ar de filósofo: – Eu não acredito em fantasmas... Mas há. – Não acreditas, mas há? Como isso? – Há coisas que a gente pode não acreditar, e havê-las... – Está boa, essa! – Horas do Diabo, isso há... Então em certas noites, por essas serras, é preciso um homem ser afoito. – Quando se leva medo é que elas acontecem. – É certo. Quem anda de noite topa lobo... A quem o dizes. O fantasma da Catraia do Maneta, já eu vi e não fugi. Lá torcer caminho por fantasmas, nunca fui desses. Nem mais nem menos, oiçam bem esta: – Andava eu de boas conversas com uma rapariga de Eirigo, quando, certa noite, o céu caiu desfeito em água, com um estrebuchar de vento que um homem bálhava o vira-virou. Mas estava com a tineta de ir e ia mesmo. Pancada feita vai abaixo. Daqui, são duas horas de serra acima, por caminhos onde Cristo nunca passou. Mas fui. Era uma rosa duma cachopa, que até nem tinha perdão se não fosse. «Ora eu, quando saio aos gambozinos, pego no marmeleiro, que a árvore bem plantada quer a estaca à ilharga. No bolso a sevilhana, e ala, que quem vier encontra firme. Estava uma noite de breu, mais negra que a dos infernos. De bacamarte não era o perigo, que quem mo quisesse apontar tinha de mo chegar ao nariz a cheirar. Quando, ao descer pró rio, pelo meio do pinhal, sinto de repente, por cima da cabeça, o desabar duma carrada de mato. Até me agachei pró chão, Eh! valente!... E ao mesmo tempo olho para cima e vejo uma coisa branca a passar-me ao chapéu. Nem pensei no que fazia, já o varapau ia no ar, e sinto uma pancada nas mãos, que o porrete voou-me das unhas. Logo outra na cabeça, que fico espojado no chão, lá o que era torna a desabar pela rama dos pinheiros abaixo. Aí vem ele. Só podia ser o fantasma do Maneta. O mesmo alvejar do que fosse, 91 até me fez vento à cara. E percebo que era outro corujão que nem um carneiro. Sabem o que fiz? Deixei-me ficar sentado, a rir de mim, que ainda é o melhor que a gente pode fazer em certas ocasiões. «Está de ver que o pau saltou-me das mãos porque arreei com ele num pinheiro, onde logo marrei com a testa, que foi o murro que me tombou. Agora juntem-lhe uma voz a chamar e a gemer na outra encosta, que era um borrego que o Lambicas tinha perdido no monte, e aí têm como elas se inventam. Se juro que era coruja, juro e torno a jurar. Não que visse o passarolo bem visto. Mas era. E dizem que as corujas dão azar! A mim, aquela, deu-me sorte... Ou que fosse fantasma... Tanto monta. – Bazófia é que tu és, João Meco! – Pois sou... Mas não te conto outra, porque então não tinhas nome pra me chamar. Na mão de cortiça, a velha oferecia as flores de neve, os grãos de milho abertos na pedra quente. Pedro começou a trincá-los sem desviar a atenção fita nas palavras do narrador. – E histórias de franceses?... Sabes alguma? – Essas são como as das almas penadas. Conta-se sempre mais uma... O menino há-de ir comigo mas é ao rio, ao Poço de Alça-Perna, para me ajudar a apanhar a caldeirinha de oiro, da moira encantada que está lá no fundo. Pedro, mudo de espanto, abanava com a cabeça, que sim. Mas a velha cortou o sonho: – Não faça caso, menino. Nem a ouvia. E João Meco, em sua alta fantasia, voava já fora de tiro – Há-de estar numa caverna... O rio, ali, faz um poço que não tem fundo. Há quem o tenha sondado com cinco cordas de carro, sem lhe chegar ao fim. Já lá desci duas vezes amarrado com uma pedra ao cinto. Comecei a descer com os olhos abertos, e primeiro só via as raízes das árvores, como cobras negras, e uns peixes pretos que andavam à volta de mim. Depois, a água, mais pra baixo, começou a ser verde e luminosa, com muitas luzes de cor de azul, amarelo, cor de laranja, cor de violeta. E então começaram a sair dos buracos uns peixes grandes, uns brancos, outros encarnados, com uns olhos que deitavam lume ou seriam de diamantes. As paredes do rio, aí já eram de pedra negra, com rosas de prata, e a mim parecia-me que, em vez de ir a descer, ia a subir uma montanha de rochedo, com o sol a nascer lá atrás, pois via-se uma grande claridade. E fui dar a uma gruta que tinha na entrada uns degraus que só podiam ser de oiro, e a gruta por dentro era toda de vidro e tinha estrelas a brilharem. Ia eu a entrar e estavam uns lindos cabelos a ondear na água, e uma mão a penteá-los com um pente de oiro fino. 92 Mas veio uma grande cobra que se me envolveu ao de roda do pescoço, e então dei um puxão na corda, para içarem para cima. Quando me tiraram da água, já não dava acordo, e tiveram-me morto, estendido na erva... – Está visto que tu nem com uma pedra ao pescoço... – Mas enquanto andava lá por baixo, andava bem, como se respirasse o ar... E ainda lá voltei duma outra vez. Então levei uma faca. Mas não vi nada. O menino pode acreditar que nessa hora é que eu tive medo. (E baixou a voz, como quem confessa um segredo:) Era um escuro como se a água se tivesse tornado em tinta, e um frio, que sentia os ossos a estalarem.... Há-de ser este Verão, quando as águas estiverem mais finas, que hei-de lá voltar... – E eu é que te hei-de amarrar a pedra ao pescoço... – prometeu o moço dos bois. – Ao cinto – emendou Pedro com ingenuidade. – Ó menino, para ele é melhor ao pescoço. E uma mó do moinho. – Vocês acreditam em almas do outro mundo e não acreditam em moiros, que foi um povo que já houve antigamente? Aí está como é o vosso juízo. – Tanto sei que há moiras e moiros, que sei que tu és um, e não te deitam a cabeça num cepo prà cortarem e porem-te lá outra melhor... – Mas tenho palavreado pra te vender numa feira... – Lá isso és capaz: de enganar alguém... – resmunga a velha. – A si já não, ti Leonor. – Brinca com as da tua idade. – Brincar? Não que elas querem-me logo a sério. Quanto lhe devo do conselho? – Tenho mais pra te dar. Pagas no fim. E toca a andar, que são horas. Quero deixar a fogueira apagada. Estás a desafiar uma criança pra ir pró rio com cordas, à procura das caldeirinhas de oiro, e não queres que te chamem ao menos maluco? – Eu quero... Se fosse igual aos outros, sem pensar em fantasias, é que era um triste desgraçado. Hei-de desencantar a moira e entrar por aquela porta com ela na minha frente, pra vocês verem o que é uma rainha com o manto de seda e a coroa de lumes... E eu com a caldeirinha de oiro cheia duma água de onde você bebe um golo e fica logo uma rapariga de dezoito anos, capaz de um fantasma me cortar a mão como ao Januário... E o menino, se descobrir alguma moira encantada, conte-me tudo, que eu acredito. Não acredito é em quem só vê as coisas que toda a gente pode ver... e não arrisca nem um dedo à chuva... Boa noite! 93 Veio uma rabanada de vento, quando se abriu a porta da rua. E João Meco saiu para o escuro, a assobiar, feliz e aventuroso, como se, desaparecendo nas trevas da noite estrelada, entrasse, com seu passo natural, no encantado mundo das grandes maravilhas. (De Bandeira Preta, 1956) 94 MIGUEL TORGA (1907-) O nome literário Miguel Torga é o pseudónimo de Adolfo Correia da Rocha, nascido de modestos lavradores de Trás-os-Montes, emigrante e trabalhador no Brasil aos treze anos, formando-se depois em medicina na Universidade de Coimbra e desde então exercendo clinica. Fez parte por algum tempo do grupo da revista Presença no início da sua vida literária, durante demorados anos confinada quase em exclusivo à poesia. Foi neste género que a sua forte personalidade de escritor se afirmou com maior relevo na literatura portuguesa deste século e, como caso raro, ganhou maior projecção internacional, representada em importantes prémios e homenagens recebidos no estrangeiro. Como prosador, a autobiografia A Criação do Mundo (4 vols., iniciada em 1937) e a miscelânea de memorialismo, divagações íntimas, impressões de viagem e poemas avulsos intitulada Diário (13 vols., publicados desde 1941 até 1983) deram-lhe lugar de relevo pelo estilo muito pessoal e pela intensidade da extroversão escrita da vida interior. Intentou o romance (O Senhor Ventura, 1943, e Vindima 1945) mas sem grande êxito e pouco acrescentando de significativo à obra de poeta e prosador. Foi como contista, de facto, que melhor assinalou a sua qualidade na ficção, muito vinculado nos temas e ambientes à radicação do homem na natureza e transfigurando esse fundamento telúrico pelo dramatismo consubstanciado nas motivações humanas, bem como pelas implicações simbólicas e poéticas da linguagem. Uma directa rudeza poetizada pelo inocência vital e pela resistência às fatalidades opressoras é o timbre dominante nos contos de Bichos (1940), Contos da Montanha (1941), Rua (1942), Novos Contos da Montanha (1944), Pedras Lavradas (1951), etc., em que as personagens – homens ou animais – tipificam o que é mais autêntico e visceral na vida e o que há de poderoso à escala cósmica na afirmação individual da liberdade. Como acentuou Jacinto do Prado Coelho, «os casos e figuras ganham um sentido que os transcende», modelando-os o escritor entre 95 a realidade mais áspera e a idealização que lhes imprime grandeza simbólica. O processo de contista de Miguel Torga foi comparado com o de Maupassant; mas a carga significante das situações incursas nas suas narrativas supera o naturalismo e condensa na invenção ou na observação do real uma ética humanista que se defronta com a dramaticidade intrínseca da vida e com o fatum que a rege. 96 O ALMA-GRANDE Riba Dal é terra de judeus. Baldadamente, pelo ano fora, o Padre João benze, perdoa, baptiza e ensina o catecismo por perguntas e respostas. – Quem é Deus? – É um Ser todo poderoso, criador do Céu e da Terra. Na destreza com que se desenvencilham do interrogatório, não há quem possa desconfiar que por detrás da sagrada cartilha está plantado em sangue o Pentateuco. Mas está. E à hora da morte, quando a um homem tanto lhe importa a thora como os Evangelhos, antes que o abade venha dar os últimos retoques à pureza da ovelha, e receba da língua moribunda e cobarde a confissão daquele segredo – abafador. Desses servos de Moisés, encarregados de abreviar as penas deste mundo e salvar a honra do convento, o maior de que há memória é o Alma-Grande. Alto, mal encarado, de nariz adunco, vivia no Destelhado, uma rua onde mora ainda o vento galego, a assobiar sem descanso o ano inteiro. Quem vinha chamar aquele pai da morte, já sabia que tinha de subir pela encosta acima como um barco num mar encapelado. – Raios partam o vento! Mas quê! Do mesmo modo que o Alma-Grande era certo na casa da esquina, sempre ao borralho, era certo o bafo da Sanábria a varrer a ladeira. Diante da casa, bastava gritar-lhe o nome. – Tio Alma-Grande! Ó Tio Alma-Grande! – Lá vai... 97 Daí a nada a tenaz das suas mãos e o peso do seu joelho passavam guia ao moribundo. Entrava, atravessava impávido e silencioso a multidão que há três dias, na sala, esperava impaciente o último alento do agonizante, metia-se pelo quarto dentro, fechava a porta, e pouco depois saía com uma paz no rosto pelo menos igual à que tinha deixado ao morto. Os de fora olhavam-no ao mesmo tempo com terror e gratidão. Às vezes, uma voz ou outra, depois do pesadelo, levantava-se do fundo da consciência e protestava; mas no dia seguinte acontecia ser essa mesma voz que no alto do Destelhado, sobrepondo-se à força do vento, o reclamava. – Tio Alma-Grande! Ó Tio Alma-Grande! – Lá vai... E aparecia à porta logo a seguir. Quando a hora do Isaac chegou, foi um filho, o Abel, que trepou a ladeira. O garoto vinha excitado, do movimento desusado de casa, da maneira estranha como a mãe o mandara chamar o Tio Alma-Grande, e da ventania. – Que tem o teu pai, rapaz? O pequeno olhou fixamente a cara seca do abafador. – Febre... – Bem, vamos então lá... – E que é que o Tio Alma-Grande lhe vai fazer? – Vê-lo... Pela rua abaixo só o vento falava. Rouco de tanto bradar, monocórdico, persistente, era nele que tinha expressão a intimidade de ambos: um, o pequeno, nervoso, inquieto, a braços com pressentimentos confusos, que se recusavam a sair-lhe do pensamento; o outro, o velho, a aceitar aquele destino de abreviar a morte como um rio aceita o seu movimento. Em casa havia lágrimas desde a soleira da porta. Mas a entrada do AlmaGrande secou tudo. Atrás dos seus passos lentos e pesados pelo corredor ficava uma angústia calada, com a respiração suspensa. – O que é que lhe vai fazer? – perguntou de novo o Abel, agora à mãe, quando a porta do quarto se fechou. A Lia respondeu ao filho com duas lágrimas silenciosas pela cara abaixo. Lá dentro, o Isaac, na cama alagada de suor, parecia ter chegado ao fim. Branco, com dois olhos perdidos no fundo da cara, opresso, como que só esperava a ordem de largar a vela. Tinha adoecido havia quinze dias. Um febrão tal que o Dr. Samuel desanimou. Veio, tornou a vir e acabou por aconselhar que tratassem do caixão. Mas o Isaac era cedro do Líbano, rijo, no cerne. Depois desse desengano ainda o mal o roeu seis dias sem o comer. E sempre de olhinho vivo. Gemia, gemia, finava-se, mas sempre com aquelas duas contas de azeviche 98 a reluzir. Acabou, contudo, por lhe pousar no rosto uma sombra estranha; e a mulher, a Lia, abriu mão da esperança. Dois dias mais, e como na sala a D. Rosa lembrasse a confissãozinha, um irmão do Isaac, o Daniel, chegou-se à cunhada e deixou cair, entre duas palavras de consolo, o nome do Alma-Grande. A Lia, a princípio, reagiu quanto pôde. Mas a perspectiva do padre João a entrar-lhe pela casa dentro venceu-a. Mal rompeu a manhã, com uma voz que fez medo ao filho, mandou-o chamar o abafador. Quando o Alma-Grande entrou, o Isaac estava no auge de um combate que quase sempre se trava de corpo estendido. O inimigo era uma parte de si mesmo apostada em perdê-lo. E a outra metade, um pedaço de ser nobre e agradecido à seiva, corajosamente defendia o resto da muralha. As bagadas pelas têmporas abaixo e um ritmo apressado da respiração davam sinal de guerra. Mas de nada mais precisava, quem olhasse com limpos olhos humanos, para sentir a grandeza e a solenidade de tal hora. Por desgraça, o Alma-Grande não podia ver aquilo. Insensível à profundidade dos mistérios da vida, sem o estremecimento de uma fibra sequer, avançou para o leito num automatismo rotineiro. O seu papel não era olhar; era ir inteiro com as mãos ao pescoço, com o joelho à arca do peito, e retirar-se uns minutos depois, como um instrumento que tivesse cumprido correctamente a sua função. No seu castelo Isaac pelejava sempre. O fole pressuroso do arcaboiço metia ar na fornalha, espesso, cálido, activo, o suor ia brotando do vulcão. A casa dir-se-ia um sepulcro habitado por vivos paralizados e mudos. Só no quarto havia movimento e palpitação. Calado, o Alma-Grande avançou. Mas quando de mãos abertas e .joelho dobrado ia a cair sobre o Isaac, fê-lo parar uma voz diferente de todas as que ouvira em momentos iguais, que parecia vir do outro mundo, e dizia: – Não... Ainda não... Ainda não... Quantas vezes o abafador tinha escutado aquilo, gritos de desespero, apelos sôfregos e angustiados, sem se deter na sua missão sagrada! Quantas vezes! Desta, porém, o apelo e os gemidos soavam-lhe nos ouvidos doutra maneira. – Não... Não... Ainda não...... Um pano escuro que até ali vendara os olhos do Alma-Grande queria rasgar-se de cima abaixo. E o abafador, paralizado entre as trevas do hábito e a luz que rompia, lembrava uma torrente subitamente sem destino. – Não... Ainda não... Ainda não... 99 Era terrível o que se passava. À luta que o Isaac sustentava contra forças que nunca ao certo se conheceram, juntava-se o embate dos dois homens, um a saber que ia matar, outro que sabia que ia ser morto. Estiveram assim algum tempo, de olhos cravados um no outro, a medir-se. Pesado, o suor escorria pela cara do Isaac; quente, o sangue martelava nas têmporas do Alma-Grande. Foi um ruído súbito e um guincho de uma porta que fez explodir aquela concentração. O barulho a ouvir-se, e o Alma-Grande, como um peso suspenso e de repente liberto, a cair em cima do moribundo. Nem uma palavra só. Apenas um baque surdo, e as mãos sôfregas do assassino à procura do pescoço do Isaac. Mas a porta que rangera dera entrada a alguém. A um vulto que o Alma-Grande adivinhava atrás das costas, parado, lívido, a tentar compreender. Um esforço supremo do Isaac para se livrar das garras que o apertavam e a presença atónita do Abel, tiraram às mãos e ao joelho do Alma-Grande a força habitual. Bem que se extremara nele o assassino, o animal que bebia a grossos tragos o fio de vida que encontrava pelo caminho! Bem que se lhe avivava na consciência a certeza de que era matar a razão do seu destino! Em vão. O puro instinto não tinha coragem para empurrar aquelas mãos e aquele joelho diante de uma testemunha. Ergueu-se. Com o rosto coberto por um pano de lividez igual à do agonizante, voltou-se. E sem coragem para encarar os arregalados e aflitos olhos do pequeno, que o varavam, silenciosamente, saíu. Atravessou a sala cabisbaixo, longe da grandeza trágica das outras vezes. Deixava atrás de si a vida, e a vida não lhe dava grandeza. Quando, um segundo depois, a Lia, como um bicho culpado, entrou no quarto, o filho estava sentado na cama, com a pequena mão na testa do pai. A criança debatia-se num agitado mar de brumas; mas o seu coração ditava-lhe a mãozita ali, na fronte escaldante do que lhe dera o ser, do mesmo modo que lhe ordenara já a entrada sorrateira e inquieta no quarto. E foi talvez a mão inocente e filial que fez correr novamente na testa do Isaac o sangue da confiança. Sem confissão, vinte dias depois comia o caldo ao lume como se nada tivesse sido. E nada tinha sido realmente para toda a gente da terra, menos para ele, para o pequeno e para o Alma-Grande. Os outros passaram da agonia à morte e da morte à ressurreição, na inconsciência de quem passa do calor 100 ao frio e do frio novamente ao calor. Só os três sabiam, de maneiras diversas, que o drama fora mais negro e profundo. O Isaac vira as garras da morte ao natural; o Alma-Grande olhara pela primeira vez a escuridão do seu poço; o garoto, esse, pressentira coisas que não podia clarificar ainda no pensamento. Vagaroso, o tempo foi deslisando; e com ele apagara-se já de todo na lembrança da terra a doença do Isaac. Missa e Sabath. Os três, porém, debruçavam-se sem descanso sobre o lago onde se reflectia a imagem negra do passado. O Isaac, cada vez mais dorido, olhava, olhava, e via a vingança; o Alma-Grande, cada vez mais culpado, olhava, olhava, e via o medo; o pequeno, inocente, via apenas a angústia de não entender. E os três formavam como que uma ilha de desespero no mar calmo da povoação. Não se falavam, fora do filho a pedir a bênção ao pai, do pai a dar-lha, e de uma saudação ambígua e monossilábica do Alma-Grande ao passar pelo Isaac. Mas traziam-se guardados uns aos outros, como se nenhum deles quisesse perder a hora em que, para a eternidade, varressem do céu das consciências a nuvem pesada que o toldava. E esse momento, finalmente chegou. Vinha o Alma-Grande de ver a filha e os netos, em Bobadela, quando o Isaac, que o seguia como um cão de fila, lhe saltou à estrada. Testemunhas, só Deus e o Abel, que, sem o pai dar conta, o acompanhava também por toda a parte, e olhava a cena escondido atrás de um fragão. – Não matarás... Assim era no Evangelho. Fora dele, numa lei diferente, a moral tinha outros caminhos, como o próprio Alma-Grande sabia. – Não matarás... O Isaac, porém, olhava o Alma-Grande com os mesmos olhos implacáveis que lhe vira nas horas de agonia. – Não... Não... Mas o Isaac era o mais novo e o mais forte. E quando o Alma-Grande foi a dar conta, estrebuchava no chão, de costas, com o pescoço apertado nas mãos do outro, e com a tábua do coração sob o peso infinito de um joelho. – Não... Não... O pequeno, do penedo, via a cara congestionada do Alma-Grande, e ouvia o esforço da respiração a forçar o garrote. – Não... Possantes, inexoráveis, as tenazes iam apertando sempre. E, com mais um estertor apenas, estavam em paz os três. O Isaac tinha a sua vingança, o AlmaGrande já não sentia medo, e a criança compreendera, afinal. (De Novos Contos da Montanha, 1944) 101 ALVES REDOL (1911-1969) Nascido e muito vivenciado na região do Ribatejo, onde os contrastes sociais entre os explorados e os exploradores são de mais imperiosa evidência, António Alves Redol surgiu desde a juventude como expoente e intérprete duma geração de escritores que perfilhou energicamente a missão interventora da literatura no processo histórico imediato. Autodidacta e de formação e prática política marxistas, coube-lhe o papel de iniciador do Neo-Realismo (ou realismo socialista) em Portugal no domínio da prosa de ficção. E, tocado decisivamente pela realidade mais agressiva da miséria e da espoliação nas populações, rurais, foi nesse ambiente que situou, como outros companheiros da sua corrente literária, a maior parte dos livros que escreveu. O primeiro romance, Gaibéus (1939), como os que se lhe seguiram com maior significado de denúncia social e mais positiva qualidade de escrita – Avieiros (1942), Fanga (1943), A Barca dos Sete Lemes (1958) e, mais do que qualquer outro, Barranco de Cegos (1962) – são de localização ribatejana. Publicou também, entretanto, um ciclo de romances que têm por cenário o vale vinhateiro do rio Douro, um romance sobre a vida e costumes dos pescadores da Nazaré e alguns de atmosfera citadina – estes últimos, numa perspectiva global, menos conseguidos literariamente. Nos volumes de contos e novelas – Nasci com Passaporte de Turista (1940), Espólio (1944) e Histórias Afluentes (1963) – a congénita propensão poetizante de Alves Redol, que, apesar do seu optado realismo social, também se infiltra assiduamente no romances, exprime-se com maior liberdade e mais à superfície, caracterizando em peculiar estilo os estratos classistas e as personagens que os representam. Foi a tendência lírica que abriu caminho na sua obra de romancista (e talvez com maior frequência no conto) aos «ingredientes românticos e fantásticos» assinalados por Urbano Tavares Rodrigues em muitos passos da obra. Mas este escritor manteve-se inalteravelmente fiel ao intuito de missão combatente da literatura perfilhado na juventude, perseverando com incessante 102 esforço no enriquecimento e justeza da «verdade» das suas personagens e no apuro da escrita literária. Esse esforço consagra-se com mais evidente êxito na criação primacial que é o romance Barranco de Cegos. Alves Redol deixou também obra significativa no teatro, com caracterização mais audaciosa do processo mas de essência literária e humanística muito semelhante à dos seus romances e contos. 103 O RAPAZ NÃO GOSTAVA DAS MÃOS Talhado em angústia mansa, o rapaz entrou na taberna, pediu uma garrafa cheia de vinho e regressou à porta, levando o olhar fosco para além das casas, como se tivesse deixado atrás de si qualquer coisa fundamental ou viesse acossado por um bicho fero. Parecia temeroso ou atormentado. Agarrava-se nas mãos a dor que não cabia dentro de si. Altarrão e enxuto, vergava um pouco pelos rins, onde a camisa fraldiqueira e suja lhe saltava das calças derreadas. Tinha cara de menino assustado. – Ah vida! – disse para a rua quase num grito. Devia julgar-se sozinho com a vida para lhe atirar aquela acusação irada. Quando reparou que também nós andávamos na mesma liça, quis perceber para quem falava, olhou à volta e atirou para o monte a sua pergunta: Para que quer um homem a vida?... Depois encolheu os ombros com resignação e desdém, indo sentar-se à ponta do banco encostado à parede. Pegou na garrafa, mirou-a à luz que vinha da porta e voltou a pousá-la no marmorite do balcão. Abanava as mãos longas. Pensava que se as não tivesse não estaria ali tão longe. Pudera vir ao mundo lázaro das duas e andaria agora pela sua terra, batendo feiras na ganhuça de mendigo. Era por isso que remirava as mãos com desprezo. Atirou com o chapéu salgadiço de suor para a nuca, arrancou o lenço do pescoço e limpou a testa. Fez aquilo para não ficar quieto. Quando pegou de novo na garrafa teve uma cortesia: – São servidos?... 104 Uma escala de vozes respondeu-lhe obrigado! Então o rapaz limpou a boca com a manga da camisa e começou a beber. Todos voltámos a cabeça para vê-lo beber. Ele percebeu-o, sentiu que reparavam nele, coisa que não lhe acontecia há muito tempo. Cheio de brio, mamou a garrafa até ao fim. Voltou a limpar a boca, estendeu a garrafa ao taberneiro e mandou-a encher. – Já agora preparo a cama... Dorme-se melhor em cima de vinho do que numa esteira... Largou o chasco e não sorriu. A verdade é que também não lhe achámos graça. – Ontem o gajo do automóvel pôs-me umas suíças, o filho da mãe. Só hoje vi. Cheguei à noite a Bucelas com uns camaradas... Viemos todos prà vindima do patrão Soisa, o Tóino de Soisa. E o filho da mãe do chófer andou c’a gente às voltas e vai ao fim pede cinquenta malréis. Por uma légua cinquenta malréis. Se calhar ao Soisa leva dez... Povo a roubar povo, não há coisa mais feia nem coisa mais certa... Num repente calou-se assustado. Fez agulha à conversa: – A gente bebe vinho, mas não bebe juízo... O filho da mãe do chófer há-de gastar o dinheiro que roubou à nossa desgraça com remédios de botica... Não lhe quero outro mal... O meu mal é outro... Meteu a garrafa à boca sem a gala de se limpar. Levou-a de um trago até meio. – Andar quase dois dias de camineta, a butes e de comboio para arranjar serviço... E viva! Na minha terra um homem quer matar o corpo e não encontra. Não percebo porquê, encarou comigo. Vi que os olhos baços de tristeza se iluminavam de raiva. – Terra pobre há-de dizer o senhor... Qual nada, qual quê! Há lá lavradores com terras que nem condados. Metem-lhe dentro três ou quatro feiras-atadeiras e aquilo é um bafo. A gente, os homens, acarretam lenha como as mulheres. Vão jornas a dezoito malréis. E é para quem quer... Quem não quer é madraço. Pra quem não quer há lazeira ou cadeia... Voltou a sentar-se. – Trabalho de mulheres prà gente – repetiu duas vezes com escárnio. – Pois que fiquem lá as mulheres; talvez elas um dia sejam tantas que acabem por capálos. Se a minha mão tivesse capado o meu pai não tinha eu vindo ao mundo... Não gostou da ideia e pô-la mais ao jeito: – Mais valia que a minha mãe me tivesse desfeito a cabeça numa parede quando me viu nascer... Na madorra do pranto seco, suspirou: – Ah vida!... 105 – Vossemecês não gostam da gente... A gente vem de tão longe tirar o trabalho aos que cá moram. Está certo!... O vinho começava a trocar-lhe as voltas. Enrolavam-se-lhe as palavras e as ideias. – Está certo, não! Porque não há coisa mais desgraçada do que andar longe da nossa terra a padecer... Os padecimentos na nossa terra doem menos; saram mais depressa. Na minha terra não havia nenhum chófer que me levasse cinquenta malréis por meia légua. É o mesmo que roubar um cego... Voltou a abanar as mãos. – Vossemecê gosta das suas mãos?!... Diga lá, homem! – As mãos nunca me fizeram mal... – E bem?! – Faziam-me falta... – Pois a mim, não. Se não tivesse mãos, nunca abalava da minha terra. Deixava-me morrer de fome, mas não abalava. Nunca abalava da minha terra... Pedia esmola. Os lavradores sempre me davam alguma coisa. Não me mandavam apanhar lenha... Vossemecê já viu um homem a apanhar lenha?... É pior que ser mulher magana em terra de soldados. E cuspiu no chão da taberna com raiva de provocar um terramoto. (De Histórias Afluentes, 1963) 106 MANUEL DA FONSECA (1911-) De origem provincial e formação autodidáctica, como Alves Redol, com raízes experienciais muito vinculadas no Alentejo, Manuel da Fonseca é escritor de tendência lírica ainda mais acentuada, aliás expressa numa obra de poeta com importante significação, não só no âmbito do Neo-Realismo em que se manteve inalteravelmente integrado como no da poesia portuguesa em geral. Como prosador, os seus romances Cerromaior (1943) e Seara de Vento (1958) representam com intensa sugestividade a ambiência humana dos pequenos burgos e dos núcleos camponeses mais ou menos isolados do Alentejo, revelando uma arte de composição narrativa vocacionalmente moldada com segurança incomum e uma linguagem em que a contenção se conjuga melodicamente com um halo poético peculiar. São essas, também, as qualidades mais relevantes na obra de Manuel da Fonseca como contista: Aldeia Nova (1942), O Fogo e as Cinzas (1951), O Anjo no Trapézio, (1968) e Tempo de Solidão (1973). A insinuação poética nas narrativas deste escritor, tão decididamente «engagé» nos intuitos de combate social como os neo-realistas mais combativos, levou Mário Dionísio a acentuar que «é impossível encontrar uma separação essencial entre a sua poesia e a sua prosa de ficção, entre o seu conto e o seu romance, entre as personagens das suas narrativas e as da sua poesia». E, no entanto, a prosa novelística de Manuel da Fonseca não cede em nenhum passo à retórica, sentimental ou panfletária, e ao empolamento, contém-se numa pureza e rigor exemplares, alcança a expressão do dramático com sobriedade que mais adensa a sua força expressiva e justifica a qualificação valorativa de «classicismo» que lhe foi dada pela crítica mais insuspeita. O sentido de fatalidade, a marca intrínseca de solidão inelutável das pessoas e a nota frequente do picaresco, bem características da ficção portuguesa, enriquecem na sua essência significante a 107 obra deste escritor de poucos mas aliciantes livros. O seu regionalismo, como afirmou Jorge de Sena, «é chamado a exprimir uma visão generosa da vida» – uma visão em que se conciliam com eloquência rara realismo e poesia. 108 MARIA ALTINHA Todos os anos, mulheres que vivem lá para o sul, ao pé do mar, atravessam as serras e espalham-se pela planície, para a monda e para o trabalho dos arrozais. Trazem cantigas alegres e falas rumorosas, e o povo das vilas junta-se nos largos para as ver passar a caminho das herdades. E, nos primeiros dias da faina, à hora a que o manajeiro tem as palavras mais desejadas para os que andam curvados entre as espigas ou enterrados no lodo das várzeas, quando o sol desaparece e cigarras e ralos arrastam um traquinar que se perde pelos longes, as mulheres de ao pé do mar cantam coisas novas e coloridas. Em volta do lume, malteses e ganhões calam as vozes pesadas e ficam-se a ouvi-las, com os olhos parados na noite, pensando nas terras da beira-mar, lá donde elas vieram. Que as cantigas das moças do sul têm o brilho das águas e a vivacidade das ondas. E as suas gargalhadas são naturais como um pincho de água trespassado de sol, saltando numa rocha. Elas trazem a frescura do mar para a charneca desolada. Por isso o povo das vilas se junta nos largos para as ver passar, e malteses e ganhões ficam calados a ouvi-las, depois da faina, quando a noite se derrama de estrelas, pela terra. Maria Altinha pela primeira vez saiu da aldeia e a longa viagem foi uma coisa nova para ela. Ficaram para trás as serras e amendoeiras e caminhos murados e hortas de terra solta com árvores carregadas de frutos. E os laranjais e as casinhas brancas e as noras chiando pelas encostas. E o sussurro azul embalador do mar e o cheiro do mar que o vento trazia até à janela do seu quarto. E a mãe fazendo cestinhos de 109 palma à porta da casa, e os irmãozinhos vendendo-os pelas vilas – tudo, tudo ficou para trás, lá para longe... Agora, era aquele descampado raso e poeirento, com grandes montados de onde em onde, e sempre raso, bravio e deserto. Mas que importava? Depois voltaria para a aldeia com o dinheiro ganho no seu novo trabalho, e nem a mãe nem os irmãos passariam fome quando viessem os frios do Inverno. ... Logo que chegasse a casa, a mãe abraçá-la-ia chorando, e ela, com um sorriso rasgado, havia de mostrar o seu saquito de chita cheiinho de dinheiro. E pela calada da noite, com a chuva batendo na telha e o vento correndo lá por fora, em volta da lareira ouvi-la-iam contar as coisas daquelas terras; os irmãos fazendo perguntas e olhando-a de olhos brilhantes, admirados das respostas. Depois, o mais novinho, vencido pelo sono, tombaria a cabecita para o seu colo e o outro logo a seguir também. Só o mais velho teimaria em ouvir até chegar aquele peso maior que as suas forças a puxar-lhe as pestanas e a fechar-lhe os olhos. Ela e a mãe iriam deitá-los e deitar-se. E a chuva e o vento não fariam medo porque, com um ou outro trabalho que aparecesse, as economias levadas da planície chegariam para todo o Inverno, sem que a fome entrasse em casa. Por isso a sua voz clara trasbordava de alegria quando cantava e os malteses quedavam-se a ouvi-la até o sono vir. Valdanim, mal engolia o naco duro, arrastava-se para o pé da casa pegada ao celeiro onde dormiam as mulheres. Pràli ficava, de. cigarro apagado, a olhar Maria Altinha e a sorrir-lhe; uns dentes enormes debaixo do bigode, os braços pousados sobre os joelhos. Vinham as cantigas, os risos – as mulheres do sul venciam os homens da planície naqueles primeiros dias. Mas, agora, tudo mudava a pouco e pouco. Já a malta arrastava um coro pesado pelas quebradas e a voz das mulheres esmorecia. Começavam a sentir na carne a faina dolorosa; desde a manhã à noite, debaixo de um sol abrasador. O ar escaldante da planície secara a frescura do mar. Só as cantigas dolentes soavam pela calada da noite. E Valdanim tomava fôlego deitando a cabeça para trás, os olhos fitos em Maria Altinha como se .cantasse só para ela, embora a sua voz se perdesse na toada igual das outras vozes da malta. Embora; Valdanim cantava para ela e, já quando a via, não era só aquele sorriso parado, – uns dentes enormes debaixo do bigode – era também uma frase atrevida: – Maria Altinha, uma noite destas hei-de falar-te a preceito... Mas a moça não respondia e Valdanim enrolava-se na manta, pensando que um caso daqueles não queria conversa, mas sim uns braços bem fortes em 110 volta da cintura de Maria Altinha... Um torpor tomava o corpo do homem, parecia afundar-se. Puxava a manta para a cabeça, os olhos voltados para o céu fechavam-se lentamente. Num momento era só Maria Altinha em todos os sentidos. E adormecia. Um sono toda a noite, sem pesadelos nem sonhos. Lá pela madrugada, aquele despertar doloroso, o corpo torcendo-se todo numa ânsia revoltada. Mal acordado ainda, toca a andar com a malta a caminho da várzea. Era a água fria do charco, subindo pelas pernas, que os acordava a todos de vez. Pareciam condenados. O céu baixo limitava, em volta, o horizonte escurecido. Outeiros e cabeços nus, onde em onde um sobreiro engelhado com os ramos torcidos, solitário. No meio da várzea, pernas enterradas até às coxas, cintura dobrada, em fila, as mulheres metiam os braços na água remexendo no fundo. Aqui e além um homem. Dês que o sol vinha – desfazendo os véus húmidos da madrugada e depois queimando como lume – até que se ia embora, as mulheres, de saias repuxadas entre as pernas, mangas arregaçadas, chapinhavam no pântano mondando o arroz. Mosquitos zumbindo riscavam a água barrenta, um fedor acre entupia as narinas e parecia entrar por todos os poros da pele. Com o meter das mãos para o fundo, pequeninas ondulações partiam, concêntricas, ao redor dos braços, e bolhas de ar vinham gorgolejando e rebentavam à superfície, avivando o fedor, mesmo por baixo do nariz. Porque o rosto das mulheres quase roçava no lodo quando davam um passo em frente, farrapos de madeixas caídas sobre a testa oscilavam pingando. E as mulheres acamavam os cabelos e coçavam as babas dos mosquitos com os dedos engelhados. O capataz, na vala, olhava duro, mandando. Aqui e além, um homem. O sol de brasa pegado nas costas, o horizonte escurecido. Pareciam condenados. Por um anoitecer pesado de tristeza, campos fora só se ouvia o ralhar das cigarras e grilos. Maria Altinha sentiu as primeiras febres. Esteve dez dias sem ir à várzea. Dez dias sozinha, tremendo de frio e suores em cima da saca, tapada com a manta, a um canto da casa da arrumação. Vinha o carreiro da vila com a caixinha redonda cheia de hóstias e Maria Altinha sem ir à monda... Um dia fez como os outros: meteu-se no arrozal amarelinha de sezões. Quando começavam a bater-lhe os dentes saía da água e deitava-se na terra, a tremer dos pés à cabeça. Era um quartel perdido; o capataz lá estava traçando o risco no papel. Ao chegar sábado, aquela semana tivera só três dias para ela. 111 Valdanim, uma tarde, saiu da várzea muito antes do sol-posto. «Que não podia, que tinha uma dor.» O capataz consentiu à má cara, riscando o papel. Valdanim, coxeando, tomou o caminho do «monte». Mas passada a encosta deixou de coxear e acelerou o passo. Nuvens escuras de trovoada toldavam o céu. Um bafo morno tocava na pele da malta da monda, arrepiando-a de suores frios. Valdanim corria para o «monte». Para trás, cada vez mais para trás, ficavam homens e mulheres enterrados no arrozal, dobrados, com as mãos remexendo no fundo. Pareciam condenados. Deitada sobre a saca, Maria Altinha dir-se-ia adormecida. Nesse dia nem se levantara para ir ao trabalho. Viera aquele tremor brusco e, sozinha no «monte», lutara tentando cerrar os dentes, crispando os dedos no fato. Um frio de morte tomava-lhe os membros e os dentes batiam acompanhados pelo gemido estrangulado que lhe vinha do peito. Em vão, numa luta dolorosa, o corpo retesado forçava por dominar os movimentos desordenados e contínuos. E sozinha: longe era a casa e longe era a mãe!... Depois o frio desapareceu lentamente e com ele o tremor. Ficou extenuada, o corpo quebrado, a cabeça latejante como se ardessem dentro labaredas de uma fornalha. E aquele calor foi descendo para o corpo. Ardia; o suor repassava, envolvia-a toda numa calda pegajosa. Pesadelos, um ruído colossal ia e vinha, ora intenso, insuportável, ora brando e caricioso, adormecedor. Falava gesticulando, chorava, ria. Os olhos escancarados tentavam ver, mas, no escuro, só passavam coisas disformes e rápidas, alucinantes. Lá vinha o ruído crescendo, crescendo até estalar como um trovão dentro do cérebro. E passava esvaído num sussurro longínquo. Também o calor se fora e os pesadelos terminavam. Ficaram aquelas camarinhas de suor e o corpo sem forças para nada. Agora, Maria Altinha dir-se-ia adormecida. E mal ouviu uns passos cautelosos que se aproximavam e uma voz que lhe soprava perto dos ouvidos. Mãos acariciavam-lhe os cabelos, o rosto e os seios. Mãos enormes. Tudo vago, embalador como um sonho. Depois aquela dor aguda no ventre; uma punhalada rasgando-a! Maria Altinha gritou, mas uns lábios grossos amachucaram-lhe a boca numa ânsia brutal. Agora, o povo das vilas nem conhece as mulheres que voltam das searas e dos arrozais quando as vê passar, no largo, de jornada para o sul. Vão sequinhas e amarelas como se fossem velhas – sem uma fala, sem um sorriso – o rosto parado debaixo do lenço. 112 E aquela moça que tanto cantava e ria, pràli vai, murcha, calada como uma sombra. Só lá por dentro os pensamentos se enrodilham numa amargura sem fim... «Virá o Inverno com chuvas e ventos e virá a fome para aquela casinha humilde da aldeia... E o irmãozito mais novo há-de tossir toda a noite e a mãe há-de chorar pelos cantos e nada, nada ela poderá fazer!...» As outras mulheres parecem pensar o mesmo; tão caladas e sumidas nos lenços que mal se lhes vê a cara. Por isso o povo das vilas sai dos largos desiludido e costuma dizer daquela gente que vem do sul, lá de ao pé do mar: – É todos os anos o mesmo. Vêm cantando e voltam chorando... (De Aldeia Nova, 1942) 113 LUÍS FORJAZ TRIGUEIROS (1915-) É na crónica, no ensaio literário e na crítica, sempre com largas aberturas ao desenho de figuras finamente matizadas, à inserção de autores e obras nos seus peculiares espaços de vida e à descrição de paisagens em que se enquadrou humanamente experiência histórica, que Luís Forjaz Trigueiros tem assumido lugar de maior relevo na literatura e na cultura portuguesas contemporâneas. Esse predomínio de géneros não-ficcionistas tem contribuído para deixar em injusta sombra, sobretudo para públicos leitores mais vastos, a qualidade relevante do contista que em Caminhos sem Luz (1936), Ainda há Estrelas no Céu (1942), Boa Noite, Pai (1955) e O Carro do Feno (1974) deixou demonstradas notáveis virtualidades, passando-as à realização escrita, de composição e de estilo. Numa linha que, sob aspectos fundamentais, pode apontar-se como marcadamente queirosiana, caracterizada pela elegância, em que se infiltra com frequência uma discreta ironia, a criação narrativa deste escritor consegue penetrantes efeitos. São eles revelados, de modo mais flagrante, na condensação em breves traços duma situação, de um caso humano ou de um episódico relance de personagem. Como apontou João Gaspar Simões, a clareza do estilo, a desenvoltura de ideias, o traço concreto, o comentário irónico, a profundidade subjacente à aparência superficial, constituem a específica atmosfera em que se move a personalidade criativa de Luís Forjaz Trigueiros. Nesses aspectos, foi aparentado também à «maneira» novelística do grande escritor brasileiro Machado de Assis e da estirpe que o tem continuado. E se a sua prosa de contista se apresenta acentuadamente intelectual na expressão comunicada, com o crítico e o cronista observador a subjugarem o contexto ficcional, nem por isso se desvanece através dela a sensibilidade que se conjugou na sua origem, imprimindo vibração e contida emoção aos «casos» narrados. Sem confinamentos optados de escola ou corrente literária, a obra de Forjaz Trigueiros testemunha nos seus traços fundamentais uma das vertentes da moderna novelística portuguesa: a mais 114 voltada para um espírito e um gosto isentos de provincianidade, na representação de ambientes citadinos em que o circunstancial e o local podem ser mais prontamente universalizáveis. 115 DESPORTOS DE INVERNO Os largos vidros embaciados era como se transpirassem de frio. Exactamente: transpiravam de frio. Mas, lá dentro, as pequenas mesas, apesar de muito juntas para aproveitar o espaço exíguo, não ajudavam a intimidade dos clientes entre si. Somente os que se ajeitavam, num esforço, em cada uma delas, esses, tinham de falar em voz baixa para não serem ouvidos pelo vizinho. Conspiração de pastelaria, mais inofensiva decerto que a de café. Mas ninguém conspirava de coisa nenhuma. Só que o português médio é discreto, não gosta de dar nas vistas nem que os outros saibam da sua vida. Não havia sequer jovens casais entendidos, que já dispensam hoje a conversa de chá e bolos, o que se compreende. Média etária, como se usa dizer agora dos frequentadores da Smarta naquela tarde? Aí dos quarenta anos para cima, isto é, gente de idade, os mais velhos talvez ainda presos a hábitos, herdados ou adquiridos, dum certo tipo de conversa gratuita e nisso é que ela é diferente, ali, da de outros cafés ou pastelarias, seja a conversa idealista ou tumultuosa, quezilenta ou ressentida, frustrada ou desiludida. Há uma dignidade sui generis na Smarta, com sua ambiguidade de freguesia ou função. Um certo burguesismo inofensivo na plataforma do «five o clock tea», senhoras serôdias, cansadas das compras nos saldos do bairro ou que, vindas da Baixa, esperam ali o fim da hora de ponta para conseguirem um lugar no autocarro e lograrem uma espécie de comunicação humana nem que seja só nos olhos curiosos, muito atentos aos outros, e que lhes falta na exiguidade dos dois quartos assoalhados onde vão enclausurarando seus dias sem cor. Lá em baixo, ao balcão, é diferente, e rapazes ou raparigas muito novos ainda, ou jovens empregados na 116 área, que emborcam a qualquer hora, num bom intervalo fugidio, o seu «galão» nutritivo, que depois do trabalho virão ao encontro com o amigo exigente ou à matinée das seis e meia e acabam as mais das vezes por jantar apenas outro «galão», ou, em casa, a sopa de pacote. Na cave do restaurante, a maioria é composta de turistas médios, estrangeiros que até no Inverno nos cobiçam o sol, pessoas dotadas do bem inestimável de acharem graça a tudo, saborearem tudo. A cave da Smarta, essa tem mais carácter, podia ter sido uma espécie de miniLipp lisboeta, com suas ceias nocturnas, depois do teatro ou do cinema, quando, à volta de 1960, ali se juntavam, noite fora, escritores ou artistas, uma certa boémia resignada a um certo conforto. Mas a ambição, modesta embora, acabou por ser vencida pelas exigências dos horários de trabalho do pessoal. Muito apertadas, pois, as mesas, naquela espécie de palco sem cenário nem vedetas, figurantes apenas, e, junto da que eu escolhera, duas senhoras, acima dos meus cálculos, falavam pouco uma com a outra e iam olhando os circunstantes, para lá da pintura dos olhos, já cansada àquela hora. Noutra mesa, três sujeitos incaracterísticos: dois liam desinteressadamente os vespertinos, enquanto o terceiro olhava o frio através dos vidros e, silencioso, pedia de vez em quando um dos jornais para ver, distraído, os principais títulos. E logo o pousava de novo sobre a mesa ou o restituía ao vizinho, esvaziando o resto da garrafa de cerveja, esquecida. As duas senhoras da mesa contígua não se contentavam em conversar muito; ambas faziam grandes gestos ilustrativos, exibindo feias unhas demasiado vermelhas a rematarem fatigados dedos pré-gotosos. Um visco de fim de dia sem imaginação. O meu amigo chegara, procurara mesa, divisara-me de longe, numa alegria: «Posso sentar-me aqui, contigo?» Podia, pois. Conhecemo-nos desde miúdos, andamos juntos, adolescência fora, mas a verdade é que não o encontro muitas vezes nos caminhos duma Lisboa tão dispersa e, por mim, também não faço muito por isso. As amizades que foram um erro do tempo são às vezes as mais perduráveis: não há hipótese de decepção ou atrito, por mais diferentes que sejam os gostos ou os caminhos da idade adulta. Sei vagamente que faz negócios, tem mulher e filhos, vive bem. São outros os seus interesses, nunca indaguei muito deles, mas quando nos encontramos ou me vê ao longe na rua e corre para mim, para não me deixar fugir, é sempre, da parte dele, a mesma satisfação de íntimo feliz, o mesmo tuteamento a que correspondo desajeitado, as mesmas evocações dum passado que gosta de saber comum: «Lembras-te, pá, quando fomos uma noite beber para aquela tasca das Portas de Santo Antão? Apanhámos um pifo!» (O meu amigo não tem só uma memória incómoda, esforça por manter-se jovem e aprendeu a terminologia dos filhos). Sentou-se, mandou vir uma cerveja, passou revista à sala, inquiridor, como se isso lhe fosse um ritual. E, realmente, era-o, pois 117 logo me disse, sem mais nem menos, com experiência de conhecedor desiludido: «Isto hoje está fraco. Mas naquela mesa lá em baixo, já viste...» Não percebi. «Naquela mesa lá em baixo», desconcertava-me. Mas entendi pouco depois, era a assistência que estava «fraca», muitos homens, a maioria das senhoras acima da tal média dos quarenta anos. «Fraco.» Mas já ele insistia: «Repara bem, naquela mesa lá em baixo, à esquerda.» Reparei, fiz-lhe a vontade. Era efectivamente a única senhora ali, naquela tarde, que valia a pena olhar... Jovem ainda, esbelta, duma elegância simples, nem se tornaria notada, apesar da sua juventude, a quem fosse ali, ao contrário dele, apenas para fugir ao frio ou entreter o estômago até ao jantar. No entanto, eu conhecia-a de a ver na pastelaria, notara mesmo logo à primeira vez que os óculos escuros e a natural descrição lhe davam certo ar de mistério e sobretudo reparara no carinho com que se entendiam, ela e o miúdo de nove ou dez anos, não mais, que a acompanhava sempre no rápido chá e bolos que iam ali tomar. O meu amigo pensou o mesmo porque nem me deixou dizer nada, tocou-me no braço, confidente: «Já me notou, não tira os olhos de mim, logo que me sentei dei por ela, é natural. Deve ser mãe e filho, ou então irmã mais velha, mas é bem que se farta!» (Eis um sintoma da idade que lhe escapou, pensei eu. Estava à espera de que ele a achasse gira, muito gira. Foi mais ou menos na nossa juventude – ia reflectindo porque ele não me deixava falar – que se começou a dizer que uma mulher estava ou era «muito bem». E era agora a nossa juventude que, despaisados verbais, vinha agora ali, de repente, à superfície da conversa. Felizmente ele não percebeu, tinha mais em que pensar.) A partir de então foi a antiga manobra, nem sequer discreta, uma espécie de desporto fora de moda, e eu, entre envergonhado e aborrecido assistindo à cena. Abrira o jornal à frente dos olhos para disfarçar ou para, baixando-o de vez em quando, chamar a atenção da jovem para o manejo quase ingénuo, decerto ingénuo. No entanto, com alguma curiosidade, eu esperava o desfecho do episódio. Dez, vinte minutos, correram na tarde mole, de anonimato e pastelaria. Os olhos do meu amigo iam inchando, gulosos, conseguira tudo o que pretendia: reduzir-me à condição obscura de espectador do seu êxito, da sua juventude, de como, afinal, o tempo nada tinha mudado, pelo contrário tudo lhe continuava fácil. Insistia: «Não olhes para lá, não vá ela julgar que eu te chamei a atenção, mas quando puderes repara que não tira os olhos de mim...» Hesitou, foi diplomata: «Ou pelo menos da mesa... Mas do lugar onde está não te vê, não é para ti que ela olha. É para mim, já percebi, até já mandou o pequeno ao balcão buscar qualquer coisa para ficar mais à vontade. Não a conheces?» – «Só de vista, daqui, vem cá muitas vezes.» 118 Pouco depois a nossa vizinha levantou-se, deu a mão ao pequeno, atravessou serenamente a sala para sair. O meu amigo acenava para o empregado, dispunha-se, também ele, a retirar-se, a não perder a oportunidade de abordá-la, falar-lhe, ajudá-la, decerto, a encontrar um táxi, o resto seria fácil, ele não mo dizia mas eu ia-lhe lendo na expressão nervosa. Aliás, confirmou-mo quando me pediu: «Se não te importas, paga-me a despesa, não posso perder isso... E o empregado, que não há maneira de vir!» Perguntei-lhe, severo: – Onde vais, com tanta pressa? – Pois onde hei-de ir? Ter com ela, falar-lhe, perguntar-lhe o número do telefone... – Deixa-te disso! Temos muito que conversar ainda – e comecei a pensar em assuntos possíveis, não encontrei nenhum para exemplo –, coisas importantes! Indignou-se: – Nada pode ser mais importante do que isto, desculpa! Não viste como ela estava interessada? – Não vais. Sou bastante teu amigo, percebes?, para não te deixar ir. Se perderes esta oportunidade terás outras, bem melhores, asseguro-te! Devo ter sido categórico, porque voltou a tirar o sobretudo que já tinha vestido, pô-lo outra vez na cadeira do lado, e inquiriu-me, com certa inquietação? – Tu conhece-la? Não me pareceu... Desculpa se fiz asneira... Devia ter pensado que ela estava a olhar para ti, mas com o miúdo ao lado, não podia falar-te. Desculpa. Estava realmente perturbado, esvaziava o resto da cerveja no copo, para cobrar ânimo. Hesitei, por simples piedade, se devia, ou não dizer-lhe tudo – tanto mais que tudo era afinal tão simples. Foi a minha vez, mas por outras e bem diferentes razões, de abrir o jornal, de percorrer os títulos sem sequer os ler, de procurar certa naturalidade pouco fácil. Mas vi-o tão desassossegado, tão inquieto que lhe expliquei com a maior simplicidade que conhecia muito bem de a ver ali, como já lhe dissera, a esbelta senhora; que os empregados me tinham dito em tempos que ela ia lá quase todos os dias com o pequeno e que este a acompanhava sempre, filho ou irmão, nem o sabiam, porque ela era cega e por isso usava óculos escuros assim tão carregados. E acrescentei que não podia queixar-se de não o ter avisado, pois, no seu entusiasmo, ele nem me deixara dizer nada. Despediu-se daí a pouco, embaraçado. Desde então não voltei a encontrá-lo. Ou antes: não voltou a encontrar-me. (De O Carro do Feno, 1974) 119 MÁRIO DIONÍSIO (1916-) Doutrinador primacial, desde muito jovem, das correntes literárias renovadoras que tomaram corpo, pelo final dos anos 30, no Neo-Realismo, ao mesmo tempo que iniciava a sua obra de poeta e crítico, Mário Dionísio afirmou-se como narrador novelístico com definida personalidade ao publicar em1944 o livro de contos O Dia Cinzento (reeditado em 1967 e incluindo novos textos daquela época). O intuito então afirmado pelo Autor era o de «acordar naqueles que o lessem a consciência da injustiça social e a necessidade de agirem contra ela». Assim alinhado com a vontade de empenhamento da sua geração, veio demonstrar com os seus contos que o Neo-Realismo não se confina à denúncia e análise da exploração dos pobres nos meios rurais, que predominavam na obra de ficção dos seus companheiros de caminho; os temas de O Dia Cinzento são de ambiência urbana bem acentuada e neles se insere uma preocupação que não é meramente complementar de observação psicológica ou mesmo uma expressão intelectual que lhes enriquece o conteúdo e o sentido. Por isso, precisamente, acentuou Mário Sacramento que «a dialéctica interna à geração de 40 teve e tem no autor deste livro um dos seus marcos fundamentais». E, em direcção similar, Fernando Namora apontou no livro «uma densidade de atmosferas a que não falta um disciplinado regramento». Entretanto, Mário Dionísio dedicou grande parte da sua actividade intelectual à crítica e interpretação de artes plásticas, publicando diversos estudos nesse sector e, com maior relevo, o amplíssimo ensaio A Paleta e o Mundo (2 vols., 1956-1962), além de livros de poesia em português e em francês. Só em 1969 reapareceu como prosador e ficcionista com o romance Não Há Morte Nem Princípio, renovando (ou inovando) profundamente o estilo narrativo, numa cadência evocadora que flui como corrente de consciência na reconstrução em escrita da vida experimentada, de desilusões sofridas entre sonhos que se esvaem ou ressuscitam e de ambientes sufocados no tempo português de ditadura repressiva. 120 Sensibilidade contida, rigor intelectual, ironia disseminada, indagação da vida interior no próprio decurso do circunstancial ou do simplesmente casual, individualizam a composição novelística e a linguagem deste escritor. Sob múltiplos aspectos é ele um dos mais representativos da sua geração arduamente posta à prova. 121 A LATA DE CONSERVA A rapariga loura deixou-se ficar em frente do espelho. Enterrou os dedos ao acaso pelos cabelos, viu-os cair, preguiçosos, para a testa, e puxou-os para trás de modo que voltassem a cair, preguiçosos, para a frente. Cingiu ao corpo o robe branco de lã dos Pirinéus e deixou-o desprender-se. Tanto fazia. O sol de Inverno entornava-se pela casa dentro, sobre aquele desalinho em que os amigos tinham deixado tudo na véspera. Ainda por cima o Roberto entornara um cinzeiro na carpette antes de sair. Que maçada! Porque é que a Margarida não viera ainda arranjar a sala? Talvez fosse cedo. Dez e meia. Era ainda muito cedo. A Margarida tinha muito que fazer antes de arrumar a sala. Nem era preciso que aquilo estivesse em ordem antes das quatro ou cinco da tarde. Ninguém aparecia nunca antes das cinco. Uma cara no espelho. Passava os olhos indolentes pela cara. A sua cara. A testa onde uma ruga despontava, os olhos claros que bem podiam ser um bocadinho maiores, as faces agora ligeiramente encovadas, a boca descorada. Os cabelos; sim, eram bonitos. Tinha uma força própria, uma vida própria, com a mecha rebelde que caía para a frente, brilhando no vinco da onda. Puxou-os para trás de novo e de novo os deixou cair, preguiçosos, para a testa. Cingiu o robe. Deixou-o desprender-se. Tanto fazia. Pela porta entreaberta, ouvia o barulho da água a cair na banheira. E, mais longe, do outro lado do corredor, os passos curtos e apressados da criada. Invejava aquela vida – às vezes. Toda a tarde para dentro e para fora. Fazer qualquer coisa. Não dar pelo tempo. 122 Os olhos pousavam nas coisas ao acaso. Cinzeiros cheios de cinza e de pontas de cigarro marcadas de bâton, jornais, almofadas e cadeiras, fora do lugar, cálices sujos. O banho ia levar, como sempre, um tempo imenso a preparar. Sentou-se num maple, pegou num livro qualquer que ficara em cima da mesa, abriu-o, folheou-o. Voltou a pô-lo na mesa. Voltou a pegar nele, a folheá-lo. Fazer qualquer coisa enquanto a água corria. Não dar pelo tempo. Uma das abas do robe escorregou mansamente dos joelhos até que uma das pernas da rapariga loura ficou completamente descoberta. Deixou-a assim. Uma perna comprida, branca, lisa, macia, embora magra. Já estava a precisar de rapar os pêlos outra vez. Folheava o livro. Lia uma frase aqui, outra além. Uma página ou duas. Que lhe interessava aquilo? Uma manhã inteira à sua frente. Ninguém antes das cinco. Se telefonasse? Mas o Roberto assustar-se-ia. Suporia que estava a sentir-se mal e ficaria irritado ao perceber que telefonara sem motivo, só para matar o tempo, para lhe fazer perder tempo. Tanto tempo! Faltava ainda tanto tempo! Faltava sempre tanto tempo para tudo! Pousou a mão no ventre e pôs-se a tacteá-lo, com cuidado, com carinho. Ficou a acariciá-lo com as mãos magras e longas que pareciam feitas para aquilo mesmo. Sete meses ainda! O Roberto dizia que ele seria o que ela fosse durante aqueles sete meses. Não devia entregar-se a esse enfado em que andava sempre. Devia sentir-se alegre, forte, decidida. Devia evitar todos os choques, todos os aborrecimentos. Devia, devia, devia. Levantou-se, atirou o livro para cima do maple e apertou o robe novamente. Encostou-se à janela com o cortinado na mão, para ver a rua, o movimento, a vida. Esquecer a sala desarrumada, o cinzeiro que o Roberto entornara, os copos sujos, os livros, os jornais, o ruído da água a cair na banheira. De manhã, a rua tinha mais movimento. Mas sem interesse. Altas árvores, nuas de folhas, mortas. Criadas de aventais claros e sacos de compras. Um ou outro homem apressado. A mercearia do Soares na esquina e a pequena tabacaria em frente com a montra cheia de embalagens vistosas sempre iguais. Era uma rua calma, muito larga, batida pelo sol, onde ele havia de passear num carro que ela própria empurraria ou a Margarida. Do outro lado do vidro, a manhã estava fria. As raparigas que entravam e saíam da mercearia do Soares tinham o nariz vermelho, esfregavam as mãos, corriam. Dois garotos descalços, que passaram por baixo da janela a apregoar cautelas, tinham também os narizitos vermelhos. Mal ouvia o pregão. Uma criada parou a tagarelar com os rapazes, não tinha fé naquele número. Como todos os dias. Árvores nuas, a mercearia do Soares na esquina, a tabacaria mesmo em frente. 123 Mas, de súbito, a rua animou-se. Um rapazelho saiu da mercearia como uma flecha e, logo a seguir, a correr também e a gritar, o próprio Soares. Que homenzinho ridículo, o Soares, assim a correr e a gritar. Porque ele gritava! A rapariga loura reconheceu no rapazelho um dos garotos que acabavam de subir a rua com as cautelas. E o Soares devia gritar com muita energia porque, através do vidro, ela percebeu perfeitamente que dizia: «Agarra! Agarra!» Donde surgiu tanta gente? Tanta gente a correr e a gritar: «Agarra! Agarra!»? Mesmo sem abrir a janela, a rapariga acompanhava a cena toda. Pessoas acudiam às portas, juntavam-se em grupos na esquina, a perguntar, a comentar, muito excitadas, enquanto na mercearia um empregado novito, de guarda-pó, gesticulava, repetindo a quem ia chegando o que se tinha passado. Apanhariam o garoto? A rapariga começou a desejar que não. Achava ridícula a figura do Soares, muito gordo e muito baixo, a correr desajeitadamente, congestionado, aos gritos. E aquela fúria toda contra uma criança punha-a, sem saber porque, do lado dela. Mas já as cabeças se voltavam para o começo da rua. Um polícia trazia o garoto bem seguro por um braço. E, um pouco atrás, rubro de indignação e de cansaço, o Soares mostrava para a direita e para a esquerda um pequeno objecto que explicava tudo. Era uma lata de conserva. O garoto roubara. Como arranjara coragem para fazer aquilo? Entrar numa loja, estender a mão, roubar. Quando vira o Soares, de cabeça perdida, aos berros não lhe ocorrera que poderia ir atrás dum ladrão. Porque o garoto roubara. Aquele sujeitinho roubara, era um ladrão. Faziam agora à porta da mercearia uma pequena reconstituição do crime. Percebia que o rapaz queria dar qualquer explicação que ninguém aceitava. Chorava, protestava, desfazia-se em lágrimas. Mas que queria o pobre explicar? E, de repente, deu um sacão, tentou fugir. Então o guarda assentou-lhe a mão no pescoço, sacudiu-o e, afastando os curiosos levou-o pela rua acima. Vai levá-lo, meu Deus!, disse a rapariga loura. Para que fez ele aquilo? Os grupos dispersaram-se. Cada um voltou à sua vida. Os passeios ficaram novamente tranquilos. Novamente o silêncio, as árvores imóveis, a mercearia do Soares na esquina com o aspecto de sempre, a tabacaria mesmo em frente. Nos ouvidos da rapariga loura, o choro desesperado do rapaz das cautelas não cessava. E pôs-se inquieta. Ter-lhe-ia aquilo feito mal? O Roberto dizia que ele seria o que ela fosse naqueles sete meses. Devia sentir-se forte, alegre, decidida. Devia evitar todos os choques, todos os aborrecimentos. Qualquer 124 emoção violenta poderia prejudicá-lo. Passava as mãos no ventre a acarinhá-lo, a protegê-lo. Para que fora à janela? Porque não ficara a ler? Porque não telefonara ao Roberto? Que iria acontecer-lhe por causa dum garoto qualquer que andava a roubar latas de conserva? A Margarida no corredor: – O banho está pronto, minha senhora. A trinta e seis graus. – Está bem – respondeu a rapariga loura sem se voltar. Vou já. Voltou-se. Deixou cair a mão. E o cortinado desprendeu-se e ficou a oscilar com indolência nas suas longas pregas transparentes. (De O Dia Cinzento e Outros Contos, 1967) 125 VERGÍLIO FERREIRA (1916-) Inicialmente ligado ao Neo-Realismo na sua primeira fase, em que marcou presença de relevo com os romances O Caminho Fica Longe (1943) e Vagão J (1946), Vergílio Ferreira percorreu desde o final da década de 40 uma inquieta evolução que já se reflecte no romance Mudança (1954) e se afirma plenamente em Manhã Submersa (1954) e Aparição (1959). O existencialismo de Sartre e o voluntarismo anarquizante de André Malraux foram as tónicas influenciais dominantes nessa trajectória, integradas numa autenticidade manifesta de temperamento pessoal. Com ela continuou a evoluir para uma perturbada e amarga visão do mundo e do homem sob o signo de um essencial negativismo pelo absurdo que tudo envolve. Romances mais recentes, como Nítido Nulo (1971) e Rápida a Sombra (1975) dão conta do caminho percorrido pelo Autor, a traduzir uma grande densidade psicológica e com veemência de estilo em que exprime as suas preocupações obsessivas do desencontro das almas, da solidão irremediável, da presença dominadora da morte em todos os passos da vida, do angustiado refúgio na evocação da infância. Buscando a verdade humana dos outros através da sondagem de si mesmo, Vergílio Ferreira deu à sua obra o cunho quase incessante de um individualismo para o qual encontrou a linguagem literária adequada – uma linguagem que é ao mesmo tempo «poética (impressionista-expressionista) e ensaística (no sentido existencial duma experiência profunda e vital», como a definiu Jacinto do Prado Coelho. A obra do ensaísta, em que se destacam Cartas ao Futuro (1958), Espaço do Invisível (3 vols., 1967-1977) e Invocação ao Meu Corpo (1969), constitui um contraponto especulativo e crítico à do romancista, em nível de grande fluência de pensamento e com largas margens de autoanálise. As narrativas curtas de Vergílio Ferreira foram editadas em 1976 sob o sumário título de Contos e 126 desvendam, em alguns casos, novos prismas da personalidade criativa do escritor na apreensão dramatizante do real. O seu conceito de liberdade incondicionada da arte revela-se nesses textos sob formas por vezes mais positivas de observação das verdades humanas alheias e de menor egotismo. 127 MÃE GENOVEVA Todas as tardes ela vinha com o cesto da costura para o sol do corredor, se a tarde era de Inverno, ou para a sombra da figueira, se era nos calores do Verão. Ali estava agora, direita ainda, frente ao vento da tarde funda de Agosto, um vento largo e calmo de céu e de montanha. Mas tão grande era a certeza de sossego à sua volta, tão aberta de paz e de sinal, que a cabeça lhe tombou para o tronco da figueira e as mãos e os olhos se entregaram à unção de uma morte merecida. Quanto tempo? Abriu os olhos e sentiu-se verdadeira no seu corpo fatigado, como fora verdadeira toda a dor que conquistara. – Mãe Genoveva! Há quanto tempo? Um dia, ele voltara da fábrica mais cedo que de costume. Tinha as mãos certas, o olhar certo, uma certeza tão presente em todo o seu corpo forte, que era quase como se não tivesse um destino. Assim Genoveva o foi esperar ao limite mais extremo da sua confiança, serena, branca e loura, alta e loura como a glória. E tendo-se apenas fitado longamente um ao outro, reconheceram-se por detrás da sucessão dos séculos, húmidos de origem, infindáveis de apelo, como tocados, para sempre, de um esquecido indício divino. – Vicente! Depois veio o Inverno e a baba do vento e as noites sem fundo como o capuz de um condenado. A montanha espadaúda combateu brutamente contra o céu, caíram sobre o mundo tumultos de trovoadas, chuvas e nevoeiros esmagaram a terra de pavor. Mas havia para Genoveva, no centro de tudo isso, uma oculta defesa, não bem contra o perigo do céu e da montanha, não bem contra o terror do mistério, mas contra uma pálida suspeita de morte, que se alongava pelas noites solitárias. 128 Vicente dizia-lhe que uma nova fiação ia ser posta a trabalhar ou que se falava em aumentar a féria, ou até mesmo que sentia o corpo fatigado. E tudo isto, saído da sua boca, era tão forte de perfeição e de verdade, tão como o bafo quente de quem nos aconchega a roupa, que o mais era a memória de um pesadelo morto. Assim, como toda a sua vida falava de promessa e de futuro, quando depois do Inverno voltou a Primavera e, depois da Primavera e do Verão, o Outono lhes trouxe um filho, ela não se surpreendeu. Só o marido pareceu embaraçado de medo e deslumbramento, diante de um prodígio maior do que ele e que, no entanto, incrivelmente, tinha o destino do seu sangue e sua raça. Ou talvez que nesse olhar longo e calado em que envolvera o filho, ele quisesse apenas trasvasarlhe tudo quanto julgava não lhe ter dado ao nascer; porque, dez dias depois, o correão do tambor das cardas apanhava-o pelo casaco e arremessava-o contra os caibros do tecto. Três vezes o corpo desconjuntado de Vicente atravessou o espaço, três vezes os companheiros clamaram sobre o estrépito das máquinas. Quando, por fim, alguém parou o motor, Vicente foi desprendido da correia e deitado em silêncio no chão. Tinha os ossos todos britados, o corpo. numa papa sangrenta. E tão desfigurado de tortura e de sangue, que os companheiros não ousavam reconhecê-lo nem tocá-lo. Só as mãos seguras da mulher, tão certas como se as não comandasse, conheciam o lugar da sua boca, dos seus olhos e do seu olhar. E pousando-as longamente naquela face destruída, aí as esqueceu, confraternizando com o sangue, como se esperasse que Vicente adormecesse enfim, ou que ela fosse investida, de algum modo, numa parte daquele sofrimento. Depois partiu dali desvairada, atirada num grito, e precipitou-se, com um ciúme assassino, sobre o filho que era seu. E subjugada pela voz absoluta da morte e da criação, o amor ao filho grudava-a a si própria, atirava-a contra o futuro como uma força escura da terra. Só três meses depois, corroída de cansaço, consentiu que um senhor que lhe viera pôr na mesa um envelope fechado, lhe levasse o filho, o registasse, o baptizasse e lho trouxesse, enfim, como o nome inteiro do pai. Só depois consentiu que a vida recomeçasse. Já o vasto silêncio do Inverno caía de novo sobre a aldeia e o vale. Era agora uma lúcida aridez de prados de gelo, uma alegria mortal de longas neves, como a inocência de um cadáver de criança em urna branca, era o sol rápido e triste, os cavernosos urros da tormenta. Mas agora tudo clamava, duramente, pela angústia de Genoveva, perseguindo-lhe os dias e as noites. E umas vezes chorando sobre o filho, com o desespero de um amor impotente e desgraçado, investindo, outras vezes, de coragem alta, contra o ódio da morte, a promessa renasceu-lhe finalmente no coração. Contava os dias nos segundos, pelo esforço dos trabalhos avulsos – casas lavadas, carregos, sol a sol no campo – com o suor da sua entrega 129 pedido a cada parte de si. Mas, repentinamente, a virgindade de um mundo nasceu em roda do filho. Com uma voz que já não era a dela nem a do silêncio indefeso da criança, surgiu um dia, ali, diante de si, na certeza irrevogável dos muros negros da casa, a enorme verdade de um ser que falava, que pedia, que pensava. De si até ao filho, ia agora o milagre de uma fraternidade nova, ia quase uma surpresa de dois ausentes que se encontram, como aquela que Genoveva sentira em face do marido, quando reconheceu que o amava. Com um espanto que nunca supusera, ela via crescer, à sua face, o prodígio de um deus que impetuosamente recriava a terra e os céus. O pequeno dizia «mãe», «pão», «lua», e a lua e o pão e ela própria existiam realmente, levantavam-se para a vida pela primeira vez, ou surgiam tão diferentes e tão novos que era como se só então tivessem sido criados. Porque a lua era o apelo de uma inocência inteira, e não um cansaço do fim; o pão, apenas uma forma que se cumpre, e não um ódio necessário; e tão nova era agora nela a verdade de ser mãe, porque tão-só ela e tão a medo até agora o soubera, que Genoveva se curvou de humildade e gratidão, diante de si e do filho, como um mistério de uma vontade divina anunciada. Vicente cresceu como tudo o que tem de crescer. Percorreu os caminhos da montanha, comeu a fruta verde dos quintais, foi à escola como os filhos da sorte. Mas um dia, o senhor misterioso atalhou-a com uma proposta inesperada: – Entra já. Chegam os estudos que tem. Dentro de cinco anos, ganha como um verdadeiro operário. E Genoveva estremeceu, a uma súbita memória vermelha de sangue. E afogada de angústia, disse: – Não! Mas o homem tinha razões da vida, razões da dura necessidade que não levavam em conta os sustos da memória. Tinha-as o homem, tinha-as a gente da vizinhança e até mesmo as tinha aquela parte de si mesma a quem ela dissera «não». E Genoveva cedeu. Numa manhã alta de estrelas, Vicente ergueu-se investido de uma força desconhecida. Havia silêncio no céu, a montanha dormia ainda, longamente, as estradas iam desertas pelo mundo. Genoveva abriu a janela para a solidão da manhã e esperou. Era talvez possível que qualquer carro parasse, que a vizinha Clotilde viesse soltar as galinhas, que acontecesse, enfim, naquela manhã absoluta, qualquer coisa humana e íntima mais forte do que o silêncio e a ameaça. Mas nem o carro passou nem a Clotilde se ergueu. Só dois homens, algum tempo depois, saíram do ventre da noite, vieram bater à porta, chamaram por Vicente. E ele foi com os companheiros, atravessou o troço da estrada, já branca na madrugada, e desapareceu. 130 – Mãe Genoveva! Há quanto tempo? Então Genoveva estremeceu de leve, mas tão fundo, que tudo nela o sentiu. Algum tempo ficou à janela da sua solidão até que a manhã foi subindo por detrás da montanha e as galinhas de Clotilde encheram a vizinhança e os homens atravessaram os campos, gravados de submissão. E segura agora de que tudo estava acontecendo normalmente, Genoveva fechou enfim a janela. Mas de súbito, na mudez sólida da casa, de novo uma voz quente e anónima, vinda de trás lhe falou ao ouvido, serena e firme como voz de eternidade. Genoveva voltou-se devagar para a janela, e olhou através dela a estrada branca, e depois da estrada branca a montanha, e depois da montanha a memória silenciosa de tudo. Era possível que o filho tivesse partido para sempre. Mas tudo ficara tão calmo e natural que ela própria se não atrevia a sofrer. Foi esperá-lo, todavia, nessa tarde, não bem ao limite da sua confiança, ou à torre do desespero ou sequer à curva da estrada de areia branca onde ele se perdera, mas somente ao receio breve da janela da manhã. E ele ergueu-se, por fim, na ponta da estrada branca, tão alto e tão forte como uma jura comprida. – Meu filho. Clotilde fechava as galinhas, os homens regressavam dos campos, a noite vinha chegando à hora prometida. Mas Genoveva já não acreditava na verdade íntima de tudo isso. Porque havia, além do mais, a coragem do filho, uma coragem excessiva, já só desafio, que mal parecia ter em conta a protecção que ela tinha para lhe dar e a certeza humilde de que havia morte no mundo. Por isso Genoveva se recolheu ao seu amor vencido e aí ficou ouvindo, num silêncio resignado, toda a súbita glória de Vicente, cantada a óleo e a aço na inocência do seu corpo. Finalmente, o filho calou-se no fundo da noite. Então Genoveva olhou pelos vidros da janela e pensou: «Sem uma nuvem. Vêem-se todas as estrelas». – E amanhã às cinco – disse o filho. – Sim. Durante longos anos, Vicente partiu pelas madrugadas frias de Inverno, pelas manhãs altas de Verão. E sempre com ele partia a esperança de que voltasse com a noite. Ele voltava, umas vezes antes da noite, outras vezes depois; mas todos os dias qualquer coisa partia com ele pela manhã e dizia adeus a Genoveva para nunca mais. Só o amor voltava inteiro com ele, se bem que houvesse agora grandes salões de portas fechadas para lá da sala amiga onde ambos se fitavam. Contra o coração alarmado, ela sentia embaterem os gritos de lá de dentro, clamores de uma esperança terrível, altas colunas de silêncio como saudações à morte. Quando porém ele voltava à sala quente dos dois, de novo Genoveva o reconhecia inteiramente como seu. Ela pensava então no caminho percorrido por ambos, desde a hora de sangue do marido. E via-se a si levando o filho pela 131 mão, via depois o filho crescer, caminhar à frente, deixá-la a ela pra trás e voltar finalmente, de novo, para lhe dar a ela a mão outra vez. E Genoveva dava-lhe a sua, maternalmente, fraternalmente, filialmente. Porque às vezes o pai verdadeiro era ele e era ele o irmão verdadeiro. E todavia, mais do que nunca Vicente desejava ou consentia agora em ser seu filho. Por isso, era sempre na dimensão da pureza e submissão que ele contava dos silêncios de amargura, da fúria e da esperança, de tudo o que era suspeita e ruído, para lá do amor dos dois. E então, ungido na fronte por um bafo de infância, tudo nele subitamente era inocência e verdade como um bibe sujo de terra. Mas precisamente, como iria o mundo perdoar-lhe a inocência? Assim, quando tudo ficou esclarecido, entre os dois, ela cerrou os olhos de bênção e pôs-se à espera da morte. E a morte veio, não subitamente, mas devagar, para que ela a estivesse esperando mesmo depois de estar presente. Numa tarde cansada de Agosto, Vicente não voltou. Genoveva esperou-o até que a noite desceu, esperou-o depois de a noite vir e depois de a lua quente subir ao alto da montanha, e depois mesmo que um companheiro do filho a veio avisar secretamente de que Vicente não viria. Esperou-o toda a noite com a lua e as estrelas e a sua solidão. Ele não veio mais. Mas numa noite, exactamente numa noite como aquela, suspensa de luar e de silêncio, um homem emergiu do pátio fronteiro, agora inundado de lua como um lago fosforescente. E numa voz inteira, forte e todavia submissa, o homem clamou: – Mãe Genoveva! Na parede do fundo, a lua projectava um ramo de oliveira que bulia, silencioso, e se abria, devagar, numa suave flor de sombra. Voltada um pouco para dentro da sala, Genoveva sangrou de surpresa e de espera àquela voz estranha em que no entanto ouvira esse sinal sem engano, já tão seu conhecido, de dois destinos que se chamam um ao outro, infinitamente, por cima de todo o ódio e de todo o sonho da vida. E de facto, quando o homem nocturno falou e contou de Vicente, Genoveva reconheceu, sem uma perturbação, que o amor do filho, através do seu combate, da sua esperança, lhe estendia, para sempre, a mão firme, na mão daquele amigo. E Genoveva tomou-lha longamente e pousou-lhe as suas nos ombros e sagrou-o também a ele como seu filho, desde o mais fundo do cansaço do seu ventre. Mas desde então os filhos de Genoveva tornaram-se tão numerosos, que toda a voz carnal do seu amor se esgotava e cumpria. Vinham de noite, pelas manhãs surdas, algumas vezes mesmo às horas públicas do dia. Mas em qualquer momento, a um simples olhar deles, Genoveva reconhecia-os e amava-os logo, irremediavelmente, com uma pureza humilde e profunda. Assim, como quando Vicente lhe falava, ela escutava as vozes deles apenas na sua piedade serena. Todos eles contavam da esperança, da justiça, do amor, e Genoveva acreditava. 132 Porém não acreditava apenas porque a justiça estivesse certa e a glória estivesse certa, mas porque, depois de tudo, acontecia às vezes pedir-lhe algum deles que lhe consertasse a velha roupa ou lhe ensinasse o bom remédio para uma constipação... Até que um dia Vicente voltou, tocado de sinal e de vertigem, como a fachada de um palácio iluminado. Mas quando se sentou no seu lugar, à mesa da cozinha, e o vento do Inverno se levantou sobre a casa, logo tudo foi verdadeiro e bom desde o princípio. – Como vens cansado! A chuva despedaçava-se contra a vidraça, um clamor de tempestade varria toda a montanha, uma noite verduga rangia em torno da casa os grossos dentes do ódio. E ao alarido daqueles urros nocturnos, outra vez, de Genoveva para o filho desceu o gesto da protecção e da bênção. Fechados de resguardo e de intimidade, era como se Vicente se tivesse escapado à perseguição da noite e a noite ficasse à porta ladrando furiosamente, como um rancor de cães ao tronco de uma árvore por onde a presa fugiu. Pela madrugada, porém, quando a noite o estava ainda esperando, esquecido do perigo, Vicente partiu. E a noite o tomou e levou para sempre. Foi três meses depois, que Genoveva o foi ver ao cume do seu destino. Separava-os um mundo de fúria e de sangue; mas Vicente deu um passo, venceu o sangue e a fúria e abraçou Genoveva e disse bem alto com a voz perfeita de todos os outros filhos: – Mãe Genoveva! Há quanto tempo? Ali estava agora, direita ainda um pouco, frente ao vento largo daquela tarde de Agosto. Era um vento calmo, quente como um apelo de morte. Doía-lhe suavemente a cabeça, ou não bem a cabeça talvez, nem talvez mesmo a memória de tudo, mas, mais fundo do que isso, a raíz de estar vivendo, como um limite atingido. Já a noite vinha crescendo devagar e as árvores subiam mais alto no céu profundo. Então, ampliando-se desde o largo do horizonte, milhares de bocas clamaram ao mesmo tempo, enchendo todos os séculos do passado e do futuro: – Mãe Genoveva! E Genoveva, subitamente, sentiu-se iluminada, docemente ungida de um sinal de maternidade para todos os tempos da esperança e do amor. Suspenso sobre as cabeças, sobre a glória do canto dos seus filhos, um grande gesto de bênção unia-os como um ventre. Até que, à hora quente da lua cheia, fechada de um silêncio final, segura de que tudo se cumprira em perfeição, Genoveva sentiu que a cabeça lhe tombava – e para sempre adormeceu. (De Contos, 1976) 133 FERNANDO NAMORA (1919-) A intensa e ostensiva verdade vivencial e a implícita ou muitas vezes explícita vocação de diálogo com os seus leitores que distinguem a obra de Fernando Namora como romancista e contista bastam para justificar a grande projecção nacional e a irradiação internacional crescente que a têm consagrado. Depois de Ferreira de Castro é este o primeiro caso de um escritor moderno que vence largamente (e não acidentalmente) a barreira do isolamento da literatura portuguesa. O seu estilo, de extrema nitidez formal, e o depurado desenho, chegando à virtuosidade, na composição narrativa, abrem prontamente aos leitores, portugueses ou estrangeiros, um espaço de comunicação em que se conjugam as adesões pela sensibilidade e o entendimento pela participação que a todos é oferecida nas realidades múltiplas da vida. Essas potencialidades de abertura ao humano, no mais simples e no mais complexo, revelam-se desde os primeiros livros de Fernando Namora, em que se espelha a sua experiência de infância e de juventude: As Sete Partidas do Mundo (1938) e Fogo na Noite Escura (1943); impõem-se com amplitude nos romances do ciclo rural, mais empenhadamente neo-realistas, como Casa da Malta (1945), A Noite e a Madrugada (1950) e O Trigo e o Joio (1954); ganham maior aprofundamento psicológico e versatilidade de caracterização das personagens nos romances de ambiência urbana: O Homem disfarçado (1957), Domingo à Tarde (1961), Os Clandestinos (1972), O Rio Triste (1982). Mais próximos do conto ou da novela curta, embora o Autor tivesse preferido sempre designá-los por narrativas, são os textos de ficção reunidos nas duas séries de Retalhos da Vida de Um Médico (1949 e 1963) e em Cidade Solitária (1959), atingindo muitas vezes o nível de condensadas obras-primas de género. A mesma comunicabilidade e segurança de delineamentos dos romances evidenciam-se na obra do contista. Fernando Namora é também autor de livros de poesia da «crónica romanceada» Diálogo 134 em Setembro (1966), que é um relato de encontros e observações cosmopolitas com grande riqueza de observação humanística, de volumes de crónicas e relatos de viagens em relevante indagação sociológica de problemas cruciais do nosso tempo. 135 O RAPAZ DO TAMBOR Em casa havia um tambor. Tinham-lho oferecido dois anos antes, pelo Natal. Mas o garoto não soubera regrar o entusiasmo, e as pessoas da casa e os vizinhos não suportando a barulheira, quiseram obrigar o pai a esconder-lho. O pai, porém, era um bom companheiro, um bom tipo: não lho escondera nem proibira; dissera assim: – Jènito: o tambor gasta-se com tanto uso. E, ainda que eu viesse a comprar-te outro, sei que seria sempre deste que tu gostarias. Acho que deverias tocar só de tempos a tempos, aos domingos. Desse modo, a pele do tambor poderá durar uma vida inteira. – Tem razão, pai. Tocarei só aos domingos. Mas posso dormir com ele nos outros dias? Claro que podia. O pai, aliás, facilitava os desejos de toda a gente. E Jènito passou a dormir com o tambor, tal como a irmã dormia com a boneca de olhos verdes, depois de lhe despir o vestido de renda, para não o amachucar. Contudo, antes de haver um tambor lá em casa, verdadeiro, que se podia apalpar com as mãos, existia já outro, na gravura da parede da sala. Era uma pintura com tons sanguíneos, que representava uma grande batalha: soldados com uniformes napoleónicos, bandeiras enrugadas por um vento heróico, cavalos furiosos, com os nervos à flor da pele e patas dianteiras erguidas sobre um inimigo que ia ser esmagado. E o rapaz do tambor ao centro, em corpo inteiro, soberbo, tendo na cabeça um barrete afunilado de um azul-turquesa. Uma luz incendiada, vinda não se sabe donde, caía-lhe em cheio sobre as mãos, enquanto o resto do quadro se dissolvia numa penumbra poeirenta. Mas se os cavalos erguiam as 136 patas medonhas, se os soldados mantinham firmes as baionetas luzidias, se as bandeiras flutuavam, gloriosas, ao vento, era porque o tambor os inflamava. O tambor era um apelo, um contágio, uma labareda. E que som, que ritmo, que trovoada! Repercutia por toda a casa. Jènito tinha os ouvidos aturdidos pela sua voz poderosa e admirava-se muitas vezes, fitando o pai, a mãe, o tio, a irmã, que ninguém mais mostrasse ouvi-lo; que as pessoas não se levantassem das cadeiras, de repente, e, seduzidas, fossem praticar um acto de bravura. Jènito fizera muitas perguntas ao pai sobre o significado da pintura. Quem eram os soldados, que país tinha aquela bonita bandeira; quem era, sobretudo, o rapaz do tambor. Um garoto poderia ser chamado a comandar uma batalha? O pai não gostava de falar de guerras. E a gente podia admirar-se de como ele deixara ficar na parede aquele quadro que se referia a coisas detestadas. Jènito não sabia que essa gravura, um pouco desbotada já, pertencera ao avô, leitor de feitos do general corso, e que o avô a estimara como se se tratasse de um brasão familiar. O avô, por certo, era dos que ouvira o rufar do tambor. – E tu, não o ouves, Guida? – repetia Jènito impaciente. A irmã poderia compreendê-lo. Também os sentidos de Guida eram sensíveis a um mundo interdito aos adultos. Apuravam ambos o ouvido. E Guida, por fim, ouvia, lá muito ao longe, o tropear confuso dos cavalos e o incitamento grave e glorioso do tambor. De uma das vezes, pareceu-lhe mesmo que aqueles soldados se mexiam, que iam sair do quadro para dentro da sala, que o gume acerado das baionetas vinha espetar-se nos olhos que o fitavam. Muito pálida, chorosa, disse: – Tenho medo. Não quero escutar mais o tambor. Deixá-lo: Jènito escutá-lo-ia sozinho. E não lhe dessem mais nada até ao fim da vida – mas dessem-lhe um tambor. Quando, na manhã de Natal, ao acordar, se lhe deparou o tambor à cabeceira da cama, o seu coração quase não teve forças para a surpresa. Num momento, deixou de bater. Jènito correu à sala, afogueado, e experimentou copiar, com o maior escrúpulo, o porte, a expressão, a energia do rapaz do tambor. Acordou meio mundo a tocar o brinquedo durante a manhã. Enfureceu meio mundo a tocá-lo todos os dias, a toda a hora, até que o pai o preveniu: – Jènito: o tambor gasta-se com tanto uso. O pai era um bom pai. Um homem viril, de cabeça bem erguida. E os cabelos! Fartos, grisalhos, majestosos. Quando ele, a fazer valer uma opinião, levava os dedos à cabeça a domesticar uma madeixa indócil que lhe caía para os olhos, que gesto soberbo! Como apetecia dizer-lhe: «Faz isso outra vez, pai!» O pai era o mais poderoso dos homens. Trabalhava numa fábrica de plásticos, nos arredores, e tinha de sair cedo de casa para apanhar o comboio. 137 Jènito só o via pelo fim da tarde. O pai, ao regressar, sentava-se na cadeira de verga, cachimbo na boca, uma ruga áspera na testa, um livro na mão. Jènito acocorado no tapete, seria capaz de estar ali horas a fio, apenas a olhá-lo. Por isso mesmo, odiava aqueles sujeitos desconhecidos que vinham visitar o pai à noite, fechando-se com ele lá dentro, numa saleta onde havia uma máquina de costura, uma secretária e uma mesa redonda que servia, em certas ocasiões, para a família jogar as cartas. E muitos livros, claro. O pai nunca se fartava de livros. – Quem são aqueles senhores, mãe? – Amigos do pai. – Porque não vêm para aqui e falam com a gente? – Não pode ser, Jènito. O pai dá-lhes explicações. Precisam de sossego. – E nós não podemos ouvir explicações? – São coisas só deles. Coisas de estudo. Para exames. – Mas eu também tenho exames. – Aqueles são exames mais adiantados. Como o mundo dos adultos era esquisito e intrigante! Jènito espreitava suspeitosamente esses companheiros do pai. Espreitava-os da janela, cerca da hora em que eles deveriam chegar. Não gostava deles. Não se pareciam com os soldados do quadro, nem com o pai, nem com o tio. Não sorriam. E roubavam-lhe quase todo o tempo em que ele poderia conversar com o pai. – Quando eu for grande, poderei ouvir as explicações? O pai dizia que sim. Ainda se o tempo passasse depressa! O tempo, no entanto, estava sempre no mesmo sítio. Os domingos, porém, pertenciam aos dois. Domingos bons. Iam a um jardim ou ao campo escolher folhas exóticas para um álbum, ao futebol e, com frequência, aos bairros humildes de certas zonas da cidade. Jènito sentia uma espécie de intimidação, ou de nojo, ou de culpa, ao aproximar-se dessas casas sujas, agachadas na bruma, onde morava gente ainda mais suja. Para que teimava o pai em vir ali, em conviver com desconhecidos? Que tinha para lhes dizer? Havia coisas misteriosas no procedimento do pai e Jènito enciumava-se de não participar de todas elas. – Agora brinca com estes meninos, enquanto eu me entretenho com uns amigos. Eles entravam num bar e Jènito e os rapazelhos, depois de uma sondagem cautelosa, acabavam por inventar um jogo divertido. Afinal, eram companheiros reinadios. E Jènito deixava mesmo de reparar que eles tinham as mãos sebentas e os calções esfrangalhados. – Pai: posso mostrar-lhes o tambor? 138 – Podes. Mas não lhes fales de soldados. Ninguém deve gostar de guerras. – Porquê, pai? Então os soldados não são valentes? – As pessoas devem mostrar-se valentes de outro modo. – Como? – Sendo boas umas para as outras. Sacrificando-se, se for preciso. Jènito não lhes levou o tambor. Um tambor sem batalhas não servia para nada. Em outros domingos, o pai ia cedo para a rua, mas combinavam, de véspera, encontrarem-se num certo café. Jènito ficava muito orgulhoso dessas combinações de homem para homem, e ainda orgulhoso por deixarem-no ir sozinho até ao local do encontro. Era um cafezito na praça do município, donde partiam os comboios que levavam para a montanha os burgueses fugidos da neblina. Havia lá uma caixa de música. Vinham rapazes e raparigas, sentavam-se, turbulentos, a uma das mesas, com o ar de quem estava em casa ou de quem alugara o café só para eles, e iam deitando moedas na máquina. Cada moeda, cada música. Maravilhoso. Por isso, Jènito mentia quando a Guida se queixava. «Só a ti é que o pai convida para irem ao café», e ele respondia: «Ao café não vão raparigas.» Iam, já se vê. E deitavam moedas na caixa da música e batiam as palmas, desengonçando o corpo, e faziam um chinfrim de quem não ligava mesmo nada às outras pessoas presentes. Ia encontrar o pai na companhia de algum desconhecido, falando-lhe num tom grave e secreto, ou a escrever nuns cadernos e sempre com dois ou três.livros empilhados ao lado da xícara de café. Que escrevia o pai, que livros eram aqueles, que gente o visitava ao serão? Roía-o por vezes o pressentimento incómodo e revoltado de que o pai tinha uma vida dupla, de que havia nele duas pessoas: a que lhe falava docemente de coisas próximas, visíveis, que se misturava à mesa com a família, que era real e acessível, e outra obscura, clandestina, que se temia. Até que uma noite aconteceu aquilo. Ouviu-se um automóvel travar de repente, ali na rua. Os pneus chiaram no piso orvalhado. Passos na escada e alguém bateu à porta. A mãe adivinhara fosse o que fosse: no meio da sala, sem um gesto, parecia assombrada. E depois dirigiu-se à janela, afastando, a medo, as cortinas. – Vem aqui ver, Arnaldo. O pai espreitou por detrás dela e, de súbito, correu à tal saleta dos fundos e veio de lá com tantos papéis que não lhe cabiam nos braços. O tio pegou neles e preparou-se para saltar pela janela das traseiras, que dava para o quintal dos vizinhos. Antes, porém, ainda disse: – Vem também, Arnaldo! O pai tinha a ruga da testa muito funda e a madeixa a escurecer-lhe os olhos. Mas estava sereno. Acenou vigorosamente que não. 139 – Vem, não percas tempo! – Não adiantava. Agora já não há perigo. Batiam à porta com mais força e insistência. O tio, de expressão esgazeada, desapareceu. Esperaram que batessem ainda uma, duas vezes, e a mãe, por fim, foi abrir. Jènito, de coração apertado, sentiu o mesmo que naquele dia ao ouvir pela primeira vez o granizo esmagar-se abruptamente de encontro às vidraças, antes da trovoada. A expectativa de um acontecimento informe e terrível. – Vai para o quarto, depressa, Jènito! O granizo, o granizo. Ele ainda viu os homens a passarem a porta, de chapéu enterrado na cabeça, o rosto na sombra. Jènito foi à outra janela espiar a rua: lá estava o automóvel. Parado, sinistro. Faz medo um automóvel negro, imóvel, dentro da noite. E por detrás dele, um jipe. Viu uns guardas saírem do jipe e dividirem-se pelos dois lados do passeio até que a névoa os sorveu. Tinham espingardas, espingardas verdadeiras. O pai esteve uns meses ausente. E era estranho que as visitas da casa, de um dia para o outro, tivessem deixado de aparecer. Como se toda a gente soubesse ou adivinhasse que o pai andava em viagem. – Onde está o pai? Quem eram aqueles homens? Para onde o levaram? E a mãe respondia: – Foi para uma viagem. – Então aqueles homens eram amigos? – Homens daqueles não são amigos. E o tio intervinha, com ódio na voz: – São bichos. Mas por que razão as pessoas grandes não explicavam as coisas de modo que se percebesse? Que se passava com o pai, com o tio, que se passava naquela casa? Muita coisa mudara desde a partida do pai. Desde a noite em que os homens de chapéu na cabeça, ou os bichos (como dizia o tio), tinham vindo buscá-lo no automóvel sinistro. Ah, mas isso não voltaria a acontecer! Jènito olhava com fervor para a gravura da parede, para o rapaz de barrete azul a inflamar com a sua exortação a coragem dos soldados, e ficava certo de que, se tivesse pegado também no seu tambor, naquela noite, os homens (ou os bichos) que haviam entrado pela porta sem tirar o chapéu da cabeça teriam fugido de medo. Jènito não se iludira: o pai não saíra de casa por sua livre vontade, não andava em viagem. Mas que fizera o pai para que alguém lhe quisesse mal? E por que motivo a mãe, o tio, os vizinhos e ele próprio, Jènito, não o haviam defendido? Faltara a todos qualquer coisa – um tambor. E durante todos os meses pardacentos em que o pai estivera longe da família, Jènito, com um sentimento de culpa, não tirou o tambor de cima da prateleira. 140 Quando o pai voltou, era outro. Mais cabelos grisalhos e desmanchados. E magro, então! O dorso velho, uma face triste. Jènito foi esconder-se algumas vezes no quarto para chorar. Tinham-lhe roubado a alegria viril e jovem de seu pai. Não lhe fez perguntas. Lá no íntimo acusava o pai de não partilhar com ele o mundo nebuloso onde morava a outra metade da sua vida. O tempo, por fim, foi recuperando os hábitos antigos. Os mesmos passeios, as mesmas visitas, o café de certos domingos. Nem uma palavra, porém, do que acontecera. Sentiam-se ambos, nesse silêncio espesso, como mutuamente cúmplices de um ressentimento longínquo, mas sempre presente. Num dia, contudo, em que foram à praia, logo que o pai saiu da barraca com as costas nuas, lhe varou os olhos uma cicatriz, ainda túmida, que cortava em diagonal a sua carne musculada. Jènito ficou de gestos suspensos. – Que foi isso, pai? – Caí há tempos sobre uns estilhaços de vidro. – Mas eu não te vi o casaco rasgado! – Nessa ocasião estava despido. – Despido? O pai mentira-lhe. O pai era mentiroso. Jènito dobrou-se todo para a frente, escondendo os olhos, e pôs-se a soluçar. Mordia a boca, arranhou o rosto, mas não podia sofrear o choro. O pai esperou que ele acalmasse, enquanto as suas mãos fortes e hesitantes lhe acariciavam os ombros. Mais tarde, levou-o praia fora, a caminho dos rochedos, onde às vezes iam apreciar algum pescador solitário. – Ouve Jènito... Esta cicatriz que tu viste não foi de nenhuma queda. Mas eu não sabia como dizer-to. Jènito pôs-se de novo a soluçar e logo, enervadamente, enxugou os olhos com as mãos, perguntando numa voz decidida: – Quem te fez isso? – Lembras-te daquela noite em que... saí de casa? – Foram eles, então? – Foram. – E tu... deixaste? Deixaste que eles te levassem? – Não havia outro remédio. Ouve, filho: há coisas que só um homem pode entender. Jènito baixou a cabeça e disse, triturando as palavras, quase imperceptivelmente: – Eu sou um homem. O pai decerto não o ouvira; de súbito, apontando um barco que entrava na barra, desconversou: 141 – O navio vai a caminho do farol. Está lá daqui a um instantinho. Vamos ver se chegamos primeiro do que ele? Jènito acompanhou-o sem entusiasmo e, a meio da corrida, sentou-se na areia, amuado e taciturno. O pai mentira. O pai deixara-se prender. Deixara que lhe fizessem uma cicatriz infame nas costas. Não era valente como os soldados da gravura da sala. Jènito nunca se sentira tão longe e tão arredado do mundo dos grandes como naqueles dias em que bastava que se fosse à rua, ou à janela, ou se visse entrar em casa alguém da família, para que os sentidos ficassem impregnados de uma agitação contagiosa e sufocada que precisasse de romper a crosta que a fechara numa prisão. As pessoas não tinham parança. Eram como as formigas que ele, certa vez, soprara à boca de um formigueiro e que tinham desvairado para um e outro lado à procura do motivo que as fizera desviar. Os desconhecidos, na rua, ao olharem-se, pareciam comprometidos numa vasta e idêntica conspiração. Até a alegria da gente grande, das palavras aos gestos, era ambígua, densa, terrível. O pai, o tio, e ainda a mãe, dantes tão discretos nas conversas à mesa, falavam agora animadamente, apenas pelo desejo de falar e de se ouvirem, como garotos palradores na véspera de um acontecimento. Jènito foi captando alguns pormenores. O pai comprava três e quatro jornais ao dia e discutia-os, a punho fechado, com os amigos. E os vizinhos, saudando-se por tudo e por nada, faziam o mesmo: vinham da rua e saíam de casa a ler jornais, puxavam-nos, com sofreguidão, dos braços dos ardinas. Que acontecera? Quem eram esses nomes que andavam na boca de toda a gente e que os jornais repetiam todos os dias? Escusado perguntar. Não lho diriam. E que intenso desejo, que inquietação tinham modificado as pessoas – o pai, a mãe, os vizinhos, a rua, a cidade inteira? Quando alguém respirava – e Jènito sentia o mesmo –, o ar era espesso, vibrátil, quente, embora se pressentisse que essa opressão iria terminar num imenso alívio. Jènito apercebia-se bem de que não era uma coisa que acontecera – mas sim que iria acontecer. Numa das noites, o pai saiu de casa com o tio, demorou-se por lá umas horas e, ao regressar, nem reparou que nenhum dos filhos se deitara ainda. Alvoreado, disse de rompante para a mãe de Jènito: – As ruas estão cheias de polícias. E, nas margens do canal, há tanques. Tanques? O pai dissera tanques? Ah, agora compreendia todo aquele desassossego! Ia dar-se uma batalha. Bandeiras, tambores, soldados. O pai devia acautelar-se, ao menos com uma espingarda. No dia seguinte, o pai não foi ao emprego. Andava pela casa como um bicho enjaulado. Bicho, não! Bichos eram os outros, os homens que lhe haviam entrado 142 em casa de chapéu na cabeça. Almoçou mais cedo do que habitualmente e, antes de vestir o casaco, puxou o filho de lado: – Não deves ir hoje à rua, Jènito. Promete-me. Jènito não respondeu. – Prometes? – Porquê? – Hás-de ouvir muita gente na rua. Gritos, talvez, ou, pelo menos, gente aos berros, como no futebol. Fica em casa, aconteça o que acontecer. – Gente aqui, na nossa rua? – Em todas as ruas. Mas talvez mais nesta do que nas outras. Prometes? – E à janela, posso ir? – Talvez, com cuidado. – Que aconteceu, pai? Uma festa? – Muitas pessoas vão esperar alguém que chega no comboio. E depois acompanham-no. Devem passar por aqui. Afinal, não era a guerra. Não havia tanques nem soldados. Algum senhor importante regressava dos albergues da montanha. – Quem é, pai? Um jogador de futebol? De que clube? – Não é um jogador de futebol. Prometes? O pai já vestira o casaco. Jènito concedeu, sem convicção: – Prometo. Daí a segundos foi para a janela. A mesma atmosfera que parecia enrolar-se na garganta. A rua estava deserta e nela se sentia o arfar de multidões. Uma faca poderia cortar, como um pedaço de pão, o ar que se respirava. O pai dissera que havia polícias por todo o lado. Afinal, sempre deviam preparar uma batalha e o homem do comboio viera para a dirigir. Ah, como seria formidável, uma batalha! Uma hora depois, Jènito ouviu um rumor grosso, crescente, lá longe. Uma enxurrada que se aproximava. E o ar fez-se ainda mais encorpado. A ansiedade de Jènito tornara-se dolorosa. Apetecia-lhe correr pela casa, partir coisas, rasgar coisas, ir ao encontro da enxurrada. «Prometes?» Vieram alguns polícias para os dois lados do passeio, em jeito de emboscada. E depois mais outros. Por fim, eram dois cordões a todo o comprimento da rua. – Guida! Guida! Chega aqui para ver! Guida trepou para uma cadeira e pôs-se também à janela. A mãe não aparecia, estava na cozinha, ou no pátio, ou quem sabe se também se escapara para a rua. Só ele estava ali prisioneiro. «Prometes?» Tinha de cumprir a promessa. Polícias, sempre mais polícias e gente que, sem olhar, corria para os lados da enxurrada. Mas estes polícias não tinham espingardas, a guerra não era com eles. Os que, na tal noite, lhe haviam roubado o pai, esses, sim, tinham espingardas. 143 – Não vejo nada, Jènito. – Já vais ver. Pois. Ele sabia que iriam esperar um homem ao comboio, um homem mais fabuloso do que um jogador de futebol. O pai dissera-lho. E foi então que uma imensa turba surgiu, de chofre, no extremo da rua. Em silêncio. E quanto mais se aproximava, maior o silêncio. Um silêncio medonho, denso, orquestrado, que batia de encontro às paredes, de encontro aos tímpanos e os deixava obstruídos. Pessoas. Muitas pessoas. Daquela distância e dentro da névoa pareciam iguais. Marchavam num passo certo, predestinado, e dir-se-ia que se um dique se levantasse na sua frente elas passariam da mesma forma, com o mesmo passo, tal como um punho atravessa uma folha de papel. A polícia recuava. Quem eram eles? Qual o seu destino – onde terminaria a sua força solidária e bárbara? Era aquilo uma guerra? Uma guerra sem bandeiras e sem gritos? Mas, sem bandeiras, sem canhões e sem gritos, Jènito sentia-lhes o mesmo incêndio dos homens da gravura da sala e, de súbito, percebia que toda a vida secreta dos adultos acabara de se desvendar. E, nisto, viu o pai entre eles. – O pai, Guida! Olha o pai! Viu-o, antes de mais, pelo gesto de domar o cabelo revolto. Era ele. O pai era um soldado. Não tinha medo. – Eh, pai! – gritou. Qualquer grito, porém, era logo sorvido pelo silêncio. Ninguém o ouviria. E, também abruptamente, a enxurrada quebrou. Ou melhor: correu sobre ela um vento contrário, vergando-lhe as cristas, como acontece às hastes das searas quando uma brisa doida muda de direcção. Lá no fundo, a polícia formara uma parede. E, por detrás, ainda outra parede, eriçada de espingardas hirtas, à espera que os corpos, passivamente, viessem oferecer-se. Afinal, eram os mesmos que tinham vindo na tal noite. Da multidão partiu uma voz, um ronco surdo, uma onda que rebenta e logo se põe em movimento, Ah, como Jènito, de coração transido, desejava que a sua febre pudesse comunicar-se à enxurrada e robustecer-lhe a raiva e o ímpeto! E quando a multidão acometeu de novo, como um touro ferido, de novo a parede eriçada de espingardas a fez recuar. A enxurrada desmantelara-se. Dela desprendiam-se pessoas que corriam sem destino, logo absorvidas pela muralha de polícias. Reses que desertam e são devoradas. Eles iam ficar vencidos. Não atravessariam a parede. Jènito passou as mãos pela testa gelada e húmida. Quase o gesto do pai. O pai não podia ser vencido. De súbito, olhou a gravura da sala. Os cavalos heróicos, os soldados, o tambor. Era de um tambor que eles precisavam. «Prometes?» – «Não, pai, não posso prometer.» 144 Começou a tocar o tambor ainda antes de chegar à rua. E sempre a tocar foi abrindo caminho na multidão hesitante e esboroada. Até lá à frente. Onde a enxurrada poderia morrer ou vencer. Horas depois, os curiosos que vieram observar os buracos que as balas tinham aberto nas frontarias dos prédios procuravam ainda a mancha de sangue que, ao centro da rua, marcava o lugar onde outra das balas acertara no peito do rapaz do tambor. Mas alguém a fizera desaparecer. E os curiosos iam-se embora concluindo que os homens das espingardas, quando matam, não deixam nódoas. Apenas buracos. (De Cidade Solitária, 1959) 145 SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN (1919-) A vocação preponderante de poetisa, que lhe mereceu lugar de alto prestígio na moderna lírica portuguesa, assumiu outra face na obra de Sophia Andresen com a sua criação de contista. Também esta é portadora, fundamentalmente, duma sensibilidade que se insinua através da efabulação e duma constante carga simbólica ou mítica em nível poético, a que se ajustou um estilo de envolvente doçura e harmonia. A prosa desta Autora, como a sua poesia, apresenta-se, no dizer de Urbano Tavares Rodrigues, como «o espelho fantástico duma sensibilidade». E é nesse espelho que tomam expressão humana os aspectos emocionalmente vistos da natureza e nesta vêm a fundir-se os sentimentos e estados de consciência das personagens imaginadas. É esta demiurgia transfiguradora que inspira a obra extensa de literatura infantil publicada por Sophia Andresen, constituindo para além do seu intuito imediato uma fonte de leitura poética capaz de seduzir nos seus acordes de musicalidade verbal ou na sua sequência de imagens os leitores adultos esteticamente mais exigentes. É também a substância lírica essencial em toda a obra da escritora, mas aqui geralmente identificada com uma ética de raíz evangélica, que dá corpo às narrativas reunidas em Contos Exemplares (1962). As personagens que perpassam nelas são símbolos de tipos humanos ou de ideias e sentimentos que se personalizam para assumirem a força «exemplar» de realidades vivas. E, como assinalou José Palla e Carmo, é «a presença de um pensamento intrinsecamente e essencialmente poético» que eleva esse livro a «um lugar cimeiro da nossa produção literária». A linguagem de Sophia Andresen na criação ficcionista conserva, em flagrante identidade, o cadenciado andamento, a pureza e a suavidade expressional da sua poesia. Mesmo no realçar inelutável das fealdades humanas, em contraste com «a beleza das coisas», com «tudo o que é perfumado e maravilhoso no mundo natural», a escrita novelística da Autora desprende-se do que possa haver nessas fealdades de tosco e agreste para que não se perca nelas o ritmo do essencial. 146 O HOMEM Era uma tarde do fim de Novembro, já sem nenhum Outono. A cidade erguia as suas paredes de pedras escuras. O céu estava alto, desolado, cor de frio. Os homens caminhavam empurrando-se uns aos outros nos passeios. Os carros passavam depressa. Deviam ser quatro horas da tarde dum dia sem sol nem chuva. Havia muita gente na rua naquele dia. Eu caminhava no passeio, depressa. A certa altura encontrei-me atrás dum homem muito pobremente vestido que levava ao colo uma criança loira, uma daquelas crianças cuja beleza quase não se pode descrever. É a beleza de uma madrugada de Verão, a beleza duma rosa, a beleza do orvalho, unidas à incrível beleza duma inocência humana. Instintivamente o meu olhar ficou um momento preso na cara da criança. Mas o homem caminhava muito devagar, e eu, levada pelo movimento da cidade, passei à sua frente. Mas ao passar voltei a cabeça para trás para ver mais uma vez a criança. Foi então que vi o homem. Imediatamente parei. Era um homem extraordinariamente belo, que devia ter trinta anos e em cujo rosto estavam inscritos a miséria, o abandono, a solidão. O seu fato, que tendo perdido a cor, tinha ficado verde, deixava adivinhar um corpo comido pela fome. O cabelo era castanho-claro, apartado ao meio, ligeiramente comprido. A barba por cortar há muitos dias crescia em ponta. Estreitamente esculpida pela pobreza, a cara mostrava o belo desenho dos ossos. Mas mais belos do que tudo eram os olhos, os olhos claros, luminosos de solidão e de doçura. No próprio instante em que eu o vi, o homem levantou a cabeça para o céu. 147 Como contar o seu gesto? Era um céu alto, sem resposta, cor de frio. O homem levantou a cabeça no gesto de alguém que, tendo ultrapassado um limite, já nada tem para dar e se volta para fora procurando uma resposta. A sua cara escorria sofrimento. A sua expressão era simultaneamente resignação, espanto e pergunta. Caminhava lentamente, muito lentamente, do lado de dentro do passeio, rente ao muro. Caminhava muito direito, como se todo o corpo estivesse erguido na pergunta. Com a cabeça levantada, olhava o céu. Mas o céu eram planícies e planícies de silêncio. Tudo isto se passou num momento e, por isso, eu, que me lembro nitidamente do fato do homem, da sua cara, do seu olhar e dos seus gestos, não consigo rever com clareza o que se passou dentro de mim. Foi como se tivesse ficado vazia olhando o homem. A multidão não parava de passar. Era o centro do centro da cidade. O homem estava sozinho, sozinho. Rios de gente passavam sem o ver. Só eu tinha parado, mas inutilmente. O homem não me olhava. Quis fazer alguma coisa, mas não sabia o quê. Era como se a sua solidão estivesse para além de todos os meus gestos, como se ela o envolvesse e o separasse de mim e fosse tarde de mais para qualquer palavra e já nada tivesse remédio. Era como se eu tivesse as mãos atadas. Assim às vezes nos sonhos queremos agir e não podemos. O homem caminhava muito devagar. Eu estava parada no meio do passeio, contra o sentido da multidão. Sentia a cidade empurrar-me e separar-me do homem. Ninguém o via caminhar lentamente, tão lentamente, com a cabeça erguida e com uma criança nos braços rente ao muro de pedra fria. Agora eu penso no que podia ter feito. Era preciso ter decidido depressa. Mas eu tinha a alma e as mãos pesadas de indecisão. Não via bem. Só sabia hesitar e duvidar. Por isso estava ali parada, impotente, no meio do passeio. A cidade empurrava-me e um relógio bateu horas. Lembrei-me de que tinha alguém à minha espera e que estava atrasada. As pessoas que não viam o homem começavam a ver-me a mim. Era impossível continuar assim parada. Então, como o nadador que é apanhado numa corrente e desiste de lutar e se deixa ir com a água, assim eu deixei de me opor ao movimento da multidão e me deixei levar pela onda de gente para longe do homem. Mas enquanto seguia no passeio rodeada de ombros e cabeças, a imagem do homem continuava suspensa nos meus olhos. E nasceu em mim a sensação confusa de que nele havia alguma coisa ou alguém que eu reconhecia. 148 Rapidamente evoquei todos os lugares onde eu tinha vivido. As imagens passaram oscilantes, um pouco trémulas e rápidas. Mas não encontrei nada. E tentei reunir e rever todas as memórias de quadros, de livros, de fotografias. Mas a imagem do homem continuava sozinha: a cabeça levantada que olhava o céu com uma expressão de infinita solidão, de abandono e de pergunta. E no fundo da memória, trazidas pela imagem, muito devagar, uma por uma, inconfundíveis, apareceram as palavras: – Pai, Pai, porque me abandonaste? Então compreendi porque é que o homem que eu deixara para trás não era um estranho. A sua imagem era exactamente igual à outra imagem que se formara no meu espírito quando eu li: – Pai, Pai, porque me abandonaste? Era aquela a posição da cabeça, era aquele o olhar, era aquele o sofrimento, era aquele o abandono, aquela a solidão. Para além da dureza e das traições dos homens, para além da agonia da carne, começava a prova do último suplício: o silêncio de Deus. E os céus parecem desertos e vazios sobre as cidades escuras. Voltei para trás. Subi contra a corrente o rio da multidão. Temi tê-lo perdido. Havia muita gente, ombros, cabeças, ombros. Mas de repente vio-o. Tinha parado, mas continuava a segurar a criança e a olhar o céu. Corri, empurrando quase as pessoas. Estava já a dois passos dele. Mas nesse momento, exactamente, o homem caiu no chão. Da sua boca corria um rio de sangue e nos seus olhos havia ainda a mesma expressão de infinita paciência. A criança caíra com ele e chorava no meio do passeio, escondendo a cara na saia do seu vestido manchado de sangue. Então a multidão parou e formou um círculo à volta do homem. Ombros mais fortes do que os meus empurraram-me para trás. Eu estava do lado de fora do círculo. Tentei atravessá-lo, mas não consegui. As pessoas apertadas umas contra as outras eram como um único corpo fechado. À minha frente estavam homens mais altos do que eu que me impediam de ver. Quis espreitar, pedi licença, tentei empurrar, mas ninguém me deixou passar. Ouvi lamentações, ordens, apitos. Depois veio uma ambulância. Quando o círculo se abriu, o homem. e a criança tinham desaparecido. A multidão dispersou-se e eu fiquei no meio do passeio, caminhando para a frente, levada pelo movimento da cidade. 149 Muitos anos passaram. O homem certamente morreu. Mas continua ao nosso lado. Pelas ruas. (De Contos Exemplares, 1962) 150 JORGE DE SENA (1919-1978) A excepcional capacidade criativa de Jorge de Sena, como polígrafo que abarcou os domínios mais diversos da cultura e da arte literária, teve na poesia a sua expressão mais original e mais vincadamente personalizada. A obra do ensaísta, historiógrafo da literatura, crítico e polemista é vastíssima, destacando-se nela os estudos sobre Camões e Fernando Pessoa. Mas não resultou diminuída nem insignificativa, nessa pluralidade, a criação do contista que, na opinião de David Mourão-Ferreira, o qualifica como «um dos nossos novelistas mais poderosos, mais arrojados e mais versáteis, de mais largos recursos de linguagem e de mais livre imaginação». Nesse nível se situam os livros de contos e novelas Andanças do Demónio (1960), Novas Andanças do Demónio (1966) e Os Grão-Capitães (1976), bem como o romance Sinais de Fogo (1979), publicado postumamente, supõe-se que incompleto, e que seria, como o Autor deixou referenciado, «a primeira parte de um vasto ciclo que não sei se chegarei a escrever» – projectado retrato vivencial da sua geração numa longa trajectória demarcada entre 1936 e 1959. Nos prefácios aos mencionados livros de contos e novelas deixou Jorge de Sena explicitado o seu processo de ficcionista, aludindo ao demorado tempo em que os temas se mantinham em «suspensão», à espera de oportunidade «para serem definitivamente escritos», e fixando de vez «experiências vividas, testemunhadas ou adivinhadas». E tudo isso, acentuou, «num realismo que se quis integral». Um realismo, de facto – o de Jorge de Sena – que não exclui o fantástico e o onírico e que na linguagem narrativa absorve a impressão vivaz do concreto, a ironia ou mesmo o duro sarcasmo, a fantasia sem limitações, o inconformismo indignado e o amor inquieto pela humanidade. Se é certo que a ficção de Jorge de Sena se apresenta sob vários aspectos como catarse – e assim a interpretou Jacinto do Prado Coelho: «....com frequência um autobiografismo que se furta ironicamente à 151 identificação» – também parece evidente que a ultrapassa pela objectividade do dramatismo e pela diversificação dos motivos essenciais que inspiram os casos narrados. A energia invulgar de um temperamento e de uma inteligência que fizeram da criação literária uma forma activa de combate – «contra esto y aquello», como diria Unamuno – estão presentes com veemência na obra novelística de Jorge de Sena, como nos demais géneros em que se desdobrou. 152 O GRANDE SEGREDO Alli me mostrarias aquello que mi alma pretendia (...) JUAN DE LA CRUZ – Cantico Espiritual Fechou a porta da cela atrás de si, e ficou parada, encostada à porta, sentindo a madeira dura na nuca, através do véu. A luz da lamparina, no oratório, bruxuleava lenta, às vezes crepitante, e espalhava uma claridade a que ela reconhecia, mais que via, a mesa junto da janela, com os livros pousados, e o genuflexório, e o catre de tábuas, e as lajes carcomidas. Sabia perfeitamente o que a esperava. Sentira nitidamente, ao levantar-se da ceia, e depois, na igreja, durante as orações, que mais uma vez ia sofrer a visita... Como o corpo se recusava a despegar-se da porta, para ficar desamparado na cela, assim também, mentalmente, as palavras se recusavam a nomear o horror que a esperava. Tremia: a pele, como a memória, retraía-se num palpitar ansioso, de que as mãos já se levantavam num gesto de repulsa. Era superior às suas forças tudo aquilo; não suportava mais. Apetecialhe gritar por socorro, rebolar no chão, fugir pelos corredores e pelo campo fora. Tudo seria preferível. Mil vezes ser assaltada por mendigos leprosos, mil vezes ser violada brutalmente por soldados e bandidos, mil vezes ser vendida como escrava. Mil vezes a repetição de tudo isso que, na sua pregressa vida, conhecera. Mil vezes viver a desgraça que essa vida fora, antes de, como um refúgio enfim conseguido à custa de tanta miséria, se abrirem na sua frente, e se fecharem sobre ela, as portas do mosteiro. Quando, enfim, entrara nele, também como agora se 153 encostara à porta, não a despedir-se do mundo, mas a sentir que tudo ficara lá fora, e ela renasceria, teria finalmente a ressurreição da sua vida que o peso de uma pedra imensa, que era o seu destino, não permitia que surgisse e caminhasse. Mas, ali dentro, e dentro da ressurreição, esperava-a o horror inominável de ser eleita, de ser visitada, de ser amada mais do que é possível. Abanou a um lado e outro a cabeça. Não. Não. Por piedade, não. As dores medonhas que sofrera ao ser possuída com violência por um monstro de dimensões incríveis, nada eram a comparar com o que, nestes momentos, sucedia no seu espírito. E, no entanto, a semelhança era muita, era tanta, era de mais. Quando o clarão começou a surgir entre a janela, e o oratório, cerrou os olhos, escorregou ao longo da porta, agarrou no rosário e percorreu as contas que lhe fugiam. Não era uma tentação que repelia assim; mas era, como bem sabia, um esforço para que o céu se contentasse com as relações espirituais de uma oração. Todavia, tudo no seu corpo aflito lhe afirmava que seria inútil. O clarão aumentou, como sempre, e, como sempre, mesmo de olhos fechados ela via o perfume da imensidade luminosa que suprimia as paredes da cela e a envolvia numa ternura tépida que lhe doía na medula dos ossos. Também a música, suavíssima, lhe doía assim; e, no entanto, essa música, que, sem ouvir, sentia, não se misturava à claridade, era antes um acompanhamento, um fundo sobre que a luz se tornava mais aberta e mais imensa. Não tardariam as vozes que lhe apertariam todos os recantos do corpo, como tenazes ardentes, ou como lábios, ventosas, línguas. Num esforço doloroso, abriu os olhos. A claridade enchia a cela toda, e o catre, o oratório, os livros, o genuflexório, a mesa, as lajes, as portas da janela, a própria lamparina, tudo flutuava numa ondulação cadenciada, num torvelinho sem peso, e navegava como de velas pandas, e esteiras rebrilhantes sussurravam de todas as coisas como ao longo do casco de um navio. Agora eram o hábito e o véu, o cilício que trazia à cinta, e o rosário, que, devagarinho, levantavam voo e entravam na sarabanda macia. A brutalidade sufocante e dilacerante penetrava-a já, enquanto o desfalecimento lhe triturava as vísceras e os ossos. Tudo nela se abria e despedaçava, eram milhares de agulhas que a picavam, facas que a rasgavam, colunas que a enchiam, cataratas que a afogavam, chamas que ardiam sobre águas luminosas, cantantes, e pousavam como fogos-fátuos pelo corpo dela. Crispando-se numa última recusa, mas ao mesmo tempo cedendo para que aquilo acabasse, inundou-se de uma ardência cristalina, que se esvaía do seu âmago, lá onde a Presença, enchendo-a, martelava os limites dissolvidos da carne. A luz atingiu um brilho insuportável, a música atroava tudo, sentiu-se viscosamente banhada de clamores e apelos que lhe mordiam... E, na treva e no silêncio súbitos, sentiu, nas costas, na nuca e nas pernas, a dureza violenta e fria das lajes em que, do ar, caíra. 154 Abriu os olhos na escuridão. O corpo dorido e descomposto, o frio e a lamparina que ardia bruxuleante, recordaram-lhe que entrara na cela; mas, com veemência, horror, revoltada humildade, não recordou mais nada. Deixou-se ficar estendida, saboreando uma incomodidade que era exaurido repouso. E começou a ouvir o murmúrio das rezas, a voz da madre abadessa, sussurros que se destacavam e reconhecia. Leves pancadas soaram na porta, o fecho estalou, e a madre e mais duas entraram recortadas no clarão difuso que vinha do corredor, onde as rezas continuavam. Viu-lhes os hábitos junto do rosto, e as pregas subiam a sumir-se no escuro. Tinham vindo, como sempre, escutar, ciumentas dos favores que a cumulavam, apiedadas do sofrimento que lhe cabia em sorte, atraídas e atemorizadas, rezando para a ajudarem e também para participarem daquele clarão sonoro que extravasava pelas frinchas da porta. Quando assim se curvavam para ela, e a levantavam, e carinhosamente a deitavam no catre, e ficavam de joelhos, enchendo a cela e o corredor, rezando com ela, não imaginariam a vergonha imensa que a turturava, ora diversa, ou igual à que sentira quando o emir, no meio da tenda, mandara que a despissem e os soldados, uns após outros, a possuíssem em público. Ela recusara fazer parte, como primeira esposa, do harém, e ele, que a estimava e preferia, e a comprara aos piratas e a trouxera com requintes de delicadeza, mandara que os eunucos a estendessem no divã e a segurassem. Deitada no catre, de olhos fechados, apagou da memória todas as recordações. Sentia-se descer lentamente, num poço sombrio e húmido, sem fundo. Nem a presença delas, nem as vozes delas, nada podiam contra a solidão e o silêncio. Era este o momento que, afinal, mais temia. Era nestes momentos que, bem sabia, ela consentia na visita próxima, cedia antecipadamente ao apelo e à luz, quando viessem. No dia seguinte, pela madrugada, após um sono pétreo, tudo teria passado. As outras irmãs cruzariam por ela, saudando-a com deferência, trocando ou tentando trocar um olhar comovido, um sorriso amável. A abadessa chamá-la-ia para conversar de coisas correntes, de notícias dos exércitos e dos parentes, dos combates em Jerusalém, e do Santo Sepúlcro. E subitamente, na cela, no claustro, no jardim, na adega, quando estivesse só, amanhã mesmo, daqui a um mês, de dia ou de noite, tudo se repetia e recomeçava. É certo que, por mais que fizesse, ocasiões havia em que se afastavam dela as outras, a deixavam só, como se a propiciarem a repetição de acontecimentos que eram honra do convento. E grandes senhores ou pobres mendigos vinham para tentar vê-la, através das grades do coro, ou pediam para que ela os tocasse. A abadessa arrastála-ia, de olhos fechados, pegar-lhe-ia na mão, que enfiaria pelas grades, e ela sentiria que lhe choravam nela e lha babavam de beijos. A própria abadessa, trazendo-a em silêncio de volta ao claustro, lhe limparia a mão. 155 Recolheu sobre o seio a mão que pendia para fora do catre, e agora lhe beijavam. Suspirou. Dentro dos olhos fechados, viu o crucifixo que havia na igreja da sua terra natal, lá longe, há tanto tempo, nos confins da Europa. Foi uma surpresa esquisita que a percorreu trémula da cabeça aos pés. Nunca mais o revira, nem o recordara sem o rever, nem sequer no espírito lhe passara a lembrança, não reconhecida, de lembrar-se dele. A imagem sorria para ela, e então ela, menina olhando em volta para verificar se estava só, erguera a mão para o cendal que o cingia, e tentara levantá-lo para espreitar. Porque ele não podia deixar de ser como os outros homens. Mas o cendal, que parecia de tão fina e leve seda, era esculpido na madeira, e ela baixara tristemente a mão, sentindo que a curiosidade lhe fora castigada. Abriu os olhos, e viu que estava só. Uma paz, uma tranquilidade, uma saciedade que não estava nela, mas no ar que a rodeava, deslaçavam-lhe as derradeiras crispações do corpo contuso. Ainda, mas muito distantes, sentia dores dispersas, ou localizadas onde a violência fora maior. Mas o bem-estar era enorme e contraiu-lhe os lábios num sorriso. O grande segredo, agora sabia o grande segredo. E adormeceu. O clarão recomeçou a encher a cela, mas não aumentou mais, nem ressoava. Antes ficou em torno dela, como um dossel, uma atenta e vigilante ternura, que, debruçada sobre ela, a contemplasse, tão dorida e esmagada, respirar tranquila. (De Novas Andanças do Demónio, 1966) 156 CARLOS DE OLIVEIRA (1921-1981) Além de uma obra de poeta com definitiva presença neste século de grandes poetas portugueses, Carlos de Oliveira foi construindo ao longo da vida, em incessante decantação e apuramento de estilo, uma constelação de romances reveladores da sua grande qualidade de artista literário. Na concepção rigorista da expressão e no esforço de artífice da escrita que lhe desse o mais justo contorno não se dissociaram nunca o poeta e o prosador novelístico. São idênticas e constantes na obra do Autor, em ambas as direcções, a sobriedade linear, o domínio e concentração semântica da palavra como significado, a coerência na composição em que se reflectem os comportamentos e linguagem das personagens, a maior vibração contida na simplicidade tenazmente conseguida. A exigência do construtor de ficção afincou-se em estruturas rigorosas e demorada lavra nos romances Casa na Duna (1943), Alcateia (1944), Pequenos Burgueses (1948), Uma Abelha na Chuva (1953) e Finisterra (1978). Foi talvez essa mesma exigência que desviou Carlos de Oliveira do conto (pela sua sumária imediatidade), de que afloram apenas alguns exemplos ou meras aproximações em passos dos romances e nos textos multímodos de O Aprendiz de Feiticeiro (1971). De qualquer modo, ficaram aí sugeridas virtualidades que o escritor parece não ter querido explorar. «Mestre no desenho de figuras típicas, de baixas ambições ou de pequenos-burgueses laminados pelo progresso», como o definiu João Gaspar Simões, não poderia ficar Carlos de Oliveira ausente nesta antologia, que pretende ser mais que o testemunho circunscrito de um género literário e apontar as direcções fundamentais da prosa novelística em Portugal nas últimas décadas. Ora, no enquadramento longo do Neo-Realismo, que vem até à plena actualidade, foi este escritor um dos seus expoentes mais representativos e a sua obra uma lição de ofício literário sempre insaciável de procuradas perfeições. Como escreveu Mário Dionísio, a obra de Carlos de Oliveira é «uma das realidades mais perduráveis da literatura portuguesa dos nossos dias» – obra de um grande escritor «que nunca se fechou naquilo que criou». 157 OS CORVOS O corvo está poisado no umbral da velha casa, precisamente como no poema de Edgar Allan. Mas falta-lhe a grandeza do outro, os versos espectrais, o vento na paisagem onde cintilam ao mesmo tempo neve e noite. Esqueceu-se disso, o entalhador. Esculpiu toscamente no pedaço de carvalho uma espécie de peru bêbado a recolher as asas sobre a quilha do peito e o gesto parece o próprio movimento da cupidez. Onde havia destino irreparável ficou devassidão, desbragamento arredondado no papo cheio, nas pernas cambas. Deserto e frio, foram-se. Paciência. Contudo, um mensageiro do desconhecido não pode ser assim. Que diabo tem semelhante falta de dignidade a ver com o mistério verdadeiro dum corvo que chega pela noite, poisa no nosso umbral e diz as suas duas palavras mortais? Esta confissão escrita cabe exactamente no espaço vazio que fica entre a ave de Poe e a ave do sr. Lucas à entrada da casa de penhores. Se fosse vivo e vagueasse por aqui, nas ruelas quase chinesas da cidade baixa (muita gente, carroças, quitandas, o recheio das lojas a transbordar sobre a calçada), o poeta era por certo cliente habitual do Lucas. Estou a vê-lo transpor o pequeno rebate da porta, a alma escura como um enorme corvo, para empenhar a última recordação de Annabel Lee. No interior da loja, há um balcão coberto da tralha mais desencontrada, jarras, loiças, relógios, livros, roupas. Os objectos ganham na penumbra usurária novas significações, fluidificam-se, tornam-se sentimentos, resíduos de vida. A luz velada da lâmpada cai sobre velhos cetins, derrama-se na cor quente das colchas que vieram talvez de longe, duma noite de núpcias, na lombada escura de 158 encadernações que podiam ter sido de Edgar Allan ou doutro poeta como ele, nos relógios de cuco que deram horas mais felizes, no brilho dos talheres (recordação íntima, quase a apagar-se, de casas desfeitas), no globo terrestre dum geógrafo morto ou dum sonhador de viagens (com fome), nos móveis antigos, canapés, cadeiras de espaldar, mesinhas de pé de galo, armários torneados (para a gula dos coleccionadores), nos brinquedos da infância, em coisas gastas, pouco reconhecíveis. Ao meio disto, a figura do Lucas. Corpo miúdo, seco; rosto oleoso, do tom vagamente amarelado que têm os círios a arder nas igrejas; o nariz (para ser exacto na descrição) não é recurvo como o bico do corvo tutelar, é curto e direito; os olhos claros, esverdeados, vagueiam com uma volúpia fria de gatos nesta feira da ladra. Veste um casacão de algodoaça e usa. uma gorra felpuda com duas badanas a cair sobre as orelhas, onde as frieiras crescem numa floração teimosa de cogumelos. Coça-as devagar. O erguer do braço, duro como o duma asa perra ou duma cartilagem, esse, faz pensar (agora, sim) no corvo da entrada. Cá fora, rente às paredes já carregadas de crepúsculo, um vulto ágil aproxima-se da loja. Eu. Não hesito ao entrar, não baixo timidamente o rosto. A senhora de idade, no seu casaco velho, o chapéu de palha escura fora de moda, esfrega as mãos uma na outra, envergonhada, como se a culpa fosse dela; depois, procura na carteira o cofre minúsculo de sândalo, estende-o ao penhorista (incrustações de madre-pérola: cegonhas, uncos, nuvens) e murmura: – É uma relíquia de família, não se desfaça dele, hei-de voltar um dia destes. Uma relíquia, um dia destes... Francamente. O que é que o Lucas tem com isso? Encolhe os ombros, claro: – Não posso abrir excepções. Três meses de juros em atrazo e vai para leilão. Há regras, normas, a cumprir. Se quer o cofre outra vez apareça a tempo. A tempo? Fito-a de olhos quase fechados. Oiço-a pensar. E o dinheiro do resgate? Como, quando, donde me pode ele vir? O António? Com seis filhos e o pré de sargento? Não. A Tereza? Coitada, também não. Tenho lá coragem de lhe pedir mais. Os primos? De facto podiam, mas os primos... Enfim, portas fechadas, muros. E a ignorância universal do abre-te sésamo. Que palavras, meu Deus, que palavras se devem dizer? Os tesoiros à espera e nós sem sabermos a senha. Recolhe as notas, a cautela, murmura outra vez: – Sim, hei-de voltar... a tempo. E sai. Nisto, o Lucas vê-me. Rodeia o balcão, vem atender-me com o sorriso vicioso, ávido. Estamos sós na penumbra da loja, como eu calculara. Dois corvos frente a frente. O corvo de Poe morde-me o coração, porque é do meu sangue que ele se alimenta para gritar: nunca mais, nunca mais. A voz ao fundo do túnel, o eco na gruta vazia. O outro corvo, o da porta de entrada, que ignora a sua solidão, que 159 fará a alheia, voou a custo do umbral, poisou na alma do Lucas. E olha-me de lá. Arbitra o aviltamento quotidiano. Calculou há pouco o cofre de sândalo, indicou os juros, os prazos, negociou. Agora, avalia-me com atenção. Que virá este tipo empenhar? Mas, entretanto, o meu silêncio surpreende-o. Porque eu não digo nada, surjo e isso basta. O sorriso do Lucas seca lentamente, evapora-se-lhe do rosto, ruga a ruga, e ele fica pálido. Começa a compreender, começa a recuar. Embate no armário lacado, no relógio de caixa alta, nas cadeiras, nas mesas. Uma lentidão trémula de passos que o balcão detém. Há em mim qualquer coisa de aéreo de irremediável. Nem eu sei quem me guia. Sei apenas que chego, mais tarde ou mais cedo. (De O Aprendiz de Feiticeiro, 1971) 160 MÁRIO BRAGA (1921-) É genuinamente de contista, em aturado aperfeiçoamento da sua específica técnica de género, a obra novelística de Mário Braga, iniciada pouco depois do alvorecer do Neo-Realismo como larga corrente literária em Portugal. Com os contos de Nevoeiro (1944) e Serranos (1948) fez o Autor a sondagem ambiental dos meios rurais, captando no desenho de personagens e na descrição dos seus comportamentos de resistência à dureza da vida a verdade social de largas camadas do povo português. A partir de Quatro Reis (1957), prosseguindo em Histórias da Vila (1958), O Livro das Sombras (1960) e Corpo Ausente (1961), transitou para atmosferas de maior versatilidade e socialmente mais diversificadas de gente citadina, debatendo-se simultaneamente ou paralelamente com problemas em que as situações de classe se interpenetram com inquietações psicológicas. Nesse percurso, como afirmou Mário Sacramento, «pode dizer-se que os problemas formais do conto neo-realista foram resolvidos por Mário Braga». E a solução gerou-se numa experiência reiterada de processos que melhor retratassem as alienações duma sociedade estratificada, os contrastes de condições ante as exigências do quotidiano ou, por vezes, de grandes crises familiares ou pessoais. A justeza e capacidade de observação que a crítica assinalou na obra novelística deste escritor – chegando-se a apontar-lhe um fundo tchekoviano – combinam-se com uma atitude de solidariedade implícita que lhe reforça o calor humano, lhe abranda a dureza caricatural do inevitável picaresco e deixa aberta a expectativa da esperança. Sob esse prisma, e para além das suas diversidades de significação e de intenção, vieram integrar-se ainda outras obras do Autor como as novelas de Viagem Incompleta (1963), o romance alegórico e satírico O Reino Circular (1970) e os contos de Os Olhos e as Vozes (1971). A crónica mais ou menos romanceada e o teatro também preenchem lugar apreciável na obra de Mário Braga, cuja actividade intensa como tradutor lhe configurou, ainda, uma assídua presença na vida literária portuguesa. 161 BALADA O lugar de Sequeiros planta-se no alto da Serra de Queiró, arriba de Zebrais. É terra de pastores, encravada entre penedos. Os homens vivem ali, esquecidos dos outros homens, a cuidar dos rebanhos e a ver crescer os pastos. O gado é a vida da gente de Sequeiros; a lã, o seu trigo e o seu pão. Só nos escassos meses de veraneio a terra fica nua e pode gerar. No inverno, vestida de branco, ela adormece. Pastores e rebanhos pernoitam no quente dos currais, e o dia é da serra, na pista do verde. O inverno traz a fome a homens e animais. Semanas e semanas o gado no coberto, por culpa dos nevões, sem poder emigrar para o vale. Depois, morre a erva, já pouca, queimada pelo gelo, seca o leite das fêmeas, e cresce a fome dos pastores. Manel Libório era homem rico, senhor de terras e de muitas cabeças. Melo Bichão era pastor velho e pobre, a quem já ninguém confiava gado. Manel Libório vivia em casa de bom aconchego, rodeado de família. Melo Bichão dormia quase na rua e tinha apenas um filho amalucado. Manel Libório e o seu rebanho passavam vida farta. Melo Bichão, o filho, e as suas sete ovelhas curtiam fome como danados. E ambos eram criaturas de Deus, naturais de Sequeiros. Nesse ano, o inverno chegou cedo. Duas semanas de nevão cobriram a serra de branco e queimaram o pastio. Foi então que começou a tragédia do pastor velho e cansado, pai de um filho doido e dono de sete ovelhas famintas. Dias e noites a fio baliram os animais com fome. Dias e noites, sem dormir, escutou Melo Bichão o triste balir das ovelhas. E sofria no seu amor por elas: «Cala-te, Marrafa, cala-te, Nina...» Mas o céu não parava de abrir-se em neve, e a 162 neve em frio, e o frio a picar a carne velha de Melo Bichão. Choramingava o filho maluco, baliam os animais famintos na verde saudade do pasto. E mais sofria o pastor velho com a fome das sete ovelhas. A casa grande de Manel Libório quase se encostava à toca negra de Melo Bichão. Saía-se a porta, dobrava-se a esquina, e ficava-se de caras para o aprisco. Um aprisco como um palácio, amplo e coberto, onde as ovelhas felizes do vizinho rico baliam alegres da fartura, que Manel Libório tinha pasto seu e muitos braços para lho juntarem em casa. Definhavam as ovelhas do pastor pobre: engordavam a recato as do pastor rico. E mais sofria Melo Bichão: «Cala-te, Negra, cala-te, Nina...» A neve não parava no correr das semanas. Gemia o filho doido de Melo Bichão. Gemia, gemia. E secava-se o leite das fêmeas, morrendo os anhos. E uma ideia brotou no cérebro velho do pastor esfaimado. Todas as ovelhas eram iguais, feitas por Deus; então, porque baliam as suas de fome e as do vizinho de fartura? E não achava resposta boa para mistério tamanho. Não pensava em si, na sua fome; se os homens eram também iguais, por os ter feito a todos o mesmo Deus, não sabia ele, nem tal coisa o preocupava. Mas as ovelhas, sim, nasciam iguais da igualdade de Deus. E, sendo deste modo, qual o remédio? Pedir pasto ao Libório? Não! Ele era homem rico, nada daria. Mas os animais, sim, decerto não o negariam à fome dos irmãos. Pedir a Libório? Isso nunca. E tal ideia não lhe saía da cabeça. Ele, Melo Bichão, pastor desde menino, sabia falar com o gado. Entendia-o e fazia-se entender: por isso iria até ao curral do vizinho e contaria às ovelhas gordas a fome das sete ovelhas magras. Não lhe negariam o pasto. A ideia cresceu no volver dos dias. Por fim, não cabia já na cabeça velha de Melo Bichão. Até que, a meio de uma noite escura, acordou o filho, enrolou-se na manta, pegou no cajado, que as pernas faltavam-lhe, olhou os animais estendidos no chão, e saiu para as trevas forradas de branco. «Cala-te, Boa, cala-te, Negra...» Nada bulia cá fora, quando Melo Bichão começou a andar com o filho maluco atrás. Caminhava lentamente, enterrando os pés na neve fofa, e o rapaz, que acordara estremunhado, ia a imprecar contra a friagem. O pastor velho pensava sempre: «Todos os animais são filhos de Deus, uns com fome, outros com fartura, coisa mal feita!» Dobraram a casa grande de Libório, e a cerca do aprisco barrou-lhes o caminho. Mexiam lá dentro as ovelhas, tiniam de manso os chocalhos. A noite porém, estava muda. Mal transpuseram a porteira e penetraram no coberto, viram luzir, no escuro, os olhos dos animais. Melo Bichão riscou um fósforo, e a luz, muito amarela, derramou-se, a tremer, pela lã farta do gado. Falava em voz baixa, meigamente: «Lindas, lindas...» Depois, num sussurro, explicou-lhes ao que 163 vinha. Baliram as ovelhas ricas e Melo Bichão entendeu a resposta. Dobrando-se, os ossos velhos a estalar, encheu de feno, até à boca, o saco esfiapado. E o filho maluco imitou-o. Deixaram por fim o curral, cada um com sua carga. À frente, o velho apoiava-se no cajado; o filho, atrás, arrastava os pés descalços, rezando maldições e gemidos. Quando Melo Bichão já ia longe do cercado, uma voz fina rasgou a noite muda: – Agarra qu’é ladrão! Agarra qu’é ladrão! Rachando o silêncio de meio a meio, o berro sobressaltou o pastor que, ajoujado com o peso do fardo, quis alargar o passo. Mas, alguns metros adiante, a armadilha da neve, ainda a cair em flocos, entravou-lhe as pernas frouxas, como se alguém, oculto debaixo da terra, lhas estivesse a puxar. Por mais esforços que fizesse, retesando as coxas magras, não conseguiu libertar-se. E, de súbito, uma angústia dolorosa fê-lo ajoelhar lentamente no frio e branco colchão. Ainda tentou arrastar-se, abraçado ao saco de feno, a vida das suas ovelhas: «Cala-te, Marrafa, cala-te, Negra... » Porém, sob a manta espessa da neve, adormeceu para sempre, já quase à porta de casa. E o filho doido do pastor, girando como um pião em volta do corpo do pai, continuava a gritar: – Agarra qu’é ladrão! (De Serranos, 1948) 164 AGUSTINA BESSA LUÍS (1922-) A obra de Agustina Bessa Luís constitui um caso de especial complexidade e de multiplicidade de perspectivas na literatura portuguesa contemporânea. Nela confluem velhas tradições nacionais da novelística sobre ambientes e personagens provincianos em que podem encontrar-se ecos de Camilo Castelo Branco; uma vontade de realismo que aspira a atingir as profundidades e se deixa submergir pelo fluxo narrativo do desencadear de exaltados sentimentos e secretas relacionações humanas; a atracção romântica pelos mistérios de almas insatisfeitas que se agitam na busca da sua identidade. E ainda, como assinalou Álvaro Manuel Machado, a senda do pós-simbolismo do Raúl Brandão de Húmus, um neo-barroquismo e a influência directa de Marcel Proust ao nível da estrutura espácio-temporal do romance. Com tudo isso, manifesta-se na Autora uma liberdade de invenção sem margens que vai da efabulação à linguagem e impõe ao leitor uma atitude interrogante para decifrações possíveis. A atmosfera dominante da novelística de Agustina é a da burguesia ou pequena aristocracia do Norte do país, em conflitos que brotam do viver habitual mas logo se dilatam à singularidade dramática e mesmo ao trágico ou ao mítico, exprimindo-se numa «pesada e quente vitalidade» que a própria Autora assinala num dos seus livros. Iniciada com os romances Mundo Fechado (1948) e Super-Homens (1950), alargada em diversificação de direcções com Contos Impopulares (1953), a sua obra conquistou definitiva projecção com o romance A Sibila (1954), a que se sucederam, além de outros, os romances Os Incuráveis (1956), O Manto (1961) O Sermão de Fogo (1963), As Fúrias (1977) e ciclos romanescos como As Relações Humanas (1964-1966). Em narrativas recentes fez a análise de situações de crise provocadas pela Revolução de Abril de 1974 em Portugal e publicou biografias de ousada e livre interpretação de figuras como a da poetisa Florbela Espanca e do ministro setecentista Marquês de Pombal. Conjugando regionalismo, invenção de linguagem e metafísica – como apontou também 165 Álvaro Manuel Machado – a escritora consegue efeitos romanescos inesperados, muitas vezes enigmáticos mas sempre impressivos, que incitam a superar as dificuldades frequentes de leitura da sua criação ficcionista ou biografista. 166 FILOSOFIA VERDE Numa dessas madrugadas em que o nevoeiro parece que dá aos becos mais sinistros como que uma comunicação de claridade, de luar, dois homens tentavam abrigar-se do frio, no limiar um tanto avançado dum portal. Maltrapilhos, de barba rala ambos, não falavam. Apenas abraçavam a arcada do próprio peito, agasalhando as mãos, pecas e de falanges lívidas, nos sovacos e sob as cavas dos casacos pingões, prenda decerto dalguma beneficência ou dalgum monturo. Não se poderá definir a sua profissão, sem que um riso extasiado nos assome aos lábios – um riso de Falstaff que sonha, ou de Mefistófeles que faz metafísica. Aqueles dois homens, que se amparavam com o próprio bafo, pertenciam a um género que, por ser ilegal, tem mais assegurada a sua continuidade. Eram simplesmente caçadores de mortes súbitas. Oh, todos nós sabemos o que são mortes súbitas! Uma apoplexia para classes abastadas, quando o herói transita de um bairro ao outro, dum extremo ao outro da ética, e reconhece afinal que não lhe valera dar um passo, pois a morte faz com que se toquem todos os extremos. O fim, que nunca nos parece prematuro, mas sim fatal, dos anónimos, e este não tem designação nem assopra os ventos da curiosidade. Aqueles dois seres nocturnos viviam dessa empresa, mais macabra ainda por ser ridícula, de fisgar os falecidos na via pública, os que a congestão vitimou ou o coração deteve no caminho, os que o frio tolheu na posição de quem ainda aspira do colo materno o afago, ou os que a fome prostrou, unhando a terra e colando nela uma boca ainda esperançada, humilde. Quando o aspecto do morto denunciava um burguês, ainda que de limitadas rendas, subtraíam-no ao carro que fazia o intercâmbio entre esses paradeiros de acaso e a morgue, entregavam-no 167 a domicílio, e esperavam, como bons funcionários, a gorjeta. Nas áreas em que actuavam, travavam relações com o polícia de giro, bons homens sempre, que usavam a violência mais por serem timoratos do que arrojados. Não raro, mercê duma piedade compadresca, os caçadores de mortes súbitas, ficavam-lhes sob protecção. E dessa autoridade bonachona, que nem auscultava a razão para esquecer a lei, provinham as informações mais cobiçadas. – Então, senhor guarda, esta noite, nada? – Não há nada... Separavam-se. Um acoitando-se nas goelas dos portais, perto da carreta que as sombras ocultavam; o outro prosseguindo na ronda, o capote salpicado de um orvalho fino, que era como limalha de prata que viesse oscilando no nevoeiro. Essa era, ao parecer, uma das noites em que não havia nada. Os dois vigias em vão velavam no seu lugar estratégico, saltitando a pé-coxinho para não se entorpecerem e proferindo pragas surdas e sem cólera. Naquela ruela esbicada por saliências de velhas varandas, experimentava-se a sensação de assistir ao estertorar do silêncio. Eram como clamores filtrados por um tempo infinito, gemidos que as próprias pedras emitiam, um impar de fadiga resignada, de dor que a sua própria consciência de eternidade faz passiva, sem, porém, a amortecer. Um dos homens tinha recuado mais para o vão do portal, buscando um nicho onde encolher-se e possivelmente dormitar. O outro falou-lhe, movendo a custo os beiços brancos. – Não pares, hã, se não queres vir nos jornais! – Deixa lá... – murmurou o que dobrara sobre si mesmo, o rosto mergulhado no seio, entre as lapelas bambas do casaco. E não disse mais nada; ficou-se quieto, esforçando-se por concentrar todo o calor, evitando os movimentos, que eram como agulhadas penetrando-lhe a pele amolecida, gasta, como um pano que se usou demasiado. No extremo da rua rolhada pela treva, ouviu-se, ténue e distinto, o sinal do guarda. – Temos freguesia, vamos – disse o que permanecia de pé, pulando e sacudindo-se como alguém que sofre uma queimadura. – Vamos – repetiu. Saíu para o passeio; as alpercatas pegavam-se-lhe nas lajes húmidas, e ele tremia, muito embebido no nevoeiro, onde se recortava como uma silhueta verde-cinza ligeiramente prateada nas bordas. – Há um tipo aí perto – esclareceu o guarda. – Teso como um carapau, e eu só queria saber como vocês se vão arranjar com ele. Parece que está morto desde o princípio do mundo, e conservava-se assim bem até que ele acabasse. – Ele há sangues que coalham logo, há – disse, conspícuo e confidencial, o caçador de mortes súbitas, enquanto caminhava. Reparou que o companheiro não o seguia, e rogou-lhe algumas pragas, a que a falta de solenidade e convicção devia esmorecer os efeitos. 168 – Cá está o sujeito. Faz-me arranjo... Abaixou-se até junto do corpo, e voltou-o. A lanterna iluminou uma face hirta, com uma amolgadura de queda na têmpora; líquidos viscosos corriam-lhe das narinas, e a boca, cerrada, tinha uma expressão mística e quase sorridente. Parecia pertencer a essa classe de escriturários que têm a sua originalidade, como uma marca de fogo, no macilento da tez, na expressão batida e no terrível do olhar abandonado, vil porque nada espera, sem que, porém, se tenha nele extinguido a pressão dos desejos. Sob a borda das mangas do rapado sobretudo, tinha ainda vestidos os canhões de sarja preta, que os elásticos, gastos, faziam soltos nos pulsos. Voltava talvez dum serão de contabilidade, de escrita, recurso extraordinário das suas necessidades, onde adeja sempre um terror de miséria, mais esgotante que o combate, em campo aberto, com a própria miséria. Tinha no dedo médio um calo que o apoio da caneta provocara, e que estava um tanto penetrado de tinta violeta. Mas as unhas eram longas, esmeradas, polidas, como as dum guitarrista; usava-as em bico, aduncas, muito limadas nos bordos, apuradas com esse capricho ingénuo que é, às vezes, um tique maníaco, uma espécie de conforto ocioso numa vida estrangulada de inquietações, de perigos, ou simplesmente de rasa mediocridade. Quantas coisas estranhas, complexas, denunciavam aquelas unhas em garra, sopradas com um bafo, lustradas na manga ou na flanela da calça, tasquinhadas a lâmina e a canivete, miradas a distância com análise, com aprovação, com crítica! Que profundas maravilhas de aspirações audaciosas, ardentes, elas traziam à superfície do homem cujos passos, cujas palavras, cujo ritmo de realidade não eram mais que trivialidade, chateza, um rojar de coisas e pensamentos vãos! O guarda desviou-se um pouco; o estalido da lanterna ao apagar-se, teve a ressonância duma aldraba fina, de cobre, que se deixa cair. – Chama lá o outro, e aviem-se – disse, desabrido. Entregou o cartão do morto, que retirara da carteira. – Andam com sorte. Às vezes não há jeitos de a gente os identificar. Mais uma vez, o caçador de mortes súbitas olhou à sua volta, procurando o companheiro, sibilando palavrões e ameaças, pulando como um orango que se excita. Por fim, retrocedeu para a viela onde fizera atalaia, numa corrida chegou ao portal, que franqueou para tropeçar no vulto que, enrodilhado, o queixo enfiado entre os joelhos, parecia dormir. Abanou-o, pondo no gesto uma brutalidade, e, sem contudo pensar inteiramente nele, chamou-o pelo nome, com uma entoação irada e fraterna. Mas, por sua vez, o outro tinha morrido; não havia já um hálito de vida, e energia, de calor, nessa carcaça que jazia enovelada como uma bola de alinhavos, inconsciente, mole. Tinha as pálpebras fechadas e dormia, sim, com uma ruga de perplexidade na fronte e que, desfeita, lhe desenharia uma linha mais 169 clara, tanto tempo a trouxera, desde a infância talvez a criara e se habituara a ela. Dormia, não mais cego, agora que os seus olhos se vidravam, frios como bolas de berlinde, e, como elas, irisados de cores que parecem nubladas, perdidas, sob a superfície do vidro opaco e que os muitos golpes riscaram. Os seus cabelos são o único agasalho da sua nuca, que, dobrada, parece oferecer-se a um cutelo de magarefe; as suas mãos estão entrelaçadas, apertando o vazio; o seu coração está agora tranquilo, e ele dorme. Como esses bolores que crescem nas valas, nas podridões, e delas extraem a sua própria forma, não inspira nojo, nem sequer desgosto. Porém, se virmos sob essa matéria, essa cor de fungo, uma pele humana, o fóssil dum sorriso, dum esgar, duma aspiração humana, então o nosso peito cederá com a intensidade do assombro – do assombro, da incredulidade, da surpresa, e nada mais. Não há dor que dedicar, pena para sentir. Apenas espanto, humilhação, desejo de reverter também a esse destino que nos faça irmãos no inferno e na lama, já que a luz é escassa e o acaso é um insulto que, poupando-nos, nos envergonha. O homem caçador de mortes súbitas cismava, junto do companheiro. Conhecialhe a amiga, um ente torcido como um tronco que não floriu. Dizer que ela lhe tinha amor é emprestar ao amor um novo sentido; uma vez que aquela dedicação de besta enferma, aquelas traições de fêmea que, na fossa da continuidade mais estiolada e árida, procura ainda a esperança, a aventura, tudo isso é um estado de amor e de ódio, a própria raíz da vida, unidade e dualidade fatais. Ela recebêlo-ia com os clamores uivados que partem mais dos nervos que do coração, havia de chorá-lo depois, beijando-o com esses mimos que nos fazem voltar o rosto angustiado, porque só nas criaturas jovens, nos que são belos e trazem em si o sinete esplêndido da vitalidade no brilho do olhar, no cândido fogo dos sentidos, só nesses os admitimos. «Há – pensou o homem – o outro morto...» E eis que o dilema se lhe afigurava insolúvel. Arrastando o amigo para o quartelho onde, como uma lava, escorria a humidade, e onde o receberia a terrível mulher, que o crivaria de culpas e de injúrias, perderia aqueloutro cadáver cujo transporte lhe renderia o seu lucro daquela noite e talvez de muitos dias mais. Duas vezes se moveu para deixar o corpo no seu côncavo de portal, e outras tantas parou, hesitou e volveu. O morto era apenas um fardo, mas tão presente como se um sentido vivo o explicasse, lhe insinuasse poderes e leis. «Há o outro...» – pensava ainda o homem. E via um postigo envidraçado que se abria, ouvia uma voz ensonada, trôpega, agastada pela campainha a desoras; depois, as exclamações trémulas, as luzes que se ascendem, os passos que se arrastam na passadeira, soluços que vibram, sufocados, amordaçados; por fim, a mão que gratifica e fecha lentamente a porta, como quem se isola e divide dois mundos, dois pedaços de vida. 170 Com um gemido de renúncia e de rancor contra si mesmo e o tirano que assim o vencia, pegou no companheiro morto, colocou-o na carreta, e afastou-se com ele. Tragou-os a ambos o boqueirão do beco que desabrochava em novos laços de artérias sujas e solitárias. De longe, na fulguração verde do nevoeiro, parecia ele uma raiz que a terra expeliu, que se mantém à superfície, nodosa e aniquilada, com pequenos tumultos de seiva criando inesperados milagres de vida. Como as oliveiras da ilha de Maiorca, secas, centenárias, devoradas do tempo, mirradas e esbracejantes como impotentes fantasmas que se contorcem numa dor estática, dor que a própria consciência de eternidade faz passiva, sem, porém, a minorar, como essas árvores mortais, de cujos braços extintos brota, um dia, um pequeno ramo estuante e verde, assim era ele. Como a filosofia verde duma folha tenra, encantadora e brilhante, assim era a generosidade do homem que se afastava com a carreta, donde pendiam os membros inertes do morto. E toda a sua história estava talvez na filosofia verde daquela noite. (De Contos Impopulares, 1953) 171 URBANO TAVARES RODRIGUES (1923-) Um influxo mais desvendado de cosmopolitismo, por influência da novelística europeia mais moderna e, designadamente, da novelística francesa de inspiração existencialista, veio inserir-se na ficção portuguesa com a obra de Urbano Tavares Rodrigues no começo da segunda metade deste século. Foi nessa linha, enriquecida por uma densa cultura literária actualizada, que se filiaram os seus primeiros livros de novelas, género que tem prevalecido a par do romance na criação literária do Autor, invulgarmente numerosa e exuberante. A memória da infância no Alentejo e, mais acentuadamente a partir de certa fase, a adesão entusiástica e combativa à resistência antifascista em Portugal, trouxeram às opções temáticas e à escrita narrativa de Urbano novas sugestões, embora sempre convergindo para uma nítida unidade de expressão com raízes temperamentais na personalidade do escritor. E esta revela-se igualmente na torrencialidade da escrita, na insistente representação erótica e na vocação, assinalada por Jacinto do Prado Coelho para «um sentido colectivista da solidariedade» que alimenta os temas dominantes da sua obra vastíssima: «o amor, o erotismo, a aventura, a coragem, o encarceramento, a morte e a esperança». O ímpeto da luta política e do protesto social que na obra, sobretudo mais recente, se inscreve com grande força, aproximou Urbano da geração neo-realista inicial – até num andamento lírico e de certo modo épico que caracteriza vários dos seus livros mais significativos, sem que por isso se submergissem de todo as iniciais inspirações existencialistas. Da sua criação novelística muito abundante, em que chegam a aflorar os inconvenientes da precipitada improvisação (mesmo pela patente riqueza de invenção efabuladora e de linguagem que a motiva), apontam-se apenas alguns títulos exemplificativos, a documentarem épocas na obra do escritor: Porta dos Limites (1952), Uma Pedrada no Charco (1958), Bastardos do Sol (1959), Terra Ocupada (1964), 172 Contos da Solidão (1970), Estrada de Morrer (1972), Fuga Imóvel (1982) – livros estes intercalados em cerca de três dezenas de obras de ficção. Urbano Tavares Rodrigues é também autor de obra muito vasta e prestigiosa de crónicas, relatos impressionistas de viagem, ensaio e crítica literária e teatral. 173 A MEIA HORA DE SOL Eram casados, mas na verdade como se não o fossem, pois quatro anos volvidos sobre o registo legal continuavam «amantes» quer na paixão com que se entredevoravam quer na disponibilidade que entendiam dever preservar. Escolhiam-se dia a dia um ao outro. Não tinham horário para o amor. E, como a vida de Mateus estava sempre ameaçada, muitos dos instantes em que se uniam tinham para eles um gosto atormentado e exaltante de primeira vez e de nunca mais. Mas eram alegres. Iam jantar fora com frequência e até passavam fins de semana muito íntimos, quase clandestinos, em pequenos hotéis retirados, de atmosfera civilizada e sorridente, governados por estrangeiros. Na manhã em que o vieram buscar – dois homens à porta e outros dois na rua – ele cerrou os dentes com força, recusando-se à emoção em altura tal, e só lhe disse: – Espera por mim, Júlia! Mas beijou-a, primeiro na boca e depois nas mãos, com devoção, como a desfazer-se em água de alma, que nem ele jamais se apercebera de que lhe queria também assim. No isolamento da cela reinventava-a, rememorava dia a dia, minuto a minuto, os quatro anos percorridos lado a lado; lamentava o tempo que não lhe dava por esta ou por aquela razão; tinha-a, com toda a gama dos seus olhares, queixumes, suspiros, gritos e êxtases, em todos os alaridos raivosos da sua continência forçada. De noite, ele que briosamente velava, em face dos estranhos e de si próprio, pela sequidão dos seus olhos e pela nudez dos seus lábios, acordava debulhado em lágrimas, assistindo à agonia de ausência que ela, sozinha em casa, conheceria. 174 Depois foram as visitas – de cada vez meia hora de sol, mesmo que o sol exterior não luzisse no firmamento. Um vidro a separá-los, as palmas das mãos esposando-se, uma de cada lado dessa delgada, mas intransponível, fronteira que os dividia. E quase nada conseguiam dizer. Falavam sobretudo pelos olhos, pelo tremer da boca, pelo pasmo atroz do final, na ocasião de se separarem. A tarde que se seguia era de todas a mais dolorosa, mas ainda quente do calor de vida que ela trouxera. E sucedia-se o deserto de uma nova, longa, hórrida semana, contando os dias que faltavam para a luz breve de outra visita. Durante meses, e na perspectiva de anos iguais. Mateus enchia três vezes por semana, com uma exacerbada angústia (mas era aquele o único alimento do seu silêncio) a curta folha de bloco regulamentar que podia mandar-lhe por carta. E Júlia respondia, até lhe escrevia todos ou quase todos os dias, mas não deixava no papel a mesma vibração: constrangia-a, mais do que a Mateus, que não tinha outra escapatória, a certeza de que as suas palavras mais suas e mais dele (que logo descoravam e se derretiam na linfa do banal) seriam lidas, porventura escarnecidas, por estranhos. Afligido de pesadelos, de tremores, de paralisias nocturnas, sempre tenso e remordido, na sua solidão, por todas as ideias que acodem a um homem em tais circunstâncias, desde os rebates do heroísmo e o orgulho do seu martírio social aos extremos do desespero e autocomiseração, Mateus via reflectida na correspondência dela (que ia acumulando na mesa de pedra onde comia e onde lhe escrevia) uma frieza progressiva. Principiou então, violentando-se, a alterar o tom das mensagens que lhe parecia arremessar ao vazio: «Vive a tua vida. É absurdo, de facto, armares em monja, nem isso estaria de acordo com a nossa visão do mundo. Não fiques amarrada a um fantasma. E, sobretudo, quando tiveres, se vieres a ter, como é natural, outros interesses, peço-te que não me faças a esmola de vir ver-me. Eu tenho, além de ti, como sabes, uma razão de viver, em suma, uma justificação da minha existência.» Repetiram-se, por mais de uma vez, estes destemperos lógicos, que, por escrito, doíam mais e não tinham a desculpa dos gritos que ele sufocava, na sua cela. As visitas tornavam-se, por vezes, amargas, extenuantes. Júlia adivinhava-lhe nas sombras e nos vincos do rosto a escureza da suspeita e, ao mesmo tempo, uma adoração descabelada (porque tudo ele ia, com efeito, obsessivamente concentrando nela), adoração, de resto, também odienta, a raiar por essa mesma forma de amor possessivo e dependente que dantes ele considerava – com o seu sorriso mais racional – uma forma de alienação. Tinha Mateus, logo após a doçura melancólica e visivelmente construída com que lhe surgia, brusquidões, impaciências (que até a vexavam perante o agente) e já, de quando em quando, cóleras inoportunas que prenunciavam um convívio infernal. – Mas porque é que não vais ao cinema? Estou farto de te dizer que vás (era 175 o bastante para elevar a voz). – Ou então (Júlia fazia estudos de mercado para a agência de publicidade onde trabalhava): – Os teus colegas nunca te levam a dançar? Sabes bem que não me importo... – E, perante o olhar de reprovação, entre triste e indignado, com que, após uma dessas penosas saídas, ela o fitou, Mateus cometeu a imprudência (mas já a frase lhe queimava a língua) de dizer: – É melhor que nunca mais voltes. Não, não venhas. Só nos ferimos um ao outro. Saio daqui, por dentro, a escorrer sangue. E tu vais-te embora ainda em pior estado. – Mas, Mateus, meu querido... E ele voltou-lhe as costas (só, aliás, para que ela não o visse chorar). O guarda veio, abriu a porta, do lado dela, com um pesado ruído de chaves ferrugentas. Mateus soube, pelo som leve, mas lento, dos passos, que Júlia partira. E nunca mais, em manhãs de sol, a sombra dos varões da janela se tornou em flores na parede caiada da cela, no dia que fora o da visita. (De Contos da Solidão, 1970) 176 JOSÉ CARDOSO PIRES (1925-) Numa obra pouco numerosa mas sempre amadurecidamente elaborada e, em cada livro, a marcar densas expressões da condição humana no embate de cada um com os outros e com a sua circunstancialidade no mundo, José Cardoso Pires integrou as suas adesões às evolutivas experiências neo-realistas, a que se tem mantido muito ligado, com um sentido peculiar da pessoa representada em personagem. A concepção implícita de um instintivismo essencial no homem, que chega a isentá-lo, de algum modo, da responsabilidade consciente nos seus comportamentos sociais, envolve a novelística de Cardoso Pires numa atmosfera muito singularizada e condiciona o sentido denunciatório da injustiça que lhe quer imprimir. O contista ainda juvenil de Os Caminheiros e Outros Contos (1949) e Histórias de Amor (1952) alargou a sua técnica narrativa na construção do romance, posta à prova em O Anjo Ancorado (1958) e O Hóspede de Job (1964), até alcançar notável altura de realização efabulativa e de análise de caracteres em O Delfim (1968) e Balada da Praia dos Cães (1982). O adensamento de significação individual e tipificada das personagens e a crescente precisão estilística que demarcam o percurso literário de Cardoso Pires evidenciam-se também nos contos retomados em Jogos de Azar (1963). Observação realista e invenção imaginativa seguramente conjugadas associam-se com meticulosa justeza na prática do narrador. Ele mesmo observa nas palavras finais do seu mais recente romance: «Entre o facto e a ficção há distanciamentos e aproximações a cada passo, e tudo se pretende num paralelismo autónomo e numa confluência conflituosa, numa verdade e numa dúvida que não são pura coincidência». Foi esse processo de trânsito, muito consciente e voluntário, do observado para o ficcionalizado que a ensaísta brasileira Nelly Novaes Coelho referenciou na obra de Cardoso Pires ao apontar «a sua vigilância constante para transcender o significado real e raso do real objectivo e dar-lhe uma conotação simbólica». Com a peça teatral O Render dos Heróis (1960), o 177 ensaio crítico-social Cartilha do Marialva (1960), e a fábula satírico-política Dinossauro Excelentíssimo (1972) dilatou este escritor, para diversas direcções, a reconhecida importância da sua presença na literatura portuguesa das últimas décadas. 178 OS CAMINHEIROS António Grácio disse: – Vida dum capado. Amaldiçoada seja ela mais aquele que a inventou. O companheiro ouviu, continuou em frente, sempre de cabeça levantada na mesma direcção; de vez em quando estendia a bengala a tactear o asfalto. – O teu compadre garantiu-te que vinha? – perguntou. – Que vinha, não. Nós é que íamos ter a casa dele. O que se combinou foi isso. – Nesse caso... – Foi isso – repetiu António Grácio. – Comprometeu-se a esperar por nós toda a tarde. – Hoje? – Hoje, catano, hoje. Ainda não estou com tão má memória que me esqueça das combinações que faço. Se esse meu compadre se esteve borrifando e foi lá para a cidade ou para o raio que o parta, pior para ele. Que se trabalhe. O interesse é dos dois, não é só meu. Ouviram o klaxon dum automóvel e desviaram-se para a berma da estrada. António Grácio segurou o braço do companheiro: alguns metros adiante, uma cobra pardacenta lançava-se ao caminho, precipitadamente. – O que foi, Tóino? – Uma cobra. O automóvel apanhou-a. Deram mais alguns passos, até que António Grácio mandou parar o companheiro. Aos pés dele, a cobra contorcia-se, dividida em dois pedaços. A parte da cauda, presa ao alcatrão pelo ponto em que partira, estava quase imóvel, sem vida, enquanto o resto do corpo se sacudia no meio duma mancha de sangue e de escamas. 179 – É uma rateira – concluiu Grácio. Observava as manchas largas que ela tinha no lombo, a cabeça pontiaguda, essa muito branca, os olhos vivos e a língua que tremia, solta no ar. – Não há dúvida. Pelos sinais, é uma rateira legítima. Posto isto, ele e o companheiro seguiram jornada. Grácio devia ir a lembrar-se da cobra, das manchas e dos sinais que a distinguiam das outras, porque pelo caminho voltou a falar dela. Disse então. – Para mim, o que mais me espanta é encontrar uma rateira por estes sítios. Mas não há dúvida, era uma rateira e das boas. Só tenho pena que não se possa aproveitar a pele, Cigarra. O outro ouviu e guardou silêncio. António Grácio continuou: – É certo que agora é a época do cio e, portanto, elas não escolhem sítio. Mas para uma rateira andar por estas bandas é porque a traz fisgada. Talvez andasse à caça, quem sabe? – Viste-a bem? Tens a certeza que era uma rateira? – Certezíssima. Trabalhei nos poços da Gafanha e conheci toda a qualidade de cobras. Bichas-de-água, rateiras, guardas-de-telhado, tudo. Lidei com elas, Cigarra. A mim ninguém me ensina a diferençar uma rateira. Os dois caminheiros seguiam ao sol pelo meio da estrada. Palmilhavam um troço desabrigado, planície à esquerda, planície à direita, e muito naturalmente, à falta de sombra, escolhiam o terreno mais certo, o de melhor piso. – Calor dos infernos – protestava António Grácio a todo o passo. E mais adiante, referindo-se ainda às cobras: – Neste tempo andam elas, pelos feijoais à procura de macho. As bichas-de-água, bem entendido. Cigarra, se tu visses uma cobra e um cobrão na brincadeira, até te mijavas. Enrolam-se de tal forma que chegam a ficar como duas estacas. De pé, levantadas na ponta do rabo. E assopram, fazem um assoprar medonho uma com a outra. Cigarra tossiu seco. Tropeçou com a bengala em qualquer coisa e desviou-se calmamente, apoiado no braço do outro. – Que marco era, Tóino? O companheiro voltou-se para trás: – Marco nove. Não tarda muito, entramos noutro quilómetro. – E o Retiro? – tornou Cigarra. – Ainda falta muito para o Retiro? – Aí uma hora. Mas antes disso apanhamos as árvores. – As árvores do Carrascal, já sei. Se não me engano, foi nesse sítio que a Guarda implicou com a gente da outra vez. – Pois – respondeu o Grácio –, pois. Ia a passo miúdo, decerto para acompanhar o andamento do outro, e o modo de se mover, os gestos, a voz até, davam-lhe um ar contrariado, impaciente. 180 – Tóino – disse o Cigarra, travando-lhe um tudo-nada o braço. – Essa conversa do teu compadre o que era? Havia muita coisa que António Grácio compreendia pela maneira como o amigo o agarrava. A curiosidade era uma delas. Pela força dos dedos, pela demora com que os pousava ou mantinha atentos sobre o braço dele, à espera duma oportunidade, duma explicação, podia adivinhar o cansaço, a dúvida, o desejo ou a surpresa que iam no outro. Não precisava de palavras: os dedos de Cigarra contavam-lhe tudo. – Gaita – desabafou então. – Está um calor de matar. E retirou brandamente a mão do companheiro. Cruzou-se com eles um camião enorme. Arrastava-se, a tremer e a chiar, debaixo dum carregamento de toros. António Grácio reparou no condutor em mangas de camisa, no rodado lento a desfilar e, por fim, nos vincos que os pneus deixaram no asfalto amolecido. Pôs os olhos nesses sinais, seguiu-os, caminhando sempre atrás deles: – Se a bicha não tivesse ficado tão estragada, trazíamo-la agora com a gente. Quanto dariam na farmácia por uma peça daquelas? – Depende – murmurou Cigarra. – Depende do unto e da peçonha que se aproveitarem. A voz soou triste, distante. Uma vez que o homem avançava de rosto levantado e impassível, a voz era como um segredo que ele lançasse para a distância e fosse adiante, a abrir-lhe caminho, até ao ponto desconhecido para onde parecia apontado. Dum lado da estrada começavam a surgir balseiros e, aqui e ali, o tronco ressequido de uma oliveira desgarrada. Cigarra pressentiu talvez essa presença de vida na planície, porque se pôs muito atento, mais firme ainda na sua orientação. – Já se vêem as árvores? – perguntou na tal voz lançada para o infinito. Piscava os olhos, à espera; e quem o observasse julgaria que a resposta não viria do companheiro, mas de longe, desse ponto que o orientava. – Árvores? – repetiu o Grácio, distraído. – Sim, as árvores onde fica o Retiro. Tóino, e se a gente bebesse um copo quando lá passasse? – Depois se vê. Por enquanto o que interessa é chegar à cidade. – Mas para chegar à cidade passamos pelo Retiro – insistia Cigarra. António Grácio não respondeu. Em vez disso, atirou um pontapé numa lata e sentiu um ardor a queimar-lhe o pé quando roçou com ele pelo asfalto. 181 – Espera aí – disse de súbito. O outro obedeceu. Ficou no meio da estrada, acomodando a viola que trazia pendurada, às costas, como se fosse uma arma de caçador. Também o Grácio levava qualquer coisa à bandoleira: a caixa das esmolas – e era como se carregasse uma sacola de pedinte ou então uma rede de guardar caça. – Poça – assoprou ele, atravessando a estrada e pondo-se a rodear uma piteira como se procurasse qualquer coisa. Abriu a navalha, escolheu uma folha; num golpe brusco, cortou-lhe um pedaço e em seguida sentou-se no chão para se descalçar. A bota tinha um rasgão enorme na sola. Calculou a medida do buraco, tapou-o com o pedaço de piteira, muito aparado. Quando tornou a calçar-se, bateu com o pé no chão várias vezes para ajustar a bota. – Pronto, toca a andar. Nos breves instantes em que estivera sentado, o piso quente da estrada colaralhe as calças às nádegas. Por isso sacudia o traseiro. Caminhava e puxava as calças, e não cessava de se lamentar: – Vida dum capado. Filha da mãe de vida e mais de quem a inventou. – Parou um instante: – Tem paciência, vou tirar o casaco. Está um calor de assar rolas. Os dois, estrada fora, um de viola, o outro de casaco no braço, faziam um par solitário atravessando a tarde. Vistos de longe, lembrariam dois amigos em passeio, e nunca duas pessoas que vão à vida, preocupadas com os seus assuntos. Cigarra levava o sentido no Retiro, queixava-se: – Se não bebo qualquer coisa, não sei. Uma pinga de água quanto mais não seja. Tenho umas dores nas cruzes que nem posso. O companheiro rematava-lhe com o calor: – É o sol, Cigarra. Este maldito dá cabo de qualquer homem. Tinha realmente a camisa encharcada, com dois lagos de suor nos sovacos. Além das nódoas de vinho e dos remendos, que eram muitos e sobrepostos, a camisa resumia-se a isso: suor. – Agora – disse Cigarra – já nem é sede. Agora são as dores que não me largam. – Passam, não te apoquentes. Quando chegarmos à cidade, escolhemos uma taberna e descansamos. O que a gente não pode é perder tempo. Tenho medo de me desencontrar dele. – Desencontrar de quem, Tóino? – Do meu compadre. Se não estava em casa nem vem a caminho, é porque ficou na cidade. Junto dum pau de fio trabalhava um piquete de cantoneiros. As picaretas cravavam-se no asfalto com um som oco e a brita era lançada ao rés da estrada como uma chuva de granizo. 182 – Obras – anunciou o Grácio. Imediatamente o outro pendurou a bengala no braço e deixou-se guiar pelo companheiro. Os trabalhadores abriram caminho para os deixar passar. Essa pausa foi o bastante para que Cigarra levantasse a cabeça e se pusesse todo tenso: – Escuta... Pareceu-me ouvir um moinho. E era. O companheiro distinguia agora um moinho de tirar água, rodando lá ao fundo, com as suas pás de metal a luzirem ao sol. O moinho: naquele lugar havia uma encruzilhada e começavam as mansas filas de plátanos, com cintas brancas pintadas no tronco. António Grácio puxou da onça: – Estamos quase. Vai uma cigarrada? – E como o outro recusasse: – Agora, sim, já se pode fumar. Não tarda vermo-nos livres do calor. Com modos pachorrentos, desenrolou a folha de couve em que protegia a onça para não deixar secar o tabaco, e começou a fazer o cigarro. A seu lado, o amigo voltou a falar: – O pior não é o calor, o pior são estas dores que não me largam. – Passam. Deixa-te apanhar um bocado de sombra e verás. Cigarra teve um sorriso desiludido: – Tudo isto é a malvada da úlcera a dar sinal. Conheço-a bem. Ainda ela não começa a roer, já eu a sinto. – Nesse caso, talvez seja melhor pararmos no Retiro. Podemos mandar vir um caldo, como da outra vez. – Um caldo? – E então? Um caldo é remédio santo. Pelo menos é o que tem acontecido. Palavra que, se não fosse a questão do meu compadre, nunca nós fazíamos uma viagem destas. Maldita a hora em que eu me fiei naquele velhaco. Dum modo geral, António Grácio conversava com o companheiro sem o olhar. Assim aconteceu agora. Disse o que tinha a dizer e depois assoprou duas ou três fumaças desesperadas. Não tardou muito, já estava outra vez a falar, mas para dentro, em silêncio. Discutia possivelmente com ele mesmo e com o seu destino traidor. «Vida dum capado», repontava a meio dessa conversa que só ele sabia; e continuava em frente, a cabeça enterrada nos ombros, os olhos fitos nas duas sombras atarracadas que deslizavam no alcatrão. Essas sombras resumiam para ele a estrada, as sombras e a bengala do amigo marcavam o andamento da viagem. Cigarra, por sua vez, ia retardando o passo. Sabia que tinham chegado às primeiras árvores por causa da frescura que pousava sobre ele e também pelo ruído dos pés ao pisarem uma ou outra folha seca. Mas o calor ainda não desaparecera de todo. O ar continuava abafado, ar de trovoada; as árvores para ali estavam paradas, na esperança de uma brisa que não 183 chegava. Lá quando calhava desprendia-se uma folha, uma só, e vinha lentamente, lentamente, espalmar-se no chão. – Eh, pá! Alguém acabava de saltar ao caminho de pescoço no ar. – Eh, Miguel – gritou António Grácio. O homem veio para eles, de braços abertos. Era alto e seco e trazia um lenço atado ao pescoço. Ria: – Estavá a ver que nunca mais apareciam. Foram lá a casa? – Fomos, pois – respondeu o Grácio. – Não era o que estava combinado? Cigarra, este aqui é o meu compadre Miguel. Amigo e compadre cumprimentaram-se em silêncio. Mas o compadre sorria e mostrava-se satisfeito com o encontro. – Caramba, vocês demoraram-se como raio. Houve algum azar? – Não. A gente foi lá a casa e a comadre disse que tu tinhas saído de manhã. Desde que tinham trocado as primeiras palavras, Miguel não tirava os olhos de cima do Cigarra. Tinha-o a dois passos dele, silencioso, à espera. – Sente-se, amigo. Viu-o pousar a viola no chão com cuidado, recuar e encostar-se a uma árvore. Enquanto os dois companheiros se sentavam também à sombra de um plátano, ele continuava ainda de pé, apoiado ao longo do tronco. Sorvia o ar e, por trás dos óculos negros de mica, parecia interrogar o ponto longínquo que toda a vida se pusera no seu caminho. – Cansado, amigo? Cigarra adivinhou que era com ele. – Dores – suspirou, passando a mão pela barriga. – No estômago? – tornou Miguel, interessado. – Sim, na úlcera. António Grácio ouvia um, ouvia outro, e passava o cigarro na ponta da língua de canto para canto da boca. – Bem – cortou de repente. – Já pensaste no caso? Como quem não quer a coisa, o compadre apanhou uma folha; levou-a à boca e entretanto pôs-se a medir o Cigarra de longe. – Não sei – disse por fim. – Duas notas é muito. – E mais alto para o Cigarra: – Você já foi ao médico? Aqui António Gracio respondeu pelo companheiro: – Médico? Foi à faca, que ainda é muito mais seguro. Quando é que tu foste operado, Cigarra? – Dia três de Setembro, faz para o mês que vem um ano que dei entrada no hospital. 184 – Vês? Há um ano. O que ele tem agora é fraqueza. E não admira, Miguel. Forte sou eu, e vi-me à brocha com a caminhada de hoje. Diante do Grácio, o compadre mordiscava a folha. Mordiscava, pesava as suas razões, olhava a criatura que estava na outra árvore. Mordiscava e não se resolvia: – É muito. Tóino. Duas notas é dinheiro. Depois há que ver que não tenho prática... Sim, não é do pé para a mão que um fulano se mete numa coisa nova. Tudo tem os seus segredos, não é assim? O outro compadre sorria, divertido: – Segredos? Ele ensina-tos, descansa. Olha, neste comércio só o que é preciso é não haver desconfianças. Trabalha tudo para a caixa das almas. – Que dinheiro têm vocês aqui? Miguel tinha pegado na caixa e voltava-a e tornava a voltá-la, intrigado. Não estava de maneira nenhuma a tomar-lhe o peso; afigurava-se que pretendia somente conhecer-lhe os mistérios, apalpando a fechadura, a fresta das moedas ou a simples qualidade da tinta. – Quanto? – repetiu. – O dinheiro da caixa é à parte. Foi ou não foi o que estava falado? – Bem, isso agora não interessa grande coisa. – Não interessa? – António Grácio levantou-se de um salto. – Tu assentas numa combinação e agora dizes-me que não interessa? Pôs-se a dar voltas diante do compadre. Girava de um lado para o outro e só perguntava se isso não interessava, se era possível qualquer pessoa pôr de parte a sua palavra com tamanha facilidade. – Para mim o prometido é devido – protestava. Ao passar perto de Cigarra, sentiu-se agarrado. Parou. O outro chegava o rosto ao dele, desejava falar-lhe: – Vais dar o salto Tóino? Fazia-lhe a pergunta num tom sumido, quase de segredo. Mas, como era mais alto e o rosto lhe ficava por cima do companheiro, parecia dirigir-se a alguém para lá dele, na direcção das árvores da outra margem da estrada. – A sério, Tónio, vais-te embora? O outro nem o ouviu. Sacudia a cabeça, indignado. – Catano, mil vezes catano... – Calma – interveio Miguel. Tinha-se chegado também ao Grácio e chamava-o à razão. – Que diabo. Não é motivo para te pores nessa berraria. – Não me interessa se é motivo ou se deixa de ser, para mim o prometido é devido. – E acrescentou: – Catano. 185 – Calma. – O compadre arrastou-o para longe do Cigarra. – Calmaria é que é preciso. Os dois, estrada abaixo, estrada acima, recomeçaram a conversa. Miguel punha de parte a questão da caixa das esmolas, informava-se de várias coisas: se, por exemplo, o Cigarra sabia ler pelos buraquinhos. – Quais buraquinhos? – Os buraquinhos do papel – explicou o compadre. – Aqueles por onde eles lêem com os dedos. – Já sei – exclamou António Grácio –, mas neste caso não é preciso. Basta uma pessoa dizer-lhe duas vezes os versos duma moeda para ele nunca mais se esquecer. É fino como uma lebre. – Tem bom ouvido, queres tu dizer. – Ouvido? – António Grácio sorriu. – Ouvido têm eles todos. Mas este o que tem de raríssimo é o faro. Contaram-me que, quando viveu com uma amiga, soube logo que ela o enganava só pelo cheiro dos lençóis. – Chiça. Só pelo cheiro? – É o que te digo. Um faro danado. – E com respeito a comida? Tem má boca? Come muito? – Um pisco – respondeu Grácio. – Chego a perguntar a mim mesmo como é que um corpo daquele tamanho se aguenta com tão pouca coisa. Pois e para andar? – Antes assim. Esta vida deve puxar pelas pernas que não é brincadeira. – Se puxa. Ele é dos que não se vergam, Miguel. Um batedor de raça, fica sabendo. Aquilo é apontar a bengala... e pernas, que não há nada no mundo que o faça esmorecer. Os dois compadres voltaram-se uma vez mais para o Cigarra. Lá estava no mesmo sítio, mas agora sentado debaixo do plátano e com a viola no regaço. – E a roupa? – perguntou ainda Miguel. – Eu é que pago a roupa dele? – Não. Nem a roupa nem instrumentos, nada disso é contigo. Tu só tens de pagar a comida e receber metade dos ganhos. – Em todo o caso, Tóino. Duas notas é dinheiro. E para mais doente... Não sei, tenho de pensar. – Tens de pensar? Mas quem é que disse que ele é doente, Miguel? Vinham naquele instante a aproximar-se de Cigarra. António Grácio não perdeu a ocasião e apontou-o ao compadre: – Vês? Já está melhor. Estás melhor, Cigarra? – Assim, assim – disse ele, e tão baixo que mal se ouviu. – Agora só tenho sede. 186 Miguel não esperou por mais nada. – Pronto, vamos molhar a goela. Aqui perto há um sítio catita para isso. E Cigarra, levantou-se: – Bem sei, o Retiro. Não foi preciso ajudá-lo, ele próprio pôs a viola a tiracolo e apanhou a bengala. A tarde começava a refrescar, uma aragem muito branda demorava-se sobre a ramaria. De súbito um bater crespo de asas desabou lá do alto. Miguel e Grácio nem levantaram a cabeça, mas, atrás deles, Cigarra fixou o pio da ave. – Era uma poupa, Tóino? Não teve resposta. Os dois compadres discutiam em tom amigo e, se quisesse, podia ouvi-los. Mas não queria. Em vez disso pensava na poupa. – É um pássaro porco, a poupa. – Caminhava, falando sozinho. – Ao fim e ao cabo, não passava dum pássaro de bosta de boi. Mas nada garante que fosse uma poupa. Pelo contrário. O bater de asas era de narceja, e com essas tudo fia mais fino. Mais esperteza, mais asseio... Ouviu a voz do companheiro. Pelo tom, percebeu que se dirigia a ele: – Ainda temos algumas cordas de reserva, não temos? Respondeu que sim: um bordão de dó e outro de sol maior. – E folhetos das músicas? – adiantou-se, muito pronto o compadre Miguel. – Folhetos - disse o Grácio – temos meia dúzia de cantos ao fado e as coplas da revista Salada de Alface. E o Miguel: – Compadre, como o Crime de Chelas é que ainda não se fizeram versos iguais. – Crime de Chelas? Cigarra, tu já ouviste falar alguma vez no Crime de Chelas? - Ouvi. É aquele do pai que matou o filho à nascença. – Ah, bom. A Tragédia Desumana – disse o Grácio. – O título da letra é Tragédia Desumana. Não conheço eu outra coisa, compadre. E começou a cantarolar: É uma horrivel tragédia que vos passo a contar dum pai que sem escrúplo alguuum... – Posso pagar por duas vezes? – perguntou Miguel. – Em duas metades? Grácio continuava, embalado na cantiga: ...dum pai que sem escrúplo algum seu filhiinho foi matar... 187 – É muito antigo – comentou ele no final da cantiga. – Hoje não se fazem músicas como antigamente. Cigarra apanhava muito pela rama o que se passava entre os dois compadres. Sentia a tarde cair e a passarada baixando sobre a terra morna à procura de alimento. Pardais, poupos nojentas, melros velhos e sabedores. – E narcejas. A narceja é amiga de água. – Engoliu em seco. – No Retiro – prometeu a si mesmo em voz alta. – Nem caldo nem coisa nenhuma. O que eu preciso é de um copo de vinho bem fresco. Nesse instante chocou com alguém. Fez alto. Eram os compadres, que tinham parado no meio da estrada. – Em que ficamos? – perguntava um ao outro. – Não sei, é um risco muito grande... Cigarra andou por ali, à volta tacteando com a bengala ao acaso. Encontrou uma árvore, arrancada pela raíz, estendida na berma da estrada. Sentou-se, esperou. Pegados na conversa, os outros nem reparavam nele. – Seja o que a sorte quiser – disse Miguel, por fim. Tirou um maço de papéis do bolso interior do colete e passou duas notas de cem escudos. – Quem não arriscou, não perdeu nem ganhou. António Grácio dobrou o dinheiro: – Pois quem não ganhou fui eu. Sabes quanto o Vesgo deu por um que chamam o Pratas? Três notas e meia. E mais nem sequer sabe pegar no bandolim. – O tocar ou não tocar é o menos. A questão para mim está no guia. E, como te disse, lá de guia é que eu não percebo nada. – Aprendes, compadre. Se os cães aprendem, porque é que é que tu não hás-de aprender? – É justo – concordou Miguel, com ar preocupado. – Realmente, se formos a ver bem as coisas, é fazer de cão de cego, pouco mais. Sim, como trabalho é isso. – Ficou calado por momentos e depois resolveu-se: – Seja. O que está feito, está feito. Vamos ao copo para fechar? – Não posso – respondeu o António Grácio. – Fica para a próximo. – Pago eu, caramba. Nem ao menos um copo para fechar? Mas o Grácio tinha pressa, agora mais do que nunca. Veio junto da Cigarra e abraçou-o: – Desculpa... A gente não fica com razões um do outro pois não? Cigarra sorriu. Fez um arabesco com a bengala e a mão tremeu-lhe. Tinha a voz do companheiro no ouvido: «O meu companheiro é um gajo unhaca, verás.» E também essa voz tremia. 188 Então quis dizer fosse o que fosse, mas só conseguiu agarrar-se ao Grácio e abraçá-lo com força, com tanta força que o peito lhe doeu como se lhe tivessem tirado todo o ar. Passado tempo, achava-se ainda sentado à beira da estrada quando sentiu que alguém o puxava brandamente pelo braço: – Amigo, vamos ao Retiro? Era ao anoitecer e não ouvia pássaros nem gente à sua volta. – Sim – murmurou ele. – O Retiro. E levantou-se. (De Os Caminheiros, 1949) 189 AUGUSTO ABELAIRA (1926-) É também na sequência pluralizada do neo-Realismo, integrando no seu propósito básico de combate político-social uma visão do homem «ondoyant et divers» e envolvendo-a em ironia intelectual e em subtilizada crítica das fraquezas inelutáveis, que a obra ficcionista de Augusto Abelaira tem assumido caracterização mais original e valia perene. A finura na análise minuciosa e penetrante dos caracteres, testemunhados em assíduo discurso dialogal e em comportamento, encontrou neste escritor uma delicadeza e pureza de estilo que se ajusta harmoniosamente aos seus temas. E estes, com frequência, são centrados na pequena burguesia intelectualizada, jogada versatilmente entre as ideias e as realidades no amor, nas aspirações éticas e na resistência política à opressão fascista. A temática das frustrações e das suas causas numa sociedade alienatória é a que mais avulta na obra de Abelaira, sempre representada numa linguagem de aliciante elegância formal. Depois duma primeira experiência, logo resultadamente feliz, com os romances A Cidade das Flores (1959) e Os Desertores (1960), prosseguiu num reiterado «continuum narrativo que o autor traz dentro de si» (palavras suas) a obra do romancista, publicando As Boas Intenções (1963), Enseada Amena (1966), Bolor (1968), Sem Tecto Entre Ruínas (1978) e O Triunfo da Morte (1981). Ao realismo um tanto sentimentalizado dos primeiros livros, porém, veio acrescentar-se nos mais recentes e, sobretudo, no último referido, uma espécie de jogo irónico ou mesmo malicioso com o fantástico. Embora o lúdico tivesse sido sempre uma das «maneiras» características de Augusto Abelaira no tratamento das personagens e das suas aproximações ou distanciamentos vivenciais, parece assumir agora uma função mais dinâmica no processo narrativo – talvez porque, precisamente, mais propício à manipulação insistente da ironia. O livro de contos Quatro Paredes Nuas (1972) ilustra em aspectos essenciais a técnica, a inspiração íntima e o estilo do romancista, evidenciando com particular impressividade a sua 190 utilização habilmente sinuosa do monólogo e do diálogo – e estes como forma de comunicação de sentimentos individuais e de conflitos que são por eles gerados. Assim o confirma o Autor, igualmente, no seu teatro, com três peças publicadas. 191 ODE (QUASE) MARÍTIMA ...telefono, escrevo uma carta, uma dessas cartas que nunca escrevi (que nunca escreverei), humilho-me, se necessário for. Ou nem telefono, nem escrevo, nem... E fico à espera, e o que acontecer acontecerá e o que não acontecer não acontecerá – para quê meter-me nisso (embora isso seja a minha vida)? Melhor, muito melhor: durante dois ou três dias ponho de parte o homem que deu o nome na recepção do hotel (se quisesse dava um nome falso, não me pediram o cartão de identidade), ponho também de parte o homem que há-de ir-se embora no momento imediato a ter pago a conta (pagarei a conta, aflijo-me só de imaginar que podem supor que não tenciono pagar a conta). E então: em que vai pensar quem abdica do seu próprio passado (como se fosse possível!), quem abdica do seu próprio futuro? Talvez nos peixes que não vê, que sei mergulhados ali em frente no oceano. Ou na chuva que molha os teus cabelos, escorre pelo teu rosto, pela tua gabardine – o defeito das gabardines de plástico: em vez de agarrarem a chuva, repelem-na, deixam-na deslizar velozmente para dentro dos sapatos! Mas, mesmo assim, ainda bem que trouxeste a gabardine, quem teria dito que havia de chover (Natal na praça, Páscoa ao borralho)? Ainda bem que trouxeste a gabardine, mas não fales muito nela, pois pertence ainda ao teu passado (pertencerá ao teu futuro), não fales do oceano (também pertence ao teu passado, também pertence ao teu futuro, embora seja preferível dizeres mar –, oceano é uma palavra para as grandes ocasiões, não para o dia-adia), fala de... Ah, fala, diz coisas, se te atreves, cujo sujeito não sejas tu, coisas em 192 que fiques de fora e que possam ser ditas como se não existisses e as não dissesses, coisas que não precisam de ser ditas nem sonhadas para existirem: chuva, noite, mar. Mas quem vê chover, quem vê a noite e o mar? Sujeito: tu. Erro evidente, sujeito: eu. Eu com um passado e um futuro (muito mais um passado e um futuro do que um presente), eu (ou tu, se preferes tratar-me por tu para te desdobrares, para teres a ilusão do diálogo, a ilusão de que não estou só). Eis-te pois a falar comigo próprio (com o meu passado, com o teu futuro, não com este superficial presente de três dias), comigo próprio, Joaquim Alberto, a falar em voz alta, aqui de noite e na praia, de noite e frente ao mar, a chuva nos cabelos (uma constipação amanhã). E à espera. Sim, à espera de quê, nessa noite de Natal? De um milagre, ó escândalo! Um longo arrepio atravessando o corpo que é teu (que és tu, que sou eu, no fim de contas). Porque se acaso hoje não tem sido noite de Natal, estarias aqui à espera de qualquer coisa (embora descrente, embora ateu), à espera dum milagre, ó escândalo? Um arrepio, um desses arrepios que vêm certamente da memória das células herdadas de teus avós. Ou nada disso. Estás aqui (estou aqui) por ser noite de Natal, é certo. Mas não por ser noite de Natal, e sim porque hoje é feriado. Estarias aqui também à espera do mesmo milagre, embora sem te lembrares de lhe chamar milagre, se hoje se festejasse a descoberta do Brasil ou a proclamação da República? E nessa noite de Natal (dez de Junho, cinco de Outubro?) suspendes subitamente a tua vida, sentes-te tentado a dividi-la em duas partes, o passado e o futuro, procuras descobrir o que vais fazer desse teu (desse meu) futuro, pensas numa transformação radical... mas se, por acaso, Joaquim Alberto, aparecesse agora aqui a teu lado aquela inglesa do hotel, se começasse a falar-te, se me levasse consigo, não adiarias imediatamente para amanhã o instante da transformação imediata? Neste momento não trocarias todo o teu futuro regenerado por uma noite (ou duas ou três) nos braços dessa inglesa (ou doutra) por culpa de quem, ao jantar, mudaste discretamente a posição da tua cadeira – e comeste um tudonada inclinado para a esquerda de modo a mais completamente lhe apreciares as pernas, melhor surpreenderes o que as saias esconderiam se te mantivesses direito? E a muito leve mas contínua dor de estômago (responsável, quem sabe?, pelo teu fôlego metafísico, pela tua insatisfação, pelo teu desejo de te regenerares) não será o resultado inevitável da maneira como jantaste? Paro um instante, imagino-me de súbito numa gruta de eremita ou na Tebaida, em cima duma coluna, grito: Vade retro, Satana! O pecado, o grande, o verdadeiro pecado, não está na carne, nas fraquezas da carne, mas nas dúvidas que exprimes acerca de mim próprio, na minha tendência para não te levar a sério. 193 Vade retro, Satana! Esfrego as mãos, vejo-te no deserto (e como se estivesses realmente fora de mim, ocupasses um espaço diferente, como se não fosse eu), penso: porque estarias no deserto, lá nesses primeiros séculos do cristianismo, que força te teria empurrado para lá, que fantasmas povoariam a tua noite de Natal? Mulheres, não. Perturbado por veres os cristãos acusarem-se uns aos outros – fugindo para não seres perseguido, tu que não poderias ser perseguidor...? Que não poderias ser perseguidor porque não tinhas forças para sê-lo ou porque não o desejavas? Ou seria a tua tolerância, o teu desejo de liberdade, um sintoma somente da tua fraqueza? És um perseguidor que de ti próprio te escondes, todos nós seremos perseguidores no mais profundo das nossas almas? Sim, como seria bom passar agora as mãos pelo corpo da inglesa (dessa ou doutra), sentir nos dedos a doce penugem das pernas dela, eternizar tais momentos – não há depois, não há antes, só há agora. Ou estar junto de ti, Filomena, ou telefonar-te. Lá ao longe, vencendo o nevoeiro, a noite espessa, a chuva, atravessando o mar – um risco contínuo (descontínuo) de luz. Um barco, embora eu não veja o barco. Um velho cargueiro inglês, clássico à sua maneira? Não sei quem, encostado à amurada, verá luzes, mas não as que eu vejo, as luzes do hotel, invisível também; e um ponto vermelho, certamente a ponta dum cigarro – há-de concluir –, mas sem adivinhar de que lado está o cigarro e, portanto, de que lado estará o homem que sou eu. – Não te preocupes – digo-lhe então –, sabe simplesmente que também penso em ti, mas sem sequer ter como ponto de referência a ponta dum cigarro. Aproveitar esta noite, pôr as ideias em ordem! Começar pelo princípio, lá nesse instante em que certo animal pela primeira vez opôs o polegar aos outros dedos da mão (mas não do pé)? Ou no momento, bem mais próximo, em que a tua mulher, há quase um mês, se foi embora, dizendo numa carta que não podia continuar a viver contigo? Ou talvez devas começar pelo fim. Por exemplo: sem que eu suspeite, subitamente rompe-se uma artéria no teu cérebro... Apura os ouvidos, ouve, ouve com atenção, ela começa já a... Dentro de segundos, Joaquim Alberto, responde-me: estás preparado para morrer, tu que te hospedaste num hotel, que vives dezasseis ou dezassete séculos depois de poderes ter ido para o deserto? Estarei preparado para morrer? Ah, as grandes, as grandes frases, as grandes perguntas, mas como é bom dizêlas, ouvires-te repetir o que tantas vezes foi repetido muitos séculos atrás! Estarei preparado para morrer? No fundo, isto: fizeste tudo quanto deverias ter feito, agora que já nada poderás fazer? Neste instante em que, de súbito, num relâmpago (a artéria a romper-se), toda a minha vida passa diante dos teus olhos antes de 194 mergulharmos ambos no silêncio definitivo, fiz tudo quanto me sentia obrigado a fazer? Posso, nesta noite de Natal (neste dez de Junho, neste cinco de Outubro), encarar repousadamente o silêncio porque estou sem esse pecado mortal? Alguma vez arrisquei a minha vida como tantos homens arriscaram a deles, os Guevara, os Camillo Torres ou, mais nobres ainda, esses cujo nome ninguém sabe e que já sabiam que nunca seria sabido – os anónimos absolutos, embora não haja anónimos absolutos? Eu, que em certos momentos me trato por tu – tu, que em outros momentos te tratas por eu, neste diálogo inútil – já algumas vezes me surpreendi – te surpreendeste – a dizer nós? Nós - não um eu, não um tu. Nós, anonimamente..., Tu (ou eu), que contestas o mundo, falando cobardemente com o oceano (nem sequer com o mar). Um homem de setenta e dois anos, aparentemente sessenta. E bem vestido, embora com modéstia, muito bem penteado, falando vagarosamente como se estivesse a dar uma explicação a um estrangeiro ou como se o estrangeiro fosse ele e sentisse dificuldade em achar as palavras exactas. Era isso numa papelaria, enquanto eu aguardava a minha vez e ele falava com um amigo. Logo a seguir o amigo foi-se embora, o homem continuou a conversa, primeiro dirigia-se a toda a gente, depois começou a falar apenas comigo. Tinha estado muito doente, tanto que uma vizinha dissera para a mulher: «O Senhor Marques não se safa.» Repetiu isto umas três ou quatro vezes durante a conversa. «Estive tão mal que até uma vizinha disse... Estive à morte – acrescentou. – Mas sou tão saudável que resisti. Para a semana devo ser operado a um pulmão. A minha mulher não quer, tem medo. Sabe? Casei tarde, não tive filhos. Dá-me uma saudade dela... Eu tanto se me dava como não de morrer. Já vivi o suficiente, trabalho de manhã à noite e, para lhe ser franco, esta é que é a verdade, tenho de trabalhar até o meu último momento de vida. Uma reforma de quinhentos escudos, imagine! Uma vez, uma só vez, fomos à Holanda ao desafio do Benfica. Estas coisas não se podem repetir, claro. E depois tivemos de apertar os cordões à bolsa. Para lhe ser franco – repetia muitas vezes –, só preciso de continuar a viver por causa da minha mulher, coitadinha. – Abriu a carteira e mostrou a fotografia: uma mulher gorda, com óculos, uma permanente feita num cabeleireiro barato. Como? Estou aqui a resumir para mim próprio uma cena a que assisti, que não precisa portanto de ser evocada com todos estes pormenores, que não precisa de palavras, de palavras distribuídas por um discurso coerente, para que eu a recorde! Porque descrevo o que não preciso de descrever? Não é então para mim que estou a falar. Falo com alguém. Se acreditasse em Deus, a segunda pessoa escondida no tom da minha voz talvez fosse Deus. Se acreditasse na Morte (na entidade Morte, a tal que tem uma 195 grande foice e que já foi muitas vezes retratada há seis séculos), seria com ela que estaria a falar: «Tu, ó Morte!» Ou com a noite, ou com o mar, ou com a chuva. Mas não, tenho a lucidez bastante para não cair em semelhantes armadilhas. Falo pois para o silêncio. Para? Não, falo pois em silêncio, quebro com a minha voz o silêncio (não ouço nem o vento, nem a chuva, nem o mar). Se escrevesse, ainda era possível admitir um leitor subentendido nas minhas palavras. Mas não escrevo – e falo em voz alta precisamente por estar sozinho. Ou desejoso de que me ouçam alguns ouvidos encobertos pela noite? E assim: – Sofro, é a primeira vez na minha vida que me atrevo a dizer a alguém que sofro, pois sempre achei ridículo, sempre achei uma fraqueza, sempre achei que o homem deve esconder dos outros (e de si próprio!) os próprios sofrimentos, sempre vivi como se falasse em voz alta, mas para que os outros (e eu!) tivessem de mim uma certa e determinada imagem. Uma certa e determinada imagem. Qual? Que tenho eu procurado que pensem de mim os outros, independentemente do que sou (ou imagino ser)? E quais outros, visto que nem todos os outros me interessam? Precisamente: que interlocutores tenho eu escondido, em silêncio, para a minha vida, de quem são as sombras que dialogam comigo quando me encontro só? Olho em volta (digo que olho em volta), não esteja alguém (ou uma sombra e as sombras podem ter ouvidos) a observar-me – porque sempre procurei que os outros vissem em mim um homem seguro, um pouco céptico, é certo, mas seguro, com meia dúzia de convicções inabaláveis, pelo menos acerca de meia dúzia de pontos fundamentais. Quem são os homens que não devem ouvir o que neste momento digo? E os outros, esses a quem contaste a história do marido que tinha saudades da mulher? Tu, que contaste essa história como se a escrevesses, que falas como se escrevesses, que escreves em voz alta, que é como se já assistisses à leitura dessas palavras que afinal nem sequer foram escritas... Quem as lê, quem imagino eu que lê estas palavras, a quem as escrevi, eu que não as escrevi nem escrevo...? – Espera, ó Morte, espera um momento, não me deixes morrer antes de descobrires esses ouvintes (ouvintes que só o foram porque ausentes), quem são, a quem é que neste momento dirijo este discurso, eu, que não estou a falar contigo, ó Morte, que não acredito na tua foice, nos teus ouvidos, que não acredito sequer na ruptura imediata duma artéria, eu, sabedor de que não existes, pelo menos como ser a quem se possa dirigir a palavra, que finjo falar contigo porque sei que não podes ouvir-me, porque sei que tu não és tu nem ninguém. E ter então a humildade de dizer à Filomena: – Vem... Volta... – À Filomena que saiu de casa há quase um mês, que nem sequer saiu de casa por amor de outro homem, que saiu de casa somente por sair 196 de casa, que saiu de casa (disse) porque eu não a amava com loucura, não sabia falar com ela. Que ficaria fora uns tempos até saber se deveria ou não voltar. Pouco importa, pouco importa. Aqui a queixar-me de nunca ter tido ouvintes reais, de só os admitir quando falo. comigo próprio – mas alguma vez fui ouvinte, fui interlocutor, de ti, por exemplo, Filomena, alguma vez permiti que me dissessem «Sofro!» ou sempre, quando alguém ia para te dizer «Sofro!», sempre lhe trocaste as voltas, sempre te encheste de pânico, sempre lhe impediste a confissão, tiveste medo do sofrimento alheio...? – Espera então, morte imaginária, artéria imaginariamente a romper-se, mas ainda intacta, espera mais alguns instantes, deixa-me saber também: quem são os outros, todos os outros que um dia se dirigiram a mim, a quem eu impedi de se dirigirem a mim, que só puderam falar-me imaginariamente, porque eu era mais humano nos sonhos deles do que na minha própria pessoa? Esses que precisam dos meus ouvidos, que precisam da minha voz, e a quem eu tenho negado ouvidos e voz, esses que não são o velho de setenta e dois anos de idade que afinal ouviste (só porque ele te impediu de não o ouvires), esses que estão mais próximos de ti. – Joaquim Alberto, sofro! E responder... Mas que respondeste ao velho de setenta e dois anos, esse velho que ao falar contigo não era contigo que falava, pois não sabia quem eu era? Tu, para quem tu e eu são uma e a mesma coisa, são eu, tu que não sabes acalmar o sofrimento alheio, ser nós, tu que falas como se escrevesses, que nunca disseste em voz alta: – Chora, faz-te bem chorar, meu amor. (De Quatro Paredes Nuas, 1972) 197 DAVID MOURÃO-FERREIRA (1927-) Já com ampla obra de poeta publicada, de que se reconheceu desde os primeiros passos o mérito renovador, a destacar-se entre as de outros escritores ligados à revista Távola Redonda (1950-1954) de que foi um dos directores, David Mourão-Ferreira compareceu na vida literária com o livro de novelas Gaivotas em Terra (1959). O ficcionista afirmou-se prontamente nessa obra inicial no género com uma prática de escrita bem estruturada, na «liberdade de um classicismo que está apto e predisposto a aceitar da maior modernidade tudo o que para ele conflui» (Jacinto do Prado Coelho). Ao livro de estreia novelística sucederam-se com intervalos largos, em que se disseminou a continuidade da realização do escritor na poesia, no ensaio e na crítica, o volume de contos Os Amantes (1968), O Viúvo (1962) e a reedição aumentada Os Amantes e Outros Contos (1974). Nessa sequência, espaçada e escassa mas significativa duma vocação a realizar-se, ficaram demonstradas a virtual riqueza de aptidões do narrador – na inventiva do episódico transferido para larga definição do dramático ou do pitoresco na vida quotidiana, na translação do real para o onírico ou o fantástico e na fusão extremamente hábil de sentimento e humor – e a plasticidade da sua linguagem, amoldada às formas mais complexas da narrativa. Uma arte muito característica de David Mourão-Ferreira como contista é, também, a da prontidão e concisão com que sabe criar uma atmosfera, embeber nela as personagens e os acontecimentos, infundi-la na receptividade do leitor. O descritivo resulta assim com plena naturalidade na atmosfera criada e constitui com o delinear das figuras e com os passos que estas vão percorrendo uma integral unidade de leitura. Nem por isso, no entanto, o processo novelístico do Autor se repete ou se imita, como tem sido acentuado pela crítica, testemunhando que os seus recursos de narrador imaginativo estão largamente abertos à diversidade e que a sua obra de ficcionista poderá prosseguir em continuada inovação. Nos últimos anos tem David MourãoFerreira dilatado com maior amplitude e projecção uma obra considerável de ensaísta literário. 198 NEM TUDO É HISTÓRIA Noites e noites a fio, quase de madrugada, desenrolava-se a mesma cena: um grande automóvel preto – um carro americano de antes da guerra, talvez um De Soto dos anos trinta – parava de repente ao pé de mim. O motorista, fardado de negro, mantinha-se muito hirto no seu lugar; eu não chegava sequer a ver-lhe o rosto. Mais me intrigava aliás o próprio carro, que parecia ter estado debaixo de água – ou ter sido fabricado no fundo do mar –, embora não apresentasse, na carroçaria, nenhum vestígio de humidade. Mas o capot faiscava, na sombra, como o dorso de um cetáceo; o flanco fusiforme dos faróis denunciava não sei que secreto comércio com os peixes; e a porta de trás, que vinha agora de entreabrir-se – sem que ninguém lhe houvesse tocado –, evocava irresistivelmente, pelo crebro palpitar em que ficara, o inquietante mistério de uma guelra. Dentro, na outra extremidade do banco, reclinava-se um vulto de mulher cingido num vestido de lamé. Era um vestido de noite, de modelo já antiquado, que por inteiro lhe ocultava as pernas e os pés: a partir da cintura, todo fosforescia, como a cauda de uma sereia. Havia, no porte dessa mulher, qualquer coisa de hierático, e ao mesmo tempo qualquer coisa de irónico, como se quisesse mostrar – por uma espécie de jogo que não chegava a tomar a sério – o reverso daquilo que era, o reverso daquilo que sentia. Dir-se-ia que se prestara a servir de modelo, diante de um pintor académico, para um retrato muito convencional, apenas com o fim de troçar intimamente do pintor e do retrato, de si própria e da pose que adoptara. Entre os dedos da mão esquerda – que vinha, enluvada de preto, descansar-lhe no regaço – apertava as varetas cerradas de um leque de marfim. A mão direita, igualmente 199 mergulhada numa luva preta de canhão alto, firmava-se no assento do banco. E era tão-só com um gesto negligente desta mão, tão-só com a rotação lentíssima do pulso, que me saudava e convidava a entrar, que me apontava o lugar a seu lado. Então, mal eu me sentava, sem um ruído o carro punha-se em marcha. E sempre assim, noites e noites a fio. Só depois se interpolavam, de noite para noite, pequenas variantes no percurso. Por vezes, rolávamos longamente através de ruas desertas – ou que pareciam desertas por causa do nevoeiro –, e eu percebia que já estávamos fora da cidade, à medida que rareavam as casas, que aumentavam de número as silhuetas das árvores, que o nevoeiro se espraiava em remoinhos mais amplos. A estrada, sem uma curva, subia sempre, de tal modo que o corpo se me incrustava, mais e mais, no assento do carro, a ponto de estabelecer-se, entre as minhas costas e as costas do banco, aquele pacto de secreções comuns que deve firmar-se, com certeza, entre o molusco e o interior da concha a que se prende. Com a minha companheira passar-se-ia também o mesmo; ou mais ainda: desde a penumbra da sua nuca aos artelhos invisíveis, não se lhe vislumbrava, em todo o corpo, senão a tenuíssima cadência vibratória do próprio carro em que seguíamos. Continuava com a mão direita apoiada no rebordo do banco; e mantinha-se, entre nós dois, uma distância de cerca de dois palmos. Depois de eu me ter sentado, nem por um instante olháramos um para o outro. Eu sabia, aliás, que o seu rosto se esfumava numa quase completa obscuridade, que nem me seria possível distinguir-lhe as feições, que descobriria quando muito, acima do pescoço, o halo nevoento de um sorriso. Os pneus do automóvel principiavam a rodar em falso. Atingíramos a orla de um extenso areal; ou, mais propriamente, a saibrosa fronteira do planalto de uma duna. A parte dianteira do carro afocinhara na areia; logo a seguir, porém, cindia-se do resto do veículo – como se houvera sido previamente serrada –, e lentamente começava a descer, diante de nós, em sentido oblíquo, transformada na cabina de um funicular. Assim acabava por sumir-se, inteiramente devorado pelo próprio túnel que fora abrindo. O dorso negro do motorista era a derradeira mancha a desaparecer. E ficávamos ambos – tu e eu – miseravelmente aliviados com esse desaparecimento. Traiçoeiramente, a coberto da névoa, o mar tinha chegado até junto de nós. Estremecias, num súbito arrepio. Eu colocava então a mão esquerda sobre os dedos enluvados da tua mão direita. Em cima, no antebraço, quase ao redor do cotovelo, o tecido da luva começava a estalar. E dissipava-se pouco a pouco o nevoeiro: íamos vendo, alinhadas em fila, a nosso lado, outras metades de automóvel como aquela em que nos encontrávamos. Em tudo o mais, o cenário habitual de uma praia do mar do Norte. 200 Diante, erguia-se também, de sobre o mar, a neblina que o limitava. As ondas, cor de chumbo, passavam a nascer cada vez mais longe. Mas era sempre em hemiciclo que o líquido anfiteatro ganhava profundidade. Não tardava, porém, a desenhar-se no horizonte uma súbita margem: era a continuação do mesmo areal, a repetição das mesmas capotas alinhadas, o mesmo cenário de uma praia do mar do Norte. E a luva, que não cessara de estalar numa crepitação de folhas secas, mostrava agora o início de um rasgão ao longo do antebraço. Já se entreabriam, mais para além, outras ondas cor de chumbo; já um segundo anfiteatro ia surgindo; já despontava, por sua vez, uma terceira língua de areia. E progredia, ao longo do antebraço, a caminho do pulso, o rasgão vertical no tecido da luva. Outro lago, mais outro, ainda outro: sempre em forma de anfiteatro. Vinte, quarenta, cem, trezentos lagos. Em frente, à esquerda, à direita – em todas as direcções. E por entre esses lagos, alongando-se até ao infinito, um labirinto de línguas de areia. O rasgão, entretanto, bifurcava-se em delta por cima dos cinco dedos. Mas era afinal a minha mão, coberta de sangue, que saía do interior dessa luva rasgada. Noites e noites a fio. Noites e noites. Ancorávamos, depois, num grande café deserto. Ocupávamos, ao fundo, uma banqueta forrada de couro – muito parecida com o banco do automóvel – e permanecíamos ambos na mesma posição. O café, enorme e de uma ingénua fealdade repousante, era também uma construção dos começos dos anos trinta, com chapas niqueladas, por cima das banquetas, a circundarem as paredes de vidro de gigantescos aquários. Talvez estes aquários não fossem muito profundos; no entanto, como por dentro se mostravam iluminados e revestidos de espelho, infinitamente se reflectiam uns aos outros – e criavam, assim, a perturbante ilusão de um café submerso. Pouco a pouco, principavam a entrar pessoas. Em primeiro lugar, vinham os músicos – cinco ao todo –, envergando umas pobres casacas muito coçadas e dirigindo-se, em passo fúnebre, para um estrado que ficava à nossa esquerda e onde campeavam quatro cadeiras, um piano, um contrabaixo, dois violinos, um violoncelo. Vinham depois, em pequenos grupos, homens apressados, todos de chapéu, que abancavam em redor das mesas e começavam a discutir política. Junto da porta giratória, sempre de costas para nós, o motorista fazia as vezes de porteiro. Quanto mais se adensava o rumor das conversas – e tanto que a música nem se ouvia –, entravam de produzir-se, dentro dos aquários, breves e repetidas explosões. Foi assim que assistimos, de uma das vezes, à morte violenta de um 201 longo peixe prateado. Vimo-lo, primeiro, erguer-se na vertical – e de alto a baixo depois rasgar-se todo, como um vestido de noite golpeado à navalha. A seguir tornou-se tudo muito confuso. De um automóvel sem capota, que parou à porta do café, saíram três homens de pistola em punho. Entraram de roldão pela porta giratória e dispararam, às cegas, para dentro da sala. Mas só o porteiro foi atingido, ao tentar desarmá-los; e parece que seria ele, afinal, o alvo da investida. Assim que o viram por terra, pegaram-lhe pelas pernas e por debaixo dos braços, arrastaram-no logo dali para fora. Já o carro se punha em marcha. Os três homens, ao entrarem, vinham vestidos à paisana; e saíam fardados. O pianista saltou então para cima do piano e rompeu, em voz monocórdica, num discurso incoerente que talvez fosse um requiem. Chegava, por fim, a hora do cinema. Nós estávamos instalados na última fila do balcão, em dois assentos geminados como a banqueta de um automóvel. Devíamos ter chegado muito cedo: além de nós, no balcão, não havia mais ninguém. Mas subia, da plateia, o rumor de conversas que deixáramos no café. De repente, as luzes apagavam-se; todas, e ao mesmo tempo, como talvez ainda aconteça em cinemas de província. Estabelecia-se então um profundo silêncio. E começava a correr, no écran, um frenético filme de actualidades – sem legendas, sem música, sem comentários, sem qualquer espécie de fundo sonoro. Agitava-se, nas ruas, uma compacta multidão de manifestantes. Seguia-se um recontro sangrento com forças policiais. E correrias. E atropelos. E um autocarro em chamas na Praça da Concórdia. Outras labaredas devoravam, por sua vez, uma pesada construção neoclássica. Ardiam livros e papéis numa grande biblioteca, nos corredores intermináveis de livrarias e de arquivos. Um dirigível incendiava-se nos ares. Dois bailarinos pretos – ou com as caras pintadas de preto – sapateavam no cimo de um arranha-céus. A animada perseguição, em automóvel, a um grupo de gangsters. A apoteose de uma revista de music-hall. E sucedia-se um implacável desfile militar, por entre continências ridículas e bandeiras com a cruz suástica. Mais incêndios, mais violências. Finalmente sobrevoava-se um arquipélago... Não! Não era um arquipélago: era antes um conjunto de inúmeros lagos fechados, um labirinto de inúmeros lagos – sem a menor possibilidade de comunicação. E de súbito o claustro de um templo: e tu, de pé, encostada a uma coluna. A sombra do capitel afogava-te o rosto por inteiro. Dos teus ombros saíam medusas e estrelas-do-mar esculpidas em granito; grossas cordagens enlaçadas, como cilícios, moldavam-te o flanco; e ventres salientes de hipocampos sadicamente cavavam-te a cintura. Um homem de smoking ajoelhava-se diante de ti, descalçava-te a luva com lentidão exasperante, demoradamente beijava-te a mão. 202 Daria tudo, nesse momento, para ser eu o homem de smoking, mas reconhecera nele, desde o princípio, o vulto do motorista. E ei-lo que de repente se voltava, enchendo agora, em grande plano, toda a superfície do écran: tinha afinal o rosto do meu pai. Dá-me a tua mão. Fujamos daqui. Lá fora não deve tardar o nascimento do Sol. Abrir-se-á para nós dois um pequeno bar onde não entro há muitos anos, e num relance verificarei que nada se modificou: a mesma leve poeira de confidências, como que esquecida em cima de móveis; o mesmo recanto sem ninguém, junto da janela de onde se vê o mar; o mesmo tecto e as mesmas paredes escuras, de madeira encerada. Tudo íntimo, aconchegado, como se estivéssemos na cabina de um navio. Sentar-me-ei na poltrona que fica no vão da janela; olharei o mar, à espera que o dia nasça; e tu a meu lado, recuada na sombra, continuarás aguardando que seja eu o primeiro a dizer alguma coisa. É preciso inventar? Ou contar a verdade? Só o que invento me comove; só a verdade te emociona. Teremos então de deitar à sorte: ainda não sei qual de nós merece agora reaprender a chorar. Não havia dúvida nem engano possível: eram os olhos cinzentos, o maxilar quadrado, a pele tisnada, as grossas sobrancelhas do meu pai. Apenas me espantava que a sua expressão – em vez de traduzir o êxtase que eu teria, com certeza, se estivesse no seu lugar – se mostrasse tão dura, tão inflexível, tão cerrada. Era exactamente a mesma expressão que surpreendi nos outros – os da Gestapo – naquela tarde, durante a Resistência, em que o vieram buscar; e em que o feriram a tiro, quando ele tentava resistir-lhes. Eu assisti à cena. Nessa tarde, pela primeira vez, o meu pai levara-me com ele ao café. Era, se não me engano, um pequeno café em Saint-Germain –, um pequeno café que me pareceu enorme. E tínhamos acabado de chegar a casa. Embora eu contasse apenas dez anos, já pela segunda arremetida a História intervinha na minha existência. A primeira – de que naturalmente me não recordo – tinha sido em 1934, durante os motins do 6 de Fevereiro. Não admira que eu seja tão preciso, tão rigoroso: foi o dia em que nasci. E mais depressa do que se esperava: a minha mãe apanhada no remoinho de toda aquela confusão, caíu e desmaiou em plena rua. Acabou por me dar à luz a caminho do hospital. Mas veio a morrer nessa mesma noite. Muito mais tarde, agora mesmo, noites e noites a fio... Nem tudo é História na vida de uma pessoa. E todavia, bem o sei, também a História pesa muito. 203 Vês? Aí tens um caso, um enredo, uma história com letra pequena. Não me perguntes se é verdadeira ou se foi inventada. Estarás com lágrimas nos olhos? Estarei com lágrimas nos olhos? Felizmente que daí, do lugar onde te encontras – se por acaso aí te encontras, se alguma vez aí estiveste –, não conseguirás ver o meu rosto, nem permitirás que eu veja o teu. Afinal ainda não nasceu o Sol. Mas o mar já começa a soltar-se dos braços da noite. Tão fria, tão fria que deve estar a água! (De Os Amantes e Outros Contos, 1974) 204 HERBERTO HÉLDER (1930-) Influenciado fundamentalmente pelo Surrealismo, numa feição muito pessoal em que se conjugam formas expressionistas também amoldadas à sua maneira, Herberto Hélder tem obra vária e extensa de poeta. Nela vieram inserir-se, com agressiva veia de inovação, os livros de contos (ou textos que poderão, com liberdade qualificativa, classificar-se como tais) intitulados Os Passos em Volta (1963) e Apresentação do Rosto (1968). A fórmula que o próprio Autor aplicou à definição do estilo poderá aplicar-se em acepção idêntica às suas prosas narrativas: «...aquela maneira subtil de transferir a confusão e violência de vida para o plano mental de uma unidade de significação». Os referidos textos em prosa constituem, de facto, sondagens intelectualizadas de estados de consciência, geralmente sem estrutura efabulativa organizada e condensando em cenários invertebrados o que a realidade sugere metaforicamente. O real configura-se como pretexto de divagação visionária. Com tal processo, mais acentuado no segundo do que no primeiro daqueles livros, consegue o Autor efeitos impressivos em sucessivas ou dispersadas «unidades de significação», como que decompondo o mundo num corpo sem formas. «A absurdidade do mundo circular», como escreveu Alexandre Pinheiro Torres, «dá-a Herberto Hélder com profunda originalidade». E José Rodrigues Miguéis, em comentário publicado logo a seguir à edição de Os Passos em Volta, afirmou que este escritor «é o único caso de surrealismo que entre nós se aproxima da perfeição», embora se revele nele candura e inocência. Mas, de qualquer modo, que «a realidade está ali presente nas suas relações aparentemente ilógicas». Para esta complexa manipulação do real e do imaginado concebeu e praticou Herberto Hélder uma escrita sincopada, em sobressaltos frásicos que se sucedem com desconexões no imediato mas que acabam por adquirir um ritmo e suscitar a pretendida 205 «unidade». A escrita do Autor, embora extremamente pessoal, parece ter influenciado (ou pelo menos precedido como precursora) a que se tem espraiado em numerosos escritores das gerações mais recentes, em busca de inovações de linguagem mas geralmente sem propensões surrealistas ou surrealizantes. 206 O QUARTO Ele pareceu não entender a minha alusão. Voltou para mim o rosto irónico e perguntou: – A que se referia? – À morte – respondi eu. – Sim, eu também falava da morte. Mas surpreendeu-me que você estivesse a pensar no mesmo. – Pensamos todos no mesmo, a partir de certa altura. – Talvez – murmurou, e a sua voz tinha uma ponta de orgulho. – Mas nem todos da mesma maneira. Sabe que sou forte? É por isso que penso nela. Detesto a fraqueza que se remedeia na imaginação do fim. Não creio em nada. Não desejo crer seja no que for. – Pensa que vai morrer quando quiser? Ele olhou-me em cheio e sorriu. Tinha a cabeça viva e nobre de um homem antigo. Parecia saber muito, e realmente em nada devia acreditar. Notava-se-lho no olhar, que era culto e virilmente triste. – É isso. Eu preparo a minha morte. Um verdadeiro homem tem direitos e deveres em relação à sua morte. Sabe que estou a construir uma casa? – Sim, já mo disse. – Conhece o sítio? – E as palavras aludiam a todo um mundo de significações. No entanto, a voz era imperturbável. Este homem morreria dentro da sua morte. – Conheço. Fica na outra costa da Ilha. Atrás, há a montanha sem árvores. Pedras e urzes. Pavoroso. Em frente, o mar. O mar lá é bravio. – É água cinzenta e branca. Por detrás, a grande montanha onde só andam cabras. Mas na planície, ao lado direito, existem muitas árvores onde o vento 207 do mar vem bater. De noite, aquilo vibra e uiva. E, no outro lado, estende-se a terra arenosa. Quando há tempestade, é de uma beleza diabólica. Bom para nos sentirmos sós e saber se ainda há em nós o orgulho do medo. – Compreendo que construa aí a sua casa. – Construo a casa muito devagar. É a minha última tarefa. Obrigo os operários a trabalhar lentamente. Estão espantados. O capataz supõe que sou louco. Nunca custou tão cara uma casa de um só piso. Quando ficar pronta, já nada mais terei a fazer. Seria horrível procurar sobreviver-me. Sou um homem sensato. Isto é de sangue. Meu avô correu mundo e veio morrer na cama onde nascera. Meu pai foi voluntário para a guerra, depois de me ter gerado, e lá morreu. Tudo homens que fizeram uma tarefa e nela puseram a significação da vida. E deram–se por cumpridos, regressando ou morrendo. Não é sabedoria? Não quero ser fútil. É o único pecado do espírito. Ponho toda a minha força religiosa na razão da vida, que é dada pela oportunidade e qualidade da morte. Riu. – Sabe que sou um homem religioso? – No entanto... – Claro, não acredito em nada do que diz respeito a isso... a essas coisas... da imortalidade da alma... da existência de Deus... no bem e no mal... na caridade e piedade... Detesto essas crenças e virtudes da baixa religiosidade. O meu pensamento religioso é de outra ordem... – Talvez creia – disse eu – na necessidade de manter incorruptível o sentimento da vida. Talvez também o dever da morte... – Quer exprimi-lo assim? – Vejo as suas mãos fazerem um gesto subtil e inacabado de irónica concepção. – Talvez seja quase isso... Aos vinte e cinco anos fui viajar. Percorri a Europa, a América do Sul, África. Estive na Austrália, no Japão. Vivi alguns anos em várias das maiores cidades do mundo. Valeu a pena. Não há raças nem países. O homem é estúpido. E precisa de ser amado e amar. É um ser repugnante. Hoje sei amá-lo, assim repugnante. Aos quarenta anos deixei de viajar. Fiquei em Paris. Aos quarenta e cinco fixei-me em Lisboa. Cinco anos mais tarde, vim para a Ilha. E os círculos foram-se apertando cada vez mais. Hoje não saio deste café e do hotel, quando não estou a seguir o andamento das obras. Daqui a algum tempo, mudo-me para a casa. Depois... Compreende o que digo, quando falo do meu espírito religioso? – Sim, parece-me que sim... – A casa tem três quartos, além de cozinha, casa de banho e despensas. Um é o quarto de dormir; o outro, a sala de jantar; e o terceiro... Não adivinha?... Não, não pode adivinhar... 208 – Noutras circunstâncias eu diria que era, por exemplo, a biblioteca... – Noutras circunstâncias. Agora não leio. Vou morrer. Ouça: a casa é toda assoalhada. As casas são naturalmente assoalhadas, não é assim? – Claro. – Sim, mas esse quarto não é assoalhado. – Mais um espanto para o capataz – disse eu, sorrindo. – E para si também. – Também para mim. Porque não assoalha esse quarto? – Durante um ano ou dois vou viver naquela montanha, na mata, na terra arenosa em frente do mar. Vou entrar e sair da casa e passear por esses lugares todos. Em seguida sentirei que não devo sair mais, e ficarei em casa, andando de um quarto para outro. – No quarto sem soalho, também? Não respondeu. – Lembra-se de eu lhe ter falado no vento marítimo a bater nos pinheiros? E na alta montanha intransitável, por detrás da casa? – Lembro-me. Eu conheço também o sítio, como lhe disse. – O barulho do mar e do vento. A ideia da montanha impraticável. A terra arenosa por ali adiante. E a solidão. E, sobretudo, saber que já não pode haver qualquer espécie de medo. Então fecharei todas as portas da casa, a porta para fora e as portas dos quartos entre si. Ficarei no quarto sem soalho e deitar-me-ei no chão. Hei-de ouvir o mar e o vento, e hei-de saber que a montanha está atrás de mim, poderosa e só. Poderei ouvir também o sussurro da terra húmida debaixo do meu corpo. Encostarei a cara a essa terra profundíssima. Até que morrerei. (De Os Passos em Volta, 1963) 209 MARIA ONDINA BRAGA (1932-) Duas direcções temáticas prevalecem na novelística de Maria Ondina Braga, primacialmente contista; o retorno reconstituinte à infância e à juventude, procuradas como compensação para os desencantos da vida experimentada; e a fixação de momentos e personagens em mundos exóticos (sobretudo do Extremo Oriente) onde a escritora viveu e se lhe gravaram para além do efémero da sua circunstância. Nessas direcções se filiam os contos de A China Fica ao Lado (1968), a autobiografia romanceada Estátua de Sal (1969), os contos de Amor e Morte (1970), as novelas de Os Rostos de Jano (1973), os contos e crónicas de A Revolta das Palavras (1975) e o romance A Personagem (1978). As narrativas de Amor e Morte, em vários casos profundamente refundidas e acrescentadas com novas composições, foram reeditadas em 1982 sob o título O Homem da Ilha, testemunhando um minucioso apuro formal. O que mais realça na obra de contista da Autora não é tanto a capacidade efabulativa, que em muitos casos se adivinha moldada sobre um real experimentado ou interpostamente conhecido, mas a arte delicada da composição narrativa, a substancializar literariamente vida interior intensa na prática social das personagens. E também, com essa arte seguramente praticada, a harmonia de ritmo no contar, sempre com nitidez e concisão, sem divagações supérfluas, despojado na adjectivação e de elegância rara no andamento da escrita. São, sobretudo, as figuras femininas, que «conhecem a vida» para além do quotidiano imediato, que a consciencializam com lucidez muitas vezes pungente, mas que deixam fugir a vida no fio do tempo por irresolução, escrúpulo, timidez, indiferença e abandono ao «fatum», as que mais impressionam na criação ficcionista de Maria Ondina Braga. Poucas escritoras portuguesas (além de Irene Lisboa e Maria Judite de Carvalho) têm dado testemunho tão penetrante e impressivo da solidão feminina – uma solidão que vem de dentro e se alimenta de interioridade, sem repulsas 210 violentas pelo mundo dos homens – como a autora de O Homem da Ilha. A poetização intrínseca da linguagem, sem rebusca nem manipulações de estilo deliberadamente poético, constitui também motivo de aliciamento de leitura na obra em continuado enriquecimento textual e contextual de Maria Ondina Braga. 211 A LIÇÃO DE INGLÊS Quando nesse fim de tarde o telefone tocou, uma corrente de ar escancarou a janela, levantou a cortina e atirou com a porta. Era já escuro e chovia torrencialmente. Por um instante hesitei entre atender o telefone a acudir à sala. As flores do centro da mesa tinham-se espalhado pelo pano de veludo, a poltrona do canto começava a ser colhida pela água, e quanto à cortina essa ia ficando numa sopa. Naturalmente que corri a fechar a janela. O telefone, contudo, insistia e a luz eléctrica apagou-se. Foi às apalpadelas, após ter vencido o vento, cerrando a vidraça, que cheguei ao telefone. A voz que vinha pelo fio, densa e arrogante, era de mulher. – A senhora dá lições de inglês. – Eu própria. – Quero lições. Estremeci. Ninguém costumava falar assim. E que voz tão dura! Batida pela ventania, a persiana, que não tivera tempo de trancar, ressoava com os trovões, e na negridão luzia um cigarro. Desnorteada, perguntando a mim mesma onde o teria posto, pedia a Deus que não fosse em cima do chemin da mesa – pertencera à avó, o pano, e era todo em pavões bordados por ela a canutilho. A voz do telefone repetiu: – Quero lições. A começar esta noite. – Com um tempo destes? – A senhora ensina na rua? 212 Uma vertigem. Onde é que eu me sentara? Os pés balouçavam-me, suspensos. E foi então que um relâmpago fez da sala dia e me vi empoleirada na escrivaninha. – Está lá? – Desculpe, mas acho melhor combinarmos amanhã. O temporal... – Que temporal? – Aí não há? – Aí aonde? – Não sei donde a senhora fala. Francamente... na minha rua é horrível. Olhe, outra vez a janela aberta. Deixe-me ir segurar a persiana. Ela soltou uma gargalhada do fundo do peito que lembrava tosse. E ao largar o auscultador para valer à janela, ouvia-a dizer: «Fala do Monte dos Vendavais?» Parei um segundo, intrigada. O momento, porém, não se prestava a objecções. E enquanto as minhas mãos puxavam, aferrolhavam, atarrachavam, esforçadas, ia comparando o zoar do vento com o riso da mulher do telefone. «Monte dos Vendavais?» Ocorriam-me ideias extravagantes: quem sabe se não estaria a falar com o fantasma de Emily Brontë? Desatei a rir. O riso enfraquecia-me. A persiana fugiu-me. Era uma bandeira pela noite, a despedaçar-se contra o peitoril de mármore. Os relâmpagos sucediam-se. E, de braços caídos, cabelos molhados atirados para trás, eu a rir como doida. Quando por fim me enterrei na poltrona, cansada, o trovão ribombava e já não se via o olho de lume. Graças a Deus pelo pano de veludo! A minha mãe dizia «graças a Deus» por tudo que de bom acontecia e mais ainda pelo que de mal não chegava a acontecer. Linguagem da infância, «graças a Deus», reconfortante no inferno de um temporal daqueles, os estores partidos, a casa a inundar-se, e uma estranha... tão estranha... Já não me ria. Se a deixasse ficar indefinidamente à espera, se desligasse... Agarrei no aparelho. – Então, não foi levada pelo vento? – outra vez a risada cavernosa. – Demorou tanto! A que horas posso ir à lição? – A senhora quem é? – Uma aluna... – parecia ansiosa. – Uma aluna que precisa começar esta noite sem falta. Eu não sabia que responder. Alunos particulares interessavam-me sempre. O colégio pagava mal. Tão extraordinário, no entanto, tudo aquilo. Venci a indecisão: – Às nove horas serve-lhe? – Com certeza. As nove horas estou aí. Até já A trovoada abrandara e ouvi dar horas no relógio do vizinho. Era uma velha pêndula, ao outro lado da parede, que regulava melhor do que o meu relógio. Contei alto: «Oito horas?» Precisava de falar só, de perguntar sem ouvir mais 213 ninguém. Mas, ao ir à cozinha por uma vela, a voz e o riso da mulher seguiram-me. Quem? E porquê tanta pressa? Devia ter recusado. Em noite assim invernosa, uma desconhecida, esquisita para mais... E não fiz depois outra coisa senão andar da sala para a cozinha de castiçal na mão. O jantar passou-me. Sentava-me à mesa de trabalho, abria um livro, lia duas linhas, dactilografava meia dúzia de palavras, recomeçava o passeio. Pelas nove horas menos um quarto apeteceu-me fazer chá. A luz eléctrica não voltara, o coto de vela ia-se derretendo, e a casa cada vez mais das sombras. Tolhia-me quando me virava, quando estendia um braço, quando entrevia um espelho. Começara a tomar o chá, três pancadas na porta. E se ficasse ali muito quietinha até ela se cansar e se ir embora? Mas já os passos me levavam para o corredor. Descerrei o trinco e abri. Muito direita, de gabardina de capuz e botas, a minha nova aluna fitava-me, sorridente: – Good evening, teacher! – Good evening – respondi, afastando-me para que ela entrasse. – Vou estragar-lhe os encerados... Peguei-lhe no guarda-chuva, encaminhei-a para o bengaleiro. Baixando o capuz que lhe anunciou a cabeleira pintalgada, ela principiou a despir a gabardina. – Importa-se que tire as botas? Espantava-me de mim mesma, tão calma, a assistir aos movimentos da mulher, a alumiá-la, a pegar-lhe na carteira ou no livro. Quase não lhe vira senão o sorriso da entrada e uns vagos olhos sem cor (ou seria da vela?) e pus-me a observá-la: pernas altas, corpo esbelto, mãos compridas que estiravam pela parede figuras aladas. A certa altura, erguendo o busto, ela disse com um sorriso: – Meu Deus, que silêncio! – É verdade. Vamos já falar inglês. – Chamo-me Noémia – agarrava as botas pelo cano. – Onde ponho? – Oh, vou buscar-lhe uns chinelinhos. Não pode ficar descalça. – Não fico – apontava para os pés. Baixando o castiçal, vi que calçava uma reviradas pantufas de flanela beje. As botas arrumavam-se melhor na casa de banho. Ela entregou-me também o impermeável para não pingar na passadeira. E ao tornar ao corredor, já excitada de simpatia por essa forasteira das trevas e da tormenta, escapou-se-me um grito. Ao clarão dos relâmpagos, Noémia surgia enorme e trágica: cabeleira de aço, olhos de vidro, girândola de brilhantes ao colo. 214 – Assustou-se? – Não. Não. – O coração batia-me na garganta. – Acho que temos de abreviar a lição hoje. Não me preveni de velas e esta vai quase no fim. – Oh, não se aflija. Trouxe uma lâmpada de bolso. Nestes sítios a electricidade quando falta é horas... Na sala, enquanto eu vislumbrava a lição à luz da pilha, ela, desapertando o broche de pedras, tirou o lenço do pescoço e disse. – Está calor. Trovoadas de Março. Que o inverno propriamente já passou – e, amaciando a voz: – É verdade que a primavera em Inglaterra é bonita? E HydePark? Como é Hyde-Park? – Hyde-Park? Namorados pela relva... Noémia olhava-me muito atenta. Azuis, verdes, os seus olhos? A testa lisa. O nariz fino. – Quem me dera lá ir. Não sei porquê mas sempre sonhei com Hyde-Park – apresentava-me um livro de capa amarela – Foi por onde aprendi no colégio. – Então sabe falar inglês. – Esqueci quase tudo. Começamos pelo alfabeto. Ela pronunciou as letras correctamente e, ao chegar ao r, comentou que a madre desenhava essa letra no quadro dentro de uma redoma: muito melindroso o r em inglês... Lemos a primeira lição. Iniciamos uma conversa simples. Eu, como de costume, gozando o acto de ensinar, e já sem qualquer receio ou susto, como se não existisse nenhuma relação entre aquela mulher e a misteriosa do telefone. E Noémia descontraída, de perna traçada, a fumar. Para o fim da lição a minha aluna teve de servir-se da lâmpada de bolso para ler, e, quando, passada a hora, a luz da vela amorteceu de todo, encarou-me: – Não me pergunta porque teimei em vir hoje, apesar do temporal? – Parece que na sua rua não havia... Ela riu o riso cavo. – Importava-me eu lá da chuva ou do vento! Queria era vir e aprender o mais depressa possível! – Ah, sim? Porquê? – Ainda bem que me pergunta. Gostava de lhe contar. Recebi carta dele... – a voz perdera toda a secura, como se agora lhe saísse do peito molhada de lágrimas. – Amigo? – Mais do que isso – num gesto rápido assoprou à vela – Não precisamos de luz. É inglês. Vive em Londres. 215 E na escuridão picada apenas pelo lume dos cigarros e assombrada por uma ou outra faísca, já longínquo o ralhar do trovão, os nossos joelhos a tocarem-se casualmente, foi-me confiando a sua vida. Casada havia vinte anos, o marido, rico, abandonava-a, fazia-lhe desfeitas, divertia-se com outras. E eu fiel. Quinze anos de fidelidade! E gira, sabe? Os homens gostavam dos meus olhos transparentes, das minhas pernas. Santo Deus, porque lhe estou a contar isto? Vai achar-me ridícula... – Não. Nunca. Mas também me admiro. Uma desconhecida como eu nesta terra... – Bem, eu acho que já a conheço um pouco... Tenho-a lido. Além disso, uma certa distância ajuda. Num comboio, por exemplo, acontecem-nos confidências: contamos às vezes ao anónimo companheiro de viagem o que toda a vida escondemos da vizinha do lado ou de amigos de infância. E porque se criava ali, com aquelas palavras, uma certa intimidade, ofereci-lhe chá: «Faça-me companhia...» Depois, na cozinha, ela a focar o chão de mosaico vermelho, e eu a comparar-lhe mentalmente os pés na flanela parda com duas cobaias. Uma escrava, eu sabia? Uma escrava do Raúl foi o que sempre fora. E o descarado a passar-lhe à porta com as amantes, a ficar noites fora. Verdade que imaginara traições, planeara até a fuga com um irmão dele, seu apaixonado. Mas, na hora, arrependia-se. Não fazia nada. Perdoava-lhe. Tinha vivido a perdoar-lhe. – Amava-o mesmo assim? Tardou em responder: – Desconfio que sim. Há três semanas aparecera o inglês. Viera para negócios e o marido de Noémia levara-o a casa. Os ingleses apreciavam o ambiente de família. De bom tom apresentá-los à mulher, oferecer-lhes um jantar no próprio lar. O inglês, novo, elegante, um gentleman, e muito amável com a Noémia, falando francês (língua fluente para ela) a fim de facilitar a conversa. Estavam à sobremesa, chamaram Raúl ao telefone: qualquer coisa que ele classificou de urgente, pediu mil desculpas, tinha de ir. E logo o estrangeiro a levantar-se, a despedir-se. E o dono da casa a insistir para que ficasse, tomasse café, um licor. A mulher a olhá-lo ao mesmo tempo com raiva e alívio: algum flirt com certeza... Mas que bom vê-lo pelas costas. Tão atencioso, tão gentil, o inglês, ao lado daquele grosseirão. Sentou-se na pedra da chaminé. – Já viveu em Inglaterra, portanto deve ter amado algum inglês. – Olhe, se amei, não me lembro. Ela bateu, irritada, com o pé no chão. 216 – Fala como quem estivesse a escrever. É sempre assim? Porque não responde directo? Li não sei aonde que os escritores e os camponeses se exprimem da mesma maneira, por rodeios. Sorri. – Pois faça de conta que está a tratar com uma camponesa... Noémia desatou a falar baixinho, ao jeito de quem monologasse. – Verdade que não vim aqui para a interrogar mas para desabafar consigo... Verdade que, antes, tudo me parecia mais importante do que neste momento... Acho que nem vale a pena continuar... – E daí a bocado: – Vou para Inglaterra, sabe? O aroma amargo das folhas escaldadas do chá. – Vou-me divorciar. O Raúl não quer. Habituou-se à minha sujeição. Convêmlhe as aparências, a fachada social de uma mulher legítima, de um lar. Mas o Peter ama-me. E, quanto a mim, creio que é a paixão da minha vida. – Vamos tomar o chá na sala – e dirigi-me para o corredor, com Noémia à frente, de lâmpada em punho. – Não diz nada? – Que hei-de dizer? Se já não gosta do seu marido, penso que é melhor deixá-lo. E se ama o inglês... Estávamos junto do sofá, e, ao endireitar-me, depois de pousar a bandeja na mesinha, um foco de luz cegou-me. De pé, muito hirta, Noémia assestava-me nos olhos a pilha eléctrica. – Ajude-me! Vim aqui para isso! – A sua fala, entre obstinada e exausta. Eu estudava-lhe as feições na penumbra, o arco do nariz, a nascença do cabelo. E, como uma espontânea camaradagem me invadisse, peguei-lhe na mão. É mulher. Somos ambas mulheres. Aqui diferentes e aliadas na escuridão. Uma frágil, uma baldada aliança, todavia. Que, se ela me vem consultar em busca de um norte... que é da minha bússola? que é do meu roteiro? Tornei à reserva inicial. Quem me diz a mim que esta Noémia não é alguma louca? – Olhe, problemas desses cada qual os resolve consigo. Sente-se explique-me a sua conversa do Monte dos Vendavais ao telefone. Encolheu os ombros, desconsolada: – Ando a lê-lo. Foi o Peter quem mo ofereceu, traduzido em francês. Tinha-o diante de mim quando lhe telefonei. E você a falar de vento, de chuva... Uma gracinha que eu quis fazer... – Pois impressionou-me, sabe? Os seus modos, o desencontro das nossas palavras, a água a invadir-me a sala, o trovão, o estampido das portas e ainda a alusão ao livro do outro mundo... Açúcar? 217 – Não. Só limão. – E recostou-se, de olhos semicerrados. Eu peguei na lâmpada. Precisava de luz para o ritual do chá. Pus uma roda de limão na chávena dela, leite na minha. Apaguei-a, depois. Para beber víamos. – Bem, você não quer dizer nada – tacteava a xícara – mas fique sabendo: é um belo homem. Ah, um deus! – Não será a beleza que você ama? A chávena tilintou no pires. – Acertou. É a beleza dele que eu amo, tal como amei a de Raúl – aproximava-se mais – Ah, o Raúl, que figura! – Recostou-se outra vez. Imaginava-lhe uma expressão dramática – Agora está horrível. Foi-se desfeando à medida que me enganava. Cada ruga do seu rosto é um dos golpes com que me retalhou. Como gozo em vê-lo envelhecer! É a minha vingança – procurou a lâmpada, abriu a malinha, puxou do espelho e mirou-se – Ah, eu ainda agrado! Ele, com mais dez anos do que eu, aparenta mais vinte. As amantes, claro, querem-no pelo dinheiro. Durante algum tempo tomámos o chá, caladas. Eu cismava na perfídia da beleza. Uma vontade de lhe dizer que também fora atraiçoada, não como ela, não apenas por um homem, mas por todo um destino, pela própria vida. E que traição! A mim nem sequer me restavam represálias. Sacerdotiza da beleza, eu morrera ao beijá-la. Ela cortou-me os pensamentos. – Terá pena de mim? Não me admira. Mas olhe que vim mais por isto do que pela lição. Uma necessidade de me abrir com alguém. E escolhi-a a si. Cá dentro crescia-me o desejo de lhe contar a minha experiência. Entendia-a melhor do que ninguém. Por ter amado a beleza é que nunca chegara a amar deveras. E também ideara desforras. E também me mantivera fiel. Fiel a quê? Fiel a quem? Sentia a mão quente de Noémia. Noémia estava viva, bem viva. E disse alto: – Mulher forte! Ela quase saltou. – Que quer dizer? Acha que devo ir para a frente? – apertava-me muito os dedos. – Sou forte, não sou? – E após uma pausa, como que procurando orientar-se – Mas o amor? Que é o amor? Momento solene aquele: que é o amor? A sua mão nervosa na minha. Se eu lhe contasse... Ora, se lhe contasse, que adiantava? Retirando a mão, Noémia falou, calma: – O amor, afinal, talvez não seja senão... um ímpeto da nossa fé. E a semente dessa fé guardei-a eu, apesar do deserto em que tenho vegetado. Sabe, costumo comparar-me às plantas vivazes, arreigadas à terra... 218 E, inesperadamente, a luz do tecto iluminou a cena. Sacudindo os reflexos metálicos do cabelo. Noémia consultou o relógio de pulso. – As minhas botas? Tenho de me ir embora. Onde estão as minhas botas? – apressava-se para o corredor. – Tenho de me ir embora! E despedimo-nos como se ela não me tivesse confiado os seus segredos no escuro. Era uma aluna igual a qualquer outra, só com a diferença de que não tornaria. (De Amor e Morte, 1970) 219 LÍDIA JORGE (1946-) Na mais recente vaga de autores portugueses de ficção, em que repercutem as múltiplas e divergentes tendências actuais da literatura mundial, Lídia Jorge foi acolhida com êxito súbito e espectacular, não só pela crítica como pelo público leitor, comprovado nas repetidas edições dos seus dois romances até à data publicados: O Dia dos Prodígios (1979) e O Cais das Merendas (1982). «Dotada de grande fôlego romanesco, ligado à melhor tradição épica das grandes panorâmicas sociais e dos trajectos particulares das personagens que nelas se recortam» – como foi registado num «roteiro» literário editado pelo Instituto Português do Livro – a Autora desdobra as suas narrativas em «quadros alegóricos mas pertinentes da realidade portuguesa». Esse processo anuncia uma vocação de contista. E, de facto, é no conto que Lídia Jorge trabalha mais deliberadamente quando se escreve esta notícia, como certifica a narrativa a seguir reproduzida. O imaginário concebido entranha-se ao longo do seu discurso num concreto vigiadamente delineado. O estilo da escritora é o duma célere fluência verbal que absorve em ritmos inesperados os cortes repetidos da frase; o da rebusca que espontaneamente se comunica ao leitor da maior intensidade da palavra; o da diluição das imagens em pormenores alusivos e vocabularmente condensados; por vezes o da coloquialidade que das falas das personagens se transfere para o descritivo dos meios em que se situam. E se na narração há percursos que parecem flutuantes, não tardam eles a desembocar em figuras, em situações, em maneiras nítidas de estar no mundo à espera da «ponte» de cada um com os outros. Numa esteira que virá talvez, longinquamente, de James Joyce e de Sartre mas em que se infiltraram múltiplas experiências da novelística mais moderna – a quebra da ordem causal exterior, as oscilações do tempo como duração, o esgarçamento da acção romanesca e do enredo, tais como foram apontados pelo ensaísta brasileiro Benedito Nunes 220 – esta escritora apresenta desde os seus primeiros livros uma linha pessoal que se indicia profundamente inovadora. A frescura de estilo que tem sido sugerida como qualidade mais evidenciada dos seus textos é manifestamente indicativa de virtuais caminhos de originalidade e descoberta ficcional. 221 OS DOIS VIAJANTES Quando me deram o recado de que o Baião me desejava em pessoa para que lhe ouvisse o último suspiro, senti-me afogado de urgência. Havia muitos anos que não visitava Padrona, passando de largo, a caminho de outros sítios. No entanto, quando avistava de longe os telhados às curvas, ficava seguro por saber que existia, mansa e quieta, aquela raíz sob o solo. Acontecia agora que o Baião me chamava, caprichoso na morte, para lhe apertar a única mão que tinha. Não admirava que me tivesse posto na garganta aquela pressa costumeira nestas coisas, a urgência feita da ideia de que dum momento para o outro poderá ser tarde demais e para sempre. É preciso no entanto explicar que eu era engenheiro de estradas e amava-me durante as semanas como pessoa quieta, reconhecidamente por todos. Mas aos sábados costumava cair-me uma penumbra sobre a casa, coisa indizível a bulir comigo, e todos os móveis fechados pelas divisões chamavam-me pelo nome como para lugares longínquos. Expulsando-me. Enchia-me então de velocidade e percorria as vias de norte a sul com os olhos amplos de quem vence as rectas. Por isso mesmo nem possuía a casa onde morava, e a mulher com quem partilhava a vida já era a quarta, tendo ficado em contrato de ajuntamento essa salvaguarda. Ouve. Não havia nada a fazer e estava combinado. Eu gostava de sair de manhã para poder ver as planícies a deslizarem ao longo das estradas, os outeiros a rodarem sobre si na corrida, as árvores a correrem à minha passagem, feitas coisas minúsculas. A correrem. Gostava de passar diante dos restaurantes que escancaravam as bocas das portas para as bermas e não parar nem para acenar com a mão. Sim. Tinha ficado combinado para que daquela vez não houvesse surpresas. Eu era engenheiro de estradas e sabia-o. 222 As estradas riscavam os países nas direcções das cidades, ligando-as, desembocando em largos onde infelizmente as viaturas tinham de parar pela força dos sinais semáforos, e era bom regressar tendo essa certeza de que a Terra era redonda, era pequena e era futura. Variadíssimas vezes as mulheres com quem vivera me haviam feito as contas. Se descansasses, se não corresses, se não gastasses, não desluzisses, não trocasses. Ah, sim, eu poderia ter e haver, não ser um pobre engenheiro de estradas, mas um senhor delas ou de coisas largas, longas e poderosas como elas. Não interessava. Correndo-as, tinha a certeza de que para além das bermas das estradas e dos restaurantes de janela escancarada, já não havia escombros sumindo-se na poeira. Nem de casas nem de gentes. Mal se traçava esse risco azul e negro sobre os mapas, ligando as cidades, os desertos tornavam-se apelos de futuro à mercê dos limites da imaginação. Por certo que Padrona continuava a ter a praça, a farmácia, a igreja, os bancos, as árvores. Sob as árvores e sobre os bancos, o Baião indicando as vias com a mão esquerda, e por cima de tudo isso os pássaros reproduzindo-se nas primaveras e chilreando durante o verão. Eu passava de largo, passava, corria as estradas sendo um engenheiro delas, gozando-as, amando-as e tendo-as. Às vezes chegava a casa cansado da vista e doente do rim, o estômago vazio, trazendo na ponta dos dedos e na planta dos pés a sensação de ter cavalgado vários cavalos de metal sem chegar à estalagem prometida. Que existiria contudo, e teria de estar no fim duma estrada larga e luzidia. A quarta mulher que tinha, felizmente que era uma espera feita gente. Mas mesmo assim, parecia dizer: Porque não vives descansado? Um copo tamborilando nas mãos e o pensamento nos beijos? Como toda a gente? Parecia dizer junto das vidraças a ver crescer as folhas das avencas. Mas não valia a pena. Desta vez acabava de chegar e já partia, que me chamava esse velho, coisa caprichosa, quando até o julgava morto e finado. No dia seguinte arranquei muito cedo, deixando a mulher em robe, entre portas, com as chávenas na mão. Tinha pressa. Pus-me então a conduzir por cima das estradas com toda a velocidade dos dedos como uma máquina perfeita. Sentia que a linfa do meu sangue corria no eixo das rodas e a gasolina do motor me batia nas têmporas, vendo os outeiros a andar à roda, a serem engolidos pela distância, as árvores a deslizarem, as planícies a moverem-se mais longe e mais perto, como magma de palha e feno, aloirados de sol. Era assim. Até porque naquele dia, à fúria interior de procurar uma meta imaginada, se acrescentava a preocupação por esse homem que tinha amado em criança e cujo nome lembrava um passo de dançarinos. Assim assim, com o corpo. E imaginava-o branco, deitado à sombra das canas e das paredes, um púcaro de água fresca ao lado, as pessoas de Padrona a entrarem e a saírem, falando baixo. Talvez me chamassem para assistir com eles à solenidade de ver morrer o Baião, talvez para que ajudasse a comprar a 223 mortalha, talvez tudo isso e nada disso. Agora eram as curvas largas e via-se as vacas vermelhas, de focinho imóvel, luzindo ao sol. Passava a correr junto de pastos brancos e ocres. Por vezes esses pastos abriam-se em plantações de girassóis amarelos, de cabeça degolada para o lado, sem um único bafo de vento. A manhã ia alta. Passei casas, passei vilas, passei ruas, montes, várzeas, o chão plano e aberto, às rugas como se fosse envelhecer, aos socalcos como se fosse explodir. Passei, passei, passei, até que por fim comecei a pressentir a direcção de Padrona. Abrandei as alavancas, diminuí os ruídos, ia chegar. Era preciso sair da estrada nacional e desviar à esquerda, enfiar por um renque de pitósporos ramalhudos. Àquela hora as pessoas de Padrona deveriam estar à cabeceira do Baião, e as crianças de chapéu de palha, deveriam rir atrás dos pássaros. Entrando devagar, os beiços do carro começavam a lamber as esquinas e os lancis, respirando o motor o seu tum tum de potência. É aqui. Só que a rua estava deserta e apenas três meninas seminuas e rasgadas apareceram de bocas mudas a olharem o ruído, de pé, perfiladas nos sítios onde eu ainda era capaz de saber as pedras de cor. O Baião? Fugiram as meninas para trás das esquinas e ninguém aparecia nas janelas. Podia ver-se. Também à esquerda uma casa de primeiro andar tinha uma tabuleta perto do telhado, grande e pintada de preto e o F de «for sale» era um belo lavor de volutas e voltas, arabescos como se se tratasse de anúncio de casa de pasto. Está boa. Do outro lado da rua a padaria também estava à venda, mas o letreiro era feito a pincel, torto e espalhado pela parede, em letra irregular e analfabeta. O bater da porta fez eco de encontro aos telhados. Padrona. O largo de Padrona assim deserto, claro e branco àquela hora, parecia um espaço aberto à espera do chilrear dos pardais em revoada. E ainda ninguém nas janelas. Só as sombras das meninas se moviam atrás das esquinas, indicando os movimentos sustidos, desenhados pelo chão. Eh lá. Disse eu, o engenheiro de estradas novas. Ressurgiram então as meninas seminuas e destrançadas. A mais pequena das três, como se compreendesse a circumnavegação do meu olhar desamparado, fez dois passos, levantou o braço, e disse arrancando da coragem. É além. Subi a rua como quem se prepara para alguma coisa de inicial. A ausência de rumor que se seguia ao zumbido de tanta velocidade, punha-me a sensação de ser um ser incompleto ou de transição para outra espécie. Apetecia voltar, esquecer o Baião, montar o instrumento e pô-lo a roncar o meu suor pelas turbinas de escape, mandando para trás as distâncias. É além. Olhava os sítios familiares e nada estava como previa. Só dentro de casa, tal como havia suposto, à sombra das paredes e das canas, o Baião dormia sobre a cama com um olho aberto e outro fechado, muito branco, envolto num lençol 224 antigo, de dois ramos, costura ao meio. Aproximei-me, e tão baixo respirava que o supus já completamente ido. Mas o Baião ainda ouvia e perguntou. Já chegaste? Cheguei. Via-se pela porta que não havia vivalma por perto. Só as três meninas, acuadas à parede da frente, mostravam as pernas sob os panos. Reparei também que, apesar da debilidade, o corpo do Baião, estendido e morno, ainda era enorme. Além disso, o seu olho aberto mantinha a lubricidade de quem vai aos ninhos para denunciar os ovos. Já chegaste? Chamou-me então para junto de si, ajeitou a boca ao pavilhão da minha orelha que estendi, amparando-a bem com a mão para que lhe ouvisse o segredo. Julgando-me rico, ia formular um desejo próprio do momento, e que sempre tem a ver com a ânsia da perenidade. O nome numa pedra, numa lápide, numa rua. E era um sopro cansado o que dizia. Ouvia-se agora nitidamente. Sabes que queria alguém que me contasse como foi e pensei em ti. Conta, conta como levantei o comboio das cinco e meia. Pude ou não pude? Pudeste. Produzi então um silêncio, ajeitei a boca o melhor que pude para não precisar de falar demasiado alto, enchi-me de solenidade e disse o melhor que soube. Apurava-me. Pudeste. Pudeste com o comboio das cinco e meia. Eu vi, Baião. Chegaste lá abaixo, esperaste, levantaste-o no ar, as carruagens ainda recuaram, deram um salto como as lagartas quando se lhes toca a pele. E tu disseste. Cuidado, com jeitinho. Os passageiros lá dentro apanharam um susto, mas tu riste. Puseste o comboio nos carris, empurraste a composição com uma palmadinha nas janelas e enviaste-o à procura de estações. Ainda bem que eu tinha atravessado as campinas debaixo do sol. Não queria nem cigarros, nem dizer segredos, nem tampouco ganhar a segurança de que não iria mal amortalhado a repousar na terra. Foi tal qual assim. Disse ele, com um olho aberto e outro fechado. Ainda, ainda bem que me lembrava como o Baião tinha levantado o comboio no ar para lho dizer na hora suprema da viagem. Agora as três meninas tinham-se sentado no chão que eu era capaz de reconstituir pedra a pedra, e mostravam as barrigas nuas de sob os panos mal pregados. Sem chapéus e destrançadas. Padrona inteira deveria estaria a dormir a sesta que nem se ouvia uma colher bater num prato, nem uma batida de lavadeira sobre a pedra de lavar. Nem um ladrilho de vão sequer. Só o carro parado faiscava brilho. Então, ao lado 225 da cama do Baião, estendido, envolto no lençol como um pretor romano, maneta e desterrado, comecei a derreter os olhos em água. Discretamente, passando com o dedo pelos cantos, não fossem as três meninas levantar-se do chão para chamarem a vizinhança e dizerem. Está um tipo a choramingar lá dentro. Viria o padre, a padeira, as lojeiras, o homem dos registos, o sapateiro, as alfaiatas. Acudam. Viriam ver o engenheiro de estradas a chorar pelo Baião. Dominei a alma. As três meninas tinham-se aproximado da porta e bloqueavam agora a luz da entrada. E apetecia dizer sobretudo à mais pequena pela afoiteza dos seus gestos. Enquanto o Baião tinha a mão esquerda abandonada sobre o lençol, às vezes abria-a e fechava-a. Meninas. A primeira vez que vi o Baião ainda eu, engenheiro de estradas, era tão pequeno que nem conhecia o código das lutas. Vivíamos aqui, em Padrona, num grande bando e éramos felizes. Então havia pardais que comiam os trigos, faziam ninhos nos telhados das casas e isso acontecia de propósito para que nos entretivéssemos ouvindo os chilreios. O Baião era o nosso chefe por ser mais velho, ser maior e ser mais louco. Já os rapazes da sua idade procuravam ocupação e amor, dançando nos pátios com os olhos fechados como se fossem morrer, e ainda o Baião se sentava à porta da escola à nossa espera para nos levar às árvores. Meninas. Como disse, eu era tão pequeno que ainda não conhecia o código das lutas e das pazes. E um dia em que eu, futuro engenheiro de estradas, saltava sobre os pés uma alegria qualquer, ele avançou, já mancebo de corpo mas com tino de menino, e disse-me. Queres alguma coisinha? Deveria eu ter dito. Sou mais do que tu. Arrepia, arrepia. Atirando o cesto, a mala, fechando os punhos. Mas como não sabia, ou talvez não ousasse, era pequeno e calei-me. E alguém disse. Borrou-se todo, o gajo. O Baião que rondava descalço, olhou para mim. Oh moços. Quanto me a mim dariam para levantar este gajinho pelo cu das calças? Só com esta mão? Dez tostões? Cinco, dois? Ninguém quis. Dez tostões era muito, só se fosse com a boca. Nós todos damos dez tostões se fores capaz, oh Baião. Tinham-me arreganhado os fundilhos das calças para que o Baião aplicasse ali a sua dentadura, e me levantasse nos ares, por cima da cabeça de toda a gente. Só que no último momento o Baião pôs-se a olhar de lado, minhas meninas, e desistiu. Ah não, isso queriam vocês. Não não. Já é muito crescidinho, ainda arrancava os dentes todos e depois só podia comer as papas. Tinha eu agora a mão na mão única do Baião, e apertava-a ligeiramente por que a sentia perder calor, ou era impressão e eu assim julgava. As meninas pasmadas daquele silêncio ensaiavam breves tosses, pequenos risos, escondendo-se umas atrás das outras, e a mais pequena, mais séria e mais afoita, plantada à frente, olhava-me nos olhos. Minhas meninas, se soubessem. Lembrava-me da tremura com que apanhara do chão o cesto e a mala de papelão, ali no meio do largo. As mandíbulas a baterem por um fio desconhecido, minhas meninas. Depois 226 habituei-me a vê-lo. O corpanzil enorme, o pé descalço, o riso grande, o quico à banda. Até que houve outro dia e foi assim. Quando saímos pelo portão, levantámos a vista e vimos que alguém nos chamava junto do badalo do sino. Onde as aves migradoras costumavam pousar, uma cegonha de vez em quando chegava a juntar pastos para um ninho gigante. Eu sou capaz, eu sou, eu vou saltar. E nós em baixo, fascinados pela altura. Não és e não és. Experimenta lá. Experimenta só para ver. O Baião tinha o corpo elástico e media alturas, abria os braços como se quisesse ensaiar um voo. Agora, é agora. Vamos. Encolhia as pernas, adejavam as mãos. Até que cedeu. Só salto se um de vocês saltar também. As meninas agora coçavam os joelhos e riam umas para as outras contentes de si, em cumplicidade. Tinham os olhos escuros as meninas, e os cabelos caídos em repas para a testa ainda os escurecia mais. Olhavam alternadamente ora para a minha mão ora para a do Baião que de vez em quando se movia a acenar por cima do lençol. Meninas. Rimos muito nessa tarde. Eu, que tinha bem viva a façanha malograda de que fora instrumento directo o fundo das minhas calças, ria-me a dobrar. É só garganta, pá. Só garganta. A bom rir. Minhas meninas. Ele desceu, saiu pela janela de vidro que ainda agora dá para o adro, e rodeámo-lo chamandolhe de tudo que fosse caguincha e balofo. Afinal o tipo, com aquele corpalhão, não era capaz de nada. Era o herói dos zeros, o retrato dos que nada podem e dizem tudo poder. Oh Baião. No entanto já era um homem e dobrava-nos em altura e volume. Só que se deixava coçar e mexer por nós como cão de guarda amansado, complacente. Sentava-se no chão. Puxávamos-lhe uma orelha. Ele abria um olho. Atirávamos-lhe uma pedrinha e ele abria os dois como se nos quisesse devorar num trago. Depois ria até fazer estremecer as telhas. Minhas meninas, estas mesmas telhas. Uma pequena nesga de sombra cobria agora parte do tejadilho do carro encostado junto do lancil. Avistava-se da porta pela rua que descia em escadas, como um esboço de anfiteatro, a desaguar no largo. Em breve as pessoas de Padrona deveriam começar a abrir as janelas, a chamar pelos filhos, pelas filhas, talvez pelas meninas que ali se mantinham, não se sabia se espiando os gestos se ouvindo os meus pensamentos. A respiração do Baião não era ruidosa, também não era serena, mas era irregular e percebia-se que começava a evaporar-se. Então a criança mais pequena, agora já perto da cadeira onde eu, engenheiro de estradas, me mantinha, cortou o silêncio que era solene e. simultaneamente simples porque não poderia ser diferente. Ele levantou mesmo o comboio no ar? A menina ficou à espera da resposta. Levantou sim, levantou. Disse eu, habituado 227 às construções concretas da vida. Levantou sim, minha menina. Mas as duas maiores não contiveram o riso e desataram a correr espirrando cuspo para as mãos na pressa de o abafar. Lá fora desfaziam-se em gargalhadas e eu esperava que uma janela se abrisse nos gonzos e uma mulher resmungasse pelo ruído que produziam. Mas não. No meio da casa tinha ficado a mais pequena, das três a mais rota e destrançada. O Baião mexia a boca como se quisesse dizer palavras. Minha menina, não te vás ainda, porque um dia o Baião apareceu diferente. Em vez de se estender contra a relva dos muros, toda a tarde nos esperou encavalitado no portão da escola como se quisesse entrar. Ora escuta. A gente olhava e ele lá em baixo, a acenar com os braços. Fechava um punho em jeito de muita força. Esticava o outro braço, apontava com o dedo para o lado do mar. O que quer o gajo? Parece que está a ameaçar os peixes. E ele naquilo até às cinco. E nós perguntámos-lhe. Que trajeitos são esses? Diz. Baião. É que eu posso com um comboio. Eu, eu sou capaz, com o meu braço, só com um, de levantar o comboio no ar. Apertava o punho e víamos-lhe os músculos tensos, já homem, as veias azuis dos braços incharem como minhocas de sangue. O tipo naquilo. E um de nós, nem sei se fui eu, disse-lhe. Embora, vamos a isso. A pele do punho dele esticada sobre os carpos. Via-se que a menina que tinha ficado possuía o tino das circunstâncias porque acompanhava o fenecer do Baião mergulhada em perfeita serenidade. Ainda duvidei se deveria ou não falar-lhe dos meus pensamentos, mas receei afugentá-la com a cor das palavras. Menina. Lembro-me que naquela tarde tínhamos começado a correr atrás dele, em festa, os cestos vazios balouçando nas mãos. A quem nos perguntava para onde íamos, dizíamos ir ver o Baião levantar o comboio das cinco e meia. As pessoas às portas riam da nossa alegria. Cuidado, meus meninos, vejam o comboio de longe, olhem que às vezes só apita quando vem muito perto. E o Baião a andar de punho cerrado como se quisesse desferir um grande soco no ar. Vejam. Eu posso, vão ver. Menina, foi assim. Até que chegámos muito suados junto da curva da linha. Pelo bater dos nossos corações se via que a nossa alegria era uma coisa séria. Agora era só esperar. Queríamos ver o comboio das cinco e meia. Só que não haveria de levantar nada. O gajo era um caguincha, e mal visse o comboio começar a descer, desmandado pelas agulhas da estação, o gajo até daria guinchos de miúfa para a gente rir. A mais grossa das grossas seria da ralura do petróleo. E ele de punho no ar, minha menina, fazendo gestos. Depois aconchegou-se com a sebe de calhaus como se quisesse roubar alguma coisa e não desejasse ser visto. A gente a ver. Fechou um punho e pôs o braço sobre o carril. Soava o apito do chefe e adivinhávamos o acenar da bandeirola, o desamarrar da engrenagem. Já víamos a máquina a assomar por 228 cima das copas das árvores, linha abaixo a apitar, e dissémos. Não és capaz. De um salto subimos a um valado porque já se sentia tremer a terra onde púnhamos os pés. E começamos à espera que o Baião se desfizesse num pulo ou num voo, se viesse juntar a nós. Dizendo. Malta. Para o gozarmos durante toda a vida. Mas não. O Baião continuou de braço estendido. E aí alguma coisa de extraordinário e inexplicável aconteceu, porque quando a máquina já fazia trof trof perto de nós, o Baião virou-se espargindo vermelho, como se todo o seu grande corpo fosse um saco de sangue, e alguém lhe tivesse cortado uma boca. Tão rápido. O comboio era só um trof trof, trof trof, terras de Padrona abaixo. Minha menina. A princípio ficamos estacados de incompreensão, e julgámos que os pardais tinham mudado de cor por terem perdido o rumo. Nós próprios, espantados, perdíamos os chapéus. Houve quem dissesse que o braço tinha perseguido o comboio, aperreado de muita força, e continuava a saltar murros e socos no cascalho da linha. Também disseram mais. Que o tinham envolvido numa saca, num paninho, numa renda de altar. Minha menina, foi assim, esse poder. O Baião respirava agora tão subtilmente que era preciso ir pôr a orelha junto do peito. A menina imitava-me indo espiar-lhe os olhos, prendendo os seus próprios cabelos desgrenhados atrás duma orelha, com a mão, num gesto feminino. Já não se ouve. Disse ela. E quando já não se ouviu mesmo, e lhe passei os dois dedos no rosto como se costuma fazer, achei melhor pedir àquela solene companheira que saísse e chamasse alguém. Eu próprio me dirigi à porta mas não sabia como dizer, eu, um engenheiro de estradas. Não podia dizer acudam, nem aqui-d’el-rei, nem gente, nem família, nem atenção atenção. E só me vinham à língua palavras antigas. Resolvi então bater as palmas enquanto a mais pequena das meninas, de pernas nuas, olhava para trás e se sumia numa corrida sem pressa, atrás das esquinas. Esperei, sabendo que tinha um filho de Padrona insepulto ali dentro da sua própria casa. A sombra já quase cobria agora o carro por inteiro e a tarde caía como um tecido de paz. Bati de novo as palmas para que alguém ouvisse, e como não desse por rumor algum, senti um injusto desamparo abater-se sobre a pessoa do Baião. Ao menos o padre haveria de acordar da sua sesta de verão, e viria cantar o seu sari oh oh junto daquela figura de pretor desterrado que estava lá dentro. A igreja era a dois passos e bastaria bater na porta da sacristia. Fui e bati. Uma, duas, várias vezes. Até que resolvi dar uma volta a ver se descobria qualquer outra porta aberta, e dei de rosto com um prospecto onde se podia ler «for sale», precisamente na vitrine onde antigamente se anunciavam os baptizados. Era uma letra sábia e gótica, pendida para a frente, mas o que dizia era exactamente igual ao que se lia no letreiro da padaria e na tabuleta bordada na casa do primeiro andar, onde eu conhecera paixões de janela para janela. O carro ficava do outro lado. Eu era um engenheiro de estradas, estava a poucos quilómetros delas e nada me 229 metia medo. Ao menos as meninas haveriam de vir. Meninas. Chamei várias vezes e bati as palmas. Mas o largo assim aberto e branco, parecia um espaço à espera da aterragem duma ave pernalta, gigante e singular. Estava à venda a farmácia, estava à venda. a casa do sapateiro, a casinha das frutas. A escola tinha o seu anúncio quase invisível, por dentro, junto dos vidros como envergonhado. Descobria-se nele a letra redonda com aselhas às voltinhas, próprio de quem ensina as primeiras sílabas. Ainda pensei subir essas escadas que constituíam um esboço de anfiteatro e levavam às paredes onde dormia o Baião, apenas para fechar a porta, mas também achei que não valia a pena. Se subisse agora com olhos de ver, haveria de notar que nem ele nem a sua história já pertenciam ali. Abri o carro para partir e um grupo de mulheres que descia, vendo-me, acercou-se. Venha amanhã, meu senhor, que nos foram dizer que morreu um parente e estas coisas de negócio precisam ser conversadas. Anoiteceu no caminho. As estradas eram uma fita de luz iluminada, resplandecente de sombras verdes que surgiam por um momento para logo serem engolidas pelo escuro. Para trás, para trás. Os meus olhos postos metade dentro, metade fora. Passei socalcos expostos como se fossem explodir. Passei terras às rugas como se fossem envelhecer. Passei chão plano e aberto, passei várzeas, passei montes, passei ruas, vilas, casas, dispersas moradias de porta fechada. Passei, passei. Havia longos camiões enfeixados de palha como turbante de faraó, que roncavam lentos e deixavam passar. Fui passando. Até que estava prestes a chegar a casa e pensava poder dizer. Hoje, eu queria dinamitar as estradas. Mas não sabia se deveria dizer. Num dia em que chegara a desoras tinha encontrado a casa vazia e um bilhetinho sobre a cama como costuma acontecer nos filmes americanos. Outra vez fora antes duma partida. Essa saíu à rua antes de eu próprio descer, e fez paragem a um táxi verde onde se enfiou para sempre. A terceira tinha acontecido numa madrugada em que acabava de chegar com uma dor tão funda que não conseguia distinguir se era de rim provocada pelo estofo, se ao contrário. E lho disse. Vestiu dois casacos, um por cima do outro como se fosse abalar para o frio, e não deixou bilhete nenhum que se lesse. Mas à quarta mulher eu podia dizer. Quero dinamitar as estradas. Porquê? Perguntou ela. Por causa desta viagem. A minha quarta mulher ou tinha sido mal amada e falava com os deuses, ou era apenas lúcida. Despenteada àquela hora da noite, lembrava-me os olhos da terceira criança sobre o peito do Baião. Eu era um engenheiro de estradas e apetecia-me descansar dos sonhos. (Inédito, 1982) 230 VERGÍLIO ALBERTO VIEIRA (1950-) As correntes mais jovens da novelística portuguesa contemporânea caracterizam-se fundamentalmente pela pesquisa de novas linguagens. Disso se dá exemplo, colhido entre a proliferação dos novos autores, com o texto que encerra esta antologia. Na sequência duma obra já relativamente extensa de poesia, publicou Vergílio Alberto Vieira dois livros de ficção: Salário de Guerra (1979) e Chão de Víboras (1982). As temáticas versadas repartem-se entre a atmosfera pungente e cruel vivida por portugueses e angolanos durante a guerra colonial (que se prolongou de 1961 a 1974) e ambientes rústicos nortenhos em ásperas rudezas. As narrativas de Angola relembram a dor dos «dias sangrentos», dos massacres e torturas, da morte gratuita – uma atmosfera de pesadelo que o Autor cinge à palavra numa expressão do imediato, com dureza e arremesso. E dela é ainda transportado um tom dominante de evocação-presença para os breves «flashes» de espaços provinciais e rurais portugueses, com flagrantes laivos neo-realistas. Mas o mais importante na novelística de Vergílio Vieira é a linguagem criada em que se exprimem a observação e (ou) a imaginação do contista quase cronista: uma linguagem cortante, sincopada, logo em si mesma reflectindo a visão e a situação dramática que se infundem no episódio. Assim é construída pelo Autor uma «coerência de universo linguístico» que já foi assinalada por Manuel Ferreira «a partir das falas originais de gentes que povoam [...] áreas em mutação social e linguística» e que se volve, ao cabo, num código renovado que é exigente para o leitor. Não que a linguagem seja moldada, na escrita de Vergílio Alberto Vieira, em oralidade – mas extraindo de facto o seu ritmo de fala espontânea e entrecortada de suspensões que é a do povo. Há que entender e surpreender esse ritmo para que se possa reconhecer nele um estilo. Neste aspecto reside, decerto, o maior interesse da experiência literária que a criação deste autor representa, a apontar caminhos – ou mudanças de caminho – que as novas gerações de escritores de ficção em Portugal virão a percorrer. 231 O DIA PERFEITO A fímbria de luz a atravessar-lhe a mão aguentou no olhar essa fulguração. Da estrada, sobre um rebordo esquecido de colina, desceu. Quase caía. Entre os arbustos de pequeno porte, uma aragem fina. Soprava. O carro ao cimo sobre o pendor da tarde. Depois, já a perder de vista, o largo abraço: a foz. Agradou-lhe sobremaneira a antiquíssima doçura do Minho. E também a familiaridade de uma pedra. Um silvo de comboio trouxe (-lhe) o exílio para perto. Mafra denovo como um ranger de ferros que pordentro as vísceras descose, e no ouvido o eco (o eco apenas) de um teclado cego, de vozes que à noite as carruagens enchiam de fardas, a solidão. Agora, não. Acomodou-se gravamente atrás dos óculos escuros para assim (pensou): melhor ficar a ler essa ternura de água. Demorou-se. O rosto dele um rosto vago (talvez a narrativa comece aqui): onde toda a ausência de juventude moldara (a frio) a passagem do vento e do sal, dali partiu a voar. Para encontrar (soube-o depois): o fim. De regresso ao carro, doeu-lhe ainda a ideia de habitar a pequena tenda de campanha que, ao fundo, um braço de terra, escorado entre rochas, perdia ante a laminação das águas. Fê-lo só por instantes. E por fim arrependeu-se. Retirou a pretensão, sem conseguir desculpar o despropósito em que se envolvera: sofria quando assim. Porque da deserção jamais se arrependera. Feriu de morte a dimensão das coisas. 232 Ergueu-se. Para pensar. E esse impulso valeu-lhe delogo a provação de um receio. Depois, não sem esforço, ao corpo ajustou a imagem de M., lenta, como um vagar de terra. E percebeu então que, dentro de si, a vida agonizava. o fulgor, em declínio, e o outono quase próximo prenunciaram (começava a doer-lhe a cicatriz da mão) um momento difícil: de hora inabitável. – nada merece preparo! – anuiu, a meia-voz, sem ao menos a morte tentar esconder da efígie do vento . A sul, entardecia. Sentiu-se arrastado num tropel impossível. Angustiava-o prever, assim, a absorção inútil de um braço alimentado a soro; a urgência de assalto tomada pela encenação de um apelo: cruel; e os médicos (um ou mais, talvez dois): de início, sabiamente apostados: lamentámos ter de informar. E agora? Como juntar a vida outravez em fragmentos de espelho? Quis favorecer o engano. Emoldurou geometricamente a árvore mais próxima. Levou à boca uma nervura de folha: ácido, o verde tivesse dispensado a distracção difusa: um barco escalava a ria (e já o pequeno renault, apressando a cidade), um barco cor de cinza friamente as águas verdazul costurando, o restolho de asas sobre a mastreação, e nunca (anos depois) o seio de M., intimamente roído de câncer, evocaria (de memória) a noite em que (vigiava agora à distância o assombro das aves) entre eles rompera imparável o arco de Albinoni. Envelhecera daí de momento, sentia-se tomado de um enorme cansaço. Procurava-se e, dentro de si, apenas o vazio pela coragem deixado. Quem no tempo viria fechar essa sentença de morte?, tremendamente a pp. 97 caligrafada, como a derrota de um suicídio mal perpetrado «...segundo previsão do Instituto de Oncologia, restam-me apenas alguns meses de vida.» O diário dela, um dia, ocasionalmente aberto. À escassez: luz: o mais fácil morrer. O desabamento de um preparo. A decomposição lenta (também os sais de chumbo, eu sei! envenenam os olhos). Os caracteres da escrita. E ela. A apagar-se cadavez que as suas mãos vinham tomar-se das dele. já a alegria a despedir-se dos meses. Uma única certeza: a de que dificilmente encontraria o modo de repor no presente esta imobilização. 233 Restava-lhe prolongar o equívoco. Intentar que esse punhado de terra a escoar-se entre os dedos quebrasse a fluidez com que os olhos de M., fugiam dos seus olhos. A pacificação com que a hera se entrega aos contornos da sombra sempressa de deixar-se beber. A crueldade (desordenada como um vento) com que esse preâmbulo de sol (ainda ontem) à janela do pequeno sótão chamado, esvaziava de cor o pequeno bronze sobre a mesa de trabalho serenamente passado pelas rédeas: por que trocaram as mãos/outravez os gestos por cavalos, o aquário (criação de infância) estranhamente ovalado: a reposição do vidro (em chama) sobre o verde enigmático dos peixes; Le quattro stagioni, de Vivaldi, mortalmente desejado nesse outono; e ainda a reprodução (íntima, por sinal) de um Yves Tanguy, há cinquenta anos cansando a tela: Quatro horas de verão, A esperança; uma que outravez a sereia de um navio, pela casa dentro (trágica): como um afogamento. Mas já a proximidade a inquietá-lo este encontro (o último) comprometia-o. Grudava-o à intencionalidade de um homicídio. Porque a cidade, essa, abria-se agora à decifração de um código confuso. O trânsito (em ebulição) quebrava então a rédea aos motores. Era dia de sábado. E reparava, entretanto, quão desarvoradamente vinha desrespeitando o intermitente dos semáforos, já dentro de si o índice de desequilíbrio pendular, encomendando-o à fatalidade. Curvou a caminho da Baixa. Desafiava-o a ameaça (branca) dos faróis na estreiteza das faixas de rodagem. Quis situar-se. lançar mão de um relógio. Refrear a vertigem. Tarde demais. Deixou o carro. Precisava de andar a pé. Procurou à distância a luz alta do prédio. Pois que. Urgia afivelar à sentença um apelo de máscara. Este internamento matava-o. Ao defrontar-se com a fachada, apercebeu-se que vacilava. Sentiu porisso o fio laminado dessa hesitação. E adoraria voltar subir a praguejar (chovia, esse dezembro) contra a loucura de o acompanhar na deserção e vir tomar de aluguer o desconforto de um sótão em país estranho; trazia um açafatezinho de maçãs vermelhas; e logo a mais longa efusão de beijos (fazia ela nesse dia vinte e seis, tinham, por essa altura, alguns companheiros de exílio caído nas mãos da Interpol; confessou quanto temia pela situação de ambos; amaram-se perdidamente até à exaustão; demanhã continuava a chover. mas a noite. Decidiu converter em aceno a cedência que pordentro o tomava. No primeiro lanço da escada, foi a vez da mão (nunca o bolso lhe parecera tão fundo) encontrar-se com a chave. Modesta chave: inflamável ao menor sopro siderúrgico; incapaz de reter o fogo, o mesmo será dizer: de deixar de ser chave (ou sonho) de um sótão onde apenas cabiam 234 surpreendeu, com estranheza, o volume da chave, a agudização dos contornos; esfriava. Por altura do segundo piso, pressentia o pior: começou o espaço envolvente a escassear-lhe. É verdade que subia de costas para a vida. O desengano (total) a vará-lo, e a tortura insuperável da boca: como se as palavras (que lhe dizer?) qual o silêncio de uma folha de prata, provassem ali da rejeição do fogo. E tudo isso carregava agora consigo. Quis valer-se do corrimão para subir. Sempre o atemorizou a ruína da casa. As paredes severamente desfiguradas. E o cansaço espectral das madeiras (outrora do abatimento consentidas: em cada ciclo lunar, em cada extensão de luz, e de então rancorosamente cantadas pordentro, a solidão dos bichos). Ao patamar superior, os braços. A doer. Apeteceu-lhe descer ainda. Entregar os passos a quando a chave. Oleada de silêncio. Impôs-se. O primeiro volteio. E a breve ocultação de sombra pelo soalho. Nunca tanto a dor de uma ausência. Que gesto podia agora municiar-lhe os ombros de silêncio? Primeiro a clandestinidade a afronta de uma notável família, desde sempre afecta ao regime. Depois, o desânimo, a condenação em tribunal militar Já no aposento, regressava agora à intimidade dos objectos. Das roupas íntimas. Os gavetões entreabertos. Os quadros. A renúncia a tudo quanto em Portugal. A vida dela presa aos contrastes da cor. Os seus quadros: surpreendeu-o já o desequilíbrio das últimas telas. A passividade e habituação de estar. As avencas quase secas no apagamento nocturno. E a um canto, como um punhal: a imoderação de um Dvorak (intencionalmente passado): em 45 rotações. A deflagração de um propósito. Ao que sabia. O abandono. Com outra mulher. Teria recusado vingar este consentimento. Já o desuso das coisas a apoderar-se de tudo. A força de os olhar, começavam a arder os espelhos. Mas que fazer?, restava-lhe a repatriação ou a morte. Pela condenação de um jogo em que à prova de arco tenso saia vencido, não resistiu ao emparedamento. À sua volta, o ar. Ia tornando-se irrespirável. Acudiu-lhe o coldre. Estamos na segunda metade do século XX. As ervas morrem e ressuscitam, mas aqui estão escritas como secas, em volta dessa mão que se ganhou a si mesma, alçando a sabedoria da imobilidade. A mão pensa (Herberto Helder, Photomaton & Vox). 235 A brevíssima janela. Em vão. Lafora, a noite. Alta. Sobre a ria. A ria agora intacta como um sonho. Um sonho guardado (de memória). No rumo dos porões. O vento, em qualquer parte ficado, esquecido pelo tombadilho (distante) dos barcos. Era sábado (quero insistir): e ao sábado não há homem que resista pelo coração à ideia de que às vezes também os trevos envenenam os olhos. (De Chão de Víboras, 1982) 236 NA CAPA UM ÓLEO DA AUTORIA DE COLUMBANO «RETRATO DE RAÚL BRANDÃO». NO MUSEU NACIONAL DE ARTE CONTEMPORÂNEA. LISBOA. (1896). 237