Santa Barbara Portuguese Studies, 2nd Ser., Vol. 4, 2020
VILÉM FLUSSER E O CINEMA DE BOLSO
Cláudia Maria de Queiroz Lambach
Introdução
Esse ensaio é uma reflexão sobre o cinema feito com telefone celular, chamado aqui de “cinema de
bolso”, a partir da visão de Vilém Flusser. Entendemos que o cinema de bolso é uma prática amadora e
profissional que se insere no cinema, mas incide também nas artes visuais, bem como nos estudos sociais
e comportamentais, que resultam muitas vezes em expressões imagéticas criativas (o selfie, por exemplo).
Na teoria do pensador tcheco, tomou-se como pretexto de análise a fotografia, a fim de promover um
diálogo filosófico sobre o que ele chamou de “aparelho”1. Essa teoria nos leva a analisar outros aparelhos
que também produzem imagens. Assim, fomos mergulhados na luz filosófica de Flusser, trazendo o
telefone celular como um “aparelho fotográfico2” e seu sistema como a “caixa preta”. Flusser acreditava
que o programa do aparelho deve ser impenetrável pelo fotógrafo, ou seja, deve ser complexo. Ele
comenta, “Para funcionar, o aparelho precisa de programa ‘rico’. Se fosse ‘pobre’, o funcionário o
esgotaria, e isto seria o fim do jogo.” 3 Assim, ele define a “caixa preta” da seguinte maneira: “Um sistema
assim tão complexo é jamais penetrado totalmente e pode chamar-se caixa preta.”4.
O mundo cinema de bolso
A tecnologia da câmera de telefone celular é o principal objeto da “cinefilia” realizada com telefone
celular, pela influência direta na imagem que produz. Além do mais, observa-se que o artista, ou o
“fonecineasta5”, se aproxima de tudo que envolve a tecnologia do telefone celular, tais como sua câmera,
seus aplicativos, sua bateria, sua conexão com a internet, etc. Assim como Flusser sugeriu em seu estudo
sobre a filosofia da caixa preta, nós também acreditamos que existe um risco grande de as imagens que
observamos nas redes sociais serem cópias entre elas, numa espécie de mimese visual, fruto da atividade
dinâmica tecnológica da contemporaneidade.
Para Flusser é crucial para a liberdade da criação que o artista domine a tecnologia em prol da sua obra,
pois estamos vivendo um momento da democratização dos aparelhos e consequentemente, da imagem.
Ao dominar a tecnologia, o “fonecineasta” entraria a fundo no aparelho, decifrando os seus segredos,
1 Cf. Vilém Flusser, Filosofia da caixa preta: Ensaios para uma filosofía da fotografía (Rio de Janeiro: Relume Dumará,
2002), contracapa.
2 Para Flusser o “aparelho” é “um brinquedo que simula um tipo de pensamento” e o “aparelho fotográfico” é
“um brinquedo que traduz pensamento conceitual em fotografias”. Ibid., 77.
3 Ibid., 24.
4 Ibid.
5 Sempre que nos referirmos ao artista do cinema de bolso, ele será chamado de “fonecineasta”, por ser um
termo que tenta abranger a ação do artista que utiliza, como principal instrumento para a sua arte, um telefone
celular com câmera digital.
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sem se limitar ao funcionamento previsto anteriormente pelos engenheiros que projetaram a câmera6. A
partir daí, nós podemos perceber o artista inserido no ambiente industrial, trazendo benefícios à criação
artística e favorecendo o desenvolvimento da tecnologia. Assim, a inserção do artista no contexto
industrial se revela uma experiência positiva para todos os envolvidos.
Telefone celular, uma “caixa preta” multifuncional
Os primeiros filmes de cinema de bolso surgiram em 2005. Nessa época, esses filmes feitos com celular
apresentavam baixa qualidade na imagem — os pixels eram aparentes, o controle da luz e do som,
precários. Por outro lado, isso não significava um problema sério para os “fonecineastas”, pois esses
defeitos faziam parte de uma linguagem poética a que eles se propunham em seus trabalhos. Esses filmes
tinham características experimentais e as limitações da tecnologia eram claramente exploradas.
Desde 2005 até chegarmos aos dias de hoje, as mudanças e os avanços aconteceram no terreno da
tecnologia celular. Assim como é esperado em trabalhos artísticos, que têm a tecnologia como mediador
da obra, observou-se um desenvolvimento importante dos telefones celulares e, consequentemente, dos
filmes de bolso, que se adaptaram a essas mudanças. Assim, os “fonecineastas” puderam escolher suas
linguagens, permanecendo como realizadores experimentais ou efetivamente explorando a inovação
tecnológica celular, para tentar se aproximar do cinema tradicional.
Outra característica importante é que atualmente, no contexto do cinema de bolso, há uma
predominância de curtas-metragens7, talvez porque o uso do telefone celular na cinematografia ainda
esteja sendo questionado por alguns realizadores. Entretanto, a inserção da câmera do telefone celular na
indústria cinematográfica já é realidade, como no caso, por exemplo, de alguns longas-metragens8
inteiramente realizados com o aparelho.
Com os desenvolvimentos na câmera do pequeno aparelho de comunicação, nós podemos observar
também maior eficácia no que diz respeito à qualidade da imagem. Por exemplo, a câmera está
efetivamente mais rápida, integrando numerosas inovações e serviços. Para as produções audiovisuais, os
telefones celulares permitem enviar imagens, fotografias, sons e vídeos. Dá-se assim uma verdadeira
evolução a favor da criação artística, com muitas aplicações voltadas unicamente para as imagens 9.
Cf. Claudia Lambach, “Le cinéma de poche : les enjeux et les usages (2005/2015)”Thèse de doctorat, Paris:
Université Sorbonne Nouvelle - Paris 3, 2018, 111.
7 Para uma pesquisa realizada sobre cinema de bolso (2018) foi colhido e classificado, entre os anos de 2005 a
2015, um total de 154 curtas-metragens (123 curtas-metragens e uma série de 8 episódios no YouTube, 1 curtametragem do site da Appel e 29 curtas-metragens premiados no Festival Pocket Film de Paris) e 7 longasmetragens. Os curtas foram agrupados dentro de diferentes critérios, como número de visualização no YouTube,
por exemplo. Lambach, “Le cinéma de poche : les enjeux et les usages (2005/2015).”
8 Por exemplo, Olive (2012), USA, de Hooman Khalili e Pat Gilles; The Affair (2014), USA, Craig Ross Jr.; Eau
Argentée (2014), França e Síria, de Ossama Mahamed e Wiam Simav Bedirxan; Tangerine (2015), USA, de Sean
Baker; Charlote SP (2016), Brasil, de Frank Mora; Amaré (2018), Brasil, de Marcel Izidoro; Unsane (2018), USA, de
Steven Soderbergh. Ibid., 545–547.
9 Ibid., 18.
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De toda maneira, o uso do telefone celular para a realização de filmes de bolso é muito democrático. A
existência de filmes amadores tanto quanto de filmes profissionais comprova isso. Um exemplo
importante é o do realizador profissional Steven Soderberg, que filmou inteiramente com telefone celular
o filme Unsane10 (2018). Outro exemplo é do realizador Michel Gondry, que filmou o curta Détour11 (2017).
Outra característica típica do cinema de bolso é quanto à sua forma de difusão, feita através de festivais
pelo mundo todo12, ou via web13.
A tecnologia tem um papel importante no surgimento e na transformação do cinema de bolso, sem falar
da inserção do aparelho dentro da cinematografia. Não se sabe ao certo se a tecnologia dos telefones
celulares se desenvolveu a partir da atenção que a indústria deu ao seu usuário, ou se fomos levados a
usar a câmera graças ao desenvolvimento da tecnologia, como verdadeiros “funcionários”, segundo a
teoria de Flusser. Assim, nós nos arriscamos a considerar uma espécie de parceria natural entre o
“fonecineasta” e a indústria de telefonia celular. Dentro desse contexto, os dois protagonistas, realizador
e indústria, de um modo geral, defendem o desenvolvimento tecnológico em prol da imagem.
O cinema de bolso e o cinema tradicional
A qualidade das imagens feitas com o telefone celular tenta, a cada dia, atingir a perfeição, considerando
como perfeição as imagens realizadas com as câmeras profissionais de grande porte e de última geração.
Assim, a indústria da telefonia celular tem desenvolvido soluções tecnológicas para resolver problemas
como a resolução da imagem, a autonomia da bateria, os espaços e a estocagem de dados, o som, entre
outros.
Para os “fonecineastas” mais radicais da linguagem experimental, essas mudanças tecnológicas não são
tão interessantes para as suas obras, conforme nossos comentários anteriores. Porém, não podemos
ignorar que as câmeras de celular estão se aproximando da performance das câmeras profissionais.
Atualmente, algumas dessas câmeras já estão filmando com qualidade 4K14.
Longa-metragem de 1h38min de duração, colorido, realizado com iPhone 7 Plus e com um orçamento de
1.500.000 dólares. Ibid., 547.
11 Curta-metragem de 11 min de duração, colorido, realizado com iPhone. Esse filme teve o patrocínio da Apple.
Ibid., 548.
12 Foram encontrados numerosos festivais de bolso ou festivais de cinema que têm o cinema de bolso como
categoria de premiação. Mas nem todos tinham informações claras sobre suas ações, por isso classificamos 86
festivais e 3 concursos. Desses festivais, 7 foram patrocinados por marcas específicas de telefone celular, tais
como Apple, Nokia e Sony. Ibid., 56.
13 Os filmes, sobretudo os curtas-metragens, podem ser visualizados em plataformas de vídeo, tais como:
YouTube, Dailymotion, Vimeo, entre outros. Ibid., 232.
14 4K ou resolução 4K, é um formato de alta resolução. Uma imagem 4K corresponde a uma largura de
aproximadamente 4.000 pixels, sendo que o formato exato do 4K é de 4.096 pixels (largura) x 3.112 pixels
(altura). A resolução padrão 4K é quatro vezes maior que a resolução padrão 2K. Cf. Giovanni Fossati, From
grain to pixel: the archival life of film in transition (Amsterdam: Amsterdam University Press, 2009) 285. Tradução livre
do francês.
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Mesmo com boa qualidade de resolução alguns realizadores preferem a utilização de lentes para melhorar
a filmagem. Por exemplo, no longa-metragem Olive (2011), foi usada uma lente suplementar. Sobre esse
filme, Roger Odin comentou:
Os realizadores decidiram se aventurar e filmaram com um telefone celular, o que permitiu
reduzir os custos de produção (o filme custou menos de 500 mil dólares). Com relação à
técnica, os realizadores precisaram usar uma lente de 35mm (formato habitual das câmeras
usadas no cinema) para melhorar a qualidade do trabalho, e para melhorar também a
profundidade de campo. Para filmar, eles criaram um suporte destinado ao smartphone
multifuncional Nokia N8.15
Os realizadores usaram um suporte especial para que pudessem alinhar a lente suplementar junto à lente
do telefone celular. Com isso, eles garantiram uma maior qualidade na imagem. Além do mais, o uso de
uma câmera de celular para a indústria do cinema, guardando as devidas exigências de qualidade, pode
ser positivo no que diz respeito a um ponto muito discutido dentro do cinema: o orçamento dos filmes.
O custo de se usar uma câmera celular é infinitamente mais em conta do que se alugar uma câmera
profissional.
Como se pode perceber, o telefone celular está sendo pensado também para se fazer imagens
cinematográficas. Existe uma grande quantidade de aplicativos voltados a trabalhar a imagem e editá-la,
estimulando a aproximação entre o cinema e o cinema de bolso16.
A criatividade e a “caixa preta” do celular
Criar um filme com o celular é ter a capacidade de achar uma solução artística original a partir da
tecnologia do aparelho. Entretanto, existem pontos importantes para se discutir no que diz respeito à
criação artística com os telefones celulares. Um desses pontos refere-se à realização de imagens por meio
das câmeras digitais, prevista na teoria de Vilém Flusser sobre a criatividade e o uso dos aparelhos.
Com a democratização das câmeras dos aparelhos de celular e o grande volume de imagens produzidas
por essas câmeras, observa-se que existe uma repetição efetiva de imagens, conforme explicaremos mais
adiante. Muitos fatores sociais, econômicos e tecnológicos contribuem para a repetição. Com relação à
tecnologia, nós sabemos que as imagens produzidas pelas câmeras digitais são o resultado de softwares
previamente elaborados que preveem a eficácia do aparelho. Entretanto, isso pode ser considerado
negativo para a criação artística, segundo a teoria de Flusser17.
15 Cf.
Roger Odin, “Quand le téléphone portable rencontre le cinéma” in Téléphone mobile et création. Ed. Laurence
Allard, Laurent Creton, and Roger Odin (Paris: Armand Colin, 2014) 47. Tradução livre do francês.
16 Lambach, “Le cinéma de poche : les enjeux et les usages (2005/2015)” 35.
17 Ibid., 90.
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Para o filósofo, a liberdade de criação artística passa pelo acesso aos “segredos” do aparelho. Ou seja, é
importante que o artista possa desvendar o funcionamento da máquina, na sua tecnologia, e,
consequentemente, possa de fato criar.
Vilém Flusser e a liberdade de criação
Os estudos de Flusser são voltados à análise de uma sociedade cada vez mais movida pela tecnologia,
considerando a importância de ir a fundo no funcionamento da tecnologia para que se possam fazer
imagens mais criativas. Para Flusser, é um problema que o artista, ou “funcionário”, se limite apenas a
fazer suas imagens a partir do que o manual da máquina impõe.
O software das câmeras é programado para traduzir uma ação humana, que é a de tirar uma foto ou fazer
um filme, e a transformá-la em imagem digital18. Flusser apontava a existência de conflito entre a
programação do aparelho e a criatividade das imagens. Ele acreditava que, no momento em que o artista
cria suas imagens, ele também cria, juntamente com todos os engenheiros e técnicos que projetaram o
software, uma imagem prevista anteriormente. Dessa maneira, a imagem não seria nem tão criativa, nem
tão inédita.
Em contrapartida, se o artista descobre os segredos da máquina, ele pode estimular a performance do
aparelho, gerando outras formas de utilização com o objetivo de multiplicar as possibilidades criativas.
“Flusser acreditava que um estudo mais profundo da tecnologia do aparelho produz para o artista o
sentimento de poder e liberdade”19. Logo, seria urgente que este artista não se deixasse dominar pela
tecnologia da “caixa preta”.
Para Flusser, se fizermos imagens sem nos preocuparmos com o que acontece de fato dentro do aparelho,
estaremos repetindo as imagens que já foram feitas em outras ocasiões, por outros fotógrafos ou
“fonecineastas”. Pelo simples fato de fotografar e filmar uma ação, ou seja, de apertar o botão, nós
escolhemos o que vai ser fotografado e, por conseguinte, regulamos o software, que transcodifica em
imagem aquilo que já estava previsto pelo aparelho. Se nós nos basearmos somente no manual, estaremos
dando, a todos os técnicos que planejaram e conceberam o software do aparelho, o verdadeiro poder de
fotografar a nossa própria imagem20.
Com relação à repetição e ao uso das câmeras na sociedade contemporânea, Gunter Gebauer e Christoph
Wulf comentam:
As imagens são misturadas, trocadas entre elas e se referem mimeticamente a outras imagens.
(...) As imagens diferentes se parecem por causa de sua forma unidimensional e ao seu caráter
eletrônico e miniaturizado, apesar das diferenças em seu conteúdo. Elas participam da
Ibid., 111.
Cf. Vilém Flusser, Pour une philosophie de la photographie, vols. (Strasbourg: Circé, 1996).
20 Ibid.
18
19
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profunda transformação mimética das imagens de hoje; elas fragmentam as coisas e as
transpõem num mundo de aparências. Cada vez mais, as imagens produzidas são as suas
próprias referências.21
A criatividade, para o artista que utiliza a tecnologia digital para a execução de seus trabalhos, é
fundamental. Para preservar a possibilidade da criatividade, é importante decifrar os “segredos” do
aparelho a fim de se ter um resultado artístico mais positivo e menos repetitivo, mesmo sabendo que em
algum nível a repetição acontece. Em outras palavras, é necessário fazer da tecnologia um verdadeiro
instrumento a favor de seus usuários, e não ao contrário.
A teoria de Flusser, com relação ao uso da tecnologia, tem aspectos pragmáticos claros. O artista da
imagem precisa superar o trabalho dos programadores, contestando que eles já teriam previsto todas as
possibilidades de efeitos criativos gerados pelo aparelho, mostrando que sempre há possibilidades que
não podem ser tecnicamente previsíveis. O artista da imagem precisa ter consciência dos aspectos
negativos da tecnologia para o trabalho artístico.
Se o artista depende da tecnologia da máquina para criar suas imagens, elas correm risco real de se
repetirem. É desolador pensar dessa maneira, sobretudo para as artes digitais. Entretanto, se o artista vai
além dos limites impostos pela máquina, se dão as condições para a criatividade artística digital.
Subentende-se que a criatividade artística é condição para o desenvolvimento de novas expressões
artísticas e, consequentemente, para o desenvolvimento de novas tecnologias.
Assinalamos dois aspectos importantes da perspectiva de Flusser. O primeiro foca na formação do artista,
que se deve voltar também para a aprendizagem da tecnologia, a fim de controlar da melhor maneira o
aparelho e, dessa maneira, obter imagens verdadeiramente criativas. O segundo aspecto foca na
necessidade de o artista fazer parte das equipes de desenvolvimento tecnológico nas indústrias, a fim de
se aprimorar e conhecer melhor a indústria, trazendo suas experiências artísticas em favor do
desenvolvimento da tecnologia22.
Segundo Flusser, hoje em dia a arte é um modelo de vivência concreta do artista dentro do mundo. Isso
acontece graças à percepção que se tem da imagem artística. As cores, as perspectivas, isto é, toda a
percepção do artista em se exprimir em sua obra diz respeito à sua experiência concreta. Para Flusser,
Admito que “arte” e “modelo de vivência” não coincidem totalmente. Por certo, as grandes
obras de arte modelam a nossa vivência do mundo, percebemos o mundo nas cores de Van
Gogh, e “Londres se parece sempre mais com um Turner”. Mas há obras que não são de
“arte”, e que, no entanto, modelam vivências concretas: alguns livros de Wittgenstein, ou o
Cf. Gunter Gebauer and Christoph Wulf, Mimésis culture - art - société (Paris: Ed. du Cerf, 2005) 493. Tradução
livre do francês.
22 Lambach, “Le cinéma de poche : les enjeux et les usages (2005/2015)” 112.
21
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foguete lunar por exemplo. Outras obras, consideradas “artes”, não nos modelam, as obras
ditas “intelectuais” atingem apenas nossas vivências abstratas. Finalmente, ha vivências
aparentemente não modeladas pela cultura, por exemple dores de dentes. No entanto, se
analisarmos as nossas vivencias concretas, constataremos que são, todas elas, culturalmente
modeladas. Sem mediação cultural viveríamos, viveríamos, (perceberíamos, sentiríamos e
desejaríamos), de maneira torpe e inarticulada. Como que anestesiados.23
Para Flusser, sem essa mediação cultural, as experiências individuais e coletivas seriam incapazes de
conviver e por consequência não existiria articulação social, no sentido das relações. Estaríamos assim
anestesiados, como ele colocou no seu texto logo acima.
Com a imagem digital contemporânea, as articulações sociais mudaram porque a natureza da imagem
também foi modificada. Para Flusser, essas experiências imagéticas são analisadas pelo aparelho, isto é,
são calculadas graças à intervenção da tecnologia24. Assim, a imagem é traduzida através dos algoritmos25,
na linguagem interna do aparelho, após a intermediação em que a imagem é transformada em imagem
digital. Graças a este processo da tecnologia é possível garantir que a imagem dê forma à experiência do
artista. Flusser completou também que quem vê uma imagem digital está visualizando na realidade, os
cálculos que se tornaram imagem. Assim o percurso que vai das pinturas rupestres até as imagens digitais,
representa uma verdadeira revolução estética. Segundo Flusser,
O programador não é escritor, embora escreva, (pré-escreva). Não é pintor, embora seu
escrever resulte em imagens. Não é compositor, embora seu escrever resulte em sons
sintetizados. Porque o modelo por ele programado, embora “textual” (pode falar), embora
pictural (pode ser composto de formas coloridas), e, embora musical (pode ser sonoro),
transcende os códigos estéticos do passado. Com efeito, o programador está precisamente
em tal transcendência com relação aos modelos estéticos que a tradição nos transmitiu. É tal
transcendência e radicalidade da revolução estética que estamos testemunhando.26
Existem outras formas de expressão artística que são igualmente calculadas, tais como a música e o
desenho. No caso da música, o compositor conhece os códigos musicais e pode utilizá-los
matematicamente, a fim de criar uma sucessão de sons e harmonias que resultam na produção musical.
No caso do artista digital, ou do “fonecineasta”, é comum que ele não conheça os códigos internos dos
algoritmos da câmera, mas ele é capaz de programar as suas funções graças aos softwares que estão à sua
23 Cf. Vilém
Flusser, « Sintetizar imagens » [Synthétiser des images], Iris, n° 381,382 et 383, maio-julho 1985.
Disponível : http://www.flusserbrasil.com/art264.pdf (consulté le 4 octobre 2017).
24 Lambach, “Le cinéma de poche : les enjeux et les usages (2005/2015)” 114.
25 Algumas definições de algoritmo: um procedimento passo a passo para a solução de um problema; uma
sequência detalhada de ações a serem executadas para realizar alguma tarefa. Cf. Marco Medina and Cristina
Ferting, Algoritmos e programação: teoria e prática (São Paulo: Novatec, 2006) 13.
26 Flusser, “Sintetizar imagens” 3.
Santa Barbara Portuguese Studies, 2nd Ser., Vol. 4, 2020
disposição para a criação de imagens. O aparelho apenas executa. A consequência disso é termos um
simples operador do aparelho, ou “funcionário”, conforme Flusser sugeriu, que executa tarefas no
aparelho tecnológico. O ideal seria que o artista tirasse o melhor proveito da tecnologia a favor da sua
criatividade27.
Democratização
Quando Flusser reflete sobre a democratização da fotografia, ele sugere que a sociedade está programada
para consumir tecnologia, graças à publicidade efetiva e subliminar que nos rodeia e que tem o poder de
estimular o consumo. Os fotógrafos amadores também são programados para consumir e alimentar a
indústria da tecnologia das câmeras fotográficas domésticas28. Assim, a cada lançamento que surge no
mercado, nós observamos que os aparelhos são menores, mais baratos, mais automatizados e mais
eficazes, em comparação com os modelos anteriores. Além do mais, acreditamos que a indústria sempre
esteja conectada com o consumidor, a fim de conhecer suas necessidades e renovar seus aparelhos a
partir da preferência do usuário. Parece ser assim que o mercado funciona.
A indústria, em plena expansão, desenvolve uma variedade considerável de aparelhos concorrentes entre
si, com tecnologias cada vez mais sofisticadas e eficazes. Esses aparelhos oferecem ao consumidor
equipamentos economicamente acessíveis, com custos relativamente baixos. Esta tecnologia é vendida,
para o consumidor, com base na promoção da praticidade da vida cotidiana.
Flusser observou que “os aparelhos se aperfeiçoam progressivamente pelo feed-back social, e a sociedade
funciona enquanto funcionária de aparelhos.”29 Em outras palavras, os usuários são funcionários e os
aparelhos os dominam30. A engrenagem que envolve a produção e o consumo no qual estão inseridos a
indústria, o mercado e a sociedade, parece ser mais positiva para a evolução da tecnologia do que para a
criatividade artística.
O pensador comparou também as câmeras fotográficas com o jogo de xadrez. Na sua visão clara sobre
a tecnologia, ele explica que mesmo que o aparelho tenha uma estrutura complexa, sua utilização é
simples, se resumindo em três ações: olhar, regular e clicar o botão. Ao contrário da câmera fotográfica, o
jogo de xadrez é simples, mas sua utilização se mostra bem mais complexa. Assim, aparelhos tais como
as câmeras fotográficas, os tablets, os computadores e os telefones celulares se revelam efetivamente fáceis
de usar.
Lambach, “Le cinéma de poche : les enjeux et les usages (2005/2015)” 114.
Um bom exemplo é o surgimento das câmeras Instamatic Kodak em 1965. A publicidade feita no jornal
francês Paris-Match (n°870, em 11 de dezembro de 1965) estimulava o uso amador da câmera com a frase
“Kodak revoluciona o cinema amador!”. Cf. Bernard Germain, Le cinéma en amateur, Ed. Roger Odin,
Communications 68.1999 (Paris: Éd. du Seuil, 1999) 174. Tradução livre do francês.
29 Cf. Vilém Flusser, “Da democratização da fotografia” Iris. , 1983: 8, online, Internet, 8 Jun. 2017. Disponível:
http://www.flusserbrasil.com/.
30 Lambach, “Le cinéma de poche : les enjeux et les usages (2005/2015)” 115.
27
28
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Existem dois aspectos importantes que facilitam a utilização dos aparelhos e que são parte integrante da
democratização da tecnologia, ou seja, do uso da tecnologia dos aparelhos por um grande número de
usuários.
Em primeiro lugar, a lógica tecnológica dos aparelhos (as funções, os comandos, os atalhos) baseada na
linguagem informática é praticamente a mesma em quase todos os aparelhos. A única diferença entre os
softwares e os modos de funcionamento surge quando existem comandos particulares voltados à
performance específica de um aparelho, como, por exemplo, a abertura do diafragma, no caso da câmera
fotográfica.
Em segundo lugar, existe um volume considerável de informações disponíveis, no manual e na internet,
para orientar a manipulação dos aparelhos – logo, ninguém precisa se aprofundar muito na tecnologia
envolvida para utilizar uma pequena câmera digital de mão. É suficiente ler o manual, utilizando o seu
aparelho e o conectando com outros aparelhos31. Para os aparelhos mais sofisticados e profissionais, no
entanto, é necessário ter conhecimento técnico mais aprofundado para a melhor utilização e desempenho.
Por exemplo, no caso da fotografia, o fotógrafo lança mão de conhecimentos técnicos adquiridos através
de estudos e de muita pesquisa.
Conclusão
As reflexões de Flusser nos fazem pensar na aproximação existente entre o artista e a indústria. Nós
analisamos que fazer filmes com aparelhos de telefonia celular implica também explorar a sua tecnologia,
trazendo para a cultura contemporânea múltiplas facetas criativas da cultura do celular. Do ponto de vista
contemporâneo, tais aparelhos envolvem tanto comunicação quanto expressão criativa. Nesse contexto,
observamos a interferência cada vez mais forte da tecnologia, com o objetivo de melhorar ainda mais a
performance. Destaca-se, desse modo, a importância do papel do artista tecnológico na criação de obras
inovadoras.
Assim, a integração do artista nesse contexto de valores e de mercado é uma experiência positiva para
ambas as partes envolvidas, o artista e a indústria, pois estimular ambientes favoráveis à criação dentro
da indústria já faz parte da realidade da cultura contemporânea. Atualmente, existe uma série de
estratégias que favorecem essa parceria, como é o caso da economia criativa que, através das expressões
artísticas multifacetadas, se torna um eixo habilidoso para o desenvolvimento tecnológico da sociedade
contemporânea.
Na cultura do celular, existe o “fonecineasta”, mas existe também a sociedade, que é tecnologicamente
ativa e que participa intensamente do uso criativo da tecnologia. Muitos desenvolvimentos foram
observados dentro dessa sociedade. Com o surgimento dessa cultura do celular e, em consequência, com
31
Ibid., 116.
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o surgimento do cinema de bolso, a economia se voltou para a imagem e os modos de difusão
apresentaram novas perspectivas de propagação da mesma imagem.
Assim, nós acreditamos que o cinema de bolso se insere nesse contexto atual de estratégias de
desenvolvimento, enquanto que a cultura do celular evidencia a troca de informações e de experiências
criativas, as quais, por sua vez, resultam em novas descobertas tecnológicas. Portanto, esse amálgama,
imagem e tecnologia, favorece o consumo, o mercado, a criação artística e a sociedade como um todo.
Referências bibliográficas
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http://www.flusserbrasil.com/.
———. Filosofia da caixa preta: Ensaios para uma filosofía da fotografía. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
———. Pour une philosophie de la photographie. Strasbourg: Circé, 1996.
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Fossati, Giovanni. From grain to pixel: the archival life of film in transition. Amsterdam: Amsterdam University
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Medina, Marco, and Cristina Ferting. Algoritmos e programação: teoria e prática. São Paulo: Novatec, 2006.
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