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Uso progressivo da força: dilemas e desafios

2009, Uso da Força: dilemas e desafios

Organização dos Cadernos Temáticos da Primeira Conferência Nacional de Segurança Pública, ocorrida em Brasília, entre 27 e 30 de Agosto de 2009. ALBERNAZ, Elizabete, 2009. Uso da Força: dilemas e desafios. Cadernos Temáticos da CONSEG. SENASP, Brasília - DF.

Cadernos Temáticos da Conseg Ano 01 2009 N. 5 Uso progressivo da força: dilemas e desafios Ministério da Justiça - 2009 Cadernos Temáticos da Conseg ISSN 2175-5949 N.5, Ano 01, 2009 64 pp Brasília, DF Uso progressivo da força: dilemas e desafios Ministério da Justiça - 2009 Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva Ministro da Justiça Tarso Genro Secretário Nacional de Segurança Pública Ricardo Brisolla Balestreri Expediente Coordenadora Geral da 1a Conferência Nacional de Segurança Pública Regina Miki Editor Luciane Patrício Braga de Moraes Conselho Editorial Fernanda Alves dos Anjos (MJ) Haydée Caruso (SENASP - MJ) Jacqueline de Oliveira Muniz (PMD - UCAM) José Luis Ratton (UFPE) Luciane Patrício Braga de Moraes (MJ) Luis Flávio Sapori (PUC - MG) Marcelo Ottoni Durante (SENASP MJ) Paula Miraglia (ILANUD) Regina Miki (MJ) Renato Sérgio de Lima (FBSP) Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo (PUC - RS) Thadeu de Jesus e Silva Filho (SENASP - MJ) Capa e Diagramação Tati Rivoire Tiragem: 5.000 exemplares ISSN 2175-5949 Cadernos Temáticos da CONSEG Coordenação Geral da 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública Ministério da Justiça – Ano I, 2009, n. 05. Brasília, DF. Todos os direitos reservados ao MINISTÉRIO DA JUSTIÇA (MJ) Esplanada dos Ministérios, Bloco T, Edifício Sede Brasília, DF – Brasil – CEP 70064-900 Telefone: (61) 2025-9570 Impresso no Brasil SUMÁRIO Carta do Secretário 7 Apresentação 9 Uso Progressivo da Força Letal: Dilemas e Desafios Elizabete Albernaz 12 Variables y justificaciones asociadas al uso de la fuerza por la policía: una visión comparada Luis Gerardo Gabaldón 16 A importância da formação na mudança de paradigmas no uso da força letal Fábio Manhães Xavier 26 Elementos para a criação de uma matriz curricular sobre o uso da força Suzana Varjão 41 Uso comedido da força letal: construindo um protocolo de engajamento Paulo Storani 47 Uso Progressivo da Força: Dilemas e Desafios: Resumo de propostas 59 Carta da Secretária A 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública tem como um dos seus objetivos consolidar a segurança pública como um direito fundamental do cidadão e, para tanto, construir uma política nacional de segurança pública com a participação da sociedade civil, dos trabalhadores em segurança pública e representantes do poder público. Nesse contexto, os Seminários Temáticos tiveram como objetivo principal a ampliação da participação de segmentos específicos no processo da 1ª CONSEG, bem como a qualificação e o aprofundamento da discussão de determinados temas relevantes presentes nos sete eixos temáticos que compõem o Texto-base da Conferência. Para debater e definir princípios e diretrizes para o Eixo Temático 4, que trata da repressão qualificada da criminalidade e problematizar os parâmetros utilizados para fundamentar o uso da força por parte das organizações policiais foi realizado o Seminário Temático “Uso progressivo da Força: dilemas e desafios”. Na ocasião, foram discutidas possibilidades de diminuição da letalidade policial, por meio da adoção de treinamentos mais qualificados, protocolos de ação e ainda uso de tecnologias menos letais. Tais discussões são pertinentes no momento em que nos confrontamos com a necessidade de racionalizar o uso das armas letais, dentro do conceito do escalonamento da força e da diminuição da espiral da violência. Desenvolver práticas que contemplem o uso progressivo da força e privilegiar ações policiais de caráter preventivo é fundamental para aprimorar a relação entre a polícia e a comunidade. O Seminário Temático suscita a reflexão sobre a necessidade de compatibilização entre os princípios do uso da força letal pelas organizações policiais e os princípios de direitos humanos consagrados nos tratados internacionais, em sintonia com a temática da segurança com cidadania da 1ª CONSEG. O presente Caderno temático constitui um documento que sintetiza o debate realizado entre atores diretamente envolvidos com este campo de conhecimento, seja do ponto de vista acadêmico seja do ponto de vista de exercício da atividade profissional, e deve orientar as discussões que serão realizadas na etapa nacional da 1ª CONSEG. Regina Miki Coordenadora Geral da 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública 7 Apresentação A promulgação da Constituição Federal de 1988 – também conhecida como a “Constituição Cidadã” – viabilizou novos compromissos políticos e sociais no sentido da legitimação da democracia, do federalismo e da participação como grandes pilares estratégicos da organização do Estado. Embora estabelecido em nível político-institucional, o movimento de democratização brasileiro enfrenta ainda o desafio de alcançar as práticas cotidianas dos cidadãos, permeando as relações da população com as diversas agências (e agentes) do poder público, com os espaços e com os indivíduos que o povoam. A experiência democrática dos últimos 20 anos tem reiterado esta constatação, demonstrando que o leque de garantias constitucionais não se projeta de modo uniforme na realidade social brasileira. Recortes sócio-econômicos, de gênero, étnico-raciais, articulam-se de forma complexa em nossa história social, ditando o ritmo de expansão destas garantias entre as diversas “classes de cidadãos”. Para segmentos bastante expressivos da sociedade brasileira, o exercício de certos direitos, como a liberdade de pensamento e o voto, não gerou automaticamente o gozo de outros, como a segurança e o emprego, colocando para os governos democráticos o desafio da afirmação ativa da cidadania plena no Brasil (Carvalho, 2002)1. Esta tarefa, na atualidade, tem se caracterizado pelos esforços governamentais em qualificar os canais institucionais de participação e controle social, atendendo a antigas reivindicações dos movimentos sociais. As Conferências, neste sentido, tem sido muito utilizadas enquanto ferramenta de consulta aos diversos atores envolvidos na implementação de políticas públicas setoriais, mobilizados em nível federal, estadual, municipal e comunitário. Por meio das Conferências, a sociedade brasileira se reconhece como uma verdadeira comunidade política, capaz de deliberar sobre questões que afetam a vida diária de todos e todas, indistintamente. Obviamente, isso faz das Conferências processos tão ricos quanto desafiadores. Com frequência, elas trazem para a ordem do dia problemas estruturais da nossa sociedade, os quais até então não tem encontrado canais adequados de resolução, quer no sistema político, quer no sistema jurídico. Nessas ocasiões, as potencialidades do modelo são postas diretamente à prova: as Apresentação 1 CARVALHO, José Murilo (2002). Cidadania no Brasil: O longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 9 Conferências podem encarar o desafio histórico que lhes é colocado ou podem simplesmente desviar-se dele; podem romper com consensos previamente estabelecidos ou podem apenas reafirmálos. Tudo depende de como o processo decisório está organizado e de como, dentro desse processo, os participantes exercitam a sua responsabilidade política e a sua ousadia democrática. Frente a este desafio, a convocação da 1a Conferência Nacional de Segurança Pública representa um momento histórico para o processo de consolidação democrática brasileira. Ao partilhar o poder de gestão com a sociedade, a Conferência estabelece um marco de transformação das práticas tradicionalmente adotadas na construção de políticas públicas de segurança em nível nacional, estadual, municipal e comunitário. Espera-se que a ampla mobilização social catalisada pelas etapas eletivas e preparatórias da 1a CONSEG sedimente as bases principiológicas, institucionais e práticas do paradigma de segurança com cidadania, centrado na tríade participação, prevenção social e repressão qualificada. Com diferentes aproximações em relação ao tema, trabalhadores da área de segurança pública, poder público e organizações da sociedade civil encontram-se hoje envolvidos em um amplo processo de pactuação coletiva sobre os rumos desta mudança. Enquanto etapas preparatórias da 1a Conferência Nacional de Segurança Pública, os Seminários Temáticos são ferramentas indutoras de participação e de contribuições críticas, assumindo a responsabilidade de ampliar o leque de capacidades técnicas e políticas dos atores mobilizados, para que ocupem de modo qualificado os espaços de co-gestão estabelecidos. Propostos por instituições reconhecidamente competentes no trato dos fenômenos abordados, a realização dos Seminários Temáticos viabilizo um maior aprofundamento acerca de tópicos específicos da organização e funcionamento do sistema de segurança pública e justiça criminal, contemplados nos sete eixos da 1a CONSEG. Neste sentido, o presente Caderno Temático reúne as principais contribuições do Seminário Temático Uso Progressivo da Força: dilemas e desafios, realizado no dia 03 de julho de 2009, na sede do Viva Rio – ONG responsável pela organização do evento no Rio de Janeiro. O Caderno está dividido em três partes: a primeira traça um breve panorama do campo temático e do contexto de realização do evento; na segunda, encontramse publicados papers de painelistas do Seminário – Luis Gerardo Gabaldón, Fábio Manhães Xavier, Bernadete M. P. Cordeiro e Pau- 10 Uso progressivo da força: dilemas e desafios lo Storani – que, lidos em seu conjunto, oferecem ao leitor importantes aprofundamentos e reflexões sobre o valor estratégico do debate sobre a contrução de protocolos de uso da força para as instituições de segurança pública. Por fim, encerrando o Caderno, foi sistematizada, a partir das contribuições das oficinas – realizadas com a participação de acadêmicos, policiais e representantes de movimentos sociais – uma proposta de agenda para este campo temático, que será incluída no Caderno de Propostas da 1a Conferência Nacional de Segurança Pública. Apresentação 11 Uso Progressivo da Força: Dilemas e Desafios* Elizabete Albernaz** * Colaboraram na elaboração deste artigo Ludmila Ribeiro e Daniel Luz. ** Elizabete Albernaz é antropóloga pelo Museu Naiconal (UFRJ) e pesquisadora na área da segurança pública. Atuou como consultora do Ministério da Justiça/ PENUD para a elaboração dos Cadernos Temáticos da Conseg. 1 BITTNER, Egon, 2003c. “Florence Nightingale Procurando Willie Sutton: Uma Teoria da Polícia”. In: BITTNER, Egon, 2003. Aspectos do Trabalho Policial. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo; pp. 219-250. 12 Atualmente, o debate acerca dos limites do uso da força pelas organizações policiais tem se tornado cada dia mais acalorado, envolto em polêmicas sobre a eficiência das “soluções policiais” concretas ofertadas a uma população que clama por mais segurança. O aumento da presença policial costuma ser a tônica da solução, acompanhada de reivindicações por mais armamentos (e cada vez mais letais), mais viaturas e, de forma muitas vezes velada, do aumento da “intensidade” das respostas policiais à criminalidade. Aprisionadas por essa lógica perversa, muitas organizações relegam a supremacia tática e técnica de seus efetivos a segundo plano, centrando-se no provimento (muitas vezes inadequado) dos aspectos materiais do exercício da função policial (armas, viaturas, efetivo etc.). Para o profissional de segurança pública, que precisa fazer escolhas de caráter irrevogável em tempo real, deter somente os recursos materiais para a ação não resolve as demandas complexas envolvidas no processo de tomada de decisão policial, em cujo centro encontra-se o debate sobre o mandato de uso da força. Enquanto possibilidade ou realidade concreta, a força define o próprio lugar de polícia, o que ela é e o que ela faz – ou o que ela pode e está autorizada a fazer para validar as regras que regem o pacto social. É porque se trata de uma organização autorizada a empregar a força, real ou potencial, que chamamos a polícia para mediar conflitos, buscar soluções pacíficas, legítimas ou para resolver tudo aquilo que “não deveria acontecer e sobre o que seria bom alguém fazer alguma coisa imediatamente” (Bittner, 2003:234)1. Diversos elementos estão implicados na discussão sobre o mandato de uso da força da polícia: discricionariedade, treinamento adequado, uso ou não de certos equipamentos e tipos de armamentos, valorização profissional, tipo de interação com a cidadania, cadeia de responsabilidades, criação de procedimentos e protocolos de atuação, etc. Quando estes aspectos não são contemplados na construção de parâmetros políticos e gerenciais para a atuação das organizações de força comedida (polícias), relega-se a atividade policial ao amadorismo, pressionada por falsas dicotomias do senUso progressivo da força: dilemas e desafios so comum que tendem a confundir emprego de violência e o uso legal e legítimo da força. Esta confusão, entretanto, não parece se restringir à população em geral, mas acomete mesmo os próprios profissionais de segurança pública, que acabam subestimando a centralidade de mandato de uso da força e os benefícios de seu adequado emprego: “O ônus desta indistinção é imenso, sobretudo para as organizações policiais, que se vêem na situação impossível de ter que tomar decisões em ambientes de incerteza e risco sem qualquer critério que as oriente quanto à propriedade das alternativas adotadas. Indo mais longe, este equívoco tem se materializado em falsas questões, onde se enxergam antinomias que a realidade evidencia como unidades. Assim, erigem-se falsas contradições, como as que polarizam ‘polícia força versus polícia serviço’, ou, de forma ainda mais grave, ‘operacionalidade versus direitos humanos’, perdendo-se de vista a especificidade originária das polícias como organizações de força comedida, inteiramente voltadas para a ‘proteção social’. Vê-se como muito deste debate tem servido para mascarar a centralidade do respaldo pela força na realidade do trabalho de polícia e do provimento de ordem pública.” (Diniz, Muniz & Proença Jr., 1999:22)2. Os efeitos concretos desta indistinção, para o conjunto da sociedade, são ainda mais devastadores. Quando as próprias organizações policiais negligenciam as exigências táticas e técnicas que diferenciam a violência e o uso da força, deixando nebulosa a fronteira que define o seu mandato, os incidentes negativos com a população civil tornam-se mais freqüentes. A banalização da utilização do nível letal de força pela polícia acaba sendo a conseqüência mais drástica da falta de clareza quanto aos procedimentos e recursos adotados no curso da ação policial. Sem esta clareza, em ambientes de elevado risco e imprevisibilidade, pressionados por resultados e pela demanda pública por segurança, muitos policiais optam por cursos decisórios em que a letalidade de suas ações eleva-se exponencialmente. Muitas vezes endossada por um tipo de legitimidade perversa ou tolerada pela simples inação de uma sociedade que erigiu a segurança em um fim em si mesmo, independente dos meios e métodos empregados, a letalidade da ação policial é um problema grave, amplamente denunciado por organizações de direitos humanos, nacionais e internacionais: Centro de Justiça Global, Violência Policial 2000, Rio de Janeiro, 2001 “No estado de São Paulo, o número de civis mortos pela polícia aumentou de 525, em 1998, para 664, em 1999, o maior índice desde 1992, ano em que a polícia matou 111 presidiários em um massacre Uso Progressivo da Força: Dilemas e Desafios 2 MUNIZ, J. PROENÇA JR. D. & DINIZ, E (1999). Uso da Força e Ostensividade na Ação Policial. Conjuntura Política. Boletim de análise nº 6. Departamento de Ciência Política – UFMG; pp. 22-26. 13 na Casa de Detenção do Carandiru. Essa tendência se intensificou ao longo dos seis primeiros meses do ano 2000, quando a polícia de São Paulo matou 489 civis, o que significa um aumento de 77.2 por cento com relação à cifra de 1999”. Human Rights Watch, Overview of Human Rights Issues in Brazil, Nova York, 2004 “Mais de 800 civis foram mortos em tiroteios com a polícia no Rio de Janeiro durante os primeiros oito meses de 2003”. O que essas notícias encobrem, contudo, é o fato de que por traz da morte de um civil em confronto com a polícia – além da falência do próprio Estado em garantir-lhe o direito mais fundamental: a vida – existem diversas fragilidades institucionais de formação, treinamento, controle, supervisão, procedimentalização, mas também de conscientização do policial sobre as implicações e constrangimentos vinculados ao uso da força, bem como a ausência de tradição no emprego de tecnologias menos letais por parte das organizações policiais brasileiras. Infelizmente, esta situação é agravada pela escassez de acervo reflexivo cientificamente embasado sobre o tema do uso da força, que, além de promover estudos comparados entre diversos contextos sócio-históricos e culturias de atuação policial, estimule o diálogo entre as diversas (e muitas vezes divergentes) expectativas em torno da questão: no meio acadêmico, na atuação dos movimentos sociais, dos gestores públicos, dos próprios agentes, etc. Frente à impossibilidade inerente de se prever todas as ocasiões e domesticar todas as variáveis implicadas na atividade policial, esta lacuna reflexiva tem seus efeitos negativos exponenciados pela freqüente ausência de manuais de procedimentos, treinamento adequado e de suporte bio-psico-social ao policial no exercício cotidiano de sua discricionariedade. Para poder decidir sobre os melhores cursos de ação, muitas vezes em fração de segundos, é crucial prover ao agente policial todos os recursos que lhe permita fazer escolhas seguras para si e para o público atendido. Neste sentido, a promoção de uma discussão qualificada sobre os dilemas e desafios do mandato de uso da força no âmbito das organizações policiais mostra-se de extrema importância. Pensando nisto, acompanhando a mobilização nacional catalizada pela 1a CONSEG, o Viva Rio decidiu colocar o tema em pauta e organizar o Seminário Temático Uso Progressivo da Força: dilemas e desafios. A motivação para a realização de um evento desta natureza, tal como destacado nos parágrafos anteriores, decorre da necessidade de se fomentar o debate sobre essa seara, posto que o tema ainda 14 Uso progressivo da força: dilemas e desafios permanece mais temido do que conhecido, tanto pelo meio acadêmico como pelas organizações policiais como um todo. A promoção de um debate qualificado através da mobilização de atores diretamente envolvidos com este campo de conhecimento, seja do ponto de vista acadêmico, seja do ponto de vista de exercício da atividade profissional, viabilizou um importante espaço de reflexão acerca das diversas experiências internacionais e nacionais nos distintos aspectos relacionados ao uso progressivo da força. Os resultados do seminário encontram-se sumarizados nos artigos que seguem, os quais foram especialmente preparados por cada palestrante para o evento. Com a reunião de todos neste caderno temático espera-se contribuir para a disseminação do conhecimento produzido por policiais e acadêmicos neste campo e, com isso, dar ensejo a mudanças mais concretas no que diz respeito ao uso da força pelas organizações policiais brasileiras. Uso Progressivo da Força: Dilemas e Desafios 15 Variables y justificaciones asociadas al uso de la fuerza por la policía: una visión comparada Luis Gerardo Gabaldón* 1. La cuestión del uso de la fuerza por parte de la policía * Universidad de Los Andes / Universidad Andrés Bello Venezuela. 1 Bittner, Egon (1991) “The Functions of Police in Modern Society”, en Carl B. Klockars y Stephen D. Mastrofsky (editores) Thinking about Police, Contemporary Readings. New York, Mac Graw Hill, pp. 35-51. 2 Idem. 16 En un ensayo clásico, Bittner propuso definir a la policía en términos de las vías a través de las cuales podría alcanzar sus propósitos, sugiriendo que ella deberìa entenderse como un mecanismo para la distribución de la fuerza situacionalmente justificada en la sociedad. Este concepto resultaría consistente con las expectativas sociales, con las demandas y con los recursos disponibles por parte de la policía, confiriendo unidad a la multiplicidad de cometidos que le son asignados por la sociedad (Bittner, 1991: 44)1. Es un concepto que destaca como atributo fundamental y función de la policía el uso de la fuerza física en cualquier situación, y en este sentido nos podría parecer autoritario, sesgado y hasta ilegítimo. Sin embargo, en la medida en que reconoce esta propiedad fundamental de la policía nos ayuda a entender su funcionamiento y a moderar las consecuencias negativas del uso excesivo de la fuerza. La cuestión del uso de la fuerza física por parte de la policía se ha convertido, en las últimas décadas, en tema de continua reflexión, análisis, explicación, regulación y políticas públicas, dado que lo que subyace a cualquier intervención policial, independientemente de su contenido, es la capacidad que tiene la policía para contrarrestar la resistencia, proyectando el mensaje de que la fuerza puede ser o no utilizada para alcanzar el objetivo previsto (Bittner, 1991: 45)2. Si tal uso es una propiedad intrínseca de la policía, se hace necesario abordarlo para comprender el desempeño policial y su vinculación con las expectativas sociales. La distinción entre uso y abuso de la fuerza puede llegar a ser problemática. Por una parte hay que distinguir entre abuso extensivo (cuando la fuerza se aplica a situaciones que se encuentran fuera de los supuestos autorizados por la norma) y abuso intensivo (cuando dándose el supuesto de hecho autoUso progressivo da força: dilemas e desafios rizado se viola la regla de proporcionalidad o progresión en su utilización). También en la evaluación de la fuerza pueden influir elementos como de la visibilidad en su empleo y su documentación, la audiencia que presencia su despliegue, el poder de reclamo de las personas afectadas y la tolerancia social hacia determinadas formas de coacción empleadas por la policía. Por ejemplo, los estándares para usar gases lacrimógenos pueden diferir entre países y culturas según cómo se defina qué es una manifestación pública controlada o incontrolada. Y la aplicación de castigos físicos directos por parte de la policía puede estar modulada por las percepciones que se tengan sobre la eficacia del sistema de justicia penal. Todas estas consideraciones hacen que la discusión sobre el uso de la fuerza física policial sea siempre actual y con múltiples implicaciones, así como es difícil llevarla a cabo con una visión reduccionista y exclusivamente moral. 2. Factores vinculados al uso excesivo de la fuerza policial en la literatura de países industrializados y latinoamericanos En Estados Unidos existe investigación abundante sobre los factores organizacionales, personales y situacionales que se encuentran asociados al uso de la fuerza física por parte de la policía. En un amplio ensayo, Geller y Scott (1991: 453)3 destacaron las condiciones que favorecen la acción de disparar contra los ciudadanos: funcionarios blancos, en actos de servicio, contra personas negras en áreas de alta tasa delictiva, con ocasión de llamadas por robos u otras situaciones que envuelven delincuentes armados. La raza de las víctimas, que sugiere un desbalance en las fatalidades resultantes, parece estar vinculada con otras condiciones como sospechosos armados o la amenaza percibida por parte de los funcionarios policiales, si bien disparos contra personas desarmadas no son del todo excepcionales (Geller y Scott, 1991: 455, 457)4. Por otra parte, las denominadas llamadas por situaciones perturbadoras (como casos de personas agitadas sin clara connotación criminal) y el desempeño de los funcionarios en operaciones encubiertas o en unidades tácticas especiales parecen incrementar la probabilidad de los disparos por parte de la policía (Ibidem: 461, 469). Comentando los resultados de varios estudios, Worden sintetiza como los más exacVariables y justificaciones asociadas al uso de la fuerza por la policía: una visión comparada 3 Geller, William A. y Michael S. Scott (1991) “Deadly Force: What We Know”, en Carl B. Klockars y Stephen D. Mastrofsky (editores) Thinking about Police, Contemporary Readings. New York, Mac Graw Hill, pp. 446-476. 4 Idem. 17 5 Worden, Robert E. (1996) “The Causes of Police Brutality: Theory and Evidence on Police Use of Force”, en William A. Geller y Hans Toch (editores) Police Violence. New Haven, Yale University Press, pp. 23-51. 6 Gabaldón, Luis Gerardo y Mario Murùa (1983) “Interacción policíapúblico: activaciòn, respuesta y variables interpersonales y situacionales”, Revista Cenipec, 8: 33-72. 7 Gabaldón, Luis Gerardo y Christopher Birkbeck (1998) “Criterios situacionales de funcionarios policiales sobre el uso de la fuerza física”, Capítulo Criminológico, 26, 2, pp. 99-132. 8 Gabaldón, Luis Gerardo y Christopher Birkbeck (1996) “Estatus social, comportamiento ciudadano y violencia policial: una evaluación actitudinal en policías venezolanos”, Capítulo Criminológico, 24, 2, pp. 31-59. 9 Fridell, Lorie A. y Anthony M. Pate (1997) “Death on Patrol: Killings of American Law Enforcement Officers”,en Roger G. Dunham y Geoffrey P. Alpert (editores) Critical Issues in Policing. Prospect Heights, Waveland Press, pp. 580-608. 18 tos predictores del uso de la fuerza el antagonismo del sospechoso, su agitación o intoxicación, su pertenencia a las clases pobres, así como algunas variables situacionales como presencia de otros ciudadanos y/o funcionarios y gravedad del delito. Las características personales de los funcionarios, con excepción de la juventud y la corta experiencia, al parecer no guardan relación con la propensión hacia el uso de la fuerza física (Worden, 1996: 34-35)5. La investigación latinoamericana en esta materia no está apoyada en bases de datos confiables o en registros llevados por la policía, que en caso de existir, no son accesibles al público. A nivel situacional, algún estudio latinoamericano de observación directa sobre la policía confirma ciertos hallazgos estadounidenses, como la asociación entre fuerza física y apariencia de pertenencia a clases pobres, antagonismo ciudadano y número de funcionarios presentes (Gabaldón y Murúa, 1983)6. Otras investigaciones sugieren que las variables asociadas con el uso de la fuerza van más allá de los prejuicios de clase, la resistencia o la coalición funcional. En un estudio llevado a cabo a través de 50 entrevistas con oficiales policiales supervisores en una ciudad del sudoeste de Venezuela, determinamos que la percibida habilidad en el ciudadano para introducir un reclamo exitoso es un predictor significativo de la decisión de utilizar menos fuerza por parte de la policía (Gabaldón y Birkbeck, 1998: 122-125)7. En una evaluación ulterior sobre disposiciones hacia el uso de la fuerza física, utilizando situaciones hipotéticas representativas de agresión, resistencia e insultos, pudimos constatar que, si bien el comportamiento agresivo de parte del ciudadano es el que mejor predice tal disposición, las percepciones de baja respetabilidad y baja influencia se encuentran también asociadas a ella, en el continuo entre conversación, restricción física, uso de puños, del bastón de mando y del arma de fuego (Gabaldón y Birkbeck, 1996)8. Las situaciones de riesgo e incertidumbre parecen importantes para la explicación del uso de la fuerza por parte de la policía. En una amplia evaluación de los casos atinentes a 713 policías muertos entre 1983 y 1992 en Estados Unidos, Fridell y Pate (1997: 586, 588)9 encontraron que un 40% implicó un contacto primario con el atacante y 56% de las muertes policiales ocurrieron a corta distancia del agresor, lo cual sugiere que el riesgo implícito en cada situación pudo haber sido subestimado por los policías. La percepción y presencia misma de la situación de riesgo puede también variar entre culturas y países. La proporción entre muertes civiles y policiales ha sido estimada, para Estados Unidos, en alrededor de 7 a 1 (Chevigny, 1991: 192)10. Chevigny (1991: 206, 209)11 ha estimado dicha proporción en cerca de 12 a 1 para Buenos Aires, entre 1983 y 1985, y en cerca de 10 a 1 Uso progressivo da força: dilemas e desafios para el estado de Sao Paulo, Brasil, entre 1982 y 1987. Una estimación reciente para Venezuela indica una relación entre civiles muertos por cada policía de 11 a 1 para 2005 (Antillano, 2007: 108)12. La investigación cualitativa en América latina muestra que el riesgo, el extrañamiento y la oposición entre los ciudadanos y la policía es una percepción bastante extendida. Luego de entrevistar a 25 policías en Guadalajara, México, entre 1999 y 2000, Suárez de Garay (2006: 201, 220, 290)13 encontró extenso desánimo por no encontrarse preparados para enfrentar confrontaciones armadas, miedo asociado a las tareas sin suficiente información contextual y excesivo uso de la coacción como consecuencia de stress y del riesgo representado por los ciudadanos resistiendo el arresto policial. Paes Machado y Vilar Noronha (2002)14 hablan de “la gente contra la policía” cuando analizan las entrevistas con los residentes pobres de un barrio en la ciudad de Salvador, Brasil, y describen las expectativas ciudadanas hacia el uso de la fuerza policial contra “marginales”, a la vez que la desconfianza hacia el desempeño policial hacia los “buenos ciudadanos”. Por su parte Santos (1992: 138, 144)15, refiriéndose al caso venezolano, concluye que amplios sectores de la población apoyan las redadas policiales que coliden con los derechos humanos, si bien se encuentran en una relación de hostilidad con la policía, donde la desconfianza y la sospecha son comunes. La incertidumbre es una variable que debe ser considerada seriamente para la explicación y el control del uso de la fuerza por parte de la policía, al menos esa fuerza que no se aplica como consecuencia de premeditación y planificación. Así, la predominancia de los disparos a corta distancia y las amenazas percibidas por los funcionarios (Blumberg, 198916, Alpert, 199717), sugieren aproximaciones descuidadas por parte de la policía de consecuencias inesperadas. Los robos y las llamadas por situaciones de perturbación, así como la prevalencia de funcionarios de civil o en tareas encubiertas en los disparos policiales (Geller y Scott, 1991: 459, 451)18 pueden indicar situaciones en las cuales las reacciones de las personas envueltas no fueron fácilmente anticipadas o en las cuales la identidad disimulada del funcionario impidió la rápida sumisión del sospechoso. La predominancia del uso de la fuerza entre los departamentos policiales mejor organizados (Worden, 1996: 4519; Birkbeck, Gabaldón y Norris, 200320) podría indicar protocolos más rígidos para la aproximación de situaciones frente a las cuales se busca una solución más rápida y menos negociada, en casos de resistencia u oposición. Entre los autores latinoamericanos las consideraciones de la incertidumbre y el riesgo no han pasado desapercibidas, si bien Variables y justificaciones asociadas al uso de la fuerza por la policía: una visión comparada 10 Chevigny, Paul (1991) “Police deadly force as social control: Jamaica, Brazil and Argentina” en Martha K. Huggins (editora) Vigilantism and the State in Modern Latin America. New York, Praeger, pp. 189-217. 11 Idem. 12 Antillano, Andrés (2007) “Características de la policía en Venezuela”,en Luis Gerardo Gabaldón y Andrés Antillano (editores), La Policía venezolana: desarrollo institucional y perspectivas de reforma al inicio del tercer milenio ( vol I.) Caracas, Comisión Nacional para la Reforma policial, pp. 65-158. 13 Suárez de Garay, María Eugenia (2006) Los policías: una averiguación antropológica. Guadalajara. Universidad de Guadalajara. 14 Paes Machado, Eduardo, Ceci Vilar Noronha e Sergio Abreu (2006) “Relatorio Preliminar do Projeto sobre o uso da forca policial, Brasil”, pp. 111 (mimeo) 19 no se articulan siempre con propuestas explícitas. Suárez de Garay (2006: 219)21 sostiene que la impredecibilidad y el miedo contribuyen a la motivación policial hacia la destrucción y la agresividad. Por su parte, Paes Machado y Vilar Noronha (2002: 68, 71)22 encontraron amplio acuerdo entre funcionarios y ciudadanos sobre la respuesta violenta policial hacia la violencia criminal, considerando en un caso que, sintiéndose los propios policías amenazados por informantes u otras personas de condición marginal, aquéllos podrían aplicar la supresión física como forma de “eliminación rápida” de archivos comprometedores. 15 Santos, Tamara (1992) Violencia criminal y violencia policial en Venezuela. Maracaibo. Instituto de Criminología. Universidad del Zulia. 16 Blumberg, Mark (1997) “Controlling the police use of deadly force: Assessing two decades of progress”, en Roger G. Dunham y Geoffrey P. Alpert (editores) Critical Issues in Policing. Prospect Heights, Waveland Press, pp. 580-608. 17 Alpert, Gordon P. (1997) “Police use of deadly force: The Miami experience”, en Roger G. Dunham y Geoffrey P. Alpert (editores) Critical Issues in Policing. Prospect Heights, Waveland Press, pp. 580-608 20 3. Las justificaciones frente al uso de la fuerza según los policías en diversos países No es frecuente la investigación que se dirige a los propios policías para indagar sus apreciaciones y percepciones sobre el uso de la fuerza física. A partir de 200123 convocamos a un proyecto internacional comparado para explorar los marcos normativos y las justificaciones empleadas por los funcionarios policiales para el uso de la fuerza física (Véase, Gabaldón y Birkbeck, 2001 , cap. 1 y Stenning et. al., 2009)24. Los datos fueron recogidos por investigadores independientes a través de grupos focales adelantados entre 2003 y 2005 con policías en Alemania, Australia, Brasil, Holanda, Inglaterra y Venezuela. Se utilizó un escenario hipotético común que describe un encuentro entre dos policías y dos sospechosos, en una situación de un automóvil aparentemente robado y consumo de marihuana, que progresa hacia una situación de insultos a la policía, escape, persecución y enfrentamiento armado. Una revisión de las razones esgrimidas para el uso de la fuerza por los policías de los diversos países en las diversas fases del escenario permite clasificarlas en instrumentales y simbólicas, según el significado que asume el uso de la fuerza. Por otro lado, a acuerdo al argumento presentado para expresarlas, las justificacións pueden distinguirse entre aquellas de carácter técnico y con fundamentación interna (esto es, ancladas en manuales y procedimientos) y aquellas de sentido común y con fundamentación externa (esto es, ancladas en percepciones sobre lo que piensa el común de la gente). Las razones instrumentales tienen que ver con los dos objetivos legales y estatutarios admitidos para el uso de la fuerza física por parte de la policía: defensa y neutralización de una persona que Uso progressivo da força: dilemas e desafios representa alguna amenaza. Las razones simbólicas, por otro lado, tienen que ver con la afirmación de la propia identidad, su rol en la comunidad y el efecto de demostración que genera la policía cuando actúa. Por otro lado, las justificaciones técnicas e internas guardan relación con parámetros de desempeño profesionales y eficientistas, mientras las justificaciones de sentido común y externas se encuentran vinculadas a las expectativas percibidas por la policía entre la población sobre su desempeño. Una comparación entre los diversos países ayuda a entender la variedad de factores que intervienen en el uso de la fuerza, las constantes y también las diferencias que, de acuerdo al entorno cultural e institucional, presentan los diversos cuerpos de policía (Véase, Gabaldón, 2006)25. En este sentido, las razones empleadas por los policías alemanes para usar la fuerza guardan relación predominante con la afirmación de su autoridad (25,5%) y con el efecto de demostración de su presencia ante la comunidad (10,9%), lo cual implica una dimensión predominantemente simbólica, mientras que la defensa propia (10,9%) y la neutralización del sospechoso (5,5%) fueron relativamente menos frecuentes. Entre las razones aducidas para no usar la fuerza pareciera haber un equilibrio entre lo interno/profesional, representado por el propósito de evitar la escalada de un conflicto y lo inconcluyente de un procedimiento (21,8%), y lo externo/de sentido común, representado por el evitar daños a terceros inocentes y evitar reclamos (25,4%). Estas tendencias sugieren un modelo policial sensible al apoyo externo ciudadano, antes que autorregulado por criterios estrictamente profesionales y autónomos. Los policías australianos se inclinan en el uso de la fuerza claramente por las razones instrumentales, representadas por el propósito de neutralización del sospechoso (32,7%) seguido de la defensa propia (11,5%). Las razones de orden simbólico son claramente minoritarias: afirmar la autoridad en un 5,8% y efecto de demostración ante la comunidad, 1,9%. Entre las razones esgrimidas para no utilizar la fuerza, predomina la dimensión interna/profesional (evitar la escalada del conflicto, 26,9% y procedimiento inconcluyente, 3,8%) sobre la dimensión externa/de sentido común (evitar daños a terceros inocentes, 17,3%), sin que se manifieste alguna preocupación por evitar los reclamos ciudadanos. Entre los policías holandeses también existe una clara orientación hacia el uso instrumental de la fuerza (neutralización del sospechoso, 25,8% y defensa propia, 12,1%) antes hacia su uso simbólico (afirmación de autoridad, 15,3%, sin menciones al efecto deVariables y justificaciones asociadas al uso de la fuerza por la policía: una visión comparada 18 Ibidem. 19 Ibidem. 20 Birkbeck, Christopher, Luis Gerardo Gabaldón y Michael Norris (2003) “La disposición de usar la fuerza contra el ciudadano: un estudio de la policía en cuatro ciudades de las Américas”, Capítulo Criminológico, 31, 2, pp. 33-77. 21 Ibidem. 22 Paes Machado, Eduardo y Ceci Vilar Noronha (2002) “Policing the Brazilian Poor: Resistance to and Acceptance of Police Brutality in Urban Popular Classes (Salvador, Brazil)”, International Criminal Justice Review, 12, pp. 53-76. 23 Gabaldón, Luis Gerardo y Christopher Birkbeck (2001) (editores) Policía y fuerza física en perspectiva intercultural. Caracas. Nueva Sociedad. 21 24 Stenning, Philip, Christopher Birkbeck, Otto Andang, David Baker, Thomas Feltes, Luis Gerardo Gabaldón, Maki Haberfeld, Eduardo Paes Machado, y P.A.J. Waddington (2009) “Researching the use of force: the background of the international Project”, Crime, Law and Social Change (DOI: 10.1007/s/1061008-9177-6). 25 Gabaldón, Luis Gerardo (2006) “Justificaciones policiales para el uso de la fuerza física”, en Soraya El Achkar y Luis Gerardo Gabaldón (editores) Reforma Policial: una mirada desde afuera y desde adentro. Caracas, Comisión Nacional para la Reforma Policial, pp. 160-164. 26 Ibidem. 27 Ibidem. 22 mostración hacia la comunidad. Por su parte, en la no utilización de la fuerza prevalecen claramente las razones de índole interna/profesional (evitar la escalada, 16,9% y procedimiento inconcluyente, 12,1%) frente a las razones de índole externa/sentido común (evitar daños a terceros inocentes, 15,1% y reclamos, 5,6%). Este modelo, que se asemeja al australiano, sugiere orientación predominantemente técnica y autonomía frente a la presión externa. Los policías ingleses muestran una preferencia por las razones simbólicas para el uso de la fuerza, en particular la afirmación de la autoridad (29,6%), mientras entre las razones para no usarla predominan claramente las razones técnicas internas (evitar la escalada del conflicto, 22,2% y procedimiento inconcluyente, 22,2%) sobre las de sentido común externo, como evitar daños a terceros (11,1%). Ello sugiere, también, un modelo más autónomo de policía. En cuanto a los policías venezolanos, el patrón observado es una fuerte inclinación hacia las razones instrumentales para el uso de la fuerza (neutralización, 29,7% y defensa propia, 27%) frente a las razones simbólicas (afirmación de autoridad, 6,3% y demostración hacia la comunidad, 4,5%). Las razones para no utilizar la fuerza se inclinan hacia la dimensión externa/sentido común (evitar daños a terceros, 14,4% y evitar reclamos, 9,%), antes que hacia la dimensión interna/profesional (evitar escalada, 6,3% y procedimiento inconcluyente, 1,8%). Esto sugiere que aunque el propósito en el uso de la fuerza se defiende como fundamentalmente instrumental, existe una gran dependencia de las audiencias externas para el soporte policial. 4. La fuerza física y sus problemas específicos entre los policías brasileños El estudio internacional sobre el uso de la fuerza física policial contó, para el caso de Brasil, con siete grupos focales efectuados con policías militares (5) y policías civiles (2) entre 2002 y 2005, comprendiendo oficiales superiores y subalternos, con un promedio de duración de dos horas cada uno, y que ha arrojado una extensa relatoría (Véase, Paes Machado, Vilar Noroña y Abreu, 2006)26. Los policías brasileños, si bien comparten muchas apreciaciones con sus colegas de otros países, tienden a enfatizar las situaciones de incertidumbre, amenaza, riesgo y oposición de los ciudadanos en sus narrativas sobre encuentros con sospechosos. Los policías de Bahia anticiparon muchas veces el uso de la fuerza en condiciones de abierto riesgo Uso progressivo da força: dilemas e desafios para ciudadanos inocentes, con el fin de evitar que una situación, de aparente escasa gravedad, pudiese escalar y salir de sus manos. En este sentido, varios policías indicaron que dispararían a los cauchos del vehículo en fuga para evitar que los jóvenes huyesen, tomando en consideración incluso, antes que el eventual riesgo de herir o maltratar a personas inocentes, la necesidad de ahorrar municiones, lo cual sugiere un ambiente de trabajo precario en cuanto a los suministros del equipamiento policial y el control o supervisión por parte de los superiores (Paes Machado et. al., 2006: 35, 39)27. Cuando, dentro del escenario, se produce la confrontación abierta con los sospechosos, estos policías indican, en caso de disparar, cuidar de no herir a inocentes (Ibidem: 42-43). Ello sugiere que la justificación legal para la utilización del arma de fuego aparece como necesaria en el supuesto de una muerte intencional del sospechoso, a quien hay que diferenciar claramente del no sospechoso, antes que como requerida para el uso extremo del arma de fuego, cualquiera sea el posible resultado del disparo. En los comentarios de los policías bahianos se encuentran frecuentemente las ideas de la amenaza y del imprevisto, que pueden determinar que una situación más bien rutinaria y banal, como la que representan dos jóvenes consumiendo marihuana, sea percibida como una situación de riesgo extremo para la vida del policía: ...a gente não pode ir na hipótese de que apenas são dois elementos que estão fumando maconha a gente tem que ir na hipótese do pior (falas emboladas) os marginais que tem que tão armados , já que a gente vai abordar , a segurança diz o seguinte vai abordar dois elementos, no mínimo a gente tem que tá um número maior que são tem dois elementos no carro e tem dois policiais, a segurança o correto é não abordar chamar um reforço , é se preparando da maneira maior do que aquele, do que aquele veiculo fazer abordagem. (Paes Machado, et al, 2006, Oficial, Letra E) ...surpresa, e também outra questão é a situação de um veiculo parado como estar esse ai na, na historia e até de se bater com um em movimento que não ta esperando ainda tem esse detalhe também que isso acontece é comumente do policial ser surpreendido com marginal inclusive é ser atingido, alvejado... (...) do veículo...( Paes Machado et al, 2006, Oficial, Letra H). La incertidumbre se extiende a las personas circundantes, de quienes se desconfía abiertamente, como lo recoge el siguiente comentario: H tocou que é a população ta vendo até pra que não se cause até uma antipatia, um constrangimento tem que ser feito com essa rapidez, mas claro preservando a segurança. (Paes Machado et al., 2006, Oficial, Letra C). Variables y justificaciones asociadas al uso de la fuerza por la policía: una visión comparada 23 O como lo expresa también un policía de Rio Grande do Sul: ...técnica pra mim ela nunca vai funcionar, nunca vai funcionar de maneira eficaz, eficiente por que a técnica é feita de maneira teórica geralmente por pessoas que muitas vezes não vão na área pra ver a verdadeira situação. Então a técnica é usada pra uma abordagem com o pessoal de classe alta de um determinado bairro, não é a mesma a ser usada pra um pessoal de classe baixa numa determinada situação e outra coisa também que me faz solucionar bem que a técnica nessa cidade algumas coisas, algumas coisas, algumas exceções foi que ela se realiza, pra que ela seja feita, que alcança (...) um final. (Paes Machado et al., 2006, Oficial, Letra D). Aí ele utilizou a técnica, utilizou a técnica que é: motorista coloque a chave em cima do capu (...); motorista saia pela porta do carona, e foi fazendo isso fazendo aquilo tal. O padrão como ensina na Academia, o soldado chegou do meu lado e fez: na segunda abordagem que ele tiver dessa forma, de noite, ele vai tomar três tiros na cara, fale com ele pra não fazer mais assim porque se aqui na Academia ensina assim. (Paes Machado et al.,2006, Oficial, Letra D). Eu fiz um curso que, eu fiz um curso de sete meses e nesse curso de sete meses de defesa pessoal, só eram 2:00 hs por semana. Dá pra aprender o quê? Nada. O treinamento de tiro, não tinha treinamento de atirar com pistola. Não tive, quando chegou a pistola nova da Polícia Militar eles colocaram a pistola sem dar treinamento a ninguém. Tinha gente que colocava a munição da pistola ao contrário, o carregador da munição do fundo da cápsula, colocava ao contrário e depois queria colocar a pistola ao contrário. Como é que pode dar uma arma sem preparo ao policial? Vai devagar, eu treinei, pratiquei três anos de capoeira e dois anos de lutas marciais,... (Paes Machado et al. 2006, Praça, Letra L). La situación de amenaza extrema, quizás sobre estimada, así como la crítica del entrenamiento recibido para el uso de la fuerza, resultaron también manifiestas entre los policías de Rio Grande do Sul, como se desprende de los siguientes comentarios: (...) provavelmente, vai reagir contra ele, porque mais que tu... a gente não teria outra reação. Tu já tá com a descarga de adrenalina muito alta. Já te compõe e no momento que tu fechou e ele fechou a visão tua. Existe aquela questão do... como é que é, tu tá sendo acuado. Ele vai te acuar, é a vida dele contra ti. Se ele, mesmo que o próximo passo dele seja largar a arma, mas ele pediu pra morrer. Ele já deveria ter largado, dando as costas assim, tchau. Mas ele virou pra mim... (Paes Machado et al. 2006, Oficial, letra B] na época que eu entrei, em torno de dez anos, eles não explicavam a forma de que eu deveria, a real forma de que eu deveria fazer o meu trabalho numa situação dessas. Porque sempre que perguntado, havia algumas respostas evasivas, não, o uso da força, ah, vai lá e tira o cara no braço (Paes Machado et al., 2006, Policial, letra C). 24 Uso progressivo da força: dilemas e desafios Los resultados de los grupos focales con los policías brasileños sugieren que las condiciones de incertidumbre y riesgo que, de alguna manera, existen en el trabajo policial, se ven potenciadas o magnificadas por fallas de entrenamiento y por oposición o falta de colaboración de los ciudadanos. Los datos para Venezuela, obtenidos con los grupos focales, no son muy distintos a este respecto. Como los cuerpos policiales en estos países parecen ser fuertemente dependientes de las audiencias externas, tanto políticas como sociales, para medir su desempeño, y dado que la participación ciudadana en el control de la policía parece ser cada día una exigencia importante, se requiere un enfoque complejo hacia el uso de la fuerza física por parte de la policía. Este enfoque deberá tomar en cuenta niveles de incertidumbre y riesgo en el desempeño policial, así como entrenamiento, control y supervisión de desempeño adecuados, que permitan disminuir la violencia e incrementar la satisfacción de los ciudadanos. Conclusiones y recomendaciones Los hallazgos de las investigaciones sobre la policía en América latina indican que se requiere mucho trabajo para legitimar a la policía, colocándola en posición de mayor aceptabilidad y menor resistencia por parte de la población. Esto comprende, aunque no se agote en ello, el entrenarla adecuadamente y disminuir los niveles de incertidumbre y riesgo que se encuentran asociados a la utilización no premeditada y usual de la fuerza física por parte de la policía. La educación y formación son importantes, aunque no es suficiente la instrucción formal y académica sino el entrenamiento dinámico con base a manuales sobre uso progresivo y diferenciado de la fuerza que enfaticen los componentes dinámicos, móviles y flexibles de las situaciones que favorecen la utilización de la fuerza. Se requiere, además, que los protocolos y manuales sobre esta utilización sean alimentados, difundidos y apropiados por las comunidades para ejercer un control compartido. Más allá del entrenamiento se debe trabajar por una ampliación del espacio social de la policía, para que sea una instancia mayormente reconocida, que genere menos resistencia y oposición en su funcionamiento cotidiano y que pueda operar con buenas prácticas y menores niveles de violencia, a fin de incrementar su legitimidad como instancia de control social formal. Variables y justificaciones asociadas al uso de la fuerza por la policía: una visión comparada 25 A importância da formação na mudança de paradigmas no uso da força Fábio Manhães Xavier* 1. Introdução * Coronel da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais. 26 O processo de construção doutrinária do tema “Uso da Força pelos encarregados da aplicação da Lei” passa pelo correto entendimento sobre sua necessária incorporação à legislação nacional e integração nos procedimentos operacionais das organizações do sistema de segurança pública, contemplando um imprescindível entendimento das normas internacionais sobre o Uso da Força e sua aplicação. A legislação nacional necessita estabelecer os limites de atuação dos agentes, condições para o uso da força e de armas de fogo, definindo, pois, as atribuições do cargo desempenhado e delineando o perfil do profissional no cumprimento de suas funções. A atuação dos Encarregados de Aplicação da Lei é matéria discutida de forma ampla, porém, ainda carente de legislação vinculante que proporcione sua correta inserção nos conteúdos normativos e jurídicos. Atualmente, no Brasil, as normas relacionadas ao Uso da Força pelos encarregados da aplicação da lei, estabelecidas de acordo com as doutrinas internacionais de Direitos Humanos, possuem caráter informativo e consultivo para a elaboração do conteúdo afeto ao assunto em nosso país, por meio de manuais de procedimento das polícias, não sendo contempladas na legislação nacional, que trata de tais instituições policiais (organização, poderes, faculdades e limites). Dentre as principais normas internacionais atinentes ao Uso da Força, o Código de Conduta dos Encarregados de Aplicação da Lei (CCEAL), adotado pela Assembléia Geral das Nações Unidas em sua Resolução 34/169, de 17 de dezembro de 1979, demonstra, sob o enfoque da ética profissional, que a natureza das funções dos encarregados da aplicação da lei na defesa da ordem pública e a maneira pela qual essas funções são exercidas, provocam um impacto direto na qualidade de vida dos indivíduos e da sociedade, constituindo, pois, variável relevante no âmbito da segurança pública. No Seminário Temático “Uso Progressivo da Força: Dilemas e Desafios”, que se constitui em uma das estratégias de mobilização Uso progressivo da força: dilemas e desafios e etapa preparatória para a 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública, propõe-se desenvolver o tema de forma a permitir a mudança de comportamentos e a quebra de paradigmas, tendo como veículo desta transformação a educação policial, compreendendo a FORMAÇÃO E TREINAMENTO. Porém, antes de educar e sedimentar o produto do conhecimento em normas jurídicas é necessário construir a doutrina, corrigindo aspectos que atualmente conduzem a distorções no entendimento do correto uso da força, estabelecendo definições pautadas nos Princípios Básicos sobre Uso da Força e Arma de Fogo, no Código de Conduta dos Encarregados de Aplicação da Lei e nas normas internacionais que versam sobre os Direitos Humanos. 2. “Uso progressivo da força”: definição “Uso Progressivo da Força” é a terminologia mais adequada para conceituar a forma de atuação dos Encarregados de Aplicação da Lei (EAL)? Para responder tal questão é necessário, primeiramente, uma breve contextualização quanto à origem desta expressão, o significado da palavra “progressivo” quando associada ao “uso da força”, bem como a análise da terminologia utilizada nos Princípios Básicos sobre o Uso da Força e Armas de Fogo. 2.1. Origem e conceito da palavra “progressão” associada ao uso da força Visando uma contextualização sobre o tema, entende-se pertinente apresentar os modelos doutrinários que tratam sobre o uso da força: a) Modelo “FLETC” (1994/2001): aplicado pelo “Centro de Treinamento da Polícia Federal de Glynco”, Geórgia, EUA; b) ”GILLESPPIE” (1998): apresentado pelo livro “Police – Use of force – A Line Officer’s Guide”; c) “REMSBERG” (1999): apresentado no livro: “The Tactical Edge – Surviing High – Risk Patrol”; d) “NASHVILLE” (1996): utilizado pela Polícia Metropolitana de Nashville, EUA; e) Modelo “PHOENIX” (1996): utilizado pelo Departamento de Policia de Phoenix, EUA; f) “CANADENSE” (Década de 90): utilizado pela Policia Canadense. A importância da formação na mudança de paradigmas no uso da força 27 1 SWILLIANS, Dave. Force Continuum – The Concept of And Application During Self Defense. Disponível em <http://myweb. wco.com/ ~wlmssite/force. html> Acesso em 13 nov 2001. 28 Nos antecedentes da criação doutrinária acerca do Uso da Força, tudo aquilo que foi investido no desenvolvimento de seus conceitos necessita uma minuciosa análise. Para bem capitularmos o tema, observada a amplitude e importância do assunto, em termos de macro-políticas doutrinárias policiais, destacam-se as Escolas Americana, Européia e a Israelense, com conteúdos diferenciados de acordo com as questões históricas, sociais e culturais de cada construção. A doutrina do uso da força aplicada à formação profissional dos encarregados de aplicação da lei no Brasil, ao trazer do conceito Canadense o termo “progressivo”, em uma tradução equivocada do original Force Continuum (série de força contínua), considerou ao tema a idéia de uso da força crescente, conforme vemos nos conceitos: - Progressivo, como expresso no Dicionário Eletrônico Houaiss, significa “aquilo que progride”; “que atravessa sucessivamente cada etapa de um processo em que há aumento, crescimento, agravamento”; “que procede passo a passo, rumo a um desenvolvimento”; - Para Williams (2001)1, o uso progressivo da força é definido como uma ferramenta para ajudar na determinação das técnicas ou níveis de força apropriadas para as várias situações que possam surgir. É uma lista de técnicas que possuem uma graduação, que vai das mais “fracas” ou menos violentas, até as mais “fortes” ou mais extremadas, como a força letal. O uso da força no controle de suspeitos ou na solução de conflitos por meio da intervenção policial ocorre de forma gradativa, devendo obedecer aos preceitos da legalidade, proporcionalidade, necessidade e conveniência. Contudo, não quer dizer que seja a progressão o único caminho a ser percorrido; caso, por exemplo, converta-se o suspeito ao estado de cooperação requerida pelo policial, o uso da força não irá aumentar, podendo ser mantido o mesmo nível de força usada ou até mesmo retroceder. Neste contexto, a palavra “progressivo”, associada ao uso da força, induz a uma interpretação equivocada da expressão, apontando para um processo de aumento necessário do uso da força, até que seja alcançado o nível extremo; tendo o suspeito atingido o último nível de agressão, capaz de alcançar a letalidade, o nível de força a ser empregado como resposta pelo policial seria obrigatoriamente o que conduza a um resultado também letal. Como responsáveis pelas mudanças nos paradigmas sobre o uso da força, é necessário que pensemos sobre as seguintes questões: seria o comportamento do cidadão infrator estático? Uso progressivo da força: dilemas e desafios Este comportamento não poderia variar do nível agressivo para o nível cooperativo? Não teria ele a oportunidade de rever seus atos, mudando seu comportamento diante da intervenção policial ou por motivos supervenientes? 2.2. Aplicação de terminologia aliada à tradução da versão original dos Princípios Básicos sobre Uso da Força e Armas de Fogo (PBUFAF) Os Princípios Básicos sobre o Uso da Força e Armas de Fogo (P.B.U.F.A.F.) foram adotados pelo Oitavo Congresso das Nações Unidas sobre a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Infratores, realizado em Havana, Cuba, de 27 de agosto a 07 de setembro de 1990. Este instrumento tem como objetivo proporcionar normas orientadoras aos Estados-membros na tarefa de assegurar e promover o papel adequado dos encarregados da aplicação da lei. Em seu preâmbulo, o documento originado no mencionado Congresso recomenda que se adotem medidas no plano nacional, regional e internacional a respeito dos Princípios Básicos e sua aplicação, levando em conta as circunstâncias políticas, econômicas, sociais e culturais e as tradições de cada país. Os princípios estabelecidos devem ser levados em consideração e respeitados pelos governos no contexto da legislação e da prática nacional, e levados ao conhecimento dos encarregados da aplicação da lei assim como de magistrados, promotores, advogados, membros do executivo e legislativo e do público em geral. O Princípio Básico 02, tanto na versão original, em inglês, quanto nas versões em espanhol e português, aborda o tema do uso da força utilizando a expressão “Uso Diferenciado da Força”, apontando para a necessidade de estarem os aplicadores da lei aptos a usar de forma diferenciada a força e os recursos: “2. Governments and law enforcement agencies should develop a range of means as broad as possible and equip law enforcement officials with various types of weapons and ammunition that would allow for a differentiated use of force and firearms. These should include the development of non-lethal incapacitating weapons for use in appropriate situations, with a view to increasingly restraining the application of means capable of causing death or injury to persons. For the same purpose, it should also be possible for law enforcement officials to be equipped with self-defensive equipment such as shields, helmets, bullet-proof vests and bullet-proof means of transportation, in order to decrease the need to use weapons of any kind.” “2. Os Governos e os organismos de aplicação da lei devem desenvolver um leque de meios tão amplo quanto possível e habilitar os funcionários responsáveis pela aplicação da lei com diversos tipos de armas e de munições, que permitam uma utilização diferenciada da A importância da formação na mudança de paradigmas no uso da força 29 força e das armas de fogo. Para o efeito, deveriam ser desenvolvidas armas neutralizadoras não letais, para uso nas situações apropriadas, tendo em vista limitar de modo crescente o recurso a meios que possam causar a morte ou lesões corporais. Para o mesmo efeito, deveria também ser possível dotar os funcionários responsáveis pela aplicação da lei de equipamentos defensivos, tais como escudos, viseiras, coletes antibalas e veículos blindados, a fim de se reduzir a necessidade de utilização de qualquer tipo de armas.” Diante de uma detida leitura dos Princípios Básicos sobre o Uso da Força e dos artigos do Código de Conduta dos Encarregados da Aplicação da Lei, percebese que em nenhum momento o legislador citou o termo “progressão” associado ao uso da força; cita, sim, o termo “diferenciado” como qualificador do uso da força, restando transparente a idéia de uso adequado, proporcional e coerente e não necessariamente progressivo, crescente, ascensional. Deve-se considerar também que, precedendo os Princípios Básicos de Uso da Força, estabelecidos em 1990, aos modelos doutrinários sobre o uso da força, citados anteriormente, devem estes estar norteados pelos princípios, sustentando sob seus pilares toda a sua argumentação teórica. O termo “progressivo” não deve fundamentar a metodologia do uso da força 3. Interpretação das terminologias: “usar” e “disparar” face aos PBUFAF É latente a importância e a complexidade do trabalho dos encarregados de aplicação da lei, que tem o papel de proteger a vida, a liberdade e prover a segurança das pessoas. Portanto, é de suma importância à capacitação, qualificação e o treinamento desses agentes, visando garantir a efetiviade de sua ação quando em contato direto com a sociedade em suas intervenções operacionais. A discussão a seguir trata de um estudo pormenorizado sobre o Princípio Básico nº 09, que descreve as situações em que o Engarregado de Aplicação da Lei (EAL) deverá usar armas de fogo. A pesquisa realizada objetiva esclarecer o termo “USAR”, citado no referido Princípio Básico, dentro do contexto operacional dos Encarregados da Aplicação da Lei. “9. Os responsáveis pela aplicação da lei não USARÃO armas de fogo contra pessoas, exceto em casos de legítima defesa própria ou de 30 Uso progressivo da força: dilemas e desafios outrem contra ameaça iminente de morte ou ferimento grave; para impedir a perpetração de crime particularmente grave que envolva séria ameaça à vida; para efetuar a prisão de alguém que represente tal risco e resista à autoridade; ou para impedir a fuga de tal indivíduo, e isso apenas nos casos em que outros meios menos extremados revelem-se insuficientes para atingir tais objetivos. Em qualquer caso, o uso letal intencional de armas de fogo só poderá ser feito quando estritamente inevitável à proteção da vida.” (Princípio Básico do Uso da Força e Armas de Fogo nº 09) Inicialmente surge, na perspectiva do profissional de segurança pública, que o termo “usar” significa “disparar” a arma. Considerando que a atuação policial se desenvolve em um universo complexo, envolvendo situações com diferentes graus de risco, seria aceitável admitir que o termo “usar” se restringiria apenas à ação policial de disparar uma arma de fogo? O que significa, portanto, o termo “usar” descrito no princípio básico nº 09 dentro do contexto operacional dos encarregados de aplicação da lei? O Dicionário da Língua Portuguesa Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e o Dicionário Eletrônico Michaelis definem a palavra “usar” como fazer uso de, empregar e utilizar, dentre outras definições que não se adequam a realidade operacional. A tradução do verbo “usar” para inglês é “to use” e para o espanhol é “emplear”. Ao ampliar os significados do verbo “usar” para o contexto policial, verifica-se que, quando o EAL saca ou até mesmo aponta sua arma para um indivíduo está efetivamente “usando” sua arma de fogo sem, contudo, efetuar disparos. Estas ações são de caráter dissuasivo, bastante comuns no cotidiano policial e até recomendáveis em muitos casos. Desta forma pode-se afirmar que o EAL usou (mas nao disparou) a arma de fogo para dissuadir o autor. Numa outra situação, onde há ameaça iminente de morte ou ferimento grave, a ação“usar”tem um caráter efetivo/repressivo do uso da arma de fogo, ou seja, usar, neste caso, se refere a disparar a arma. Sacar e apontar (Caráter DISSUASIVO) Usar Disparar (Caráter EFETIVO) Fonte: Dicionário Eletrônico Michaelis Aurélio Conclui-se que o verbo “usar” (armas de fogo) compreende outras interpretações que não somente a ação “disparar”. Analisando o Princípio Básico nº 09, verifica-se três situações onde os EAL poderão usar armas de fogo: A importância da formação na mudança de paradigmas no uso da força 31 “Os encarregados de aplicação da lei não USARÃO armas de fogo, exceto: a) Em casos de legítima defesa ou defesa de outrem contra ameaça iminente de morte ou ferimento grave; (caráter efetivo/repressivo); b) Para impedir a perpetração de crime particularmente grave que envolva séria ameaça à vida; (caráter efetivo/repressivo e dissuasivo); c) Efetuar a prisão de alguém que represente tal risco e resista à autoridade, ou para impedir a fuga de alguém que represente tal risco”. (caráter dissuasivo). Quando da análise das alíneas do Principio Básico nº 09, podese realizar os seguintes apontamentos: I. Na alínea “a”, o uso da arma de fogo tem um caráter efetivo, ou seja, a situação de ameaça iminente de morte ou ferimento grave exige uma resposta extrema do EAL. II. Na alínea “b”, tem-se tanto o caráter efetivo quanto o dissuasivo da ação de usar a arma de fogo. Exemplo da aplicação do caráter efetivo se dá quando o comando de uma operação, chegando à conclusão que o agente de seqüestro (tendo refém sob séria ameaça) não se renderá, determina a ação do atirador de elite. Um possível exemplo de caráter dissuasivo aplicável neste caso: a tomada de um refém de uma forma ocasional, na tentativa de fugir de um crime frustrado, o agente pode desistir do ato de manter o refém sob sua mira com a chegada dos policiais que estarão “usando” as suas armas, apontando-as para o infrator, havendo nesta situação o caráter dissuasivo do emprego da arma. III. Na alínea “c”, percebe-se a intenção do caráter dissuasivo do uso da arma, isto é, a ação de sacar e apontar a arma exerce um efeito psicológico sobre a ação do indivíduo de empreender fuga. Contudo, considerando que o texto é linear, ou seja, remete à letra “a”, a compreensão é que só posso empregar arma em caso de fuga, quando há perigo com risco iminente de morte ou lesões graves, tornando-o, nessa circunstância, de caráter efetivo. Entende-se que este item resta desnecessário considerando reportarse aos itens anteriores. Ao final do Princípio Básico 09, após a análise das três situações nele previstas, verifica-se, ainda, que o uso intencional letal de armas de fogo só poderá ser feito quando estritamente inevitável à proteção da vida. Para compreendermos melhor a interpretação do legislador, necessário reportar ao verbo utilizado no documento original em inglês, ou seja, “to use”. No texto original, em inglês, não há nos PBU- 32 Uso progressivo da força: dilemas e desafios FAF nenhum verbo empregado que signifique exclusivamente disparo, embora existam vários verbos que correspondem a tal ação disponíveis no idioma inglês. A esse respeito, verifica-se que apenas na letra “c” dos comentários ao art. 3º do Código de Conduta encontramos o verbo “discharge” com o contexto de sua tradução literal (disparar), quando então traz a citação do legislador, que , cada vez que uma arma de fogo for disparada, as autoridades competentes deverão ser prontamente informadas. Primeiramente, para entender o raciocínio e a intenção do legislador, analisaremos quais verbos em inglês poderiam ser relacionados com o verbo disparar. Os verbos encontrados no inglês que se referem ao verbo disparar são: To discharge 1. descarregar; descarga, tiro de espingarda ou de canhão; 2. tiros disparados simultaneamente, explosão. 1. arrancar; 2. impulsionar; impeto; To start Disparar 3. fazer um movimento brusco, estancar; 4. vir, sair, brotar repentinamente. 1. exercício de tiro, ato de atirar; To shoot 2. atirar, matar, feri com tiro atingir com tiro; 3. dar tiro, disparar arma de fogo. To fire 1. fuzilar, descarregar arma de fogo, tiroteio. Fonte: Dicionário Eletrônico Michaelis Aurélio Vejamos agora como está no original em inglês: “Law enforcement officials shall not USE firearms against persons except in self-defence or defence of others against the imminent threat of death or serious injury, to prevent the perpetration of a particularly serious crime involving grave threat to life, to arrest a person presenting such a danger and resisting their authority, or to prevent his or her escape, and only when less extreme means are insufficient to achieve these objectives. In any event, intentional lethal use of firearms may only be made when strictly unavoidable in order to protect life.” Com a leitura de ambas versões, original e traduzida, do Princípio Básico 09 é possível compreender que não houve a intenção, quando de sua elaboração, em atribuir ao verbo “usar” o caráter úniA importância da formação na mudança de paradigmas no uso da força 33 co de disparo (efetivo), mas sim possibilitar outras referências sobre sua amplitude. Em nenhum momento são citados os verbos “to discharge”, “to start”, “to shoot” ou “to fire”, de forma a restringir o significado do termo “usar”. 4. Uso da força letal O Código de Conduta dos Encarregados de Aplicação da Lei trata diretamente do uso da força pela polícia, em seu art 3º, quando estipula que os encarregados de aplicação da lei só podem empregar a força se for estritamente necessário, na medida exigida para o cumprimento do seu dever. O uso da força pelos encarregados da aplicação da lei deve ser entendido, portanto, como medida excepcional e, ao tratar da força letal, sua excepcionalidade se torna ainda maior, haja vista que o resultado pode atentar contra o “bem maior” do ser humano: a vida. Este entendimento encontra fundamento no Princípio Básico 09, que preceitua que os funcionários responsáveis pela aplicação da lei não devem fazer uso de armas de fogo contra pessoas, salvo nas circunstâncias estipuladas no aludido princípio. O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), em seu Artigo 6º, menciona o dever de proteção da vida:“O direito a vida é inerente à pessoa humana. Este direito deverá ser protegido pela lei. Ninguém poderá ser arbitrariamente privado de sua vida”. Para o uso de força letal, o policial deve ter a certeza de que este recurso é o último meio defensivo, adequado e proporcional de que dispõe para conter a agressão sofrida e atingir um objetivo legítimo. Corroborando a idéia que a força letal é recurso extremo, uma opção a ser considerada como última instância na elevação dos riscos de uma situação a ser resolvida pelo encarregado da aplicação da lei, constituindo verdadeiro ponto de exceção, os Princípios Básicos sobre o Uso da Força e Armas de Fogo fazem menção ao termo “letal” uma única vez, no final do PB 09: “In any event, intentional lethal use of firearms may only be made when strictly unavoidable in order to protect life”. Verifica-se que a tradução da versão dos PBUFAF do inglês para o português (brasileiro) vincula o qualificador “letal” à ação, e não ao instrumento: “Em qualquer caso, só devem recorrer intencionalmente à utilização letal de armas de fogo quando isso seja estritamente indispensável para proteger vidas humanas”. Entretanto, conforme a versão em espanhol, o qualificador letal está vinculada ao instrumento: “En cualquier caso, sólo se podrá 34 Uso progressivo da força: dilemas e desafios haver uso intencional de armas letales cuando sea estrictamente inevitable para proteger una vida”. Tal análise torna-se pertinente, pois, considerando a versão em espanhol, nota-se que não existe alusão ao uso intencional da força letal, mas, sim, do meio “arma letal”, tendo como possível conseqüência dos ferimentos causados, a letalidade. Assim, é necessário explorarmos este tipo de interpretação da norma, que sugere uma conceituação divergente, cabendo a seguinte indagação: “LETAL” vincula-se ao instrumento (arma), ou à ação (intenção)? Para construir esta resposta devemos trabalhar com dois pressupostos: Pressuposto 01: A intenção do policial era matar. Pressuposto 02: A morte é a conseqüência possível do meio utilizado (arma de fogo). Se a intenção do policial for a letalidade, pressuposto 01, podemos concluir que um tiro dado por um policial que atinge uma área vital do corpo do agente, mas que, por motivos supervenientes à vontade do policial, tais como: a forte compleição física do agente ou baixa capacidade de energia do projétil utilizado, que não alcançou o resultado pretendido (letalidade), restando a pessoa ferida; o policial deveria complementar a ação e efetuar disparos até concluir o objetivo inicial. Seria, o policial, uma espécie de executor, buscando o resultado “morte”? Outros fatores ainda devem ser observados para considerar o objetivo do disparo, tais como: características da arma utilizada (o tipo de munição), a região do corpo impactada e a capacidade de resistência física da pessoa afetada. Este pressuposto poderia levar à criação de novas metodologias de treinamento para uso de força letal, em que o policial seria deliberadamente treinado para matar, ainda que em circunstâncias específicas. Ao aprofundarmos sobre o tema, aparece o seguinte questionamento: deve o “ser humano” policial, profissionalmente dizendo, receber está incumbência? Tal entendimento enquadra-se nos princípios dos direitos humanos e nas primícias de um Estado Democrático de Direito? Podemos então verificar que a letalidade não seria necessariamente o resultado de uma intenção deliberada do policial que dispara sua arma de fogo. Não haveria nenhuma circunstância profissionalmente aceita no trabalho de polícia em que o disparo de arma de fogo estivesse vinculado à intenção de matar a pessoa contra quem se atira. O resultado morte estaria então como conseqüência o possível (potencialmente previsível) em decorrência do meio utilizado (arma potencialmente letal) e não atrelada à intenção do policial. A importância da formação na mudança de paradigmas no uso da força 35 Verificando o pressuposto 02 (a morte é a conseqüência possível do meio utilizado), a intenção do policial não é matar o cidadão infrator, mas, sim, fazer cessar a sua ação delituosa. Caberá ao policial, diante de uma situação extrema, onde haja o risco iminente à vida – como exemplo, vítima de seqüestro sob ameaça de disparo de arma de fogo – utilizar meio potencialmente letal para obstaculizar aquele risco iminente de morte, evitando, de forma cabal, a consumação da ameaça de morte contra a vítima. Utilizado o meio potencialmente letal, apenas ferido o cidadão infrator, deverá ser dada inequívoca e imediata assistência e o socorro médico de urgência, buscando com o mesmo afinco garantir o direito à vida ao agente contra o qual se disparou. Vê-se, pois, que a letalidade não é pretendida em nenhuma circunstância pelo policial. Aplicados ao contexto do uso da força, encontra-se no ordenamento jurídico brasileiro as seguintes excludentes de ilicitude: estrito cumprimento do dever legal, exercício regular do direito, e legítima defesa. Em nenhum momento há a expressa legitimação do uso intencional da força letal, considerando-se este resultado como o fim a que se destina a ação. No caso hipotético anterior, se for estabelecida como premissa principal a intenção de “matar” o infrator, qual seria o desfecho da ação do atirador de elite se, atingido o agressor, fique ele incapacitado mas não haja o resultado morte? É importante refletirmos que, independente das circunstâncias da ocorrência com resultado letal (homicídio praticado pelo policial), o desaguadouro legal é a justiça, que, como vimos, não ampara a intenção de matar; pelo contrário, tipifica e qualifica criminalmente tal atitude. Em decorrência dessas circunstâncias, haveria o caráter (doloso ou culposo) dessa ação com o resultado homicídio. 5. Uso da força letal e a defesa do patrimônio Um aspecto relevante da doutrina do uso da força que deve ser considerado pelos encarregados da aplicação da lei trata sobre a utilizaçao (disparos) de armas de fogo para a defesa do patrimônio. O Princípio Básico 09, em sua última parte, seria o único ponto que referencia ao uso da força letal, restringindo-o à proteção da vida e, em momento algum, faz alusão à defesa do patrimônio. É notório que a intenção do legislador não amparava algo além do bem maior: a vida, o ser humano. Não há atuação previamente descrita que faculte o uso da força letal, caberia apenas as hipóteses de ex- 36 Uso progressivo da força: dilemas e desafios cludente de ilicitude, conforme disposto no Art. 23, incisos II e III, do Código Penal. Contudo, não poderia o policial fazer uso (disparar) de arma de fogo escudando-se nas excludentes, já que a vida é um bem maior. Não existiria, portanto, amparo legal para o uso da força letal pelos EAL para proteger o patrimônio. Conclusão O esforço para a construção doutrinária sobre os paramentros de uso de força, consistente na adequação às realidades sociais economicas e culturais nacionais, sem, contudo, fugir das linhas definidas pelo documento da ONU e seu caráter manifestadamente protetivo a vida, passa, invariavelmente, pela agenda política de valorização dos órgãos encarregados pela segurança pública em suas mais variadas acepções. Nesse sentido, um aspecto de fundamental importância diz respeito ao incentivo formal para que documentos internacionais alusivos ao uso da força pelos encarregados da aplicação da lei sejam incorporados diretamente à legislação pátria ou sofram adaptações legislativas (com a devida assessoria técnica), de forma a fornecer sustentação legal às formulações doutrinárias para as polícias. No contexto das normas analisadas, ao aprofundarmos nos aspectos referentes ao uso da força pelos encarregados da aplicação da lei, há que se considerar outros tópicos que merecem ampla discussão e zelo para a construção doutrinária a respeito, uma vez que não possuem definição expressa sobre a forma de atuação em determinadas circunstâncias. Destacamos, nesse mister, que o Uso da Força, na documentação básica que versa sobre o tema, refere-se sempre ao confronto entre os encarregados da aplicação da lei e os infratores que sofrem sua ação, sem mencionar outras possibilidades que, concretamente, sabemos existir, tais como: o emprego de arma de fogo na vigilância de pessoas presas (pessoas sob custódia do Estado); disparos táticos, como, por exemplo, os efetuados com a finalidade de cobertura de companheiros, diminuir a luminosidade e/ou abrir fechadura, para distração, inquietação; disparos contra veículos em movimento; disparos de advertência – intimidativo; disparos contra animais. Algumas circunstâncias especiais merecem igualmente uma profunda análise e definição doutrinária da atuação operaA importância da formação na mudança de paradigmas no uso da força 37 cional, que são os casos de emprego maciço da força, representado pelo uso coletivo da força (tipo operações de choque), que ocorrem em resposta aos distúrbios civis, onde a grande concentração de pessoas conduz os encarregados de aplicação da lei a atuação específica envolvendo o uso de armas de fogo. Assim, conclui-se que as gestões participativas, como a iniciativa da Conferência Nacional, tendem a alcançar uma maior efetividade e sustentação da doutrina, com ênfase na necessidade de corretamente difundi-la, por meio da educação policial, envolvendo a formação e o treinamento, ampliando seu conhecimento para além dos encarregados da aplicação da lei. Sobretudo, propiciando um ambiente seguro (para o policial), sob o ponto de vista normativo (regras claras), para que este profissional possa operar, de forma legitimada, usando suas armas e demais equipamentos disponíveis com efetividade em proteção da sociedade. 38 Uso progressivo da força: dilemas e desafios Referências bibliográficas BAYLEY, David H. Padrões de Policiamento: Tradução de René Alexandre Belmonte. 2. ed. 1. reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006. Série Polícia e Sociedade n. 1, 270 p. CAMPOS, Alexandre Flecha. A Importância da Preparação do Policial quanto ao Uso da Força Letal. Artigo REBESP – PMGO, 2006. DECKER, Scott H.; WAGNER, Allen E. Administração do Trabalho Policial: questões e análises. Organização de Jack R. Greene. Tradução de Ana Luísa Amêndola Pinheiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2007. Série Polícia e Sociedade n. 5, 184 p. DIAS, Cláudio José. 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MINAS GERAIS. Polícia Militar. Seção de Emprego Operacional. Atuação da Polícia Militar de Minas Gerais segundo a filosofia dos Direitos Humanos: Diretriz para a Produção de Serviços de Segurança Pública nº. 08/2004. Belo Horizonte, 19 jan. 2004. p. 57. MONJARDET, Dominique. O Que Faz a Polícia: sociologia da força pública. Tradução de Mary Amazonas Leite de Barros. ed. rev. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003. Série Polícia e Sociedade n. 10, 328 p. MOREIRA, Cícero Nunes; CORRÊA, Marcelo Vladimir. Manual de Prática Policial Geral – Volume 1. Belo Horizonte, 2002. 176 p. MUNIZ, Jaqueline; JÚNIOR Domício Proença; DINIZ, Eugênio. Uso de A importância da formação na mudança de paradigmas no uso da força 39 Força e Ostensividade na Ação Policial. Conjuntura Política, Boletim de Análise nº 6, Departamento de Ciência Política – UFMG, Belo Horizonte, p. 22 – 26, abr. 1999. PINC, Tânia Maria. Abordagem Policial: um encontro (des) concertante entre a polícia e o público. 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São Paulo: Saraiva, 1997. 40 Uso progressivo da força: dilemas e desafios Elementos para a criação de uma matriz curricular sobre o uso da força Bernadete M. P. Cordeiro* 1. Apresentação A proposta deste seminário não é discutir os aspectos contextuais, teóricos e práticos presentes no tema “uso progressivo da força”, mas criar condições para a reflexão sobre os elementos que deverão nortear o processo de ensino-aprendizagem do tema, abrangendo a matriz curricular e uma prática pedagógica que favoreça a aprendizagem autônoma. 2. O ponto de partida: mapeamento e competência Aprender a empregar adequadamente a força, utilizando-a de forma progressiva, é hoje uma das competências do trabalho policial que necessita ser desenvolvida. Por ser uma competência, este processo exigirá a mobilização de saberes (conhecimentos, habilidades e atitudes) para que o policial possa saber agir frente a diferentes situações (Perrenoud, 2000)1. “Podemos aprender conhecimentos sistematizados (fatos, conceitos, princípios, métodos de conhecimento etc.); habilidades e hábitos intelectuais e sensor-motores (observar um fato e extrair conclusões; destacar propriedades e relações das coisas; dominar procedimentos para resolver exercícios; escrever e ler; usar adequadamente os sentidos, manipular objetos e instrumentos etc.); atitudes e valores (por exemplo, perseverança e responsabilidade no estudo, modo científico de resolver problemas humanos, senso crítico frente aos objetos de estudos e à realidade, espírito de camaradagem e solidariedade, convicções, valores humanos e sociais, interesse pelo conhecimento, modos de convivência social etc.)” (Libâneo, 2004, p. 83)2. Um dos instrumentos que auxiliará no processo de identificação dos saberes é o mapa de competências. Para elaborá-lo, a primeira ação é fazer uma lista dos conhecimentos, habilidades e atitudes que deverão ser trabalhados, considerando a competência a ser Elementos para a criação de uma matriz curricular sobre o uso da força * Professora da Universidade Católica de Brasília, Consultora Pedagógica da SENASP e colaboradora do Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Mestre em Educação pela Universidade de Brasília em Política, Gestão e Planejamento Educacional. Especialista em Linguagem e Educação. Pedagoga com habilitação em Tecnologia Educacional e Administração Escolar.. 1 PERRENOUD, Philippe et al. Formando professores profissionais. Porto Alegre: ARTMED, 2000. 2 LIBÂNEO, José Carlos. Didática. São Paulo: Cortez, 1994. (Coleção Magistério) 41 desenvolvida. De acordo com Cordeiro (2008)3, chega-se a esta lista por meio das respostas que completam as seguintes sentenças: O desenvolvimento desta competência irá: Ampliar conhecimentos para... Desenvolver habilidades para... Fortalecer atitudes para... As respostas que completam essas sentenças deverão ser escritas no mapa. Veja na figura 1 o exemplo de um mapa preenchido4. Figura 1 – Exemplo de Mapa de Competências 3 CORDEIRO, Bernadete M. P. Modelos de treinamento: identificação das concepções pedagógicas e dos modelos internacionais voltados ao treinamento e preparação de profissionais de segurança pública para atuarem principalmente contra o tráfico ilícito de armas, munição, explosivos e outros temas correlatos. Brasília: PNUD, 2008. (Projeto 04/29: relatório técnico) 4 Os conhecimentos, as habilidades e as atitudes descritas acima foram utilizados a título de exemplo, não tendo sido exploradas todas as possibilidades. 5 CORDEIRO, Bernadete M. P.; GONÇALVES, André Gustavo B. Manual de elaboração de materiais de estudo autônomo. Brasília: Academia Nacional de Polícia DPF, 2003. 42 Uso progressivo da força Conhecimentos Habilidades • Definir o uso da força. • Identificar a legislação pertinente ao uso da força e da arma de fogo. • Descrever os modelos existentes que explicam a gradação do uso da força. • Desenvolver habilidades requeridas no escalonamento do uso da força. • Manejar equipamentos e instrumentos utilizados no emprego da força. Atitudes • Guiar-se pela escala de segurança (público, policial e infrator). • Respeitar os aspectos legais. • Defender o uso dos equipamentos de proteção individual. Fonte: Baseado em Cordeiro & Gonçalves (2003)5. É importante observar se o mapa elaborado possibilita a visualização das dimensões legais, éticas e técnicas que fundamentam a formação do policial e que orientarão a prática pedagógica. Assim, faz-se necessário, a partir do mapa, abordar mais dois elementos: a seleção do conteúdo e a prática pedagógica. 3. O mapa traduzido em conteúdos Considerando os conteúdos e as possibilidades de abordagem sobre eles, uma boa orientação para a seleção daqueles que devam compor a malha curricular de cursos e de ações pedagógicas é selecioná-los a partir do mapa de competências, categorizando-os como conteúdos conceituais, procedimentais e ou atitudinais. Sendo: • Conteúdos Conceituais – aqueles relacionados aos conceitos, leis, teorias, princípios e doutrinas que o profissional da área de segurança pública deve saber em relação ao campo disciplinar. • Conteúdos Procedimentais – aqueles que indicam os conteúdos relacionados aos métodos, técnicas e procedimentos que o profissional de segurança pública precisa demonstrar em relação ao campo disciplinar. Uso progressivo da força: dilemas e desafios • Conteúdos Atitudinais – aqueles que expressam conteúdos relacionados a valores, crenças e atitudes e que deverão ser fortalecidos pelas situações vivenciadas dentro de um determinado campo disciplinar. A figura 2 mostra a seleção do mapa de conteúdos a partir do mapa de competências. Figura 2 – Exemplo da Seleção de Conteúdos a partir do Mapa de Competências6 Uso progressivo da força Conteúdos Conceituais Conteúdos Procedimentais Conteúdos Atitudinais • O que é uso da força? • Princípios do uso da força • Código de utilização do uso da força e da arma de fogo para os encarregados de cumprirem a lei. • Modelos de uso da força. • Habilidades de comunicação: identificação, entonação de voz etc. • Escala de segurança (público, policial e infrator). • Relação do uso da força com a promoção dos direitos humanos. • Atitudes assertivas em relação ao uso da força, respeitando a escala de segurança. Fonte: Baseado em Cordeiro & Gonçalves (2003). Uma vez listados os conteúdos, é possível agrupá-los por afinidade em campos de conhecimentos, módulos, unidades, dentre outros. 4. A prática pedagógica: o mapa em ação Nos dois pontos anteriores pôde-se observar o percurso metodológico para o mapeamento dos saberes a serem mobilizados para o desenvolvimento da competência “aprender a empregar adequadamente a força utilizando-a de forma progressiva”. O mapa garante o conhecimento, até mesmo prévio, dos saberes que serão mobilizados, mas para que a mobilização aconteça é necessário o uso de práticas pedagógicas diferenciadas e significativas, que criem condições para a transferência de conhecimentos, ou seja, que o policial seja capaz de aplicar esses saberes em novos contextos (Perrenoud, 2000)7. As práticas pedagógicas mais coerentes com o desenvolvimento de competências apontam para as técnicas de ensino problematizadoras, que simulam o real, possibilitando o exercício de destrezas operacionais alinhadas aos direitos humanos e ao compromisso social. Elementos para a criação de uma matriz curricular sobre o uso da força 6 Os conhecimentos, as habilidades e as atitudes descritas acima foram utilizados a título de exemplo, não tendo sido exploradas todas as possibilidades. 7 Ibidem. 43 “Os programas de educação profissional, com currículos dirigidos para competências requeridas pelo contexto de uma área profissional, caracterizam-se por um conjunto significativo de problemas e projetos, reais ou simulados, propostos aos participantes e que desencadeiam ações resolutivas, incluídas as de pesquisa e estudo de conteúdo”. (MEC, 2000, p. 31)8 8 BRASIL. Ministério da Educação. Educação profissional. Brasília, 2000. 9 CORDEIRO, Bernadete M. P. Projeto Pedagógico do Centro Regional de Segurança Pública (Treinasp). Brasília: PNUD, 2009. (Projeto 04/29: relatório técnico) 10 “Autonomia intelectual” é traduzida por Altet (1992) como a capacidade de ‘agir em situações diferentes, de gerir incertezas e poder enfrentar as mudanças no exercício de sua profissão. (Perrenoud, 2002; Altet,1992 e Shön, 2002). 11 Ibidem. 44 Segundo Cordeiro (2009)9, as situações problematizadoras mobilizam os saberes e geram esquemas de ação, filtros pessoais que tornam as situações compreensíveis e que envolvem esquemas de percepção, decisão e avaliação. Os profissionais da área de segurança pública ao analisar, refletir e justificar a situação adquirirão metacompetências imprescindíveis para a construção da autonomia intelectual10 e, principalmente, para a atuação profissional. Ainda de acordo com Cordeiro (2009)11, a utilização das situações problematizadoras como recursos de aprendizagem deverão considerar as seguintes orientações metodológicas: • Saber quais competências serão desenvolvidas. • Aproveitar os conhecimentos prévios que os participantes possuem. • Ater-se à necessidade do enfoque contextual, interdisciplinar e transversal, favorecendo a busca, a seleção e a utilização dos conteúdos relacionados aos processos e fenômenos, tais como eles se apresentam na realidade da prática profissional. • Estimular a colaboração e a cooperação entre os participantes. • Considerar os conteúdos como ferramentas, meios articuladores dos quais os participantes devem lançar mão para compreender a realidade e auxiliar na resolução de problemas. • Criar condições para que os participantes utilizem as habilidades mentais, levantando hipóteses e estimulando o processo de reflexão, que deverá ocorrer antes, durante e após a ação. • Atuar como mediador do processo de aprendizagem, ou seja, como responsável pela seleção e pelo planejamento das técnicas que conduzirão as situações-problema e, principalmente, pelas intervenções, questionamentos e feedback durante o desenvolvimento da atividade. A prática pedagógica a ser exercida deverá utilizar técnicas de ensino que favoreçam a reflexão antes, durante e após a ação. As técnicas de ensino devem estar relacionadas diretamente com as competências a serem desenvolvidas pelos participantes, com o conteúdo a ser trabalhado e com o nível de interação a ser proporcionado na aprendizagem (Cordeiro, 2008)12. Uso progressivo da força: dilemas e desafios Conclusão Pensar os elementos que deverão compor a Matriz do uso progressivo da força é uma tarefa que exigirá não apenas a reflexão sobre o tema, os saberes a serem mobilizados e as competências a serem desenvolvidas, mas também, e principalmente, a reflexão sobre a prática pedagógica que possibilitará ao policial desenvolver sua autonomia intelectual. Elementos para a criação de uma matriz curricular sobre o uso da força 45 Referências bibliográficas ALTET, Marguerite. As competências do professor profissional: entre conhecimentos, esquemas de ação e adaptação, saber analisar. In: PERRENOUD, Philippe et al. Formando professores profissionais. Porto Alegre: ARTMED, 2001. BRASIL. Ministério da Justiça. Secretaria Nacional de Segurança Pública. Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento de Pessoas. Matriz curricular nacional para formação dos profissionais de segurança pública, 2008. (Versão revisada e ampliada) MEC/UNESCO. Educação: um tesouro a descobrir. São Paulo: Cortez; Brasília-DF: MEC/UNESCO, 2001. (Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre educação para o século XXI) SCHÖN, Donald. Formar professores como profissionais reflexivos. Porto Alegre: ARTMED, 2001. 46 Uso progressivo da força: dilemas e desafios Uso comedido da força letal: construindo um protocolo de engajamento Paulo Storani* “Norma de procedimentos sem treinamento tem o mesmo lugar que lei sem fiscalização”. 1. Introdução O confronto com armas de fogo no ambiente urbano, entre os encarregados pela aplicação da lei1 e os seus transgressores, é o nível máximo do uso da força legal para a preservação da Ordem Pública, onde o risco de morte é um fator real, inexorável e de conseqüência natural. Este momento é resultante de um processo desencadeado pelo desrespeito aos direitos das pessoas e atesta o fracasso das medidas preventivas, que poderiam conter a dinâmica do conflito de interesses, impedindo que este evolua para uma situação de alto risco de letalidade. Ao considerarmos as condições que envolvem os confrontos armados, na perspectiva daqueles que foram institucionalmente encarregados de solucionar estes conflitos extremos, identificamos a volatilidade de cenário, a restrição de tempo para tomada de decisão e a pressão pela sobrevivência. Estes fatores contêm um potencial de interferência objetiva sobre a performance deste ator, cuja ação e decisão materializa a interferência do Estado na preservação de direitos e garantias individuais. Contudo, além das condicionantes legais que regulam a conduta dos encarregados de aplicar a lei, não se pode desconsiderar as reações psicológicas e fisiológicas que esta situação extrema exerce sobre eles. Qualquer situação de extremo risco ou estresse emocional a que uma pessoa é submetida desencadeia um conjunto de reações fisiológicas que se denomina Reação de Alarme do Sistema Nervoso Simpático2. Esta reação é a resposta natural do organismo, que prepara o indivíduo para sobreviver à situação de perigo, preparando-o para lutar ou fugir; razão pela qual também recebe a denominação de Reação de Fuga ou Reação de Luta. Uso comedido da força letal: construindo um protocolo de engajamento * Pesquisador do Instituto Universitário de Políticas Públicas e Ciências Policiais da Universidade Candido Mendes– IUPOL, Mestre em Antropologia Social, Especialista em Operações Especiais, Mestre de Tiro Policial e Oficial da Reserva da PMERJ. 1 Termo utilizado pelo Código de Conduta para Profissionais Encarregados de Fazer Cumprir a Lei, das Nações Unidas, promulgada pela Resolução 34/169 da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 17 de Dezembro de 1979. 2 STORANI, Paulo. O treinamento perceptivo-motor na melhoria da performance do tiro policial, em confrontos armados nas áreas de alto risco. Monografia apresentada à Universidade Gama Filho como requisito parcial à obtenção do Certificado de Pós-Graduação “Lato Sensu” em Treinamento Físico. Rio de Janeiro, 2000, p. 8. 47 Estas alterações de adaptação do corpo humano são caracterizadas, essencialmente, pelo aumento da pressão arterial, da freqüência cardíaca e da freqüência respiratória, e causam tremor e entorpecimento nas extremidades do corpo, analgesia corporal, limitação da audição e ângulo de visão, perda da motricidade fina e perda da noção de espaço e de tempo. Todos estes efeitos têm capacidade de influir, diretamente, na performance motora e mental do indivíduo durante o estado de tensão, comprometendo a atenção, a captação de estímulos, a capacidade de decisão e a consequente resposta muscular, que exija a coordenação de vários membros e precisão de movimentos. Se considerarmos que a sociedade, mesmo diante das variáveis expostas, espera que estes encontros eventuais resultem no mínimo de letalidade, devemos questionar se os operadores de segurança pública estariam preparados tecnicamente, fisicamente e emocionalmente para suportar as pressões que atuam sobre eles nestes momentos e solucionar os conflitos. Assim, devemos sopesar se as condições de trabalho e de treinamento permitem ou proporcionam condições para que eles estejam na plenitude de suas capacidades, para atuarem no extremo de sua função social. 2. A tomada de decisão No confronto armado, a decisão de onde, quando e como agir é o resultado de um processo desencadeado pela percepção de uma situação de conflito, em que o operador de segurança pública avalia que sua intervenção é imperativa. A qualidade da resposta resultante deste “Processo de Tomada de Decisão” estará condicionada ao nível de conhecimento técnico e tático do tomador de decisão, bem como à sua experiência profissional. Estar em condições de perceber alterações no cenário que atua e responder, dentro de limites legais e técnicos, é requisito para agir. Perceber algo é captar, por meio dos nossos sentidos, os diversos estímulos do meio ambiente e interpretá-los. Cada um de nós pode dar um significado diferente para uma mesma situação, pois dependemos de nossa capacidade para selecionar e perceber detalhes e situações do ambiente em que atuamos, e confrontá-los com nosso conhecimento desenvolvido pelo treinamento e vivências pessoais. A percepção depende ainda de nossa condição física e emocional, pois quanto mais cansados, estressados e mais desestabilizados emocionalmente, menor será a nossa capacidade para per- 48 Uso progressivo da força: dilemas e desafios ceber ou interpretar, adequadamente, determinados estímulos. Esta situação poderá nos induzir a pré-conceber, equivocadamente, situações que nos deparamos e nos levar a tomar decisões equivocadas. Podemos considerar que em um determinado ambiente, onde temos o pleno domínio de captação de estímulos, somos mais capazes de perceber qualquer anormalidade que possa exigir nossa interferência. Seria mais fácil perceber alterações de cenário em uma praça pública, com espaços amplos de fácil observação, ou em ruas de pouco movimento, do que em cenários com maior variedade de estímulos, como ruas com maior circulação de pessoas e veículos, ou locais com arquitetura ou espaços urbanos desordenados. Nessas condições nosso domínio estaria prejudicado, dificultando a correta percepção de problemas que possam exigir nossa intervenção. Baseado na percepção de situações que ocorrem no ambiente urbano, os operadores de segurança responderão de uma forma determinada. Em um cenário de violação de direitos, que avaliam exigir a intervenção do Estado, poderão reagir tomando uma decisão pela aplicação de uma alternativa escolhida para impedir ou interromper a dinâmica observada, ou poderão decidir “não” reagir, em razão das consequências da possível ação. Este processo de tomada de decisão será sempre solitário, intransferível e irreversível. Além disso, os operadores de segurança pública serão sempre e diretamente responsabilizados pelas conseqüências de suas decisões, agindo ou não. Dessa forma, a qualidade da resposta ou decisão estará condicionada ao nível técnico e tático e de controle emocional de cada operador de segurança pública. O nível técnico diz respeito ao conhecimento e habilidade de manuseio que o operador possui das ferramentas que utiliza em sua atividade. Podemos indicar as técnicas de defesa pessoal e de imobilização, o emprego de armas menos letais e letais. Conhecer, neste caso, significa deter as informações sobre as características da ferramenta disponível, suas limitações e a forma correta de empregá-la. Ter habilidade é ter o pleno domínio de sua utilização prática. Para isto, se requer treinamento apropriado e continuado, capaz de desenvolver a chamada resposta motora ou “memória muscular”, que levará o usuário a empregar suas ferramentas de trabalho com a máxima eficiência e máxima segurança, mesmo que em situações de intenso estresse físico e emocional. O nível tático diz respeito à correta escolha da ferramenta que tem à disposição e sua aplicação de acordo com a situação que o operador de segurança pública se deparar. Significa empregar a técnica apropriada e nas condições possíveis. Este nível deve consideUso comedido da força letal: construindo um protocolo de engajamento 49 rar, ainda, a possibilidade de atuação coletiva, a ação de uma equipe onde cada componente possui um conjunto de responsabilidades complementares em relação aos demais membros do time para atender uma demanda. Esta ação conjunta requer, além do completo domínio das técnicas e do conhecimento tático, um treinamento capaz de sistematizar os procedimentos de cada componente, potencializando a atuação da equipe e minimizando os riscos. O nível de controle emocional significa estar em condições emocionais de decidir com qualidade. O controle emocional pode ser adquirido com treinamento apropriado, quando o treinando é submetido a situações planejadas de estresse físico e emocional. Em contrapartida, a falta de treinamento condena o operador de segurança pública à sua capacidade e talento individual, à maior probabilidade de erro profissional e a consequente responsabilização. Assim, quanto mais apropriadamente treinados, mais seguros os operadores de segurança pública se sentirão em escolher que técnica empregar, em que condições táticas e na medida ideal de força. Significa preparar os operadores para intervir com segurança e dentro dos limites esperados. O controle emocional esta condicionado, também, à experiência profissional. Quanto maior o número de vezes que o operador for submetido a situações de forte estresse emocional e físico, maior será a tendência de desenvolver sua tolerância a esta condição e, por conseguinte, de tomar decisões neste estado. Contudo, mesmo tendo vivenciado situações de forte estresse e estando limitado a poucas alternativas técnicas e táticas, pelo desconhecimento e falta de treinamento, ele tenderá a responder com formas definitivas de solução, desconsiderando parâmetros de moderação e proporcionalidade do uso da força. Este pode ser o motivo pelo qual se verifica a relação: quanto menos treinamento, mais violenta a resposta. Esta condição é motivada pela falta de conhecimento e habilidade no emprego das ferramentas de trabalho, levando os operadores à escolha de respostas que possam produzir maior dano possível, como forma de compensar a insegurança causada pela deficiência técnica e tática. Quanto melhor o preparo técnico, tático e o controle emocional, melhor serão a qualidade e a capacidade de perceber, de decidir pela melhor alternativa a ser empregada e de responder segundo as diretrizes legais que amparam a ação. Ao contrário, a falta de preparo técnico, tático ou de controle emocional poderá levar o operador de segurança pública a tomar decisões equivocadas, com respostas que poderão resultar em conseqüências desastrosas para as pessoas, para a sociedade, para as instituições policiais e para os próprios operadores. A melhor 50 Uso progressivo da força: dilemas e desafios forma de desenvolver estas qualidades é pelo adequado e contínuo treinamento, e pelo oferecimento de condições de trabalho que permitam aos operadores atuar na plenitude de sua capacidade. Para considerarmos um modelo de atuação dos operadores de segurança pública, devemos buscar conhecer as condições de trabalho do “universo” dos policiais e descortinar uma realidade ignorada. Os aspectos organizacionais, o processo de seleção e formação das pessoas que escolhem esta atividade profissional, a carreira, a interação entre os membros da corporação, a jornada de trabalho, as condições materiais, técnicas e ambientais e a imagem construída na interação com a sociedade, apresentam-se como elementos essenciais ao processo de construção deste conhecimento, que é ver com o olhar da alteridade e estabelecer os critérios para criar condições para o desenvolvimento de suas capacidades individuais. Ao conhecer a situação da saúde física e de risco dos “trabalhadores policiais”, como o verificado nas obras de Minayo, Souza e Constantino3, poderemos avaliar as consequências das condições de trabalho impostas a estes operadores de segurança em sua performance. Identificar os problemas de saúde, as lesões e incapacitações físicas, o estresse e o sofrimento mental em razão do trabalho, referenciados com outras categorias de trabalhadores, permitirá estabelecer a coerência entre o que é legitimamente exigido pela sociedade e o que é aprovisionado pela administração pública para segurança do cidadão. 3. O treinamento policial na atualidade Grosso modo, o currículo da matéria Armamento e Tiro dos cursos de formação policial têm origem na instrução de tiro das Forças Armadas, sofrendo algumas adaptações para a realidade policial. Estes programas estabelecem as sessões de instrução que envolvem temas como a manutenção do armamento, legislação referente ao uso da arma de fogo, fundamentos do Tiro Policial e a execução do tiro na posição de pé, na posição ajoelhada, na posição barricada e tiro na posição deitado. A instrução prática em estande de tiro é sempre orientada por um Instrutor de Tiro; o atirador é sempre colocado em frente a um mesmo tipo de alvo (silhueta humanóide), portando uma arma de fogo carregada e para todas as séries de disparos o tiro é comandado pelo instrutor. Não há, na prática, a opção Uso comedido da força letal: construindo um protocolo de engajamento 3 MINAYO, M. C. S. & SOUZA, E. R. Missão Investigar: entre o ideal e a realidade de ser policial. Rio de Janeiro: Garamond, 2003 e MINAYO, M. C. S, SOUZA, E. R. & CONSTANTINO, P. (Coord.). Missão prevenir e proteger: condições de vida, trabalho e saúde dos policiais militares do Rio de Janeiro. Rio de janeiro: Editora Fiocruz, 2008. 51 4 Wittig, Arno F. (1981). Psicologia geral. São Paulo: McGraw-Hill. 5 STORANI, Paulo. O Treinamento perceptivo-motor na melhoria da performance do tiro policial, em confrontos nas áreas der risco. Monografia apresentada à Universidade Gama Filho como requisito parcial à obtenção do Certificado de Pós-Graduação “Lato Sensu” em Treinamento Físico. Rio de Janeiro, 2000. 6 Idem. 52 de decisão de não atirar ou em qual alvo atirar, a decisão é de “atirar sempre no alvo que estiver à frente”. Analisando a instrução de tiro identificada como um processo de aprendizagem verifica-se a ocorrência de um condicionamento, que leva ao desenvolvimento de uma resposta operante, que, segundo Wittig4, “é uma resposta voluntária emitida por um organismo [...] de modo que o resultado final é a consecução de uma meta desejada“ (p. 124). Assim, durante uma situação de forte estresse físico ou emocional – como nos confrontos armados, onde uma agressão é esperada a qualquer momento –, frente à mínima percepção de um “possível” risco à sobrevivência, a resposta natural é de “atirar no alvo que se apresenta”. Esta condição é potencializada pelos efeitos fisiológicos da Reação de Alarme, com o comprometimento da destreza necessária para uma decisão e ação adequada. Diante da ausência de uma resposta motora ajustada face ao tipo de treinamento desenvolvido, a probabilidade de erro se torna uma constante considerável, potencializando o risco de decisões equivocadas e do risco de se atingir terceiros. Conforme o verificado em Storani (2000)5, a origem da metodologia empregada na instrução de tiro, na atualidade, baseou-se nos estudos efetuados pelo Exército dos Estados Unidos da América (EUA) sobre a conduta dos soldados em batalha, desde a Guerra de Secessão, passando pela II Grande Guerra e pela Guerra do Vietnã. Pesquisas da época, efetuadas após as batalhas da Guerra de Secessão nos EUA, verificaram que 90% dos mosquetes de carregamento pela boca do cano, estavam com pelo menos uma carga de tiro intacta, e 40 % com múltiplas cargas, chegando até a vinte e quatro cargas de tiro intactas. Concluíram que o atirador, após o carregamento da arma, não efetuou o disparo e que, mesmo assim, carregou-a novamente; a ação de carregamento levaria algo em torno de vinte segundos. Durante a II Guerra, relatos do Historiador S.L.A. Marshall do Exército dos Estados Unidos (Storani, p. 11)6, introdutor da “Entrevista Pós-Ação”, verificou que somente 15% a 20% dos soldados que participavam dos combates usavam suas armas contra o inimigo. Diante destes dados, as Forças Armadas dos EUA concluíram que o motivo do não uso da arma seria a rejeição natural do homem de tirar a vida de seu semelhante. A partir destes dados, começaram as pesquisas no campo da psicologia comportamental, do behaviorismo, visando inibir nos soldados a suposta rejeição de matar por meio do desenvolvimento do principio básico do condicionamento operante, pelo processo: estímulo/resposta condicionada – reforço Uso progressivo da força: dilemas e desafios positivo ou negativo (recompensa ou castigo). O objetivo era criar os “matadores profissionais” que iriam sempre usar suas armas em combate diante do estímulo “inimigo”, pois não estariam mais sob a égide de seu superego. O resultado veio a ser comprovado na Guerra do Vietnã, onde o próprio S.L.A. Marshall verificou, por meio de suas entrevistas pósação, que o percentual de utilização da arma de fogo pelos soldados aumentou para 90%. Em contrapartida, a estatística da Guerra mostrou que para cada inimigo morto, as forças americanas dispararam 50.000 (cinqüenta mil) tiros. 4. Legalidade e legitimidade de agir O respeito pelos direitos e garantias fundamentais, inerentes à pessoa humana, além de tutelado pelo Estado e reconhecido pelos tratados internacionais, é a condição de convivência pacífica em sociedade. Neste ambiente, não só o povo está sujeito às regras de direito, mas também as autoridades detentoras do mandato do poder de fazer, delegado pelo próprio povo. Este Poder esta condicionado às normas jurídicas e condições técnicas, que determinam situações, impõe restrições e estabelecem limites. Em nossa sociedade, para condicionar o uso e o gozo dos bens, atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade e do próprio Estado, os agentes encarregados de aplicar a lei podem recorrer ao atributo da coercibilidade, diante do seu entendimento da conveniência e oportunidade de agir, independente de ordem judicial. Trata-se do Poder de Polícia7. Resolução 34/169 da Assembléia Geral das Nações Unidas promulgou o Código de Conduta para Profissionais Encarregados de Fazer Cumprir a Lei, em 17 de Dezembro de 1979. “Artigo 1º - Os funcionários encarregados na aplicação da lei irão levar a efeito, em todo o momento, os deveres que são impostos pela lei, servindo a sua comunidade e protegendo a todas as pessoas contra atos ilegais, em consonância com o alto grau de responsabilidade exigido de sua função. Art. 2º – No desempenho de suas funções, os funcionários encarregados de fazer cumprir a lei respeitarão e protegerão a dignidade humana e manterão e defenderão os direitos humanos de todas as pessoas. Art. 3º – Os funcionários encarregados de fazer cumprir a lei poderão usar a força apenas quando seja estritamente necessário ou na medida em que o requeira o desempenho de suas tarefas”. [...] Uso comedido da força letal: construindo um protocolo de engajamento 7 O Poder de Polícia está definido no Artigo 78 do Código Tributário Nacional (CTN): “Considera-se Poder de Polícia a atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão do interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina, à produção e ao mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à prioridade e aos direitos individuais ou coletivos”. 53 O agente encarregado de aplicar a lei é um trabalhador da sociedade, devendo ter por princípio as regras que são estabelecidas por ela. Assim, o uso da força coercitiva está diretamente subordinado às regras, servindo, com isso, aos propósitos legais e legítimos. Isto significa que a força deve ser usada no limite da capacidade necessária para garantir direitos, impedir ou interromper sua violação com o menor dano possível às pessoas, sejam elas as vítimas, os agentes da lei e os próprios transgressores. CÓDIGO PENAL COMUM “Art. 23. Não há crime quando o agente pratica o fato: I - em estado de necessidade; II - em legítima defesa; III - em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito. Parágrafo único. O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo”. A Força deve ser empregada de forma moderada, proporcional à gravidade da violação identificada e com intensidade estritamente necessária ao atendimento do objetivo que deve ser atingido. Qualquer desvio ou abuso, reprovados pelo consentimento público e pela não observância dos limites legais, será considerado uso excessivo da força, truculência e arbitrariedade, que levam à descrença e ao medo relacionado às instituições que deveriam respeitar estes limites e responsabilização pelo excesso. CÓDIGO PENAL COMUM “Art. 25 – entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual e iminente, a direito seu ou de outrem”. 5. Considerações sobre o uso da força letal O nível de uso da força letal compreende um estado profissional e emocional extraordinário. Esta condição pode ser resultante de um processo que evoluiu gradativamente dos níveis mais brandos de uso da força, em uma interação onde um direito foi ou estava por ser violado, levando ao aumento da tensão e do estresse; ou quando o operador de segurança se depara com uma situação em que percebe a ação agressiva letal imediata por parte do violador da lei, como nos confrontos desencadeados nas operações em áreas de risco. 54 Uso progressivo da força: dilemas e desafios Ambas as situações promovem condições de aumento do estresse. Na interação onde pode ocorrer a elevação gradativa do uso da força como resposta a uma resistência do violador da lei, o operador pode ser levado a tomar decisões com maior componente pessoal, quando passa a entender a resistência do violador da lei como uma “afronta” ou “desrespeito” a ele como pessoa. Nas interações onde o uso da força letal é iminente, o estresse dificulta mais ainda o processo de tomada de decisão, a correta percepção do ambiente e do comportamento dos atores observados, levando a respostas equivocadas e desproporcionais. Ambas as situações requerem preparo técnico e tático e controle emocional para a melhoria da qualidade da percepção e da resposta. Desta forma, o uso de força letal deve ser resultante de um processo de tomada de decisão, onde foram esgotadas todas as demais alternativas técnicas e táticas do uso da força não letal. Decidir pelo uso da força letal significa ter avaliado que a vida de pessoas, ou do próprio operador, encontra-se em risco de morte. Contudo, é fundamental que a escolha da alternativa de força letal tenha sido produto de ponderação estabelecida em processo, onde foram projetadas as ações possíveis e suas consequências, e tenha se decidido pela alternativa que produzisse o menor dano para o bem pretendido com a ação, que é salvar vidas. Isto representaria agregar a excelência ao processo decisório e diminuir a margem de erro da decisão. Todo este processo pode ser apropriadamente treinado, de forma que nas diversas situações, principalmente aquelas com reduzido tempo para avaliar e decidir, nossas escolhas sejam produtos de um mínimo de ponderação. Para que este treinamento tenha sucesso é fundamental criarmos diretrizes que facilitem a tomada de decisão do encarregado de aplicar a lei, como um “Protocolo de Engajamento”. 6. Protocolo de engajamento Este “Protocolo de Engajamento” se ampara na complexidade da natureza do trabalho policial e nas exigências operacionais de intervir por meio do recurso legal e legítimo da força, em um conjunto de eventos urbanos imprevisíveis e voláteis, circunscritos por cenários de incerteza e risco. Diante desta realidade, comprovada por fatos recentes no cotidiano policial, não se pode negligenciar os meios necessários para que os encarregados de aplicação da lei Uso comedido da força letal: construindo um protocolo de engajamento 55 possam cumprir seu papel social de protetores das pessoas, possibilitando-os agir por meio de técnicas amparadas por regras claras de procedimento, de modo a produzirem resultados legítimos. Perceber e responder, na perspectiva dos modelos de uso da força, significa estar preparado para compreender o que ocorre no cenário em que se atua e intervir, produzindo uma solução legal e legítima. Para o uso de força letal, as normas legais vigentes estabelecem, implicitamente, uma “regra de procedimento” para ações de proteção das pessoas inocentes, dos encarregados de aplicação da lei e dos próprios violadores. Estas regras são legitimadas pelos pressupostos dos direitos humanos e do estado democrático e de direito, e se constitui como um “Protocolo de Engajamento”. O Protocolo deve ser, em sua essência, um processo explícito de tomada de decisão, que obedece a uma sequência de procedimentos fundamentados nos princípios ditados pelas normas legais vigentes, nas técnicas e nas táticas reconhecidas para uso da força. Para isso, deve estabelecer diretivas para produzir soluções legítimas para os conflitos, no que propomos: Diretiva 1 - Identificação Positiva de Agressor Letal: Trata-se da identificação real de pessoa(s) portando arma de fogo, que está sendo apontada ou disparada na direção de pessoas inocentes ou na direção dos operadores de segurança. Diretiva 2 – Condição Tática para o Tiro: Trata-se do “estudo do cenário” para avaliar a condição tática para emprego da arma de fogo pelo operador de segurança pública, com máxima eficiência e máxima segurança; considerando a distância do agressor letal, sua posição em relação aos anteparos e, principalmente, a circulação de pessoas inocentes. Diretiva 3 - Resposta Proporcional a Agressão Letal: Trata-se da resultante do processo de tomada de decisão do operador de segurança pública, quando escolhe a alternativa de impedir ou interromper a agressão, engajando-se o violador da lei pelo uso da arma de fogo e limitando o número de disparos ao estritamente necessário (praticado em treinamento) para impedir ou neutralizar a agressão letal contra inocentes ou contra encarregados de aplicação da lei. O processo finaliza com o impedimento ou interrupção da agressão, a prisão do violador e/ou o socorro médico de feridos. Considerações finais Os encarregados de aplicar a lei se deparam com uma imensa variedade de estímulos e cenários em sua atividade profissional. Estas condições interferem e contribuem, muitas vezes, para interpretações equivocadas. As diretivas apresentadas são objetivadas 56 Uso progressivo da força: dilemas e desafios no estabelecimento de um processo de tomada de decisão capaz de auxiliar os operadores de segurança pública a decidirem por alternativas viáveis, durante uma situação de extremo estresse. Contudo, somente por meio de treinamento apropriado e continuado estes fundamentos serão internalizados. Treinamento apropriado significa a utilização de uma metodologia que privilegie o desenvolvimento técnico e tático, e que desenvolva a capacidade de perceber e responder com qualidade, mesmo em situações de estresse. A continuidade se constitui na única forma de consolidação do conhecimento e da habilidade necessárias ao desenvolvimento da performance ótima, esperada pela sociedade. Uso comedido da força letal: construindo um protocolo de engajamento 57 Referências bibliográficas AYOOB, Massad F. (1993). Stressfire (Oswaldo Coellho, trad.). Rio de Janeiro: NuCTIR-APM. CAMPOS, Dinah M. (1983). Psicologia da aprendizagem. Petrópolis: Vozes. GUYTON, Arthur C. (1989). Tratado de fisiologia médica (7ª Edição). Rio de Janeiro: Editora Guanabara. MAGILL, Richard A. (1993). Aprendizagem motora: conceitos e aplicações. São Paulo: Editora Edgard Blücher Ltda . SCHMIDT, Richard A. (1988). Motor control and learning . Ilinois: Human Knetics Publishers. 58 Uso progressivo da força: dilemas e desafios Uso Progressivo da Força: dilemas e desafios: resumo de propostas* O objetivo do Seminário Temático “Uso progressivo da força: dilemas e desafios” foi discutir os pilares que sustentam este campo de fazeres e saberes nas organizações policiais brasileiras, tanto no plano individual como coletivo, promovendo um debate qualificado sobre o tema através da mobilização dos atores diretamente envolvidos, seja do ponto de vista acadêmico, seja do ponto de vista operacional, do exercício da atividade profissional. Para tanto, o seminário foi realizado contemplando cinco momentos distintos, cada qual contando com uma metodologia diferenciada com o propósito de reunir um feixe de propostas a serem levadas para a Conferência Nacional de Segurança Pública (CONSEG) no âmbito da temática de uso da força. O seminário foi iniciado com uma apresentação geral do tema e uma breve explicação de como este se insere nos projetos desenvolvidos pelo Viva Rio, especialmente aos relacionados ao desarmamento e ao controle de armas. Ainda neste primeiro momento, destacou-se ainda como este evento se insere dentro da filosofia da CONSEG, na medida em que permite a reflexão de um tema de extrema importância dentro da segurança pública nacional. Por fim, neste momento foram apresentadas questões que merecem uma reflexão mais aprofundada por parte da academia e dos profissionais de segurança pública. Após esta mesa de abertura, foi composta a primeira mesa do seminário, na qual os palestrantes nacionais e internacionais fizeram suas apresentações sobre “O papel da formação na mudança de paradigma no uso da força letal”. Foram dois eixos básicos: a) apresentação do cenário atual de uso da força pelas organizações policiais brasileiras; b) apresentação de experiências nacionais e internacionais de formação na temática de uso da força. Ao longo destas apresentações, os expositores destacaram as seguintes necessidades de alteração na forma como o paradigma de formação na área de uso da força se encontra estruturado no Brasil: Uso Progressivo da Força: dilemas e desafios: resumo de propostas * Texto elaborado a partir do relatório do Seminário Temático Uso Progressivo da Força: dilemas e desafios, por Ludmila Ribeiro, Fabiano Monteiro, Roberta Correa, Daniel de Pádua e Bernardo Tonasse 59 Estabelecimento de um novo paradigma de formação, em que se ressalte o policiamento enquanto um serviço público destinado à proteção da cidadania; Compartilhamento da regulação policial com a comunidade e trabalho conjunto entre a comunidade e a polícia pela consolidação do espaço social desta organização; Tradução das normas das Nações Unidas no que se refere ao Uso da Força para o contexto socioeconômico de cada região – o que existe atualmente é um parâmetro de legislação nacional vinculante que não corresponde ao da ONU; Estruturação de um treinamento acerca do uso da força baseado em casos reais, de maneira a ajudar os policiais a fortalecer as ferramentas necessárias para a tomada de decisões em consonância com as atividades desenvolvidas pelo policial em seu cotidiano. Conectando a fala de todos os palestrantes desta mesa, é possível concluir que, para a polícia brasileira fazer um melhor uso da força, é indispensável um melhor treinamento dos policiais, ajustes na legislação vigente e melhores condições de vida e de trabalho para aqueles que tem o dever de prestar segurança à sociedade. A primeira atividade da parte da tarde foi a composição da mesa “Alternativas menos letais para a ação policial: experiências nacionais e internacionais”, na qual foram apresentadas as tecnologias menos letais já disponíveis para as organizações policiais brasileiras, e ainda como essas “armas” vêm sendo utilizadas - tanto pelo exército brasileiro como pela própria Polícia do Estado do Rio de Janeiro. Entre os desafios para a disseminação deste tipo de tecnologia, identificou-se a necessidade de um treinamento mais especializado para este tipo de armamento, e ainda uma diretriz mais clara de como e quando estas tecnologias podem ser utilizadas como substitutivas da arma de fogo. Encerrados os trabalhos dessa mesa, ainda na parte da tarde, os participantes foram divididos em três oficinas temáticas: a) elementos para a criação de uma matriz curricular sobre uso da força; b) letalidade da ação policial no Brasil: o que fazer para superar este cenário?; c) avaliação das justificativas para uso da força policial. O critério para a distribuição dos participantes foi o interesse pela temática e a especialidade de cada um. As oficinas foram estruturadas obedecendo à seguinte metodologia: primeiro, dois especialistas apresentaram as pesquisas por eles realizadas sobre o tema em pauta. Após esta apresenta- 60 Uso progressivo da força: dilemas e desafios Oficina Pergunta Oficina 01 - Elementos para a criação de uma matriz curricular sobre uso da força Que propostas / ações concretas os palestrantes e os presentes propõem para a criação de uma matriz curricular sobre uso da força? Oficina 02 - Letalidade da ação policial no Brasil: o que fazer para superar este cenário? Que propostas / ações concretas os palestrantes e os presentes propõem para a redução da letalidade da ação policial? Oficina 03 - Avaliação das justificativas para uso da força policial Que propostas / ações concretas os palestrantes e os presentes propõem para a concepção de um modelo que viabilize a criação de uma série de instruções normativas que justifiquem o uso da força? A partir destas perguntas, os participantes de cada oficina construíram as seguintes diretrizes para cada uma das temáticas trabalhadas: Oficina Oficina 01 - Elementos para a criação de uma matriz curricular sobre uso da força Propostas • Reformulação dos cursos de formação de policiais, com o objetivo de viabilizar a construção de métodos de treinamento afeitos ao uso progressivo da força; • Aperfeiçoamento dos critérios de seleção dos policiais que atuam no patrulhamento ostensivo, dada a necessidade de que o profissional policial tenha características pessoais que o qualifiquem para o desempenho da função no que diz respeito a autocontrole e limitação dos impulsos. • Institucionalização de um programa de treinamento constante, visando estabelecer claramente as situações nas quais a arma de fogo pode ser utilizada; • Introdução de um treinamento com foco nas armas “menos letais”; • Mudança de doutrina na atuação policial; Oficina 02 - Letalidade da ação policial no Brasil: o que fazer para superar este cenário? • Instituição de um programa de premiações para policiais que não fizeram uso de armas letais em suas ações; • Estabelecimento de programas de apoio psicológico e de assistência social a policiais que participaram de incursões com níveis elevados de letalidade; • Retirada da categoria de “Auto de Resistência” das estatísticas criminais; • Aperfeiçoamento do sistema de acompanhamento da letalidade policial pelas Secretárias de Segurança Publica, com o objetivo de verificar se existe uma possível e potencial relação entre subculturas de determinados batalhões e número de mortes de civis pela polícia; • Reforma das corregedorias de polícia, desvinculando-as dos comandos policiais; Uso Progressivo da Força: dilemas e desafios: resumo de propostas 61 • Retirada do porte de armas dos Bombeiros, para evitar o uso indevido da armas nos chamados “bicos” de segurança armada; • Instituição de um programa de ajuda e amparo legal às famílias vítimas de violência policial. Oficina 03 Avaliação das justificativas para uso da força policial • Estabelecimento do Padrão de Operação Policial (POP) e estímulo ao seu uso, garantindo uma ampla discussão com a sociedade; • Criação de mecanismos de controle interno da atividade policial – gestão (acesso aos dados, relatoria de operação policial, justificativa para o uso da força). • Criação de mecanismos de controle externo da atividade policial através do acesso aos dados, transparência das praticas policiais e fortalecimento das ouvidorias de polícia. • Retirada da categoria de “Auto de Resistência” das estatísticas criminais; • Aperfeiçoamento do sistema de acompanhamento da letalidade policial pelas Secretárias de Segurança Publica, com o objetivo de verificar se existe uma possível e potencial relação entre subculturas de determinados batalhões e número de mortes de civis pela polícia; • Reforma das corregedorias de polícia, desvinculando-as dos comandos policiais; • Retirada do porte de armas dos Bombeiros, para evitar o uso indevido da armas nos chamados “bicos” de segurança armada; • Instituição de um programa de ajuda e amparo legal às famílias vítimas de violência policial. No quinto e último momento, os participantes do seminário foram novamente reunidos em uma plenária para a discussão da necessidade de criação de um protocolo de engajamento no qual as responsabilidades do policial fossem objetivamente apresentadas, especialmente no que se refere ao uso da força letal. O protocolo de engajamento sugerido no âmbito do seminário sobre uso progressivo da força seria uma espécie de regra de bolso, que o policial deve ter em mente antes de atirar, para que esteja garantida tanto a segurança do próprio policial (em termos de avaliação do seu desempenho operacional e de responsabilização por sua ação) como a segurança do cidadão (que passaria a saber claramente quais são as situações na qual o policial está autorizado a atirar). 62 Uso progressivo da força: dilemas e desafios Ficha técnica 1a Conferência Nacional de Segurança Pública Coordenação Executiva: Coordenadora Geral: Regina Miki Secretária Executiva: Fernanda dos Anjos Secretária Executiva Adjunta: Mariana Carvalho Coordenadora de Capacitação: Beatriz Cruz Coordenador de Comunicação: Marcelo de Paiva Coordenador de Infraestrutura: Antonio Gianichini Coordenador de Metodologia: Fábio Deboni Coordenador de Mobilização: Guilherme Leonardi Coordenador de Projetos Especiais: Fernando Antunes Assessora Especial da Coordenação Executiva: Luciane Patrício Assessora de Assuntos do Sistema Penitenciário: Márcia de Alencar Equipe: Adriana Faria, Alberto Kopittke, Alessandro Mendes, Alex Dias, Amanda Ayres, Ana Carla Maurício, André Arruda, Anelize Schuler, Ângela Simão, Atahualpa Coelho, Cíntia Luz, Clarissa Jokowski, Cláudia Gouveia, Daisy Cordeiro, Daniel Avelino, Daniella Cronemberger, Denis Torres, Élida Miranda, Fernanda Barreto, Flávio Tomas, Gisele Barbieri, Gisele Peres, Heloísa Greco, Henrique Dantas, Leandro Celes, Leidiane Lima, Maria Gabriela Peixoto, Maria Thereza Teixeira, Mariana Levy, Mateus Utzig, Priscilla Oliveira, Rafael Santos, Regina Lopes, Renata Florentino, Rodrigo Xavier, Rosier Custódio, Sady Fauth,Sheila Almeida, Socorro Vasconcelos, Tatiana Rivoire, Thales de Moraes, Verônica dos Anjos, Verônica Lins e Wagner Moura. Consultora para a elaboração aos Cadernos Temáticos: Elizabete Albenaz Portal: www.conseg.gov.br