Salomão Rovedo
Literatura de cordel:
O poeta é sua essência
Rio de Janeiro, 2009
(Escrito em 1985)
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Este livro
é dedicado
aos poetas,
repentistas,
xilogravadores,
violeiros,
folheteiros
e todos aqueles
que fizeram
e fazem
da Feira de São Cristóvão
no Rio de Janeiro
o reduto
inquebrantável
da cultura
do nordeste,
com os quais
desfrutei
por muitos anos
o prazer
da convivência
dominical.
Vai também
em memória
dos que se foram
e deixaram
naquele reduto
nordestino
pedaços
da existência,
ora sofrida,
ora alegre,
sempre apaixonada,
dedicada
à cultura
e à poesia
popular.
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Índice
1-O poeta princeps: Leandro Gomes de Barros, pg. 6
a) O primeiro humorista brasileiro, pg. 48
b) Amor por anexins, pg. 65
c) Uma entrevista no céu, pg. 74
2-O poeta e o seu elemento: poesia de cordel, pg. 84
3-O poeta em seu terreiro: a feira de São Cristóvão, pg. 97
4-O poeta canta a sua história: altas biografias, pg. 115
5-O poeta e o Reino Encantado: Som Saruê, pg. 130
6-O poeta diante da morte: réquiem sem dó, pg. 145
7-O poeta imortal: academias e acadêmicos, pg. 173
8-O poeta do absurdo: o absurdo do poeta, pg. 190
9-Apêndice necessário: alguns mestres, pg. 205
10-O pessoal citado, pg. 243
11-Bibliografia e folhetos, pg. 245
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UMA HISTÓRIA
Este livro tem uma história própria. Ele foi escrito em 1985 (portanto há
24 anos), resultado de uma vivência de mais de dez anos na feira dos paraíbas,
como era conhecida a Feira Nordestina que acontecia todos os domingos no
Campo de São Cristóvão. Portanto, o que o leitor encontra aqui não é fruto de
pesquisa elaborada, nem o estabelecimento da história da poesia popular,
tampouco um ensaio sobre Literatura de Cordel. É a simples tradução de uma
vivência no tempo.
Devido à grande freqüência que ocorria aos domingos, a Feira de São
Cristóvão passou a funcionar a partir dos sábados e, logo em seguida, iniciava
sexta-feira à noite e assim se fixou a sua antiga freqüência: começava sexta-feira
à noite, varava o sábado e terminava no domingo às 15:00hs.
Foi um tempo rico de conhecimentos em que fui cair nos braços de
amigos que cultivavam a cultura nordestina. Poetas populares, xilogravadores,
cantadores, repentistas, artistas plásticos, uma plêiade de artistas de várias
áreas que ali apareciam para mostrar os últimos trabalhos.
A feira dos paraíbas não era só forró e desfile de repentistas, tinha
também a parte cultural, fruto de vários segmentos artísticos. Uma frequência
que inclui pessoas de todo o país que vão ali beber conhecimento, batidas de
frutas regionais, cerveja gelada e cachacinhas! Tudo se resume num aglomerado
de gente que namora a cultura nordestina, complementada com o artesanato e
a culinária.
De lá pra cá muita coisa mudou, claro. A feira dos paraíbas não só se
transferiu de local – passou da encosta das paredes do Pavilhão de São
Cristóvão para o seu interior que, inteiramente reformado, urbanizou o espaço
e organizou as barracas que se aglomeravam caóticas ao redor do pavilhão –
como também tomou feição turística.
Os restaurantes atualizaram o atendimento, o cardápio e o próprio local.
Hoje lá se encontra espaços com ambientes climatizados, as comidas não são
mais o disparate e o rigor do prato típico, para o qual nem sempre o gosto se
adapta, as instalações sanitárias ganharam feição nova e tratamento higiênico
especial.
Este manuscrito tem mais história em seu currículo: das duas cópias que
datilografei, uma foi entregue ao escritor Umberto Peregrino, a outra foi parar
nas mãos de Orígenes Lessa, já octogenário, que dirigia uma Diretoria na
Fundação Casa de Ruy Barbosa. Preciso dizer que as duas vias sumiram de
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repente, como bolhas de sabão e todas as tentativas de recuperá-las foram
inúteis.
Orígenes Lessa, grande apaixonado pela Literatura de Cordel, faleceu no
Rio de Janeiro em 1986. Ao consultar a Casa de Rui Barbosa sobre o manuscrito
que tinha deixado com Orígenes Lessa, soube que todo o acervo do escritor
tinha sido transferido para sua terra natal, Lençóis Paulista (SP). É que ele, antes
de completar 80 anos, já tinha planejado tornar a biblioteca de Lençóis Paulista
uma das maiores do Brasil.
Para realizar esse sonho, além de doar todo seu acervo ao município, ele
fez uso da influência que tinha entre os amigos e escritores, angariando
milhares de livros, autógrafos, manuscritos e outras preciosidades para o seu
projeto. A biblioteca hoje é o Centro Cultural Orígenes Lessa, teve sua função
modernizada, indo muito além dos sonhos do escritor.
Enfim, contando com a sorte e com esse milagre chamado internet, fui
presenteado com a informação de que a Casa de Rui Barbosa estava com uma
cópia do meu livrinho. Animado com a recuperação dele, fui lá e – depois de
pagar para copiar meu próprio livro! – tive o prazer de rever e reler esse velho
amigo, 24 anos depois de tê-lo escrito!
A alegria do reencontro logo se transformou em frustração. O longo
período de hibernação serviu para pôr a nu algumas falhas do texto, para
mostrar que a realidade era outra e trazer à tona a triste memória de muitos
poetas citados, que tinham morrido no decorrer do tempo. O mundo girou, o
trem andou e para o ser humano, se uma obra de arte pode crescer com o
tempo, por outro lado pode dizimar toda uma população de pessoas, de
registros e de fatos.
Então, feita a ressalva, pode o leitor passar a vista nestas mal traçadas
linhas, sabendo que foram escritas num tempo que se evaporou, que relatam
fatos e imagens de uma paisagem que já se perdeu. Os ditos cujos personagens
ou já não são os mesmos ou já deixaram esta vida para outra melhor ou já não
representam a mesma dinâmica daquele tempo.
Rio de janeiro, janeiro/março de 2009.
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O poeta princeps:
Leandro Gomes de Barros
“Poeta como Leandro
Inda o Brasil não criou”.
João Martins de Athayde
“A pranteada morte de Leandro Gomes de Barros” – Folheto.
“Não foi o príncipe dos poetas do asfalto, mas foi, no julgamento do povo, rei da
poesia do sertão, e do Brasil em estado puro.”
Carlos Drummond de Andrade
“Leandro, o poeta” – Crônica no Jornal do Brasil de 09/09/1976.
Leandro Gomes de Barros [Pombal, PB. 1865 – Recife, PE. 1918] é,
sem sombra de dúvida, o maior dos poetas populares do Brasil, que
costumamos chamar de cordelista. É o nome mais representativo da
Literatura de Cordel de todos os tempos. A sua posição dentro da poesia
popular é um marco, porque justamente é o nome de Leandro Gomes de
Barros que surge quando se busca localizar o exato tempo em que a
poesia de cordel se fixa ganhando espaço e força em todo o nordeste
brasileiro e alguns arredores interioranos do Pará, Mato Grosso e Goiás.
Essa qualificação, pois, obteve justo merecimento, porque Leandro
Gomes de Barros pôde arregimentar em torno do seu nome e do
complexo produtivo que ele fundou todos os maiores expoentes da
Literatura de Cordel da época, incluindo cantadores, editores, poetas,
violeiros e folheteiros. Com sua organização e trabalho conseguiu
implantar e por ordem no mundo caótico que era a poesia popular do seu
tempo e assim dar, a todos que viviam do ramo, qualificação e dignidade.
Por isso Leandro Gomes de Barros é um nome que sobreviveu ao
seu tempo e espaço. No entanto, situar Leandro Gomes de Barros
simplesmente entre cordelistas é negar a existência do poeta dentro do
poeta. Com efeito, Leandro teve o cuidado de entremear histórias
populares com poemas de feição erudita, no que fazia muito bem.
São poemas geralmente de inspiração satírica, algumas beirando as
margens da literatura do absurdo, mas sem perder o romântico lirismo de
seu tempo. É fato corrente entre poetas de cordel, devido à exclusão a
que foram submetidos, mostrar que têm conhecimento da poesia culta.
Assim, ao mesmo tempo em que se colocam a par dos poetas ditos cultos,
aproveitam a oportunidade de mostrar profundo talento e caprichado
esmero nas composições chamadas clássicas.
Foi um poeta tão importante que outro poeta mais importante,
Carlos Drummond de Andrade, ao fazer o elogio de Leandro Gomes de
Barros, ousou destronar Olavo Bilac do título principesco que lhe havia
sido atribuído em 1913, outorgando-o, por merecimento, a Leandro
Gomes de Barros, conforme conta a crônica:
“Em 1913, certamente mal informados, 39 escritores, num total de
173, elegeram por maioria relativa Olavo Bilac príncipe dos poetas
brasileiros. Atribuo o resultado a má informação porque o título, a ser
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concedido, só podia caber a Leandro Gomes de Barros, nome
desconhecido no Rio de Janeiro, local da eleição promovida pela revista
Fon-Fon!, mas vastamente popular no Norte do país, onde suas obras
alcançaram divulgação jamais sonhada pelo autor do “Ouvir Estrelas”.
“E aqui desfaço a perplexidade que algum leitor não familiarizado com o
assunto estará sentindo ao ver defrontados os nomes de Olavo Bilac e Leandro
Gomes de Barros. Um é poeta erudito, produto de cultura urbana e burguesia
média; o outro, planta sertaneja vicejando à margem do cangaço, da seca e da
pobreza. Aquele tinha livros admirados nas rodas sociais, e os salões o
recebiam com flores. Este espalhava seus versos em folhetos de cordel, de
papel ordinário, com xilogravuras toscas, vendidos nas feiras a um público de
alpercatas ou de pé no chão.
“A poesia parnasiana de Bilac, bela e suntuosa, correspondia a uma zona
limitada de bem estar social, bebia inspiração européia e, mesmo quando se
debruçava sobre temas brasileiros, só era captada pela elite que comandava o
sistema de poder político, econômico e mundano. A de Leandro, pobre de
ritmos, isenta de lavores musicais, sem apoio livresco, era a que tocava
milhares de brasileiros humildes, ainda mais simples que o poeta, e
necessitados de ver convertida e sublimada em canto a mesquinharia da vida.
“Não príncipe de poetas do asfalto, mas foi, no julgamento do povo, rei da
poesia do sertão, e do Brasil em estado puro”.
Carlos Drummond de Andrade - Leandro, o Poeta (Jornal do Brasil, 09/09/1976)
O professor Átila de Almeida, descendente de uma linhagem de
escritores e políticos paraibanos, ao organizar o primeiro dicionário de
Literatura de Cordel, em colaboração com o poeta popular José Alves
Sobrinho, companheiros na organização do acervo de poesia popular em
Campina Grande (PB), anotou na introdução:
“Poetas populares! Eis uma terminologia que por sua generosidade e propósito
de designar a parte com o nome do todo gera ambigüidades.
“Com a vivacidade e senso de humor de Leandro Gomes de Barros, só podem
ser encontrados similares nos grandes poetas Firmino Teixeira do Amaral,
Manoel Vieira Paraíso, José Adão Filho, cujas obras se perderam quase
completamente, delas restando pequena amostragem.
“É preciso levar em conta que a métrica, a rima e o senso de humor faziam o
poeta beber mais nos versos do que na realidade. Câmara Cascudo descreve-o
com precisão: ‘Baixo, grosso, de olhos claros, o bigodão espesso, cabeça
redonda, meio corcovado, risonho contador de anedotas, tendo a fala cantada
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e lenta do nortista, parecia mais um fazendeiro que um poeta, pleno de alegria,
de graça e de oportunidade’.
“Espírito crítico, não deixava escapar uma oportunidade *para exercê-lo]. Viu e
retratou numa “Ave Maria”, com deliciosa mordacidade, o processo eleitoral de
seu tempo.”
Átila de Almeida-José Alves Sobrinho – Dicionário Biobibliográfico de
Repentistas e Poetas de Bancada
O brasilianista e professor Mark Curran, autor de vários livros sobre
a Literatura de Cordel, ressaltou a grandeza do poeta paraibano, não só
em virtude da qualidade de suas poesias, como também por dar
importância cultural e comercial à poesia popular de sua autoria e de seus
colegas contemporâneos:
“Leandro Gomes de Barros foi o epítome do poeta popular do Nordeste. Foi
não só um dos primeiros a escrever e imprimir folhetos que incluíam o melhor
da tradição oral, mas também o mais prolífico dos poetas populares. É, porém,
a qualidade mais que a quantidade de folhetos que lhe dá posição saliente
entre os poetas populares. É reconhecido por colegas, poetas contemporâneos
e estudiosos como o melhor dos poetas populares. Embora escrevendo todo
gênero de folhetos, seu forte era a sátira.
“Sua originalidade, seu humor, e especialmente a sua sátira, vistos no
comentário social, fazem de seus folhetos obras-primas.
“É o comentário social que representa o melhor de sua obra. Como os outros
poetas populares, ele devia sentir um desejo e mesmo uma obrigação, como
poeta do povo, de criticar a falta de justiça daquela época, e de oferecer
soluções, embora muitas vezes jocosas ou pessoais, para os problemas da
sociedade.”
Mark J. Curran – A Sátira e a Crítica Social na Lit. de Cordel
Não era bem assim. Leandro Gomes de Barros costumava preencher
os espaços vazios dos seus folhetos com poesias curtas, sonetos, quadras,
versos livres. Ele possuía o talento e o conhecimento para dar uma
variedade de forma, de rima e de métrica, demonstrando conhecimento
da poesia clássica maior do que se pensa a seu respeito.
Em vista disso, abandonando esse foco tradicional de tratar a poesia
de Leandro Gomes de Barros (o da Literatura de Cordel), divulgo a seguir
uma seleção de poemas que poderiam ser incluídos em qualquer
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antologia da poesia brasileira da época, sem ser acompanhada da pecha
de poesia popular.
É só apreciar...
A TARDE
Tomba a tarde, o sol baixa seus ardores,
Alvas nuvens no céu formam lavores
E a voz da passarada o campo enchendo:
O juriti em seu ramo de dormida
Soltando um canto ali por despedida,
Dando adeus ao sol que vai morrendo.
E mergulha o sol pelo ocaso,
Já o dia ali venceu o prazo,
Abrem flores, o orvalho em gotas vem;
Limpa o céu, o firmamento se ilumina,
Uma luz alvacenta e argentina
Já se avista no céu, mas muito além.
Regressam do campo lavradores,
Apascentam os rebanhos os pastores,
E o mundo fica ali em calmaria;
A matrona embala o filho pequenino
E prestando atenção à voz do sino
Quando dobra no templo a Ave-Maria.
Vem a noite, dormem ali as cousas mansas,
Dormem qu’etos os justos e as crianças,
E a Virgem envia preces à divindade;
A velhice recorda arrependida
Todo erro que fez em sua vida
E murmura: Quem me dera a mocidade.
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AVE MARIA DA ELEIÇÃO
No dia da eleição
O povo todo corria,
Gritava a oposição
Ave Maria!
Viam-se grupos de gente
Vendendo votos na praça
E a urna dos governistas
Cheia de Graça.
Uns a outros perguntavam:
- O senhor vota conosco?
Um chaleira respondeu:
- Este o Senhor é convosco.
Eu via duas panelas
Com miúdo de dez bois,
Cumprimentei-as dizendo:
Bendita sois!
Os eleitores, com medo
Das espadas dos alferes,
Chegavam a se esconder
Entre as mulheres...
Os candidatos andavam
Com um ameaço bruto,
Pois um voto para eles
É bendito fruto.
O mesário do Governo
Pegava a urna contente,
E dizia: - Eu me glorio
Do vosso ventre!
O ANTIGO E O MODERNO
Quando o velho Santo Jó
Viu-se doente e leproso
No Recife Alfeu Raposo
Mandou-lhe uma fricção,
A mulher dele mandou
Pedir ao Dr. Tomé
Na farmácia São José
O Elixir da Salvação.
Nas bodas de Canaã
Que Cristo fez da água vinho
A Lanceta de Agostinho
Exagerou sem limite
Soares Raposo deu
Carne para lombo e bife
E o Jornal do Recife
Fez os cartões de convite.
São Pedro era pescador
Antes de seguir Jesus
Quando o Dr. Santa Cruz
Tomou conta de Monteiro
Nero Imperador Romano
Mandou um seu paladino
Chamar Antônio Silvino
Para ser seu cangaceiro.
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A URUCUBACA
Este ano é o ano da cigarra,
Este século das luzes é tão escuro!
Vejo um rio se encher de sangue puro
E no mar civilizado ir fazer barra.
A miséria com desdém no mundo escarra,
O desastre diz garboso, estou seguro
Já rasguei as vestes do futuro,
E o meu curso de herói ninguém esbarra.
Tenho as chaves da Alemanha em meu poder
O futuro francês hipotecado
E a Rússia aos meus pés há de gemer.
A Inglaterra terá que se render,
A Turquia lamenta o seu estado,
O Brasil é um cão sem dono há de sofrer.
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O CAVALO QUE DEFECAVA DINHEIRO
Na cidade de Macaé
Antigamente existia
Um duque velho invejoso
Que nada o satisfazia
Desejava possuir
Todo objeto que via.
Esse duque era compadre
De um pobre muito atrasado
Que morava em sua terra
Num rancho todo estragado
Sustentava seus filhinhos
Na vida de alugado.
Se vendo o compadre pobre
Naquela vida privada
Foi trabalhar nos engenhos
Longe da sua morada
Na volta trouxe um cavalo
Que não servia pra nada.
Disse o pobre à mulher:
_ Como havemos de passar?
O cavalo é magro e velho
Não pode mais trabalhar
Vamos inventar um "quengo"
Pra ver se o querem comprar.
Foi na venda e de lá trouxe
Três moedas de cruzado
Sem dizer nada a ninguém
Para não ser censurado
No fiofó do cavalo
Foi o dinheiro guardado.
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Do fiofó do cavalo
Ele fez um mealheiro
Saiu dizendo: – Sou rico!
Inda mais que um fazendeiro,
Porque possuo o cavalo
Que só defeca dinheiro.
Quando o duque velho soube
Que ele tinha esse cavalo
Disse pra velha duquesa:
– Amanhã vou visitá-lo
Se o animal for assim
Faço o jeito de comprá-lo!
Saiu o duque vexado
Fazendo que não sabia,
Saiu percorrendo as terras
Como quem não conhecia
Foi visitar a choupana,
Onde o pobre residia.
Chegou salvando o compadre
Muito desinteressado:
– Compadre, Como lhe vai?
Onde tanto tem andado?
Há dias que lhe vejo
Parece está melhorado...
– É muito certo compadre
Ainda não melhorei
Porque andava por fora
Faz três dias que cheguei
Mas breve farei fortuna
Com um cavalo que comprei.
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– Se for assim, meu compadre
Você está muito bem!
É bom guardar o segredo,
Não conte nada a ninguém.
Me conte qual a vantagem
Que este seu cavalo tem?
Disse o pobre: – Ele está magro
Só o osso e o couro,
Porém tratando-se dele
Meu cavalo é um tesouro
Basta dizer que defeca
Níquel, prata, cobre e ouro!
Aí chamou o compadre
E saiu muito vexado,
Para o lugar onde tinha
O cavalo defecado
O duque ainda encontrou
Três moedas de cruzado.
Então exclamou o velho:
– Só pude achar essas três!
Disse o pobre: – Ontem à tarde
Ele botou dezesseis!
Ele já tem defecado,
Dez mil réis mais de uma vez.
– Enquanto ele está magro
Me serve de mealheiro.
Eu tenho tratado dele
Com bagaço do terreiro,
Porém depois dele gordo
Não quem vença o dinheiro...
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Disse o velho: – Meu compadre
Você não pode tratá-lo,
Se for trabalhar com ele
É com certeza matá-lo
O melhor que você faz
É vender-me este cavalo!
– Meu compadre, este cavalo
Eu posso negociar,
Só se for por uma soma
Que dê para eu passar
Com toda minha família,
E não precise trabalhar.
O velho disse ao compadre:
– Assim não é que se faz
Nossa amizade é antiga
Desde o tempo de seus pais
Dou-lhe seis contos de réis
Acha pouco, inda quer mais?
– Compadre, o cavalo é seu!
Eu nada mais lhe direi,
Ele, por este dinheiro
Que agora me sujeitei
Para mim não foi vendido,
Faça de conta que te dei!
O velho pela ambição
Que era descomunal,
Deu-lhe seis contos de réis
Todo em moeda legal
Depois pegou no cabresto
E foi puxando o animal.
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Quando ele chegou em casa
Foi gritando no terreiro:
– Eu sou o homem mais rico
Que habita o mundo inteiro!
Porque possuo um cavalo
Que só defeca dinheiro!
Pegou o dito cavalo
Botou na estrebaria,
Milho, farelo e alface
Era o que ele comia
O velho duque ia lá,
Dez, doze vezes por dia...
Aí o velho zangou-se
Começou logo a falar:
– Como é que meu compadre
Se atreve a me enganar?
Eu quero ver amanhã
O que ele vai me contar.
Porém o compadre pobre,
(Bicho do quengo lixado)
Fez depressa outro plano
Inda mais bem arranjado
Esperando o velho duque
Quando viesse zangado...
O pobre foi na farmácia
Comprou uma borrachinha
Depois mandou encher ela
Com sangue de uma galinha
E sempre olhando a estrada
Pré ver se o velho vinha.
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Disse o pobre à mulher:
– Faça o trabalho direito
Pegue esta borrachinha
Amarre em cima do peito
Para o velho não saber,
Como o trabalho foi feito!
Quando o velho aparecer
Na volta daquela estrada,
Você começa a falar
Eu grito: – Oh mulher danada!
Quando ele estiver bem perto,
Eu lhe dou uma facada.
Porém eu dou-lhe a facada
Em cima da borrachinha
E você fica lavada
Com o sangue da galinha
Eu grito: – Arre danada!
Nunca mais comes farinha!
Quando ele ver você morta
Parte para me prender,
Então eu digo para ele:
– Eu dou jeito ela viver,
O remédio tenho aqui,
Faço para o senhor ver!
– Eu vou buscar a rabeca
Começo logo a tocar
Você então se remexa
Como quem vai melhorar
Com pouco diz: – Estou boa
Já posso me levantar.
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Quando findou a conversa
Na mesma ocasião
O velho ia chegando
Aí travou-se a questão
O pobre passou-lhe a faca,
Botou a mulher no chão.
O velho gritou a ele
Quando viu a mulher morta:
– Esteja preso, bandido!
E tomou conta da porta
Disse o pobre: – Vou curá-la!
Pra que o senhor se importa?
– O senhor é um bandido
Infame de cara dura
Todo mundo apreciava
Esta infeliz criatura
Depois dela assassinada,
O senhor diz que tem cura?
Compadre, não admito
O senhor dizer mais nada,
Não é crime se matar
Sendo a mulher malcriada
E mesmo com dez minutos,
Eu dou a mulher curada!
Correu foi ver a rabeca
Começou logo a tocar
De repente o velho viu
A mulher se endireitar
E depois disse: – Estou boa,
Já posso me levantar...
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O velho ficou suspenso
De ver a mulher curada,
Porém como estava vendo
Ela muito ensangüentada
Correu ela, mas não viu,
Nem o sinal da facada.
O pobre entusiasmado
Disse-lhe: – Já conheceu
Quando esta rabeca estava
Na mão de quem me vendeu,
Tinha feito muitas curas
De gente que já morreu!
No lugar onde eu estiver
Não deixo ninguém morrer,
Como eu adquiri ela
Muita gente quer saber
Mas ela me está tão cara
Que não me convém dizer.
O velho que tinha vindo
Somente propor questão,
Por que o cavalo velho
Nunca botou um tostão
Quando viu a tal rabeca
Quase morre de ambição.
– Compadre, você desculpe
De eu ter tratado assim
Porque agora estou certo
Eu mesmo fui o ruim
Porém a sua rabeca
Só serve bem para mim.
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– Mas como eu sou um homem
De muito grande poder
O senhor é um homem pobre
Ninguém quer o conhecer
Perca o amor da rabeca...
Responda se quer vender?
– Porque a minha mulher
Também é muito estouvada
Se eu comprar esta rabeca
Dela não suporto nada
Se quiser teimar comigo,
Eu dou-lhe uma facada.
– Ela se vê quase morta
Já conhece o castigo,
Mas eu com esta rabeca
Salvo ela do perigo
Ela daí por diante,
Não quer mais teimar comigo!
Disse-lhe o compadre pobre:
– O senhor faz muito bem,
Quer me comprar a rabeca
Não venderei a ninguém
Custa seis contos de réis,
Por menos nem um vintém.
O velho muito contente
Tornou então repetir:
– A rabeca já é minha
Eu preciso a possuir
Ela para mim foi dada,
Você não soube pedir.
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Pagou a rabeca e disse:
– Vou já mostrar a mulher!
A velha zangou-se e disse:
– Vá mostrar a quem quiser!
Eu não quero ser culpada
Do prejuízo que houver.
– O senhor é mesmo um velho
Avarento e interesseiro,
Que já fez do seu cavalo
Que defecava dinheiro?
– Meu velho, dê-se a respeito,
Não seja tão embusteiro.
O velho que confiava
Na rabeca que comprou
Disse a ela: – Cale a boca!
O mundo agora virou
Dou-lhe quatro punhaladas,
Já você sabe quem sou.
Ele findou as palavras
A velha ficou teimando,
Disse ele: – Velha dos diabos
Você ainda está falando?
Deu-lhe quatro punhaladas
Ela caiu arquejando...
O velho muito ligeiro
Foi buscar a rabequinha,
Ele tocava e dizia:
– Acorde, minha velhinha!
Porém a pobre da velha,
Nunca mais comeu farinha.
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O duque estava pensando
Que sua mulher tornava
Ela acabou de morrer
Porém ele duvidava
Depois então conheceu
Que a rabeca não prestava.
Quando ele ficou certo
Que a velha tinha morrido
Boto os joelhos no chão
E deu tão grande gemido
Que o povo daquela casa
Ficou todo comovido.
Ele dizia chorando:
– Esse crime hei de vingá-lo
Seis contos desta rabeca
Com outros seis do cavalo
Eu lá não mando ninguém,
Porque pretendo matá-lo.
Mandou chamar dois capangas:
– Me façam um surrão bem feito
Façam isto com cuidado
Quero ele um pouco estreito
Com uma argola bem forte,
Pra levar este sujeito!
Quando acabar de fazer
Mande este bandido entrar,
Para dentro do surrão
E acabem de costurar
O levem para o rochedo,
Para sacudi-lo no mar.
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Os homens eram dispostos
Findaram no mesmo dia,
O pobre entrou no surrão
Pois era o jeito que havia
Botaram o surrão nas costas
E saíram numa folia.
Adiante disse um capanga:
– Está muito alto o rojão,
Eu estou muito cansado,
Botemos isto no chão!
Vamos tomar uma pinga,
Deixe ficar o surrão.
– Está muito bem, companheiro
Vamos tomar a bicada!
(Assim falou o capanga
Dizendo pro camarada)
Seguiram ambos pra venda
Ficando além da estrada...
Quando os capangas seguiram
Ele cá ficou dizendo:
– Não caso porque não quero,
Me acho aqui padecendo...
A moça é milionária
O resto eu bem compreendo!
Foi passando um boiadeiro
Quando ele dizia assim,
O boiadeiro pediu-lhe:
– Arranje isto pra mim
Não importa que a moça
Seja boa ou ruim!
- 25 -
O boiadeiro lhe disse:
– Eu dou-lhe de mão beijada,
Todos os meus possuídos
Vão aqui nessa boiada...
Fica o senhor como dono,
Pode seguir a jornada!
Ele condenado à morte
Não fez questão, aceitou,
Descoseu o tal surrão
O boiadeiro entrou
O pobre morto de medo
Num minuto costurou.
O pobre quando se viu
Livre daquela enrascada,
Montou-se num bom cavalo
E tomou conta da boiada,
Saiu por ali dizendo:
– A mim não falta mais nada.
Os capangas nada viram
Porque fizeram ligeiro,
Pegaram o dito surrão
Com o pobre do boiadeiro
Voaram de serra abaixo
Não ficou um osso inteiro.
Fazia dois ou três meses
Que o pobre negociava
A boiada que lhe deram
Cada vez mais aumentava
Foi ele um dia passar,
Onde o compadre morava...
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Quando o compadre viu ele
De susto empalideceu;
– Compadre, por onde andava
Que agora me apareceu?!
Segundo o que me parece,
Está mais rico do que eu...
– Aqueles seus dois capangas
Voaram-me num lugar
Eu caí de serra abaixo
Até na beira do mar
Aí vi tanto dinheiro,
Quanto pudesse apanhar!..
– Quando me faltar dinheiro
Eu prontamente vou ver.
O que eu trouxe não é pouco,
Vai dando pra eu viver
Junto com a minha família,
Passar bem até morrer.
– Compadre, a sua riqueza
Diga que fui eu quem dei!
Pra você recompensar-me
Tudo quanto lhe arranjei,
É preciso que me bote
No lugar que lhe botei!..
Disse-lhe o pobre: – Pois não,
Estou pronto pra lhe mostrar!
Eu junto com os capangas
Nós mesmo vamos levar
E o surrão de serra abaixo
Sou eu quem quero empurrar!..
- 27 -
O velho no mesmo dia
Mandou fazer um surrão.
Depressa meteu-se nele,
Cego pela ambição
E disse: – Compadre eu estou
À tua disposição.
O pobre foi procurar
Dois cabras de confiança
Se fingindo satisfeito
Fazendo a coisa bem mansa
Só assim ele podia,
Tomar a sua vingança.
Saíram com este velho
Na carreira, sem parar
Subiram de serra acima
Até o último lugar
Daí voaram o surrão
Deixaram o velho embolar...
O velho ia pensando
De encontrar muito dinheiro,
Porém sucedeu com ele
Do jeito do boiadeiro,
Que quando chegou embaixo
Não tinha um só osso inteiro.
Este livrinho nos mostra
Que a ambição nada convém
Todo homem ambicioso
Nunca pode viver bem,
Arriscando o que possui
Em cima do que já tem.
Cada um faça por si,
Eu também farei por mim!
É este um dos motivos
Que o mundo está ruim,
Porque estamos cercados
Dos homens que pensam assim.
FIM
- 28 -
- 29 -
AS PROEZAS DE UM NAMORADO MOFINO
Sempre adotei a doutrina
Ditada pelo rifão,
De ver-se a cara do homem
Mas não ver-se o coração,
Entre a palavra e a obra
Há enorme distinção.
Zé-pitada era um rapaz
Que em tempos idos havia
Amava muito uma moça
O pai dela não queria...
O desastre é um diabo
Que persegue a simpatia.
Vivia o rapaz sofrendo
Grande contrariedade
Chorava ao romper da aurora
Gemia ao virar da tarde
A moça era como um pássaro
Privado da liberdade.
Porque João-mole, o pai dela
era um velho perigoso,
Embora que Zé-pitada
Dizia ser revoltoso,
Adiante o leitor verá
Qual era o mais valoroso.
Marocas vivia triste
Pitada vivia em ânsia,
Ele como rapaz moço
No vigor de sua infância,
Falar depende de fôlego
Porém obrar é sustância.
- 30 -
Disse Pitada a Marocas,
Eu preciso lhe falar
Já tenho toda certeza,
Que é necessário a raptar,
À noite espere por mim
Que havemos de contratar.
Disse Marocas a Zezinho:
Papai não é de brincadeira,
Diz Zé-pitada, ora esta!
Você pode ver-me as tripas,
Porém não verá carreira.
Diga a que hora hei de ir,
Eu dou conta do recado
Inda seu pai sendo fogo,
Por mim será apagado,
Eu juro contra minh’alma
Que seu pai corre assombrado.
Disse Marocas, meu pai
Tem tanta disposição
Que uma vez tomou um preso
Do poder de um batalhão,
Balas choviam nos ares,
O sangue ensopava o chão.
Disse ele, eu uma vez
Fui de encontro a mil guerreiros,
Entrei pela retaguarda,
Matei logo os artilheiros,
Em menos de dez minutos
O sangue encheu os barreiros.
- 31 -
Disse Marocas, pois bem
Eu espero e pode ir,
Porém encare a desgraça,
Se acaso meu pai nos vir,
Meu pai é de ferro e fogo,
É duro de resistir.
Marocas não confiando
Querendo experimentar,
Olhou para Zé-pitada
Fingindo querer chorar,
Disse meu pai acordou,
E nos ouviu conversar.
Valha-me Nossa Senhora!
Respondeu ele gemendo,
Que diabo eu faço agora?!...
E caiu no chão tremendo,
Oh! Minha Nossa Senhora!
A vós eu me recomendo
Nisso um gato derrubou
Uma lata na dispensa,
Ele pensou que era o velho,
Gritou, oh!, que dor imensa!.
Parece qu’stou ouvindo
Jesus lavrar-me a sentença.
A febre já me atacou,
Sinto frio horrivelmente.
Com muita dor de cabeça,
Uma enorme dor de dente,
Esta me dando a erisipela,
Já sinto o corpo dormente.
- 32 -
Antes eu hoje estivesse
Encerrado na cadeia,
De que morrer na desgraça,
E d’uma morte tão feia,
Veja se pode arrastar-me,
Que minha calça está cheia.
Por alma de sua mãe,
E pela sagrada paixão,
Me arraste por uma perna
E me bote no portão,
A moça quis arrastá-lo,
Não teve onde pôr a mão.
Ela tirou-lhe a botina,
Para ver se o arrastava,
Mas era uma fedentina,
Que a moça não suportava,
Aquela matéria fina
Já todo o chão alagava.
Disse a moça: quer um beijo?
Para ver se tem melhora?
Ele com cara de choro,
Respondeu-lhe, não, senhora,
Beijo não me salva a vida,
Eu só desejo ir-me embora.
Então lhe disse Marocas,
Desgraçado!... eu bem sabia,
Que um ente de teu calibre,
Não pode ter serventia.
Creio que foste nascido
Em fundo de padaria.
- 33 -
Meu pai ainda não veio
Eu hoje estou sozinha,
Zé-pitada aí se ergueu,
E disse, oh minha santinha!
A moça meteu-lhe o pé,
Dizendo: vai-te murrinha!
E deu-lhe ali uma lata,
Dizendo: está aí o poço,
Você ou lava o quintal
Ou come um cachorro insosso,
Se não eu meto-lhe os pés
Não lhe deixo inteiro um osso.
Disse ele, oh! meu amor!
O corpo todo me treme,
Minha cabecinha está,
Que só um barco sem leme,
Parece-me faltar o pulso,
O Anjo da Guarda geme.
Então a moça lhe disse:
O senhor lava o quintal
Olhe uma tabica aqui!...
Lava por bem ou por mal,
Covardia para mim,
É crime descomunal.
E lá foi nosso rapaz
Se arrastando com a lata,
A moça ali ao pé dele,
Lhe ameaçando a chibata,
Ele exclama chorando
Por amor de Deus não bata.
- 34 -
Vai miserável de porta
Quero já limpo isso tudo,
Um homem de sua marca
Pequeno, feio e pançudo,
Só tendo sido criado
Onde se vende miúdo.
Disse o Zé quando saiu:
Eu juro por Deus agora,
Ainda uma moça sendo
Filha de Nossa Senhora,
E olhar para mim, eu digo:
Desgraçada, vá embora.
FIM
- 35 -
A SECA DO CEARÁ
Seca a terra as folhas caem,
Morre o gado sai o povo,
O vento varre a campina,
Rebenta a seca de novo;
Cinco, seis mil emigrantes
Flagelados retirantes
Vagam mendigando o pão,
Acabam-se os animais
Ficando limpo os currais
Onde houve a criação.
Não se vê uma folha verde
Em todo aquele sertão
Não há um ente d’aqueles
Que mostre satisfação
Os touros que nas fazendas
Entravam em lutas tremendas,
Hoje nem vão mais o campo
É um sítio de amarguras
Nem mais nas noites escuras
Lampeja um só pirilampo.
Aqueles bandos de rolas
Que arrulhavam saudosas
Gemem hoje coitadinhas
Mal satisfeitas, queixosas,
Aqueles lindos tetéus
Com penas da cor dos céus.
Onde algum hoje estiver,
Está triste mudo e sombrio
Não passeia mais no rio,
Não solta um canto sequer.
- 36 -
Tudo ali surdo aos gemidos
Visa o espectro da morte
Como o nauta em mar estranho
Sem direção e sem Norte
Procura a vida e não vê,
Apenas ouve gemer
O filho ultimando a vida
Vai com seu pranto o banhar
Vendo esposa soluçar
Um adeus por despedida.
Foi a fome negra e crua
Nódoa preta da história
Que trouxe-lhe o ultimato
De uma vida provisória
Foi o decreto terrível
Que a grande pena invisível
Com energia e ciência
Autorizou que a fome
Mandasse riscar meu nome
Do livro da existência.
E a fome obedecendo
A sentença foi cumprida
Descarregando lhe o gládio
Tirou-lhe de um golpe a vida
Não olhou o seu estado
Deixando desamparado
Ao pé de si um filinho,
Dizendo já existisses
Porque da terra saísses
Volta ao mesmo caminho.
- 37 -
Vê-se uma mãe cadavérica
Que já não pode falar,
Estreitando o filho ao peito
Sem o poder consolar
Lança-lhe um olhar materno
Soluça implora ao Eterno
Invoca da Virgem o nome
Ela débil triste e louca
Apenas beija-lhe a boca
E ambos morrem de fome.
Vê-se moças elegantes
Atravessarem as ruas
Umas com roupas em tira
Outras até quase nuas,
Passam tristes, envergonhadas
Da cruel fome, obrigadas
Em procura de socorros
Nas portas dos potentados,
Pedem chorando os criados
O que sobrou dos cachorros.
Aqueles campos que eram
Por flores alcatifados,
Hoje parecem sepulcros
Pelos dias de finados,
Os vales daqueles rios
Aqueles vastos sombrios
De frondosas trepadeiras,
Conserva a recordação
Da cratera de um vulcão
Ou onde havia fogueiras.
- 38 -
O gado urra com fome,
Berra o bezerro enjeitado
Tomba o carneiro por terra
Pela fome fulminado,
O bode procura em vão
Só acha pedras no chão
Põe-se depois a berra,
A cabra em lástima completa
O cabrito inda penetra
Procurando o que mamar.
Grandes cavalos de selas
De muito grande valor
Quando passam na fazenda
Provoca pena ao senhor
Como é diferente agora
Aquele animal de que outrora
Causava admiração,
Era russo hoje está preto
Parecendo um esqueleto
Carcomido pelo chão.
Hoje nem os pássaros cantam
Nas horas do arrebol
O juriti não suspira
Depois que se põe o sol
Tudo ali hoje é tristeza
A própria cobra se pesa
De tantos que ali padecem
Os camaradas antigos
Passam pelos seus amigos
Fingem que não os conhecem.
- 39 -
Santo Deus! Quantas misérias
Contaminam nossa terra!
No Brasil ataca a seca
Na Europa assola a guerra
A Europa ainda diz
O governo do país
Trabalha para o nosso bem
O nosso em vez de nos dar
Manda logo nos tomar
O pouco que ainda se tem.
Vê-se nove, dez, num grupo
Fazendo súplicas ao Eterno
Crianças pedindo a Deus
Senhor! Mandai-nos inverno,
Vem, oh! grande natureza
Examinar a fraqueza
Da frágil humanidade
A natureza a sorrir
Vê-la sem vida a cair
Responde: o tempo é debalde.
Mas tudo ali é debalde
O inverno é soberano
O tempo passa sorrindo
Por sobre o cadáver humano
Nem uma nuvem aparece
Alteia o dia o sol cresce
Deixando a terra abrasada
E tudo a fome morrendo
Amargos prantos descendo
Como uma grande enxurrada.
- 40 -
Os habitantes procuram
O governo federal
Implorando que os socorra
Naquele terrível mal
A criança estira a mão
Diz senhor tem compaixão
E ele nem dar-lhe ouvido
É tanto a sua fraqueza
Que morrendo de surpresa
Não pode dar um gemido.
Alguém no Rio de Janeiro
Deu dinheiro e remeteu
Porém não sei o que houve
Que cá não apareceu
O dinheiro é tão sabido
Que quis ficar escondido
Nos cofres dos potentados
Ignora-se esse meio
Eu penso que ele achou feio
Os bolsos dos flagelados.
O governo federal
Querendo remia o Norte
Porém cresceu o imposto
Foi mesmo que dar-lhe a morte
Um mete o facão e rola-o
O Estado aqui esfola-o
Vai tudo dessa maneira
O município acha os troços
Ajunta o resto dos ossos
Manda vendê-los na feira.
FIM
- 41 -
IMPOSTO DE HONRA
O velho mundo vai mal.
E o governo danado
Cobrando imposto de honra
Sem haver ninguém honrado.
E como se paga imposto
Do que não tem no mercado?
Procurar honra hoje em dia
É escolher sal na areia
Granito de pólvora em brasa
Inocência na cadeia
Água doce na maré
Escuro na lua cheia.
Agora se querem ver
O cofre público estufado
E ver no Rio de Janeiro
O dinheiro armazenado?
Mande que o governo cobre
Imposto de desonrado.
Porém imposto de honra?
É falar sem ver alguém
Dar remédio a quem morreu
Tirar de onde não tem
Eu sou capaz de jurar
Que esse não rende um vintém.
Com os incêndios da alfândega
Como sempre tem se dado
Dinheiro que sai do cofre
Sem alguém ter o tirado
Mas o empregado é rico
Faz isso e diz: – Sou honrado.
- 42 -
Dizia Venceslau Brás
Com cara bastante feia
Diabo leve a pessoa
Que compra na venda alheia
O resultado daí
É o freguês na cadeia.
Ora o Brasil deve à França
Mas a dívida não foi minha
Agora chega Paris
Tira o facão da bainha
E diz: – Quero meu dinheiro
Inda que seja em galinha.
Seu fulano dos anzóis
Entrou e meteu o pau
Pensou que tripa era carne
E gaita era berimbau
Vão cobrar desse, ele diz,
Quem paga é seu Venceslau.
Disse Hermes da Fonseca
Eu não tinha nem um x.
Mas achei quem emprestasse
Tomei tudo quanto quis
Embora tivesse feito
A derrota do país.
Disse Pandiá Calógeras:
– Há um jeito de salvar
Cobre-se imposto de honra
Que ver dinheiro abrejar.
Disse o Brás: – Ninguém tem honra,
Como se pode cobrar?
- 43 -
Apareceu um aparte
Do Rivadávia Correia:
Não tem aqui entre nós
Devido à cousa está feia
Não acha-se no senado
Procura-se na cadeia.
O major Deocleciano
Disse da forma seguinte:
— Na cadeia do Recife
Eu tive um constituinte
Entre ele e outros mais
Inda se pode achar vinte.
Disse o Dr. Rivadávia:
— Eu fiz doutor de 60
Dei carta aqui a quadrado
Que não escreve pimenta
Tem médico que receitando
Procura o pulso na venta.
Porém na minha algibeira
Sessenta fachos ficaram
Embora tenha saído
Mais burro do que entraram
Dei diploma a criaturas
Que nem o nome assinaram.
E este imposto de honra
Está nas mesmas condições
Tira-se bom resultado
Onde houver muitos ladrões
Até mesmo a meretriz
Levará seus dez tostões.
- 44 -
Ela pagando imposto
Pode provar que é honrada
Tendo uns oito ou nove erros
Isso não quer dizer nada
Passa por viúva alegre
Ou uma meia casada.
Qualquer ladrão de cavalo
Paga o que for exigido
Porque dessa data cru diante
Não rouba mais escondido
Com o talão do imposto
Não o prendem é garantido.
Pelo menos eu conheço
Um tal Chico Galinheiro
Que disse: – Eu pago imposto
Também quem tiver poleiro
Nunca mais há de criar-se
Nem um pinto no terreiro.
Disse Marocas de todos:
– Oh! Cousa boa danada
Eu compro um vestido preto
E grito: – Rapaziada
Meu marido não morreu
Mas eu? sou viúva honrada.
Pago o imposto de honra
Boto no bolso o talão
E grito no meio da rua
Se aparecer um ladrão
Que diga: – Não és honrada
Veja se eu provo ou não.
- 45 -
Esses diabos que hoje
Me chamam Marocazinha
Quando eu pagar o imposto
Me tratam por sinhazinha
Se for de tenente acima
Chamam dona Maroquinha.
Disse um zelador da noite:
– O imposto não é mau
Foi uma lembrança ótima
Aquela do Venceslau
O diabo é se o talão
Não livrar ninguém do pau.
Se a cousa for como eu penso
E não tiver seus conformes
Nós operários noturnos
Teremos lucros enormes
Cada cobrador por noite
Nos rende dois uniformes.
Dormindo o dono da casa
Dar-se a busca no quintal
Inda a polícia chegando
Não pode nos fazer mal
Pois nós pagamos imposto
Ao governo federal.
Disse um passador de cédula:
– Ai eu não sei o que faça
Se quem pagar o imposto
Puder passar cédula falsa
Com uma eu pago o imposto
Sai-me a receita de graça.
- 46 -
Disse Zé Frango: – Esse imposto
Chegando eu tenho que pagá-lo
O pago com sacrifício
Mas também tenho o regalo
Quem me chamava Zé Frango
Há de chamar Zeca Galo.
Dizia João caloteiro:
– Está muito bem isso assim
Benza-te Deus, Venceslau
Deus te ajude até o fim
Eu hei de ver se o comércio
Ainda cobra de mim.
Tem dia que lá em casa
Eu desespero da fé
Ouço baterem na porta
Vou abrir e ver quem é
Acho na porta escorado
O caixeiro do café.
Antes de desenganá-lo
Chega o danado da venda
O sapateiro de um lado
E o turco da fazenda
O recado do açougue
A velha cobrando a renda.
Nisso chega outro diabo
Com um recibo na mão
Antes de chegar, pergunta
Se eu tenho dinheiro ou não.
Ou o dinheiro ou a chave
Manda dizer o patrão.
- 47 -
Eu pagando esse imposto
Fico disso descansado
Quando um bater-me na porta
Digo puxe desgraçado
Eu pago imposto de honra
Não sou desmoralizado.
Embora roube de alguém
O imposto hei de pagar
Mas todo mundo já sabe
Na bodega que eu chegar
Nem pergunto pelo preço
É só mandar embrulhar.
FIM
O PRIMEIRO HUMORISTA BRASILEIRO
Um – A força do amor
Muito aspecto merecedor de acurado estudo tem sido constatado
na obra de Leandro Gomes de Barros. Para suprir uma dessas lacunas,
José Maria Barbosa Gomes elaborou um estudo lingüístico baseado no
confronto direto entre duas edições do Romance “A força do amor”,
ressaltando principalmente os sinais existentes de uma “busca a
perfeição” evidenciada na análise feita pelo comentarista pernambucano.
Coitado do poeta: jamais se imaginaria objeto de altos estudos,
tampouco de análises profundas, de nível didático e ter sua obra
esmiuçada, esquartejada, exposta à frieza de números e gráficos, sua obra
vista, enfim, sob os mais inimagináveis aspectos. Mas assim é.
Não obstante, é indiscutível o acréscimo que qualquer trabalho
escrito traz para a literatura em si – e neste caso para a literatura de
cordel – inclusive os muitos volumes que tem saído com a firma curiosa de
vários alienígenas: os brasilianistas.
Constata-se de permeio que, a nível acadêmico, a nossa cultura
popular é vastamente estudada sob particulares e estranhos pontos de
vista, além do fato de que os tais trabalhos geralmente vem a público
escritos naquela linguagem reservada, cabalística, misteriosa – à qual
somente uns poucos privilegiados tem acesso.
Essa fala – na verdade mais uma gíria: o mestradês, porque em geral
é usada nas teses e mestrados – sofreu uma tentativa de abolição pelo
escritor Esdras do Nascimento, ao apresentar o romance Variante
Gotemburgo para julgamento de seus mestres, obtendo prêmio e
aprovação unânime, como tema de pós-graduação.
Mas, voltando à vaca fria, no seu trabalho o professor José Maria
Gomes se preocupa muito em estudar sob o ponto de vista acadêmico, as
modificações introduzidas pelo poeta Leandro Gomes de Barros no
Romance “A força do amor”, deixando escapar outros aspectos que, se
não são técnicos, são prática comum dentro do processo de criação de
qualquer artista.
- 48 -
Cabe não perder de vista o fato de que Leandro Gomes de Barros
era um escritor, um literato, um intelectual, na exata acepção do termo,
desde que colocadas as particularidades e condições tanto pessoais
quanto da época em que viveu.
Primeiros, todos sabem das constantes batalhas que trava o autor
com sua obra. Singulares a esses seres quase sempre marginais, as lutas
mantidas com os demônios que habitam os textos são constantes e
inevitáveis. Impelidos pela moral e pela ética a modificar o que escreveu
antes, as obras sujeitas e novas edições sofrem tantas modificações
quantas o espírito empreendedor e inovador exige.
Reler e alterar textos se transforma numa obsessão vasta e
irreprimível, de tal maneira que levou o poeta Mário da Silva Brito, por
exemplo, a confessar que jamais rele seus livros, sob pena de ter que
modificá-los sempre e sempre a cada nova leitura.
Fatalmente o mesmo ocorreu a Leandro Gomes de Barros, que não
foi exceção desse legado maldito. Os Folhetos existentes no acervo da
Fundação Casa de Rui Barbosa, por mim pesquisados, estão eivados de
anotações, símbolos gráficos colocados à margem das sextilhas,
chamadas, acréscimos de texto, exclusões, uma tal parafernália bem típica
dos escritores.
Aliás, a simbologia utilizada demonstra que o autor tinha inequívoco
conhecimento da arte gráfica, da composição de texto, da revisão
tipográfica. Essas alterações, repito, são comuns a todos os escritores e
muitas das vezes nada tem de perfeccionismo do ponto de vista do autor,
mas estão sim diretamente ligadas à obra em si.
Outra coisa a se observar é que entre as edições confrontadas do
citado Romance, há um grande espaço de tempo, durante o qual a
linguagem se modificou. Nesse entremeio houve a introdução de muitos
modismos de época e novidades lingüísticas. A preocupação do autor
nesse aspecto é notada nas alterações propostas, ressaltadas pelo
articulista.
Leandro Gomes de Barros tem a seu favor o fato de ter sido – sem
nenhuma dúvida – o mais letrado, o mais inteligente, o mais
empreendedor, enfim, o mais preparado, poeta popular de seu tempo.
- 49 -
Daí a visível superioridade de suas obras sobre aas demais, daí a
espetacular popularidade que alcançou sua obra, popularidade essa
mantida viva durante a sua existência e mesmo depois que ele se foi.
No seu texto se vê que Leandro Gomes de Barros era pessoa de
vasta leitura – e não somente aquela leitura básica que todo poeta
popular se propõe por obrigação: bíblica, histórica, geográfica, mitológica
– capaz de absorver expressões estrangeiras trazidas pelos ingleses
(meeting por passeio, passeata), adotadas pela imprensa do sudeste do
país.
Sendo a cidade de Recife um centro cultural e político da época, de
grande importância para os nordestinos em geral, seria natural que
Leandro Gomes de Barros se transformasse numa liderança e exemplo
entre os seus. A capital pernambucana era fonte de atração para a maioria
dos poetas e violeiros, por isso foi virtualmente invadida pelos cordelistas
da época, que não hesitaram em entronizar o seu papa.
Erros lá e erros cá. Ao mesmo tempo em que o poeta atualiza a
linguagem do Romance, corrige expressões erradamente, para desespero
do professor José Maria Barbosa Gomes. Palavras escritas de modo
correto na edição mais antiga recebem tratamento inadequado por parte
do autor para a nova edição. Não seria um método maquiavélico de se
mostrar um escritor popular diante de seus leitores?
Pois peço que não considerem atrevimento ou ousadia se agora
proponho uma sugestão: não seria Leandro Gomes de Barros um
precursor daqueles poetas populares que provocam um erro intencional –
fórmula muito utilizada pelos cordelistas contemporâneos, querendo
parecer semi-analfabetos, quando na verdade muitos têm diploma de
curso superior até.
Mas não. Não poderia fazer esse julgamento do poeta paraibano,
porque há em Leandro Gomes de Barros uma verdadeira busca de
melhoramento (ou aperfeiçoamento, vá lá), da linguagem poética nos
seus poemas.
O que as alterações propostas pelo autor sugerem, também, é a
busca intencional de uma escrita facilitada, para que seus leitores
humildes melhor o entendam. Quanto mais tornar sua escrita o mais
- 50 -
coloquial possível, mais aproximada do falar cotidiano, o poeta mais se
identifica com seus ouvintes e leitores, pois são seus semelhantes que
vivenciam o mesmo espaço-tempo.
Tais observações são reforçadas ao comparar os Romances e
Folhetos populares com as demais formas poéticas que Leandro Gomes de
Barros costumava enxertar em quase todas as suas publicações. Nessas
formas mais aproximadas da poesia clássica da época, românticas,
simbolistas, parnasianas, a margem de erros se reduz de modo
considerável, chegando muitas vezes ao índice zero.
Não são conclusões, mas veredas pelas quais os estudiosos podem
permear no estudo e análise desse grande poeta popular.
Dois – Mais de mil folhetos!
Outra questão muito discutida pelos apaixonados pela poesia do
cordelista paraibano é o número excessivo de obras deixadas ou
atribuídas a ele, que muitos consideram exagerado a marca de mais de mil
Folhetos, cifra alcançada apor muitos historiadores. Na verdade jamais se
poderá chegar a um número absoluto em se tratando de Leandro Gomes
de Barros. Tudo que se fizer será mera especulação, devido às dificuldades
próprias da época.
Pelas muitas notas inseridas nos Folhetos – elas contam mais coisas
do que se pode imaginar – nota-se que paira certa distinção entre
romance e folheto, tal qual são concebidos hoje, após as muitas
“classificações” de que foi objeto, conforme obras de Leonardo Mota, Luiz
da Câmara Cascudo, Manuel Diegues Júnior, Alceu Maynard de Araújo,
Manoel Cavalcanti Proença, Orígenes Lessa, Hernani Donato, Liêdo
Maranhão de Souza, Franklin Maxado e tantos outros.
O excessivo zelo e a pluralidade de autores ajudaram, mas também
atrapalharam, porque cada um quer ser mais exato do que o outro, mas
sempre divergem, veio desembocar na tentativa de fusão pela Casa de Rui
Barbosa, em sua Antologia de Literatura Popular em Verso (Tomo III,
volume 2), na voz de Ariano Suassuna, que sugere duas classificações:
uma erudita e outra popular. O que vocês acham? Complicou ou
descomplicou?
- 51 -
Tudo, porém, acaba se resumindo na seguinte classificação:
1) Ciclo heróico, trágico e épico
2) Ciclo do fantástico e do maravilhoso
3) Ciclo religioso e de moralidades
4) Ciclo cômico, satírico e picaresco
5) Ciclo histórico e circunstancial
6) Ciclo de amor e de fidelidade
7) Ciclo erótico e obsceno
8) Ciclo político e social
9) Ciclo de pelejas e desafios
Neste caso particular do Leandro Gomes de Barros, a impressão que
traz em suas notas é que aos folhetos citados na quantidade de
publicações era acrescida também a tiragem de canções e outras poesias
avulsas, que eram vendidas em folhas (os Pliegos Sueltos ibéricos), idéia
esta reforçada pelo magnífico desempenho do poeta na produção de
poemas curtos, cuja maioria eram os poemas humorísticos e satíricos,
com temas que dominavam o cotidiano político e social. Primeiro eram
vendidos em folhas soltas para aproveitar a comoção que o tema trazia,
depois esses poemas eram enxertados nos folhetos e romances, já
naquela época publicados em capítulos, como as novelas de TV atuais,
fato observado por muitos críticos.
Entre as várias notas publicadas nas contracapas e em algumas
páginas de intervalo, aparece publicidade que anunciava a venda dos
Romances completos, ao preço de 1$000RS (mil réis), ao passo que os
folhetos de versos (aqueles de oito páginas), custavam apenas $200RS
(duzentos réis). Essa notável disparidade de preço alimenta a opinião de
que é verdade – e não bazófia – a afirmação contida nos versos
autobiográficos citados por Horácio de Almeida na “Introdução à obra de
Leandro Gomes de Barros” Tomo II da Antologia dedicada ao poeta: “Tem
folhetos mais de mil. O poeta João Martins de Athayde, editor do poeta
após a sua morte, não hesita em afirmar nos versos no necrológio
elogioso: “Canções não se sabe quantas”.
Somando tudo, portanto, não cabe duvidar da afirmação de
Leandro Gomes de Barros, mesmo porque a sentença “tem mais de mil”
aparece como mera estimativa, cabendo deduzir que nem ele mesmo
tinha o controle, o conhecimento exato, da quantidade de obras com sua
- 52 -
assinatura circulavam pelo nordeste, entre as produzidas para venda
própria e outras ofertadas a outros editores.
É fácil se imaginar a parafernália que existia em seu depósito, se é
que havia algum lugar com essa finalidade. Folhetos, romances, folhas
soltas, misturados com as obras de outros autores, seus contemporâneos,
que eram comercializados por Leandro Gomes de Barros, visto que num
Folheto seu declarou:
“ATENÇÃO - Previno que todas as obras que não
tiverem o meu nome não são de minha lavra”.
Essa pequena observação é um verdadeiro tapa no rosto dos
defensores intransigentes daqueles editores que compravam poesias e
publicavam desfigurando ou omitindo a identidade do verdadeiro autor,
alterando acrósticos, acrescendo ou eliminando estrofes, usando tais
truques para apagar rastos que identificavam autoria, tudo sob a alegação
de que tal atitude era comum na época.
Leandro Gomes de Barros deu um exemplo verdadeiro de lisura na
promoção de seus colegas de profissão, modelo que seus posteriores não
seguiram infelizmente.
Três – O primeiro humorista
O aspecto humorístico e satírico na obra de Leandro Gomes de
Barros foi ressaltado por Horácio de Almeida – historiador e conterrâneo
do poeta. Esse aspecto merece um trabalho de acurado estudo: a sátira, o
humor cáustico, a crítica – daquele que se intitulava “o primeiro
humorista brasileiro”.
Como abrideira e primeiro passo para tais estudos, eis alguns
exemplos dessa poesia leve e cáustica, alegre e satírica, humorada e
crítica, ressaltando o fato de que muitos desses poemas mereceriam uma
transcrição completa tal a sua originalidade, tal o poder que tem de fazer
rir ainda nos tempos de hoje, tal a perenidade e o rigor de temas que não
perderam a atualidade.
Em “Casamento à prestação”, o poeta descreve uma possível
candidata ao matrimônio:
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“Se ela tivesse cabelo
E não fosse desdentada
Se não lhe faltasse um olho
Não tivesse a pá quebrada
Há mais de quatorze anos
Ela já estava casada”.
Em outro poema do estilo, “O casamento do velho”, Leandro Gomes
de Barros descreve com incrível originalidade como veio a falecer o idoso
cidadão que casou com uma moçoila, jovem e virgem, que estava de olho
na herança deixada pelo ricaço coronel:
“Faleceu no urinol
Teve honras de lombriga”.
Em “O coletor da Great Western”, figura que freqüentava os idos
das primeiras estradas de ferro do Brasil, era na verdade um fiscal do
Governo, cuja função era perseguir tanto aqueles que viajavam no mole
(ou seja: de carona), nos trens na empresa inglesa, quanto os que
carregavam mercadoria pela via informal, pequenos negociantes e
mascates. Já nesse momento Leandro Gomes de Barros ridiculariza a fala
capenga dos estrangeiros: “Mim não querer isso” e ressalta a constante
exploração na gerência da correlação entre colonizado e colonizador,
desta vez em tempos modernos, quando a discriminação ressurge como
um fato político.
Os fiscais (coletores) percorriam os vagões procurando cumprir com
rigor a determinação da companhia e do Estado, que visavam reduzir a
evasão de receita tanto na empresa quanto no fisco, cobrando a
passagem dos caronas, taxando bagagens que não eram bagagem,
fiscalizando os objetos de uso pessoal, tudo beirando uma interpretação
dúbia e perniciosa, que sobrevive até os dias atuais.
Contra tais desmandos e injustiças que ocorriam diariamente entre
a população mais humilde, insurge-se o poeta com o verbo e a fala:
“Procuram-lhe contrabando
Até dentro dos ouvidos”.
- 54 -
Mesmo a um beberrão o fiscal não hesita em cobrar o imposto
devido pela cachaça que, a essa altura, viajava acomodada no estômago
do dito cujo:
“Aguardente do seu bucho
Só vai se for na bagagem”.
No folheto “O filho da aguardente”, esse sim, um poema que é todo
humor e sátira – humorismo que o tempo não envelheceu – Leandro
Gomes de Barros se revela precursor de uma linguagem especial que
busca na gíria, na expressão popular, no modismo, o que não seria comum
mesmo hoje, de um modo sem paralelo na época dele.
A expressão “porre” como tradução de bebedeira é usada pelo
poeta com repetição e desenvoltura, não obstante saber que as gírias e
modismos também têm trajetórias elipsoidais, com começo meio e fim,
como os cometas que vem e vão. Seja como for, era uma linguagem
incomum em terras nordestinas, usada pelo zé povinho de modo
rastaqüera, um calão comum a grupos sociais marginalizados:
“Com três dias de nascido
Tomei o primeiro porre
Tanto que a parteira disse
Essa criancinha morre
Tomar cana antes da papa
Veja que risco ela corre”.
.....
“O avô dele uma vez
Um grande porre tomou”.
.....
“Como é que não morre
Sendo desta raça
Filho da cachaça
E neto do porre
Que risco é que corre?”
- 55 -
As contas do pioneirismo lingüístico de Leandro Gomes de Barros
não param por aí. O poeta explorou também com rara felicidade a
linguagem macarrônica e arrevesada dos primeiros colonos lusitanos,
italianos e alemães, cujo falar enriqueceu a língua brasileira ao aflorar o
princípio do Século XX.
Antecipando-se aos que vieram depois, os clássicos Furnandes
“Quemões” Albaralhão, na verdade o carioca Horácio Campos – parceiro
do famosíssimo Barão de Itararé – também ao Zé Fidélis, na figura do
emigrante italiano Gino Cortopasi, versão paulista do “pueta lusitânu”,
esse humilde paraibano percebeu que havia algo de riqueza e curiosidade
naquela fala às avessas. O macarrônico lusitano aparece em “Sonho de um
português”, de forma elegante, fina, de modo a não ofender os próprios
portugueses, digna de um verdadeiro poeta:
“Tu eras como um arcanjo
Dibino!”
.....
“Tonvém quase desatino”.
.....
“Porque hoje o cabalheiro
Aqui neste portugale
Se não tiber o reale”.
.....
“E qualquer que o volso dali
Bendo a algibeira esgutada”.
E assim por diante...
Quatro – Morrer de rir
É quase impossível se destacar entre as obras de Leandro Gomes de
Barros aquela mais engraçada, mais satírica, mais crítica. O poeta escreveu
mais de uma dúzia de folhetos cuja temática atingia de cheio os anseios
- 56 -
de seus leitores. A poesia de humor em Leandro Gomes de Barros
sobrepujava qualquer sucesso dos meios de invenção, aí incluídos o rádio,
o circo e o teatro. Uma lista dos seus folhetos, todos de enorme
popularidade, de humor certamente incluiria:
“Casamento à prestação”
“O casamento do velho e o desastre na festa”
“O casamento hoje em dia”
“O azar na casa do funileiro”
“Os coletores da Great Western”
“O dez réis do Governo”
“O dinheiro”
“O filho da aguardente”
“A criação da aguardente”
“O fiscal e a lagarta”
“A dor de barriga de um noivo”
O folheto “A criação da aguardente” é uma maravilha de escrita
sintética e comunicação fácil, como a maioria das poesias citadas, que
resistem ao tempo e chegam até hoje em perfeita sintonia crítica com as
mazelas da sociedade, cujas censuras, cheias de atualidade, cabem
perfeitamente na vida atual.
Agora mesmo, em 1986, de volta da longa viagem de 76 anos, o
Cometa de Halley veio enfeitar de novo os céus da Terra com sua cauda
brilhante. Antes dessa passagem, em 1910, o cometa recebeu o registro
do poeta com o folheto “O cometa”, outra obra-prima de humor,
especulando com os muitos causos, milagres, curiosidades e mazelas que
seriam debitadas na conta da passagem do cometa entre nós.
O natural respeito do povo nordestino e interiorano pelo
misterioso, a passividade submissa à religiosidade, a admiração e respeito
pelo desconhecido, além da fama pelos feitos passados, que atravessam
gerações, tudo isso serviu de pano de fundo para especular sobre feitos
sobrenaturais que trariam a passagem do Cometa de Halley.
Leandro Gomes de Barros também é um deles e receia – como de
resto toda a população rural e religiosa – os efeitos catastróficos, os
desastres, as desgraças, tudo que for possível de suceder em virtude da
passagem do cometa sobre o céu brasileiro:
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“Caro leitor vou contar-lhe
O que foi que sucedeu-me
O medo enorme que tive
Que todo o corpo tremeu-me
Para falar-lhe a verdade
Digo que o medo venceu-me”.
Com essa introdução bem característica da literatura de cordel, o
poeta ganha a confiança do leitor, porque também ele é igual a todos, tem
os mesmos pontos fracos, os mesmos medos, receios do inexplicável,
treme de medo.
“Eu andava em meus negócios
Na cidade de Natal
No hotel que hospedei-me
Apareceu um jornal
Que dizia que no céu
Se divulgava um sinal.
O sinal era o cometa
Que devia aparecer
Em maio no dia 18
Tudo havia de morrer
Aí sentei-me no banco
Principiei a gemer”.
Representando e traduzindo o pensamento de toda a população, no
qual se confessa estar atacado por um medo que lhe é superior a tudo, o
poeta empalidece, amarela ante essa notícia muito desagradável, em que
terá de abdicar de tudo de supetão, porque o mundo vai acabar. De
imediato ele pensa numa venda a fiado que fez, que certamente devido
ao cometa, jamais receberá...
“Gemi até ficar rouco
Fiquei logo descorado
Depois o sangue subiu-me
Que fiquei quase encarnado
Imaginando num livro
Que o freguês levou fiado”.
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Aí as coisas começam a se mostrar mais claramente, os sucessos se
apresentam de acordo com a realidade dos fatos. Não adiantava nada
ficar ali se lamentando enquanto as catástrofes se anunciavam e o fim do
mundo se aproximava inevitável. Urge entrar no clima e também reagir à
inércia trazida pelo acontecimento.
“Disse ao dono do hotel
– Senhor eu estou resolvido
Antes de 20 de maio
Nosso mundo é destruído
Visto não durar um mês
Não pago o que tenho comido.
“A dona da casa disse-me
– O senhor está enganado
Se eu for para o outro mundo
O cobre vai embolsado
Eu subo porém em baixo
Não deixo nada fiado”.
É o prefácio a uma demonstração de como os homens agem diante
de uma pressão superior, divina, sobrenatural. Ante o fato inevitável, o ser
humano começa a se desnudar, confessar as fraquezas, tentar reparar os
erros. Mesmo que o mundo se acabe, mesmo que na morte as riquezas
percam valor, prevalecerá – sempre – o agarramento às coisas materiais, a
ganância, a cobiça, todos os pequenos pecados que o pobre homem
carrega consigo desde Adão.
“Me resolvi a pagar
Foi danado esse processo
Não paguei tomaram à força
O que é verdade confesso
Se hei de morrer de desgraça
Antes morrer de sucesso.
“Tratei de tomar o trem
E seguir minha viagem
Disse: – Vai tudo morrer
Para que comprar passagem?
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Inglês vai perder a vida
Perca logo essa bobagem”.
O condutor, porém, não acompanha o pensamento fatalista do
poeta. Descrente das trágicas conseqüências da passagem do cometa e
voltado para a defesa da companhia a que presta serviço, trata de cumprir
com rigor suas obrigações:
“Não comprou? Perguntou ele
Pois pague o excesso cá”.
“Eu lhe disse: condutor
O mundo vai se acabar
Para que quer mais dinheiro
É para lhe atrapalhar?
A mortalha não tem bolso
Onde é que pode levar?”
Não tendo sucesso em suas pretensões tanto no hotel quanto no
trem, chega o poeta em casa. O fato da realidade se mostrar outra, bem
diferente da fatalidade teórica, traz o poeta para os trilhos, onde voltará a
andar de olhos bem abertos. Mas, como sempre, ele chega cansado da
faina diária, lamentando que nada havia saído bem durante o dia.
“Chego em casa muito triste
Achei a mulher trombuda
Perguntei: – Filha o que tem?
Respondeu-me carrancuda:
– Ora, a 18 de maio
O mundo velho se muda.
“Perguntei: – Tem jantar pronto?
Venho com fome e cansado
Desde ontem, respondeu-me,
Que o fogão está apagado
Devido a esse cometa
Não querem vender fiado”.
A aparição celestial – como se viu – muda todo o contexto na
cidade. Além de não haver mais vendas fiado, os credores apertam o
- 60 -
cerco, porque, afinal, já que tudo vai se acabar o melhor é ir desta para
outra numa boa, cheios de dinheiro.
“Eu estava tirando as botas
Quando chegou um caixeiro
Esse vinha com uma conta
Que eu devia ao marinheiro
Eu disse: – Vai morrer tudo
Seu patrão quer mais dinheiro?
“Fui falar um fiadinho
Que eu estava de olho fundo
O marinheiro me disse:
– Já por ali vagabundo
Eu disse: – Venda seu Zé
Que eu pago no outro mundo”.
O “marinheiro” – na verdade denominação dada aos donos de
quitanda – não quer arriscar nada, mas o nosso poeta alteia a voz, faz
drama, não hesita em rogar uma praga:
“A 19 de maio
Quando acabar-se o barulho
Eu hei de ver vosmecê
Que o senhor vai no embrulho
Só se esconder-se aqui
Debaixo de algum basculho”.
E em seguida exige com muita veemência:
“Quero 10 quilos de carne
Uma caixa de sabão
Quatro cuias de farinha
Doze litros de feijão
Quero um barril de aguardente
Açúcar, café e pão.
“Manteiga, azeite e toucinho
Bacalhau e bolachinhas
Vinagre, cebola e alho
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Vinte latas de sardinhas
Duas latas de azeitonas
Umas dezoito tainhas.
“O marinheiro me olhou
E exclamou: – Oh desgraçado!
Então inda achas pouco
Os que já tens enganado?
Queres chegar ao inferno
Com isto mais no costado?”
O poeta esperneia, chia, reclama, mas de nada adianta. O
quitandeiro acaba por expulsá-lo da venda, insultando-o de vagabundo,
malandro e outros epítetos. Novas pragas se sucedem na retirada
involuntária. Vencido o poeta retorna ao lar lamentoso, mas sempre em
busca de uma solução para o inesperado drama.
“Voltei e disse à mulher:
– Minha velha está danado
O cometa vem aí
De chapéu de sol armado
Creio que no dia 18
Lá vai o mundo equipado.
“Deixa ir lá como quiser
A coisa vai a capricho
Comer nem se trata nele
Nossa roupa foi pro lixo
Vamos ver se lá no céu
Tem onde matar-se o bicho.
“Fui onde vendiam fato
Comprei uma panelada
Com mais um garrafão
De aguardente imaculada
Disse a mulher: – Felizmente
Já estou de mala arrumada”.
A panelada de fato – nome dado ao ensopado feito de bucho de boi
(fato) e outros ingredientes da culinária pobre (hoje chamada dobradinha)
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– salva o sustento da família até o dia 17 de maio, véspera da tragédia que
se anuncia. Quem traz a primeira notícia do início do desastre é seu
próprio filho:
“– Papai o bicho estourou!”
Aí foi um salve-se quem puder:
“Aí eu juntei os pratos
Embolei todo o pirão
Botei o caldo num pote
Peguei-me com o garrafão
Me ajoelhei e rezei logo
O ato de contrição.
“A mulher disse chorando:
– Meu Deus fica a panelada
Disse o menino: – Papai
Onde está a imaculada?
Eu disse: – Filho sossega
Aqui não me fica nada.
“E me ajoelhando aí
Tratei logo de rezar
O ato de confissão
Senti um anjo chegar
Dizendo reze com fé
Ainda pode escapar”.
Mas o ato de confissão de um boêmio é bem diferente daquele
ensinado pelas igrejas a seus fiéis. As bem-aventuranças são outras, mais
terrenas, mais profanas, algumas blasfemas – todas adotadas por uma
gente que vivencia o cotidiano em situação adversa e extraordinária:
“– Eu beberrão me confesso à pipa,
à bem-aventurada imaculada da Serra Grande,
ao bem-aventurado vinho de caju,
à bem aventurada genebra da Holanda,
vinhos de frutas,
apóstolos de deus Baco
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e a vós, oh caxixi,
que estás à direita de todas as bebidas
na prateleira do marinheiro.
Amém!”
A oração, naturalmente, é recebida no além, para onde foi
direcionada:
“Quando acabei de orar
Olhei para a amplidão
Ouvia dançar mazurca
Cantar, tocar violão
Era um anjo que dizia:
– Bravos de tua oração.
“Aí um anjo chegou
Com uma túnica encarnada
Disse: – Sou de Serra Grande
De uma fazenda falada
Eu sou o que cerca o trono
Da gostosa imaculada.
“Sr. Láu o proprietário
Do reino onde ela mora
Me mandou agradecer-lhe
A súplica que fez agora
Aí apertou-me a mão
E lá foi o anjo embora”.
A aparição foi providencial e veio corroborar que o ato de confissão
agradou àqueles que têm o poder de salvação. Assim sendo, nada mais
justo comemorar o inesperado sucesso:
“Aí eu disse: – Mulher
Visto termos nos salvado
Desmanchemos nossas trouxas
Já estava tudo arrumado
Toca a comer e beber
Foi um bacafu danado”.
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AMOR POR ANEXINS
O sucesso e a fama de Leandro Gomes de Barros não podem ser
medidos por meio de fatores isolados e sim quando se tomada a sua obra
como um todo, um vasto conjunto de peças, uma conjugação de
elementos que foram capazes, por um largo espaço de tempo, de agradar
leitores de várias camadas sociais, principalmente os mais humildes, os
analfabetos, sim, que compravam folhetos para ouvi-los pela voz de um
amigo ou de um membro da família que soubesse ler.
Não é fácil se usar uma linguagem popular em qualquer obra
literária, fazendo-a tão coloquial e entendível quanto possível, sem
prejuízo para o enredo e para a fluidez narrativa. Poucos escritores
conseguem isso. Quando se faz uma leitura fácil é porque o escritor
encontrou finalmente a linguagem de seu tempo.
Os ditados, frases feitas pelo linguajar vulgar, se transformam
muitas vezes num intrincado labirinto paremiológico, que virá a ser de
grande utilidade para o escritor que tenha o dom de dominar essa fera.
Quem escreve deve saber transitar por elas como quem desvenda os
segredos de um labirinto. Se desistir da caminhada ao esbarrar nos
obstáculos – que são muitos – tudo vai por água abaixo.
O vasto conhecimento de Leandro Gomes de Barros em
paremiologia faz de seus romances e folhetos de cordel um manancial de
valor incalculável para escritores, pesquisadores e estudiosos dessa faceta
gramatical.
Encontra-se, com efeito, em sua obra um sem-número de adágios,
sofismas, aforismos, frases feitas, que foram citados ao pé da letra,
quando outros mais sofreram uma reinvenção, outros foram adaptados ao
linguajar da época, formando frases sertanejas, de uma poesia cabocla e
chã, mas de acordo com a informação que desejava passar ao leitor.
Numa passagem de olhos rápida por cerca de trinta e cinco folhetos
do poeta, enfeixados na Antologia editada pela Casa de Rui Barbosa
(pertencentes ao acervo de Literatura de Cordel), sem muito rigor e sem
empregar as regras técnicas da pesquisa, já que este não é o caso,
registra-se uma vasta quantidade de citações de ditos populares.
- 65 -
Essa amostragem relacionada a seguir mostra o quão rica é a
linguagem de um autor popular para que seu trabalho termine por
alcançar a meta pretendida e assim se eternizar pelos valores qualitativos
e de beleza.
Uma possível relação com o Adagiário Brasileiro de Leonardo Mota,
finalizado pelos seus filhos, acompanha a presente coleta apenas como
ponto de referência e para ressaltar o grande conhecimento de Leandro
Gomes de Barros nesse detalhe e como esse saber foi bem utilizado.
Essa mostra pode servir também de carona, mais um pé de chinelo,
para uso de futuros pesquisadores e sigam com mais vigor a caminhada.
LGB – A caridade não se faz só a cristão. (1)
LM – Fazer o bem, não olhar a quem.
LGB – A culpa é uma dívida, que com a morte é sanada. (2)
LM – A morte tudo apaga.
LGB – A desgraça vem ao mundo, sem avisar a ninguém. (1)
LM – A desgraça vem sem ser chamada.
LGB – A falsidade é a arma mais pronta, aonde existe a maldade (1)
LGB – A fruta estando madura, inda se torna mais cara. (2)
LGB – A justiça do céu chega sutil como o sono. (3)
LM – A justiça de Deus tarda, mas não falha.
LGB – A morte do desordeiro para o manso é benefício. (4)
LM – A desgraça de uns é o bem de outros.
LGB - Amor não olha riqueza. (5)
LM – Amor faz muito, mas dinheiro faz tudo.
LGB – Aonde foram duzentos, que tem que vá um milheiro. (6)
LM – Onde come um, comem dois.
LGB – A mulher do filósofo aprende bem filosofia. (7)
LM – Diz-me com quem andas, que te direi quem és.
- 66 -
LGB – Aquilo que o mundo diz, foi, ou é, ou há de ser. (8)
LM – Em tudo há um fundo de verdade.
LGB – A riqueza desta vida é honra, crença e saúde. (9)
LGB – As pedras correm atrás dos apedrejados. (8)
LM – Atrás dos apedrejados correm as pedras.
LGB – Barco só deve perder-se depois de bem carregado. (10)
LM – Mais vale prevenir do que remediar.
LGB – Boto a desgraça de um lado, do outro a miséria acode. (11)
LM – A desgraça, por ser boa, precisa ser bem desgraçada.
LGB – Carreira de velho é chôto. (10, 12)
LM – Carreira de velho é chouto.
LGB – De freira e festa de natal, até o diabo sai.
LGB – De onde vem a desgraça, sai a fortuna também. (13)
LM – A desgraça de uns é o bem de outros.
LGB – Depois desta vida, o que se pode aproveitar?
LM – A morte tudo apaga.
LGB – Desgraça não quer conselho. (10)
LM – A desgraça vem sem ser chamada.
LGB – Deus é grande e tem poder, o poder dele é de pai. (5)
LM – Deus é pai e não padrasto.
LGB – Deus me livre de mulher, de médico e advogado. (12)
LM – De médico, de advogado e de mulher, libera-nos dominé.
LGB – Deus é um pai constante: dá o pão a quem tem fome. (9)
LM – Deus dá o frio conforme a roupa.
LGB – Deus é pai de todos nós. (9)
LM – Deus é pai e não padrasto.
- 67 -
LGB – Deus quando quer matar um, mata acolá e ali. (9)
LM – A justiça de Deus tarda, mas não falha.
LGB – Deus te dê fortuna. (14)
LM – A sorte quem dá é Deus.
LGB – Dinheiro só não pode privar do dono morrer. (15)
LM – O dinheiro tudo compra.
LGB – Do que seu patrão comeu, você também hoje engole. (16)
LM – Cada qual com seu igual.
LGB – É igualmente ao cachorro: entra sem ninguém mandar. (17)
LM – O cachorro entra na igreja porque encontra a porta aberta.
LGB – É mais fácil um boi voar. (18)
LM – É mais fácil um boi voar.
LGB – Entre a palavra e a obra há enorme distinção. (19)
LM – Querer não é poder.
LGB – Entre espinhos nascem rosas. (20)
LM – Não há rosas sem espinhos.
LGB – É sinal que vive pouco, quem já tem vivido muito. (12)
LGB – Eu não vou criar galinhas para dar capões a ninguém. (14)
LM – Não vou botar azeitona na empada de ninguém.
LGB – Eu sou velha neste mundo, não ando por ver andar. (21)
LGB – Eu vou me aproveitar, enquanto Braz é tesoureiro. (22)
LM – Aproveita, enquanto Brás é tesoureiro.
LGB – Foi fácil você entrar, mas é custoso sair. (23)
LM – Antes de entrar, pensar na saída.
LGB – Haja o que Deus for servido. (5)
LM – Deus dá o pão conforme a fome.
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LGB – Homem de 70 anos
É engenho de fogo morto
Seu barco é um ataúde
A sepultura é um porto. (12)
LGB – Lá um dia a casa cai. (23)
LM – Lá um dia cai a casa.
LGB – Livre-nos Deus do inimigo e do mal. (35)
LM – Deus nos livre de todo o mal.
LGB – Mato tem olhos, as paredes tem ouvidos. (1)
LM – Matos tem olhos, paredes tem ouvidos.
LGB – Não há juiz como Deus. (5)
LM – Deus é justo.
LGB – Não solto o pássaro, por um que algum dia vem. (22)
LM – Mais vale um passarinho na mão que dois voando.
LGB – O amor é como a morte, que não separa ninguém. (5)
LM – O amor é como o sono
Que não dispensa ninguém...
Eu só comparo com a morte:
Ninguém sabe quando vem.
LGB – O amor é uma pessoa, ambos são da mesma idade. (24)
LGB – O boi manso aperreado, arremete certamente. (25)
LM – Boi manso, aperreado, arremete.
LGB – O boi na terra alheia, até as vacas lhe dão. (21)
LM – O boi, estando em terra alheia, até as vacas lhe dão.
LGB – O cavalo por um coice, não deve cortar-se a perna. (24)
LGB – O cesteiro que faz um cesto faz mais cem e assim por diante. (24)
LM – Cesteiro que faz um cesto, faz cento e, tendo cipó e tempo, faz
duzentos.
- 69 -
LGB – O crime figura um cego, a lei figura uma guia. (24)
LM – A justiça é cega.
LGB – O desastre é um diabo que persegue a simpatia. (19)
LM – O diabo ajuda os seus.
LGB – O mel por ser muito bom, as abelhas dão-lhe fim. (26)
LM – O mel, por ser bom demais, as abelhas dão-lhe fim.
LGB – O mundo pertence a Deus. (4)
LM – Deus tem poder sobre tudo e sobre todos.
LGB – Onde o sol nunca se viu, ninguém conhece as estrelas. (27)
LGB – O ouro da traição pertence ao traidor. (3)
LM – Cada um colhe conforme semeia.
LGB – O poder de Deus é forte. (28)
LM – O poder de Deus é grande.
LGB – O que vem na rede é peixe. (29)
LM – O que cair na rede é peixe.
LGB – O risco que corre o pau, corre também o machado. (10, 30)
LM – O risco que corre o pau, corre o machado.
LGB – Os crimes são descobertos, por mais que sejam escondidos. (1)
LM – A culpa condena.
LGB – Os nus só querem amizade dos que estão esmolambados. (8)
LM – Os iguais se atraem.
LGB – Os olhos são verdadeiros, não podem nada ocultar. (1)
LM – Os olhos são a janela da alma.
LGB – Ou vai a língua ou o beiço. (31)
LM – Ou vai ou racha! Ou arrebenta a tampa da caixa.
LGB – Ou vai o queixo ou o dente. (31)
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LM – Ou vai ou racha! Ou arrebenta a tampa da caixa.
LGB – Ou vai o dedo ou a unha. (31)
LM – Ou vai ou racha! Ou arrebenta a tampa da caixa.
LGB – Pobreza não quer vintém. (10)
LM – Pobreza não é vileza.
LGB – Pode o diabo ir ao céu. (18)
LM – O diabo reza também.
LGB – Quando a sorte não quer, o mal recua e não vem. (32)
LM – Quando Deus não quer o diabo não pode.
LGB – Quem aos vinte não barba
Quem aos quarenta não tem
Aos vinte e cinco não casa
Nenhum dos três obtém. (12)
LM – Quem aos vinte não barba, aos trinta não casa e aos quarenta não
tem, não barba, não casa, não tem.
LGB – Quem compra uma tasca paga pelo preço dela. (24)
LM – Quem mal paga, paga duas vezes.
LGB – Quem deve a Deus, paga a Deus. (33, 34)
LM – A justiça de Deus tarda, mas não falha.
LGB – Quem dinheiro tiver, vende a terra e compra o céu. (12)
LM – Quem dinheiro tiver, fará o que quiser.
LGB – Quem gaba o noivo é a noiva. (10)
LM – a) Quem gaba o buraco é o tatu; b) Quem gaba o toco é a coruja; c)
Quem gaba a noiva é o noivo.
LGB – Quem nunca curou ferida, não sabe o que é dor. (25)
LM – a) A bouba dói é no cu de quem a tem; b) Pimenta no cu dos outros é
refresco.
LGB – Quem por causa de uma ovelha deixa um rebanho se perder? (4)
LM – Pior causa de um vintém, se gasta cem.
- 71 -
LGB – Quem tiver pena que chore, quem gostar fique contente. (14)
LM – Cada qual faz o que lhe convém.
LGB – Roma não de fez num dia. (14)
LM – Roma não se fez num dia.
LGB – Santo que eu não conheço, a esse nada ofereço. (16)
LM – A santos que não conheço, não rezo nem ofereço.
LGB – se havia de morrer de desgraça, antes morrer de sucesso. (6)
LM – A morte não escolhe jeito.
LGB – Sem a hora ser chegada, bala não mata ninguém. (32)
LM – A hora é incerta, mas a morte é certa.
LGB – Só Deus sabe e mais ninguém. (5)
LM – Só acontece o que Deus quer.
LGB – Tanto vale o roto quanto vale o casacudo. (16)
LM – Todos são iguais perante Deus.
LGB – Tudo com a morte se acaba, tudo com a morte se alcança. (5)
LM – a) Tudo no mundo se acaba; b) Tudo no mundo tem fim.
LGB – Vê-se a cara do homem, mas não vê-se o coração. (19)
LM – Quem vê cara não vê coração.
Por essa singela amostragem dá para notar a importância que
Leandro Gomes de Barros dedicava à fala do povo, à frase comum,
prestando, por seu lado, um excelente serviço à divulgação e estudo da
paremiologia, suas mudanças e adaptações à linguagem nordestina, a
similaridade com o falar de Portugal e da Galícia, trazidas pelos
emigrantes daquelas regiões.
A influência do adagiário na obra do poeta paraibano, a própria
assimilação e utilização de ditos populares na Literatura de Cordel,
merecem certamente um tratamento mais respeitoso, estudos mais
acurados, cuja especialização poderia se estender aos estudos acadêmicos
- 72 -
de letras e línguas, existentes nos currículos universitários. Sirvam-se,
amantes e estudiosos.
A numeração dos adágios corresponde aos seguintes folhetos:
01 – O cachorro dos mortos
02 – João da Cruz
03 – Como João Leso vendeu o Bispo
04 – Festas de Juazeiro no vencimento da guerra
05 – A força do amor
06 – O cometa
07 – O testamento de Cancão de Fogo
08 – O azar na casa do funileiro
09 – A órfã
10 – Peleja de Antonio Batista e Manoel Cabeceira
11 – O azar e a feiticeira
12 – O casamento e o velho
13 – Branca de Neve e o soldado guerreiro
14 – Antonio Silvino, Rei dos Cangaceiros
15 – O dinheiro
16 – Os coletores da Great Western
17 – O fiscal e a lagarta
18 – Romano e Ignácio da Catingueira
19 – As proezas de um namorado mofino
20 – O casamento hoje em dias
21 – Discussão do autor com uma velha de Sergipe
22 – A crise atual e o aumento do selo
23 – Peleja de José do Braço com Izidro Gavião
24 – Antonio Silvino no júri – Debate de seu advogado
25 – Como Antonio Silvino fez o diabo chocar
26 – O divórcio da lagartixa
27 – Antonio Silvino se despedindo do campo
28 – Os dez réis do Governo
29 – Conferência de Chiquinha com Gregório das Batatas
30 – As aflições da guerra na Europa
31 – Ecos da pátria
32 – Os defensores dos inocentes de Garanhuns
33 – Vingança de um filho
34 – Exclamações de Antonio Silvino na cadeia
35 – O Governo e a lagarta contra o fumo
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UMA ENTREVISTA NO CÉU
Encontrei Leandro Gomes de Barros entretido numa conversa entre
amigos, a espiar lá do alto do céu toda a extensão da Feira de São
Cristóvão, que todo santo domingo se espalha pelas costelas do pavilhão
de mesmo nome, que já teve seus dias de glória, de modernas exposições
e festivais de cerveja e após se transformar num entulho desagradável e
atravancar o campo que deu nome ao Bairro Imperial, finalmente entrou
nos eixos e se transformou num espaço cultural agradável e maneiro.
A feira hoje não é mais aquela que se espalhava ao redor do
pavilhão e foi crescendo desordenada até que o espaço acabou. Essa
mesma feira sobrecarregada de barracas limitava-se a umas poucas ruas
de vendas de produtos nordestinos, desde a esquina da Rua Escobar até o
entorno do Colégio Pedro II. Depois cresceu de tal modo que foi preciso
criar coragem e aproveitar o espaço abandonado do Pavilhão de São
Cristóvão, para dar o merecido orgulho aos fundadores e freqüentadores
da feira, com um espaço digno, organizado e higiênico. Falta pouco para
atingir a perfeição, mas um dia chegamos lá...
De todo modo, causou espanto ao vate paraibano saber que feira
tão nordestina nasceu e se encravou no meio do cosmopolitismo carioca,
mesmo sabendo que a população de nordestinos do sudeste – São Paulo e
Rio de Janeiro principalmente – é hoje bem maior do que muitas capitais e
cidades daquela região – coisa de causar igual espanto.
Da roda dessa conversa informal participavam muitos colegas do
poeta, entre tantos, Silvino Pirauá e os irmãos Batista, além de uma dúzia
de cantadores que ilustravam a palavra do mestre com versos de repente
e alguns martelos agalopados. Josué Romano, Serrador, Cabeceira,
Riachão ponteavam de igual para igual, alegrando o rosto moreno de
Leandro Gomes de Barros, cuja cabeleira e bigode tinham já a cor
prateada das nuvens da mansão celestial.
José Martins de Athayde – que também cantara em vida seus
repentes – observava o grupo um tanto acabrunhado, mas sem deixar de
comparecer quando alguma rima lhe apetecia tirar uns versos. E nisso
sempre se saía bem. Foi difícil arrancar o velho vate daquele encontro de
menestréis, cujo número ia aumentando às centenas, mas conseguimos
arrastá-lo para um cantinho, a puz de bebericar um cálice da imaculada.
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Nem foi preciso ligar algum gravador: o mestre bem experiente em
tudo que dizia respeito às letras recomendou que se memorizasse alguma
palavra ou frase e o resto, bem, o resto que fosse de invento dos
entrevistadores. Pedimos ao poeta que, de princípio, se apresentasse, a
modo de autorretrato.
– Sou Leandro Gomes de Barros, escritor paraibano. No ofício de
escrever, trabalho com calma e plano. Tenho fama de repentista, escritor
e romancista. Folhetos escrevi mais de mil, corre fama no Brasil de ser o
seu primeiro humorista.
– Quando e onde o poeta nasceu?
– Nasci no ano de 1865, no município de Vila do Pombal, Estado da
Paraíba. Com muito orgulho sim sinhô. Mas tenho no Recife, a minha
segunda cidade.
– Existe alguma particularidade na sua formação de escritor e
poeta?
– Desde menino sempre gostei muito de ouvir os contos da
antiguidade...
– Quem lê suas poesias e romances, volta e meia encontra sinais de
alguma descrença. Qual é a sua fé?
– Jesus dizia que Deus é um Pai constante. Dá o pão a quem tem
fome, dá ciência ao ignorante, consola o triste que chora e mostra o porto
ao navegante. Essa é minha religião...
– Fale sobre suas lembranças, sobre a infância, amores e
desamores, cujo eco se lê nas entrelinhas dos poemas felizes.
– Sim, um grande amor perturbou minha infância. Ela tinha talvez
uns nove anos, tinha os olhos celestiais, soberanos. Éramos, ela e eu,
ambos crianças. Voávamos nas asas de esperanças.
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– Esse amor sublimado deixou alguma marca especial na sua
existência? Como você considera a importância da mulher na vida do
homem?
– Eu classifico a mulher como a flor da existência. Um altar de
divindade, o símbolo da inocência.
– Foi um tempo feliz esse da infância, a juventude? O que você diria
aos jovens de hoje?
– Devemos gozar a nossa mocidade, beber o aroma da primeira
idade. E deixar para os filhos um grande exemplo mais tarde.
– Para um poeta inspiradíssimo e popular como Leandro Gomes de
Barros, o que significa a vida?
– A vida é um riso de mil esperanças, uma nau que nos leva num
mar de bonança.
– Mas para o poeta não é sempre essa a visão da existência...
– Alguém diz que nossa vida parece um sonho dourado. Eu classifico
esta vida como um fardo muito pesado.
– Como homem você por acaso tem um código de honra?
– Eu sou de opinião que o homem deve morrer, porém não mostre
fraqueza, nem dê o braço a torcer. A covardia é um osso que não se pode
roer.
– Esse modo de ver a vida não é ilusório? E o orgulho do poeta?
– Meus filhos podem dizer: Somos filhos de um homem pobre, mas
de sentimento nobre e caráter cristalino.
– E quanto à liberdade, você se considera um ser livre?
– Nossos pais nasceram livres, nós somos livres também...
– O mundo é justo, há igualdade entre os seres?
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– Se o rico tiver direito, o pobre terá também.
– Corre do poeta a fama que adora uma branquinha fria, que gosta
da boemia e que é doido por um rabo-de-saia...
– Sempre adotei a doutrina ditada pelo rifão, de se ver a cara do
homem, mas não vê o coração. Entre a palavra e a obra, há uma grande
distinção...
– Certo mistério envolve a existência: você tem crença na alma? Na
eternidade? Na vida além da morte?
– O mundo é um logogrifo, ninguém pode decifrar. Creio que a alma
do coxo, chegando no céu é manca...
– Acredita na sorte e no azar?
– A sorte é como uma vaga que vem e torna a voltar.
– Apesar da boa aparência, você já precisou de um médico?
– O médico faz do doente um sítio de plantação...
– Já vi que em matéria de crença, você não reza padre-nosso...
– Eu beberrão me confesso à pipa, à bem-aventurada imaculada de
Serra Grande, ao bem-aventurado vinho de caju, à bem-aventurada
genebra da Holanda, vinhos de frutas, apóstolos de Deus Baco e vós – oh
caxixi! – que estão à direita de todas as bebidas na prateleira. Amém.
– Foi o poeta quem disse: Eu sou o que cerca o trono, da gostosa
imaculada.
– Exatamente. Como disse também: Nasce o filho do ferreiro, com o
martelo e a safa. O filho do pescador traz a linha e a tarrafa. O filho do
cachaceiro traz o copo e a garrafa.
– Essa paixão pela branquinha é inata nos poetas...
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– Eu creio que foi por isso que eu fiquei gostando dela. Ela namora
comigo, eu faço cera com ela. Ela estraga o meu juízo, eu a aperto na
goela.
– É incrível essa veneração pela tão mal falada cachacinha!
– O que já morreu está morto e quem escapou não morre. Devemos
aproveitar enquanto o alambique corre...
– Já nos tempos antigos se venerava o deus Baco.
– Porque um sábio dizia: Líquido de milho é massa, futuro de velho
é queda, suco de fogo é fumaça, o caldo da uva é vinho, sangue de bêbado
é cachaça.
– Essa é boa! Mudando de assunto, como bom paquerador, você é
casamenteiro, devoto de Santo Antônio?
– Não há loucura maior do que o homem se casar! Quem casa num
tempo desses perdeu toda a razão.
– O casamento é tão ruim assim?
– Santo Deus! Que peso horrendo! Nas costas de um desgraçado,
uma mulher e a mãe, de quebra! Não há fardo mais pesado, do que seja
uma mulher.
– Porém, diz o ditado, o casamento é um mal necessário...
– Sogra muda e mulher rouca, são de bem necessidade. Esses dois
incômodos nelas são de grande utilidade. Quando nada, elas assim,
descansam a humanidade.
– Nos tempos de hoje o poeta seria considerado machista...
– Mulher e resto de mesa, a gente não vende, dá.
– Mas as pessoas ainda preferem um casamento tradicional à
loucura que vigora hoje em dia.
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– Há muito tempo que eu dito: o mundo está as avessas. Tem
homem que hoje vive do trabalho da mulher.
– Existe também muita confusão criada pela “opção sexual”...
– Hoje se vê uma moça, ninguém sabe se é rapaz. E note que não há
moda que chegue e não nos ofenda. É tanta moda que vem, que não há
quem compreenda. Muito em breve os homens fazem calça e camisa com
renda.
– Então você acha que a coisa do jeito que está não tem jeito
mesmo?
– Assim como as pedras correm atrás dos apedrejados, corre
também o caipora atrás dos encaiporados. Os nus só querem amizade dos
que estão esmolambados.
– Dizem os crentes, os novas-seitas, que isso vai mudar...
– Arrumou praga de mãe, baba de um blasfemador, a crueldade de
Herodes, o riso do traidor, misturando com veneno, eis aí um pregador!
– Ou isso ou outra coisa. O poeta por acaso presenciou alguma
guerra? É a tragédia pior que a humanidade tem...
– Guerra! Oh guerra! Abismo dos abismos. Lago triste, enorme de
águas turvas. Condutora da fome e da desonra, oficina de órfãos e viúvos.
Um juiz não perdoa esses teus crimes e nem lava tuas nódoas as grandes
chuvas.
– O Brasil bem que já poderia ser uma potência mundial capaz de
trazer a paz ao mundo. O que falta pra nossa terra ser grande?
– O atraso do Brasil é essa desunião. O estado nos oprime, o
município faz guerra. Nunca se viu tanto imposto assim na face da terra.
Num país como o nosso, cobra-se até de quem reza o Padre-Nosso!
– Mas eis que levantamos grandes obras e além disso temos
inesgotáveis riquezas naturais! Isso não diz nada ao poeta?
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– O nosso Brasil está hoje como quando inda era inculto. O inglês
leva o cobre que há, não nos deixa ficar nem um tostão. E o brasileiro se
banha, se não for no bolso também.
– Mesmo assim se sente que o povo tem muita fé no seu país, na
sua terra...
– Há encantos no Brasil que não há em outro solo. Nascemos no
meio das flores, somos criados no colo. O brasileiro não morre, se muda
para outro pólo.
– É que se dá muito valor ao dinheiro, é a ganância que impera,
querer sempre mais.
– O dinheiro neste mundo, não há quem o debande. Tudo está
abaixo dele, só ele ali é grande.
– Mas existe uma distância grande a separar o rico do pobre. Só
falta dinheiro para os pobres, os ricos ficam mais ricos.
– É o farol que mais brilha perante a sociedade. O código dali é ele,
a lei é sua vontade. A moça tendo dinheiro, sendo feia como a morte, mais
de mil aventureiros a desejam como consorte.
– Mas será tão importante assim o dinheiro na nossa vida?
– Dinheiro traz eloqüência a quem nunca teve estudo. Imprime
coragem ao fraco, dá animação a tudo. Vence batalha sem arma, faz vez
de lança e escudo.
– Em outras palavras: o destino do pobre é triste.
– Bote dinheiro no morto que a ossada dele se bole... A garantia do
pobre é pontapé e cadeia.
– Essa maldade sempre ataca o Nordeste. Calamidades, secas
terríveis, fome e miséria.
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– O Governo Federal querendo remia o Nordeste. Seca a terra, as
folhas caem, morre o gado, sai o povo. Todos ali, surdos aos gemidos,
divisam o espectro da morte...
– Qual o remédio para tanta tragédia?
– A seca ataca o sertão, a crise circula na praça. Tanto que eu creio
que este ano, sobe tudo na fumaça. Só ficará no Brasil o imposto e a
desgraça.
– Seca, fome, miséria, trabalho escravo, assassinatos, mortandade...
Qual a tragédia maior?
– Nódoa preta da história, a fome negra e crua. As crianças já não
sabem o que é barriga cheia. Aqueles campos que eram por flores
alcatifados, hoje parecem sepulcros pelos dias de finados.
– Dá pena se ver uma família nordestina diante da seca...
– Vê-se uma mãe cadavérica, que já não pode falar, estreitando o
filho no peito, sem o poder consolar...
– Mas campanhas promovidas arrecadam milhões em dinheiro,
visando amenizar tantos males.
– O dinheiro é tão sabido que quis ficar escondido nos cofres dos
potentados. Ignora-se esse meio: eu penso que ele achou feio o bolso dos
flagelados.
– Então, aí vem o cangaço, a revolta. Você conheceu o célebre
Antonio Silvino e fez uma entrevista com ele. Como era esse justiceiro
revoltoso?
– Antonio Silvino não fez tudo o que se diz. Parece que um ente
desses cumpre a ordem do destino. Eu ouço falar em crimes cometidos
por Silvino, quando talvez o pai dele ainda fosse menino.
– Conta a história que ele agia como se fosse um “governo
ambulante” pelo interior.
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– Passou dezenove anos o Norte sem garantia. Só morava no sertão,
o povo que ele queria. A força que fosse a ele, desintegrada saía.
– Esse é o comportamento natural dos cangaceiros, dos justiceiros
independentes...
– O cangaceiro sagaz não se confia a ninguém. Não diz para onde
vai, nem ao próprio pai – se tem. Exercitar-se bem nas armas, pular muito
e correr bem.
– Desde sempre o sertão fez nascer, criar e viver tipos assim,
revoltados com a situação social de seus irmãos e companheiros...
– Não era Silvino só o cangaceiro que havia. Então do nome dele,
qualquer um prevalecia. Muitos crimes foram dados aonde Silvino nem ia.
– Pelas contas dos muitos crimes que o povo fazia, Silvino era a
representação do próprio capeta.
– Ele deve ter processo em todo aquele sertão. Ele nunca se
recusou, para qualquer agressão: roubo, incêndio, assassinato, era a sua
profissão.
– Foi um grande feito sua entrevista com Silvino. Mas voltando aos
poetas, editores (você é um editor), dizque não respeitam a autoria
original quando compra um folheto. Verdade?
– Aquilo que o mundo diz, foi, ou é, ou há de ser. Com o fim de
evitar abusos constantes, resolvi estampar em todas as minhas obras o
meu retrato.
– Alguns violadores dessas regras e do direito autoral tem muitos
defensores.
– O autor se reserva o direito de propriedade. Os crimes são
descobertos, por mais que sejam escondidos.
– Seria preciso maior rigor da fiscalização?
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– Dizem que a culpa condena. É outra história que arreia, porque se
assim fosse certo, não precisava cadeia.
– Você que esperava ter uma vida longeva, está satisfeito com o que
Deus lhe deu?
– É sinal que vive pouco, quem já tem vivido muito. A velhice
recorda arrependida, todo erro que fez em sua vida. E murmura: Quem
me dera a mocidade...
– Não queria ficar velho então?
– Ao velho a sepultura já diz: Não tarda aquele presunto...
– E a sua vida foi bem vivida ou faltou algo que gostaria de ter feito?
– Eu tive a vida tranqüila, como qualquer inocente. Veio o diabo e
levou tudo quanto ajuntei.
– E quando a marvada chegar para a visita final? Está preparado? A
mesa posta, como disse o poeta?
– Preveni a todos lá de casa: por acaso um dia eu falecer, é favor
ninguém chorar perto de mim, é caipora com zoada se morrer...
Depois dessa conversa, foi impossível reter o poeta. Leandro Gomes
de Barros decerto foi vagar com seus espíritos irmãos pelas feiras de
Caruaru, do Braz, de Campina, no Mercado São José, esses lugares tais que
freqüentou em vida – ou qualquer lugar desse vasto mundo, aonde meiadúzia de cabeças-chatas se reúne trocando verso, cantando prosa,
inventando repentes cheios de gracejos, gozando a vida própria e alheia.
Obrigado pela entrevista, querido Poeta Princeps. Ou Príncipe dos
Poetas, coroado por Carlos Drummond de Andrade para governar o reino
da poesia de cordel.
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O poeta em seu elemento:
poesia de cordel
“Cordel, jornal popular,
Material pra estudo,
Diversão e passatempo,
Culturalmente, um escudo,
Preservação do Folclore,
É este seu conteúdo”.
José Francisco de Souza e Franklin Maxado
“O encontro de Téo Macedo com Maxado”
“Quem censura meus livrinhos
Não passa de um caradura
Porque eu mesmo confesso
Não ter a Literatura
Pois se tivesse estudado
Seria hoje um letrado
Faria grande figura”.
Pacifico Pacato Cordeiro Manso
“Ponto Final”
Um mundo. Um vasto mundo que nasceu, cresceu e vive palpitando
dentro de nós como um ser mutante. Uma entidade. Uma arte. A
Literatura de Cordel (Vá lá, que seja assim: a expressão já está
consagrada), nasceu provavelmente entre os rincões nordestinos para não
deixar a poesia popular morrer na praia. Precisamente na época da
invasão dos estudiosos a expressão “Literatura de Cordel” tomou corpo,
cresceu e afinal esmagou todas as demais falas que se usava na região.
Poeta e Poesia de bancada, Poeta e Poesia popular, Romance, Canção,
Abecê – tudo, tudo, tudo virou em resumo “Literatura de Cordel”.
“Se cordel vem do galego
E este vem do latim,
Vou cantar ainda melhor
Pra ninguém achar ruim,
Porque cordel é cordão
Cordinha ou trancelim”.
Sendo esse mundo intitulado todo ele de Literatura de Cordel, os
folhetos de poesia não devem necessariamente ter seus títulos precedidos
dessa informação, já que a mesma está implícita dentro do conceito do
produto. Se for para alertar aos mais incautos, se é para fazer maior
publicidade, se é para chamar a atenção das classes tecnicamente mais
interessadas no assunto: estudantes, mestres, entrevistadores, jornalistas,
colecionadores, compradores, viciados na leitura dos folhetos –
personagens em extinção, mas ainda resistentes sim senhor! Qualquer
que seja, por fim, o motivo que leve essa anunciação, ela não é em
absoluto indispensável.
“No Brasil, ele ficou
Chamado de abecê
Ou de folheto de feira
Você pode isso ler
E ficou mais no Nordeste
Com seu povo a sofrer”.
A expressão “Literatura de Cordel” se transfigurou e passou a ser
usada numa vasta gama de coisas, hoje um pouco mais difícil de
determinar. O termo é muito abrangente, engloba tudo o quanto se refere
à poesia popular, desde sua criação autoral, até os numerosos elementos
que se alinham com a sua produção e comercialização. Essa produção
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também envolve um vasto universo, porque “pode englobar as Folhas
Soltas dos poemas-canções e das orações aos santos e a poesia oral,
decorada ou improvisada, em cantorias”, conforme explica o poeta
feirense Franklin Maxado no livro “O que é literatura de cordel?” da
editora Codecri.
E muito mais ainda. O produtor artístico das capas dos folhetos,
desenhista, folhetinista ou xilógrafo. O impressor, tanto nos prelos
manuais quanto nos modernos sistemas reprográficos. O editor-vendedor.
O folheteiro independente e cantador. Todos enfim que de uma maneira
ou de outra acabam envolvidos com a poesia popular nessa são elementos
que fazem parte do mundo da Literatura de Cordel.
“O cordel veio da Europa
Com a poesia e repente
Quando surgiu a imprensa,
Foi escrito para a gente
O que se falava e cantava
Na inspiração quente”.
A Literatura de Cordel, portanto, está em permanente convívio com
as artes interdependentes entre si. Por exemplo, a xilogravura entra no
cordel, tanto na confecção do folheto, como obra de arte, quando
interpreta os temas desenvolvidos nas histórias e romances.
A comercialização nas feiras nordestinas de gravuras e álbuns,
venda de panôs e de telas, litogravura e linóleogravura, é uma extensão
natural do círculo da Literatura de Cordel, faz parte do bloco. Isto porque
são obras de arte influenciadas diretamente, elaboradas debaixo da
emoção das narrativas dos folhetos, muitas vezes inspiradas pelos
romances mais populares – está assim umbilicalmente ligada à cultura
popular, em especial a esse segmento do folclore.
A escultura em barro, arte maior dos bonequeiros, que sobrevive
em todo nordeste, sugadores do filão descoberto e elevado à alta arte por
Mestre Vitalino – seus seguidores atestam o fato – pode embarcar na
mesma canoa da Literatura de Cordel sem nenhum desdouro, sem que
suas origens sejam assim violentadas. As figuras de barro representam
fielmente cenas estritamente vinculadas à vida do nordestino, suas
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profissões, os costumes, as tradições, laços de irmandade e parentesco
consangüíneo da Literatura de Cordel.
Compõe ainda esse vastíssimo quadro cultural daquela região, a
cantoria oral de improviso, o embolador de coco, o par de repentistas de
viola, o cantador de folhetos e canções. Na musica solo os instrumentistas
se destacam: sanfoneiro, violeiro, rabequeiro, tocador de pífaro, a
zabumba e o triângulo, componentes do conjunto de forró, pode crer,
tudo é farinha do mesmo saco!
Um mundo, um vasto universo cuja fronteira se expande a cada dia,
isto é a Literatura de Cordel do Século XX, não se limita apenas aos
folhetos impressos, abarcou todos os meios de comunicação modernos e
nele se expande. O futuro? Pode-se parafrasear o estudioso erudito,
dizendo: – O futuro do cordel ao cordel pertence... Ou dizer como poetou
Franklin Maxado, em O Cordel do Cordel:
“O cordel é resistência
E uma força cultural
Contra a alienação
Da invasão nacional
Pelas firmas estrangeiras
Com a multinacional”.
Desde que me entendo por gente, ouço e leio as lamentações dos
especialistas no assunto: – A poesia de cordel está morrendo! Outros já
fizeram o seu enterro, com direito a incelença de corpo presente, a velório
com livro de presença, publicaram o necrológio por todo o país.
Mas os anos passam e só então todo mundo se dá conta de que não
só a Literatura de Cordel continua vivinha da silva, como também que
eles, que foram seus algozes, rapidamente envelhecem e sem mais nem
menos estão ali a olhar o dedão do pé. Sim, mais fácil os poetas morrem,
vão desta pra outra melhor, sem terem tido o prazer de presenciar o
passamento da poesia de cordel. Como um cometa a poesia popular
continua fazendo sua trajetória luminosa através dos tempos per omnia
secula seculorum, enquanto a gente aqui insiste em repetir: – A poesia de
cordel está morrendo!
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Menos mal. Mas é com esses entreatos que a história da poesia de
cordel está sendo contada. Antes mesmo que a imprensa oficial aportasse
no Brasil Colônia, por obra e graça se Sua Majestade Imperial Dom João VI
lá pelos idos de 1808, a notícia se fazia circular de boca em boca, de
ouvido em ouvido, em obras manuscritas, reproduzindo as letras
arrevesadas pelos copistas da época. Como não poderia deixar de ser,
também a poesia se fazia circular de boca em boca, de ouvido em ouvido
ou copiada em papel de embrulho, pelos autores mais ou menos letrados,
à moda dos jograis.
Aí a imprensa se expandiu, cresceu com o aval imperial e se
publicaram os primeiros folhetos, que ainda eram mera cópia dos originais
vindos de Portugal e Galícia. Mas – ainda os entendidos que dizem – os
jornais acabam por se impor e com a notícia precisa e as informações
rápidas sobrepujam o poeta-repórter. E pronto! Mais uma vez o refrão se
repete de boca em boca, nos lamentos e murmúrios: – A poesia de cordel
está morrendo!
No entanto, teimoso como um jumento, ainda mais tendo a
sobrevivência ameaçada, o poeta popular não esmaece e vai à luta. Agora
não é mais um ingênuo tentando vender folhetos e algum xarope
milagroso a incautos, o poeta vira comerciante, usa aquele jeito matuto
que lhe é inato, fingindo ser o último tolo na face da terra, com ousadia
caba se impondo, conquista e reconquista o espaço histórico, o tempo
perdido.
À moda aventureira vai tateando até descobrir a mina que guarda
os segredos da comercialização moderna, fazendo com que o folhetinho
resista, a poesia popular sobreviva e ganhe respeito. Sendo assim, por
essas inversões que só o talento explica, o poeta, a poesia e seu veículo
acabaram por enriquecer o jornalismo, a freqüentar a pauta dos jornalões,
virar tese de mestrado, ser impresso em livro – a glória máxima!
A Literatura de Cordel se transforma num segmento da cultura
popular que guarda em seu histórico muito do misterioso, do inexplicado,
fruto de centenas de estudos e pesquisas que lhes são dedicados, a
maioria tentando deslindar sua cabala pessoal, sua continuada penetração
nas novas gerações, o mistério de sua imortalidade sem que, como
Fausto, assinasse qualquer pacto com o demo.
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A impressão de folhetos de cordel é um desses pontos que
permanecem numa sadia obscuridade do passado histórico, enterrado na
tumba do esquecimento, de mais difícil acesso do que os túmulos dos
faraós. Dizem muitos que o privilegio de ser Leandro Gomes de Barros o
impressor pioneiro no Brasil. Discordam outros tantos, dando a primazia e
a honra a Silvino Pirauá de Lima. Sendo um, sendo outro, porém, o que
fica decretado é que o folheto de cordel nasceu impresso na Paraíba, já
que ambos nasceram naquele estado, em Pombal e Patos,
respectivamente.
Se o problema se colocasse no caso de afirmar quem teve a
primeira visão das possibilidades comerciais da poesia popular, ninguém
poderia duvidar ter sido o faro de Leandro Gomes de Barros, dono de
apurado tino comercial, que sentiu a probabilidade de viver à custa da
venda de folhetos.
Não obstante ter sido um precursor na área, pelo texto e
publicidade inseridos em suas publicações, existe farto material para
pesquisa e muita história para ser investigada. Pelo teor dos textos
inseridos nos folhetos, se vê que existe uma publicidade atuante, que
provoca o surgimento de um comércio circundante, em torno de um ramo
de atividade ainda virgem, mas que dá mostras de ser um filão a ser
explorado.
A atuação vigorosa de Leandro Gomes de Barros acirra a
concorrência, descortinando que já existe uma rivalidade em curso, um
tesouro a ser preservado, tornando necessária desde logo sua proteção
com medidas de preservação da identidade de autoria e dos romances
publicados. Numa linguagem de hoje diríamos que os autores
pressentiram, já naquele instante, a possibilidade de pessoas
inescrupulosas falsificarem tanto a história quanto o autor – tinha nascido
a pirataria!
Interrogações hão de permanecer para sempre. Quem teve a idéia?
Quem foi o pioneiro? E para sempre irão ficar sem resposta, porque
ninguém jamais poderá respondê-las com segurança – como no caso da
galinha e do ovo: quem nasceu primeiro? O mais provável é que a idéia
tenha surgido em vários lugares simultaneamente.
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O fato histórico evidente é que a importação acentuada de folhetos
similares teve forte influência nos precursores locais. O comércio dessa
literatura – que não se limitava à poesia e incluía novelas, narrações de
fatos extraordinários e misteriosos – se expande a olhos nus. Portanto,
tendo em vista que as primeiras obras de nossos poetas são meras
adaptações dessa literatura típica da região ibérica e o fato de terem sido
popularíssimos na terra-mãe, seria natural que a produção e o comércio
de folhetins de cordel fossem nacionalizados.
No livro “Poesias eróticas, burlescas e satíricas”, de Bocage, aparece
uma nota de rodapé afirmando ter sido publicada “no ano de 1822, em
Lisboa, impressa (anônima) em um pequeno folheto de oito esta peça”.
Trata-se do poema “Arte de amar ou Preceitos e regras amatórias para
agradar às damas (imitação de Ovídio)”, que, separada do volume
principal, foi publicada em folheto popular. O folheto de oito, aqui
referido é o provável modelo dos nossos primeiros folhetos de cordel e
sem dúvida o mais popular de todos.
O folheto de oito páginas nasceu da facilidade e economia que
trazia ao impressor e ao autor, que era quem bancava financeiramente a
publicação. A impressão era feita em papel do tamanho ofício, dos dois
lados, em espelho, de forma que, quando dobrada a folha em duas
metades, se transformava num folheto de oito páginas. A capa era
impressa em separado, geralmente em papel de cor e ilustrada com
fotografia, desenho ou xilogravura. Em cada folha de papel se imprimia
duas capas, com aproveitamento da contracapa para publicidade ou notas
sobre o autor.
Ora, naquele tempo, era em Portugal e Espanha, prática corrente a
edição e comercialização de folhetos de cordel, tradição que remonta há
séculos. É natural, pois, que suas colônias fossem inundadas de tais
publicações, consagrando também aqui um comércio vigoroso. Mas,
sendo difícil para o leitor brasileiro, mais inculto, assimilar as histórias
fantásticas e misteriosas, vingaram apenas os romances de amor
impossível, do herói que tudo vence pelo amor da donzela, de difícil
superação em busca da realização pessoal, das gentes humildes que
ascendem socialmente devido à coragem e heroísmo.
Em conseqüência desse impasse geográfico, foi natural a busca da
independência cultural a todo custo, urgia nacionalizar a literatura ibérica,
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trazê-la para o cenário local. Essa necessidade é que fez surgir alguém que
deflagrasse a publicação dos folhetos aqui mesmo, já com versões feitas
numa linguagem inteligível.
Esse movimento não só inventou a nossa Literatura de Cordel, como
também frustrou e acabou por eliminar a importação desvairada de
publicações estrangeiras. Daí a publicar novos trabalhos inspirados na
realidade local foi um passo conseqüente e natural, registrando em letras
impressas em poesia as histórias nativas que corriam oralmente pelo
sertão adentro.
Essa mudança radical feitas pelos poetas foi em atendimento ao
clamor que já de fazia na população leitora, que crescia a cada ano. A
fronteira natural dessa transformação também é nebulosa e tem seus
mistérios. Mas a história local já produzia seus próprios dramas, a vida
difícil dos sertões trazia elementos trágicos, nasciam os primeiros heróis
com sotaque local.
Os leitores, saturados de romances que narravam coisas que em
ambientes desconhecidos, amores e aventuras bem distintas daquelas
que preenchiam o seu dia-a-dia, tudo isso foi se transformando em
material cuja riqueza logo foi explorada, dando uma guinada de 80º na
poesia popular brasileira.
Com a transição da temática veio junto a mudança de estilo que,
libertando o poeta da quadra tradicional, consagrou-o o campo fértil e
vasto da sextilha, que acabou se impondo ao gosto dos leitores. Nesse
ponto o mérito de Silvino Pirauá de Lima é indiscutível. Foi ele que
atravessou o Rubicão, medindo todos os riscos do atrevimento.
E avançou mais ainda: muitas das fórmulas de poesia popular e
cantoria que até hoje vigoram, foram lançadas por ele, que descobriu o
elo perdido entre a quadra e a sextilha. Até então a ousadia se limitava à
repetição dos dois últimos versos da quadra, como nas cantorias de
outrora. ...Até então a poesia de cordel estava viva, não se discutia nem se
pensava que um dia ela iria entrar em coma... E morrer.
Mas o mundo não para de girar. A fila anda e, de repente, como
uma praga no sertão, chegou o rádio a pilha. Novidade, música, a voz
atravessando montanhas e céus, a notícia chegando cada vez mais fresca,
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em cima do fato. Bastava ter um receptor para todos saberem tudo. E
pronto: mais uma vez a Literatura de Cordel vai acabar! E dessa vez
ninguém – mas ninguém mesmo, nem milagre de Pade Ciço – salva a
poesia de cordel.
Certo? Errado! Ledo engano. É verdade que ela – a poesia – andou
por aí apanhando que nem mulher de malandro. Lutou bravamente, mas
levou uns empurrões, uma catiripapos, uns bofetões e cambaleou. Quase
morre atropelada pelo progresso, pelo som gritante dos locutores, mas
resistiu. Sobreviveu bravamente, talvez metida entre os tecidos alvos de
uma UTI, talvez submetida aos aparelhos mecânicos para recuperação
intensiva, mas resistiu. Agüentou todos os tratamentos, sacudiu a poeira e
deu a volta por cima, mas de novo está viva. Sempre de volta, sempre
sobrevivendo às catástrofes – e se o rádio não foi à poesia de cordel, a
versalhada chegou até o transmissor e conquistou o seu merecido lugar.
A rádio e o disco foram feitos um para o outro. A poesia popular não
tinha vez ali naquele casamento. Dois e bom, três é demais... E a poesia
sofreu um Longo e doloroso padecimento – como demorou a chegar ao
primeiro disco! – antes que a gravação pioneira se realizasse.
Como fonte de inspiração (seria mesmo?) o cordel chegou ao disco
primeiro pela fala dos compositores. A poesia popular começou a ser
musicada grosso modo, havendo inclusive algumas denuncias graves
sobre questões de direito autoral. Isso jamais! Assim diziam os
compositores. O poeta Franklin Maxado, entretanto, tinha outra opinião:
"O que eu tenho notado,
Nesta cultura da gente,
É um grupo controlado
Sagaz e inteligente,
Se apoderando dela
Botando até em novela
Vários proveitos obtendo
Aqui e noutro país
É loucura de quem diz
Que cordel está morrendo."
A novela a que o poeta alude foi certamente "O Pavão Misterioso",
fabricada e exportada pelo milagre chamado TV. Com a chegada da televisão
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(essa humanidade não tem mais o que inventar! dizem as comadres), todo o
universo se transformou numa Aldeia Global. Vejam vocês. Primeiro foi a
notícia impressa, depois a fala e a música atravessam o espaço, agora letras,
som e imagem vagueiam juntas pelo espaço ate encontrar o abrigo cintilante
do vídeo.
Fabuloso! Fantástico! O sertão virou – agora sim – um mar de
notícias, de novelas, de jornais nacionais. Tudo quanto acontecia não só no
país, mas em todo o mundo chegava cada vez mais rápido.
O homem na lua! Como acreditar se a poesia de cordel não confirmar?
A morte de JK. O suicídio de Vargas. Coisas que anteriormente s ó a tela de
cinema poderia transmitir chegavam agora num flashback histórico pela TV.
E antes que a poesia de cordel conseguisse falar através desse maravilhoso
mecanismo de comunicação tivemos de aturar tudo: bossa-nova, jovem guarda, ieieiê, soul, rock in rol, reggae.
Por meio desse turbilhão chegavam fiapos da poesia popular, porque
assim tem sido desde sempre. O cordel vive como o povo brasileiro: sempre
na corda bamba. Não tivesse ela (a poesia), como ele (o povo) essa inata
resistência à obtusidade, à aridez das dificuldades e já teria ido pra cucuia
ha muito tempo.
Nada mais falta lhe acontecer em matéria de obstáculos capazes de
provocar sua derrocada final. Sim, porque, oriunda de um sistema
completamente
superado
por
outros
sistemas,
atropelada,
constantemente, pelo progresso, a poesia de cordel vem sobrevivendo,
inexplicavelmente à luz das teorias. Talvez seja por isso que o seu necrológio
anualmente é publicado em todos os recantos culturais.
O que falta mais acontecer? Com a chegada do disco-laser, do CD, da TV
de bolso, do videofone e outras facetas do progresso eletrônico, certamente
a poesia popular será mais uma vez a sacrificada. Finalmente desta vez nada
ha como livrá-la do caos, do fim, do fracasso final. De uma vez por todas – e
definitivamente – a poesia de cordel vai acabar. É "o prenúncio do fim" de que
fala Marcelo Soares no folheto "Literatura de Cordel":
"A nossa Literatura
De Cordel, tão popular
Decantada em verso e prosa
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Começa a agonizar
Por isso falo das causas
Que lhe ameaçam acabar.
Primeiro que tudo mostro
Que uma dessas razões
É sem sombra de dúvida
Os Meios de Comunicações
Rádios, TV, Jornais
E outras publicações.
"Sendo Xilogravador
E Poeta Popular
Sinto ser meu o Dever
De a todos alertar:
A Literatura de Cordel
Está para se acabar!"
Na antiga Feira dos Nordestinos em São Cristóvão, o centro da
Literatura de Cordel era o lugar chamado Canto da Poesia. Ficava embaixo
de uma mangueira, no lado oposto ao Colégio Pedro II, próximo ao
banheiro público e tinha como marca registrada a antiga faixa pintada
pelo seu idealizador, Zé Praxedis, “O poeta vaqueiro”. Esse espaço foi
freqüentado pelo próprio poeta que vinha com seu traje típico de
vaqueiro: gibão, chicote, perneira e chapéu, tudo do melhor couro,
lustrando, reluzindo ao sol de domingo. Zé Praxedis na década de 1980 já
não aparecia com tanta freqüência, parece-me que devido ao fato de que
nessa época ele morava pelas bandas de Niterói ou São Gonçalo.
Na ausência de Zé Praxedis, quem “tomava conta” do lugar, do
Canto da Poesia, organizava a maioria dos eventos, defendia o espaço e
estabelecia regras (não tão rígidas assim) era Expedito F. Silva, que havia
sido nomeado “embaixador da poesia” por Rodolfo Coelho Cavalcante. No
local, além da banca de Expedito Silva, tinha as bancas de Apolônio Alves
dos Santos, de Elias A. de Carvalho e mais uma ou duas bancas de
folhetos, quando José João dos Santos “Azulão” ou Franklin Maxado
apareciam. Além disso, havia uma banca de xilogravura de Marcelo Soares
e, às vezes, Ciro Fernandes dividia o mesmo espaço.
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Os cantadores arrumavam suas cadeiras ao pé da mangueira e se
revezavam na cantoria. Um microfone e duas modestas caixas de som
completavam o equipamento das duplas, que atendiam aos pedidos e
glosavam qualquer mote dado pelos espectadores. Muitas canções tinham
ali a sua primeira edição e logo após a interpretação eram vendidas em
folhas soltas.
Gonçalo Ferreira da Silva se mantinha independente, mas era amigo
de todos os poetas, indo visitá-los no Canto da Poesia antes de encerrar
suas atividades. A sua banca, além dos versos de sua própria autoria,
vendia também os folhetos da Editora Luzeiro, da qual tinha quase todos
os volumes. Era um local muito freqüentado, porque Gonçalo Ferreira da
Silva não se negava e entabular conversa com quem quer que fosse e era
comum atender pesquisadores, poetas e estudantes na sua banca. Ele
ficava em outro lugar, mais próximo ao Colégio Pedro II.
José João dos Santos “Azulão” tinha por preferência ficar logo no
início da feira, do lado do ponto dos ônibus que vinham do subúrbio, onde
também um forró pé-de-serra corria solto debaixo de um barraco de lona.
“Azulão” Cantava seus folhetos, tanto a capella quanto acompanhado da
viola, que dedilhava com esmero.
Quando foi construído o viaduto de acesso à Linha Vermelha – que
tomou um grande espaço da Feira de São Cristóvão – logo na descida do
mesmo se estabelecia um poeta, cujo nome não me recordo. Ele arriava a
maleta e expunha folhetos de diversos autores e possuía uma coleção de
folhetos bem antigos. No mais havia poetas bissextos, cuja freqüência era
irregular.
Apareciam por lá, mas não sempre, Cícero Vieira da Silva “Mocó”,
Zé Duda, Raimundo Silva, Raimundo Santa Helena e uma turma de poetas
novos dispostos a aparecer.
Aliás, é bom registrar, as caras novas nunca eram bem recebidas na
Feira de São Cristóvão. Quando Franklin Maxado resolveu vir de São Paulo
morar uns tempos no Rio de Janeiro trazendo a tiracolo o Raimundo Silva,
mais o Sá de João Pessoa, teve uma recepção a pedradas. Todos os
veteranos, sem exceção, foram refratários à chegada daquele grupo e
tentavam sabotar de todas as maneiras a atuação dos mesmos. Esse
movimento de repulsa tomou certa proporção, tendo seu ápice na
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divulgação do folheto “Tem intrujão no cordel”, que foi assinado por
quase todos os “donos” do local.
Depois a coisa amainou, mesmo porque os “novos” eram teimosos
e não arredavam pé. A neutralidade foi conseguida graças a Marcelo
Soares – também ele era um novato – pois na banca de xilogravura dele
todos os recém chegados tinham boa acolhida e abrigo.
Além do mais, Franklin Maxado era dono de uma personalidade
persistente, também já era um nome mais ou menos conhecido e tinha
como padrinho no cordel a figura de Rodolfo Coelho Cavalcante. Não era
fácil sua defenestração, assim sem mais nem menos. Ademais, Franklin
Maxado e Raimundo Silva eram agitadores culturais natos. Quando o
movimento da feira estava “morno” a dupla procurava meios de agitar o
ambiente e logo o espaço ficava acalorado e produtivo.
Foi dessa maneira – devido à amizade que Franklin Maxado tinha
com a turma do Pasquim – que o cartunista Jaguar caiu um domingo na
Feira de São Cristóvão. Jaguar ao que parece estava sozinho, mas trazia
consigo o inseparável gravador. Circulou pelo espaço, comeu carne de
bode assada, experimentou, senão todas, mas com certeza a maioria das
cachaças da Paraíba e de Pernambuco. Ciceroneado por Franklin Maxado
foi apresentado aos poetas quando, ao final, sentou banca no Canto da
Poesia e ali conseguiu fazer uma reportagem que ocupou as duas páginas
centrais de uma edição do Pasquim.
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O poeta em seu terreiro:
a feira de São Cristóvão
“Quem viajar do Nordeste
Para o Rio de Janeiro
No Campo de São Cristóvão
Ficará bem prazenteiro
Pois avistará um quadro
Do nordeste brasileiro”.
Apolônio Alves dos Santos
“A feira dos nordestinos no Campo de São Cristóvão-RJ”.
“É a feira nordestina
Que é tradicional
Desde quarenta e cinco
Do nosso século atual
Que funciona essa feira
Ali naquele local”.
Apolônio Alves dos Santos no folheto “A feira dos nordestinos no
Campo de São Cristóvão-RJ”, aparece como o primeiro historiador daquele
famoso reduto de poetas e cantadores no Sudeste do país, mesmo
quando confrontada com os pontos de encontro de nordestinos e
nortistas em São Paulo.
Na década de 40 o Campo de são Cristóvão (ou Praia de São
Cristóvão, como o local era conhecido), abrigava a quase totalidade das
agências de transporte de carga e passageiro entre o Nordeste e o Rio de
Janeiro. Mesmo os veículos – caminhões e ônibus – em trânsito para São
Paulo faziam ali uma para intermediária, pois sempre havia algum
passageiro ou alguma carga em trânsito.
Era, portanto, muito grande o vai-e-vem de imigrantes recém
chegados, de carga e bagagem que descarregavam a todo instante,
encomendas ansiosamente esperadas, remessas monetárias feitas como
pequeno adjutório aos que ficaram lá na terra distante. Muitos
passageiros também se arrumavam nos caminhões de carga, que acabava
por se transformar em transporte misto.
Felizardos entre a grande maioria eram os que chegavam de férias,
viajantes de momento, que iam apenas cumprir uma visita depois de
longos anos, participar da despedida final de parentes recém falecidos ou
recém nascidos, realizar os sonhos amorosos ou dirimir alguma querela
familiar, para o quê sua presença era indispensável.
O trocador de ônibus e bom poeta nas horas vagas, Cícero Vieira da
Silva (Mocó) tem um folheto em que narra com felicidade a odisséia do
nordestino. A chegada no sudeste é quase sempre assim:
“No Campo de São Cristóvão
O pobre desce do carro
E segue de rua a fora
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Sem ter no bolso um cigarro
Com a maleta na Mao
E a roupa da cor do barro.
“E segue desconfiado
Como um pássaro que não voa
E sai olhando pra ver
Se avista uma pessoa
Que lhe conhece do norte
Não encontra, fica à toa.
Cícero Vieira da Silva (Mocó)
“Os martírios do nortista viajando para o sul”
A movimentação no Campo de São Cristóvão era mais pronunciada
justamente aos domingos, dia de chegada de vários ônibus e caminhões
vindos das mais distantes regiões, empoeirados, pneus sujos de barro,
trazendo como carga uma população até então estranha aos olhos do
carioca. Esse deslocamento para o Campo de São Cristóvão oficial dos
veículos vindos do Nordeste era o registro de uma das primeiras
manifestações de discriminação ao paraíba e ao pau-de-arara, que se
tornou proverbial não só naqueles dias remotos, mas atravessou os
tempos e sobrevive ainda hoje.
Eles eram os indesejáveis, expulsos do sertão pela “indústria da
seca”, tocado para fora de suas terras, vencidos pela dificuldade de
sobrevivência diante dos muitos percalços inventados pelos senhores
feudais. Essa perseguição que vem desde os tempos das sesmarias,
causou o êxodo dessa população itinerante, que chegava para criar e
povoar as favelas do sudeste.
Recorro mais uma vez ao poeta Apolônio Alves dos Santos, que
registra em seu folheto, já citado:
“Porque todos nordestinos
Todos domingos seguiam
Pro Campo de São Cristóvão
E ali se reuniam
Mesmo sem haver a feira
Era aonde apareciam”.
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Centenas de pessoas de origem nordestina para ali se dirigiam em
busca de conhecidos, parentes distantes, de alguma pessoa recomendada,
para saber notícias da terra ou encomendar coisas e pessoas de alguém
que lhe fora confiado. Todos sabemos que, para quem chega em busca de
trabalho e estudo, a aventura dos primeiros dias são os mais difíceis, mas
o conterrâneo que o recebe não o deixa na mão, chega com o apoio, o
ânimo, divide o pouco que tem irmanamente. Aquele fluxo intermitente
de pessoas acabava por se constituir num agradável encontro de gente
que tinham algo em comum, mas que a vida agitada da metrópole torna
difícil o convívio diário e os mantém afastados entre si.
Mas esse encontro semanal trazia também a conveniência de
provocar novas amizades, nascidas de uma conversa informal, isso porque
em algum momento se descobriria que algo em comum viria a unir duas
ou mais pessoas. Permanecendo essa população em trânsito ali, durante
horas a fio, na expectativa da chegada de um ônibus ou caminhão, cujo
atraso era histórico, também resultava que provocasse o nascimento de
um comércio ambulante.
Logo apareceram vendedores de comidas e lanches com sabores
típicos do nordeste, o folheteiro com sua velha mala aberta no chão, o
violeiro, o cantador, o repentista... Essa reunião semanal aguçou a veia,
meio satírica, meio discriminatória, do carioca, que apelidou
depreciativamente o Campo de São Cristóvão de “Aeroporto dos
Nordestinos”. Na verdade as autoridades desviaram a chegada dos
nordestinos para São Cristóvão para não macular a formosa Rodoviária
Estadual – Terminal Rodoviário Mariano Procópio – inaugurado em 1950
na Praça Mauá.
O poeta Apolônio Alves dos Santos bem sabia que a frustração seria
bem menor se o emigrante encontrasse por ali algum conterrâneo que,
mesmo sendo de cidades vizinhas, poderia transmitir as notícias do torrão
natal. Qualquer novidade seria bem vinda, mesmo as coisas consideradas
banais tinham sua dose de importância: falar sobre as chuvas, os açudes
cheios, sobre a seca que castiga tal e qual região durante meses, anos a
fio, notícias sobre casamentos feitos e desfeitos, contar sobre a mulher
amada, a quantas anda o time de futebol preferido ou sobre as rixas e
desafetos da família tal contra a família qual – geralmente resolvidos à
peixeira e à bala.
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-
A distância e a solidão transformavam aquele breve contato
dominical em São Cristóvão num fio de resistência capaz de suportar a
longa estiagem sentimental alimentada na cidade grande, muitas vezes
hostil e agressiva por demais. E convém não esquecer aqueles tempos,
difíceis, tanto pela precariedade dos correios, quanto pela dificuldade em
escrever cartas e mandar encomendas: qualquer quantia gasta em
excesso produzia um rombo no apertado orçamento.
Assim foi nascendo a feira, com o aumento da aglomeração, dos
comerciantes de ocasião, crescimento da população nordestina. E com o
nascimento da feira veio o poeta. Pode haver feira sem poeta, mas poeta
sem feira não é ninguém, apesar de que muitos deles faziam ponto na
Central do Brasil, na Praça Mauá – onde se localizava a principal
Rodoviária da cidade, na Praça XV de Novembro – Estação das Barcas para
Niterói e Paquetá, na Cinelândia – local de aglomeração da população que
freqüentava o cinema, o teatro, o Amarelinho e os bares boêmios das
redondezas e, por fim, a Lapa – lugar de boemia mais pesada e perigosa,
onde eram mais freqüentes e presença de prostitutas, jogadores de
sinuca, malandros, traficantes e travestis.
A feira é o território natural do poeta, onde o povo faz roda para
ouvi-lo cantar com voz entoada os folhetos de aventuras amorosas e de
valentia, cantoria sempre entremeada de um comentário jocoso que
provocava o riso imediato, ouvir a prova da veracidade, ficção que o poeta
inventa para cada história, rir dos repentes que ao acaso o poeta
improvisa ante a presença de algum tipo folclórico.
Pois foi ali no Campo de São Cristóvão que a semente germinou.
Começaram a surgir algumas barracas, as bancas improvisadas sobre
caixotes, coisa que pudesse ser removida rapidamente – pois a
perseguição da prefeitura ocorria sempre e a presença do rapa era
temida, tanto pela virulência do ataque e porque sempre se traduzia na
perda total a mercadoria adquirida com muito esforço.
Não
artigos e
Quitandas
importada
ruas adjacentes que circundavam o campo, um comércio de
produtos do nordeste já florescia anteriormente à feira.
e mercearias – à moda dos armazéns – vendiam cachaça
diretamente dos produtores – Pitu, Caranguejo e Siri eram as
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-
mais famosas de Pernambuco; Fazenda Serra Grande, Maribondo e Três
Fazendas traziam a fama da cachaça paraibana – e assim por diante.
O paladar se aguçava diante das bancas que expunham a carne-desol, as avoantes, o peixe seco, o requeijão que babava manteiga ao ser
cortado, o queixo de coalho, a manteiga de garrafa, as latas de castanha
de caju, a farinha seca e do Pará (d’água), o feijão de corda, a rapadura –
todas essas iguarias que traziam o sabor da terra distante aos milhares de
emigrantes aqui chegados. Quem queria reacender o paladar das coisas
que havia deixado para trás, ali encontra meios de se abastecer com
garantia.
Com o tempo é claro que a notícia da feira foi se espalhando e a
presença no local não mais se limitou a quem ia às agências de transporte.
Levados pela saudade da terra, seja pelo prazer da comida, pela ânsia de
rever pessoas e receber notícias, por estar num lugar se sentindo como se
estivesse na própria casa, com gente da sua igualha, até mesmo para ouvir
e dançar um forró de pé no chão, levantando poeira – passear na Feira de
São Cristóvão passou a ser um programa autônomo, alegre e divertido.
Aportada pela pequenez dessas ruas, que não cabiam barracos e
não mais atendiam aos reclamos de espaço, que não podiam acolher as
emoções exacerbadas (provocadas geralmente por excesso de bebida) e
também não podiam ceder um espaço para tanta gente que queria sentar,
descansar, beber um trago ou uma cerveja gelada. E nasceu e cresceu a
feira propriamente dita, circundando todo o pavilhão se espalhavam
milhares de barracas, milhares de pessoas se apertando nos becos
estreitos, movimento esse que começava de madrugada com a chegada
dos feirantes e das mercadorias, de fregueses que iam comprar produtos
frescos para fazer a comida na própria casa.
E olha aí como Apolônio Alves dos Santos contou a história:
“Assim criou-se a feirinha
E foi se estabelecendo
Feirantes e camelôs
Foram ali aparecendo
De formas que a feira foi
De dia-a-dia crescendo”.
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De fato, a feirinha cresceu e um novo espaço cultural surgiu para
suprir a falta deixada pelas grandes feiras do nordeste. E o poeta de cordel
sentiu a potencialidade daquele espaço, valorizando-o com presença
maciça, trazendo consigo o resto da trupe constituída de violeiros,
repentistas, forrozeiros, recuperando o tempo de outrora que havia
deixado ao emigrar, porque:
“Antigamente o nortista
Ia à feira no sentido
De comprar um folhetinho
E saber do “ocorrido”
Ficava a par de tudo
E qualquer acontecido”.
Marcelo Soares
“Literatura de Cordel - O prenúncio do fim?”
Outras feiras surgiram principalmente nas regiões conhecidas como
Grande Rio. Em Caxias, Nova Iguaçu, Belford Roxo e Campo Grande, onde
residem grandes aglomerações de emigrantes nordestinos e seus
descendentes, mantêm pontos de venda tanto de artigos do nordeste
quanto de folhetos. Raimundo Santa Helena, Azulão e Elias de Carvalho
são alguns dos poetas que nos tempos áureos freqüentaram essas feiras.
A base imutável era sempre a Feira de São Cristóvão, que hoje se
iguala a algumas das mais tradicionais feiras do nordeste como a Feira
Grande, de Alagoas, a Feira de Santana, na mesma cidade baiana, a Feira
de Caruaru em Pernambuco, a Feira de Juazeiro (Juazeiro do Norte,
Ceará).
No entanto, nem tudo eram flores. A feira só por si só não era capaz
de sustentar o poeta com a venda de folhetos. Também o poeta passou
por tempos difíceis e nessa ocasião vale retornar à segunda profissão:
quem era pedreiro volta à colher de massa e ao tijolo, o quitandeiro vai
trabalhar no balcão, quem não tem profissão definida vai ser porteiro de
edifício, cabineiro de elevador ou guardador de carros – vale tudo pela
sobrevivência!
Uma estagiária norte-americana, que veio ao Brasil em bolsa de
estudo para finalizar a universidade, Candace Slater, concluiu suas
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pesquisas com a publicação do livro “A vida no barbante – A literatura de
cordel no Brasil” (Civilização Brasileira, RJ, 1984), anotou:
“A importância decrescente da feira semanal afetou o
poeta popular exatamente com os crescentes custos de
produção e a competição dos veículos de comunicação de
massa”. E em seguida anota a superioridade da Feira de São
Cristóvão na área de produção e divulgação de folhetos, ao
observar que “a maior platéia *do poeta+ não é encontrada no
tradicional território do folheto, mas no Rio de Janeiro”.
A relação poeta-feira pode ser medida pela trajetória do poeta
cordelista Franklin Maxado. Natural de Feira de Santana (BA), cidade onde
se realiza uma das maiores e mais famosas feiras do Nordeste, ao lado de
Caruaru (PE), Franklin Maxado presenciou a decadência dela como reduto
cultural, ficando apenas como um entreposto comercial de compra e
venda de gado.
Lutando contra o declínio da poesia, lutando pela sobrevivência da
feira, Franklin Maxado publicou o folheto “A Feira de Feira quer voltar pra
Praça”. Entre outras coisas, denunciava a grave situação física e estética
do local, que,
“Sem ter infra-estrutura
Campo de concentração
Como parece de feitura
Até cercas de arame
Não lhe dão embocadura”.
Em razão dessa estrutura precária, o poeta denuncia as graves
conseqüências de uma tragédia anunciada. Se houvesse qualquer arruaça
ou briga, ou mesmo algum protesto social (como é comum ocorrer em
locais de grande aglomeração), os resultados seriam catastróficos,
causando mortes e ferimentos em centenas de pessoas.
Depois, tendo fixado residência em São Paulo, a atividade de poeta
e xilogravador ficou ressentida pela ausência de uma feira nordestina,
tentativa levada a cabo na Praça da República, sem os resultados
esperados. A feira de artesanato ali existente permanece imutável.
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-
No Brás, outro bairro de grande concentração de emigrantes
nordestinos, prolifera o comércio de produtos da região, sem constituir-se
uma feira propriamente dita. Novamente outro folheto traduziu a
insatisfação e as aspirações do poeta feirense. No cordel “A Praça é da
Poesia e Arte na República”, Franklin Maxado assegura que o cordel já
chegou lá / como ao Brás também já foi. Fora isso o local recebe a
contínua visita de músicos e artistas que “xaxam, tocam e cantam”,
ficando limitada a esses heróis a representatividade nordestina na Praça
da República.
Tanto desacerto trouxe em conseqüência uma maior aproximação
do poeta com o Rio de Janeiro, onde Franklin Maxado passou a freqüentar
aos domingos não só a Feira de São Cristóvão, como também, nos dias de
semana, a Praça XV de novembro e a Cinelândia, além de promover
reuniões em universidades e colégios que aceitavam como tema a
Literatura de Cordel. Franklin Maxado viu seu círculo de atividade
ampliado, ensejando a publicação de três livros pela Editora Codecri.
Devido a esses acertos, muitas vezes o poeta confessou o desejo de
se transferir em definitivo para o Rio de Janeiro. Mas não quis o destino
assim e hoje ele é encontrado em sua terra natal, limitando sua passagem
pelo Rio de Janeiro e São Paulo a rápidas viagens com objetivo de
participar dos eventos em que é convidado.
A passagem pelo Rio de Janeiro – vale dizer, pela Feira de São
Cristóvão – ficou registrada no folheto “Feira Nordestina: Resiste no Rio
dando exemplo pra São Paulo”. Para o poeta definitivamente:
“Nada representa mais
Seus estados nordestinos
Do que uma feira livre”.
Mas também o poeta Maxado Nordestino, no citado folheto, faz
questão de registrar a agressão de que foi vítima pessoal na Cinelândia,
justamente pelo fato de que consideravam os poetas que vendiam
folhetos como camelôs – portanto careciam de licença da Prefeitura para
trabalhar nas ruas e praças.
“Eu não sei por quais pragas
Perseguem os nordestinos”.
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-
...
“Os fiscais agiam brutos
Prendiam fazendo o rapa
Dando empurrões e tapa,
Fazendo então seus insultos”.
Para evitar a estagnação dos dias da semana em que a feira está
fechada – convém lembrar que a Feira de São Cristóvão funcionava a
partir de sexta-feira à noite, estando obrigada a liberar totalmente o
espaço às três horas da tarde de domingo – alguns poetas lançam-se
isoladamente em outros locais de grande circulação de pessoas tais como
a Quinta da Boavista, a Praça XV de novembro, o Largo do Machado, a
Cinelândia e a Central do Brasil, apesar da perseguição que volta e meia
lhes movia a fiscalização, porque fora do seu reduto natural eram taxados
de camelô.
A Praça XV de Novembro – nome simplificado para Praça XV – fica
no Centro do Rio de Janeiro, ao lado da estação das barcas que seguem
para Niterói, para as ilhas de Paquetá e do Governador e para outros
bairros e cidades na baía de Guanabara. Na época colonial foi o primeiro
porto do Rio de Janeiro, aonde desembarcou Dom João VI e toda a sua
numerosa comitiva em 1808.
Pois bem, a Praça XV foi um espaço duramente conquistado pelos
poetas populares que, quando fora do espaço que era tolerada a sua
presença, eram perseguidos como camelôs – e, portanto, marginais fora
da lei. A Feira da Praça XV, em seus primeiros tempos era destinada à
exposição e venda de arte e artesanato (produtos de couro, redes, tapetes
de sisal, rendas e seus subprodutos: toalhas, toalhinhas e lenços), logo foi
vista aos olhos do poeta de cordel como uma boa possibilidade de
divulgar e vender seus folhetos.
Essa percepção, como nos poetas populares, ajudou a tirar a
Literatura de Cordel da marginalidade, aceitando-a como cultura popular,
essa espécie de “artesanato” das letras brasileiras.
Em parêntese, convém observar que se a literatura popular tinha
essa ênfase marginal, que era dada pelas autoridades fiscais e policiais,
era graças ao tratamento dado pelo conjunto de entidades que dirigiam,
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-
ensinavam e divulgavam a arte e a literatura brasileira na época: a culpa
cai direto sobre os ombros da imprensa, da universidade, das academias
de letras, dos nossos escritores.
Se a Literatura de Cordel, vinda do nordeste, era assim violentada,
também as letras e canções caipiras, do interior do centro-oeste e do sul,
sofreram muito a mesma perseguição e foi discriminada pelos meios de
divulgação – o rádio e os jornais. Essa discriminação só veio a ser
denunciada e combatida quando o modernismo se fixou em 1922.
Na literatura e cultura caipira o nome a ser destacado é o de
Monteiro Lobato (1882-1948) que, juntado aos esforços de Cornélio Pires
(1884-1958), conseguiu elevar ao nível de literatura e de arte popular não
só alguns mitos brasileiros, como o Saci Pererê, como – no caso de
Cornélio Pires – todo o trabalho poético-musical produzido pelos artistas
do interior bandeirante, aí considerados os estados de São Paulo, Goiás e
Mato Grosso.
Continuando... A feira de artesanato da Praça XV foi freqüentada
durante muito tempo por José Gentil Girão (que se também se assinava
“Seu Ventura” e “O poeta vaqueiro”), Sebastião Nunes Batista (que
posteriormente veio a ser o organizador e responsável pelo importante
Setor de Literatura de Cordel da Casa de Rui Barbosa), Raimundo Santa
Helena (quando se lançou oficialmente na poesia de cordel em 1980),
Gonçalo Ferreira da Silva (o amanuense que virou poeta e conseguiu
realizar o sonho de fundar – e manter viva – a Academia Brasileira de
Literatura de Cordel), José João dos Santos, o “Azulão” (até hoje o poeta
popular mais requisitado pelas universidades para depor sobre a
Literatura de Cordel, pois além de poeta é excelente violeiro e cantador).
Apolônio Alves dos Santos, Elias de Carvalho, Franklin Maxado e
Marcelo Soares, eram freqüentadores ocasionais que apareciam na Praça
XV dependendo da sazonalidade, quando o tempo e as atividades pessoais
assim permitissem. Lá pelos anos 1980, somente Apolônio Alves dos
Santos e Marcelo Soares apareciam esporadicamente com seus folhetos e
xilogravuras, nos dois dias da semana em que a feira se realizava. Todos os
demais, andarilhos por natureza, se dispersavam em busca de novos
espaços, o que é uma pena, porque a Praça XV continua sendo passagem
obrigatória de uma imensa população em trânsito.
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Com efeito, desde aqueles que vão acessar o Terminal das Barcas ou
os pontos e terminais de ônibus para o subúrbio e para Niterói, até os que
freqüentam os bares, restaurantes, centros culturais e casas noturnas que
costumam apresentar exposições e números musicais durante a noite, no
Arco do Teles, Travessa do Mercado e adjacências, tem na Praça XV um
ponto de encontro saudável e alegre.
Esse abandono, a que os poetas se viram obrigados, é mais sentido
ainda quando se relembra o sacrifício de gente como José João dos
Santos, o “Azulão” e Apolônio Alves dos Santos, que sofreram todo tipo de
perseguição por parte dos fiscais da feira e da polícia. Os poetas eram
muitas vezes acusados de vadiagem e de malandragem – expressões
usadas para caracterizar àqueles que não têm profissão de carreira
assinada – advindo daí a conseqüente corrupção, apreensão de seus bens
e até prisão, como era comum naqueles tempos.
Mas a conquista do direito de freqüentar a Praça XV cabe sem
dúvida a Sebastião Nunes Batista, o pioneiro da Literatura de Cordel a
freqüentar aquele espaço. E se essa vitória o deixava alegre quando a viu
consolidada, muita tristeza trouxe depois que ele próprio foi vítima de
perseguição – por incrível que possa parecer! – de alguns cordelistas, que
deveriam estar ao seu lado.
O alegado movimento contra a presença de Sebastião Nunes Batista
foi capitaneado por Raimundo Santa Helena e contaminou outros poetas e
violeiros. O principal argumento para a defecção era o fato de que
Sebastião Nunes Batista havia sido contratado pela Casa de Rui Barbosa e,
portanto, era um privilegiado que não precisava vender seus folhetos e
livros em praça pública para sobreviver.
O que era na verdade uma fofoca, um melindre de baixa qualidade,
se transformou numa acusação grave que feriu fundamente o amor que
Sebastião Nunes Batista tinha pela Literatura de Cordel. Debaixo da
acusação de que a sua presença na Praça XV “tirava o pão da boca de
outros companheiros mais necessitados”, só restou a Sebastião Nunes
Batista, desolado e amargurado, abandonar a vida de poeta das ruas.
Por ironia do destino, no entanto, o fato de Sebastião Nunes Batista
pertencer aos quadros da Casa de Rui Barbosa foi de vital importância
para “legalizar” a presença dos cordelistas na Praça XV – e por extensão
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em todo o espaço urbano – tirando-os da posição marginalizada a que
estavam sujeito, equiparados aos camelôs.
Sebastião Nunes Batista era oriundo de toda uma geração de
violeiros, cantadores, jornalistas e poetas muito famosos no nordeste.
Tinha ele também suas universidades: possuía uma cultura de nível
superior, sua figura exalava a majestade do poeta, tinha a fala mansa,
cordata e jamais recusava um depoimento ou um convite para visitar
faculdades e universidades. Foi, aliás, um pioneiro nesse sentido, um dos
primeiros a ir e levar a Literatura de Cordel, violeiros, poetas e cantadores
aos cursos superiores.
Toda essa grandeza natural, o orgulho de ser poeta de uma família
de poetas, estava agora solapada pelos próprios colegas poetas e o deixou
triste, muito triste, devido às circunstâncias em que tudo ocorreu. Depois
dessa conversa ficamos ainda a conversar fiado até que o dia se fosse. Ao
ouvir as batidas dos sinos da antiga catedral que anunciavam seis horas da
tarde, ele desarmou a pequena banca e juntos caminhamos em direção ao
ônibus. Nunca mais vi Sebastião Nunes Batista freqüentar qualquer feira
para expor e vender seus folhetos e livros de cordel.
Esse depoimento, em tom de amargo desabafo, eu ouvi do próprio
Sebastião Nunes Batista, com quem tinha feito recente amizade. Nós nos
tornamos amigos de maneira simples e natural, um vínculo que nasceu do
amor pela Literatura de Cordel e pela cultura popular, das quais ele foi um
grande defensor. Também porque acho que ele gostava de ficar horas e
horas conversando sobre a história da poesia popular, de contar a vida de
poetas falecidos, dos fatos por ele presenciados. Sebastião Nunes Batista
era um mestre que gostava de passar adiante o seu conhecimento, pois
era a memória viva da Literatura de Cordel.
Com o crescimento da Feira de São Cristóvão e sua conseqüente
consolidação, o local se tornou um foco de atração turística. Os poetas
sentem na veia a transformação, estão atentos ao progresso do
movimento por eles iniciado há décadas. Voltemos a Apolônio Alves dos
Santos, que em folheto mostra o quê a feira tem, quais os seus atrativos,
os motivos que atraem tanta gente de toda parte do Rio de Janeiro e
outros locais:
“Nossa feira nordestina
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Já é uma tradição
É um ponto pitoresco
Servindo de atração
Para turistas de fora
Que vêem de outra Nação.
“É um ponto Cultural
Para os pesquisadores
E todos os estudiosos
Jornalistas e escritores
Repórteres e Cineastas
Inclusive redatores”.
O poeta relata os atrativos um a um, as novidades para ver, as
cantorias para ouvir, artesanato típico, quadros e obras de arte, como a
xilogravura, a pintura, esculturas em madeira, finalizando o passeio
comendo um prato típico, tomando um refresco de frutas nordestinas,
tudo, enfim, o que o turista tem para ver, comprar e saborear.
“Tem poetas, violeiros
Cada qual bom menestrel
E vários revendedores
De folhetos de cordel
E boas comidas típicas
Buchada e sarapatel.
“Também tem fumo de rolo,
Inhame, manteiga e queijo
O tocador de sanfona
Fazendo aquele festejo
Recordando os bons forrós
Lá do torrão sertanejo.
“Tem peixe curimatã
Traíra e avoador
Mocó e arribaçã
Mel de abelha e licor
E manteiga de garrafa
Que tem um outro sabor.
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“Tem o queijo de manteiga
E o queijo da coalhada
Chapéu de palha e abano
Miúdo pra feijoada
Costela e carne de sol
Para se comer assada”.
É uma que tem de tudo para todos. Tudo aquilo que pode ser
transplantado do norte e nordeste para o sudeste está presente na feira.
Alguma coisa teve de ser adaptada aqui na região mesmo: o requeijão, o
queijo manteiga, já é feito no norte de Minas Gerais, pela região de
Montes Claros. Como os queijeiros de Minas são bons, o produto também
é de boa qualidade.
A carne de sol igualmente é deixada para curtir no Rio de Janeiro, na
baixada fluminense ou no Grande Rio, mas se o consumo exagerado não
deixa o gosto apurar o tempo necessário, existe muita semelhança e sabor
com as carnes oriundas do nordeste. A farinha d’água geralmente vem do
Pará ou do Maranhão, mas existe uma produção artesanal lá pelas bandas
de Queimados, feita com aipim e, pasmem, é tão torradinha e dourada
quanto às melhores produzidas em Carema, no Maranhão.
O artesanato exposto e comercializado na feira tem sua origem
tanto no nordeste quanto no interior fluminense e paulista. A caninha –
cachaça – essa tem de ser importada mesmo, porque o sabor da purinha
da Paraíba e Pernambuco tem sabores inigualáveis. As aguardentes
fluminenses só entram na feira se for da mais alta qualidade: nesse ponto
os consumidores fazem questão e exigem a original.
“Tem tapetes de sisal
Esteiras de Piripiri
E aguardente Ipioca
Serra Preta e Parati
Do estado de Sergipe
Tem cachaça Murici.
“Tem rendas do Ceará
Malas e chapéu de couro
E vários artesanatos
Feitos com fino decoro
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Feirantes inteligentes
Ali se enchem de ouro”.
Para animar toda a festa que é a Feira de são Cristóvão, não poderia
faltar a música, em todos os seus aspectos. O cantador de coco ou de viola
hoje encontra espaço para mostrar sua arte e uma barraca para vender
sua produção. Existem muitas barracas de discos de música popular. Em
tais barracas se toca de tudo e no século do rock ele também está
presente. O forró, porém, tem seu lugar de destaque assegurado.
Mas guerra é guerra e o cantador persevera, encara toda a
parafernália dos sons estereofônicos com a tonalidade pura da viola
acústica e do gogó de ouro.
“Tem cantadores de coco
E famosos violeiros
Palmeirinha e Curió
Miguel e Manoel Medeiros
Azulão e Apolônio
Dois poetas folheteiros”.
Os turistas brasileiros e estrangeiros tem na Feira de São Cristóvão
um manancial enriquecedor onde pode adquirir a preços compensadores
obras de arte, xilogravuras, artesanato, entalhes, bonecos. Tudo
diretamente da fonte, do próprio autor.
E depois ainda pode saborear e levar para casa uma variedade
enorme de comida típica feita por cozinheiras que chegam ao local na
véspera ou de madrugada, para adiantar a feitura dos pratos: buchada,
sarapatel, carne de sol, mocotó, feijão de corda com legumes, fissura e
baião de dois.
Para encerrar a peregrinação sem passar mal pelos excessos
cometidos, cai muito bem um aperitivo, que pode ser uma caninha
imaculada, como Caranguejo, Pitu, Serra Grande, Aliança ou Olho D’água –
mas todas devem ser bebidas com moderação. Para os que pegam leve,
cai bem o Vinho de Caju, a Jurubeba, o Pau Pereira, o Vinho de Catuaba, o
Para Tudo ou doses de batidas das mais diversas frutas.
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Para tira-gosto da bebida, enquanto o prato principal não sai, vale
tentar alguns salgadinhos em unidades, talhos de requeijão, queijo coalho
na brasa, avoantes no espetinho, pata de caranguejo, casquinha de siri. A
variedade de castanhas torradas e salgadas também é grande: amendoim
torradinho, castanha de caju, castanha do Pará, amêndoas, amendoim
cosido na casca...
Os estudantes e pesquisadores encontram no local uma riqueza
incalculável para seus trabalhos e dissertações. O folclore, a cultura
popular, tudo vem entranhado na vida das populações trazidas pelas
correntes migratórias, tem merecido a atenção de bolsistas universitários
tanto do Brasil quanto do exterior.
Quem vê a Feira de São Cristóvão hoje em dia, única, especial, capaz
de superar em fama suas antecessoras, fica emocionado. A feira se tornou
importante demais para o povo que imigrou, muitas vezes se lançando
numa aventura inimaginável, em busca de sucesso e reconhecimento de
seu talento. De vez em quando alguém aparece se declarando “um dos
fundadores” da feira, mas não é verdade. A expressão pioneiro seria mais
adequada. Já li declarações de Raimundo Santa Helena e de José João dos
Santos “Azulão” se declarando fundadores da feira. Azulão realmente
esteve ali desde os anos 1950, segundo conta em entrevista a Igor Chaves,
saída no jornal eletrônico A nova democracia, que resumi:
“A Feira de São Cristóvão tomou um rumo que a descaracterizou.
Eu sou um dos fundadores. Eu conheci a feira quando não tinha
esse nome, propriamente. Os únicos cantadores que existiam
aqui eram Palmeirinha, Curió das Alagoas e Manuel Ferreira.
Esses cantadores faziam apresentações para os conterrâneos. Os
nordestinos pediam mercadorias do Nordeste como feijão de
corda, queijo e rapadura. Estendiam lonas no chão para a venda
das mercadorias e os que vinham compravam. Quem ergueu a
feira foi o nordestino Alexandre Alves, que criou uma
“sociedade” para ampliação do local. No ano de 1952(*)
comecei a vender os meus folhetos. O primeiro foi quando
Getúlio Vargas morreu (*)1954?). E em 1961, eu estava cansado
de ver os fiscais do governo fazendo o "rapa", apreendendo
meus livretos por não pagar licença. Então fiz uma carta ao
governador Lacerda em versos de cordel. Fui convidado para ir
ao Palácio da Guanabara e ganhei uma carteirinha com
autorização para colocar minha mesa onde quisesse. Aí, quando
a polícia chegava, ficava espantada com a carteirada que eu dava
neles.”
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Azulão é na verdade um pioneiro, porque a Feira de São Cristóvão –
ele mesmo conta – jamais foi realmente fundada. Nasceu de uma
necessidade e cresceu naturalmente. Como diz a história, tudo começou
partindo de um aglomerado de gente ansiosa, andando nervosa pra lá e
pra cá, entre barracas, nas ruas estreitas, viajantes, transportadores,
cercando folheteiros e cantadores, comprando rapadura, camarão seco,
sentindo o cheiro e o sabor das coisas que havia deixado para trás,
enterradas na memória das caatingas e do sertão tórrido.
Se algum tipo de pedra fundamental tivesse sido lançada, porém,
teria sido assentada por João Gordo, o primeiro a esticar uma lona no
chão e logo ali na esquina da Rua Senador Alencar começar a vender seus
produtos. Depois outros comerciantes de peso abriram quitandas e
mercearias na mesma rua. O ponto cresceu, as bancas se multiplicaram a
invadiram o espaço do Campo de São Cristóvão. A feira nasceu assim: de
parto natural. Por isso vingou, cresceu, amadureceu e sobrevive até hoje,
apesar de todos os percalços...
Mas João Gordo não era poeta. Os poetas que ali faziam ponto aos
domingos – segundo José João dos Santos “Azulão” – eram Manoel José
da Silva (Passarinho), Palmeirinha, Curió das Alagoas e Apolônio Alves dos
Santos. Todos tinham a profissão de poeta como secundária, porque a
maioria trabalhava na construção civil.
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O poeta canta sua história:
altas biografias...
"Sou de Feira de Santana
Nordestino e brasileiro
Se hoje estou em São Paulo
Cumpro o escrito roteiro
Da minha sorte e arte
A que me dedico inteiro."
Franklin Maxado (Maxado Nordestino)
"O doutor faz em cordel o que cordel fez em doutor"
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Poeta que e poeta, que se preza se conhece bem. Ninguém melhor
do que ele próprio para saber de suas virtudes e defeitos. Não chega a ser
comum, porém, o poeta deixar o autorretrato que facilite a vida de seus
pósteros, futuros biógrafos, pesquisadores, contadores da história
literária, enfim.
Manuel Maria Barbosa du Bocage (nunca é demais citá-lo) foi um
desses pouquíssimos que deixaram um autorretrato, no famoso soneto:
"Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno;
Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor que à ternura;
Bebendo em níveas mãos, por taça escura,
De zelos infernais letal veneno;
Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades,
Eis Bocage em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades,
Num dia em que se achou mais pachorrento."
Esse é o Bocage! E assim que ele deixou seu autorretrato. Mas
quem duvida de nossos poetas “iletrados”? Vocês acham que o nosso
Leandro Gomes de Barros era leitor de Bocage? Pois parece que sim,
senão como apresentar numa contracapa do folheto “Peleja de Manoel
Riachão com o Diabo” um autorretrato tão próximo ao poeta português?
Senão vejamos:
“A cabeça um tanto grande e bem redonda,
O nariz afilado, um pouco grosso,
As orelhas não são muito pequenas,
Beiço fino e não tem quase pescoço.
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Tem a fala um pouco fina, voz sem som,
Cor branca e altura regular,
Pouca barba, bigode fino e louro,
Cambaleia um tanto quanto no andar.
Olhos grandes bem azuis, têm cor do mar:
Corpo mole, mas não é tipo esquisito,
Tem pessoas que o acham muito feio,
Mas a mamãe, quando o viu, achou bonito!
No mundo da poesia de cordel é assim. Alguns poetas, não são
poucos, falam de si, seus dramas e de sua vida nas composições. Apolônio
Alves dos Santos, por exemplo, cordelista contemporâneo que esteve
durante em plena atividade na Feira de São Cristóvão e outras praças do
Rio de Janeiro, deixa elementos autobiográficos nas seguintes décimas
publicadas num de seus folhetos:
“Nasci no mês de setembro
do ano de vinte e seis
do dia – data do mês
ainda hoje relembro
fui batizado em novembro
do mesmo ano corrente
porque eu caí doente,
mamãe era quem dizia,
pensando que eu morria
me batizaram urgente.
"Meu velho pai se chamava
Francisco Alves dos Santos
ainda verto meus prantos
por ale, a quem tanto amava:
minha mãe se assinava
Maria da Conceição;
lá na celeste mansão
ambos estão bem unidos
porque Jesus foi servido
que lá fizessem união."
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Nascido, pois, no dia 20/09/1926 na cidade de Guarabira (PB),
Apolônio Alves dos Santos foi um dos mais fecundos poetas em atividade
no Rio de Janeiro. Graças a Deus dona Maria da Conceição, sua mãe, se
enganou quanto ao destino do filho, aumentando a população de poetas
populares paraibanos com esse talentoso personagem. A construção civil
perdeu um pedreiro experiente, mas a poesia ganhou um poeta de
qualidade. Depois Apolônio Alves dos Santos retornou à sua querida
Guarabira para não mais sair de lá...
De Cícero Vieira da Silva (Mocó), pode-se dizer o mesmo (ou quase).
Mais novo que Apolônio Alves dos Santos, conterrâneo, mas nascido em
Alagoa Nova, ele também vivia lutando pela sobrevivência no Rio de
Janeiro. Mocó de profissão era trocador de ônibus, mas de fé era poeta - e
dos bons! - atuando principalmente na Feira de São Cristóvão, nos
domingos de folga. Mocó relembra em versos candentes o lugar onde
nasceu, humilde e pobre, como costuma acontecer com as terras do
sertão. Mas nem por isso deixa o humor de lado, fazendo a tragédia se
transformar em comédia:
“Nasci numa cordilheira
numa casa muito ruim,
as telhas eram de capim
e a porta era uma esteira;
no pé de uma ladeira
foi onde fizeram ela,
se um gato subisse nela
só faltava derribar...
antes da chuva chegar
já chovia dentro dela.
José Bernardo da Silva, alagoano de Palmeira dos Índios em 02 de
novembro de 1912, ficou famoso no cordel por ser um de seus maiores
editores. Sua atuação nesse ramo é polêmica, como também foi a de João
Martins de Athayde, pois exerceu exageradamente o direito de compra de
trabalhos alheios, publicando-os em várias edições muitas vezes sem citar
o nome do autor.
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Seria o caso de considerar uma espécie de “confissão” ou “mea
culpa” estes versos que José Bernardo da Silva deixou?
"Não sou poeta vos digo
mas com rima arranjo o pão,
sou chapista e impressor
sou bom na composição
dentro da tipografia
o meu saber irradia
conheço com perfeição
agradeço esta opulência
à Divina Providência
e ao Padre Cícero Romão."
O baiano Minelvino Francisco Silva, igualmente um dos mais férteis
poetas populares. É de Mundo Novo, onde nasceu no dia 9/11/1929.
Auto- intitulando-se “O Trovador Apóstolo” assim justifica, em versos
próprios, o motivo de ter assumido esse apodo:
"Eu e Jesus em Belém
nascemos quase num dia,
Ele em Belém da Judéia
eu em Belém da Bahia,
Ele pregava o Evangelho
e eu prego a poesia."
No entanto, o mais autobiográfico de todos esses cantadores de
causos é sem dúvida o Seu Ventura ou, mais precisamente, José Gentil
Girão.
Nascido em Morada Nova (CE), no dia 03/11/1904, contava então
81 anos de idade bem curtidos. Seu Ventura sempre achava um jeito de
falar de si, de cantar a sua vida em seus folhetos. Já era tempo de alguém
ou uma instituição resgatar a memória desses poetas, pois são eles a
própria história da poesia popular. De qualquer modo esta é minha
modesta contribuição.
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José Gentil Girão na sua poesia vai cantando e contando o seu
sofrimento, sua sobrevivência, suas alegrias e recordações. Juntados seus
versos acabam por contar toda a sua existência...
“Este é o Seu ventura
Um afamado vaqueiro
É filho do ceará
Do nordeste brasileiro
Da poesia e artista
Hoje sou propagandista
Aqui no rio de janeiro.
Este é o seu Ventura
Um trovador sertanejo
Da nossa lira garbosa
Na vida o que mais almejo
Com rimas satisfatórias
Escrevo duplas histórias
De minha idéia versejo.
Já que sou um trovador
Ou um simples repentista
Zelo com todo carinho
Este nome de artista
Gozo o prazer de rimar
Gosto de improvisar
Seu Ventura é realista.
No meu velho Ceará
A minha terra querida
Que nasci e me criei
Aonde gozei a vida
Hoje estou tão distante
Da minha velha guarida.
De nossa Ibicutinga
Antiga Areia Branca
Aonde eu residia
Com minha morada franca
Vou falar dos meus colegas
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-
Que em nenhum lugar empanca.
Que do Nordeste querido
Que fui nascido e criado
Nas terras do Ceará
Que lá é o meu estado
Lá eu criei-me na raça
Sendo vaqueiro de gado.
Por isso não estudei
O meu tempo foi perdido
Mas tinha que ajudar
Meu velho papai querido
Pra criar meus irmãos
Que primeiro eu fui nascido.
E por isso batalhei
De criança até rapaz
Enfrentando aquela luta
Cada vez de mais a mais
Mas era de obrigação
Eu ajudar os meus pais.
Depois que fiquei rapaz
Mudei outro ideal
Gostava das diversões
Porque isso é natural
O rapaz se divertir
É coisa muito banal.
Depois mudei de idéia
Com uma moça noivei
A vida de diversão
Logo eu abandonei
Para viver no meu lar
Com a dita me casei.
Aumentando os meus trabalhos
Mudei outro pensamento
Na minha vida contínua
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Consegui o meu intento
Peguei de proa uma seca
Entrei logo em sofrimento.
Na era de trinta e dois
A seca foi de amargar
Eu me vendo sem recurso
Abandonei o meu lar
Pra poder ganhar o pão
Tive que me retirar.
Um serviço de rodagem
Muito longe eu enfrentei
A mulher com dois filhinhos
Deles eu me ausentei
Longas viagens de pé
Muito tempo eu viajei.
Atuando como vaqueiro lá mesmo em Morada Nova, Seu Ventura
narra com orgulho e alegria esse aspecto da sua aventurosa vida:
“Este é o Seu Ventura
Afamado dos vaqueiros
No seu cavalo alazão
Galgava nos tabuleiros
Fazia suas bravuras
Junto com seus companheiros.
No meu cavalo alazão
Que corria sem dar popa
Para eu pegar uma rês
Inda com a rama na boca
Eu pegava tão veloz
Que a mim era uma sopa.
E como eu era ativo
Logo no primeiro arranco
Pra mim era brincadeira
Eu digo e me garanto
Porque o meu alazão
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-
Tinha os passos muitos francos.
E eu sem perda de tempo
Quando tinha precisão
Para pegar qualquer bicho
Eu logo de prontidão
Com o meu cavalo certo
Meu afamado alazão.
É naqueles tabuleiros
Aonde os gados pastavam
Quando ales sem espera
Logo a gente avistavam
Corriam de cauda erguida
Na mata bruta enfrentavam.
Eu como era o mais afoito
Por nenhum não esperava
Dava rédea ao alazão
Naquela mata emboscava
E a rês da preferência
Logo perto eu derrubava.
Não estou me pabulando
Mas eu era vantajoso
Pra pegar um barbatão
Eu era meio perigoso
E para correr no mato
Nunca sofri de nervoso.
Mas eu só queria ser
Um primeiro sem segundo
Pois vaqueiro como eu
Nunca houve outro no mundo
Eu era meio perigoso
Mais o meu mano Raimundo.
Pois eu era um perigo
Tinha forte oração
Pra alma do bom vaqueiro
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Também tinha devoção
Ele foi vaqueiro esperto
Mas morreu em aflição.
É por este motivo
Que eu era vantajoso
Porque tinha devoção
Com um canto milagroso
Pela Elma do meu chapa
Eu era meio perigoso.
Fui o maior campeão
Na porteira de um curral
Também numa vaquejada
Comigo não tinha igual
Era um perigo de morte
Lá dentro do matagal.
Nunca encontrei vaqueiro
Por mais que fosse esperto
Para me levar vantagens
Por muito afamado e certo
Pois eu pra correr no mato
Não ia de corpo aberto.
E também numa folia
Num dia de vaquejada
Tinha o primeiro lugar
No dia de derrubada
Eu era o campeão
Naquela festa animada.
Em festa de apartação
Também fiz muita bravura
Mais meu compadre Vicente
Nós dois fazia figura
E o Sebastião Curinga
Ninguém fazia censura.
Mas muitos outros vaqueiros
- 124
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Que junto nós campeava
Chico Juvino e Pedrinho
Muitas carreiras nos dava
Mas na volta do Ventura
Comigo ninguém topava.
Porque o Ventura não
Fazia serviço à toa
Mais seu Balbino Preto
Este corria de proa
E o Terto Samuel
A brincadeira era boa.
Mas o Ventura na frente
Ninguém pegava primeiro
Ninguém fazia vantagem
Meu cavalo era ligeiro
E muitos deles diziam
Que eu era mandingueiro.
Nunca encontrei vaqueiro
Pra de mim correr na frente
Eu para correr no mato
Admirei muita gente
Pra pegar uma rês brava
Eu fui o mais diligente.
Pra pegar um barbatão
Eu era o mais renitente
Por isso vinha chamado
De fazendeiro decente
Minha fama espalhou-se
Porque eu era competente.
Girão se orgulha principalmente de duas coisas: ter sido vaqueiro e
ser poeta. No folheto "A Vaquejada de Morada Nova e No Ceará A Festa
dos Vaqueiros" Seu Ventura narra as peripécias havidas naquela famosa
festa de gado na sua terra natal:
“Isto é em Morada Nova
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No Estado do Ceará
É uma festa tão bela
Que eu não sei comparar
Em quase todo o Estado
Outra melhor não terá.
Sendo que a onze de junho
Dá-se esta vaquejada
Neste dia os vaqueiros
Tem uma brisa sagrada
Até mesmo a comunhão
Tem que ser abençoada.
Tem uma missa cantada
Todos tem prazer na vida
Ao depois tem um café
Fica de frente a Avenida
E no prédio dos vaqueiros
Há depois muita comida.
Antes de haver a derruba
É bonita a passeata
Todos os vaqueiros em fila
Parece uma serenata
Todos vestidos nos couros
Como quem vai para a mata.
O aboio destes vaqueiros
Trazia o som da alvorada
Que alegrou todo o povo
No dia da vaquejada
Nos relembram os tempos
Que íamos pra recreada.
La no Café das Mulatas
Tem morena de primeira
Pois lá eu divirto o tempo
Não estou dizendo asneira
Lá é onde mais eu gostava
Nas bancas das cafezeiras.
- 126
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Pois é lá onde eu encostava
E divertia a brincadeira
Lá tem muita novidade
O canto das cafezeiras
Lá é até animado
É igualmente uma feira.
E por isso é que eu encostava
Nos ambientes por fora
La se palestra e se brinca
Eu me lembro de outrora
Do tempo da mocidade
Daquelas manhãs sonoras.
E depois da derrubada
Aí vão para o churrasco
Debaixo das oiticicas
Lá não se vê embaraço
Tem comida com fartura
Também tem muito bebaço.
Debaixo das oiticicas
Lá tem tudo que se quer
De tudo que eu procuro
E do jeito que quiser
Lá tem até muito homem
Tem muito mais e mulher.
Lá tem padre tem juiz
Vai tenente vai doutor
Capitão e coronel
Muito homem de valor
Prefeito e delegado
Tudo é gente de pudor.
Vai muita mulher bonita
Tem feia que faz terror
Tem menina caxiada
Pra quem pode é um primor
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-
As mulatas dos cafés
A quem eu dou mais valor.
Mesmo assim eu não gosto
De banquetes e de festim
Não gosto de confusão
Pois não ficou para mim
Eu fico na retaguarda
Nos cafés e botequins.
La eu proso e me divirto
E estou tomando fé
Lá eu tenho mais conhecidos
Também faço meu bozé
Lá na banca das morenas
Onde eu tomava café.
Isto tudo é ilusão
Vou falar é dos vaqueiros
A carreira que eu gosto
É só a dos gameleiros
Ventura só tem vantagem
Junto com seus companheiros.
Desta vida de vaqueiro
Eu fazia profissão
Nunca fiz nada na vida
Mas nunca faltou-me o pão
Não me maldigo da sorte
E tenho satisfação.
Nunca possuí riqueza
Estou muito satisfeito
Pois a gente quando morre
Mortalha não tem direito
É toda lisa sem bolso
Não precisa de enfeito.
E não tendo esse direito
Por isso estou consolado
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-
Porque quando eu morrer
Não fico impressionado
Na hora da minha morte
Posso estar conformado.
E foi assim que o velho Seu Ventura acabou nos contando grande
parte da sua vida, em meia dúzia de folhetos aqui compilados. Nenhuma
entrevista diria mais, muito menos em rimas! E vamos usar as palavras do
próprio José Gentil Girão para apresentar suas despedidas:
“Agora aqui meus leitores
Vou terminar minha história
Só tem que bafo de boca
Não é verdade nem glória
Mas aqui não fiz censura
Só tinha que Seu Ventura
Sempre cantava vitória.
De minha idéia escrevi
Minha lenda ou novela
Para deixar de lembrança
Essa história em parcela
Pra todos apreciadores
Vaqueiros e trovadores
Se divertirem com ela”.
- 129
-
- 130
-
O poeta e o Reino Encantado:
Som Saruê
“Na terra de Som Saruê
Tem coisa de adimirá”.
Folclore Sergipano
Vi cerca de queijo e prata
E lagoa de coalhada.
Leandro Gomes de Barros
Uma viagem ao céu
"Lá os tijolos das casas
são de cristal e marfim”.
Manoel Camilo dos Santos
Viagem a São Saruê
Existem dezenas de estudos, análises, críticas, ensaios e
comentários, esmiuçando o mundo contido no pequeno folheto de
Manoel Camilo dos Santos "Viagem a São Saruê." É mesmo um folhetinho,
pequeno de tamanho, mas suficientemente vigoroso e consagrador a
ponto de destacar o poeta paraibano de seus contemporâneos.
Ao invés de sair a campo queimando pestana em busca de tais
estudos, na procura de alguma luz que ilumine esse misterioso
encantamento que possui o folheto, optei por uma penetração no próprio
território de São Saruê e eis-me tal Alice no país das maravilhas ou Fernão
de Magalhães em busca da passagem secreta entre o Oceano Atlântico e o
Pacífico.
A verdade que ninguém pode impunemente conhecer a história de
São Saruê tal como Manoel Camilo dos Santos narrou e sair ileso da
aventura que é descobrir, percorrer e se deslumbrar com a cidade mágica
e encantada. O folheto maravilhou a néscios e intelectuais, tanta é a força
criadora da imaginação semeada nas pequenas páginas do livrinho.
Mas, segundo o próprio poeta, este não é o seu melhor romance.
Ou não era... Mas o poema caiu de tal maneira no gosto dos leitores –
mais ainda – no gosto dos eruditos que se deleitam com a poesia de
cordel, que acabou por celebrizar o autor, notabilizando-o pelas dezenas
de outros folhetos de sua autoria, de igual qualidade, mas que passaram
despercebidos.
Manoel Camilo dos Santos, nascido no dia 9/07/1905 em Guarabira
(PB), aos 24 anos foi morar em João Pessoa, onde vivia da profissão de
cantador de viola. Na década de 1940 começou a escrever e vender seus
folhetos. Depois foi para Campina Grande-PB, onde montou a famosa
folhetaria “Estrella da Poesia”, com a qual se fixou na Literatura de Cordel.
É este o retrato do autor do romance “Viagem a São Saruê”, cuja
influência mais notória foi a leitura de “Uma viagem ao céu”, de Leandro
Gomes de Barros.
Além da sua obra, Manoel Camilo dos Santos foi editor de João
Melchíades Ferreira (de quem adquiriu todas as obras) e lançou novos
nomes como Manoel Pereira Sobrinho, Cícero Vieira da Silva “Mocó” e
Manoel Monteiro, entre outros. Manoel Camilo dos Santos faleceu no Rio
de Janeiro, no dia 9/04/1987, entes de completar 82 anos.
- 131
-
Após sua morte o escritor e pesquisador Umberto Peregrino, amigo
e admirador, criou no bairro de Santa Teresa a “Casa de São Saruê”,
destinada a aglutinar todo o acervo da Literatura de Cordel no Rio de
Janeiro. A casa também servia de pousada: poetas, violeiros, cantadores
que chegavam ao Rio de Janeiro tinham ali um quarto, um lar, com todo
conforto. O local e o acervo foram posteriormente transferidos para o
poeta Gonçalo Ferreira da Silva, que assim pôde realizar o seu sonho
maior que era criar a Academia Brasileira de Literatura de Cordel.
Apesar de ter certa raiz folclórica, o Reino de São Saruê não
encontra registro em nenhum compêndio conhecido, como entidade
fantástica. É São Saruê uma das muitas cidades maravilhadas produzidas
pelos cérebros doa poetas da Literatura de Cordel, onde tudo ocorre por
força de encantamentos e milagres. É ela a mesmíssima Eldorado dos
antigos desbravadores, o Reino das Amazonas onde tudo é de ouro, a
Terra das Esmeraldas pela qual a espada dos bandeirantes dizimou tribos
inteiras e é também o País das Maravilhas de Lewis Carroll e Alice, o Reino
Encantado de Oz, quiçá a própria terra prometida dos judeus errantes.
Alguns calepinos registram em geral a expressão Saruê como
sinônimo de Sarará. No Nordeste é também a "espiga de milho que nasce
com poucos grãos". Saruê, Sarigueia ou Sariguê é o marsupial, conhecido
por alguns por Mucura e por outros – erroneamente, a meu ver – por
Gambá.
Saruê é também a "dança em que se misturam figuras da quadrilha
francesa com passos de danças sertanejas e na qual a marcação é feita
num misto de francês estropiado e de português". A expressão, dizem, é
corriqueira no centro-oeste ali por Goiás, Mato Grosso e adjacências.
Particularmente tenho assistido desde a infância as representações
juninas, que culminam com o casamento dos noivos durante as festas,
sempre sendo chamada de quadrilha.
E para encerrar esta digressão conto que nas leituras ainda descobri
que algumas lendas indígenas citam Saruã como uma coisa ou um lugar
encantado, misterioso, aonde em tudo que ocorre e descreve não se acha
explicação racional. Esta é decerto a idéia mais aproximada da fantasia
criada e elaborada com esmero por Manoel Camilo dos Santos.
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-
No livro "Minha Gente (Costumes de Sergipe)" de Clodomir Silva
(Paulo, Pongetti & Cª.1926), pequeno volume temas folclóricos, deparei
com alguns versos ditos pela boca de cantadores em desafio– um se
acompanhando da tradicional viola e o outro com um cavaquinho,
pasmem! – versos esses que tomam mais remota localização da mágica
cidade em que Manoel Camilo bebeu o vinho celestial da fantasia:
"Na terra de Som Saruê
tem coisa de admirá:
muié corta de machado,
deixa os cambito virá;
amunta nos pordo brabo,
é quem dá sarto mortá;
e cond'as muié dá lúiz,
os home dá de mamá..."
Portanto, a fama de lugar onde coisas maravilhosas acontecem já
vem de longe. O próprio Manoel Camilo dos Santos confirma isso no
princípio da sua historia:
"Eu que desde pequenino
sempre ouvia falar
neste tal São Saruê".
Mostrando, assim, que as origens do mito de São Saruê – a Eldorado
do cordelista – é mais longínqua do que se pensa. No volume
anteriormente citado, do qual não encontrei qualquer outra referência
literária, nem do livro nem do autor, Clodomir Silva registrou também a
resposta à oitava cantada pelo desafiante, sendo que esta foi recitada em
sextilha, que é uma forma mais aproximada do cordel:
"Na terra de Som Saruê
é onde véve meus vizinho,
creando cabra de leite
pra sustenta bacurinho;
é bem nas unha dos gato
adonde os rato faiz ninho."
Pelo que se viu, a impressão que fica é que sob o mote “Na terra de
Som Saruê / Tem coisa de adimirá” muita fartura de rima pode correr pela
- 133
-
imaginação dos poetas, ao som das violas, do pandeiro e do cavaquinho. É
um filão nobre pra cantador nenhum botar defeito.
A princípio estava eu mais propenso a considerar o desafio
registrado como fruto da imaginação do autor de "Minha Gente", principalmente achar fantasioso o fato de cantadores se acompanharem com
cavaquinho, instrumento jamais visto em cantoria. A confiança numa
"explicação introdutória" do autor, no entanto, me fez ter fé nas
informações ali contidas.
Diz a nota:
"O que se escreve aqui é fruto de observação. Pode ser
defeituoso, mas é verdadeiro. Representa um contingente para a
compilação dos modismos de Sergipe ainda poucos conhecidos e
muitos descuidados."
Lendo o livro "Eu Conheci Sesyom", do biógrafo e grande glosador
caicoense, Francisco Amorim, reforça a idéia que o cavaquinho já teve sua
época como acompanhante de cantadores:
Mote:
Júlio, Rodolfo e Macrino
São necessários na farra.
Glosa:
Quando a tarde toca o sino
Chamando para a novena
Aparecem logo em cena
Júlio, Rodolfo e Macrino
Não sei dos três o mais fino
No cavaquinho e guitarra
Digo mais, não é fanfarra
Contando ali réis por réis
Sou franco, os três menestréis
São necessários na farra."
Mais adiante, voltando ao Clodomir Silva, em seu livro reclama que
“nada se tem recopilado em Sergipe, depois de Sylvio Romero, o maior de
todos, no culto a nosso berço e a seus costumes”.
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-
Portanto, nada mais justo que pôr fé nos informes prestados no
livro "Minha Gente", segundo as quais, terminada a faina diária, o pessoal
se reunia no terreiro varrido de novo, "espantando, ao som do cavaquinho
e da viola, as canseiras de um dia de labor".
Manoel Camilo dos Santos engrossa a fileira de famosos poetas
paraibanos. Se suas raízes familiares não se esticaram pelo terreno
sergipano, fonte dessas antigas referências sobre a cidade seus sonhos, é
mais provável que o próprio Reino de São Saruê, esse sim, se estenda
autóctone e sem fronteiras por todo o território nordestino.
A fundação de cidades e lugares absurdos e comuns na de cordel.
Leandro Games de Barros (nunca é demais citá-lo), um exemplo desse
local só na imaginação dos poetas:
"Na cidade da Caipora
Perto de Tabua Lascada,
Município da Rabugem,
Freguesia de S. Nada,
Rua de Não Sei Se Ha,
Esquina da Sorte Minguada."
Nesse local de difícil localização é que mora, numa vila mais
longínqua ainda...
"O visconde Cururu
Barão de Cuia Quebrada,
Morava na Vila Nojenta,
Rua da Esfarrapada
Travessa do Lagadiço
Na casa numero nada."
(Gosto com desgosto)
O pequeno grande folheto de Manoel Camilo dos Santos (31
sextilhas e 2 décimas) tem o indiscutível mérito de colocar a fantasiosa
região – São Saruê é mais que uma simples vila ou cidade, tem ares de
nação – em definitivo no cume do folclore brasileiro, via Literatura de
Cordel.
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-
Aliás, recuássemos um pouco no espaço/tempo e São Saruê seria
não um país, nem uma cidade, tampouco uma região e sim um Reino, um
Império, aquele lugar maravilhoso de antigamente que fecundou nossa
imaginação quando ouvíamos as histórias contadas debaixo de uma
mangueira à luz das lamparinas.
A São Saruê de Camilo é um país, é uma cidade, é uma nação. E
moderna, com todos os requisitos dos séculos futuros. Sua localização
exata mais correta é a própria mente de cada leitor que folheia as 31
páginas do romance. São Saruê vive na imaginação rica de quem sempre
aspira um lugar assim para viver a vida tranqüila que sonhou sempre – e
não "nas unha dos gato / adonde os rato faz ninho", como no repente
sergipano citado antes.
Embora, admita-se, “nas unha dos gato” seja um lugar tão
fantástico quanto qualquer outro, capaz de caber outra São Saruê
inteirinha por entre os becos e vielas...
A viagem de Manoel Camilo dos Santos e conseqüentemente a
viagem dos seus leitores – inicia-se em obediência a uma ordem expressa
do "Doutor mestre pensamento", que afinal tomar realizado o sonho do
menino que um dia ouviu falar na estranhíssima terra:
"Camilo vá visitar
o país São Saruê
pois é o lugar melhor
que neste mundo se vê."
Mas São Saruê é mesmo um país imaginário ou fantasmagórico?
Nem tanto, a terra existe, a cidade é real, igual a tudo que "neste mundo
se vê". E tudo aquilo que se vê não é fruto da imaginação, a não ser as
miragens desérticas que iludem o viajante solitário. E ainda mais, antes
mesmo aportar em terra tão fabulosa, coisas estranhíssimas começam a
perturbar a viagem:
"Iniciei a viagem
as quatro da madrugada
tomei o carro da brisa
passei pela alvorada
junto do quebrar da barra
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-
eu vi a aurora abismada.
"Pela aragem matutina
eu avistei bem defronte
a irmã da linda aurora
que se banhava na fonte
já o sol vinha espargindo
no além do horizonte.
"Surgiu o dia risonho
na primavera imponente
as horas passavam lentas
o espaço incandescente
transformava a brisa mansa
em um mormaço dolente.
"Passei do carro da brisa
para o carro do mormaço
o qual veloz penetrou
no além do grande espaço
nos confins do horizonte
senti do dia o cansaço."
O que mais impressiona na mágica viagem que se inicia (e depois na
própria cidade folclórica de São Saruê) são os interregnos poéticos, dignos
de poetas mais tradicionais, desde Leandro Gomes de Barros e Francisco
das Chagas Batista.
Para o poeta popular a aventura do lirismo é muito perigosa porque
exige uma alta dose de talento, conhecimento e rigor, para evitar a
repetição e o vácuo piegas que costumam transformar em ridículo uma
criação poética. Manoel Camilo dos Santos, porém, se sai de forma
excelente das inúmeras dificuldades que o texto cria a cada nova estrofe:
"Enquanto a tarde caía
em mistérios e segredos
a viração docilmente
afagava os arvoredos
os últimos raios de sol
bordavam os altos penedos.
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-
"Morreu a tarde e a noite
assumiu sua chefia
deixei o mormaço e passei
pro carro da neve fria
vi os mistérios da noite
esperando pelo dia.
"Ao surgir da nova aurora
senti o carro pairar
olhei e vi uma praia
sublime de encantar
o mar revolto banhando
as dunas da beira mar."
Superado esse "trânsito" tumultuoso, cheio de surpresas, eivado de
figuras assombrosas, promessa de um mundo desconhecido, eis que surge
à vista a cidade de São Saruê, igualmente fantástica, faiscante, luminosa:
"Avistei uma cidade
como nunca vi igual
toda coberta de ouro
e forrada de cristal
ali não existia pobre
é tudo rico geral.
“Uma barra de ouro puro
servindo de placa eu vi
com as letras de brilhante
chegando mais perto eu li
dizia: – São Saruê
é este lugar aqui”.
Os metais preciosos, as pedras de quilates insuspeitados, sempre
tiveram a preferência dos humildes, para demonstrar e simbolizar a
riqueza quase nunca alcançada. A São Saruê, cintilante e extraordinária,
confirma essa tendência. O brilho da prata, a faísca do diamante, a
cintilação da pedraria, o colorido das esmeraldas, o rútilo faiscante dos
metais, tudo deixa o visitante de boca aberta:
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-
“Quando avistei o povo
fiquei de tudo abismado
uma gente alegre e forte
um povo civilizado
bom, tratável e benfazejo,
por todos fui abraçado.
A preocupação com as igualdades sociais começa a ser ressaltada
pelo poeta. O povo, absolvido da visão miserável da região nordestina,
aqui e "bom, tratável e benfazejo"...
No fundo, no fundo, trata-se confessar uma esperança e um desejo
de que as coisas mudem para melhor, de que o irreal prevaleça sobre a
realidade constante e aterradora do sertão. Uma vontade de saber, um
desejo comum, um reconhecimento de que a terra poderia ser outra bem
melhor...
"O povo em São Saruê
tudo tem felicidade
passa bem anda decente
não há contrariedade
não precisa trabalhar
e tem dinheiro à vontade.
"Lá os tijolos das casas
são de cristal e marfim
as portas barras de prata
fechaduras de "rubim"
as telhas folhas de ouro
e o piso de cetim."
Da mesma forma que o poeta deseja o bem-estar da população,
almeja-lhe fartura, saúde, boa alimentação, de preferência a custo
nenhum. Para tanto, é necessário que a própria cidade, com sua natureza
fértil provenha a população de modo natural. Não é de surpreender, pois,
que nada seja vendido ou comercializado ou objeto de transação
comercial e financeira. Em São Saruê tem de tudo para todos, tão
gratuitamente quanto a natureza oferece.
"La eu vi rios de leite
- 139
-
barreiras de carne assada
lagoas de mel de abelha
atoleiros de coalhada
açudes de vinho do porto
montes de carne guisada.
"As pedras em São Saruê
são de queijo e rapadura
as cacimbas são café
já coado e com quentura
tudo assim por diante
existe grande fartura.
"Feijão lá nasce no mato
maduro e já cozinhado
o arroz nasce nas várzeas
já prontinho e despolpado
peru nasce de escova
sem comer vive cevado.
"Galinha põe todo dia
invés de ovos é capão
o trigo invés de sementes
bota cachadas de pão
manteiga lá cai des nuvens
fazendo ruma no chão.
"Lá os pés de casimira
brim, borracha e tropical
de nycron, belga e linho
e o famoso diagonal
já bota as roupas prontas
próprias para o pessoal.
"Os pés de chapéus de massa
são tão grandes e carregados
os de sapatos da moda
tem cada cachos "aloprados"
os pés de meias de seda
chega vive "escangalhado".
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-
O mais admirável de tudo é que, embora o país de São Saruê
ofereça ao cidadão tudo de bom, todo o necessário para a sua
sobrevivência, também não falta ali o "vil metal". Para quê? Lá se sabe!...
Talvez para que o fascínio que provoca o dinheiro se mantenha vivo entre
a gente mais pobre. Talvez para um caso de rara necessidade... mas seja
para qual necessidade for, a verdade é que dinheiro jamais falta ali, tem
em abundância.
"Sítios de pés de dinheiro
que faz chamar atenção
os cachos de notas grandes
chega arrastam pelo chão
as moitas de prata e ouro
são mesmo que algodão.
"Os pés de notas de mil
carrega chega encapota
pode tirar-se a vontade
quanto mais tira mais bota
além dos cachos que tem
casca e folha tudo é nota."
"Os peixes lá são tão mansos
com o povo acostumados
saem do mar vem pras casas
são grandes, gordos e cevados
e só pegar e comer
pois todos vivem guisados."
Sendo tudo fruto de encantamento, em São Saruê a fome e as
doenças foram extirpadas. A vida lá realça o prazer sem trabalho. Um
verdadeiro país de diversão, alegria, felicidade e lazer.
"Maniva lá não se planta
nasce e invés de mandioca
bota cachos de beiju
e palmas de tapioca
milho a espiga e pamonha
e o pendão é pipoca.
- 141
-
"As canas em São Saruê
não tem bagaço (é gozado)
umas são canos de mel
outras açúcar refinado
as folhas são cinturão
de pelica e bem cromado."
A cidade cresce aos olhos dos leitores em tamanho e prodígio. Para
fins de localização note-se que lá existe uma culinária bem brasileira, bem
nordestina. Não obstante São Saruê pertence a uma região que
acompanha o progresso, os ditames da moda advindos das metrópoles
mais avançadas do mundo. Se em São Saruê não existem privilégios,
também não há esquecidos. Tudo do bom e do melhor que a vida oferece
é para todos e não só para uns poucos como a razão capitalista estabelece
e faz sentir.
Dona de uma população perene, São Saruê também vê seus filhos
nascerem e deles não se descuida. E quando a velhice chega, não tem
problema: é só dar um mergulho no Rio da Mocidade e o octogenário
cidadão de repente volta à sua mocidade, fica novinho em folha!
"Lá quando nasce um menino
não dá trabalho a criar
já é falante e já sabe
ler, escrever e contar
salta, corre, canta e faz
tudo quanto se mandar.
"Lá não se vê mulher feia
e toda moça é formosa
bem educada e decente
bem trajada e amistosa
é qual um jardim de fadas
repleto de cravo e rasa.
"Lá tem um rio chamado
O banho da mocidade
onde um velho de cem anos
tomando banho a vontade
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-
quando sai fora parece
ter vinte anos de idade.
O visitante foi bem tratado nos muitos dias que ali passou, gozando
"prazer, saúde, alegrias”. Sua única ocupação era recitar poemas.
"Lá existe tudo quanto é de beleza
tudo quantoé bom, belo e bonito,
parece um lugar Santo e bendito
ou um jardim da divina Natureza:
imita muito hem pela grandeza
a terra da antiga promissão
para onde Moises e Aarão
conduziam o povo de Israel,
onde dizem que corriam leite e mel
e caía manjar do céu no chão.
“Tudo lá é festa e harmonia,
amor, paz, benquerer, felicidade,
descanso, sossego e amizade
prazer, tranqüilidade e alegria;
na véspera de eu sair naquele dia
um discurso poético, lá eu fiz,
me deram a mandado de um juiz
um anel de brilhante e de "rubim"
no qual um letreiro diz assim:
– é feliz quem visita este país."
Depois de apresentada ao resto do mundo com tantos elementos
maravilhadores, a terra de São Saruê se transformou num mundo turístico
para muitos brasileiros ilustres. Inumeráveis são as laudas escritas
enaltecendo o lugar e seu fundador. Muitas são as versões havidas das
inspirações provocadas pela poética de Manoel Camilo dos Santos.
Contam já centenas de outros reinos encantados, tão encantadores
quanto São Saruê, filhos dos reinos mágicos de outrora.
Países de identidade virtualmente oposta a dos mundos fantásticos
da ficção científica, reverso mesmo das terras espaciais freqüentadas por
um Flash Gordon, e outros heróis futuristas, mas tão intensamente
prodigioso quanto elas.
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-
Muitos novos reinos serão ainda descritos, desta vez são saruês com
naves estelares, videofones intergalácticos, outros sois, outras luas. Tudo
o que a nova tecnologia atualizou e mais a internet com seus espaços
virtuais. Mas, por enquanto, aqui por nossa terra poética, só existe uma
São Saruê.
Convém visitá-la logo, antes que acabe...
"Vou terminar avisando
a qualquer um amiguinho
que quizer ir para lá
posso ensinar o caminho
porem só ensino a quem
me comprar um folhetinho."
- 144
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O poeta diante da morte:
réquiem sem dó
Mas a morte é tão tirana
Que não respeita ninguém
Leva o novo, leva o velho
Do seu mau instinto tem
Por isso que não deixou
O cego inteirar os cem.
Jose Gentil Girão (Seu Ventura)
Vida, morte e chegada de Aderaldo no céu.
Chega a impressionar a comoção que se abate no seio da
comunidade quando a morte ceifa a vida de um poeta popular.
Mesmo depois de algum tempo os grandes feitos daqueles que se
foram continuam sendo lembrados, ora em conversa de feira, ora em
notas nos folhetos, ora em papo de botequim. Entremeadas quase sempre
de muita cachaça surgem as estórias que fizeram a fama do finado, são
cantadas as lamentações – quase sempre em décimas – compostas em
homenagem ao colega que se foi.
Paulo Nunes Batista, em 07/07/1982, na contracapa do folheto Ruy
Gramático Maníaco ou O Homem que quis Consertar a Língua, registra
emocionado o centenário de nascimento do pai Francisco das Chagas
Batista. Nesse mesmo ano o poeta teixeirense (Teixeira - PB) fazia
cinqüenta e dois anos de falecido.
O que Paulo Nunes Batista não previa era que, alguns meses depois,
a famosa família de poetas iria perder outro talento – Sebastião Nunes
Batista – em seguida pranteado em todo o Brasil pelos companheiros. A
Fundação Casa de Rui Barbosa, na qual Sebastião trabalhou nos últimos
anos de vida, fez um apanhado dessa manifestação e publicou sob o titulo
A Lamentação dos Poetas na morte de Sebastião Nunes Batista.
Querido como era por toda a classe de Cordelista (com raríssimas
exceções) foram incontáveis os depoimentos deixados por colegas e
amigos seus. Não obstante a morte nivelar os seres por igual foi
impossível ouvir-se uma nota destoante sequer a respeito de Sebastião
Nunes Batista. Era uma unanimidade e, por isso mesmo, a pressão para
que abandonasse as praças teve efeito devastador em sua vida.
Era sóbrio, muito amigo e educado,
Não se via ele falar mal de ninguém.
Essas belas qualidades que as tem
Tem por certo um viver bem sossegado
E por isso e que foi sempre estimado,
Por poetas populares, cantadores,
Folcloristas, jornalistas, escritores.
(Manoel Messias)
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Sebastião foi amante
Da sublime poesia
E ao falar parecia
Um evangelho ambulante,
A voz mansa, aconchegante,
Olhar conciliador,
Sorriso de temo amor.
(Gonçalo Ferreira da Silva)
Incansável lutava todo dia,
Os direitos da classe defendia
Com amor corajoso e braço forte,
Apagando-se assim em sua morte
Uma estrela no céu da poesia.
(José João dos Santos, Azulão)
Homenagem póstuma ao meu amigo poeta Sebastião Nunes
Batista, falecido no dia 09/01/1982
Uma notícia sombria
veio inesperadamente
que faleceu de repente
um filho da poesia
num dia que assistia
uma festa folclorista
quando a morte lhe atacou
dum enfarte se acabou
Bastião Nunes Batista.
A morte vil traiçoeira
com seu negro coração
degolou Sebastião
com sua foice certeira
eu me achava na feira
quando um companheiro meu
ali me apareceu
e cheio de emoção
- 147
-
me disse: Sebastião
Nunes Batista morreu.
Ocorreu a sua morte
em Sergipe, num congresso
um bom festival de verso
da poesia do Norte
quando recebeu o corte
da foice negra assassina
da Morte, aquela cretina
que com impacto de dor,
matou o pesquisador
da poesia Nordestina.
Dia 9 de janeiro
mesmo no fim da semana
na Capital Sergipana
morreu o bom companheiro
um escritor brasileiro
honrado e positivista
que alem de folclorista
foi grande pesquisador
filho do grande escritor
Francisco Chagas Batista.
(Apolônio Alves dos Santos)
Mas morreu lutando como um artista
Em defesa da nossa literatura.
(Inaldo Feliciano de Lima)
Naquele instante falava
De Romano do Teixeira
E Inácio da Catingueira
Assunto que ele adorava,
Como que se aproximava
O seu chamado paterno,
Sentiu um aperto interno
Como querendo voar
- 148
-
Em busca de um bom lugar
Para seu descanso eterno.
(Manoel D'Almeida Filho)
Alvo de criticas muitas vezes injustas sobre a sua posição da
Fundação Casa de Rui Barbosa, Sebastião Nunes Batista sacrificou também
sua obra poética para deixar espaço aos companheiros. Um verdadeiro
sacrifício para quem, segundo o seu mano Paulo Nunes Batista,
Trazia o verso no sangue
Por um decreto do alem!
Afora essa lamentação feita sob encomenda, que alguns
participantes consideram mesquinha, restrita, muitos outros publicaram
versos em folhetos, aproveitando qualquer espaço: contracapas, folhas de
canções, ao mesmo tempo que os violeiros incluíam em seu repertório
improvisações e elogios ao recém falecido.
Raimundo Santa Helena fez o folheto Adeus Sebastião, cumprindo –
segundo o autor – o pedido do poeta finado, colocando na poesia
primeiro o nome do pai dele, sem dúvida nenhuma, o ídolo maior dos
irmãos Batista, que honram o talento herdado:
Nascer, lutar e morrer
Deus assim o determina
Presidente, Rei, Rainha
Velhos, menino, menina
Orgulho, ódio, riqueza
Sofrimento e tristeza
Na morte tudo termina...
O poeta faz questão de dar o recado diretamente ao falecido como
se conversasse com ale, esteja onde estiver:
Eis aí Sebastião
O que nos dois combinamos
Na Casa de Rui Barbosa
Sobre mortes conversamos:
Quem morrer primeiro vai
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Ser dito depois do pai
Porque fama não buscamos...
Acredito piamente que isto sucedeu porque era assim o Sebastião
Nunes Batista que eu conheci. Falecido na atividade que mais o ocupava
na época, a conferência na cidade de Laranjeiras (SE), Sebastião tinha se
transformado num dos maiores divulgadores da Literatura de Cordel.
O poeta João Paulo Martins aproveitou um pequeno espaço na
contracapa do folheto O Periquito da Rosa e a Rolinha de Vicente para
prantear o fatídico dia 09/01/1982:
Deus te dê bom lugar Sebastião
Realmente senti a morte sua
Reconheço que a morte negra e crua
Que não usa bondade nem perdão
Infeliz do que cai em sue mão
Pois o jeito é subir para o além
Quando menos se espera ela vem
Acabar com a vida do Cristão
Se conforme amigo Sebastião
Qualquer dia eu sei que vou também.
Elias A. de Carvalho, o Poeta Acadêmico, publicou um folheto
chamado Memória de Poetas Inesquecíveis, no qual reúne suas
homenagens em verso aos colegas que já se foram. Sebastião Nunes
Batista também é pranteado. Elias antecipa as despedidas com um lindo
prelúdio, o poema As Estações da Vida:
A nossa vida passa velozmente
Como no ano passam as estações.
E em sonhos, esperanças e ilusões,
Vai-se o tempo saudoso e sorridente.
A mocidade e o sol resplandecente
Da primavera, cheia de esplendor.
Nasce a planta, viceja e bota flor.
Cantam as aves canções melodiosas.
Juventa são visões maravilhosas
Não tem pranto nem tristeza, só amor...
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Mas esses tempos garbosos logo vão.
Deixam as aves de fazer as suas farras.
Já nas campinas cantam as cigarras
Anunciando a chegada do verão.
Sofre o homem decadente a solidão
duma lembrança saudosa e desolada.
A seca mata a arvore desfolhada,
jamais terá a beleza e a candura.
Chega o homem cansado à sepultura,
sob o túmulo termina a longa estrada.
Para homenagear Sebastião Nunes Batista, Elias A. de Carvalho fez
um poeta no qual trata o desaparecido da maneira mais elevada possível:
Cantador e Cordelista
Guardarão sua memória.
Pra confirmar essa história
ele deu seu testemunho,
morrendo de arena em punho
pra consagrar sua glória.
Segundo Elias, Sebastião Nunes Batista viveu a existência pra testar
a eloqüência / do poeta repentista / Mostrar que o cordelista / tem o dom
da providência.
Em sua categoria / foi difícil contestá-lo,/ representava um vassalo /
do reino da poesia – e por isso mesmo mereceu a vasta demonstração de
toda a classe poética.
No mesmo folheto Elias pranteia o desaparecimento de Zé Praxedis
(José Praxedes Barreto), poeta amplamente conhecido no Rio de Janeiro,
divulgador incansável da cultura nordestina, que se apresentava quase
sempre acompanhado de violeiro, vestido de alguns petrechos típicos do
nordeste: gibão, chapéu de couro, alpercatas, perneiras – se o tempo
assim o permitisse.
Zé Praxedis simbolizava o andarilho tradicional a distribuir as
riquezas da poesia nordestina e sertaneja pelos desertos do Sul. Elias A. de
Carvalho anota assim a perda do poeta:
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Num diário de Natal,
uma nota de saudade
consternou toda a cidade
com um desfecho fatal.
Uma noticia mortal
sobre a terra se abatia.
Um grande vulto morria
vitimado de um enfarte
no exercício da arte:
Escrevendo poesia.
Zé Praxedis fundou na Feira de São Cristóvão o Canto da Poesia,
tradicional reduto de violeiros, cantadores e repentistas incrustado num
cantinho debaixo de árvores frondosas. Ali os poetas armam suas bancas,
penduram gravuras e folhetos nos cordéis espichados de tronco a tronco,
contam das novidades e promovem manifestações conforme o momento
exigir.
Passagem obrigatória para quem se interessa por essa manifestação
popular de arte, o Canto da Poesia mantém suas características originais
dadas por seu fundador graças à obstinação e sacrifício de Expedito F.
Silva, que é quem determina o ritmo e a animação do local.
Rafael de Carvalho, personalidade múltipla misto de ator, diretor de
TV e cinema, exercia a poesia de cordel com paixão. Querido e respeitado
pelos poetas populares, Rafael era conhecido como defensor dos seres
desventurados e em muito dos seus folhetos de cordel predominava o
tom incisivo, político. Quando Rafael de Carvalho faleceu, também vitima
do amaldiçoado enfarte, a amargura se abateu entre os poetas. Paraibano
de boa cepa, para ele não faltaram vozes para lamentar a perda de quem
tanto lutou pelos fracos, pelos famintos, principalmente pelos oriundos
das caatingas.
Elias A. de Carvalho e o primeiro a dar o tom:
Paraibano do bom,
o Rafael de Carvalho
era escravo do trabalho
e poeta pelo dom.
Devotado de bom-tom
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No amor à sua terra
tava seu patriotismo.
A história e a vida de Rafael de Carvalho desfilam harmônicas pelas
rimas de Elias, numa lamentação que parece mais um grito que um elogio
póstumo a quem justifica o merecimento:
Um filho de lavrador,
fugiu de casa menino
pra seguir o deu destino
de artista lutador.
Folclorista e escritor,
dedicou-se à região.
Ator de televisão
e teatrólogo de esmero.
Amigo franco e sincero,
Como manda a tradição.
O fim das grandes e penosas jornadas será, afinal, o de todos nós,
mas em Rafael de Carvalho deixou luto na platéia / e uma lacuna na arte.
A própria natureza chora a perda do poeta, quem nos diz é Raimundo
Santa Helena:
O vento voa gemendo
Nos montes, folhas, no galho,
De luto a noite chora
Claros pingos de orvalho
Velório da poesia,
Morre vate na Bahia,
O Rafael de Carvalho.
Sempre que morre um poeta popular, mesmo se sabendo que ali
pesa o chamado do Destino, é inevitável que a repulsa e a raiva tomem
conta da inspiração. A razão perde para o impacto da notícia da perda de
um companheiro, mesmo que em alguns momentos dessa amizade tenha
havido algum dissabor, opiniões divergentes e algumas discussões ao calor
do momento.
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Não sei como Deus aprova
A morte de um cantador.
No entanto, não há como fugir da morte tirana:
Do escravo ao tirano
Não ha vida permanente
Morrem pobre favelado,
Papa, Rei e Presidente.
Morre João, morre Maria,
Só não morre a poesia,
Que sai da alma da gente...
Um dos repentistas mais lamentados durante o seu passamento foi
mesmo Manoel Jose da Silva, conhecido pela alcunha de Passarinho. Era
um cantador nato, queridíssimo per todos os poetas do Rio de Janeiro,
principalmente da Feira de São Cristóvão.
Passarinho não teve sorte na vida matrimonial, pois só vivia se
queixando da vida em família. Mais uma vez e Elias A. de Carvalho quem
traça o retrato mais fiel do cantador: humilde nordestino, / amarelo,
franzino e sem vigor. Mesmo sem conhecê-lo na intimidade, Elias vai
fundo:
Para ser franco, eu nem o conhecia,
apenas encontrei-o algumas vezes
lá na Feira ha uns seis ou sete meses
antes de ir para a última moradia.
Dizem alguns que o álcool e inimigo numero um do violeiro, do
repentista, mas Passarinho no estranhava uma caninha e, neste case, não
se podia dizer que a cachaça á água que passarinho não bebe...
Mas por todos os colegas era estimado
Sempre alegre, sincero e animado,
tinha o dom do repente na cachola.
Era só dar-1he cana e viola
e lá estava um poeta respeitado.
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A vida foi para Passarinho particularmente penosa, assim atestam
vários colegas de profissão, mas o talento e a inspiração que essa vida
desregrada trazia foram infinitamente superiores...
É interessante notar como os poetas famosos praticamente fazem
questão de dedicar alguns versos em memória dos colegas que se foram.
João Jose da Silva Azulão, dos mais festejados poetas contemporâneos,
lamentou assim a morte de outro famoso poeta, Francisco Firmino de
Paula (H. Rufino), paraibano falecido em 1967:
Manhã de um domingo triste
foi a três de dezembro
que tu Chico, um dos nossos membros
para outra esfera partiste;
deste mundo desististe
passaste para um astral,
onde a Força Universal
que nem erra nem perdoa
a todos dá a coroa
do seu destino final.
Tua passagem terrestre
hoje e uma saudade,
desde prazer da cidade
até o rincão campestre,
sempre foste um grande mestre
com tuas rimas corretas
tuas historias completas
tua paz, tua memória
que passam para a história
do coração dos poetas.
E essas lamentações pela perda dos companheiros vêm de longe na
historia da poesia popular. Quase sempre registra partes da vida do morto
e nada tem de piegas. O necrológio de Leandro Gomes de Barros feito por
João Martins de Athayde ressalta o valor do poeta de um modo tal que as
lagrimas acaba ficando num Segundo plano. É um grande poetam
cantando as glórias de outro grande poeta:
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Poeta como Leandro
Inda o Brasil não criou
Por ser um dos escritores
Que mais livros registrou
Canções não se sabe quantas
Foram seiscentas e tantas
As obras que publicou.
Não cito o numero das obras
Como assim me apareceu
Porque fica muito longa
Quem vai trabalhar sou eu.
E mesmo não há quem saiba
Nem há romance que caiba
O que Leandro escreveu.
No dia da sua morte
O céu mostrou azulado
No visual horizonte
Um círculo subdourado
Amostrava no poente
Que o poeta eminente
Já havia se transportado.
Muitas das vezes o próprio poeta deixa registrado o que espera no
dia da sua morte. São pedidos feitos a amigos, epitáfios e aqui - jaz — tal
como o poeta Bocage o fez em famoso soneto.
Eis o soneto:
Já Bocage não sou!... A cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento,
Eu aos céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.
Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento.
Musa!... Tivera algum merecimento,
Se um raio da razão seguisse, pura!
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Eu me arrependo; a língua quase fria
Brade em alto preção a mocidade,
Que atrás do som fantástico corria:
Outro Aretino fui... A santidade
Manchei... Oh!, se me creste, gente ímpia,
Rasga meus versos, crê na Eternidade!
Jose Camelo de Melo, um dos autores de cordel mais roubados em
sua autoria (segundo muitos historiadores), deixou o próprio epitáfio em
versos, mas não temos confirmação se foi atendido na sua pretensão:
Peço a todos os meus amigos
que depois da minha morte
escrevam sobre o meu túmulo
numa lousa muito forte:
Jose Camelo de Melo
cantou, mas não teve sorte.
O famoso glosador açuense Moysés Lopes Sesyom, poeta de vida
curta e sofrida, sentiu, com o faro apurado comum aos cantadores, a
presença da marvada a lhe rodear com sua foice traiçoeira. Não hesitou
em pegar a pena e usando a verve que aplacava a dor nos momentos
difíceis, procurou exorcizar aquele momento cruel:
Mote:
Foi chegada a minha hora
Meus filhos ficam sem pai.
Glosa:
Valha-me Nossa Senhora
Mãe de Deus, do Redentor
Valha-me Nosso Senhor
Foi chegada a minha hora
Eu me vou de barra a fora
Como todo mundo vai
Por despedida dou um ai
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Diante desse fracasso
Se Deus não botar o braço
Meus filhos ficam sem pai.
Mas como era mesmo chegada a hora de render a alma ao Criador,
só lhe restava deixar nas folhas amarrotadas os seus lamentos, como este
datado de 24/2/1932:
A última
Agora desenganei-me
Eu digo alto e em bom som
Topei: agora é sem jeito
Vai embora o Sesyom.
E no dia 09 de março de 1932, o poeta popular Moysés Lopes
Sesyom, da cidade de Açu, exalou seu ultimo suspiro.
O multifacetado Mário Lago – ator, escritor, poeta, compositor –
com o livro Chico Nunes das Alagoas, resgatou para a memória da
Literatura de Cordel o canto e a glosa de Francisco Nunes Brasil, cuja
poesia de improviso era por demais aproximada em dramaticidade e estilo
a Moysés Lopes Sesyom, a Zé Limeira, a Riachão e a muitos outros
honoráveis improvisadores.
O que fez e rimou um repentista despreocupado de tipografias ou
sequer cadernos de rascunho, só mereceu letra de imprensa graças à
curiosidade talentosa de Mário Lago, que não hesitou em trilhar o
caminho apontado por Zé do Cavaquinho, contemporâneo de Chico
Nunes.
De coincidência em coincidência Mário Lago foi ajuntando os
pedaços da vida do repentista ate formar o retrato-falado, capaz por si só
de entronizar Chico Nunes e colocá-lo lado a lado com outros grandes
improvisadores.
E tudo por causa de uma pergunta, que deixou Mário Lago arrasado
(...) diante da (minha) ignorância em relação àquele nome:
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-
“Nunca ouviu falá no Chico”?
Chico Nunes era boêmio dos típicos, e fatalista. A morte
acompanhava quase sempre seus versos. E quando a besta-fera foi se
aproximando não vacilou em improvisar:
O Rouxinol da Palmeira
No verdor da mocidade
Brincou e fez muitas farras,
Hoje caiu entre as garras
Da negra fatalidade...
Só tem de seu a saudade,
Que e a sua companheira,
Junto a ele a vida inteira
Acalmando seu sofrer,
Porém só pensa em morrer
Rouxinol da Palmeira.
Esta magro de se acabar,
De carne só tem a língua
E só não morreu à míngua
Devido ao senhor Gaspar
E a uma preta que, pra ajudar,
Trabalha a semana inteira.
Até em dia de feira
Faz tudo com rapidez,
Pra não se acabar de vez
Rouxinol da Palmeira.
Da vida material
Já perdeu a esperança,
Não assistiu mais festança
E a pulso viu o Natal.
Vê chegar o carnaval
Em sua hora derradeira.
No sábado de Zé Pereira
Deve estar no necrotério,
Dormindo no cemitério
Rouxinol da Palmeira.
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-
Sente grande ansiedade
Com a tal da hidropisia.
Breve o corpo na terra fria
Descansará, é verdade,
E o espírito na eternidade,
Em sua hora derradeira,
Pede a Deus e a padroeira
Que perdoem seus pecados
E tudo que fez de errado
O Rouxinol da Palmeira.
Não deixando escapar a frase triste de um companheiro que o
visitava, Chico Nunes - O Rouxinol da Palmeira, poeta ate a beira da
sepultura, glosou Faz pena Chico morrer:
Tenho de morrer um dia,
Vai se dar um desprazer.
Minha morada vai ser
O caixão na terra fria.
A dor da hidropisia
Veio o Chico derreter...
Quem mandou você beber?
Sinto essa dor rigorosa...
Pra quem gostava de glosa
Faz pena Chico morrer.
Esta se aproximando o dia...
Vou acompanhando a fase.
Numa cova um corpo jaz
Debaixo da lousa fria.
Alguém não terá alegria
Quando isso acontecer.
O poeta vai dizer:
Que triste acontecimento
Sumir-se esse elemento...
Faz pena Chico morrer.
Quando badalar o sino
Da catedral ou matriz,
Um pergunta e outro diz:
- 160
-
Quem tomou novo destino?
Então responde o menino:
Foi Chico, não pode viver.
Dizem que sabia fazer
Tanto verso improvisado...
É certo, está sepultado...
Faz pena Chico morrer.
Chegando esta conclusão
Será a cova meu abrigo,
Só os vermes no meu jazigo
Devoram meu corpo então.
O espírito na solidão
Voará sem eu querer,
E, para me proteger,
É só Deus na eternidade.
Na terra fica a saudade...
Faz pena Chico morrer.
Felicidade chegou,
Em minha porta bateu,
No mesmo instante voltou.
O castigo se aproximou
Sem nada também dizer,
Foi somente pra trazer
Doença triste pra mim.
Até que estou vendo o fim...
Faz pena Chico morrer.
Com quarenta e oito anos,
Que vivo porque Deus quis,
Só não fui mais infeliz
Por viver entre os humanos.
O mal, com seus desenganos,
Está me fazendo sofrer,
Tirou de mim o prazer,
Só me ofereceu martírios...
Sentindo a alma em delírios,
Faz pena Chico morrer.
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Passei um tempo feliz
Quando tinha uma querida,
Mas a haste da minha vida
Ela cortou pela raiz,
Em estrídula risada diz:
Vou lhe ensinar a viver
Mas o que soube fazer
Foi entristecer minha vida
Deixo a minha despedida
Faz pena Chico morrer.
Na mesma obra Mario Lago reúne alguns versos ofertados pelos
amigos ao pranteado repentista. O Correio Palmeirense e em vários
outros jornais alagoanos, páginas e mais páginas foram dedicadas ao
Rouxinol da Palmeira.
O cantador paraibano conhecido por Voador, amigo de Chico,
rendeu sua homenagem ao finado:
Morreu, partiu, acabou-se
O poeta alagoano.
Pra mim, que sou paraibano,
Minha esperança findou-se.
Morreu meu sorriso doce
Em ouvir dessa maneira
Que naufragou a bandeira
Do luar do mês de abril:
Francisco Nunes Brasil,
O Rouxinol da Palmeira.
E Eronildes Lemos sintetizou todos os 48 anos vividos por Chico
Nunes, que ademais são as vidas da maioria daqueles poetas populares
que viviam a esmo pelo nordeste plantando glosas ao leu...
Cantou coco com pandeiro,
Pra rimar era doutor,
Não ligava pra dinheiro,
Só jogo, bebida e amor...
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Quando Jose Pedro Pontual faleceu em Recife no ano de 1975, dois
conhecidos poetas prestaram uma justa homenagem aquele repentista e
poeta que partia para a sua última morada. Pontual foi uma das principais
figuras do filme Nordeste: Cordel Repente Canção de Tânia Quaresma.
Primeiro foi J. Borges quem se manifestou:
29 foi o dia
e setembro foi o mês
que a morte mais outra vez
com a sua covardia
ofendeu a poesia
de uma maneira tal
um poeta tão legal
dos outros se afastou
muita gente lamentou
a morte de Pontual.
Foi ele um poeta forte
que viveu sofrendo dores
mas tinha amigos doutores
que lamentaram sua morte:
no Brasil de Sul a Norte
Pontual já tinha andado
foi poeta inspirado
fez grandes publicidades
pra nós deixou saudades
para sempre ao nosso lado.
Mesmo estando em Aracaju, Manoel D'Almeida Filho não deixou de
homenagear o amigo perdido:
Foi poeta cantador
e foi um bom folheteiro
deixou para o mundo inteiro
seus escritos de valor;
foi muito gracejador
no campo da poesia
ate que chegou seu dia
de baixar à sepultura
- 163
-
levando a sua bravura
dos versos que escrevia.
Jose Pedro Pontual
mais um poeta que parte,
levando consigo a arte
que tinha o seu ideal,
na vida espiritual,
ele não sente mais dor...
que Jesus, o Salvador,
perdoe os pecados seus,
seja acolhido por Deus
no Tribunal do amor.
José de Souza Campos motejou e glosou o verso mais um poeta
morreu, em homenagem ao que se foi:
Meus irmãos, a nossa vida
é como uma luz acesa
completa de incerteza
não tem segura guarida;
uma vida corrompida
é carne que apodreceu
o homem hoje esqueceu
os escritos do Messias
na conta dos nossos dias
mais um poeta morreu.
Muito tristonho eu fiquei
do irmão ter ido agora
não sei qual e a hora
que eu também partirei
a Deus eu 1he entregarei
digo em pensamento meu
que o desencarne seu
não foi em sadio abrigo
por isto eu lamento e digo
mais um poeta morreu.
- 164
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Bem lembrado ainda estou
foi Chico a três de dezembro,
29 de setembro
Pontual desencarnou
para mim ele passou
pela vida e não viveu
se ele agora entendeu
o que estamos entendendo
talvez nos veja dizendo
mais um poeta morreu.
O consagrado Leandro Gomes de Barros tinha uma cisma danada
com a morte. Certas coisas não se deviam fazer quando um cristão
arriasse de popa: era caipora. Por isso fez questão de recomendar
expressamente:
Se Algum Dia eu Morrer
Preveni a todos cá de casa
Por acaso um dia eu falecer
É favor ninguém chorar perto de mim
É caipora com zoada se morrer.
Ataúde se alguém quiser fazer
Não precisa de madeira delicada
Eu prefiro as tabuas da vasilha
Onde bota-se aguardente imaculada.
A mortalha também isso dispenso
Água benta no cadáver nem um tico
Antes quero uma freira inda moca
Que me exorte cantando o mangirico.
Não precisa de frade, preveni
Para que quero eu esse prefácio
Eles andam com cordões de São Francisco
Amarrem com ales a mãe de Ignácio.
E também não quero freira
Toda vida não gostei de romaria
E não quero que os meus colegas
- 165
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Digam lá que eu carrego bruxaria.
Digo isso apenas prevenindo
Não confio na minha mocidade
Tenho apenas 72 janeiros
Pouco mais passei da flor da idade.
Brincando com a própria existência, como era comum em Leandro
Gomes de Barros (ele gostava de se definir como o primeiro humorista do
Brasil), lamentavelmente o festejado poeta faleceu aos 53 anos, na flor da
existência, pois.
Chamado por muitos de O jornal do sertão, o folheto de cordel
muitas vezes transforma o autor da poesia em repórter. Pois bem. O
poeta repórter é aquele que, atendendo aos reclamos de seus leitores,
responde mais rápido ao fato, a uma ocorrência e leva a notícia
imediatamente ao conhecimento do seu público. Esse elemento já foi
muitas vezes estudado e dissecado pelos estudiosos da poesia popular.
Um dos mais destacados poetas desse segmento – senão o mais
destacado de todos – foi o pernambucano José Soares. Explorando até as
últimas conseqüências e com talento invulgar esse riquíssimo filão, Jose
Soares consagrou-se com as tiragens exageradas de seus folhetos. Dez mil,
vinte mil, cinqüenta mil exemplares vendidos, foram marcas alcançadas
pelo poeta-repórter na capital pernambucana, de folhetos que
registravam a morte de brasileiros ilustres. O recorde de José Soares,
porém é do folheto que anunciou a morte do Presidente Juscelino
Kubitschek – duzentos mil exemplares vendidos!
Orígenes Lessa (A voz dos poetas, FCRB - 1984), publicação que
registra uma série de depoimentos e entrevistas que o escritor fez durante
uma viagem ao nordeste, diz que José Soares – o Poeta Repórter – tinha
vários originais de folhetos prontos, sobre personalidade, artistas e gente
famosa, que estava vai-não-vai, ameaçando morrer, só aguardando o
desfecho fatal para ser lançado na praça.
A boneca é o folheto semi-acabado, com o objetivo de narrar a vida
e a morte de qualquer personalidade. Deixa-se apenas o espaço, para
preenchimento posterior, dos dados e datas mais importantes sobre o
fato, o desenlace, a coisa que mais virar chamar a atenção do público.
- 166
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Realmente são folhetos fáceis de fazer, bastando ter acuidade e...
naturalmente, muito talento. José Soares pegava esses versos já prontos,
encaixava uma meia-dúzia de sextilhas nesse folheto mentalmente
padronizado e – para ele – tudo ficava mais fácil.
Mas, posteriormente, dois fatos vieram engordar o folclore desse
estilo de fazer poesia:
l) A recente serie dramática de operações pelas quais passou o
querido Presidente Tancredo Neves levou o poeta feirense Franklin
Maxado a uma vigília constante em frente ao Instituto do Coração em São
Paulo. Maxado, ao calor da emoção, como ele mesmo confessou em
entrevista ao jornal O Globo, havia preparado a boneca do folheto sobre a
morte do Presidente Tancredo Neves desde a sexta-feira santa, dia
05/04/1985. A notícia vazou e eis o Franklin Maxado de novo execrado
por alguns colegas e defendido por outros tantos. Existe algum tipo de
ética em jogo?
Tancredo Neves resistiu a um longo calvário (como todos sabem) e
Franklin Maxado retornou ao Rio de Janeiro. A polêmica se reacendeu,
tendo Raimundo Santa Helena programado um desagravo ao Presidente
Tancredo Neves, ao mesmo tempo em que Franklin Maxado se justificava
relembrando os dois antecedentes acima citados, reforçando o argumento
com o fato de que vários jornais e emissoras de TV também já tinham
preparado artigos e programas na expectativa do desenlace fatal.
Dito e feito. Com o falecimento do Presidente Tancredo Neves no
dia 21/4/1985, Franklin Maxado movimentou-se e trinta minutos após o
desenlace fatal, lá estava ele em plena Cinelândia, centro nervoso do Rio
de Janeiro, a distribuir os seus folhetos. Com crítica ou sem crítica o poeta
foi à luta e venceu.
Por outro lado, o desafeto Raimundo Santa Helena há algum tempo
vinha se intitulando o “poeta-repórter”, título que foi criado e assinado
por José Soares por durante muitos anos, justo pela rapidez com que
publicava a notícia da morte de gente famosa ou de acontecimentos
trágicos, algumas vezes mais célere do que o jornal! Marcelo Soares não
gostou nada de ver o título de seu falecido pai ser usurpado, sem que
Raimundo Santa Helena sequer formalizasse ao herdeiro a sua intenção.
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Pois o Raimundo Santa Helena, agora arvorado de crítico, defensor
da ética e outros chamarizes, um tempo foi também um poeta de lápide,
sendo sempre um dos primeiros a cantar a morte alheia, a homenagear
falecidos célebres, sempre de olho num espaço televiso ou jornalístico. Foi
pra se livrar desses verdadeiros “urubus de cemitérios” (sic) que o
cartunista Jaguar, editor do Pasquim, publicou nas páginas daquele
hebdomadário uma nota proibindo expressamente o poeta Raimundo
Santa Helena, de fazer o obituário dele – Jaguar em cordel.
O poeta Sá de João Pessoa, confessadamente dando uma de
“vingador” do poeta José Soares, que se viu traído pela argúcia do escritor
(Orígenes Lessa), preparou um folheto intitulado “A Vida e a Morte de
Orígenes Lessa”, deixando-o engavetado. Miseravelmente alguns
exemplares escaparam-lhe das mãos e eis o folheto e o segredo vazado e
explorado, já a enriquecer alguns arquivos de colecionadores e de casas
de cultura.
Esse affaire provocou a seguinte troca de correspondência entre o
poeta Sá de João Pessoa e o escritor Orígenes Lessa, conforme vai narrado
a seguir, primeiramente a carta do poeta popular, depois a resposta do
escritor de “O feijão e o sonho” e mais uma centena de obras belíssimas:
Rio de Janeiro, 10 de maio de 1985.
Caro escritor e poeta Orígenes Lessa.
Muito já se tem falado sabre o folheto A Vida e a
Morte de Orígenes Lessa.
Para evitar que todo esse folclore sobre o assunto
se estenda, passo a explicar o sucedido.
Tudo começou com a leitura do volume A Voz
dos Poetas, capítulo sobre o poeta-repórter Jose
Soares.
Na época conhecia Marcelo Soares, filho do
poeta, também poeta e gravador e vi na publicação
- 168
-
daquele texto uma “traição” tanto ao depoente como
ao poeta desaparecido.
Esse primeiro sentimento foi a mola para a
produção do folheto em causa, sem preocupação
quanto ao fato de que Orígenes Lessa, como escritor e
pesquisador, também tinha obrigações literárias e
históricas.
Enfim, nada havendo o que detivesse o impulso,
foi feito a folheto, sem haver impressão do mesmo.
Algumas cópias xerocadas, porém, começaram a
circular e se espalharam, caindo nas mãos de
colecionadores, instituições, etc.
Aquela posição original, que originou o folheto,
ha muito já desapareceu em mim.
Dou o caso como encerrado, com esta carta, que
de há muito já deveria ter sido remetida ao ilustre
escritor.
Remeto uma cópia xerocada do folheto, agora
já transformado mais em homenagem que uma
mera vingança, além da confissão do próprio autor
para que a coisa não fique eternamente de auditu.
Com esta, muda também o enfoque do folclore
sobre o caso, que passa a ser outro: pela primeira vez
na história da poesia popular o objeto da
homenagem post-mortem recebe-a em vida!
Amém!
(as) Sá de João Pessoa
- 169
-
Ao que Orígenes Lessa escreveu uma carta em resposta, só que toda
feita em versos de cordel:
Rio de Janeiro, 18 de maio de 1985.
“Bilhete ao poeta Sá de João Pessoa, autor de A
Vida e a Morte de Orígenes Lessa.
I
Colega peço licença
pra baixar no seu terreiro
que lhe quero agradecer
o necrológio maneiro
com que você antecipa
meu suspiro derradeiro.
II
Quando o meu dia chegar
para alguns um dia atroz
vou procurar o Leandro,
quero ouvir-lhe a nobre voz,
vou buscar Chagas Batista
que e mestre de todos nós.
III
Vou pedir lição de verso
que eu não quero fazer feio
na hora de aparecer
de repente em chão alheio
pra contar as novidades
que vi dos mortos no meio.
- 170
-
IV
Muito povo me interessa
no vasto império do além,
eu quero levar um papo
com o velho Matusalém,
vou ver se Adão me recebe
e a dona dele também.
V
Se ao morrer se arrependeram
(só no céu vou me esbaldar)
eu gostaria de os ver,
para um pé também lhes dar,
Hitler, Nero e outros patifes,
mil pecados por pagar.
VI
Todos eles, bons ou maus,
que da terra se mandaram,
na minha cuca em delírio
vertiginosos bailaram
ao simples ler dos seus versos
que tanto me impressionaram.
VII
Logo vi, porém, que tudo
não passava de ilusão
minha hora não chegara,
ia haver continuação,
inda um pouco me sobrava
pra viver no mundo cão.
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-
VIII
Não sei que tempo me resta,
não sei que tempo será...
um ano? um mês? um minuto?
que tempo Deus me dará?
sei que a morte e uma pergunta,
quando vem, quem sabe lá?
IX
Mas agora estou sereno,
vou viver em paz imensa
não ha vida que me assuste,
não ha morte que me vença.
Pra ganhar seu necrológio
qualquer morte recompensa...
Rio, 18.5.1985
Só como curiosidade é de rir das armadilhas que os escritores
aprontam: enquanto o poeta popular Sá de João Pessoa busca exprimir
em sua missiva um linguajar pretensioso, pseudo erudito, usando a
expressão latina de auditu – de ouvido (exibição corriqueira própria de
cordelistas), o escritor Orígenes Lessa, consagrado romancista, dá a forma
de cordel ao bilhete, caracterizando de forma expressiva a simbiose
existente entre ramos tão distantes – ou tão próximos? – da nossa
literatura.
A história não acaba por aqui...
O próprio autor deste livro escreveu uns versos ordenando os
últimos pedidos, que na verdade – por diversas circunstâncias – nem
sempre são atendidos:
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CERTAS EXIGÊNCIAS NO TRATO DESTE CORPO QUANDO DILACERADO
Salomão Rovedo
“¿Y sí en lugar de la felicidad indiferente,
irrisorios y trágicos que somos,
nos saluda un genio maligno?”
Alberto Villanueva
Não quero choro nem vela, não quero rosa nem flor. Quero riso e cor,
roupa simples no último trajar: bermuda, chinelo e camiseta.
Não quero reza nem encomenda, só uma lânguida incelença, como quem
louva a despedida dos amigos que vão pra guerra.
Enterrem meu coração em outro peito, de preferência feminino, dos olhos
façam bom uso e aproveitem outros órgãos utilizáveis.
Pastor? Nem pastar! Nem macumbeiro! Padre? Nem pensar! (só se for
dos bem safados, com cambada de mulher e filho), os restos do velho
corpo, adubo não dará, mas sim uma bela fogueira.
Do que é sem proveito, juntem com o que escrevi, mais os livros que não
li, mulheres que não amei, tudo que não aprendi: é brasa pra bom
churrasco. Nenhum anúncio em jornal quanto a jogar as cinzas ao mar.
Cumprida a pagã liturgia, deixem-me em paz comigo mesmo: no ato
seguinte estarei em busca de novos e leves amigos...
Nem missa, nem necrológio, nem in memoriam de 7º, 30º ou 360º dia,
relembrem esta figura em papos informais, regados a chope e cachacinha,
tira-gosto de torresmo, caju, coxas gloriosas, sacanagem, piadinha.
Quem gosta da boa vida: não esqueça o champanhe, o uísque com gelo, o
rum com limão, talvez uma límpida tiquira de Barreirinhas.
Não sou de negar o vinho chateau isso e chateau aquilo ou um rioja añejo:
se bem acompanhados de queijos, pães, frios em fartura – bem ao gosto
daqueles que ficam para lembrar os amigos que se vão assim de repente,
sem mais nem menos, mas ficam guardadinhos na memória.
Logo a seguir esqueçam-me, mergulhados de corpo e alma, nos braços e
nos seios de uma mulher...
(do livro “Amaricanto”, com baixa grátis em: http://www.dominiopublico.gov.br)
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-
O poeta imortal:
academias e acadêmicos
Mote:
O poeta de cordel
Nasce e morre imortal.
Glosa:
Quem sempre bebeu o fel
Das batalhas pelas ruas,
Quem canta as coisas mais cruas:
– O poeta de cordel!
Andando de léu em léu
Mil folhetos no embornal
Sabendo que é o tal
Na luta do dia a dia
Quem vive da poesia
Nasce e morre imortal!
Sá de João Pessoa
Elias Imortal
O poeta popular traz consigo a ilusão ingênua de que pode penetrar
no mundo mais alto da intelectualidade e fazer parte da fechada confraria
que mantém nas mãos o poder do pensamento e das letras.
Por isso ele procura manter-se em contato permanente com
escritores e poetas de alta nomeada que estejam mais acessíveis,
remetendo aos mesmos seus novos folhetos, alimentando as instituições
culturais com obras suas e de seus confrades.
Escritores que mantinham certa afinidade com a literatura de cordel
– tanto no passado como hoje – sempre estiveram na mira dos poetas
populares: Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de
Melo Neto, Orígenes Lessa, foram alguns dos escritores que se
confessavam admiradores da poesia popular e não se incomodavam com
o assédio.
Outro destaque das letras que adotam o cordel como fonte de
inspiração é Ariano Suassuna. Mas não são poucos aqueles que respeitam
o trabalho dos poetas populares e exploram o riquíssimo filão dos
romances rimados para deles tirar alimento para seus trabalhos
individuais.
E é só. Nada mais fazem – nem podem fazê-lo – para elevar o nível
de qualidade e de aceitação da literatura de cordel. A ambição de
participar desse bloco de primeira linha se frustra ainda mais, isso porque,
se o poeta popular ascender os degraus que sonha, passa para outro nível
e não é mais cordelista.
Desde muito que o poeta popular é descontente dessa posição
ambígua que tem com as letras brasileiras. Olhado e estudado como se
fosse bicho de zoológico, rebela-se contra essa postura, mas fica somente
na revolta, não vislumbra nenhuma perspectiva de escapar desse
posicionamento.
É bem verdade que uma nova geração de poetas populares chegou
eivada de conhecimento e sapiência, alguns nomes cuja formação escolar
é superior, cheia de diplomas, de leituras, de universidades, que fazem
renascer as ambições que o façam saltar para fora do universo do cordel.
Porém, nem mesmo essa posição elevada que logrou alcançar
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-
exitosamente, tem o poder de transformá-lo num candidato capaz de ser
candidato, nem mesmo ser eleito, para uma vaga nas academias de letras.
Ante essa triste e crua realidade não são poucos os que buscam
suprir tal frustração fundando dezenas de associações representativas,
muitas das quais nascem do idealismo e acabam morrendo no papel.
Andando de pé no chão e mais afeiçoado aos senões e desilusões da
vida, o poeta Sá de João Pessoa, num folheto chamado “ABC – Está
fundada a academia” procura demonstrar a seus pares que tipo de casa
própria que cabe ao poeta popular sonhar.
Na realidade, a Academia do Cordel e da Cachaça – ABC – foi uma
idéia até certo ponto séria do escultor Zé Andrade, que pretendia fundar
uma associação de classista que de fato funcionasse. Como todas as
outras idéias, essa também morreu no nascedouro...
No entanto, poeta é poeta. Diante da animação de Zé Andrade e da
insistência real com que projetou a criação de mais uma academia para
abrigar os nomes da poesia popular, o tema recebeu a devida atenção por
parte de Sá de João Pessoa, que buscou interpretar com arte a visão
mágica do escultor.
Pedindo no início inspiração às musas criadoras – quem sem ela
nenhum versículo se faz – o vate paraibano faz uma conclamação.
“Chamo todos os poetas
Do nosso Brasil querido
Violeiros e gravadores
Todos que acham sentido
Na cultura popular
Assumam logo partido.
“É hora de haver união
Para esse nosso mister
A criação da ABC
Há muito o tempo requer
Para que o poeta fique
No lugar que o povo quer.
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-
Como não poderia deixar de ser, estando no Rio de Janeiro, a
fundação da ABC foi efetivada no Campo de São Cristóvão, dia de feira,
domingo de sol, reduto onde todos os poetas, cantadores, violeiros,
repentistas e forrozeiros se divertem e batalham o seu ganha-pão:
“Domingo em São Cristóvão
Foi grande a animação
A pedra fundamental
Da nobre instituição
Foi brindada com cachaça
Carne seca com feijão.
Quando do seu próprio nascimento, a ABC tem a inspiração dividida
entre outras artes e acepipes, mas também entre a poesia e Deus:
“Daremos o nosso apoio
Sem haver desarmonia
A Academia Brasileira
Do Cordel e Cantoria
Que tornará imortal
Do povo a sabedoria.
“A Academia de Cordel
Da cantoria é o fruto
Deus já foi convocado
Para fazer o estatuto
Se Ele não puder vir
Que mande o substituto.
“Leandro Gomes de Barros
Será da ABC o Patrono
Ele foi um pioneiro
E merece qualquer trono
Outras cadeiras, porém
Serão livres, não tem dono.
A Academia vai tomando forma e se transformando numa coisa
real. Mas – como não poderia deixar de ser – esse tratamento
especialíssimo dado pelo poeta – nada mais se compara a ABC com as
demais academias terrenas...
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“A sede da Academia
Tem como teto o céu
Cortinas são de estrelas
As nuvens são como véu
O seu hino é declamado
No repente e no cordel.
“Um edifício de ar
De setecentos andares
Elevadores com asas
...
Biblioteca sem par
E sons espetaculares.
“Cem mil e cinco cadeiras
De vento e diamantes
Para o imortal sentar
Tem que ser que nem gigantes
Na viola e no cordel
No aboio e no berrante.
“Tome nota minha gente
Do endereço da ABC
Fica na Rua da Curva
Num prédio que não se vê
Na Capital Federal
Do país de São Saruê.
A entidade recém fundada se pretende onipresente. Estará onde
estiverem a poesia popular, as manifestações de cordel, as pessoas que
vivem do misterioso mundo das rimas. Todos os elementos que cantam a
sabedoria popular estarão apoiados pela ABC.
“Para entrar na Academia
Nem precisa inscrição
Basta ser cordelista
Da cidade ou do sertão
Mexeu com cordel está lá
Mesmo que seja intrujão.
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“Para entrar na Academia
Tem de ser bom no repente
Bom tocador de viola
Um bamba na aguardente
Triangulo – sanfona e bumbo
Faz parte de nossa gente.
“Também nela tem assento
Xilógrafo e ilustrador
Eles dão vida ao cordel
E tratam com muito amor
O folheto e o romance
Seja qual for o autor.
As reuniões serão feitas igualmente de um modo característico a
tais entidades, que alguns consideram anormal. O tradicional chá-dascinco (essa tradição herdada dos britânicos) será servido, mais não
necessariamente às cinco horas britânicas em ponto, mas a qualquer hora
e momento.
Isso se houver mesmo chá, porque o mais provável é que seja
servida uma branquinha, imaculada, bem nordestina, tal e qual a
Maribondo, a Olho d’água, a Pitu original ou a Caranguejo que hoje
escasseia.
Para substituir o biscoitinho e a torrada dos chás tradicionais, nesse
caso especial, vai ser servido o tira-gosto de sarapatel, espetinho de tripa
na brasa, aipim frito ou a enfiada de avoante assada na brasa.
“A sessão da Academia
Começa na alvorada
Vai-se pelo dia a fora
Invadindo a madrugada
Os anos vão se passando
E jamais será encerrada.
“Uma traga de cana
Uma colher de feijão
E começa a cantoria
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Com peleja e discussão
O violeiro decreta:
– Está aberta a sessão!
“Não tem sessão sem poeta
Cantador e violeiro
Discurso se lê em verso
E acompanha o sanfoneiro
E pra faltar não tem vez
Canta quem chega primeiro.
“Serenada a cantoria
Um novo autor se apresenta
Lê versos de sua lavra
O ambiente logo esquenta
Vara a noite chega o dia
Quem é fraco não agüenta.
“O chá da Academia
É bebido a qualquer hora
Bebe o pessoal que chega
Brinda com quem vai embora
Quem fica está contente
Quem vai alegre não chora.
“Cada vez é uma festa
Seja de noite ou de dia
Muita bebida e comida
Falatório e alegria
Assim se faz a sessão
Da plural Academia.
“Barraco banca bancada
Que mais parece uma feira
Os membros não têm fardão
A turma quer brincadeira
Todos aqui têm acesso
Gente sem eira nem beira.
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A publicação desse folheto ensejou uma crônica do poeta Carlos
Drummond de Andrade na sua coluna do Jornal do Brasil de 16/07/1983,
parte de uma série de três artigos dedicados à Literatura de Cordel.
Foi por ocasião do 80º aniversário de Orígenes Lessa, em solenidade
na Casa de Rui Barbosa, em que estiveram presentes todos os membros
do colegiado daquela instituição, mais uma quantidade de poetas e
escritores. Entre tantos amigos e colegas pontificaram Carlos Drummond
de Andrade e José Sarney, que ocupava o cargo de Presidente da
República.
No dia seguinte sai a crônica de Carlos Drummond de Andrade, que
registra:
“Muita gente acudiu ao aniversário de Orígenes Lessa. Não
faltaram cordelistas e repentistas que a mim deixaram impressão viva: a
de que atingimos finalmente um grau de evolução cultural em que um
escritor de formação erudita é amado pelos cantores de feira”.
Logo a seguir o poeta observa e registra atentamente a
movimentação dos poetas populares:
“Cordelistas não dormem em serviço. Ali mesmo, enquanto
Orígenes autografava, eles, com seus improvisos e violas adestradas,
distribuíam suas produções mais recentes, como sempre vinculadas à
atualidade. Notei que dois temas ocupam hoje a atenção dos nossos
poetas populares: a criação de uma Academia Brasileira de Cordelistas e
a candidatura de um deles à Presidência da República. Sá de João
Pessoa dá prioridade à fundação do grêmio cordelista. Chega a afirmar,
no título do seu novo folheto: “Está fundada a Academia”.
O poeta cita grande parte do folheto e encerra a crônica afirmando
que “os poetas populares, com toda a força, integraram-se na sociedade
brasileira e passaram a ocupar espaço cultural nas grandes cidades”.
Somente assim, de brincadeira em brincadeira, de falação em
falação, pode o poeta de cordel aspirar à cadeira de uma academia, vestir
o fardão imaginário da tão sonhada imortalidade. Somente no mundo da
safadeza e da fantasia pode se colocar no mais alto patamar das
academias a Literatura de Cordel. Só assim essa pura manifestação
popular irá conviver lado a lado com os imortais da Casa de Machado de
Assis.
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-
Ao poeta popular não importa que esse sonho não passe de um
pesadelo, não importa que a sua visão mágica esteja vislumbrando
miragens num deserto de ilusões. Ele sabe e confessa de si para si que o
que faz é importante, que sua poesia é representativa, faz parte de um
segmento da cultura nacional, se orgulha de ser chamada Literatura de
Cordel.
Sabe que a insistência por mais espaço junto ao mais alto escalão da
literatura e da poesia é simbólica, mas válida, não se perde em solo árido.
Mas não ignora que o simples fato de participar de uma academia de
letras verdadeira, significa um grande passo para o poeta é uma estrada
ilimitada para a Literatura de Cordel, já que traduz no seu reconhecimento
como arte.
O poeta Raimundo Santa Helena, paraibano há muito tempo
radicado no Rio de Janeiro, apresentou-se ousadamente como candidato a
uma vaga na Academia Brasileira de Letras. Assim como a candidatura era
simbólica, os votos que recebeu – quatro – foram também simbólicos.
Foram os votos prováveis de Jorge Amado, Orígenes Lessa, Rachel
de Queirós e Ariano Suassuna, escritores comprometidos com a cultura
popular, grandes apaixonados pelo cordel, que incluem em seus livros
várias ocorrências e cenários em que os tipos populares são personagens.
O cordelista baiano Franklin Maxado – poeta e xilógrafo – deixou
bem claro o seu protesto pela candidatura de Santa Helena, achando que
a honraria, se fosse realizada, caberia não a ele, mas a Rodolfo Coelho
Cavalcante, cuja produção e influência na Literatura de Cordel foram
consolidadas aos longos dos anos em que militou nas praças e mercados,
ao passo que o candidato que se apresentou não tinha o mesmo cabedal.
Na verdade Raimundo Santa Helena somente começou a se dedicar
inteiramente à Literatura de Cordel após sair reformado da Marinha
Brasileira, ao passo que Rodolfo Cavalcante sempre foi um dos pilares da
poesia de cordel, com trânsito livre dentro da confraria dos trovadores,
além de manter uma liderança indiscutível entre os poetas.
O prestígio de Rodolfo Coelho Cavalcante atravessava as fronteiras.
Muitas vezes o vate baiano era convocado para dirimir as dúvidas, avalizar
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-
tal e qual nome, dar a sua assinatura em projetos que fossem de seu
agrado. De posse de todo esse poder, no entanto, não era difícil ocorrer
tantas divergências, algumas inimizades e muitas queixas contra esse tipo
de atuação dúbia, mas pretensamente soberana.
Posteriormente essa falha de reconhecimento foi corrigida: Rodolfo
Coelho Cavalcante foi agraciado com a Medalha Machado de Assis,
outorgada pela Academia Brasileira de Letras em 22/11/1984, em
solenidade dirigida pelo então presidente Austregésilo de Athayde.
O poeta de cordel não quer só mais um poeta popular. Quer
também se igualar aos demais representantes da literatura oficial. Quer
ser um escritor, no amplo conceito da palavra e para tanto se esmera em
demonstrar outras qualidades que possui, fugindo das sextilhas que
conceituam os romances e folhetos.
Mostrar que é poeta capaz de produzir um soneto, por exemplo,
uma forma poética para a qual existem regras, que exige técnica,
criatividade e um talento acima do normal, é importante para igualar-se
aos demais. Por essa razão cresce entre os cordelistas a produção de
obras que fogem do conceito popular, como outras formas clássicas:
décimas camonianas, quadras à moda provençal, trovas, são cultivados
com muito ardor.
Mas o que pode ser um atrativo, também pode ser uma armadilha.
O que pode ser uma abertura, uma recepção, pode esconder os malefícios
da discriminação, um chamamento ao ridículo. Muitos poetas que
invadem esse mundo misterioso da intelectualidade se dão conta disso e
retornam, decididos, para o seu pequeno grande mundo da Literatura de
Cordel.
Demonstrando que o imaginário universo do qual pretendiam fazer
parte se transformou numa ilusão, alguns poucos poetas registram esse
rito de passagem para a posteridade. Deixam nas produções biográficas,
nas antologias, as coisas de seu tempo, reproduzem poesias de colegas
contemporâneos, as historias similares de parceiros cantadores.
Alguns exemplos de trabalhos poéticos extra-cordel aparecem
dando pequenas indicações de que – de fato – muita coisa poderia ser
feita no âmbito da poesia clássica.
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-
Um dos poetas que se firmaram em outro ramo da poesia foi
Rodolfo Coelho Cavalcante, que cultuou com muita ênfase o
trovadorismo, sendo aceito com o mesmo êxito e consideração tanto
pelos trovadores quanto pelos poetas populares.
Existe, sim, uma diferença entre poesia popular e trovadorismo. Um
dos exemplos mais cabais dessa distinção são as entidades de classe que
representam as duas culturas. Tanto a trova como o cordel tem suas
representações próprias e são como água e óleo – não se misturam.
Tanto que, apesar de Rodolfo Coelho Cavalcante ter se
autodenominado trovador, isso não significa que o vínculo se mantenha
equânime entre os dois movimentos. Tanto na poesia popular quanto no
trovadorismo houve quem não aceitasse esse tipo de coligação, rejeitando
a posição que Rodolfo Coelho Cavalcante assumira nas duas facções,
tendo em vista que ele era Presidente e Fundador de duas entidades
autônomas de Trova e de Cordel.
A denominação de trovador – que vários cordelistas assumiram
como expressão de sua atividade – vem da acepção dada aos antigos
menestréis que cantavam os poemas acompanhados de instrumentos
musicais. Assim ficou o nosso trobador: rabequista, violeiro, sanfoneiro,
coquista. Esses que cantam seus folhetos e canções com algum
instrumento (porque tem os que gostam de cantar a plena voz) e não por
serem compositores de trova ou trovistas.
Rodolfo Coelho Cavalcante foi exceção desse comportamento: tanto
foi poeta de cordel, quanto foi trovista, exercendo as duas facetas com
trabalhos de qualidade. Mas suas últimas produções se voltaram para a
história da poesia popular e para a biografia de colegas trovadores,
assumindo a simbiose entre os dois segmentos que abraçou.
Embora seu discípulo e apadrinhado Franklin Maxado também
tenha enveredado pela prosa, pela poética tradicional e pela crônica –
como jornalista que é – foi pela literatura de cordel que ficou conhecido.
Não se pode dizer que é exceção...
Mas o sonho continua a ser perseguido. A não ser que haja algum
outro cordelista verdadeiramente acadêmico pelo mundo a fora, nosso
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-
Elias A. de Carvalho teve a primazia de ter sido o primeiro poeta popular a
pertencer a uma dessas entidades: a Academia Petropolitana de Poesia
Raul de Leoni o convidou para assumir a Cadeira nº 16, cujo patrono é o
poeta friburguense Décio Duarte Ennes, petropolitano por adoção e amor
à cidade serrana.
Por essa indicação fervorosa, Elias A. de Carvalho saiu da Feira de
São Cristóvão no Rio de Janeiro para assumir a sua cadeira na Academia
Petropolitana de Poesia Raul de Leoni e receber o mais caloroso aplauso
de seus pares.
De todos os recantos do país chegaram mensagens de
congratulações ao nobre acadêmico e, como não poderia deixar de ser,
muitas em versos de cordel. De Anápolis, Goiás, veio o recado de outro
craque em poesia popular, Paulo Nunes Batista, o afamado Rei do ABC,
pela quantidade de folhetos que lançou nessa modalidade.
“Ocorre a solenidade
no Museu Imperial,
a fina flor da Petrópolis
o escol intelectual –
à sessão se faz presente
quando o cordel, de repente,
torna Elias – imortal!
“Que pena eu não poder ir
à posse do cordelista
Elias A. de Carvalho
que a Academia conquista!
Destes goianos sertões
seguem congratulações
do PAULO NUNES BATISTA”.
Franklin Maxado, Sá de João Pessoa, Umberto Peregrino (escritor,
folclorista, fundador, do Centro Cultural Casa de São Saruê, em Santa
Teresa, Rio de Janeiro), o poeta e fotógrafo Antonio Sebastião de Araújo
(Ruço), entre outros, estiveram presentes na posse de Elias de Carvalho.
Franklin Maxado fez um belo discurso de improviso, trazendo o
caloroso abraço e a saudação dos poetas de cordel de São Paulo,
- 185
-
enquanto que Sebastião de Araújo (Ruço) representou a totalidade dos
poetas e cordelistas da Feira de São Cristóvão, no Rio de Janeiro:
“Em nome de Santa Helena,
Cícero Vieira, Azulão,
Clóvis, João Lopes, Laurindo,
Zé Duda Neto, Galvão,
Mário Luiz, Expedito,
Curió, Sebastião...”
E vai desfiando toda a gama de poetas, repentistas, cantadores e
folheteiros que atuam naquela feira e em outras localidades fluminense,
para arrematar:
“Todos tão de parabéns
folheteiro, repentista,
o embolador de coco,
diante dessa conquista
os doutores acadêmicos
dando posse a um cordelista.
“O poeta de cordel
Elias A. de Carvalho
com seu monte de folhetos
como colcha de retalho,
entra na Academia
e agora corta o baralho.
“Muito obrigado Jesus
é uma grande alegria
ver um poeta da gente
na alta categoria.
Muito obrigado senhores
gesto digno de louvores
teve esta Academia!”
Outra dezena de mensagens foi enviada. Uma carta de Raimundo
Santa Helena representando a Cordelbrás, por ele fundada. Carta da
professora Edilene Dias Matos, do núcleo de cordel da Fundação Cultural
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-
da Bahia. Carta do professor Joseph Maria Luyten, holandês, pesquisador
e antropólogo, apaixonado pela Literatura de Cordel.
O evento teve também a cobertura de várias publicações, jornais e
rádios do interior fluminense, onde o neo-acadêmico mantinha constante
presença. Foi, enfim, uma posse concorrida e teve merecida divulgação,
na altura indispensável, na medida certa que mereceria registro esse fato
inusitado: o reconhecimento da Literatura de Cordel como um ramo
importante da literatura brasileira.
O empossado também estava à altura do acontecimento. Após ter
sido saudado pelo acadêmico Joaquim Eloy Duarte dos Santos, que ocupa
a cadeira nº 24 daquela instituição, Alias A. de Carvalho não fez por menos
– leu o elogio do seu patrono num discurso feito totalmente em versos de
cordel.
O trabalho de Elias de Carvalho resultou de minuciosa pesquisa, que
honra e valoriza o inédito feito, apesar da modéstia inata no novo
acadêmico:
“Tê-lo como meu patrono,
é para mim um privilégio.
Embora não tenha tido
pra isso um preparo régio,
pretendo lembrar seus feitos
no palco deste colégio”.
Elias desfralda toda a vida do seu patrono com o garbo de quem não
envergonha a cadeira que vai representar. A partir de então, para o
cordelista, Décio Duarte Ennes deixa de ser um mistério para fazer parte
íntegra do universo da poesia, mesmo porque poeta ele era e
“Poeta. E como poeta
viveu os sonhos dourados
das musas inspiradoras
dos vales apaixonados,
que poesia e amor
caminham de braços dados”.
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Depois de vadiar com talento r arte pela vida literária de Décio
Duarte Ennes, Elias de Carvalho encerra a louvação com a mesma
modéstia que o fez grande e com a qual havia iniciado o seu elogio:
“E assim tracei um esboço
do talento e do trabalho
de Décio Duarte Ennes,
que hoje dá agasalho,
num trono de menestrel,
ao poeta de cordel
Elias A. de Carvalho”.
Apesar da modéstia, inata em Elias A. de Carvalho, seu patrono, o
poeta friburguense Décio Duarte Ennes, teve um elogio que em muito
enobrece os anais daquela instituição e entrou para a história da
Academia Raul de Leoni:
“De repente, como que num passe de mágica, me vejo
entre os imortais da poesia, venturoso e feliz, mas preocupado.
Posição honrosa porém difícil para um poeta rude, que não foi
preparado para esse tipo de coisa, tão diferente de seus
costumes de matuto nordestino”.
Para esse poeta, para Elias de Carvalho, também se poderia repetir
as mesmas palavras com que elogiou Décio Ennes:
“Por fora baixo, movido,
por dentro uma sumidade
de inteligência e cultura”.
Porque mesmo depois de sua honrosa posse, Elias A. de Carvalho
não esqueceu os colegas de bancada, da Feira de São Cristóvão, poetas
como ele, vindos dos mais esquecidos sertões para a cidade grande sem
deixar para trás a pureza de um movimento, a leveza de uma cantoria, a
rigidez da madeira de lei, que extravasa em suas sextilhas:
“E agora, em nome dos poetas de Literatura de
Cordel, a minha gratidão e respeito a esse homem que
teve a coragem de acreditar em mim”.
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Coragem, sim, porque era esta a ascensão primeira da poesia
popular às formalidades mais ou menos excêntricas de uma clássica
academia. Elias A. de Carvalho foi esse pioneiro, esse privilegiado que
cresceu junto com a poesia popular e só sabe contar histórias em sextilhas
rimadas:
“Sou Elias de Carvalho
desde a pia batismal.
Poeta pernambucano
de onde sou natural.
Foi em março de dezoito
a minha data natal”.
Tempos depois o poeta Paulo Nunes Batista foi eleito para a
Academia Goiana de Letras. Como se viu, para uma longa caminhada
alguém tem que dar o primeiro passo.
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O poeta do absurdo:
o absurdo do poeta.
“Fui parido em 6-4-1926 num trole rodando à
vara. Minha cabeça nasceu na Paraíba e o
restante no Ceará. Meu pai, Raimundo Luiz,
morreu combatendo Lampião. Minha mãe, Dona
Rosinha, estava grávida de 5 meses e foi
maltratada pelos bandidos. Na hora do tiroteio
fui camuflado com capim seco numa cacimba
velha, onde uma virgem me acalentou com os
seios nus. Lampião, entrincheirado por trás de um
cavalo, matou meu pai à queima roupa, com um
tiro na nuca e outro num dos olhos, quando viu
que papai com a espada na mão era intocável”.
Raimundo Santa Helena-Autobiografia (no folheto
“Swing”, 1981)
Existe na literatura de cordel um sem número de poetas
excêntricos. É na teta desses vates, cuja vida e poesia permeiam a
marginalidade, que a história da poesia popular vai sugar o licor doce dos
lábios das divindades.
É no malabarismo que cerca a atuação desses mágicos da palavra
que o folclore picaresco e falacioso descobre mitos e fantasias. Vivendo de
uma poesia já eivada de folclore, o poeta do absurdo faz uma poesia
também absurda e passa a ser considerado um fantasma ou uma fantasia
que se esfumaça na primeira esquina. É a realização do pitoresco da
Literatura de Cordel.
Uma particularidade desse tipo de poesia, para que sua
autenticidade não fique maculada, é que ela nasce geralmente nos
famosos desafios e pelejas, onde os poetas do absurdo geralmente fazem
auto de fé, porque ali no repente não dá tempo para elaborar uma estória
pesquisada: tem que ser inventada num átimo de minuto. O que sai então
é um verdadeiro samba do crioulo doido, logo para dizer que também o
Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto), também foi naquela fonte beber
inspiração.
Mesmo os poetas ditos normais – mais uma vez chamo por Leandro
Gomes de Barros – escrevem vez ou outra uma poesia em que as regras
gerais são desrespeitadas em favor de uma estória mais escabrosa e,
portanto, mais livre das peias e da censura, dando asas à imaginação. No
folheto “Uma viagem ao céu” Leandro Gomes de Barros dá bem um
exemplo dessa poesia maravilhada e desmesurada:
E lá subi com a alma
Num automóvel de vento
Então a alma me mostrava
Todo aquele movimento
As maravilhas mais lindas
Que existem no firmamento.
Vi cerca de queijo e prata
E lagoa de coalhada
Atoleiro de manteiga
Mata de carne guisada
Riacho de vinho do porto
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Só não tinha imaculada.
O caso do Zé Limeira ficou famosíssimo e passou para a posteridade
desde que Orlando Tejo, seu patrono – por que não dizer, re-criador –
conseguiu publicar a biografia do excêntrico poeta, não sem antes passar
o manuscrito por incríveis peripécias, dignas do próprio personagem. É só
ler o livro pra ver que biografia e biografado são absurdistas de
carteirinha! Canta o Zé Limeira:
O marechá Floriano
Antes de entrá pra Marinha
Perdeu tudo quanto tinha
Numa aposta cum cigano
Foi vaqueiro vinte ano
Fora os dez que foi sargento
Nunca saiu do convento
Nem pra lavá a corveta
Pimenta só malagueta
Diz o Novo Testamento.
Depois o eclético Mário Lago tirou do anonimato outro famoso
cantador, Chico Nunes, ao lançar sua biografia e expor seus versos
aloprados, incluindo o nome do poeta alagoano no rol dos absurdistas. Eis
como Chico Nunes dilapida a linguagem para figurar sua poética...
Sô ladrão de mandioca
Sô a lama de um barrêro
Sô um tipo cachacêro
Sô embuá sô minhoca
Sô como sapo na toca
Sô baba de cururu
Sô pulero de urubu
Sô chocalho sem badalo
Sô um ladrão de cavalo
Eu sô mio do que tu.
No entanto, existe uma diferença fundamental entre esses poetas.
São considerados poetas do absurdo aqueles cujo estro e inspiração tem
como fundamento a exploração de um mundo misterioso, que permeia
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-
sua cabeça de modo tão implícito que nem mesmo ele sabe controlar. A
sua poesia nasce de uma fonte profunda, as palavras com que tenta expor
suas idéias saem desarrumadas, as rimas se atropelam para poder dar
som e expressividade, inventa, enfim, toda uma explicação ingênua do
mundo que vê e vive ao seu redor.
Quando, por outro lado, o poeta não tem condições de se livrar
desses demônios através de seus versos, mesmo que o enredo e as
palavras atinjam as raias da loucura, o perigo que corre é transferir para
sua própria vida o mundo absurdo e crítico que impera dentro de si. E o
faz de forma tão vigorosa, tão real, que não tem o poeta como dele se
livrar. E o que beira o absurdo passa então a ser verdade absoluta.
Nesses casos, depois de dado o primeiro passo não há como parar
e, embora a loucura não passe para seus versos, o absurdo se encadeia
com a vida e com a própria biografia. Provavelmente o universo da poesia
popular, com tão longa história, está cheio dessas almas que transferiram
o absurdo, não para versos loucos, mas para contar sua própria história e
fazer (ou inventar) uma biografia que dê sustento ao seu espírito
aventureiro.
Ao tentar finalizar este livro, tive de navegar pelo roteiro de seus
capítulos passados quase 25 anos! O que escrevi em 1985 – e permaneceu
inédito pelas razões expostas na apresentação – está sendo agora
submetido a uma importante prova de perenidade: o merecimento de
permanecer. Neste momento, chegando ao final do volume, vejo que
muita coisa que interpretei tinha suas razões, algumas poucas não
passaram pelo crivo.
Uma das caminhadas que tive de percorrer (hoje gozando da
facilidade que a internet nos põe à disposição), foi fazer uma releitura na
biografia dos poetas citados. Para meu pesar, muitos poetas que coloquei
neste modesto volume – gente que aprendi a conviver não só na Feira de
São Cristóvão, mas também na vida privada, já não estão entre nós. Mas
ao reler fatos de sua vida vejo que não me enganei, nem eles me
enganaram: todos os citados têm um lugar na história da poesia popular e
na cultura que implantaram no Rio de Janeiro.
Entre as muitas biografias que tive de pesquisar, esbarrei num beco
sem saída: a vida de Raimundo Santa Helena. Foi um poeta que também
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-
privei da proximidade daqueles tempos (1970/1980), ao qual, apesar de
manter uma convivência pessoal muito rara e de uma afinidade intelectual
mais distante ainda, não deixo de reconhecer o talento e criatividade.
Raimundo Santa Helena é um dos mais conhecidos poetas que
freqüentaram a Feira de São Cristóvão e a Literatura de Cordel no Rio de
Janeiro. Inteligente e falador, ele soube muito bem tirar proveito da
efervescência da época, em que a atividade política com a campanha da
redemocratização e eleições diretas que atiçavam aqueles tempos.
O poeta ganhou espaço quando da chegada dominadora da
televisão, fez amizades com intelectuais de todos os portes, apresentou-se
como candidato a uma vaga na Academia Brasileira de Letras, fundou uma
entidade chamada Cordelbrás, em nome da qual condecorava e dava
diploma a muitos seus homenageados, deu centenas de entrevistas e
depoimentos em colégios, faculdades e universidades. Um espírito
agitado, enfim.
Foi também objeto de um curta-metragem, cuja sinopse está na
internet:
“Figura incansável, Raimundo Santa Helena saiu ainda criança da
Paraíba, para matar Lampião. O cangaceiro assassinou seu pai, fundador
da cidade Santa Helena, e violentou a mãe na frente de seus olhos.
Neste documentário, Raimundo conta sua própria história, com muito
humor e crítica, característicos da literatura de cordel. Hoje, com 81
anos, Santa Helena vive em Rocha Miranda, no Rio, e é um importante
representante da cultura popular nacional. Fundador da Feira de São
Cristóvão, já foi indicado para a Academia Brasileira de Letras”.
Raimundo Santa Helena costuma reproduzir essa história em todos
os folhetos que publica, bem como repeti-la em qualquer entrevista. É de
espantar a memória de uma criança de um ano e pouco de idade tenha
gravado tantos detalhes, embora alguns se contradigam: o pai era amigo
de “Jararaca”, um dos cabras de Lampião. Mesmo assim, a amizade não o
livrou de ser morto por Lampião que “entrincheirado por trás de um
cavalo” desferiu-lhe dois tiros “à queima-roupa” – um na testa, outro na
nuca (!?). Por esses e outros exageros fáceis de notar, creio que Raimundo
Santa Helena mereça ser enquadrado na galeria dos poetas absurdos. Essa
e outras questões que causam espanto constituem, a princípio, um
elemento complicador para qualquer pesquisa que se pense fazer e
também para estabelecer uma história em torno do poeta.
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-
O que se nota, porém, é que a primeira biografia de Raimundo
Santa Helena se fundamenta em alguns fatos que podem ser considerados
heróicos – e, portanto, trágicos – que se tornaram capitais, porque
serviram de base para que o nome do poeta fosse posteriormente
consagrado. Como contrapartida a esse heroísmo, ao final das mesmas
ocorrências, Raimundo Santa Helena aparece como a principal vítima da
história. E é assim, como vítima e como herói que o poeta renasce das
cinzas e caminha para a posteridade.
Primeiro fato heróico: Raimundo Santa Helena saiu ainda criança da
Paraíba, para matar Lampião. Então, a história de Raimundo Santa Helena
se inicia no povoado Canto do Feijão, que, a partir de 12 de dezembro de
1961, se transformou no município de Santa Helena, localizado no sertão
paraibano, fronteira com o Ceará. É muito provável que nesse mesmo ano
de 1961, Raimundo Luiz do Nascimento tenha se transformado no poeta
Raimundo Santa Helena.
Naquele pequeno vilarejo foi aonde ocorreu o episódio da morte de
seu pai – um dos fundadores da cidade – nas mãos do bando de Lampião.
Seu pai foi o autor desse primeiro fato heróico: enfrentou bravamente,
com uma espada nas mãos, não o bando de Lampião, mas o próprio
facínora. E o menino Raimundo, com um ano e pouco de idade – que aqui
aparece com a vítima da história – foi testemunha ocular da tragédia.
Pesquisando o site do IBGE achei o histórico do citado município:
Santa Helena, Paraíba (PB). Gentílico: santa-helenense - O antigo
povoado, que teve como fundadores os Senhores Raimundo Luiz da
Silva, Joaquim Alves de Oliveira e Gonçalo Vitoriano foi, inicialmente,
chamado de “Canto do Feijão”. Haja vista a razoável produção do
produto na região. Em 1927, Raimundo Luiz da Silva e um de seus
empregados pereceram ante a sanha assassina do bando do Cangaceiro
Lampião que, procedente de Brejo das Feiras com destino ao Ceará,
saqueou o povoado Canto do Feijão.
Tendo sido morto pelo bando de Lampião o Raimundo Luiz da Silva, um
dos fundadores do povoado Canto do Feijão, hoje Santa Helena,
continuou seu parceiro Joaquim Alves de Oliveira na luta do
desenvolvimento da localidade. Para tanto, fez ele a doação de uma
faixa de terra para a construção da Capela, o que foi feito em 1933. A
referida Capela é hoje a Matriz da cidade cuja Padroeira é Santa Helena.
A Festa da Padroeira é comemorada na data de 30 de setembro de cada
ano.
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A biografia, que consta do acervo da Casa de Rui Barbosa, elaborada
por Simone Mendes, diz do poeta:
O poeta popular Raimundo Luiz do Nascimento, mais conhecido como
Raimundo Santa Helena ou apenas Santa Helena, como gosta de ser
chamado, nasceu em 06 de abril de 1926, “em um trole rodando à
vara”.
A maior parte de seus folhetos traz trechos autobiográficos, reforçando
a construção de uma imagem de si constituída através de uma trajetória
de vida bastante peculiar, que tem como ponto de partida a morte de
seu pai pelo cangaceiro Lampião, durante uma invasão do bando no
sertão de Cajazeiras, na Paraíba, em 9 de junho de 1927. Em função
deste fatídico dia, Santa Helena, aos 11 anos, fugiu de casa com um
canivete na mão para vingar a morte do pai.
Agora cumpre juntar as informações, já que na biografia de
Raimundo Santa Helena consta a informação de que ele seria filho de
Raimundo Luiz da Silva, o único nome que se encaixa na notícia. Esse
ponto pode indicar algo que sinalize um tipo de apropriação psicológica: o
curioso fato de que Raimundo Luiz do Nascimento e Raimundo Luiz da
Silva têm prenomes iguais, pode ter levado o menino a criar um trauma da
invasão dos cangaceiros para sua própria vida. É possível.
Outra chave para esse enigma pode ser a notícia de que “Raimundo
Luiz da Silva e um de seus empregados pereceram ante a sanha assassina
do bando do Cangaceiro de Lampião que, procedente de Brejo das Feiras
com destino ao Ceará, saqueou o povoado Canto do Feijão”. Quem seria
esse empregado de Raimundo Luiz da Silva?
Agora, em conseqüência, porque a vida do menino sofreu tantos
transtornos a partir da sua orfandade? Como justificar-se que ele, filho de
importante personalidade da cidade, um dos fundadores da vila Canto do
Feijão, agricultor, mestre-de-linha e delegado de polícia, tivesse nascido
sobre um trole, viesse a ter uma vida de dificuldades, a ponto de ter que
dormir na sarjeta e comer restos de comida? Também, como explicar a
existência de sobrenomes diferentes entre pai e filho? Por que o
sobrenome do menino não se manteve “Silva” e mudou para
“Nascimento”?
A tragédia, narrada por Raimundo Santa Helena em vários de seus
folhetos, tem quadros em que a influência bíblica e heróica é bem
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enfática. Na hora do tiroteio esconderam o menino numa touceira de
capim, junto a uma velha cacimba seca, onde uma virgem o acalentou nos
seios nus. Naquele mesmo momento sua mãe, Rosa Ferreira do
Nascimento (grávida de cinco meses), era maltratada pelos bandidos,
defendendo-se com o ferro de engomar. Mais uma vez a cena se repete
entre fatos heróicos em que a vítima é sempre a mesma. Mas, neste
momento, já se sabe que Raimundo Santa Helena foi registrado com o
sobrenome materno, trocando o Silva por Nascimento.
Ademais, tendo nascido em abril de 1926, advindo a morte de seu
pai em junho de 1927, Raimundo Santa Helena, no ano da horrível
tragédia, contava um ano e dois meses de idade. Aquele drama ficou para
sempre marcado na vida do menino e povoou a mente da criança durante
anos a fio, trazendo consigo um ódio irreprimível a Lampião. Outra cena
fixada pela criança foi ter entrevistado, numa tempestade, iluminada por
raios e trovões, a mãe-heroína, com uma espada nas mãos, defende a
própria honra, derrotando um desconhecido que queria estuprá-la.
O menino cultiva a idéia fixa da vingança, ele persegue, em sonhos,
o temível cangaceiro e resolve fugir de casa para caçar o assassino. No
entanto a realidade aponta para outro lado. A família do poeta, cuja
liderança ficou nas mãos da viúva, tinha perdido toda esperança de herdar
o legado do falecido Raimundo Luiz da Silva. Na verdade Rosa Ferreira do
Nascimento foi vítima de ocorrência comum na região, quando as viúvas
(pobres) são obrigadas a abdicar de todo o direito que tem sobre os bens
do marido. O menino Raimundo é mandado pela mãe de pau-de-arara
para, em Fortaleza, ir morar com uma tia, trabalhar e iniciar seus estudos.
Esse pode ser o misterioso fato que alterou e influenciou
psicologicamente suas atitudes rancorosas e vingativas, mas ele teve que
esperar por dez anos – até 1937, quando completou 11 anos de idade –
para largar tudo e sair, “com um canivete na mão”, para perseguir e matar
o cangaceiro Lampião, causador de todas as desgraças advindas. Também
existe uma conotação freudiana na seguinte situação:
Lampião entrou no cangaço (e se tornou um fora da lei), para
vingar a morte do pai.
Raimundo Santa Helena fugiu de casa com o objetivo de matar
Lampião (e se tornar um fora da lei), para vingar a morte do pai.
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Alguns não considerariam a maioria dessas atitudes como o retrato
de simples revolta e sim algo capaz de violar a lei. Além dessas ameaças
ou bazófias, Raimundo Santa Helena declarou a alguns jornais que iria
explodir com dinamite as estátuas de Lampião que seriam erguidas nas
cidades de Triunfo e Serra Talhada (PE).
Antes que lograsse êxito, porém, no dia 28 de julho de 1938, o
tenente João Bezerra, com uma tropa de 50 soldados e jagunços, tocaiou
o grupo do cangaceiro na Fazenda Angico, em Sergipe. Lampião e Maria
Bonita estavam mortos. Nessa época Raimundo Santa Helena estava em
Fortaleza e Lampião, bem distante, no sertão de Sergipe. A cabeça do
cangaceiro, de Maria Bonita e dos companheiros mortos iniciava uma
turnê por diversas capitais do nordeste para – pela atemorização e pelo
pavor – tentar manter subjugado o povo nordestino.
O segundo fato heróico que ressalta na biografia do poeta
Raimundo Santa Helena é a participação do mesmo na II Guerra Mundial.
Vejamos como esse episódio pode ser transposto para outra realidade,
partindo do fato registrado em sua biografia. Ajuntando-se as peças
partidas em diversas declarações e publicações, vejamos como foi a
entrada para a Marinha Brasileira e a participação do poeta na II Guerra
Mundial. A historiadora da Casa de Rui Barbosa registra o fato:
Na Marinha, participou da Segunda Guerra e estudou nos Estados
Unidos, o que o ajudou na composição de cordéis bilíngües, como o
“Brazilian Amazônia”, publicado na ocasião da ECO - 92. Seu primeiro
cordel foi declamado a bordo do navio “Bracuí”, em 1945, após o
anúncio do final da segunda grande guerra.
Então, o poeta participou da II Guerra Mundial servindo no “CTE
Bracuí - Be3/D23/U31 - Classe Cannon - DET/ Bertioga”. Como eu disse, a
internet é um saco de gatos, mas não esconde nada. A pesquisa me levou
ao site http://www.naval.com.br/, onde encontrei a história do CTE
Bracuí:
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Datas
Batimento de Quilha: 3 de maio de 1943
Lançamento: 22 de agosto de 1943
Incorporação (USN) [United States Navy]: 29 de setembro de 1943
Baixa (USN): 15 de agosto de 1944
Incorporação (MB) [Marinha Brasileira]: 15 de agosto de 1944
Baixa (MB): 11 de julho de 1972
Histórico
O Contratorpedeiro de Escolta Bracuí Be3, ex-USS Reybold - DE177, foi o
primeiro navio a ostentar esse nome na Marinha do Brasil. O Bracuí,
construído pelo estaleiro Federal Shipbuilding & Drydock Co. em
Newark, NJ, foi transferido por empréstimo e incorporado a MB
(Marinha Brasileira) em 15 de agosto de 1944, na Base Naval de Natal
(RN), recebendo o indicativo de casco Be3. Na ocasião, assumiu o
comando, o Capitão-de-Corveta Alberto Jorge Carvalhal. Em 4 de
dezembro de 1945 a Esquadra foi restabelecida pelo Decreto n.º 8273,
ficando o Bracuí, assim como os demais navios da classe Bertioga,
incorporado à 2ª Flotilha de Contratorpedeiros.
Aqui há pouco a acrescentar. Essa é uma das ocasiões em que a
história mesma conta a própria história. Getúlio Vargas, então presidente
do Brasil, decretou “estado de guerra” em agosto de 1942, a FEB começou
a ser organizada em 1943 e somente em 1944 embarcaram os primeiros
pracinhas com destino a Itália. Cerca de 25 mil soldados formavam a FEB.
Após a tomada de Monte Castelo em janeiro de 1945 e a vitória em
Montese em abril do mesmo ano, foi assinado o armistício e os pracinhas
começaram a voltar ao Brasil. O retorno se iniciou em 15/7/1945 e
terminou em 3/10/1945.
O Contratorpedeiro de Escolta Bracuí foi incorporado à Marinha
Brasileira em agosto de 1944, às vésperas, portanto, do fim da II Guerra
Mundial, que durou de 1939 a 1945. A participação de Raimundo Santa
Helena no conflito foi de cerca de 380 dias e, segundo tudo indica, sem
tirar o pé das águas territoriais do Brasil.
É bem verdade, os militares que participaram de operações na costa
brasileira, em missões de patrulhamento e escolta, ascenderam, por lei, à
categoria de ex-combatentes (Lei nº 1.027 de 31/12/1949). Mas, quando
se lê a expressão “participar da II Guerra Mundial”, nosso pensamento é
logo remetido a um fato heróico e trágico. Pensa-se logo na Força
Expedicionária Brasileira e nos aviadores da FAB, quando a esquadrilha
aérea “Senta a pua!” batalhou nos ares da Europa.
Na misteriosa biografia de Raimundo Santa Helena, portanto, existe
muito de non-sense, de absurdo, cabendo, por isso, classificar-se o poeta
entre seus pares como Zé Limeira, Chico Nunes e Manoel Camilo dos
Santos. Só que, estranhamente, em vez do poeta exercitar o absurdismo
através da poesia, o faz pela sua biografia, obscura, fantasiosa, irreal –
mas nem por isso menos verdadeira!
Nesse contexto mais algumas provocações merecem estudo:
Pergunta: É verdade que Raimundo Santa Helena declamou seu
primeiro cordel a bordo do contratorpedeiro Bracuí em 1945?
Resposta: Sendo leitor de muitos dos folhetos vendidos por
Raimundo Santa Helena, conhecendo muitas de suas poesias, é mais
provável que, em 1945, ele tenha declamado um poema – e não um
“cordel” – em homenagem ao fim da II Guerra Mundial. Isso porque um
grande número dos “folhetos” de Raimundo Santa Helena contém poemas
clássicos que não representam a Literatura de Cordel. Na sua forma
tradicional, a Literatura de Cordel tem certas regras a ser obedecidas: ser
composta em estofes setilhas, em sextilha, em décimas, quando nas
diversas outras formas, explícitas nos compêndios de poesia popular.
Portanto, Raimundo Santa Helena – um poeta popular como o foi Patativa
do Assaré – que também escreveu poesia de cordel na forma tradicional,
comercializa e divulga suas composições com a denominação de Literatura
de Cordel. A bordo do contratorpedeiro Bracuí, em 1945, quando ainda
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não estava enganjado na Literatura de Cordel, Raimundo Santa Helena
deve ter declamado um poema para celebrar o fim da guerra.
Obs: Entrementes, em outra entrevista, Raimundo Santa Helena conta o
mesmo episódio de forma diferente, transpondo o cenário para o
Campo de São Cristóvão, conforme declarou para Gilmar Chaves:
“Em 2 de setembro de 1945, após o término da Segunda Guerra
Mundial, quando passava ao redor do Campo (de São Cristóvão,
Raimundo Santa Helena) viu uma grande aglomeração de pessoas em
traje com o uniforme do exército brasileiro. Indo apurar sobre o que se
tratava, acabou subindo numa árvore e recitando um cordel em
homenagem aos ex-pracinhas nordestinos que vieram da Itália,
intitulado Fim de guerra.
Hoje terminou a guerra
De irmão contra irmão
Voltarei à minha terra
Vou plantar no meu sertão
(...)
Hoje terminou a guerra
Vou plantar na minha terra
Voltarei ao meu sertão
Corpo e alma decepados
Pensamentos fuzilados
Com neurose de canhão
Desconhecidos soldados...
Fazer guerra? Nunca, irmão!!!”
Pergunta: Raimundo Santa Helena foi de fato um dos fundadores da
Feira de São Cristóvão?
Resposta: Nesse ponto temos de nos convencer da veracidade das
informações biográficas: entre os anos de 1940 e 1950 – quando a Feira
de São Cristóvão brotou, se consolidando a partir de 1960 – Raimundo
Santa Helena estava servindo na Marinha Brasileira, na função de
marinheiro e, segundo suas próprias palavras, não sobrava muito tempo
para outras atividades. Ouvi de voz própria ele declarar que só pôde se
dedicar plenamente à poesia popular, a partir de 1980, quando obteve a
reforma plena da Marinha Brasileira como ex-combatente. Ademais,
“Para o cordelista José João dos Santos, o Azulão, o pioneiro do
comércio da feira foi o paraibano João Batista de Oliveira, o João Gordo.
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Ele teria começado no segundo governo de Getúlio Vargas, por volta de
1952”.
“Além de Raimundo Santa Helena, João Gordo e José João dos Santos,
outros também são citados como fundadores: Espiridião Agra, Zé da
Onça, Zé Donato, João de Oliveira Dantas e o cordelista Apolônio Alves
dos Santos”.
“Por esses dados e relatos, pode-se perceber que a sua fundação
obedece à cronologia indicada pelos freqüentadores mais antigos da
feira e que cada um tem a sua própria versão”. (Gilmar Chaves)
Portanto, a Feira de São Cristóvão, como se viu, nunca teve
fundadores e sim pioneiros, entre os quais, além dos citados, estão o
poeta de cordel Apolônio Alves dos Santos, os poetas repentistas
Palmeirinha, Passarinho, Curió das Alagoas e Manuel Ferreira.
Pergunta: É verdade ou boato que Raimundo Santa Helena
participou da Revolução de 1964?
Resposta: Surgiram algumas denúncias por parte dos poetas
populares da Feira de São Cristóvão, que, nos anos 1970/1980 pugnaram
por eleições diretas (o movimento Diretas Já), fazendo campanha pelo
então candidato Tancredo Neves. Segundo esses boatos, Raimundo Santa
Helena seria informante das autoridades militares, com o objetivo de
denunciar os colegas envolvidos em atividades “esquerdistas” e assim
defenestrá-los.
A verdade é que nada ficou provado sobre esse fato. Raimundo
santa Helena em muitos folhetos declarou sua inocência. Inclusive,
quando as reclamações foram veiculadas, Raimundo Santa Helena lançou
um folheto chamado “duelo de santa helena com os cobras” (a palavra
“cobra” aqui tem duplo sentido, vale como “experto” em alguma coisa e
também como pejorativo de “pessoa venenosa”).
O duelo escrito por Raimundo Santa Helena é licença poética, uma
invenção, porque tanto o texto dos desafiantes quanto as resposta do
desafiado foram criados por ele. Mais uma vez o poeta apareceu ao
mesmo tempo como vítima e herói. Os “desafiantes” desse pseudo duelo
são: AAFA(?), CiFe (Ciro Fernandes(?) ICaPo(?), GoFe (Gonçalo Ferreira(?),
SaJoPe (Sá de João Pessoa(?), FraMax (Franklin Maxado?), CloFil(?), ZeAn
(Zé Andrade(?), JadoPa(?).
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-
Raimundo Santa Helena de propósito mistura poetas e não poetas,
pois, dos que consegui identificar pelas iniciais, Ciro Fernandes é gravador,
Sá de João Pessoa é poeta amador e Zé Andrade é escultor.
No entanto, esse grupo era constituído de pessoas que formavam
uma confraria na Feira de São Cristóvão, uma turma que vivia à parte e
estava ali para mostrar seus trabalhos, sem compromisso com o espaço,
com os poetas e demais participantes da Literatura de Cordel tradicional.
Antes, seus trabalhos, ações e objetivos, visavam abrir a caixa preta
que era a Literatura de Cordel da época, para permitir a participação de
poetas novos que começavam a atuar naquele tempo. A vida de
Raimundo Santa Helena se mostrou bem maior que sua poesia.
Se formos comparar com os grandes cordelistas do passado, a
participação de Raimundo Santa Helena na Literatura de Cordel merecerá
outra avaliação, bem menos em conta do que já surgiu nas mídias. Para
suprir essa deficiência o poeta armou uma série de eventos, alguns poucos
são reais, mas a maioria se reveste de fatos fantasiosos que serviram para
mascarar sua atuação na cultura popular.
Por exemplo, a partir de determinada data, com o objetivo de
preservar sua obra das mãos dos “piratas”, Raimundo Santa Helena
publicava em seus folhetos uma numeração esdrúxula e confusa, que
levava a um cálculo de tiragem que só ele compreende:
“Duelo”-Folheto 97-164-1203. Rio, Brasil - 3-12-1984. 12 mil
exemplares.
“Swing”-Folheto 28ZB74-145, Rio 29-10-81 (sem tiragem).
“Boi de piranha”-Folheto 112-300-1330 - Rio,Brasil-12-1985. 4 mil
exemplares.
“Memórias de um padre” – Folheto 99-165-1210 - Rio, Brasil – 3-121984. 5 mil exemplares
“O barão e as minhocas” – Folheto 32ZF77-160. Rio, 30-12-81 2ª
edição (sem tiragem).
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Isso se repete na maioria de seus folhetos, cuja tiragem, segundo o
poeta, alcança milhões de exemplares. Uma verdadeira maravilha de
sucesso! Nos folhetos Raimundo Santa Helena também costuma repetir a
sua autobiografia, na terceira pessoa, em que os fatos positivos são
sempre de cunho heróico e os negativos tem como única vítima o próprio
poeta. De tempos em tempos, a biografia é constantemente alterada,
modificada ou enxertada com fatos novos, misturados com notícias,
publicações e honrarias. Vejamos algumas dessas citações, primeiro o fato
heróico:
“Com este folheto completa 300 títulos de cordel publicados, com
um milhão e 330 mil exemplares”.
“Santa Helena foi citado mais de 1.700 vezes nos jornais, revistas,
rádio e TV”.
“É sócio-benemérito da Ordem Brasileira dos Poetas Cordelistas,
fundada pelo notável escritor Rodolfo Coelho Cavalcante”.
“RSH foi agraciado com os títulos de “Cidadão da Cultura Popular” e
“Cavalheiro (sic) da Ordem dos Cantadores”.
“Se reabilitou trabalhando 13 horas por dia, estudando à noite num
galinheiro, à luz de lamparina”.
“Ingressou na Marinha e hoje é ex-combatente remunerado”.
E agora as ocorrências de sofrimento e vítima:
“Poeta do sertão de Cajazeiras, Paraíba, de onde fugiu com 11 anos
de idade para vingar a morte de seu pai assassinado por Lampião em 9-61927”.
“Chegou em Fortaleza como pau-de-arara, dormiu na sarjeta,
comeu restos de comida”.
“Mas não matou ninguém e quase morreu de fome em Iguatu,
Mucuripe, Fortaleza, etc.”.
- 204
-
“Se meu esforço era bom para o Cordel, era ruim para mim. Mas só
parei após a morte de um filho”.
Para encerrar essa querela, que já se tornou maior que o
personagem, cito correspondência que recebi de Franklin Maxado a
respeito, verbis:
Caríssimo amigo Salomão.
Saúde e Paz.
Para começar, procure entrar em
www.antonioabreufreire.bloguepessoal.com tem um vídeo deste intelectual
português aqui em Feira de Santana em que aparece com a minha mulher,
além de artistas locais. O motivo desta, porém é dar ciência de que não é só
seu livro que vai tratar do cordel naquele tempo aí no rio. Este escritor tem
um trabalho em que bota Santa Helena como "o maior poeta vivo do cordel
no Brasil"! Veio contar comigo aqui em Feira e me pediu a opinião. Não sei
ser político e dei esta opinião abaixo. O que o amigo acha?
Sei que não leu o livro dele, mas no blogue pode fazer amizade e pode pedir
para ele mandar. Ainda não foi publicado e ele me mandou em confiança.
Como vê, a disputa com Santa Helena pode render. Separei até os folhetos
meus e dele para tentar relembrar dos lances , mas como amigo silenciou,
achei que não quer ou que eu quero forçar a barra. Mesmo porque, seria uma
perda de tempo sem objetivo definido. Sempre o mesmo Maxado e amigo dos
amigos como você que admiro muito.
Abraços para todos os seus,
Franklin Maxado.
Meu caro Abreu.
Consegui ver o vídeo. Saudações.
Agradeço-lhe também a minha indicação para o MIL. Vou responder a
todos que me contataram. Fiquei muito contente. Fico ciente dos livros e vou
cobrar ao menos um ao Moura. Terminei o folheto sobre o Festival de Cordel
daí. Pensando bem, esqueci da idéia de colocar o azulejo do Marques
Sardinha na capa em favor de uma xilogravura especial que farei. Já tenho
até a idéia. Quanto ao seu livro introdutório ao cordel, achei muito oportuno
e fundamentado no que toca a parte de Portugal. Na verdade, você dá uma
boa contribuição, pois ainda não sabia de tanta coisa e colegas poetas
“patrícios". A parte do Brasil, alguma coisa pelas impressões e conversas, já
tinha pessoalmente lhe dito. Santa Helena deu uma grande contribuição ao
Cordel, mas sou suspeito para dar opinião sobre o mesmo e assim prefiro me
omitir. Todos sabem das minhas disputas públicas com ele as quais são
documentadas em folhetos publicados por ambos. Se vim para a Bahia foi
imposição de família, não fugindo da briga, mesmo porque não morava no
Rio e gastava nessas estadias enquanto que ele tinha um bom soldo como
tenente reformado da Marinha de Guerra e com os filhos criados e
empregados. Ele entrou no cordel aposentado e sem problema de arranjar da
venda dos folhetos. Entretanto, não cheguei a brigar com ele. Ficamos só nas
disputas verbais como deve acontecer com dois poetas. Por respeito e
consideração ao novo amigo, não desejo tentar macular a sua admiração pelo
Santa Helena. De fato, ele é muito inteligente e sedutor, principalmente para
a imprensa que antes não ligava ou não se ocupava de cordel, principalmente
os grandes jornais como O Globo. Tem este grande mérito. E sabia também
- 205
-
impressionar os teóricos estrangeiros do cordel. Desculpe a franqueza e não
faço intriga ou peço sigilo. Se quiser, pode publicar a minha opinião. Para
os brasileiros, ele é um poeta que soube explorar a mídia e se promover com
fatos romanceados de sua vida, mas não tem uma obra expressiva no cordel,
dizem os estudiosos brasileiros. Não sou dos que têm ciúmes de sua
promoção, pois sei meu lugar e o que fiz e faço no cordel. Sei que seu livro
terá muita repercussão aí e aqui. E quiçá torço por alhures pelos países da
comunidade lusófona.
Se o amigo permitir, vou repassar este comentário para o colega Sá de João
Pessoa, também citado pelo Carlos Drummond e em seu livro. Sá é
pseudônimo do poeta Salomão Rovedo e o mesmo escreveu um livro sobre
este tempo do cordel no Rio onde havia a disputa entre mim e o Santa
Helena.
Com a admiração que deixou e que continua,
Franklin Maxado.
Caro Franklin Maxado,
Como não pude distribuir como devia alguns dos meus livros pelos amigos
que me receberam em Feira de Santana, segue agora dúzia e meia de
exemplares que vão chegar a Salvador juntamente com um contentor da
DURIT e o João Valente entregá-los-á ao Moura Pinho na próxima semana.
Aguardo os seus comentários sobre o meu trabalho introdutório ao Cordel,
antes de o considerar pronto para edição, pelo que espera a editora. Também
a minha editora se mostrou interessada pelo livro da professora Maria Teresa
Abelha Alves sobre Gil Vicente e já pedi ao Moura Pinho para me pôr em
contacto. Conseguiu abrir no seu PC a montagem foto-sonora do serão na
fazenda?
Abraço
A de Abreu Freire
2008 - Pe. António Vieira 400 Anos
http://antonioabreufreire.bloguepessoal.com
Caro Salomão,
De fato, já separei e com o texto que li do escritor Português mais me vieram
à mente passagens com o Santa Helena. Já separei os folhetos, entretanto,
ando correndo para fazer mil coisas diferentes. Que saudades daquele tempo
em que era mais jovem e só fazia cordel e ir atrás das mulheres. Hoje tem
carro velho, uma fazendinha com algum criatório, emprego, biblioteca
grande e família junto para cuidar. E estou mais velho e sem tanto dinheiro.
Mas já que você quer, tentarei escrever as disputas daquele tempo com o SH,
que envolveram Apolônio, Raimundão, Marcelo, você, Expedito e Gonçalo.
SH chegou atropelando no cordel, daí o folheto do intrujão. E fazendo a
gente do ramo de bobo ou de dar palco para ele. A Cordelbrás e outras
criações eram para mostrar à Imprensa e a todos que ele representava e
promovia a classe. Não sei se ainda faz cordel, mas tiro o chapéu para a
forma de como se promovia. E se preparou para isso com o tempo todo de
reformado da marinha e com um belo soldo da reserva já não tendo com
quem gastar, pois os filhos todos criados e independentes. Adotou o vocativo
de "poeta-repórter" usurpando-o de José Soares, o pai do Marcelo. No mais,
seus folhetos eram panfletos sem enredo para impressionar pessoas e a
imprensa, cujo muito dos jornalistas, ele comprava com o dinheiro. Isso ele
uma vez me disse que tinha um fundo para gastar com jornalistas. Como eu
iria concorrer? Ele aproveitou que minha atuação e com o prestígio dos
livros publicados pelo Pasquim para aparecer como um expoente do cordel.
E, quem é entendido até hoje, para saber diferenciar entre um verdadeiro
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-
poeta e um enganador ou aproveitador vaidoso? Até Joseph Luyten entrou,
pois sua tese de doutorado ou mestrado (não me lembro) baseou muito em SH
como poeta repórter. Como professor de jornalismo ficou impressionado com
suas técnicas de aparecer e se promover com as notícias que
explorava. Agora, o português, querendo falar do cordel brasileiro repete.
Acho que esteve em casa do SH e ele lhe mostrou o número de recortes de
jornais e a quantidade de títulos publicados e esse intelectual na maior das
boas intenções acha-o "O maior poeta de cordel vivo". O seu livro
"Introdução à Literatura de Cordel” já vai ser lançado em 30 de abril em
Portugal e não dará mais tempo para reescrevê-lo agora que me conheceu e
fui-lhe franco sobre SH. Pediu-me um artigo para o Jornal das Letras de lá,
mas não vou tocar no assunto, pois pode parecer despeito ou ciúme. Quem
sabe, o amigo não escreva este artigo quando lê o livro do Antonio Abreu
Freire? Veja o seu blogue e insira num contato. O português não é má
pessoa, apenas é um deslumbrado, primeiro com o padre Antonio Vieira e
agora com o Cordel.
Mais um abraço,
Franklin Maxado.
Esse é um exemplo de como o personagem pode ser mais
importante do que a pessoa. O poeta Raimundo Santa Helena transfigurou
sua biografia num fato extraordinário e neste exato momento ela (a
biografia) está prontinha para se transformar num romance de cordel,
com todos os ingredientes necessários para outra história fantástica,
como aconteceu com “Uma viagem ao céu”, “O pavão misterioso” e
“Viagem a São Saruê” e outras estórias na mesma linha.
- 207
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Apêndice necessário:
alguns mestres
Arievaldo Viana
Leandro Gomes de Barros: Pioneiro do cordel e inspirador do
Auto da Compadecida, pg. 206
Sofia de Melo Araújo
Nota Explicativa a “Viagem a São Saruê” de Manoel Camilo dos
Santos, pg. 221
Edilene Matos
Manoel Camilo e Jorge Amado: viagens opostas nas asas da
imaginação, pg. 226
Ana Lúcia Nunes e Mário Henrique
Entrevista de Paulo Nunes Batista em “AND”, pg. 233
Paulo Nunes Batista
“Sebastião Nunes Batista”, pg. 237
Diego Chozas Ruiz-Belloso
Una posible explicación a todo esto, pg. 241
Leandro Gomes de Barros
Pioneiro do cordel e inspirador do Auto da Compadecida
Por Arievaldo Viana.
Arievaldo Viana, poeta popular, radialista e publicitário, nasceu em Quixeramobim-CE,
ao 18/09/1967. Em 2000, foi eleito membro da ABLC. É o criador do Projeto ACORDA
CORDEL na Sala de Aula, que utiliza a poesia popular na alfabetização de jovens e
adultos.
Quatro de março de 2008... Essa data marcará os 90 anos de morte do maior expoente
da Literatura de Cordel no Brasil, Leandro Gomes de Barros. O poeta nasceu na fazenda
Melancia, em Pombal-PB (hoje município de Paulista-PB), no dia 19 de novembro de
1865 e faleceu em Recife-PE, em março de 1918, segundo alguns pesquisadores,
vitimado pela Influenza espanhola, segundo outros por haver sido preso injustamente,
no exercício de sua profissão, ao mostrar-se simpatizante das classes oprimidas num
folheto intitulado "O Punhal e a Palmatória", sobre o qual iremos nos deter mais
adiante. Ele foi o fundador da poesia popular no Brasil, segundo o testemunho do
poeta Chagas Batista, e também autor de dois folhetos, dos três que serviram de
inspiração para Ariano Suassuna compor a sua peça mais famosa: "O Auto da
Compadecida". Os folhetos são O Dinheiro (que se chama, na verdade, O testamento
do cachorro - de 1909) e O Cavalo que Defecava Dinheiro, que na versão de Ariano, foi
transmutado num simpático bichano. Chagas Batista é citado por Câmara Cascudo
como uma de suas fontes de pesquisas. Ariano, por sua vez, jamais negou a influência
de Leandro em sua obra.
De antemão alertamos que todos os dados contidos nesse artigo foram recolhidos em
dezenas de fontes dignas de crédito (livros, jornais, revistas, sites, folhetos antigos,
contracapas de folhetos, entrevistas, dos quais mantemos cópias integrais). Porém,
algumas vezes, tais informações são desencontradas, o que ensejou um árduo trabalho
comparativo a fim de se estabelecer uma história verossímil, ou seja, mais próxima da
realidade...
O compositor paraibano Bráulio Tavares, articulista do Jornal da Paraíba, lamentou, por
ocasião dos 140 anos de nascimento do poeta, em 2005, que ainda não haja uma
biografia à altura de seu talento, mas reconhece que falar da vida de uma pessoa que
nasceu em meados do século XIX, e sobre a qual restam pouquíssimas informações
além daquelas contidas em sua obra, "é a mesma coisa que catar confetes na rua um
mês depois do carnaval". Eu que não sou discípulo de Momo, mas simpatizante
ferrenho de Leandro desde a mais tenra idade lanço-me ao desafio de recolher
pequenos fragmentos de sua história, a fim de montar esse quebra-cabeça. Em 1976,
com apenas nove anos de idade, estive na cidade cearense de Canindé, conhecida
como o "maior santuário franciscano das Américas", onde há uma grande romaria
dedicada à São Francisco das Chagas. Por lá apareciam vendedores de poesia popular,
os famosos folheteiros, atraídos pelo aglomerado de gente. Comercializavam os versos
de feira desde os tempos de Moisés Mathias de Moura, que começou a publicar seus
folhetos na década de 1930. Naquela oportunidade, meu pai presenteou-me com os
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-
dois volumes do folheto "A Vida de Cancão de Fogo e seu Testamento", de Leandro
Gomes de Barros.
A partir daquela data, Cancão e Leandro passaram a ser meus heróis (ou anti-heróis?)
prediletos. Mais que quaisquer outros que eu viria a conhecer posteriormente,
nacionais ou importados (João Grilo, Macunaíma, Malazartes, Zorro, Robin Hood e
Jerônimo - O herói do sertão), do cinema ou dos quadrinhos. Foi paixão à primeira
vista, identificação total com o irreverente personagem e seu criador, cuja importância
nunca foi devidamente reconhecida em nosso país. Apesar dos esforços de Câmara
Cascudo, Leonardo Mota, Sílvio Romero, Manuel Diegues Jr., Sebastião Nunes Batista e
outros intelectuais, Leandro só viria a ter algum valor perante os seus compatriotas
(não o povão, que sempre consumiu seus folhetos, mas os pseudo-intelectuais plenos
de academicismo) depois que virou alvo da pesquisa de intelectuais franceses e norteamericanos, como Raymond Cantel e Mark J. Curran. E mais ainda depois que Carlos
Drummond de Andrade o considerou superior a Olavo Bilac, que, curiosamente,
nasceu e faleceu também nas mesmas datas que Leandro (1865-1918). Pode,
aparentemente, haver um certo exagero da parte de Drummond, mas temos que
considerar o fato de que Leandro foi muito mais popular, que suas obras tiveram
milhares de edições e que foram consumidas até por analfabetos, que compravam seus
folhetos e pediam para que terceiros, semi-alfabetizados, longe dos salões
engalanados, lessem em voz alta. Tais leituras formavam verdadeiros saraus de poesia
nas noites sertanejas, com dezenas de ouvintes embevecidos com a leitura alegre e
cadenciada de: Cachorro dos Mortos, Juvenal e o Dragão, Donzela Teodora, Soldado
Jogador, Sofrimentos de Alzira, Alonso e Marina e Meia-Noite no Cabaré.
Leandro ficou órfão de pai ainda criança e mudou-se com a mãe para a Vila do TeixeiraPB, onde morava o seu tio materno Padre Vicente Xavier de Farias, que ajudou a criálo. Esse dito Padre Xavier de Farias, além de vigário da Vila do Teixeira, era também
professor de Latim e Humanidades, o que no passado chamava-se padre-mestre,
sendo, provavelmente, o responsável pela educação daquele garoto, que cedo revelou
os seus pendores para a Literatura, embora não tenha permanecido muito tempo na
escola, pois se afirma que, devido aos maus tratos que o padre lhe infligia (levemos em
conta também a própria irreverência do biografado) e algumas desavenças por causa
da herança deixada por seu pai - o padre era o tutor da herança de sua família -,
abandou a escola e fugiu de casa aos 11 anos, tendo passado muitas privações.
Qualquer semelhança com a história de Cancão de Fogo e Alfredo, personagens criados
pelo mestre de Pombal, talvez não seja mera coincidência...
"Esse homem que me cria
Me maltrata em tal altura
Que nem um preso no cárcere
Sofrerá tanta amargura
Não foi Deus, é impossível
Que me deu tanta amargura."
Cancão de Fogo, um amarelinho da mesma estirpe de Pedro Malazartes e João Grilo, é
descrito por Leandro como "o quengo mais fino/dessa nossa geração". Familiares do
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-
poeta contam que o jovem Leandro era um menino "endiabrado", sempre disposto a
aprontar travessuras, que ainda hoje estão retidas na oralidade de seus parentes. Não
eram exatamente brincadeiras de mau-gosto, mas atitudes que demonstravam grande
irreverência. No velório de um tio, trepou-se numa janela e ficou de atalaia, esperando
a passagem de uma criada da casa, fingindo-se de onça. E não é que acabou pulando
em cima da mesma, imitando o rosnado do feroz felino? Foi uma situação de grande
hilaridade, exceto para sua tia, a viúva, que ficou muito magoada. Câmara Cascudo
comparou esse seu folheto - A Vida de Cancão de Fogo e o seu Testamento-, em seu
"Vaqueiros e Cantadores", a um livro outrora famoso, "Palavras Cínicas", do escritor
português Albino Forjaz de Sampaio, uma das obras mais lidas no Brasil, no início do
século passado... Realmente, a obra de Forjaz Sampaio é plena de irreverência, cheia
de máximas que podem haver inspirado Leandro. Porém somos de opinião que
Leandro inspirou-se em sua própria história para compor o irrequieto Cancão. Como
seu criador, Cancão também perdeu o pai ainda criança:
"O pai de Cancão de Fogo
Foi um homem preparado
De muito bons sentimentos
E muito bem arranjado;
Mas a sorte nesse mundo
Dá e tira, como um dado.
(...)
Cancão de Fogo já tinha
Nove ou dez anos de idade
Quando o pai dele morreu...
Deixou-os em orfandade;
Cancão quando soube disse:
- Isso não é novidade!
- Mamãe está sem marido,
Por isso não vá chorar;
Eu também fiquei sem pai
Porém, sempre hei de passar.
Ela pode achar marido Pai é que eu não posso achar!"
Segundo informações da escritora Cristina da Nóbrega, professora de Teologia em
Recife, bisneta de Daniel Gomes da Nóbrega, Leandro era irmão de seu bisavô e
também de Adonias, Cândida e Raimunda. Graças aos seus esforços foi possível, pela
primeira vez, fazer-se um esboço da árvore genealógica do poeta, mesmo que faltando
algumas peças primordiais, como o nome de seu pai. Sabe-se que a mãe se chamava
Adelaide e era irmã do já citado Padre Vicente Xavier de Farias, que ficou como tutor
da família, após a morte do pai de Leandro. É público e notório que os dois não se
entendiam, motivo pelo qual Leandro acabou mudando o próprio sobrenome,
renegando o "da Nóbrega" (da família de seu tio) e adotando "de Barros", que talvez
fosse o outro sobrenome de seu pai.
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-
"Cancão era um apelido
Que os irmãos lhe puseram
Pelas travessuras dele
Esse apelido lhe deram,
Por ele nunca querer
O que os parentes quiseram.
(...)
Por isso Cancão um dia
Estava numa discussão,
Disse a um irmão da mãe dele:
- Homem algum tem distinção!
A vantagem do fiel
É a mesma do ladrão.
Já tenho quase dez anos,
Nunca ouvi dizer assim:
"Pedro escapou por ser bom,
Paulo morreu por ser ruim"...
Bom e mau, bonito e feio
Tudo tem o mesmo fim."
O certo é que, tendo deixado o município de Pombal antes de completar dez anos,
ainda residiu até os 15 anos de idade no Teixeira, na Paraíba berço de Inácio da
Catingueira, Romano da Mãe D'água, Agostinho Nunes da Costa, Hugolino do Sabugi e
outros grandes cantadores do passado. Tendo se mudado, após esse período, para
Vitória de Santo Antão-PE, o poeta teve que trabalhar para se manter.
"A mãe do Cancão de Fogo
Decidiu-se a trabalhar;
Cancão de Fogo não quis
A isso se sujeitar
Dizendo: - Não tenho forças
Para o serviço acabar...
Agora, para viagem,
Ou para qualquer mandado
Achava-se de prontidão
Não se mostrava enfadado;
Ninguém conseguia dele
Era trabalho pesado."
Em Jaboatão, Leandro casou-se com dona Venustiniana Eulália de Sousa (que tornou-se
"de Barros"), com quem teve quatro filhos, segundo apurou a conceituada
pesquisadora Ruth Brito Lemos Terra em sua obra "Memórias de Lutas: Literatura de
Folhetos do Nordeste - 1893 - 1930". Conforme relatam seus contemporâneos, nunca
teve outro ofício além de escrever, imprimir e revender os seus versos, coisa muito rara
- 212
-
no Brasil... Os filhos de Leandro eram Rachel Aleixo de Barros (que se casou em 1917
com o escritor Pedro Batista, irmão do também poeta Francisco das Chagas Batista),
Erodildes (Herodíades?) (Didi), Julieta e Esaú Eloy; este último seguiu a carreira militar,
tendo participado da Revolução de 1924 e da Coluna Prestes. Durante as pesquisas
realizadas para elaboração de sua obra, Ruth Terra conseguiu entrevistar Julieta Gomes
de Barros, uma das filhas de Leandro. Um dos filhos, Esaú, assinou juntamente com
mãe o documento de venda da obra de seu pai ao poeta João Martins de Athayde, em
1921. Sobre essa Herodíades, há um episódio interessante: Cristina da Nóbrega,
baseada em relatos de seus ancestrais, conta que quando Leandro foi batizá-la, o padre
quis saber o nome e poeta disse-lhe que seria Herodíades (o mesmo nome da mulher
de Herodes, tetrarca da Galiléia, que mandou matar o profeta João Batista, o
Precursor). O padre recusou-se terminantemente a batizá-la com esse nome e o
irreverente Leandro saiu da igreja dando muxoxos, dizendo que teria outros filhos e
que se chamariam Jesus Cristo II e Judas Iscariotes. Leandro fazia isso para chocar...
Dizia-se ateu, mas ninguém conhecia a Bíblia tão bem quanto ele. Na verdade, ele
criticava os vícios do clero, mas não se afastava da doutrina cristã.
Em 2005, publiquei um artigo no "site" da Câmara Brasileira dos Jovens Escritores
(CBJE) sobre os 140 anos de nascimento de Leandro. Cristina da Nóbrega, a bisneta de
seu irmão Daniel, postou o seguinte comentário:
"Leandro foi irmão de meu bisavô Daniel Gomes da Nóbrega. Portanto, Leandro era um
Nóbrega. Mudou para Barros em decorrência de uma discussão com o seu tio, o Padre
Vicente Xavier de Farias. Quando os irmãos do Padre Vicente morreram, ele ficou por
tutor das duas famílias, uma estava falida, e a outra tinha dinheiro. O Padre Vicente
passou, então, os bens do irmão para o outro, deixando a família de Leandro (bem
como o meu bisavô Daniel) na miséria. E quando Leandro foi tomar satisfações, ele
mandou dizer que "no cabaço ainda cabia orelha". Leandro, com raiva, mudou o
sobrenome de Nóbrega para Barros. (26/06/2007)".
Essa história do "cabaço" é a seguinte. O avô do padre Vicente foi morto covardemente
por jagunços, num momento em que se encontrava sozinho em sua fazenda, pois seus
filhos, genros e noras haviam ido a uma festa. A avó do padre incitou a família à
vingança. Filhos e genros (e talvez netos) saíram armados, em perseguição ao grupo de
cangaceiros, só retornando à fazenda depois que mataram os nove agressores e
extirparam nove pares de orelhas, que foram salgados, enfileirados num cordão e
postos numa cabaça como troféu. O padre não escaparia à sátira mordaz de Leandro,
que o caricaturou no folheto "A confissão de Antônio Silvino", em que o padre aparece
como um colecionador de orelhas de cangaceiros, conforme se vê nas estrofes
seguintes:
"O padre disse: - Meu filho,
Talvez hoje eu lhe dê cabo Dentro da igreja sou padre,
Mas fora sou um diabo!
Você diz que não tem fim,
Porém, se partir pra mim,
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-
Vem mole que só quiabo!
(...)
Antônio Silvino disse:
- Pois vamos ver, padre-mestre!
Custoso é ver sogra boa
E nova-seita que preste,
Bode por gosto lavar-se,
Jumento no mar criar-se,
Nascer baleia no agreste!
O padre disse: - Eu não acho
Nada no mundo custoso Custoso é você sair
Comigo vitorioso,
Eu, no tempo que brigava,
Todos os dias guardava
Orelhas de criminoso!"
Pois bem... Ao ameaçar o sobrinho dessa maneira, dizendo que "no cabaço ainda
cabiam orelhas", Padre Vicente lembra muito o tio do CANCÃO DE FOGO, que mandou
o mulato Zé Vaqueiro no seu encalço, com uma precatória para prendê-lo...
"O tio dele sabendo
O que tinha se passado
Foi à casa da mãe dele
Que ia desesperado
Dizendo que do Cancão
Inda seria vingado."
Em quase todos os livros onde se encontram dados biográficos de Leandro, consta a
informação de que, entre os 13 e 15 anos, ele fugiu de casa, da mesma maneira que
seu personagem Cancão de Fogo. Abandonou a família e depois de bolar "de déu em
déu", acabou fixando-se primeiramente em Vitória de Santo de Antão, depois em
Jaboatão (onde casou e iniciou a publicação de seus versos, por volta de 1893) e,
finalmente, fixou-se em Recife, uma das maiores capitais do país, onde deu vazão a seu
estro e também à sua boemia. O Cancão "largou-se de estrada afora / sem direção,
sem destino /... /Foi procurar uma casa / Que empregasse menino".
"Um dia disse consigo:
- Minha mãe tem precisão...
Talvez não tenha mais roupa
E até lhe falte pão;
Vou mandar-lhe esse dinheiro,
Ela me agradeça ou não!
Mandou-o pelo correio,
Mandou dizer onde estava,
- 214
-
O emprego que ele tinha
E a quantia que ganhava;
Então, mandou lhe dizer
Que todo mês lhe mandava.
Assim mesmo, pela velha,
Tudo tinha se arrumado.
Ela pensou que Cancão
Tivesse até melhorado;
Mas o tio, quando soube,
Ficou como um cão danado.
(...)
E era irmão da mãe dele
Essa fera inconsciente,
Só odiava a Cancão
Por ser ele inteligente
E os filhos* desse monstro
Brutos desgraçadamente".
Padre com filhos? Isso pode parecer estranho nos dias de hoje, mas no Nordeste do
Século XIX era coisa muito comum. Vejamos o que diz, a respeito do padre Xavier de
Farias, Frei Hugo Fragoso, em trabalho de resgate da origem das antigas famílias do
Teixeira, intitulado "Dos Sucurus aos Teixeirenses":
A Segunda filha da lista dos filhos de Ubaldina Camila de S. José e Manuel Batista dos
Santos foi Maria Batista Guedes (tia de Pedro Batista, genro de Leandro). Segundo
informação de José Obrigo, casou-se ela com um primo seu, filho de Tosinha, uma das
irmãs de Manuel Batista dos Santos. De acordo com informações de Antônio Batista,
filho de Cosma Filismina, sua tia Maria se casou com Manuel José Firmino. Antes deste
casamento, Maria Batista Guedes tivera com o Padre Vicente Xavier de Farias, uma
filha que fora retirada da vila do Teixeira para o sitio de Riacho Verde, aonde veio a
morrer. Teve, depois, um segundo filho. Cristina da Nóbrega informou-me que esse
Antônio Xavier de Farias era conhecido no Teixeira como "Tonho do Padre Vicente".
Apesar de não ter sido reconhecido publicamente como filho legítimo, tinha o mesmo
sobrenome do pai. Dr. Antonio Xavier de Farias, que o Padre Vicente preferiu que fosse
criado no Teixeira mesmo, por ter mais condições que no sítio. Esta informação é da
autoria de Palmira Nunes da Costa Rego. Em sua Recordação do Passado, Antônio
Batista de Melo registra o falecimento de sua cunhada Maria, a 20 de dezembro de
1880, na vila do Teixeira (RP, s/p).
Voltemos ao José Vaqueiro, do poema de Cancão. É possível, que ao fugir de casa, os
familiares de Leandro, instigados pelo tio, tenham mandado alguém procurá-lo no
lugar em que se encontrava. A mãe querendo saber do seu paradeiro. O tio, talvez,
querendo vingar-se de sua ousadia... Qualquer família de bom senso faria isso...
Leandro, gozador contumaz, que se autodenominava um dos maiores humoristas do
Brasil, segundo Egídio Oliveira Lima, dramatizou a fuga de Cancão, inspirado, talvez, na
sua própria trajetória:
- 215
-
“Havia ali um mulato
Chamado José Vaqueiro
Um indivíduo ladrão,
Covarde e alcoviteiro
Jurava o que nunca viu
Por diminuto dinheiro.
Esse tendo feito um roubo,
O Cancão de Fogo viu,
Foi ao subdelegado
E o roubo descobriu;
Por isso o cabra foi preso
E a sentença cumpriu.
O tio de Cancão de Fogo
Julgou ir muito acertado:
Mandou, por José Vaqueiro,
Vir o Cancão escoltado,
Dizendo, com seus botões:
- Ele chega desgraçado!
O resto fica por conta da imaginação de Leandro... José Vaqueiro, depois de embriagarse, foi preso, graças à intervenção do Cancão de Fogo, tendo que suportar 60 dias de
prisão, fora as surras diárias. Talvez, nada disso tenha acontecido em sua vida real. Mas
Leandro, ao fugir de casa, usou desse artifício - a imaginação plena de graça que Deus
lhe dera - para vingar-se dos que lhe tinham atormentado em sua
infância/adolescência. O certo é que, na história de Cancão, José Vaqueiro se deu mal e
Cancão, que não era besta, tratou de sair de onde estava, em busca de outro pouso:
"O Cancão disse consigo:
- Eu aqui, sou descoberto;
Pedir a conta e sair,
Este é o plano mais certo!
Eu não quero que a polícia
Me ache de corpo aberto...
(...)
Cancão antes de sair
Fez duas cartas primeiro:
Uma foi para a mãe dele
Mandando-lhe mais dinheiro,
Outra ao tio, dando lembranças,
Que mandava Zé Vaqueiro...
Dizia a carta do tio:
"O seu mordomo excelente
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Eu apresentei-o aqui
Ao delegado, somente;
Foi para casa da Câmara,
Seguido por muita gente.
Está na casa do Governo
Lá tem honras de sultão!
Soldados ali na porta,
Sempre à disposição...
Se o senhor tivesse vindo,
Era mais satisfação."
Outros folhetos que certamente guardam informações autobiográficas são: A Órfã, O
Padre Jogador e todos que tratam da aguardente, uma das paixões do poeta. Estima-se
que a vasta produção literária de Leandro, iniciada em 1889, no estado de
Pernambuco, atinge cerca de 600 títulos, dos quais foram tiradas mais de 10 mil
edições. Entre 1906 e 1913 foi proprietário de uma pequena gráfica - a Typografia
Perseverança - destinada exclusivamente à impressão e distribuição de seus próprios
folhetos, tendo vendido o seu prelo ao amigo Francisco das Chagas Batista, da Popular
Editora, em função de suas muitas viagens e pouco interesse dos filhos (ainda
pequenos) pelo ofício de tipógrafo.
O poeta Joaquim Batista de Sena, em entrevista concedida a pesquisadores do Centro
de Referência Cultural da Secretaria de Cultura e Desporto do Estado do Ceará, em
1978, dá preciosas informações sobre a maneira como Leandro comercializava seus
folhetos. Na verdade, ele contesta a denominação "Literatura de Cordel", que se
popularizou a partir da década anterior à entrevista. Sena diz que o poeta mais antigo
ainda vivo naquela época (1978) era Manoel Tomás de Assis (Manoel Limão), que
conhecera Leandro pessoalmente e chegou a vender folhetos juntamente com ele na
feira de Goiana-PE. De acordo com o testemunho de Manoel Tomás, Leandro
comercializava suas obras sobre uma lona, estendida no meio da feira, ao passo que
Manoel Tomás conduzia seus folhetos num saco de pano que levava a tira-colo, tirando
apenas pequenos punhados de folhetos para fazer a propaganda. João Melchíades,
contemporâneo de Leandro, conduzia seus livretos em malas de couro, no lombo de
animais e os expunha dessa maneira nas feiras. Nada de folheto pendurado em cordão
ou cordel, termo que veio de Portugal e surgiu escrito pela primeira vez, em livros que
datam do último quartel do século XIX.
Após a morte de Leandro, em 1918, seu genro Pedro Batista (irmão de Chagas Batista e
esposo de Rachel Aleixo de Barros), continuou editando a obra do sogro em GuarabiraPB, fazendo algumas revisões de linguagem. Na 3ª edição completa de "O Cachorro dos
Mortos", um dos maiores clássicos de Leandro, publicado em Guarabira-PB em 1919
(um ano após a sua morte), Pedro Batista colocou o seguinte aviso:
"Tendo falecido o poeta Leandro Gomes de Barros passou a me pertencer a
propriedade material de toda a sua obra literária. Só a mim, pois, cabe o direito de
- 217
-
reprodução dos folhetos do dito poeta, achando-me habilitado a agir dentro da lei
contra quem cometer o crime de reprodução dos ditos folhetos."
Ainda na contracapa do dito folheto, Pedro Batista dá nome aos "bois" responsáveis
pela "pirataria": "Já achava-se este folheto em composição quando chegou ao meu
conhecimento que em Belém do Pará, um indivíduo de nome Francisco Lopes e no
Ceará um outro de nome Luiz da Costa Pinheiro, têm criminosamente feito imprimir e
vender este e outros folhetos do poeta Leandro Gomes de Barros, sem a menor
autorização de minha parte que sou o legítimo dono de toda a obra literária desse
poeta."
Ora, bem pior fez João Martins de Athayde, que após adquirir por compra o espólio de
Leandro, tentou usurpar-lhe a autoria suprimindo o seu nome da capa dos folhetos e
alterando os acrósticos que Leandro utilizava no final dos poemas, a fim de confundir a
identificação. Essa prática condenável verifica-se em dezenas de obras reeditadas por
Athayde. Vejam só o que aconteceu com a última estrofe do folheto "A Força do Amor
ou Alonso e Marina", onde o acróstico LEANDRO foi alterado para IEANJRO:
Folheto editado pelo autor:
Levemos isso em análise
Então ver-se aonde vai
A soberba é abatida
No abismo tudo cai,
Deus é grande e tem poder
Reduz ao pó qualquer ser
O poder dele não cai.
Versão de João Martins de Athayde:
Isto fica como exemplo
Então ver-se-á onde vai
A soberba é abatida
No abismo tudo cai
Jesus é grande em poder
Reduz ao pó qualquer ser
O poder Dele que é pai.
A venda dos direitos autorais de Leandro Gomes de Barros, pela viúva do poeta, Dona
Venustiniana Aleixo de Barros, a João Martins de Ataíde ocorreu em 1921. O
pesquisador Sebastião Nunes Batista, que muito se empenhou pela restituição de
autoria de Leandro e de outros poetas populares, informa como se deu essa transação,
em artigo intitulado "O seu ao seu dono..." publicado na revista Encontro com o
Folclore (Rio de Janeiro, 5 de abril de 1965): "Dona Vênus, como era chamada na
intimidade, desentendera-se com o seu genro Pedro Batista, porque tendo este
enviuvado de sua filha Rachel Aleixo de Barros, que faleceu de parto da pequena
Djenane, não concordou em que a menina fosse para companhia da avó materna, e
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-
esta em represália autorizou João Martins de Athayde a editar parte da obra literária
do grande poeta popular paraibano Leandro Gomes de Barros."
Escreveu folhetos de cordel de grande aceitação popular, como O Cachorro dos
Mortos, Branca de Neve e o Soldado Guerreiro, Batalha de Oliveiros com Ferrabrás,
Peleja de Riachão com o Diabo, História da Donzela Teodora, Juvenal e o Dragão,
Antônio Silvino, o Rei dos Cangaceiros e O Boi Misterioso. Pioneiro na produção de
literatura de cordel no país, Leandro Gomes de Barros foi considerado por Luís da
Câmara Cascudo "o mais lido de todos os escritores populares. Escreveu para
sertanejos e matutos, cantadores, cangaceiros, almocreves, comboieiros, feirantes e
vaqueiros. É lido nas feiras, nas fazendas, sob as oiticicas, nas horas do 'rancho', no
oitão das casas pobres, soletrado com amor e admirado com fanatismo. Seus
romances, histórias românticas em versos, são decorados pelos cantadores".
AINDA SOBRE A MORTE DO POETA
Segundo Ruth Brito Lemos Terra, Leandro faleceu no dia 04 de março de 1918, na Rua
Passos da Pátria - Recife, endereço que só aparece em seu livro Memória de Lutas:
Literatura de Folhetos no Nordeste - 1893 - 1930, editora Global, 1983, uma das fontes
mais dignas de crédito. Sobre esse fato, vejamos o que escreveu Permínio Ásfora, no
Diário da Noite de Recife, em 13/12/1949, em artigo intitulado "Crise no romanceiro
popular": "Trechos de sua vida são lembrados ainda hoje. Contam que já morava aqui
no Recife quando um senhor de engenho, indignado com um morador, resolveu aplicar
neste uma sova de palmatória. (...) Um dia o senhor de engenho é surpreendido por
violenta punhalada vibrada pela mesma mão que levara seus bolos. O poeta Leandro
aproveita o caso policial, transformando-o em folheto que era um libelo contra o
senhor de engenho. Descreve em "O punhal e a palmatória", com calor e simpatia, a
inesperada vindita. O chefe de polícia, enfurecido com a literatura de Leandro, manda
metê-lo na cadeia. Apesar de folgazão, Leandro era homem de muita vergonha e de
muito sentimento. E como naquele já distante ano de 1918 a cadeia constituía uma
humilhação, à humilhação da cadeia sucumbiu o grande trovador popular"
Ásfora cita a seguir uma estrofe do dito folheto que afirma ser a primeira:
"Nós temos cinco governos
O primeiro, o Federal,
O segundo o do Estado,
O terceiro, o municipal,
O quarto é a palmatória
E o quinto o velho punhal".
Ruth Terra, nas pesquisas de seu livro já mencionado, encontrou o dito folheto "A
palmatória e o punhal" no acervo do Fundo Villa-Lobos e constatou que a primeira
estrofe difere daquela citada por Permínio Ásfora:
"Desde que entrou a República
Que o nosso país vai mal
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-
Pois o lençol da miséria
Cobriu o mundo em geral
Deixando a mão entregue
À palmatória e ao punhal".
A referida escritora não teve o cuidado de verificar se a estrofe recolhida por Permínio
Ásfora encontra-se em outro trecho do referido folheto, apreendido pelo chefe de
polícia de Recife em 1918. Alguns pesquisadores afirmam que Leandro morreu vítima
da Influenza espanhola.
LEANDRO POR ELE MESMO
A cabeça, um tanto grande e bem redonda,
O nariz, afilado, um pouco grosso:
As orelhas não são muito pequenas,
Beiço fino e não tem quase pescoço.
Tem a fala um pouco fina, voz sem som,
Cor branca e altura regular,
Pouca barba, bigode fino e louro,
Cambaleia um tanto quanto no andar.
Olhos grandes, bem azuis, têm cor do mar:
Corpo mole, mas não é tipo esquisito Tem pessoas que o acham muito feio,
Mas a mamãe, quando o viu, achou bonito!
Não se sabe ao certo o número de histórias que escreveu. Estima-se que foi autor de
mais de 600 obras, das quais, pelo menos umas 50 são verdadeiros clássicos do
gênero. Alguns escritores insistem em chamá-lo de "caboclo entroncado". Baixo sim,
caboclo não! Leandro era louro, de olhos azuis, bigode louro também, como o seu
irmão Daniel, que apresenta as mesmas características, conforme descrição de sua
bisneta Cristina da Nóbrega (Teófila).
MEIA-NOITE NO CABARÉ - A POLÊMICA
Diversos autores simpatizantes do poeta João Martins de Athayde tentam atribuir ao
poeta do Ingá do Bacamarte a autoria de alguns folhetos comprovadamente escritos e
editados por Leandro, baseados em informações nebulosas, que nas mãos de um leitor
mais atento e informado são facilmente dissipadas. Agem ao contrário de Sebastião
Nunes Batista, que foi criterioso em sua pesquisa e procurou basear-se em edições
bem antigas, impressas entre 1900 a 1921, por Leandro ou por seu genro Pedro Batista,
cujo valor histórico e documental é incontestável.
Para citar apenas um exemplo, vejamos o que diz Umberto Peregrino em sua obra
Literatura de Cordel em Discussão, Editora Presença, 1984, Rio de Janeiro, (pág. 133):
"Quem era lido em Camões (refere-se à Athayde) é possível que freqüentasse também
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-
outros autores capazes de enriquecer a sua inspiração. Daí a hipótese de "A noite na
taverna" (de Álvares de Azevedo) haver sido a fonte inspiradora de "Meia-Noite no
Cabaré", folheto que teria circulado em 1901, cuja autoria o professor Átila de Almeida
atribui, com segurança a Athayde, repelindo a hipótese de Leandro, que jamais se daria
a leituras como a de Camões ou de Álvares de Azevedo".
Eis um argumento frágil e fácil de rebater.
1 - Leandro era leitor assíduo de vários livros, fontes permanentes de inspiração para
elaboração de seus poemas, como se vê na estrofe final do folheto "História da Donzela
Teodora":
"Caro leitor, escrevi
Tudo que no livro achei
Só fiz rimar a história
Nada aqui acrescentei
Na história grande dela
Muitas coisas consultei."
Cascudo detectou semelhanças entre seu personagem Canção de Fogo e o livro
Palavras Cínicas, de Albino Forjaz de Sampaio. Sabe-se também que Leandro compôs a
Batalha de Oliveiros com Ferrabrás e A prisão de Oliveiros inspirado no livro de Carlos
Magno e os Doze Pares de França. Fez a Donzela Teodora "Tirado tudo direto do livro
grande dela", Juvenal e o Dragão vem do conto "Os três Cães", Pedro Cem também
vem de um livro de origem lusitana. Os Martyrios de Christo vem, certamente, de O
Mártyr do Gólgotha, do romancista espanhol Enrique Pérez Escrich. E muitos outros
exemplos... Seu genro Pedro Batista, escritor, membro do Instituto Histórico e
Geográfico da Paraíba era dono de livraria em Guarabira e estava familiarizado com os
clássicos da Literatura portuguesa e Brasileira. Leandro certamente freqüentava a sua
livraria (bem como a do amigo Chagas Batista, na capital da Paraíba) e tinha acesso a
essas obras. Assim sendo, porque cargas d'água o professor Átila de Almeida acha
impossível Leandro ter lido Álvares de Azevedo?
2 - Se o folheto "Meia-Noite no cabaré" circulou em 1901, conforme atestam Átila de
Almeida e Egídio de Oliveira Lima (in Folhetos de Cordel, Editora Universitária/UFPb,
1978 - p. 74, que o atribui à Leandro) seguramente não é de Athayde, pelo simples fato
de que ele mesmo afirmou, em várias entrevistas, haver iniciado suas atividades
poéticas em 1908. Nessa data, provavelmente, estava na Amazônia, fazendo filhos
ilegítimos nas índias e aprendendo curandeirismo com os Pajés.
3 - Se formos nos aprofundar nesse assunto, não há um único argumento dos
defensores de Athayde que não seja facilmente demolido, com provas concretas e
cabais. Liêdo Maranhão de Sousa, em seu livro "O Folheto Popular: Sua Capa e seus
Ilustradores" Ed. Massangana, 1981, p. 35, incorre no mesmo erro, baseado,
certamente, em declarações de Delarme Monteiro, de quem era amigo. Falando sobre
as capas de "folhetos de Athayde" ilustradas com desenhos de Antonio Avelino Costa,
funcionário do Jornal do Recife, (a maioria dos que Liêdo atribui ao poeta do Ingá do
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-
Bacamarte são comprovadamente de Leandro, ex: Vida de Pedro Cem, História de João
da Cruz, A mulher em tempo de crise etc.), Liêdo diz que Meia-Noite no Cabaré é um
"livro que Athayde escreveu, inspirado no Curral das Éguas, antiga zona do meretrício
no Pina, em noitada com o companheiro Delarme Monteiro." Ora, já informamos aqui
que Egídio de Oliveira Lima e outros autores atestam a antiguidade desse texto,
datando-o de 1901. Se Delarme Monteiro nasceu em 1918 e passou a trabalhar com
Athayde já adolescente, como poderia ter testemunhado a criação de uma obra escrita
antes de seu nascimento?
4 - Para encerrar a polêmica, vejamos o que diz Egídio de Oliveira Lima in Folhetos de
Cordel, Editora Universitária/UFPb, 1978 - p. 74: "Este opúsculo foi publicado uma
única vez em 1901, na Imprensa Industrial, Recife. Dificilmente encontraremos um de
seus exemplares. O que tenho em mãos pertenceu a coleção de meu avô paterno,
Manoel Jesuíno de Lima. (...) O folheto Meia-Noite no Cabaré tinha 16 páginas. O que
possuo está fragmentado." Na relação dos cem melhores folhetos de Leandro Gomes
de Barros, elaborada por Egídio, Meia-Noite no Cabaré aparece logo na terceira
indicação, depois de A Força do Amor e A Morte de Alonso e a Vingança de Marina.
Outra incógnita é o romance "História de Roberto do Diabo". Poetas mais antigos,
como João Firmino Cabral, atestam que viram edições antiqüíssimas dessa obra com o
nome de Leandro na capa. O poeta Klévisson Viana, da Tupynanquim Editora, teima em
atribuí-lo a João Martins de Athayde, baseado numa estrofe em que Roberto do Diabo
(um personagem medieval) é chamado de "cangaceiro", alegando que Leandro não
cometeria um engano desses. Ora, no folheto "A confissão de Antônio Silvino", Leandro
diz o seguinte, logo na terceira estrofe:
"E a Escritura nos diz:
Dimas foi um quadrilheiro,
Madalena namorava,
São Paulo foi cangaceiro...
Todos foram perdoados São hoje santificados
Graças ao manso Cordeiro!"
Dúvida semelhante paira sobre o folheto "O cavalo que defecava dinheiro", um dos
cordéis que inspiraram "O Auto da Compadecida". O próprio Ariano Suassuna, em
texto publicado no volume Estudos, de Literatura Popular em Verso, admite que pelo
estilo dos versos, o folheto não poderia ser de outro poeta senão do velho Leandro
Gomes de Barros. Leandro que foi autor de um folheto intitulado "Os três quengos
finos", gostava muito de escrever sobre esse tema (João Leso e Cancão de Fogo
também são descritos como "quengos" extraordinários). Quengo, quengada, quengo
fino, quengo lixado são expressões que, praticamente, só aparecem na obra de
Leandro nas duas primeiras décadas do século XX, período em que circularam as
primeiras edições desse folheto. Vejamos mais um caso de "quengo refinado" no
folheto "A Confissão de Antônio Silvino", cuja astúcia do padre é assim descrita:
"Disse o padre: - Ora, Jesus
Perdoou ao Bom Ladrão!
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-
Silvino perguntou: - Como
Eu posso alcançar perdão?
Disse o padre: - Se entregando Primeiro se confessado,
Se recolhendo à prisão!
Entregando-me o dinheiro,
Que dos outros tem roubado;
Me entregando esse armamento Assim será perdoado!
- Vôte! Respondeu Silvino.
Você tem o quengo fino
Mas o meu é refinado!"
Ariano Suassuna oportunamente chama a atenção para o fato de que o compadre
pobre de "O cavalo que defecava dinheiro" é descrito pelo autor como um "bicho do
quengo lixado". Ao admitir a existência de outras tiradas tipicamente leandrinas, o
grande dramaturgo paraibano dá a pista certa sobre a autoria do folheto.
CONCLUSÃO SOBRE "MEIA-NOITE NO CABARÉ"
Pela data do folheto (1901), e pela indicação de autoria que nos fornece Egídio Oliveira
Lima, que teve um antigo exemplar de Meia-Noite no Cabaré em mãos (provavelmente
da primeira edição), esse clássico é seguramente de Leandro e não da lavra de
Athayde.
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-
Nota Explicativa a “Viagem a São Saruê” de Manoel Camilo dos Santos
Por Sofia de Melo Araújo
(Projecto “Utopias Literárias e Pensamento Utópico: a Cultura Portuguesa e a Tradição Intelectual do Ocidente” –
Faculdade de Letras da Universidade do Porto)
“A imaginação social, além de factor regulador e estabilizador, também é a faculdade que permite que os modos
de sociabilidade existentes não sejam considerados definitivos e como os únicos possíveis, e que possam ser
concebidos outros modelos e outras fórmulas.”
Bronislaw Baczko, Les Imaginaires Sociaux Mémoire et espoirs collectifs
Espaço, tempo e cultura moldam − mas não toldam − a emoção humana perante uma
mesma situação. Na verdade, o imaginário da vida sensual sem pecado, competição ou
esforço que encontra um espaço literário nas narrativas medievais do País da Cocanha
− particularmente na Flandres, em França e em Inglaterra −, viaja através do tempo e
do espaço, ressurgindo em cada alma oprimida pela miséria. Daí que não nos deva
surpreender que o folheto de cordel Viagem a São Saruê, de Manoel Camilo dos
Santos, nos surja como uma reformulação do ideal da Cocanha, situado contudo no
Nordeste brasileiro de 1947. Não estamos perante uma excursão cultural consciente
pela tradição literária deste país ficcional, mas sim perante fiapos de uma narrativa oral
cuja epidérmica naturalidade impede a consciencialização do real percurso histórico
experimentado. De facto, o próprio Manoel Camilo dos Santos estranha o interesse
gerado por este seu texto, uma “bobagem” assente em contos populares da sua
infância que redundam na imprecação “Só em São Saruê onde feijão brota sem chovê”,
recorrente aliás na expressão quotidiana nordestina. Um pouco à guisa do também
folhetista Leandro Gomes de Barros, Camilo assume-se como o libretista das rimas de
uma história há muito contada.
O termo “Cocanha” surge na Idade Média Europeia para denominar uma terra de
abundância. No imaginário da Cocanha ecoam mitos, ânsias e esperanças intrínsecos à
existência humana e, como tal, impossíveis de demarcar cronologicamente. Para esta
imprecisão concorre igualmente a origem oral, folclórica mesmo, deste país no
imaginário ocidental. Muitos estudiosos, nomeadamente da Idade Média, da literatura
oral e da utopia, voltaram a sua atenção para os diversos registos escritos sobre esta
sociedade imaginária, mas a sua multiplicidade de sentidos permite as interpretações
mais variadas, para além da discussão inicial e ainda não saldada de a Cocanha poder
ser ou não perspectivada como uma utopia. As interpretações variam entre o folclore
meramente lúdico e escapista, a paródia aos mitos gregos, uma visão de Paraíso
terrestre, protesto social de cunho prémarxista, e o libelo anti-clerical...
A utopia do País da Cocanha − na qual a trindade do corpo social é substituída pela
unidade do corpo humano, terreno, físico, pleno de pulsões, desejos e instintos −
inspirou, ao longo dos tempos, não apenas leituras marxistas da Idade Média, mas
também uma plêiade de manifestações artísticas: musicais, como Cockaigne, do
britânico Edward Elgar; pictóricas, como a série de quadros de Pieter Brueghel, o
Velho; literárias, como o conto “Hansel e Gretel”, dos irmãos Grimm; dramáticas, como
a apropriação tudo menos abusiva da denominação para o país de doces da animação
infantil alemã “Bettina na Cocanha”, mas também para o país da saúde
desesperadamente ambicionada para o seu filho pelo personagem de James Byron
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Dean no filme televisivo de 1951 “The Bells of Cockaigne” ou para o centro comercial
das aventuras nocturnas do grupo jovem de “Schlaraffenland,” longa-metragem alemã
de 2003. Estamos, assim, perante um texto, senão gráfico, pelo menos mental, de
vitalidade inalterada, pois é radical à existência humana no tempo.
A chegada do imaginário da Cocanha ao Brasil assenta numa panóplia de factores cuja
maior ou menor pertinência está directamente vinculada à posição intelectual que
cada um escolha ocupar no espectro entre a recusa da leitura histórico-social da
literatura de Orlando Fedeli, para quem a Cocanha redundaria numa “observação
superficial do problema utópico”, e a sua priorização por autores como Karl Mannheim.
Pela minha parte, acredito que, sempre mais além de uma redutora explicação de
causa-efeito, extrair artificialmente todo e qualquer texto ao seu contexto de criação
constitui a falha suprema de, em nome de uma estética esteril(izada), se sacrificar o
conhecimento real, completo, pleno de matizes, cambiantes e opções. Como tal, é
impossível menosprezar os modelos sociais comuns ao feudalismo medieval e ao
nordeste brasileiro. Mesmo na ausência de uma consciência política estruturada, o
espírito humano não fica alheio ao sentimento de injustiça e ao desejo de alternativa
perante a opressão ideológica, económica e cultural. O Nordeste brasileiro, terra de
“coronéis” e grandes senhores agrícolas, viveu num misto de independência de um
poder central incapaz de penetrar a rede feudal das ligações regionais e de forte
dependência da terra, ficando, assim, sujeito às vicissitudes do clima.
É importante notar que falamos de um espaço que em pleno século XXI é ainda objecto
de campanhas contra a fome, tais como o Programa Fome Zero do Governo Federal de
Luís Inácio Lula da Silva. Ora, como lembra Fátima Vieira, o pensamento utópico
“sempre se manifestou de forma particularmente intensa em períodos de crise”. É
neste sentido que alinho totalmente com Hilário Franco Júnior quando ele afirma que,
para compreender São Saruê, “(...) o ponto de partida deve ser as condições do
Nordeste brasileiro, de natureza pouco pródiga, suscetível a prolongadas secas, de
riqueza e poder concentrados nas mãos de poucas famílias, dos coronéis da época
republicana aos seus antecessores, os senhores do engenho do período colonial.
Situação de pobreza e dependência da maioria (...)”
A compreensão da pertinência deste texto no Brasil do século XX parece-me bem mais
frutuosa do que o estudo das várias possibilidades para a sua estrita entrada literária
no horizonte brasileiro, até porque a idealização de uma terra sensualmente perfeita
está longe de ser apanágio exclusivo do texto medieval, sendo, afinal, uma verbalização
instintiva, que surge da carência e do desejo, e que é comum a várias narrativas. No
Brasil, encontramos essa idealização na terra encantada dos índios tupinambás, refúgio
onde não existem trabalho, violência ou velhice. É, enfim, o sonho da eternidade sem
pecado nem castigo, sem dor nem ódio, sem fome nem exaustão: a versão animada do
Paraíso Celeste Cristão.
Este folheto de oito a dez páginas (consoante se trate ou não da versão ilustrada),
criado em Campina Grande (Pernambuco), constituído por trinta e uma sextilhas e
editado pelo próprio autor na sua Estrela da Poesia (editora quase doméstica), vai
beber ao País da Cocanha não apenas o culto do conforto, do repouso e da saciedade,
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-
mas também alguns dispositivos narrativos. Não pretendo com isto dizer, de forma
alguma, que Camilo dos Santos tenha tido contacto consciente com os textos
medievais, mas estou certa de que conheceu narrativas orais que neles assentavam e
cujos paralelos e contrastes com as versões primeiras (já elas bem distintas entre si)
são, também eles próprios, reflexo da cultura e do tempo que os recebem. São várias
as opções narrativas de Camilo comuns aos textos fundadores deste subgénero
literário: numa das primeiras narrativas conhecidas da Cocanha, escrita em francês, o
viajante parte a conselho de um frade; no folheto de cordel, a partida é feita a
conselho do “doutor mestre pensamento”; também este texto nos traz à memória a
iluminação de um mundo novo, real, que sempre esteve presente, descrito na tentativa
de arrancar os demais à opressão das sombras e dos grilhões do medo (do pecado? do
desconhecido? da verdade?), numa espécie de resgatada caverna platónica; por fim, tal
como no texto primevo, encontramos no texto de Camilo a disposição em verso
simples, popular, memorizável, por forma a levar a utopia, o bom lugar, e com eles,
suscitar sentimentos de revolta nos iletrados oprimidos. Neste sentido, a Cocanha de
Camilo dos Santos, tal como nos textos medievais, é verdadeiramente utópica,
perfilhando a ideia da possibilidade de uma vida alternativa, diferente. Como explica
Ruth Levitas, “Utopia (…) entails refusal, the refusal to accept that what is given is
enough, the refusal to accept that living beyond the present is delusional, the refusal to
take at face value current judgements of the good, or claims that there is no
alternative.”
No entanto, cumpre realçar uma série de diferenças claras entre o folheto de cordel e o
seu texto primordial. A primeira (e mais óbvia) diz respeito aos ideais gastronómicos. A
este respeito, interessa-nos sublinhar as palavras de Rosalyn Schorr, que associa a
utopia da Cocanha ao ideal da abundância: “Perhaps one of the utopian traditions that
went through the most changes was the story of ‘Cockaigne’. Cockaigne was an oral
tradition passed around the lower classes about a city made of food. (...) The story was
evolved into something more fitting for every culture, seeing as people in France were
not as excited about fish as they were about cheeses.”
A segunda diferença prende-se com a própria classificação dos países, pois, enquanto
os autores das diferentes versões da narrativa da Cocanha a denominam como um
vulgar topónimo, Camilo dos Santos recorre sempre à colocação do nome São Saruê
entre aspas, como que enfatizando o seu carácter ficcional. Este processo é acentuado
pelo facto de o autor não se preocupar em fornecer coordenadas que permitam ao
leitor uma localização geográfica do local idílico, o que não é usual acontecer nos
primeiros textos europeus da Cocanha. Mas a sexualidade é sem dúvida a área onde as
diferenças estão mais marcadas, demonstrando o peso da matriz cristã à qual os
resquícios pagãos da Cocanha tentavam resistir.
Na narrativa francesa da Cocanha, “Os jovens monges, ao verem isso,/ Levantam-se,
alçam vôo/ E logo chegam perto delas./ Cada monge escolhe uma,/ E rapidamente leva
a sua presa/ Para a grande abadia cinza/ Onde ensinam às monjas uma oração/ Com
pernas para cima e para baixo” e “ As mulheres dali, tão belas,/ Maduras e jovens,/
Cada qual pega a que lhe convém,/ Sem descontentar ninguém./ Cada um satisfaz seu
prazer/ Como quer e por lazer;/ Elas não serão por isso censuradas,/ Serão mesmo
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muito mais honradas./ E se acontece porventura/ De uma mulher se interessar/ Por
um homem,/ Ela o pega no meio da rua/ E ali satisfaz seu desejo/ Assim uns fazem a
*felicidade dos outros; ” já em São Saruê, “não se ver *sic+ mulher feia/e toda moça é
formosa/bem educada e decente/bem trajada e amistosa” *itálicos nossos+, e por aqui
fica o pudor descritivo do folhetista. A recusa de valores apriorísticos na Cocanha
estende-se à recusa da identificação de sabedoria com idade, dado que está ausente
de Viagem a São Saruê. O texto francês da Cocanha é retumbante ao afirmar o erro de
associar longas barbas a saber, pois que assim também bodes e cabras deteriam
suprema sapiência.
O texto de Camilo dos Santos surge, uma vez mais, no meio termo entre a contestação
do modelo social vigente e a obediência a um discurso civilmente aceite. Nesta linha
vem igualmente a ausência de referências à consonância ou não deste mundo
apresentado com os dítames morais do Cristianismo, naquele que era já então o país
com o maior número de crentes católicos. Estamos muito longe já dos monges e freiras
libertinos da versão anglosaxónica da Cocanha, mas, sobretudo do confronto directo e
superação do Paraíso declarado na mesma versão: “Mesmo o Paraíso risonho e
atraente,/ Não é tão maravilhoso quanto a Cocanha./ O que existe no Paraíso/ Além de
grama, flores e ramos?”. Esta é uma terra abençoada por Deus, mas não pela religião
instituída entre os humanos. O prazer não é mais fonte de vício, mas de virtude: todos
são bons, generosos e sinceros. Finalmente, os conselhos insistentes da voz da
Cocanha que urge a que, quem está bem, não mude, são substituídos por um jogo que
terá bem mais de subversão literária do que de mero marketing pregoeiro: Camilo dos
Santos promete indicar o caminho para São Saruê àquele que lhe comprar o próprio
folheto.
E assim chegamos a um aspecto fundamental na viagem entre Cocanha e São Saruê: o
desencanto de séculos de opressão que leva o nordestino a olhar com um sorriso
amargo de desistência, ironia e desprezo as fantasias de um destino pleno de prazer,
liberdade e vida.
Sugiro, para além do texto de Camilo dos Santos, publicado neste número por cortesia
da sua sobrinha, a quem agradeço desde já, a leitura dos seguintes folhetos de cordel
brasileiros:
“Viagem de um Trovador”, de Manoel Camilo dos Santos
“Uma Viagem ao Céu”, de Leandro Gomes Barros
“O Marco Brasileiro”, de Leandro Gomes de Barros
“No País de Tudo Grande”, de Francisco de Souza Campos
“O Marco do Meio Mundo”, de João Martins de Athayde
O meu agradecimento profundo por toda a sua colaboração para este trabalho e toda a
minha estima ao Professor Doutor Arnaldo Saraiva, à Professora Doutora Fátima Vieira
e ao Dr. João Leite e à equipa que dirige na Biblioteca Central da Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, para além da renovada gratidão a Marly Dias, sobrinha-neta de
Manoel Camilo dos Santos.
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http://serendip.brynmawr.edu/sci_cult/evolit/s04/web2/rschorr.html
Silva, Jorge Miguel Bastos da (2004), Utopias de Cordel e Textos Afins. Uma Antologia, Vila Nova de Famalicão,
Quasi Edições.
Vieira, Fátima (2004) “O Utopismo e a Crise da Contemporaneidade”, in Vieira, Fátima e Maria Teresa Castilho
(org.), Estilhaços de Sonhos Espaços de Utopia, Vila Nova de Famalicão, Quasi Edições.
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Manoel Camilo e Jorge Amado:
Viagens opostas nas asas da imaginação
Por Edilene Matos
“Começou a viajar
pelo mundo abertamente...”
Severino de Oliveira
“As perguntas do Rei e as respostas de Camões”
Rondas. Rotas. Mapas. Sagas. Peregrinações. Travessias. Andanças. Veredas. Literatura
de movimento. Poesia de viagem. E de vôo!
Homero, imitador, criador de aparências – pelo menos para Platão era assim – saiu
pelo mundo e deixou plantada sua Odisséia. Semente que se multiplicou através do
canto das sereias. As sereias, míticos seres, testemunharam as diversas travessias do
herói quase divino, mais-que-humano. As vozes dessas sereias, ecoadas no vai-e-vem
das espumas, diziam de narrativas fabulosas. Diz-se, hoje, de marcas específicas dessas
narrativas: viagens reais e viagens imaginárias.
Literatura de viagem: encruzilhada. Ponto de encontro, intersecção de literatura com
outras áreas de investigação. Penso, sobretudo, em história, antropologia, psicologia,
filosofia, geografia humana. Peregrinação fez Fernão Mendes Pinto. Camões, poetanavegador, viajou por mares lusíadas. Colombo, navegador-poeta idealista, aventureiro
e sonhador, relatou o novo mundo. Marco Pólo perseguiu a rota da seda.
Aqui, no Brasil, Brito Broca deixou gosto de quero-mais nas suas resenhas sobre a
viagem à América Latina. E Flávio de Carvalho apontou relação entre os dois planos: o
da novidade, o da tradição, sobretudo no Peru, espaço onde a modernidade (vista com
a velocidade da máquina) marca encontro com o folclore do povo, com o que se
denomina de primitivo. Choque. Encontro. Confronto. Por sua vez, Mário de Andrade
viajou no duplo sentido: real e imaginário. Em suas andanças, redescobriu e
redesenhou um Brasil insuspeitado.
Recentemente, Milton Torres, com seu livro Nos fins da Terra, experencia o mundo
lusooriental, onde não há mais espaço para heróis e heroínas.
A literatura de viagem permite circularidade entre as várias culturas e entre as várias
classes de uma cultura – dominantes e subalternos.
Se os povos dominantes, também chamados de colonizadores, construíram suas
narrativas a partir de informações de cunho mítico e religioso, assim também fizeram
as sociedades ditas primitivas. Os imaginários desses povos se alimentavam de mitos,
idealizações, crenças. Crença como aquela da perfeição dos primórdios, perfeição do
mundo original. Nesse ponto, pode se pensar no exemplo da cantada Idade de Ouro,
paraíso primordial, pleno de iluminações.
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Vou recortar uma silhueta textual. E, para esse recorte, aponto a tesoura em direção a
dois campos imagéticos/textuais: um, A Ronda das Américas, de Jorge Amado; outro,
Viagem a São Saruê, de Manoel Camilo dos Santos. Ambos os textos se inserem no que
se denomina literatura de viagem.
O texto de Jorge Amado – A Ronda das Américas - foi publicado em capítulos para o
jornal D. Casmurro, no ano de 1938. Esse periódico de grande circulação à época,
dirigido por Brício de Abreu, tinha como figura de proa o inquieto Álvaro Moreyra. Os
textos que compõem A Ronda das Américas foram estampados em seis blocos, quase
que semanalmente, como se pode verificar na seguinte relação:
1. Ainda Brasil - 17, 24 e 31 de maio
2. Uruguai - 7 de abril
3. Argentina - 14 e 21 de abril
4. Cordilheira dos Andes – 28 de abril
5. Chile - 12, 21 de maio e 2 de junho
6. Peru - 9 de junho
Mas a ronda não estava completa. E, em 1939, Jorge publica, no Suplemento Literário
nº 2 da Revista Diretrizes, o fragmento México todo pitoresco e uma reportagem
gráfica A pintura mural e seus expoentes na América.
Em boa hora, Raúl Antelo se impôs a tarefa de estabelecimento do texto, introdução e
notas da ronda amadiana. A Fundação Casa de Jorge Amado publicou na sua coleção
Casa de Palavras, 2001, em cuidadosa edição.
Essa Ronda, que não é um diário (apesar de um certo tom de confidência), pois não
tem linearidade no tocante a datas, nem submissão a qualquer calendário; que
também não é tão-somente um simples relato de viagem; é, antes de tudo, um texto
que se exibe em mosaicos, fragmentos, cenas-móbile, quadros, flashes, com um toque
subjetivo, perfazendo uma espécie de crônica lírica, espaço textual em que os
“momentos”, os “instantâneos” são fixados poeticamente pelo olhar caleidoscópico do
escritor.
As viagens de Amado, esse “turista aprendiz” – usurpando uma expressão de Mário de
Andrade –, são marcadas pelo vislumbre e adentramento em processos culturais
complexos, possibilitando reflexão a respeito de si próprio, de seu país, de seu povo e
abrindo espaço para a construção de um discurso sobre o outro. Assim se dá o
enriquecimento e a dinâmica das relações Brasil e América Latina.
O sujeito desses relatos/rondas/crônicas líricas vê a viagem como um aprendizado,
como experiência vivencial e textual. O ritmo é do sujeito que tudo olha, tudo
contempla e fixa. Os constantes deslocamentos do escritor fazem com que essa viagem
se torne mais íntima e imaginária que real. Jorge Amado, ao olhar o outro, estabelece
de imediato um diálogo entre a sua cultura e aquela do outro. Importa, para ele, ler o
outro, buscar identidades e diferenças, tentando reviver, através do corpo textual, tudo
aquilo que viu ou contemplou.
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O olhar de Amado – aqui, evoco Bachelard – passa de algo passivo para algo ativo, de
movimento, não sendo o olho o seu símbolo, mas a mão, que tem movimento e é
criadora, ao agir sobre o objeto observado (Bachelard). Tensão no olhar. Olhar que se
transforma em atividade criadora, transferindo para a mão do escritor a fixação dos
instantes. Instantes viageiros, agora fixados, dinamizados pela imaginação. Nos campos
do imaginário, a memória se rearruma, se rearticula, se reorganiza, redimensionando,
desse modo, o que foi olhado, tocado, cheirado, ouvido, saboreado. Imaginação que
opera, portanto, transformações de dados efetivos que se movem em espaços fluidos e
tempos imemoriais. Ao se referir ao campo civilizado do Uruguai, o escritor assim se
expressa:
Esta paisagem sem modificações, sem imprevistos, sem brabeza, os grandes
motivos poéticos são apenas dois: o motivo eterno da mulher, a china dos
gaúchos, e o cavalo. A poesia do pampa, aquela poesia popular e local cheia de
termos desconhecidos para homens de outra parte é sempre a exaltação do
cavalo. Ele é tudo na vida do gaúcho: é o encurtador da distância, nele é que o
homem atravessa a planície imensa do verde, nele o homem se sente seguro
para os rodeios, nele domina a natureza e os outros seres, sejam bois ou
avestruzes. E nele também é que vai às festas, é que rapta as chinas que
carregam fama de beleza (Amado).
A viagem amadiana, lugar de espaço e tempo para experimentações, faz vicejar uma
nova proposta de escritura: não documento, não testemunho, não memória. Mas um
bocadinho de cada, compondo um tecido de múltiplos fios e de intrincados trançados
que se expõem nos vários deslocamentos, no trânsito, na errância por opostos
espaços, na dimensão cambiante de toda mudança. Num desses múltiplos fios de A
Ronda, Amado aponta liricamente para a cidade de Lima:
Já imaginaste, amiga, uma cidade onde todas as casas têm balcões que
parecem construídos propositalmente para favorecer a raptos de senhoritas por
galãs que tocam violões? Coisas assim só nos romances românticos, dirás.
Romances bem diferentes dos que eu escrevo e que lês. Pois eu te afirmo que
existe uma cidade assim: a cidade de Lima, cidade dos doze mil balcões, cidade
onde o gênio mais deixou sua marca em Sul-América. É como uma visão de
delírio essa cidade. Delírio de um poeta de versos de amor. Desde que o
automóvel atravessa as primeiras ruas que a cidade nos domina com seu feitiço.
Não é aquele misterioso feitiço da Bahia, nem aquela claridade que faz tudo
róseo em Guadalajara. É um tom romântico que as coisas todas tomam em
Lima. Os balcões das casas podem estar vazios, mas os olhos encantados do
viajante hão de ver figuras de véu que fogem destes balcões após marcarem
entrevistas com os namorados. E se te demorares nas ruas silenciosas na noite
silenciosa de Lima, ó minha amiga, verás que elas fogem dos balcões floridos
em rápidos cavalos negros pela noite enluarada. (Amado).
Sei, com estudiosos de Jorge Amado, que as experiências acumuladas nos vários
itinerários desse andarilho escritor o tornaram um divulgador da cultura latino-
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americana – aqui, um parêntese para lembrar que Amado foi o tradutor do romance
Dona Bárbara, do venezuelano Rômulo Galegos. Vale lembrar, também, que, em 1937,
na conceituada Edições Ercilla, do Chile, só figuravam dois escritores brasileiros: Jorge
de Lima e seu Calunga, Jorge Amado e seu Suor. Por outro lado, tais experiências deram
sustentação e base para a elaboração de seu projeto literário: a criação (mesmo que
utópica) de uma sociedade livre, sem preconceitos, sem rédeas. Amado quis, em
verdade, abrir espaços para a criação de um novo homem, cuja vida seria regida pelo
signo da poeticidade.
Veja-se que suas crônicas/relatos/narrativas de viagem lançam sementes para seus
romances, onde, por exemplo, as cidades vão muito além de referências históricas,
arquitetônicas, e passam a significar um espaço de liberdade por onde os personagens
circulam num vai-e-vem incessante. Nesse espaço, aí incluído o cotidiano do
trabalhador, do vagabundo, do moleque, há o desfrutar dos prazeres, sugerindo
possibilidade de felicidade. Escapam, assim, os personagens amadianos da dimensão
da razão e passam a expressar-se pelo mistério, em plano tão enevoado, pleno de
matizes e cambiantes, plano aberto, sem fórmulas fixas, rígidas ou definitivas. Nesse
plano, tudo pode ser mudado, tudo está em constante ir-e-vir como as insólitas
espumas flutuantes.
Viajar é preciso. Escrever é preciso. Assim, pensava Jorge Amado. A viagem/ronda real
que empreendeu à América Latina, às vésperas do Estado, Novo iluminou sua escrita,
contribuindo para afirmar sua opção estética na outra viagem que fez durante toda a
vida. Jorge Amado viajou no duplo sentido, real e interior, e, com sua fina intuição de
leitor e escritor, muito coletou e pesquisou, para redescobrir um território americano
insuspeitado, recriado e redivivo nas tradições de seu povo. No confidenciar desse
viajor, há a divisão entre a viagem real e a viagem da imaginação. Uma interfere na
outra, possibilitando reflexões para a compreensão da opção estética e ideológica do
escritor. Nessas viagens, Jorge pensa e reflete o homem e as várias dimensões da
liberdade humana – a própria “carnadura do mundo”.
Dirijo meu olhar para uma outra direção. Agora, o contemplado será o poeta Manoel
Camilo dos Santos e sua Viagem ao País de São Saruê.
Uma estranha viagem, para um estranho lugar, é feita pelo personagem/narrador desse
folheto de cordel. Não há aventura impossível para a imaginação do poeta, que viaja
solto, sem rédeas, nas asas do vento. Voam os poetas de cordel, obsecados pelos vôos.
Voam nas asas dos pássaros, voam em estranhos objetos mecânicos como o Pavão
Misterioso (Aqui, me refiro ao “clássico” folheto de cordel O Pavão Misterioso, de José
Camelo de Melo Resende).
Espaço e tempo se movimentam e as narrativas medievais do País da Cocanha
ressurgem com novas fisionomias no nordeste brasileiro de 1947. São traços de uma
narrativa oral, movente, surpreendentemente camaleônica, que ressurgem nesse
intrigante texto de literatura de cordel. Composto de 31 sextilhas setessilábicas e duas
décimas, e editado pelo próprio autor na sua Estrela da Poesia, o folheto já no seu
início indica uma viagem imaginária:
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Doutor mestre pensamento
Me disse um dia: - Você
Camilo vá visitar
O país São Saruê
Pois é o lugar melhor
Que neste mundo se vê.
Eu que desde pequenino
Sempre ouvia falar
Nesse tal São Saruê
Destinei-me a viajar
Com ordem do pensamento
Fui conhecer o lugar.
Nesse folheto, o poeta viaja no “carro da brisa”, no “carro do mormaço” e no “carro da
neve fria”, através da imaginação sem travas e sem limites. Aporta o poeta num mundo
paradisíaco, um país maravilhoso, onde reinam prazeres, riqueza, felicidade. É
construído, assim, um espaço mítico, um mundo ao revés, povoado de maravilhas,
beleza e fraternidade. Enfim, a restauração do paraíso numa terra sem fome, sem
tristeza, sem miséria.
Fascinado pelas histórias da mitologia grega e pelas narrativas bíblicas, o poeta Manoel
Camilo, de Campina Grande/Paraíba, era atento observador do difícil cotidiano de seu
povo, de um povo sofrido e carente, habitante de uma região em que a fartura e a
abundância eram desconhecidas. Não será difícil, portanto, entender a fabulosa viagem
que o poeta empreende em busca de um lugar ideal, de um espaço utópico.
Se, por um lado, utopia pode parecer um discurso ilusório, por outro, se apresenta
como um possível entendimento do real, capaz de transformar o ilusório numa função
construtiva do discurso poético. Desse modo, as decepções, os fracassos, as
enganações convergem para a criação de novos mundos. Seriam esses novos mundos
um refúgio e um testemunho da inadequação à realidade vivida? Daí o chamamento
para a utopia.
Essa narrativa em versos metrificados é, sem dúvida, baseada em modelos que são
recriados com base na circulação de elementos textuais viajantes, nômades, que se
combinam aqui e ali, fazendo surgir histórias sempre prontas a se refazer na infinitude
das leituras possíveis. Num complexo processo da boca ao ouvido e do ouvido à boca,
ocorre o afastamento gradativo da matriz original. E a modificação da matriz original de
uma história assentada na tradição tem, a meu ver, um aspecto transgressor, que seduz
pela novidade, oriunda da imaginação, essa forma de audácia humana.
A voz do poeta popular inquieta se adentra em variados mundos, transmite verdades e
sonhos, funda reinos fabulosos como o do País de São Saruê. Essa voz em mutação se
reelabora constantemente, tecendo e retecendo os retalhos da tradição em formas
novas e fisionomias particulares. Com Hilário Franco Júnior, sei que Viagem a São
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Saruê, como já acima referido, tem sua raiz utópica no igualmente país imaginário da
Cocanha (Franco Jr). Mosaico mítico, a Cocanha teve como nascedouro o fabliau
francês do século XIII, provavelmente escrito por um poeta de acentuado espírito
crítico. A partir daí, esse texto, composto em quadras, viajou por vários países,
penetrou em várias culturas, através de adaptações, de traduções. A base crítica do
texto-matriz permaneceu como uma constante. Aqui, faz-se necessária uma
exemplificação para a compreensão da retomada de um texto com 800 anos de
distância, oriundo de um espaço físico tão distinto. Esses textos, além do culto da
fartura, do conforto, da saciedade, trazem algumas marcas narrativas semelhantes
Corre um riacho de vinho.
As canecas aproximam-se
dali por si sós,
Assim como os copos
E as taças de ouro e prata.
(Cocanha)
Lá eu vi rios de leite
barreiras de carne assada
lagoas de mel de abelha
atoleiros de coalhada
açudes de vinho do porto
montes de carne guisada.
(Viagem a São Saruê)
Manoel Camilo ilumina um novo mundo e, em verso simples, memorizável, conduz seu
povo para um lugar especial, utópico, o País de São Saruê, sempre grafado entre aspas,
como para apontar seu caráter ficcional. Assim, também, revela aos iletrados e sem
boca a possibilidade de reconhecimento de outras vidas.
Mas, se em Cocanha, não se reconhece o caminho de volta, pois nessa espécie do
reino do vai-não-torna, quem está bem deve lá permanecer, há, no folheto de Saruê,
uma inversão que pode ser lida como uma utopia às avessas, um destronamento, uma
descida ao mundo real, através da razão que aponta para um mundo onde reinam a
dificuldade de sobrevivência, a ironia, o desprezo. Não é com alegre descontração que
o poeta deixa um mundo em que:
Tudo lá é festa e harmonia
Amor, paz, bemquerer, felicidade
Descanso, sossego e amizade
Prazer, tranqüilidade e alegria;
Na véspera de eu sai naquele dia
Um discurso poético, lá, eu fiz,
Me deram a mandado de um juiz
Um anel de brilhante e de “rubim”
No qual um letreiro diz assim:
- é feliz quem visita este país.
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Para se inserir no mundo duro, de luta pela sobrevivência:
Vou terminar avisando
A qualquer um amiguinho
Que quiser ir para lá
Posso ensinar o caminho
Porém só ensino a quem
Me comprar um folhetinho.
Também, uma retomada com o real concreto, ele que, como poeta, viaja, pela
imaginação, para inimagináveis territórios. Com sua palavra cheia e cantante, Manoel
Camilo se insere no rol dos criadores de viagens fantásticas.
Espelho de uma palavra autorizada, a narrativa em verso, ficcionalizada, de Manoel
Camilo, silencia a presença de uma realidade e impõe uma outra completamente
diversa.
Espelho igualmente de uma palavra autorizada, a narrativa de viagem real de Jorge
Amado expõe a experimentação ao vivo das mais variadas manifestações artísticas:
poesia, música, drama, artesanato, recolhendo farta documentação da cultura do povo
das Américas. Na volta, sob a ação da memória e da imaginação, selecionou os fatos
experenciados e os metamorfoseou em viagens fictícias.
Ambos, porém, um silenciando o real, outro dando-lhe voz, transfiguram-no
imaginariamente, com o intuito de inscrever, no espaço da página em branco ou no
palco da oralidade, o traçado cambiante de suas múltiplas viagens pelas veredas da
ficção.
BIBLIOGRAFIA:
AMADO, Jorge. A Ronda das Américas. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 2001.
ANTELLO, Raúl. Introdução. In: AMADO, Jorge. A Ronda das Américas. Salvador:
Fundação Casa de Jorge Amado, 2001.
BACHELARD, Gastón. O Direito de Sonhar. 3ª ed. Trad. José Américo Mota Pessanha.
Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 1991.
FRANCO JÚNIOR, Hilário. Cocanha – várias faces de uma utopia. São Paulo: Ateliê
Editorial, 1998.
MATOS, Edilene. Literatura de cordel: uma literatura de fronteira. In: Revista da Bahia, nº 42. Salvador: Fundação
Cultural do Estado da Bahia, 2006.
RESENDE, José Camelo de Melo. O romance do Pavão Misterioso. Recife, s/d.
SANTOS, Manoel Camilo dos. Viagem a São Saruê. Campina Grande: Estrela da Poesia, 1947.
TORRES, Milton. No fim das terras. Cotia-SP: Ateliê Editorial, 2004.
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Entrevista de Paulo Nunes Batista
Por Ana Lúcia Nunes e Mário Henrique
(do jornal eletrônico “A Nova Democracia”)
Numa casa simples do centro de Anápolis (GO), Paulo Nunes Batista recebeu nossa
equipe de reportagem.
Aos 82 anos, o poeta, repentista e cordelista narra de forma emocionante e com muito
sentimento sua história na arte e no PCB. Segundo ele, esta pode ser uma de suas
últimas entrevistas.
O poeta sofre de isquemia cerebral e mal consegue ler.
Ele tem 319 escritos de cordel, folhetos e ABCs, entre obras publicadas e inéditas.
É bacharel em direito e jornalista profissional.
Trabalhou como vendedor ambulante de folhetos de cordel e livros.
Conquistou vários prêmios literários.
É citado na enciclopédia Delta Larousse.
Tem poemas traduzidos para o espanhol, inglês e japonês e mais de dez livros
publicados.
Eis o depoimento:
“Meu pai era dono de livraria e de tipografia. Então tínhamos uma vida confortável.
Quando o meu pai morreu, em 1929, passamos a viver na pobreza. Chegamos a passar
fome. Eu fui para o Rio de Janeiro e não tinha dinheiro nem para a passagem. Fui pedir
ao governador e ele me deu uma passagem de 3ª classe de navio, no porão. Era janeiro
de 1938. Eu sou de uma família de poetas populares do nordeste; repentistas
cantadores e cordelistas da Paraíba. Aliás, a história do cordel no Brasil começa com
minha família, segundo os livros. Em 1797, nascia o meu bisavô, Agostinho Nunes da
Costa. Ele foi cantador e glosador famoso no nordeste. Participou do núcleo inicial do
cordel no Brasil, na Serra do Teixeira (PB). Três de seus filhos foram poetas, dentre eles
o meu avô materno, Ugolino Nunes da Costa ou mestre Gulino. Meu avô Ugolino foi
um grande cantador repentista, cantador de viola. Na nossa família há vários
cantadores, como os três irmãos Batista — Lourival, Dimas e Otacílio—, citados por
Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e outros poetas famosos do Brasil.
Por parte de minha mãe e de meu pai, que eram primos, há vários cantadores,
repentistas e cordelistas famosos. Eu levantei 50 cantadores famosos na nossa família.
“Glosador é aquele que faz o verso na hora com qualquer assunto. O cordelista
escreve os versos. O repentista canta versos de improviso. O cantador apenas canta,
ele pode simplesmente ter decorado os versos. Coquista é o cantador de coco, ele
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pode ser repentista ou não. Ele decora e canta, utilizando o pandeiro ou o ganzá —
instrumento rústico de percussão, originalmente trazido pelos africanos. O cordel é um
difusor de cultura. Um homem analfabeto, o sertanejo, o brejeiro, o matuto do
nordeste ia para a feira comprar cordel porque o filho dele que estava na escola podia
ler para ele. Então, o cordel é um veículo de difusão de cultura muito importante. No
nordeste muita gente aprendeu a ler através do cordel. O cordel inspirou vários
autores como Jorge Amado e Ariano Suassuna. Ele é a poesia popular não erudita, não
sofisticada, não da elite. É poesia do povo, feita em folhetos baratos, humildes. Essa
poesia do povo transmite de geração para geração os conhecimentos, as lutas como a
do camponês sem terra. O cordel é um universo que pode abranger todo o
conhecimento do povo: os camponeses, os cangaceiros, os beatos, os latifundiários, a
seca, a miséria. É uma riqueza só. Atualmente existe também o cordel urbano que é
feito nas cidades, mas o originário é o do sertão. O meu cordel tem um pouco de tudo.
O cordel tem a maior significação na difusão, na divulgação da cultura popular. Essa é
sua missão, que está amassada pela anti-cultura, contracultura norte-americana.
“Em 1940 saiu um livro que se chama Os ianques estão chegando, onde um jornalista
provou que houve uma reunião com os líderes da Inglaterra, Alemanha, França e USA
para organizar uma campanha que abrangia livro, jornal, revista, TV, rádio. Um dos
principais alvos era o Brasil. E eles fizeram mesmo essa campanha. A música brasileira
quase desapareceu, o samba genuíno foi substituído pelas músicas bregas. A cultura
brasileira está desaparecendo, a cultura nordestina está desaparecendo. O interesse
deles é a invasão. Ariano Suassuna deu uma entrevista no rádio dizendo que o USA não
precisava mandar bomba, torpedeiro, nada disso, porque já tinha mandado Michael
Jackson e Madonna. Dominando um povo culturalmente já dominou o resto, um povo
sem cultura é um povo escravo.
“Alguns cordelistas fazem cordel de resistência, como o Rafael de Carvalho e eu, mas
somos poucos. Os cordelistas e cantadores de viola estão vendidos ao sistema porque
o que dá dinheiro para eles é isso. É o latifundiário que paga a cantoria deles. Então
eles acabam tendo que cantar para os latifundiários. Como eu sempre procurei viver
independente, vendendo meus folhetos, eu me libertei disso. Raramente trabalhei
para patrão, depois fui trabalhar no Estado por concurso. Então eu não tenho nada
que “chaleirar” — puxar saco — capitalista. Foi um verdadeiro milagre eu ter sido
eleito para a Academia Goiana de Letras, mas eu sou marginalizado porque eles sabem
que eu sou comunista.
“Houve uma época que eu escrevi cordel para ganhar dinheiro, mas hoje não faço
mais. Chega candidato querendo me pagar para fazer, mas eu não faço. Para
comunista eu escrevo, escrevo de graça. Eu me especializei em escrever ABC e em
temas espirituais. Se chama ABC porque cada estrofe começa com uma letra do
alfabeto, do A até Z. O ABC é fácil de memorizar. Eu fiz muitos ABCs e vou até publicar
um livro só com eles agora. O ABC é fácil de gravar e ninguém faz mais ABCs. Ele é tão
antigo que tem até na bíblia. Também quando os portugueses chegaram, eles
trouxeram a poesia popular em folhas volantes e em ABC porque era fácil memorizar.
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“O maior de todos os cordelistas do Brasil é o Leandro Gomes de Barros, paraibano,
compadre de meu pai. Escreveu mais de mil folhetos e nunca fez outra coisa na vida.
Ele chegava à venda, bebia uma cachaça, pedia ao dono um papel de embrulho e
escrevia um folheto na hora como pagamento. Qualquer acontecimento, ele fazia o
folheto na hora. Tinha uma pequena prensa em casa e imprimia os folhetos para
vender na feira. Houve outros grandes cordelistas como José Camelo de Melo
Rezende, Manoel de Almeida Filho. Meu pai foi grande cordelista também, mas como
o Leandro não teve.
“Patativa do Assaré foi um poeta importante, mas o cordel que ele fazia não era
legítimo. O cordel tradicional é feito em sextilha ou em setilhas (sete linhas). O
Patativa colocou linguagem caipira no meio do cordel, uma coisa de poetas matutos,
como Pompilho Diniz, Catulo Cearense e Zé da Luz. Eram poetas de muito valor, mas
não eram cordelistas autênticos. Autêntico mesmo é Azulão, Mocó. O Mocó vivia
miseravelmente e era um cordelista formidável. Veja só um verso dele, quando ele
chegou à Paraíba e estava uma seca danada:
“O nordeste está tranco,
cercado por uma desgraça imensa,
uma banda já caiu,
a outra banda está pensa,
e neste grande aperreio,
sofre o nortista no meio
igual à marca na prensa.”
“Olha a imagem desse homem, é um poeta do povo, um homem quase analfabeto. É
aquele que representa o povo em todas as suas modalidades, em todas as formas de
expressão. É aquele que diz o que o povo sente. É o poeta que não está ligado a
latifundiário, à elite, mas ao povo. O povo está com fome porque não tem dinheiro,
não recebe pelo que produz, então ele escreve sobre isso.
“No Rio de Janeiro tem um traidor da classe, o Gonçalo Ferreira da Silva, que se
considera o rei do cordel. Ele diz que faz o cordel clássico e fundou a Academia
Brasileira de Literatura de Cordel. Eu entrei na Academia porque meu pai é patrono,
mas fiz uma carta me desligando porque era uma academia de cordel que não tinha
cordelista. Isso ocorre em vários locais. Por exemplo, em Goiás até o ex-governador
Mauro Borges é da Academia Goiana de Letras.
“A minha irmã Maria das Neves Batista Pimentel, a Mariinha, foi a primeira cordelista
do Brasil. Quando ela publicou o folheto havia muito preconceito. Mulher não podia
escrever cordel. O que o homem pode fazer a mulher pode fazer igual. Ela tem
inteligência, cultura, vontade.
“Acho que a questão agrária pode até ser retardada, mas não impedida. Eu,
sinceramente, esperava que Lula fizesse a Reforma Agrária antes do fim do seu
governo. Mas ele não tem gabarito, não tem coragem para isso. Fui militante do PCB
de 1946 a 1952. Mas minha história com o Partido começou bem antes. Eu tive um
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irmão que participou do levante de 35 no Rio e depois voltou para a Paraíba. Ele ia se
encontrar com outros militantes e me levava. Tive uma intensa atividade política. Na
época do Partido eu não tinha paradeiro certo. O folheto de cordel do Formoso
(Trombas e Formoso: o triunfo camponês) foi encomendado pelo PCB de Goiânia,
através do jornalista Sebastião de Barros. A minha vida foi toda uma agitação, só fui
descansar depois que me aposentei. Hoje eu não tenho mais ligação com o Partido
Comunista e nem com nenhum Partido. Mas continuo tendo a ideologia.
“Trabalhei primeiramente no jornal O Estado de Goiás. Depois fui para o Jornal do
Povo, de Belo Horizonte, mas a polícia empastelou o periódico e eu me mudei para São
Paulo. Lá trabalhei no jornal Hoje, um diário de grande circulação, vibrante. Estávamos
fazendo a campanha contra o envio de tropas brasileiras para o Vietnã e deu muito
rebuliço. Publicamos uma circular do alto comando do exército, que falava isso. Aí
instalaram um IPM (Inquérito Policial Militar). O Exército invadiu o jornal com
metralhadoras, prendeu mais de 100 pessoas. Mas foram soltando e ficaram só nove
pessoas, dentre elas eu. Fomos para o 3º RI, e depois para o Carandiru. Por lá, eu
peguei reumatismo nas pernas. Eu não me arrependo de nada. De ter sido preso. Eu
não me arrependo da minha luta e se fosse preciso eu seria preso de novo.
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Poema-Homenagem
Por Paulo Nunes Batista (para seu irmão)
Sebastião Nunes Batista
Sebastião Nunes Batista
Tinha de nascer poeta:
Em seu nome há – Sonetista,
Sino e Sons...como uma Seta
A indicar a Sua Sina...
Em verso – dá Sabatina,
Vai mais além de alfa e Beta...
Sino – chama para a missa
Na igreja, no templo – a Sé...
Faz, com Seus Sons musicais,
O chamamento da fé:
Poeta – é uma chama acesa
Chamando para a beleza,
Que, no fundo, a vida É...
Toda a poesia do povo
É Sonora, é musical
É canto Baita que Atesta
A raiz original:
É reduto, é Bastião
Atenas, dando Sessão...
Tebas, na voz do jogral...
Buscando nossas raízes,
Defendendo a tradição
Sebastião Nunes Batista
É um baluarte, na ação,
Procurando preservar
A poesia popular,
Da qual é forte Bastião.
É Seu Assunto – o folclore,
Nosso Antes, o ontem-raiz;
Bastião – do bumba-meu-boi...
Nau catarineta...o xis
Das Notas da cantoria...
Toda a Nata da poesia
Que de repente se diz...
- 240
-
A tendência ao misticismo
Acha-se em Bata e Batina
No seu nome de batismo,
Que é qual Antena divina
Onde também se lê – Seita...
Em Sena – a mulher eleita,
A presença feminina...
Tendências a enfermidades
O nome próprio contém...
Sinus, Sinusite, Testa...
Tênia, Intestinos – se lêem
No seu nome...e, também, Susto...
Nas palavras Nu e Busto
Pintura e escultura vêm...
Em Banto, Atenas e Tebas
Vemos o amor ao passado
A procura das raízes,
Do mistério conservado
Na palavra, na magia,
No folclore-de poesia
Que a história oculta, guardado...
Em Santo e Assassino – vemos
A eterna contradição...
Vemos, em Senso – o equilíbrio;
Em Seita – a religião...
E, Túneis- sentido oculto;
Em Si... da música o vulto;
Todo o oriente, em Saião...
Em Bi... nós vemos 2 filhos...
Netos e Netas – plural...
Em Tato – se vê prudência...
Em Sítio – amor ao local,
À terra, à limitação...
Em Assunta, Teste, Oitão,
A cautela...O lateral...
Em Oiti, Banana e Nata
Vemos ao amor ao comer...
Sono, Sesta – há uma indolência
Que é preciso combater.
Em Nau, Ateneu e Ousa
A aventura...Alguma cousa
Que inda é preciso fazer...
- 241
-
Bosta e Sebo – são palavras
Que dentro em seu nome estão,
Assim como Besta e Basta,
Como a dar a indicação
De que a “faixa inferior”
Com seu gosto tentador
Acaba em dor...Em Bastão!...
Em Só – temos o destino,
A Sina de ser Sozinho...
Em Tina – o reservatório
De água ou leite, pinga ou vinho...
Em Bina, vê-se o apelido
De um vulto antigo, esquecido
Na poesia do caminho...
Em Boina, vemos o adorno
E a proteção da cabeça...
Una, Uni, Uno – lhe dizem
Que busque a Deus e O conheça...
Susta, Nesta, Testou, Isto
São como avisos do Cristo,
Para que a alma não pereça...
Em Sua, Seu, Tua, Teu,
Vê-se, de posse, o sentido.
Em Bani, Baniu, Bania,
Qual se fosse advertido
A banir, tirar desde Si
Isso, que só serve de
Pedra aos passos do perdido...
Em Tata, em língua africana,
Vemos, “o grande”, esse Tão
Sito nas letras do nome
Do mano Sebastião...
Que ele seja Esse baluarte
De defesa, sempre, da arte
E assista o nosso sertão!...
Isto é somente um começo
Desse anagrama estudo,
Para demonstrar que o nome
Diz muito, em seu conteúdo...
Há uma mensagem secreta
Que ao vate-poeta-profeta
- 242
-
Não consegue deixar mudo...
Há várias palavras outras
Que ainda se podem formar
Com o nome Sebastião
Nunes Batista...É tentar...
Ao mano, fraternalmente,
Deixo os versos, de repente,
Para de mim se lembrar!...
- 243
-
Una posible explicación a todo esto
Por Diego Chozas Ruiz-Belloso
In: http://www.wikilearning.com/
Hemos visto, en fin, las características generales del cordel brasileño, que se han
mostrado muy próximas a las de la literatura de ciegos peninsular, hoy ya extinta para
el pueblo. También hemos comprobado que, además de ser la literatura de cordel en
su conjunto una herencia de Europa, en el Brasil de hoy todavía persisten algunos
elementos que pertenecen más directamente a la tradición del viejo continente.
Y entre ésos folletos hay algunos que son los últimos eslabones, más o menos fieles, de
una cadena de transmisión literaria que halla sus orígenes en la Edad Media europea, y
aun en la remota tradición oral. Hemos registrado la historia de esos textos desde la
Edad Media hasta el Brasil actual, y hemos contrastado los más antiguos impresos en
castellano con los textos de los folletos para dilucidar hasta dónde llega la fidelidad y
hasta dónde los cambios e innovaciones de estas obras de cordel de esencia medieval
pero también muy brasileñas.
Conocemos el proceso y las causas pero aún nos parece encontrarnos ante un
fenómeno inverosímil: Resulta difícil de asimilar el éxito popular de historias tan
alejadas geográfica, histórica y culturalmente, y nos resulta complicado dar una posible
explicación a todo esto. Sólo podremos hacer conjeturas y vagas hipótesis.
Vagas e insatisfactorias me resultan las rápidas explicaciones que aporta Diegues para
el arraigo del cordel en el Nordeste brasileño (multiracialidad, receptáculo de
influencias y crisol de culturas, aspectos de la geografía y la historia de la región,
sociedad patriarcal) pero yo no sabré hacer nada mejor. Para ello sería preciso un
profundo estudio sociocultural. Por lo tanto, no pretendo aquí sino incluir algunas
ideas sin base sólida.
Y pienso que una posible razón de la excepcional acogida de las historias medievales
en el Nordeste podría ser la identificación del pueblo con los héroes caballerescos que
apunta Durand. Esta explicación hay que tomarla con tiento: Hay historias más
actualizables que otras. La Historia da Donzela Teodora mantendría aún hoy su carga
de actual feminismo, y la Historia de Roberto do Diabo tiene en contacto con la
realidad brasileña el hecho de que se trata de la vida de un bandido, fenómeno muy
frecuente en el Nordeste. Sin embargo las historias del Carlomagno sólo podrían
actualizarse de manera muy abstracta.
¿Qué necesidades del pueblo satisfacen estas historias medievales? Mientras
Veríssimo de Melo afirma con rotundidad que el conservadurismo es un rasgo esencial
del poeta popular nordestino, aunque reconoce que los poetas de las metrópolis han
asimilado una ideología muy lejana a la rural del autor típico, Luyten nos presenta la
literatura de cordel brasileña como una queja del pueblo y cita quince títulos con
evidentes connotaciones de reivindicación social. Podemos intuir que, tanto como
tipos humanos, hay folletos de cordel "conservadores" y "progresistas",
contemplativos y "de acción", escapistas y comprometidos. Y no dudo en señalar que
- 244
-
los folletos de Gomes de Barros, típico poeta rural según dice Veríssimo de Melo, son
conservadores, contemplativos y escapistas.
Una excepción posible es la Historia da Donzela Teodora, pues el feminismo es
progresista, pero Roberto el Diablo no se presenta como bandido admirable, héroe
social, sino como asesino truculento que sólo despierta alguna simpatía tras su radical
arrepentimiento. En este sentido la Historia de Roberto do Diabo se muestra
claramente confrontada al ciclo del cangaço o bandidaje. Y en cuanto a los folletos que
provienen de Piamonte, son planamente escapistas: Se habla de tierras y tiempos
remotos, de reinos de fábula y seres sobrehumanos, de héroes cargados de virtudes
(apenas hay tintes negativos sobre los Pares, dice Durand y malvados odiosos...
El pueblo apenas encontraría diferencia entre los folletos de procedencia directa
medieval y los que imitan a éstos, y tanto unos como otros cumplirían una misma
función: permitir a los hombres, o a ciertos hombres, su eterna necesidad de evadirse
de la realidad, cuanto más lejos, más hondo o más alto, mejor. Podría argumentarse
que las historias de caballerías contienen comportamientos ejemplarizantes y
transmiten virtudes básicas, pero no sirven como modelos prácticos para la vida, como
tarde lo aprendió Don Quijote.
Son útiles más bien como válvula de escape de las frustraciones: Ante la inconcreción
de un enemigo demasiado vasto, o ante enemigos concretos pero intocables, la
imaginación gusta de modelar ante sí contrincantes ficticios, antagonistas ensoñados,
que serán derrotados meticulosamente. Se trata de una venganza interior contra todos
los males de fuera, y cuanto mayores sean los males mayor habrá de ser el enemigo
imaginario: Habrá de ser un gigante, un dragón o, por qué no, cientos, miles de
hombres armados. Por eso se conserva la desmesura imaginaria medieval donde
mayor es la miseria, y por esta razón el estoico nordestino todavía disfruta
apartándose para leer, o escuchar leer, historias como aquélla que sin duda sucedió
Em terras orientais
De palácios encantados
E monstros descomunais
Porque o povo só gosta
De romances colossais.
- 245
-
O PESSOAL CITADO
Aderaldo Ferreira de Araújo (Cego Aderaldo)
Ana Lúcia Nunes
Antonio Machado
Antonio Sebastião de Araújo (Ruço)
Apolônio Alves dos Santos
Aparício Torelly (Barão de Itararé)
Ariano Suassuna
Arievaldo Viana
Candace Slater
Carlos Drummond de Andrade
Cícero Vieira da Silva (Mocó)
Clodomir Silva
Décio Duarte Ennes
Diego Chozas Ruiz-Belloso
Edilene Matos
Elias A. de Carvalho
Eronildes Lemos
Esdras do Nascimento
Expedito F. Silva
Francisco Amorim
Francisco das Chagas Batista
Francisco Nunes Brasil (Chico Nunes)
Franklin Machado (Maxado Nordestino)
Gilmar Chaves
Gino Cortopasi (Zé Fidelis)
Gonçalo Ferreira da Silva
Horácio Campos (Furnandes Quemões Albaralhão)
Inaldo Feliciano de Lima
João Martins de Athayde
João Paulo Martins
Joaquim Eloy Duarte dos Santos
Jorge Amado
José Andrade Santos (Zé Andrade)
José Bernardo da Silva
José Camelo de Melo
José de Souza Campos
José dos Reis Barbosa dos Santos (Riachão)
José Francisco Borges (Jota Borges)
José Gentil Girão (Seu Ventura)
José João dos Santos (Azulão)
José Maria Barbosa Gomes
José Pedro Pontual
José Praxedes Barreto (Zé Praxedis)
José Soares (O poeta repórter)
Joseph Maria Luyten
- 246
-
Josué Romano
Júlia Constança Pereira Camelo
Leandro Gomes de Barros
Leonardo Mota
Manoel Cabeceira
Manoel Camilo dos Santos
Manoel D’Almeida Filho
Manoel José da Silva (Passarinho)
Manoel Leopoldino de Mendonça (Serrador)
Manoel Messias
Manuel Maria Barbosa du Bocage
Marcelo Soares
Mário Lago
Minelvino Francisco Silva
Orígenes Lessa
Oswaldo Meira Trigueiro
Pacífico Pacato Cordeiro Manso
Paulo Nunes Batista
Rachel de Queirós
Rafael de Carvalho
Raimundo Santa Helena
Raimundo Silva (Raimundão)
Rodolfo Coelho Cavalcante
Sá de João Pessoa
Sebastião Nunes Batista
Sérgio de Magalhães Jaguaribe (Jaguar)
Silvino Pirauá de Lima
Sofia de Melo Araújo
Sylvio Romero
Tânia Quaresma
Umberto Peregrino
Vitalino Pereira dos Santos (Mestre Vitalino)
- 247
-
BIBLIOGRAFIA
(Livros & Folhetos)
Livros:
Amorim, Francisco
Eu conheci Sesyom
Assu (RN) 1975
Batista, Sebastião Nunes
Antologia da Literatura de Cordel
Natal (RN) 1977
Bocage, Manuel Maria Barbosa Du
- Antologia por Marisa Lajolo e Ricardo Maranhão
Abril Educação – São Paulo (SP) 1980
- Poesias eróticas, burlescas e satíricas
Publicações Mocho – Braga (Portugal) 1979
Cascudo, Luís da Câmara
Dicionário do Folclore Brasileiro
Edições Melhoramentos – São Paulo (SP) 1980
Chaves, Gilmar
Feira de São Cristóvão
Relume Dumará (RJ), 1999
Fundação Casa de Rui Barbosa/Fundação Universidade Regional do Nordeste
Leandro Gomes de Barros-1
Literatura popular em verso – Antologia Tomo II
Rio de Janeiro (RJ) 1976
Fundação Casa de Rui Barbosa/Universidade Federal da Paraíba
Leandro Gomes de Barros-2
- Literatura popular em verso – Antologia Tomo III
Rio de Janeiro (RJ) 1977
- Literatura popular em verso – Antologia Tomo V
Rio de Janeiro (RJ) 1980
Lago, Mário
Chico Nunes das Alagoas
Civilização Brasileira – Rio de Janeiro (RJ) 1975
Lessa, Orígenes
A voz dos poetas – 1ª série
Fundação Casa de Rui Barbosa – Rio de Janeiro (RJ) 1984
Maxado, Franklin
O que é Literatura de Cordel?
Codecri – Rio de Janeiro (RJ) 1980
Mota, Leonardo
Adagiário Brasileiro
Editora José Olympio (RJ) 1982
Silva, Clodomir
Minha gente (Costumes de Sergipe)
Paulo, Pongetti & Cª – Rio de Janeiro (RJ) 1926
- 248
-
Folhetos:
Barros, Leandro Gomes de
- A crise atual e o aumento do selo
- A força do amor
- A órfã
- Antonio Silvino no júri – Debate de seu advogado
- Antonio Silvino se despedindo do campo
- Antonio Silvino, Rei dos Cangaceiros
- As aflições da guerra na Europa
- As proezas de um namorado mofino
- Branca de Neve e o soldado guerreiro
- Como Antonio Silvino fez o diabo chocar
- Como João Leso vendeu o Bispo
- Conferência de Chiquinha com Gregório das Batatas
- Discussão do autor com uma velha de Sergipe
- Ecos da pátria
- Exclamações de Antonio Silvino na cadeia
- Festas de Juazeiro no vencimento da guerra
- João da Cruz
- O azar e a feiticeira
- O azar na casa do funileiro
- O cachorro dos mortos
- O casamento e o velho
- O casamento hoje em dias
- O cometa
- O dinheiro
- O divórcio da lagartixa
- O fiscal e a lagarta
- O Governo e a lagarta contra o fumo
- O testamento de Cancão de Fogo
- Os coletores da Great Western
- Os defensores dos inocentes de Garanhuns
- Os dez réis do Governo
- Peleja de Antonio Batista e Manoel Cabeceira
- Peleja de José do Braço com Izidro Gavião
- Romano e Ignácio da Catingueira
- Vingança de um filho
Fundação Nacional da Arte – Funarte
Homenagem póstuma ao trovador pernambucano Manoel José da Silva (Passarinho),
alegria da feira nordestina do Campo de São Cristóvão, Rio de Janeiro, falecido em 24
de setembro de 1979.
Girão, José Gentil (Seu Ventura)
- Aqui eu descrevo o valor do poeta popular e Homenagem aos trovadores da poesia
sertaneja.
- As bravuras de Seu Ventura na sua vida de vaqueiro.
- A vaquejada de Morada Nova (Ceará) e A festa dos vaqueiros.
- Hoje não há mais respeito como havia antigamente.
- 249
-
- Neusa e Lourival – Destroço, falsidade e sedução.
- O motivo porque não estudei – Como já tenho sofrido ou O sofrimento do nortista
em São Paulo ou o Rio é de amargar.
- Vida, morte e chegada de Aderaldo no céu.
Maxado, Franklin
- A feira de Feira quer voltar pra praça.
- A praça é da poesia e arte na República.
- Feira nordestina: resiste no Rio dando exemplo pra São Paulo.
- Maria Quitéria, heroína baiana que foi homem (contracapa): Ao colega.
- O Brasil de luto com a morte do Presidente Dr. Tancredo A. Neves.
- O cordel do cordel.
- O doutor faz em cordel o que cordel fez em Dr.
Maxado, Franklin – Souza, José Francisco de
O encontro de Téo Macedo com Maxado explicando as diferenças entre cordelista e
cantador.
Pessoa, Sá de João
ABC – Está fundada a Academia.
Santa Helena, Raimundo
- Adeus Sebastião.
- Boi de piranha
- Drummond
- duelo de santa helena c/os cobras
- Forró da despedida
- Memórias de um padre pecador
- O barão e as minhocas
- Rafael de Carvalho.
- Swing.
- Umberto Peregrino
Santos, Apolônio Alves dos
- A feira dos nordestinos no Campo de São Cristóvão-RJ.
- Discussão do cachaceiro e o crente (contracapa): Nossa poesia chora a morte de um
cantador.
Santos, José João dos (Azulão)
A Feira Nordestina
Santos, Manoel Camilo dos
Viagem a São Saruê.
Silva, Gonçalo Ferreira da
- Emissários do inferno na terra da promissão (contracapa): Versos à liberdade de
Sebastião Nunes Batista.
- Historiologia da Feira Nordestina
Soares, José (O poeta-repórter)
O que o Mercado São José tem.
Soares, Marcelo
Literatura de cordel – O prenúncio do fim?
Souza, José Francisco de – Maxado, Franklin
O encontro de Téo Macedo com Maxado explicando as diferenças entre cordelista e
cantador.
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O AUTOR
Salomão Rovedo (1942) teve formação cultural em São Luis (MA), mora no Rio de Janeiro e participou
dos movimentos culturais e políticos nos anos 60/70/80. Tem textos publicados em Abertura Poética
(Ant.), Walmir Ayala e César de Araújo, 1975; Tributo (Poesia), 1980; 12 Poetas Alternativos (Ant.), Leila
Míccolis e Tanussi Cardoso, 1981; Chuva Fina (Ant.), Leila Míccolis e Tanussi Cardoso, 1982; Folguedos
(Poesia/Folclore), c/Xilos de Marcelo Soares,1983; Erótica (Poesia), c/Xilos de Marcelo Soares, 1984;
Livro das Sete Canções (Poesia), 1987.
Publicou os seguintes e-books: Porca elegia (Poesia), 7 canções (Poesia), Ilha (Romance), A apaixonada
de Beethoven (Contos), Sentimental (Poesia), Amaricanto (Poesia), Arte de criar periquitos (Contos),
bluesia (Poesia), Mel (Poesia), Meu caderno de Sylvia Plath (e-recortes), O sonhador (Contos), Sonja
Sonrisal (Contos), Cervantes, Dom Quixote (Artigos), Gardênia (Romance), Espelho de Venus (Poesia), 4
Quartetos para a amada cidade de São Luis (Poesia), 6 Rocks Matutos (Poesia), Amor a São Luis e ódio
(Poesia), Stefan Zweig Pensamentos & Perfis (c/Silvia Koestler), (Antologia), Viagem em torno de Dom
Quixote (Notas de leitura), Três vezes Gullar (Ficção), Sonetos de Abgar Renault (Antologia), Suite
Picasso (Poesia), Literatura de Cordel (Ensaio).
Publicou folhetos de cordel com o nome Sá de João Pessoa. Editou a folha de poesia Poe/r/ta.
Colaborou esparsamente em: Poema Convidado (USA), La Bicicleta (Chile), A Toca do (Meu) Poeta (PB),
Jornal de Debates (RJ), Opinião (RJ), O Galo (RN), Jornal do País (RJ), DO Leitura (SP), Diário de Corumbá
(MS)... e outras ovelhas desgarradas.
e-books grátis em: www.dominiopublico.gov.br e outros sites.
Foto: Priscila Rovedo
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mesma licença 2.5 Brazil. Fica proibida a impressão e a venda por qualquer meio de mídia.
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a morte do autor os direitos autorais devem retornar para seus herdeiros naturais.
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