Vol. 12 | N. 03 | 2013
ISSN 2237-6291
HOBBES E SARAMAGO
Indalécio Robson P. P. Alves da Rocha*
Itamar Luís Gelain**
Glaci Gurgacz***
Resumo: Este artigo tem por objetivo discutir o direito natural e o estado de natureza humana
a partir da perspectiva de Hobbes e Saramago. Para isso, num primeiro momento, explicita-se
o estado de natureza tal como é concebido na filosofia hobbesiana. Em um segundo momento,
trata-se de considerar a filosofia saramaguiana sob o viés pessimista acerca da condição
humana. Dialeticamente, em um terceiro momento, cotejam-se as ideais de ambos os autores
sob o prisma jurídico-natural da igualdade, da liberdade e da propriedade.
Palavras-chave: Hobbes. Saramago. Natureza humana. Direitos naturais.
Hobbes And Saramago
Abstract: This article aims to discuss the natural law and nature human state from the
perspective of Hobbes and Saramago. For this, at first, explicitly if the state of nature as it is
conceived in the Hobbes philosophy. In a second moment, it is about to consider the
Saramago philosophy under pessimistic about the human condition bias. Dialectically, in a
third stage, mingle of ideal for both authors under the legal and natural prism of equality,
liberty and property.
Keywords: Hobbes. Saramago. Human nature. Natural rights.
Considerações iniciais
Assumindo-se basilarmente uma inquietação com os atuais pressupostos jurídicos
positivistas técnicos e normativistas, o presente artigo intenciona a ponderar sobre questões
dos direitos naturais e do estado de natureza humana na perspectiva de Hobbes, isso
alicerçado à filosofia e literatura de Saramago. Ambos os autores, cada um em seu tempo,
*
Acadêmico do Curso de Direito do Centro Universitário - Católica de Santa Catarina/CATÓLICASC. E-mail:
[email protected]
**
Doutorando em Filosofia na UFSC e Professor no Centro Universitário - Católica de Santa
Catarina/CATÓLICASC. E-mail:
[email protected] (Orientador)
***
Doutora em Literatura pela UFSC e Professora no Centro Universitário - Católica de Santa
Catarina/CATÓLICASC. E-mail:
[email protected] (Orientadora)
Revista Litterarius – Faculdade Palotina
www.fapas.edu.br/revistas/litterarius
[email protected]
Hobbes e Saramago
Indalécio Robson P. P. Alves da Rocha; Itamar Luís Gelain; Glaci Gurgacz
tematizaram a condição humana em um estado de „miséria‟. Seja Hobbes e o estado de guerra
de todos contra todos. Seja Saramago e a desgraça acarretada pela perda da visão e revelação
da verdadeira interioridade humana. No primeiro, o homem é o lobo do homem e de tal forma
necessita-se de uma reconsideração do convívio em sociedade, surgindo daí o estado civil. No
segundo, proporcionalmente inverso, extingue-se o estado civil e retorna-se ao ideal do estado
de natureza humana, no qual o mais forte ou adaptável dos homens se sobressai aos demais.
Esse texto busca discutir acerca dos direitos naturais da igualdade, da liberdade e da
propriedade, tanto na ótica de Hobbes quanto de Saramago, e põem-se os autores a
conversarem num tom a caracterizar, ou propriamente, desvelar a natureza humana perversa
frente a situações extremas de convivência, sobrevivência ou supervivência. Inspirado por
sentimentos nacionalistas e com o intuito de personificar a natureza humana, Hobbes
considera o homem de seu tempo como o qualitativo da filosofia de sua condição humana.
Por sua vez, é expondo ao cárcere da dignidade humana fatos corriqueiros do cotidiano que
Saramago condensa toda sua narrativa filosófica no que o homem pode conceber de pior da
sua personalidade natural, personificado na covardia, no menosprezo, na raiva, no medo, na
insegurança. Fato é que ambos os autores assumem uma visão pessimista sobre a verdadeira
face humana. Nesse sentido, busca-se um Direito que reconsidere o exposto e faça do debate
filosófico algo muito mais presente no campo científico-jurídico.
1 Hobbes e o Leviatã
O contexto histórico em que Hobbes viveu personificou sua filosofia. O momento era
de tensão com a Revolução Gloriosa na Inglaterra do século XVII e os conflitos entre o
parlamento e a monarquia (NASCIMENTO; NASCIMENTO, 2008). Representados nas
figuras de Oliver Cromwell, representante da pequena burguesia puritana, e Carlos I, monarca
absolutista, os conflitos dessa época tornaram-se fonte de inspiração da filosofia hobbessiana.
Hobbes viu seu país num momento de guerra e os acontecimentos de sua época
direcionaram todo seu pensamento no intuito de criar uma doutrina que apaziguasse os
conflitos reinantes. Foi perante os fatos do século XVII que Hobbes, exilado na França,
escreveu sua obra de maior prestígio, Leviatã ou Matéria, forma e poder de uma comunidade
eclesiástica e civil, datada sua primeira publicação em 1651. Sua preocupação era tal que na
carta que escreveu a Sr. Francis Godolphin, irmão de Sr. Sidney Godolphin, relata que dentre
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as virtudes que a um homem são dadas, está o serviço ao seu país ou a sociedade civil
(HOBBES, 2005).
Em uma conversa com Clarendon, à pergunta “por que proclamava semelhantes
doutrinas?”, Hobbes respondeu: “O fato é que tenho vontade de voltar para a Inglaterra”
(CANTU, 1958, p. 130). O filósofo inglês, saudosista e intimidado, fez de seu medo e
vontade de paz, sentimentos impulsionadores de seu pensamento.
Ficou reconhecido como teórico do poder soberano dentre os jusnaturalistas devido à
obra citada, na qual também tratou da natureza humana. Para Hobbes, o estado de natureza
humana é o estado de guerra. A liberdade é irrestrita, podendo os homens uns aos outros se
lesarem, invadirem e prejudicarem, pois não há a existência de um Estado maior, que, através
do poder coercitivo, os impeça disso (BITTAR; ALMEIDA, 2010). Busca-se, nesse sentido, a
explicitação do estado de natureza humana como forma de demonstrar o caráter perverso do
homem.
Hobbes (2005), ao iniciar sua especulação do estado de natureza humana, elabora sutil
distinção entre as faculdades do corpo e da mente. A natureza não fez os homens em
igualdade perante esses quesitos e que há certa distinção entre os homens mais dotados de
uma ou de outra faculdade. No entanto, isso não daria o direito de requererem algum tipo de
benefício para si, pois, o homem menos dotado de força tem o suficiente para matar o mais
forte, quer seja por utilização de armas ou por ajuda de aliados (HOBBES, 2005).
Quanto à faculdade da mente, Hobbes atenta que, apesar de ser algo que pode ser
adquirido por todos os homens em virtude da experiência e dedicação a algo, o problema está
na vaidade da própria sabedoria. Todos os homens, apesar de conseguirem enxergar deveras
inteligência e ciência em outro homem, dificilmente considerarão a sabedoria alheia. Apenas
aquela que é intrínseca a si é verdadeira, pois estes podem vê-la de perto. Já quanto a dos
outros, apenas enxergarão a curta distância. Nesse ponto, repara-se que existe uma igualdade
entre os homens, pois não há melhor equidade do que o fato de se contentar com aquilo que
lhe cabe, que lhe é próprio (HOBBES, 2005).
Se existe igualdade, existe também quanto à capacidade de querer, de se atingir
determinado fim. Essa capacidade igualitária gera o sentimento de desconfiança e se tem
então o perigo. Como nas palavras do próprio autor (2005, p. 75): “se dois homens desejam a
mesma coisa, ao mesmo tempo em que é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se
inimigos”. Ser inimigo um do outro significa guerra e conservação própria, isto implica que
um se esforçará em destruir e subjugar o outro visando seus próprios interesses. Devido a tal
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desconfiança é que os homens vivem amedrontados num estado de defesa, na resguarda de
um confronto iminente.
Desse modo, a convivência humana se torna insuportável e o desprazer com relação ao
outro é de tamanha grandeza que não existe solidariedade. Todo esse ideal é consequência de
um fator: a não existência de um poder em comum que os una. De um guia soberano
(HOBBES, 2005). Tal é o estado que o autor expõe: “na natureza do homem encontramos três
causas principais de discórdia: primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; terceiro, a
glória” (HOBBES, 2005, p. 76). A primeira leva o homem ao conflito, à medida que a
segunda é a insegurança devido a essa potencialidade. A terceira revela a miséria da condição
humana: a reputação. Em busca de honrarias, títulos e ninharias, os homens subjugam uns aos
outros, passando por cima de qualquer um, em qualquer hipótese, visando ambições próprias.
A reputação é talvez, o norte guiador da competição e da desconfiança. No estado de
natureza, glória é sinônima de instigação à morte (HOBBES, 2005).
Assim, o homem está em um estado de guerra: “É uma guerra que é de todos os
homens contra todos os homens” (HOBBES, 2005, p. 76). Essa guerra não representa apenas
o momento e o ato da batalha, mas sim o conhecimento do perigo iminente que é propício do
contexto. Tudo que é válido em um tempo de guerra é valido para essa condição, em que o
perigo é instantâneo, pois, para os homens assegurarem respectiva proteção, disponibilizarão
apenas e somente de sua própria força e genialidade de invenção estratégica (HOBBES,
2005). Tal forma é o estado de natureza: a vida do homem é “solitária, miserável, sórdida,
selvagem e curta” (HOBBES, 2005, p.76).
Nessa perspectiva, pode-se pensar que um estado assim nunca existiu na história ou
que nunca fora objeto de experiência humana. No entanto, repara-se que o ideal pode ser
observado se atentamente projetar-se a doutrina aos povos da América da época de sua
descoberta, no século XVI. Chega-se, então, a conclusão de que várias tribos viveram da
maneira exposta. Essa significação é dada somente por um único fator: o Estado. Assim, no
ideal do estado hobbessiano ou em alguns povos tribais da América do século XVI, o estado
de guerra se dá pela abstenção de um poder em comum a todos. Esse poder se personifica no
estado civil, ou no grande Leviatã.
No estado de guerra, “a força e a fraude são as duas virtudes cardeais” (HOBBES,
2005, p. 77). Onde não há um poder em comum não há injustiças, visto que o conceito de
certo ou errado, justo ou injusto é estipulado pelo mesmo poder, e que a existência do
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conceito de justiça depende dessa soberania comum a todos. Coloca-se então o estado de
natureza diametralmente oposto ao estado civil (HOBBES, 2005).
Ressalta-se, ainda, que na mesma condição a inexistência da propriedade é um fato
propício à luta. Dado ao afirmar que todos possuem liberdade igualmente, é certo que
consequentemente a propriedade seguirá o mesmo critério. Tudo é de todos e por isso a
iminência de conflito é própria da condição. Onde há um interesse comum entre homens sobre
uma propriedade com certeza haverá também a luta. Determinará aquele que conseguir
manter seu poder sobre a propriedade independentemente da forma que se utilizar para
conservá-la. É nesta miserável condição natural que o homem se encontra, e é esta a célebre
frase que sintetiza a filosofia de Hobbes: “o homem é o lobo do homem” (HOBBES, 2005, p.
76).
2 Saramago e o Ensaio sobre a Cegueira
Escrita em 1995 a obra portuguesa teve repercussão mundial. Sendo uma posição
política do próprio autor quanto ao contexto em que vivia Portugal no final do século XX, a
obra também expõe vasto conteúdo moral e ético. Além do cunho político, a obra de
Saramago é filosófica. Como observado na resenha do romance: “cada leitor viverá uma
experiência imaginativa única. Num ponto onde se cruzam literatura e sabedoria. José
Saramago nos obriga a parar, fechar os olhos e ver” (SARAMAGO, 2008).
Saramago preza por não atribuir nomenclatura específica e tradicional a eles.
Identifica-os ou por qualidades que lhes são próprias ou por alguma situação em que a
enquadrou mais especificamente em seu romance. Assim surgem os personagens como o
Primeiro Cego, o Ladrão de carro, o Médico, a Mulher do Médico, a Garota dos óculos
escuros e até mesmo o Cão de lágrimas, dentre tantos outros.
Nesse sentido, o filósofo lusitano “fala de vidas banalizadas, de medos insondáveis, de
máscaras anônimas, de amores vãos, de brutalidades excessivas, mas também de esperanças
absurdas, de solidariedades tenazes, de laços viáveis”. Segundo Caldas, o autor português
mescla o simbólico e o imaginário com o real numa escrita cujo efeito é um „despertar‟ (2011,
p. 2).
Nessa ótica, ao contexto filosófico em que o autor insere seus personagens, não se
fazem necessários nomes já que são características culturais do ser humano e, assim sendo,
não são propícios ao momento. O estado é tal que os homens são como animais e não se
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reconhecem com o auxílio de nominações, mas sim como cães, através do cheiro, do ladrar,
do falar. O resto como cor dos olhos, da pele, do cabelo, não conta. É como se não estivessem
ali (SARAMAGO, 2008, p. 183). A preocupação em ressaltar isso é tanta que os critérios de
sobrevivência se dão num primeiro momento pela „comida‟ que é necessária ao corpo, depois
pela „organização‟ que é „indispensável à vida‟ (SARAMAGO, 2008, p. 110). Esse último
ponto nada mais é, então, que uma ideologia.
Assim, apresenta-se aquilo que fundara o malefício humano na obra. O fato é que a
maldade humana intensifica-se perante situações extremadas de sobrevivência. O estado posto
por Saramago é igualitário e demonstra a rebeldia selvagem em que o ser humano se
apresenta perante as dificuldades enfrentadas nessa miserável condição.
Trata-se de uma narrativa em que uma epidemia de cegueira (a cegueira branca),
manifestou-se no globo inteiro começando com um motorista parado em um semáforo, a
cegueira alastrou-se de maneira incontrolável. Em um instante o Primeiro Cego se viu em
uma “treva branca”, como se tivesse mergulhado em um “mar de leite” (SARAMAGO, 2008,
p. 13).
O Governo que “considera ser seu direito e seu dever, proteger por todos os meios as
populações” na crise que estariam a atravessar, toma medidas extremas promovendo uma
quarentena imediata dos cegos infectados e das pessoas supostamente contaminadas
(SARAMAGO, 2008, p. 45-50). Assim são trancafiados em um antigo manicômio, sem as
adequações necessárias aos isolados. O critério de escolha do espaço teve como base apenas a
facilidade econômica e jurídica, além de se apresentar, dentre as opções, a melhor e mais
viável de se vigiar militarmente, pouco se importando para quem estavam a isolar e como isso
se daria posteriormente. As acomodações básicas à vida humana não foram objeto de
especulação e muito menos de preocupação, o importante era isolar os cegos e contaminados
o mais rápido possível.
A Mulher do Médico, umas das personagens protagonistas que no decorrer do
romance não adquiri a cegueira, é levada junto de seu marido, o Médico, ao manicômio e para
isso conta com sua astúcia, fingindo não enxergar apenas para acompanhá-lo na quarentena.
Assim é atribuído a ela o sentimento de esperança, pois é a única a continuar enxergando. Ao
passo que se atribui esse sentimento, dá-se a ela o presente da desgraça da miséria humana: a
capacidade de ver, quando ninguém mais pode, muitas vezes revela verdades. É assim que
Saramago revela a verdadeira natureza humana.
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É no manicômio, então, que se inicia o martírio da carne e o flagelo da dignidade
humana. A miséria da vida em seu mais primitivo estado, no qual a maldade, então inerente à
condição humana aflora-se. A vida perde o sentido da comunidade civil e a liberdade é algo
relativo. Começa-se o desfecho de uma especulação das extremidades da natureza humana.
Nas palavras do próprio autor: “[...] quando a aflição aperta, quando o corpo se nos desmanda
de dor e angústia, então é que se vê o animalzinho que somos” (SARAMAGO, 2008, p. 242).
3 Cotejo entre Hobbes e Saramago
Apresentam-se em pauta dois grandes autores. De um lado, um representante da
cultura portuguesa, eternizado em monumental obra, por outro lado, tem-se um representante
da cultura inglesa, eternizado em obra não menos enfática. Tem-se então uma conjuntura
com dupla potencialidade visto que são dois „filósofos‟ representantes de seu tempo, que
tiveram preocupações semelhantes com seu povo e o seu país.
Saramago, que no intuito de orientar Portugal do final do século XX, critica o sistema
político ao pedir que se comece a “olhar e ver” (2008). Cogita-se em função da metáfora
saramaguiana um estado de abstenção do poder civil, onde será apresentada a verdadeira
natureza humana. De tal forma é que o principal emblema hereditário de Hobbes (2005), o
primeiro contratualista, está intimamente relacionado à obra do autor português, sendo que
para promover o pacto o filósofo inglês lança-se em igual tessitura à especulação da natureza
humana. Ora literariamente, ora filosoficamente, se abre um campo fértil para a concretização
do conhecimento acerca da condição humana. Essa mescla dar-se-á no campo de três
elementos primordiais do direito: a igualdade, a liberdade e a propriedade.
A princípio explicita-se aqui o estado de natureza humana de Hobbes. A guerra de
“todos contra todos” e “o homem é o lobo do homem” (HOBBES, 2005, p. 75) irão mesclarse ao “esse animalzinho que somos” (SARAMAGO, 2008, p. 242). Em um segundo
momento, trata-se de adaptar o “estado de anarquia permanente” de Hobbes (BOBBIO, 2006,
p. 35), a essa longínqua “distancia do mundo” que é experimentada no manicômio
saramaguiano (SARAMAGO, 2008, p.64).
É substancial para tal lembrar-se de Fuller (2012) e Dimoulis (2012) que põem em
discutição a questão da moral e da justiça, ora alternando entre o campo jusnatural e
juspositivista. Serve-se este trabalho muito mais do primeiro, sendo que as leis positivadas
não serão aplicáveis no mundo saramaguiano e hobbessiano, pois, “o direito positivo
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pressupõem a possibilidade de coexistência dos homens em sociedade” (FULLER, 2012, p.
19). Não se pode dizer que exista alguma possibilidade de coexistência no enredo da obra
literária de Saramago e isso é ressaltado de forma berrante na essência hobbessiana. Saramago
(2008) propõem algo que, segundo Pondé (2012), se o for considerado, será uma limitação da
jovem sociedade pós-moderna: o homem é mal. Hobbes (2005) o ratifica. 1
Imagina-se então que o manicômio seja o momento anterior ao contrato social. O
estado natural da humanidade está aflorado e todos vivem amedrontados, em condições
miseráveis, inseridos numa luta de sobrevivência sórdida e selvagem, que os contemplam com
uma vida curta e insuportável (HOBBES, 2005). Meireles (2008), produtor do filme baseado
na obra literária, talvez, consiga exprimir e exilar a angústia e a imundice em que está exposta
a humanidade saramaguiana. O próprio literato afirma que escrever o livro foi uma tortura e
ressalta que é esse o sentimento que quer despertar no leitor. 2
Tem-se então o estado natural de Hobbes em Saramago. Em Ensaio sobre a Cegueira
a vida é sobrevivência, a liberdade é relativa e a propriedade é um estigma à morte. Há, no
entanto, um ponto incisivo: existe igualdade. Assim como em Hobbes (2005) a condição
natural gera a igualdade, em Saramago (2008), além da condição natural, tem-se a cegueira
generalizada. Todos estão cegos e creem absolutamente nas certezas e convicções que lhes
são respectivas, verdadeiras e certas, pois a cada um lhe cabe o que é seu. A questão é que
todos estão perante um mesmo contexto, sendo que sobrevive aquele que for: ou o mais forte
ou o mais engenhoso (HOBBES, 2005).
A vida tornou-se então a principal preocupação nesse meio. Sobreviver é o objeto de
sustentação de tudo. Em Saramago e Hobbes, nas suas respectivas ideais de condição
humana que acabam por mesclar-se, a preocupação com a sobrevivência e a vida é maior e
1
É importante salientar que, para o presente trabalho foi concebido o estado natural de maneira adversa de
Locke (1994) e Rousseau. A filosofia lockeana refere-se ao estado de natureza a caracterizá-lo como um Estado
de relativa paz e não numa ótica pessimista como Hobbes (2005). O respectivo Estado de Locke estaria baseado
na concórdia e harmonia mútua entre os homens, diferentemente de Hobbes, que o baseou na “insegurança e
violência” (WEFFORT, 2006, p. 85). Bonavides (2009 p.47), ao criticar os fundamentos burgueses da
Revolução Francesa, julga Locke sendo um indivíduo “ingênuo” ao acreditar na condição natural boa e otimista
do homem. Hobbes diferencia-se também de Rousseau (2013), que baseia sua filosofia na afirmação de que o
“homem nasce bom e a sociedade o corrompe”, fator que leva a filosofia hobbessiana acerca da natureza humana
a se aproximar da filosofia de Maquiavel, que nesse sentido, se não mais, é tão pessimista quanto Hobbes (2008).
O ponto é que tanto Locke quanto Rousseau consideram a natureza humana boa, diferentemente de Maquiavel,
Hobbes e Saramago.
2
"Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo.
Nele se descreve uma longa tortura. É um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais
dolorosas da minha vida. São 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos
bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso" (SARAMAGO, 2008).
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mais necessária de todas. Tal é que, no estado de natureza do filósofo, assim como no mundo
cego do literato, o único objetivo da humanidade é subsistir:
Não sei se haverá futuro, do que agora se trata é de saber como poderemos viver
neste presente [...] Voltemos à questão, disse a mulher do médico, se continuarmos
juntos talvez consigamos sobreviver, se nos separarmos seremos engolidos pela
massa (SARAMAGO, 2008, p. 245).
Essa adversidade da sobrevivência suscita o debate sobre justiça. Na obra de
Saramago a vida adquire conotação de supervivência, atestada pelo momento em que a
Mulher do Médico mata o Monarca tirano que é possuidor do poder coercitivo de dominação.
Ou até mesmo no tratamento dos militares com os doentes em que o simples pisar perto do
portão do manicômio significa a perda da vida. O fato é que no estado de natureza a vida
realmente é curta e a iminência do perigo é constante, pois, o conceito de justiça é algo
relativo ou até mesmo inexistente. Saramago comprova o dado:
Pode ser que a humanidade venha a conseguir viver sem olhos, mas então deixará de
ser humanidade, o resultado está à vista, qual de nós se considerará ainda tão
humano como antes cria ser, eu, por exemplo, matei um homem, Mataste um
homem, espantou-se o primeiro cego, Sim, o que mandava do outro lado, espetei-lhe
uma tesoura na garganta, Mataste para vingar-nos, para vingar as mulheres tinha de
ser uma mulher, disse a rapariga dos óculos escuros, e a vingança, sendo justa, é
coisa humana, se a vítima não tiver um direito sobre o carrasco, então não haverá
justiça, Nem humanidade, acrescentou a mulher do primeiro cego (2008, p. 244245).
Essa conotação adquirida é implícita ao contexto de imunidade e isenção de sanções
de uma estrutural estatal. Quando se fala de liberdade em Saramago implica-se na perda da
limitação. Normalmente o cotidiano é organizado por um conjunto de normas morais e
jurídicas. Essa liberdade civil enaltecida por Rawls (1997) é aquela que dá a segurança e
permite a igualdade (equidade). No entanto, quando o mundo fica cego e as pessoas tornam-se
„animais‟ o que há é a liberdade natural. Não há empecilhos morais ou jurídicos, formalmente
postos, que impeçam as pessoas de fazer o que lhes cabem como certo e verdadeiro.
Saramago expõem esse ideal subentendido, por exemplo, na submissão feminina no ato do
estupro coletivo. Além de ser um expoente da força no estado natural hobbessiano (o Monarca
tirano tinha uma arma de fogo e apreendeu toda a comida, ou seja, ele detinha o poder de
propriedade em função de sua força), o fato demonstra a periculosidade da libertinagem.
A não limitação de atos humanos transforma-se em anarquia, no sentido corriqueiro da
palavra, no qual todos fazem o que querem e as consequências são as causas das ações dos
mais fortes ou engenhosos. Salienta-se de tal modo então que a filosofia hobbessiana acerca
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da natureza humana tangencia a maquiavélica. Maquiavel (2008, p. 80) estabelece e
personifica os homens como “ingratos, volúveis, simulados e dissimulados, covardes e
interesseiros [...] e perversos”. Estes adjetivos que são atribuídos pelo florentino, mostram-se
componentes da natureza humana, o que reafirma que “o conflito e a anarquia são
desdobramentos necessários dessas paixões e instintos malévolos” (SADEK, 2006, p. 19).
Saramago, nada ingênuo, tem plena noção:
Aproveitando-se do alvoroço, alguns dos cegos tinham-se escapulido com umas
quantas caixas [de comida], as que conseguiram transportar, maneira evidentemente
desleal de prevenir hipotéticas injustiças de distribuição. Os de boa fé, que sempre
os há por mais que se lhes diga, protestaram indignados, que assim não se podia
viver, Se não podemos confiar uns nos outros aonde é que vamos parar,
perguntavam uns, retoricamente, ainda que cheios de razão (2008, p. 108).
A partir do momento em que existe liberdade ilimitada tem-se então a propriedade
igualmente ilimitada. Algo é de alguém enquanto esse puder manter a posse da coisa. Tal é
demonstrado, a título de exemplo, no momento em que a tirania absolutista se apossa de toda
a comida, tornando-a sua propriedade. A quem sofresse com a fome restaria se submeter às
vontades do Rei: “Aqui, onde deveria ter sido um por todos e todos por um, pudemos ver
como cruelmente tiraram os fortes o pão da boca aos débeis” (SARAMAGO, 2008, p. 205).
Essa fora a justificativa para a cena do estupro coletivo:
Passada uma semana, os cegos malvados mandaram recado de que queriam
mulheres. Assim, simplesmente, Tragam-nos mulheres. [...] Se não nos trouxerem
mulheres, não comem. Humilhados, os emissários regressaram às camaratas com a
ordem, Ou vão lá, ou não nos dão de comer (SARAMAGO, 2008, p. 165).
Este exemplo fragmentado da obra revela como classes minoritárias podem ser
subjugadas quando não existe um direito que as defendam. Interessante é que, as mulheres,
nesse contexto, serviram de objeto de justificativa de ação tanto para os homens que passavam
fome, quanto aos que estavam as pedindo como forma de pagamento. Em ambos os casos, vêse uma dominação do homem em relação à mulher. Dimoulis (2007) ressalta esse ponto ao
considerar o direito como forma de dominação, sendo assim o direito, do homem para a
mulher. Explicita também, expandindo os horizontes, Wolkmer (2008) e Cardoso (apud
WOLKMER, 2008), que trazem o conceito de Estado Oligárquico, relembrando a passagem
de um Direito lusitano (não autóctone, em relação à cultura brasileira da época) para o Brasil
colônia, o que mais uma vez demonstra uma face obscura do Direito.
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Exaltada a verdade tanto por esses autores, quanto por Saramago, sob o reflexo de
Hobbes, o direito é atributo de uma classe detentora do poder, imposto aos menos
favorecidos. Segundo Bobbio (2004, p. 60) o “alfa e o ômega da teoria política é o problema
do poder: como o poder é adquirido, como é conservado e perdido, como é exercido, como é
defendido e como é possível defender-se contra ele”. A política, de maneira geral, é uma
relação de governados e governantes, os que mandam e os que obedecem, seja por um viés ex
part principis ou ex part populi, ou ainda, de Maquiavel ou Rousseau (BOBBIO, 2004).
A questão é que se não há conscientização a classe subjugada acaba por ter uma
conduta passiva de obediência ao que é imposto pelo direito da classe elitista, reservando-se
em um jogo político. Fica aqui então o principal foco do presente trabalho: a reflexão para
aquilo que é imposto. Pensar sobre o que é vivido jurídico e politicamente é ter autonomia, ter
a verdadeira emancipação.
Vê-se então que há semelhanças grandes entre a filosofia de Hobbes e a de Saramago.
Seja tratando sobre a vida, a liberdade ou a propriedade, os autores seguem uma linha de
pensamento onde o ser humano é revelado como um ser maléfico. Ambos atentam para que se
dê importância a isso e que se assuma algo que está no intrínseco do ser. Analisar a natureza
humana sob a ótica da literatura saramaguiana em paralelo à filosofia hobbessiana, buscando
uma essência jurídica de um naturalismo humano que pouco é cogitado atualmente, é
considerar um suplemento à formação do ator jurídico.
Considerações finais
Há um semblante de que a obra de Saramago seja denunciante. Denunciante no
sentido de revelar a face humana. Indiretamente, é posto em prática (em sentido poético), o
estado de natureza humana. Nesse Estado de guerra hobbessiano, o conceito de legitimidade
da vida, da segurança, do poder, nos moldes que temos hoje é desmascarado em Ensaio sobre
a cegueira de Saramago.
Quando se põem certos conceitos (conceitos jurídicos com densa carga histórica e
banhados a sangue) em questão, causa-se estranheza, e tal sentimento é que se quer alcançar.
Tal repúdio revela na filosofia saramaguiana quão esquecida à sociedade pós-moderna está da
importância de se buscar a essência humana.
Perderam-se valores importantes, que são expostos nessa obra e que reivindicam
certezas jurídicas atuais. Será que sem a tutela de um Estado, como em um pano de fundo
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contratualista, pode-se requerer o direito à vida, à liberdade? Pode-se requerer segurança? É
expondo assim, a mais primitiva forma de vida humana, que se instiga neste trabalho a
admiração filosófica, o espanto, isto é, o thaumázein.
No entanto, será legitimo no estado de natureza o conceito de poder ser dado ao mais
forte? A legitimidade sem a tutela de um Estado reserva aos indivíduos naturalmente
desfavorecidos a humilhação, seja em relação à vida, à liberdade ou à segurança. Mas isso,
ressaltando, num estado de guerra permanente dos homens.
Naturalmente existem diferenças entre seres humanos. Diferenças que foram
atenuadas com o pressuposto de um Estado que prevê a justiça e a equidade. No entanto,
sabe-se que intrinsecamente todos os seres humanos são diferentes, com potencialidades
diferentes. No estado de natureza essas diferenças são acentuadas, favorecendo aquele que
tiver condições naturalmente mais intensificadas do que outros, seja de força ou de adaptação.
Para Hobbes o estado de natureza humana é uma condição de guerra. A morte é
iminente, a vida é solitária, miserável, sórdida e selvagem. Parece atualmente que essa
premissa fora esquecida. Nada mais do que normal que na pós-modernidade a busca da
condição humana perante a reflexão filosófica seja algo retorquido pela sociedade. Mesmo
porque de fato vive-se em um contexto social em que o conceito de produto (produção) está
relacionado a formas materiais, onde predomina a razão instrumental. Assim fica reduzida a
aceitação e abertura para reflexão filosófica.
Nesse contexto, vê-se que alguns vieses do pensamento jurídico, principalmente os
propedêuticos, são considerados num contingente de pouca relevância. Nessa vivência da
crise do direito, as ciências afins do direito não despertam mais o devido interesse e perderam
a importância nas atuais faculdades de Direito. Se prendem a um ideal de que temas como
justiça e moral são pertinentes apenas a poucos momentos. Desse modo os respectivos são
pautados em poucas aulas de filosofia e sociologia esparsas, frente alunos desinteressados,
que só se interessam pelas leis positivadas.
Mas porque então o Direito Natural? Porque estudá-lo? Porque especular em uma obra
literária uma doutrina que já se vê superada e que atualmente encontram poucos adeptos?
Simples: trata-se de uma análise do ser humano em sua essência. Foi ao analisar a natureza
humana e os direitos naturais que Grócio e Pufendorf influenciaram juridicamente o
Iluminismo e inauguraram a Escola Clássica do Direito Natural. Foi ao refletir sobre o estado
de natureza que Hobbes escreveu o grande Leviatã. Ao analisar direitos naturais
imprescritíveis, indivisíveis e inalienáveis que Rousseau e Locke cunharam as obras
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impulsionadoras (Contrato Social e Segundo Tratado sobre o Governo Civil, respectivamente)
dos ideais da Revolução Francesa de 1789. Com base numa prerrogativa do estado de
natureza humana que foi determinada a doutrina contratualista como escape à dicotomia
liberdade/segurança, na qual se tem até hoje.
Para todas essas questões, Ensaio sobre a cegueira se apresentou de maneira clara, a
melhor obra a proporcionar metaforicamente o estado de natureza humana descrita por
Hobbes no Leviatã. Assim, nas palavras de Saramago: “[...] quando a aflição aperta, quando o
corpo se nos desmanda de dor e angústia, então é que se vê o animalzinho que somos” (1995,
p. 242). A questão é saber como controlar esse „animalzinho‟, considerando-o algo existente e
com intermináveis consequências imanentes. Não apenas descartá-lo, repugnando a sua
existência e fingindo que tudo não passa de estória, ou teoria.
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