René Guénon
Índice
A Crise do
Mundo Moderno
Introdução ........................................................... 3
1. A idade sombria ............................................... 9
2. A oposição entre Oriente e Ocidente ............... 22
3. Conhecimento e ação ..................................... 33
4. Ciência sagrada e ciência profana................... 41
Tradução de Bete Torii,
apoiada no trabalho anterior de
Antonio Carlos Carvalho,
Lisboa, Editorial Vega, 1977
5. O individualismo ............................................ 53
6. O caos social .................................................. 65
7. Uma civilização material................................. 76
Original: La crise du monde moderne,
Paris, 1927.
8. A invasão ocidental ........................................ 90
9. Algumas conclusões ....................................... 99
São Paulo, maio de 2007
Coordenação Editorial: Constantino Kairalla Riemma
www.clubedotaro.com.br
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Há alguns anos, quando escrevi “Oriente e Ocidente”, pensei
ter dado todas as indicações úteis acerca das questões que constituíam o assunto desse livro, pelo menos naquele momento.
Desde então, os acontecimentos vêm se precipitando com velocidade sempre crescente e, se não me fazem mudar uma palavra ao
que já disse, tornam oportunas certas indicações complementares
e me levam a desenvolver pontos de vista sobre os quais não
tinha julgado necessário insistir a princípio. Essas indicações
impõem-se ainda mais porque vejo afirmarem-se novamente,
nestes últimos tempos, e sob uma forma bastante agressiva,
algumas das confusões que eu tinha precisamente procurado
dissipar; sempre abstendo-me cuidadosamente de me misturar
em alguma polêmica, julgo mais uma vez conveniente repor as
coisas nos seus devidos lugares. Nesse sentido, há considerações,
mesmo elementares, que parecem de tal modo estranhas à
imensa maioria dos meus contemporâneos, que não devo me cansar de voltar a elas muitas vezes, para as fazer compreender,
apresentando-as sob os seus diferentes aspectos e explicando-as
mais completamente na medida em que as circunstâncias o permitem, o que pode dar lugar a dificuldades que nem sempre seria
possível prever de inicio.
O próprio título do presente volume pede algumas explicações
que devo fornecer desde logo, para que se saiba bem como o
entendo e não haja qualquer equívoco a este respeito. Que se
pode falar de uma crise do Mundo Moderno, tomando esta palavra “crise” na sua acepção mais vulgar, é coisa que muitos já não
põem em dúvida, e, pelo menos neste caso, produziu-se uma
mudança bastante sensível: sob a própria ação dos acontecimentos, certas ilusões começam a se dissipar. Por minha parte só
posso felicitar-nos, porque, apesar de tudo, há aí um sintoma
bastante favorável, indicador de uma possibilidade de correção da
mentalidade contemporânea, algo que aparece como uma luz
fraca no meio do caos atual. A crença num “progresso” indefinido,
que ainda há pouco era como uma espécie de dogma intangível e
indiscutível, já não é assim admitida por todos; alguns entrevêem
mais ou menos vagamente, mais ou menos confusamente, que a
civilização ocidental, em vez de continuar a desenvolver-se sempre
no mesmo sentido, pode bem chegar um dia a um ponto em que
há de parar ou mesmo soçobrar inteiramente em qualquer cataclismo. Talvez esses não vejam nitidamente onde está o perigo, e
os receios quiméricos ou pueris que às vezes manifestam provam
suficientemente a persistência de muitos erros no seu espírito;
mas enfim se dão conta de que existe um perigo, mesmo se o sentem mais do que o compreendem verdadeiramente. Já é alguma
coisa que cheguem a conceber que esta civilização, de que os
modernos estão tão orgulhosos, não ocupa lugar privilegiado na
História do Mundo, que ela pode ter a mesma sorte que tantas já
desaparecidas em épocas mais ou menos longínquas, algumas
das quais deixaram atrás de si apenas traços ínfimos, vestígios
mal perceptíveis ou dificilmente reconhecíveis.
Portanto, quando se diz que o Mundo Moderno sofre uma
crise, o que se entende mais habitualmente é que ele chegou a
um ponto crítico, ou, noutros termos, que uma transformação
mais ou menos profunda está iminente, que uma mudança de
orientação deverá inevitavelmente produzir-se em breve, para o
bem ou para o mal, de modo mais ou menos brusco, com ou sem
catástrofe. Esta acepção é perfeitamente legítima e corresponde
bem a uma parte do que eu próprio penso, mas apenas a uma
parte, porque, para mim, colocando-me num ponto de vista mais
geral, é toda a época moderna, no seu conjunto, que representa
para o Mundo um período de crise. Aliás, parece que nos aproximamos do desenlace e é isso o que torna mais sensível, hoje mais
do que nunca, o caráter anormal deste estado de coisas; estado
que já dura alguns séculos, mas cujas conseqüências não tinham
ainda sido tão visíveis como o são agora. É também por isso que
os acontecimentos se desenrolam à velocidade acelerada que
mencionei inicialmente. Sem dúvida que isso pode continuar
assim ainda algum tempo, mas não indefinidamente; e embora
não seja possível marcar um limite preciso, tem-se mesmo a impressão de que isso não pode durar por muito mais tempo.
Mas a própria palavra “crise” contém outras significações que a
tornam ainda mais apta a exprimir o que quero dizer: convém que
nos reportemos à sua etimologia, como aliás sempre se deve fazer
quando se quer restituir a um termo a plenitude do seu sentido
próprio e do seu valor original., A sua etimologia a faz parcialmente sinônimo de “julgamento” e de “discriminação”. A fase que
pode ser chamada verdadeiramente “crítica”, em qualquer ordem
de coisas, é aquela que conduz imediatamente a uma solução
favorável ou desfavorável, aquela em que uma decisão intervém
num sentido ou noutro; é então, por conseqüência, que se torna
possível emitir um juízo sobre os resultados obtidos, pesar os
“prós” e os “contras”, fazendo uma espécie de classificação dos
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4
Introdução
resultados, uns positivos, outros negativos, e, assim, ver para que
lado realmente pende a balança. Que fique bem entendido que
não tenho qualquer pretensão de estabelecer de maneira completa
uma tal discriminação, o que seria, aliás, prematuro, visto que a
crise não está ainda solucionada e talvez não seja possível dizer
exatamente quando e como o será. Além disso, julgo preferível
apoiar-me em razões claramente inteligíveis para todos, as quais,
por isso mesmo, arriscar-se-iam demasiado a serem mal interpretadas e a aumentar a confusão em lugar de acabar com ela.
Tudo o que posso propor, então, é contribuir até certo ponto,
tanto quanto me permitam os meios de que disponho, para dar
àqueles que são capazes a consciência de alguns dos resultados
que parecem bem estabelecidos desde já, e a preparar, assim,
ainda que de modo muito parcial e bastante indireto, os elementos que deverão servir em seguida para o futuro “julgamento”, a
partir do qual se abrirá um novo período da História da Humanidade terrestre.
Algumas das expressões que acabei de empregar evocarão certamente, para alguns, a idéia do chamado “juízo final”; e isso,
para dizer a verdade, não está errado, quer seja entendido literalmente, quer simbolicamente (ou simultaneamente das duas
maneiras, porque elas realmente não se excluem nesse caso, mas
este não é o lugar nem o momento de explicar inteiramente esse
ponto). Em todo o caso, essa pesagem dos “prós” e dos “contras”,
essa discriminação dos resultados positivos e negativos, de que
falei há pouco, podem certamente aludir à divisão de “eleitos” e
“danados” em dois grupos imutavelmente fixados doravante;
mesmo se isso não passa de uma analogia, é preciso reconhecer
que pelo menos se trata de uma analogia válida e bem fundada,
em conformidade com a própria natureza das coisas; e isto pede
ainda algumas explicações.
Não é certamente "por acaso" que tantas mentalidades estão
hoje atormentadas pela idéia do “fim do Mundo”. Podemos
lamentá-lo em certo sentido, porque as extravagâncias a que esta
idéia mal compreendida dá origem, as divagações “messiânicas”
que são a sua conseqüência em diversos meios, todas estas
manifestações provenientes do desequilíbrio mental da nossa
época, só fazem agravar ainda mais este mesmo desequilíbrio em
proporções que não são absolutamente negligenciáveis; mas
enfim, é certo que temos aí um fato que não nos podemos dispensar de ter em conta. A atitude mais cômoda, quando se constatam
coisas deste gênero, é certamente a de afastá-las pura e simplesmente sem outro exame, e tratá-las como erros ou divagações
sem importância. No entanto, eu penso que mesmo que se trate
efetivamente de erros, mais vale denunciá-los como tal e procurar
as razões que os causaram e a parte de verdade mais ou menos
deformada que se pode encontrar neles, apesar de tudo. Pois,
visto que o erro tem um modo de existência puramente negativo,
o erro absoluto não será encontrado em parte alguma e trata-se
apenas de uma expressão vazia de sentido. Se consideramos as
coisas desta maneira, percebemos facilmente que essa preocupação do “fim do Mundo” está estreitamente ligada ao estado de
inquietação geral no qual vivemos atualmente: o pressentimento
obscuro de qualquer coisa que está efetivamente prestes a acabar,
agindo sem controle sobre algumas imaginações, produz naturalmente nelas representações desordenadas, na maior parte das
vezes grosseiramente materializadas e que, por seu turno, se traduzem exteriormente pelas extravagâncias que acabei de mencionar. Mas esta explicação não é uma desculpa que as favoreça; ou,
pelo menos, se podemos desculpar aqueles que caem involuntariamente no erro por estarem predispostos a isso por um estado
mental de que não são responsáveis, isso não seria nunca uma
razão para desculpar o erro em si mesmo. Aliás, no que me diz
respeito, certamente não é possível acusar-me de indulgência
excessiva em relação às manifestações “pseudo-religiosas” do
Mundo contemporâneo, ou aos erros modernos em geral; sei,
inclusive, que alguns seriam mais tentados a fazer-me a acusação
contrária. Talvez o que eu digo aqui lhes faça compreender
melhor como encaro estas coisas, esforçando-me por me colocar
sempre no único ponto de vista que interessa, o da verdade
imparcial e desinteressada.
Não é tudo: uma explicação simplesmente “psicológica” da
idéia do “fim do Mundo” e das suas manifestações atuais, por
justa que seja na sua ordem, não poderia passar aos meus olhos
por plenamente suficiente; ficar por aí seria deixar-me influenciar
precisamente por uma dessas ilusões modernas contra as quais
me levanto em todas as ocasiões. Como eu dizia, alguns sentem
confusamente o fim iminente de qualquer coisa cuja natureza e
alcance não podem definir exatamente; é necessário admitir que
eles têm uma percepção muito real, embora vaga e sujeita a falsas
interpretações ou a deformações imaginativas, visto que, qualquer
que seja esse fim, a crise que deve forçosamente conduzir a ele é
bastante visível, e numerosos sinais inequívocos e fáceis de
constatar conduzem igualmente à mesma conclusão. Este fim não
é, sem dúvida, o “fim do Mundo”, no sentido total em que alguns
o querem entender, mas é, pelo menos, o fim de um mundo; e se
o que deve acabar é a civilização ocidental na sua forma atual, é
compreensível que aqueles que se habituaram a não ver coisa
5
6
alguma fora dela, a considerá-la como “a civilização” sem epíteto,
julguem facilmente que tudo acabará com ela, e que, se ela desaparecer, será realmente o “fim do Mundo”.
Direi, então, para remeter as coisas às suas justas proporções,
que parece que nos aproximamos realmente do fim de um Mundo,
ou seja, do fim de uma época ou de um ciclo histórico que pode,
além disso, estar em correspondência com um ciclo cósmico,
segundo o que ensinam a esse respeito as doutrinas tradicionais.
Já houve no passado muitos acontecimentos desse tipo, e sem
dúvida haverá ainda outros no futuro; acontecimentos de importância desigual, aliás, pois encerram períodos mais ou menos
extensos e dizem respeito ora a todo o conjunto da Humanidade
terrestre, ora apenas a uma ou outra das suas partes, uma raça
ou um povo determinado. É de supor, no estado atual do Mundo,
que a mudança que ocorrer terá alcance muito geral, e que, seja
qual for a forma de que vai se revestir – que não pretendo tentar
definir – afetará mais ou menos a Terra inteira. Em todo o caso,
as leis que regem tais acontecimentos são aplicáveis analogamente a todos os graus; tudo o que é dito do “fim do Mundo”,
num sentido tão completo como é possível conceber, e que, aliás,
comumente só diz respeito ao Mundo terrestre, é também verdadeiro, guardadas todas as proporções, quando se trata simplesmente do fim de um Mundo qualquer, num sentido mais restrito.
Estas observações preliminares ajudarão bastante a compreender as considerações apresentadas a seguir. Já tive ocasião, noutras obras, de fazer muitas alusões às “leis cíclicas”; seria talvez
difícil fazer uma exposição completa destas leis sob uma forma
facilmente acessível à mentalidade ocidental, mas, pelo menos, é
necessário ter alguns dados sobre esse assunto para se fazer uma
idéia verdadeira do que é a época atual e do que ela representa
exatamente no conjunto da História do Mundo. É por esse motivo
que começarei por mostrar que as características desta época são
realmente aquelas que as doutrinas tradicionais indicaram em
todos os tempos para o período cíclico ao qual ela corresponde; e
também por mostrar que aquilo que é anomalia e desordem, sob
um certo ponto de vista, é, no entanto, um elemento necessário
numa ordem mais vasta, uma conseqüência inevitável das leis
que regem o desenvolvimento de toda a manifestação. De resto,
digo desde já que essa não é uma razão para nos contentarmos
em aceitar passivamente a perturbação e a obscuridade que parecem triunfar momentaneamente, porque, se assim fosse, só restaria guardar silêncio. Pelo contrário, é uma razão para trabalhar,
tanto quanto pudermos, na preparação da saída desta “idade
sombria”, da qual muitos indícios permitem já entrever o fim mais
ou menos próximo, senão mesmo iminente. Isso também está na
ordem das coisas, porque o equilíbrio é o resultado da ação
simultânea de duas tendências opostas; se uma ou outra pudesse
deixar inteiramente de atuar, o equilíbrio nunca mais seria reencontrado e o próprio Mundo desapareceria; mas esta suposição é
irrealizável, porque os dois termos de uma oposição só têm sentido um pelo outro, e, quaisquer que sejam as aparências, podemos ter certeza que todos os desequilíbrios concorrem finalmente
para a realização do equilíbrio total.
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1. A idade sombria
A doutrina hindu ensina que a duração de um ciclo humano,
ao qual dá o nome de Manvantara, divide-se em quatro Idades,
que correspondem a fases de um obscurecimento gradual da espiritualidade primordial; são esses mesmos períodos que as tradições da Antiguidade ocidental, por seu lado, designavam como as
Idades de Ouro, de Prata, de Bronze e de Ferro. Estamos presentemente na quarta Idade, “Kali-Yuga” ou “Idade Sombria”, e estamos nela, afirma-se, há mais de seis mil anos, ou seja, desde uma
época bastante anterior a todas aquelas que são conhecidas da
História “clássica”. Desde então, as verdades que eram outrora
acessíveis a todos os homens tornaram-se cada vez mais dissimuladas e difíceis de atingir; aqueles que as possuem são cada
vez menos numerosos e, se o tesouro da sabedoria “não humana”,
anterior a todas as idades, nunca se pode perder, ele se envolve
no entanto em véus cada vez mais impenetráveis, que o escondem
aos olhares e sob os quais é extremamente difícil descobri-lo. É
por isso que por toda a parte se faz alusão, sob diversos símbolos,
a qualquer coisa que se perdeu, pelo menos aparentemente e em
relação ao mundo exterior, e que devem encontrar aqueles que
aspiram ao verdadeiro conhecimento; mas também se afirma que
aquilo que está assim escondido voltará a ser visível no fim deste
ciclo, que será ao mesmo tempo, em virtude da continuidade que
liga todas as coisas, o começo de um ciclo novo.
Mas, perguntarão, sem dúvida, porque é que o desenvolvimento cíclico se deve cumprir assim num sentido descendente,
indo do superior para o inferior – o que, como é fácil de ver, é a
própria negação da idéia de “progresso”, tal como os modernos a
entendem? É que o desenvolvimento de toda a manifestação implica necessariamente um afastamento cada vez maior do princípio do qual ela procede; partindo do ponto mais alto, ela tende
forçosamente para baixo, e, como os corpos pesados, tende para
esse sentido com uma velocidade sem cessar crescente, até que
encontra finalmente um ponto de paragem. Esta queda poderia
ser caracterizada como uma materialização progressiva, porque a
expressão do princípio é pura espiritualidade; dizemos a expressão, e não o próprio princípio, porque este não pode ser designado
por qualquer dos termos que parecem indicar uma oposição,
estando além de todas as oposições. Aliás, expressões como “espírito” e “matéria”, que, por maior comodidade, pedimos aqui de
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empréstimo à linguagem ocidental, não têm para nós mais do que
valor simbólico; em todo o caso, elas só podem convir verdadeiramente ao assunto sob condição de afastarmos delas as interpretações especiais que lhes são dadas pela Filosofia moderna,
das quais “espiritualismo” e “materialismo” são, aos meus olhos,
apenas duas formas complementares que se implicam uma à
outra e que são igualmente desprezíveis para quem quer elevar-se
acima desses pontos de vista contingentes. Mas, aliás, não é de
Metafísica pura que me propus tratar aqui, e é por isso que, sem
nunca perder de vista os princípios essenciais, e tomando precauções especiais para evitar qualquer equívoco, posso permitir-me usar termos que, embora inadequados, parecem capazes
de tornar as coisas mais facilmente compreensíveis, na medida
em que é possível fazer isso sem as desnaturar.
O que acabei de dizer acerca do desenvolvimento da manifestação apresenta uma visão que, embora exata no seu conjunto, é
todavia demasiado simplificada e esquemática, e com isso pode
fazer pensar que esse desenvolvimento se efetua em linha reta,
segundo um sentido único e sem oscilação de qualquer espécie;
enquanto a realidade é bem diferente e complexa. Com efeito,
podemos encarar em todas as coisas, tal como eu disse antes,
duas tendências opostas, uma descendente e outra ascendente,
ou, se quisermos utilizar outro modo de representação, uma centrífuga e outra centrípeta; e da predominância de uma ou de
outra procedem duas fases complementares da manifestação,
uma de afastamento do princípio outra de retorno ao princípio,
que são muitas vezes simbolicamente comparadas aos movimentos do coração ou às duas fases da respiração. Ainda que essas
duas fases sejam vulgarmente descritas como sucessivas, devemos conceber que, na realidade, as duas tendências às quais elas
correspondem agem sempre simultaneamente, embora em proporções diversas. Por vezes acontece, em certos momentos críticos
em que a tendência descendente parece estar no ponto de se tornar definitiva na marcha geral do Mundo, que uma ação especial
intervém para reforçar a tendência contrária, de modo a restabelecer um certo equilíbrio pelo menos relativo, tal como o podem
comportar as condições do momento, e a operar, assim, uma ratificação parcial, pela qual o movimento da queda pode parecer
detido ou temporariamente neutralizado.1
1 Isto diz respeito à função de "conservação divina" que na tradição hindu é representada por Víshnu, e mais particularmente à doutrina dos Avatares ou "descidas"
do princípio divino no mundo manifestado, que, naturalmente, não é possível
desenvolver aqui.
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É fácil compreender que estes dados tradicionais, dos quais
vou me limitar a esboçar um resumo muito sumário, tornam possíveis concepções muito diferentes das de todos os ensaios de
“filosofia da História” aos quais se entregam os modernos, e bem
mais vastas e profundas. Mas não pretendo remontar, neste momento, às origens do ciclo atual, nem mesmo mais simplesmente
aos começos da “Kali-Yuga”; minhas intenções referem-se apenas,
de uma maneira direta pelo menos, a um domínio muito mais
limitado: as últimas fases desta mesma “Kali-Yuga”. Efetivamente,
é possível distinguir, no interior de cada um dos grandes períodos
de que falei, diferentes fases secundárias que constituem outras
tantas divisões; e sendo cada uma das partes de qualquer modo
análoga ao todo, essas subdivisões reproduzem, por assim dizer,
numa escala mais reduzida, a marcha geral do grande ciclo no
qual se integram. Mas, ainda aí, uma pesquisa completa das
modalidades de aplicação desta lei aos diversos casos particulares
levar-me-ia muito além do quadro que tracei para este estudo.
Mencionarei apenas, para terminar estas considerações preliminares, algumas das últimas épocas particularmente críticas que a
humanidade atravessou, aquelas que entram no período que se
costuma chamar “histórico” porque é efetivamente o único verdadeiramente acessível à História vulgar ou “profana”; e isso nos
conduzirá naturalmente ao que deve constituir o objeto próprio do
nosso estudo, visto que a última destas épocas críticas constitui
justamente o que chamamos de tempos modernos.
Há um fato bastante estranho, que parece nunca ter sido
notado como merece: é que o período propriamente “histórico”, no
sentido que acabamos de indicar, remonta exatamente ao século
VI antes da era cristã, como se houvesse aí uma barreira, no
tempo, que não é possível transpor com a ajuda dos meios de
investigação de que dispõem os investigadores comuns. A partir
dessa época, com efeito, possui-se por toda a parte uma cronologia bastante precisa e bem estabelecida; para tudo o que é anterior, pelo contrário, só se obtém geralmente uma aproximação
muito vaga, e as datas propostas para os mesmos acontecimentos
diferem muitas vezes de diversos séculos. Mesmo para os países
onde há mais do que simples vestígios dispersos, como por exemplo o Egito, isso surpreendentemente ocorre; e o que é talvez
ainda mais espantoso é que, num caso excepcional e privilegiado
como o da China, que possui, para épocas bem mais afastadas,
anais datados por meio de observações astronômicas que não
deveriam deixar lugar para qualquer dúvida, os historiadores
modernos ainda assim qualificam essas épocas de “legendárias”,
como se houvesse aí um domínio em que eles não reconhecem o
direito a qualquer certeza e em que eles próprios se proíbem de
obtê-la. A Antiguidade dita “clássica” é então, para dizer a verdade, uma antiguidade muito relativa e mesmo muito mais próxima dos tempos modernos do que a verdadeira Antiguidade,
visto que ela não remonta sequer à metade da “Kali-Yuga”, cuja
duração é apenas, segundo a doutrina hindu, a décima parte da
duração do Manvantara. Por aí se poderá suficientemente avaliar
até que ponto os homens modernos têm razão de se sentirem
orgulhosos com a extensão dos seus conhecimentos históricos!
Eles responderiam, sem dúvida, para se justificar, que esses nada
mais são do que períodos “legendários” e por isso crêem não ter
que os levar em conta; mas esta resposta é precisamente a confissão da sua ignorância e de uma incompreensão que por si só
pode explicar o seu desdém pela Tradição. O espírito especificamente moderno nada mais é, efetivamente, como demonstrarei
adiante, do que o espírito anti-tradicional.
No século VI antes da era cristã produziram-se, qualquer que
tenha sido a sua causa, mudanças consideráveis em quase todos
os povos. Essas mudanças apresentaram características diferentes conforme os países; em certos casos, foi uma readaptação da
Tradição a condições diferentes das que tinham existido anteriormente, readaptação que se efetuou num sentido rigorosamente
ortodoxo. Foi isso o que aconteceu notadamente na China, onde a
doutrina, primitivamente constituída num único conjunto, foi
então dividida em duas partes nitidamente distintas: o Taoísmo,
reservado a uma elite e compreendendo a Metafísica pura e as
ciências tradicionais de ordem propriamente especulativa, e o
Confucionismo, comum a todos sem distinção, e tendo por domínio as aplicações práticas e principalmente sociais. Entre os persas parece que teria havido igualmente uma readaptação do Mazdeísmo, porque essa época foi a do último Zoroastro2. Na Índia
viu-se nascer então o Budismo, que, qualquer que tenha sido, o
seu caráter original 3, devia conduzir, aliás, pelo menos em certos
2 E preciso notar que o nome de Zoroastro designa, na realidade, não um personagem particular, mas uma função, simultaneamente profética e legisladora; houve
vários Zoroastros, que viveram em épocas muito diferentes; e é mesmo verossímil
que esta função tenha tido caráter coletivo, tal como a de Vyasa na Índia, e também como no Egito, onde a obra a que foi atribuída a Thoth ou Hermes representa
a obra de toda a casta sacerdotal.
3 A questão do Budismo está, na realidade, longe de ser tão simples como este
breve resumo pode fazer pensar; e é interessante notar que, se os hindus, do
ponto de vista da sua própria tradição, sempre condenaram os budistas, muitos
deles professam um grande respeito pelo próprio Buda, alguns chegando mesmo a
ponto de ver nele o nono Avatara, enquanto outros identificam este como o Cristo.
Por outro lado, no que diz respeito ao Budismo tal como é hoje conhecido, é pre-
11
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dos seus ramos, a uma revolta contra o espírito tradicional, indo
até à negação de toda a autoridade, até uma verdadeira anarquia
no sentido etimológico de “ausência de princípio”, na ordem intelectual e na ordem social. O que é bastante curioso é que não se
encontra na Índia nenhum monumento remontando além dessa
época; e os orientalistas, que pretendem fazer começar tudo no
Budismo, cuja importância exageram singularmente, tentam tirar
partido dessa constatação a favor da sua tese. A explicação do
fato, no entanto, é bem simples: é que todas as construções anteriores eram de madeira, pelo que desapareceram naturalmente
sem deixar traços 4; mas o que é verdade é que uma tal mudança
no modo de construção corresponde necessariamente a uma
modificação profunda das condições gerais de existência do povo
no qual se produziu.
Aproximando-nos do Ocidente, vemos que a mesma época
marcou, para os judeus, o cativeiro da Babilônia; e o que é talvez
um dos fatos mais espantosos que se podem constatar é que um
curto período de setenta anos foi suficiente para lhes fazer perder
até a própria escrita, visto que depois tiveram que reconstituir os
Livros sagrados com caracteres diferentes dos que tinham sido
utilizados até essa altura. Eu poderia citar ainda muitos outros
acontecimentos que se referem mais ou menos à mesma data,
mas farei apenas notar que ela foi para Roma o começo do
período propriamente “histórico”, sucedendo à época “legendária”
dos reis, e que se sabe também, embora de modo um pouco vago,
que houve então importantes movimentos nos povos célticos; mas
sem insistir demasiado nisso, chegaremos ao que se refere à Grécia. Igualmente aí o século VI foi o ponto de partida da civilização
dita “clássica”, a única à qual os historiadores modernos reconhecem caráter “histórico”; e tudo o que a precede é bastante mal
conhecido para poder ser tratado como “legendário”, embora as
recentes descobertas arqueológicas já não permitam duvidar que
houve aí uma civilização muito real. Tenho mesmo algumas
razões para pensar que esta primeira civilização helênica foi
ciso ter muito cuidado de distinguir entre as suas duas formas do Mahayana e do
Hinayana, ou do “:Grande Veículo” e do “Pequeno Veiculo”; de modo geral, pode-se
dizer que o Budismo fora da Índia difere notavelmente da sua forma indiana original, que começou a perder rapidamente terreno após a morte de Ashoka e desapareceu completamente alguns séculos mais tarde.
4 Este caso não é exclusivo da Índia e encontra-se igualmente no Ocidente; é
exatamente pela mesma razão que não se encontra nenhum vestígio das cidades
gaulesas, cuja existência é, no entanto, incontestável, sendo atestada por testemunhos de povos contemporâneos; e ai, igualmente, os historiadores modernos
aproveitaram essa ausência de monumentos para descrever os gauleses como
selvagens vivendo nas florestas.
13
muito mais interessante intelectualmente do que aquela que se
lhe seguiu, e que as relações entre elas guardam analogia com as
que existem entre a Europa da Idade Média e a Europa moderna.
No entanto, convém notar que a cisão não foi tão radical como
neste último caso, porque houve na Grécia, pelo menos parcialmente, uma readaptação efetuada na ordem tradicional, principalmente no domínio dos “mistérios”; e que é preciso ligá-la com o
Pitagorismo, que foi sobretudo, sob uma nova forma, uma restauração do Orfismo anterior, e cujos laços evidentes com o culto
délfico do Apolo hiperbóreo permitem mesmo encarar uma filiação
contínua e regular com uma das mais antigas tradições da
humanidade. Mas, por outro lado, apareceu em breve alguma
coisa da qual não se tinha ainda tido nenhum exemplo e que
deveria desde então exercer uma influência nefasta sobre todo o
mundo ocidental: referimo-nos a esse modo especial de pensamento que tomou e conservou o nome de “filosofia”; e este ponto é
bastante importante para que nos detenhamos nele alguns instantes.
A palavra “filosofia”, em si mesma, pode seguramente ser
tomada num sentido muito legítimo, que foi sem dúvida o seu
sentido primitivo, sobretudo se é verdade, como se pretende, que
foi Pitágoras o primeiro a utilizá-la. Etimologicamente, significa
“amor à sabedoria”; designa portanto, primeiramente, uma disposição prévia requerida para alcançar a sabedoria, e pode designar também, por uma natural extensão, a procura que, nascendo
dessa disposição, deve conduzir ao conhecimento. É então apenas
um estágio preliminar e preparatório, um caminhar para a sabedoria, um grau correspondente a um estado inferior a esta. 5 O
desvio que se produziu depois consistiu em tomar este grau transitório pelo próprio fim, em pretender substituir a sabedoria pela
“filosofia”, o que implica o esquecimento ou o desconhecimento da
verdadeira natureza desta última.
Foi assim que nasceu o que nós podemos chamar de Filosofia
“profana”, ou seja, uma pretensa sabedoria puramente humana,
portanto de ordem simplesmente racional, tomando o lugar da
verdadeira sabedoria tradicional, supra-racional e “não humana”.
No entanto, subsistiu ainda alguma coisa desta através de toda a
Antiguidade; o que o prova é primeiramente a persistência dos
“mistérios”, cujo caráter essencialmente “iniciático” não pode ser
contestado, e também o fato de que o ensino dos próprios filósofos
tinha simultaneamente, na maior parte dos casos, um lado
5 A relação é aqui mais ou menos a mesma que aquela existente, na doutrina
taoista, entre o estado do “homem perfeito” e o do “homem transcendente".
14
“exotérico” e um lado “esotérico”, este último permitindo a ligação
a um ponto de vista superior, que se manifesta de maneira muito
nítida, embora talvez incompleta em certos aspectos, alguns
séculos mais tarde, entre os Alexandrinos. Para que a Filosofia
“profana” fosse definitivamente constituída como tal, foi preciso
que só o “exoterismo” permanecesse e que se fosse até à negação
pura e simples de todo o “esoterismo”; foi precisamente a isso que
conduziu, entre os modernos, o movimento começado pelos
gregos. As tendências que se tinham afirmado entre estes foram
levadas até às suas conseqüências mais extremas, e a
importância excessiva que eles tinham atribuído ao pensamento
racional acentuou-se ainda, para chegar ao “racionalismo”,
atitude especialmente moderna que consiste não apenas em
ignorar, mas em negar expressamente tudo o que é de ordem
supra-racional. Mas não anteciparei demasiado, porque devo
voltar a falar destas conseqüências e a ver o desenvolvimento
delas numa ou outra parte da minha exposição.
Do que acaba de ser dito, uma coisa se deve reter particularmente: é que convém procurar na Antiguidade “clássica” algumas
das origens do Mundo Moderno; este não está, portanto, inteiramente errado quando se reclama herdeiro da civilização grecolatina e pretende ser seu continuador. No entanto, devo sublinhar
que se trata apenas de uma continuação longínqua e um pouco
infiel, porque, apesar de tudo, havia nessa Antiguidade muitas
coisas de ordem intelectual e espiritual cujos equivalentes não
podemos encontrar entre os modernos; trata-se de dois graus
bastante diferentes de obscurecimento progressivo do verdadeiro
conhecimento. Poder-se-ia, aliás, conceber que a decadência da
civilização antiga tenha conduzido, de modo gradual e sem solução de continuidade, a um estado mais ou menos semelhante ao
que vemos hoje; mas não foi efetivamente assim. Houve, nesse
intervalo, uma outra época crítica, que foi ao mesmo tempo uma
dessas épocas de recuperação às quais aludi há pouco.
Essa época é a do começo e da expansão do Cristianismo, que
coincidiu, por um lado, com a dispersão do povo judeu e, por
outro lado, com a última fase da civilização greco-latina. Podemos
passar mais rapidamente por cima destes acontecimentos, apesar
da sua importância, porque eles são geralmente mais conhecidos
do que aqueles de que falei até agora, e porque o seu sincronismo
foi mais notado, mesmo pelos historiadores de visão mais superficial. Também foram assinalados, muitas vezes, certos traços
comuns à decadência antiga e à época atual; e, sem querer levar
demasiado longe o paralelismo, deve-se reconhecer que há realmente algumas semelhanças bastante surpreendentes. A Filosofia
puramente “profana” tinha ganhado terreno: a aparição do ceticismo, por um lado, e o sucesso do “moralismo” estóico e epicuriano, por outro lado, mostram bem a que ponto a intelectualidade
se tinha reduzido. Ao mesmo tempo, as antigas doutrinas sagradas, que já quase ninguém compreendia, tinham degenerado, por
causa dessa incompreensão, em “paganismo”, no verdadeiro sentido dessa palavra – quer dizer que elas não eram mais do que
“superstições”, coisas que, tendo perdido a sua significação profunda, sobreviviam a si mesmas através de manifestações totalmente exteriores. Houve também tentativas de reação contra essa
decadência: o próprio Helenismo tentou revivificar-se com a ajuda
de elementos pedidos de empréstimo às doutrinas orientais com
as quais podia se manter em contato. Mas isso já não era suficiente, a civilização greco-latina devia terminar e a correção devia
vir de outro lado e operar-se sob outra forma; foi o Cristianismo
quem efetuou essa transformação. Aliás, podemos notar, de passagem, que a comparação que se pode estabelecer entre esse
tempo e o nosso é talvez um dos elementos determinantes do
“messianismo” desordenado que aparece atualmente à luz do dia.
Depois do conturbado período das invasões bárbaras, necessário
para concluir a destruição do antigo estado de coisas, uma ordem
normal foi restaurada para durar alguns séculos; foi a Idade
Média, tão desconhecida dos modernos, que são incapazes de
compreender a sua intelectualidade e para quem essa época
parece certamente muito mais estranha e distante do que a Antiguidade “clássica”.
A verdadeira Idade Média, para mim, estende-se do reinado de
Carlos Magno até o começo do século XIV; nesta última data
começa uma nova decadência que, através de diversas etapas, foi
se acentuando até nós. É aí que se situa o verdadeiro ponto de
partida da crise moderna; é o começo da desagregação da “Cristandade”, à qual a civilização ocidental da Idade Média se identificava essencialmente. Essa data marca, ao mesmo tempo, o fim do
regime feudal, estreitamente solidário com essa mesma “Cristandade”, e a origem da constituição das “nacionalidades”. Será
então necessário fazer remontar a época moderna a cerca de dois
séculos mais cedo do que se considera habitualmente. A Renascença e a Reforma são sobretudo resultantes e só foram possíveis
pela decadência prévia; mas, bem longe de serem uma reparação,
elas marcavam uma queda muito mais profunda, visto que consumaram a ruptura definitiva com o espírito tradicional, uma
delas no domínio das ciências e das artes, a outra no próprio
domínio religioso, que era, no entanto, aquele onde tal ruptura
pareceria mais difícil de conceber.
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O que se designa por Renascimento foi, na realidade, como eu
já disse noutras ocasiões, a morte de muitas coisas; sob pretexto
de voltar à civilização greco-romana, só se tomou o que esta tinha
de mais exterior, porque apenas isso se tinha podido exprimir
claramente nos textos escritos; e essa incompleta restituição apenas poderia ter um caráter muito artificial, visto que se tratava de
formas que desde há séculos tinham cessado de viver a sua vida
autêntica. Quanto às ciências tradicionais da Idade Média, após
algumas derradeiras manifestações nessa época, desapareceram
totalmente, tal como as das longínquas civilizações que foram
outrora aniquiladas por algum cataclismo; e dessa vez nada viria
substituí-las. A partir daí, só houve a Filosofia e a ciência “profanas”, ou seja, a negação da verdadeira intelectualidade, a limitação do conhecimento à ordem mais inferior, o estudo empírico e
analítico de fatos que não se encontram ligados a qualquer princípio, a dispersão numa multiplicidade indefinida de detalhes
insignificantes, a acumulação de hipóteses sem fundamento, que
se destroem incessantemente umas às outras, e de visões fragmentárias que a nada podem conduzir, salvo a aplicações práticas
que constituem a única superioridade efetiva da civilização moderna; superioridade, aliás, pouco invejável, e que, desenvolvendo-se até abafar qualquer outra preocupação, deu a esta civilização o caráter puramente material que faz dela uma verdadeira
monstruosidade
O que é de fato extraordinário é a rapidez com que a civilização
da Idade Média caiu no mais completo esquecimento; os homens
do século XVII já não tinham dela a menor noção, e os monumentos dessa época que subsistiam já nada representavam aos
seus olhos, nem na ordem intelectual, nem mesmo na ordem
estética. Por aí se pode calcular quanto a mentalidade tinha
mudado nesse intervalo. Não tentaremos aqui encontrar os fatores certamente muito complexos que concorreram para essa
mudança radical, tão radical que parece difícil admitir que ela se
tenha operado espontaneamente e sem a intervenção de uma
vontade diretora, cuja natureza exata permanece forçosamente
bastante enigmática. A esse respeito, há circunstâncias bem
estranhas, como a vulgarização e apresentação como descobertas
novas, num certo momento, de coisas que na realidade eram
conhecidas desde há muito tempo, mas cujo conhecimento não
tinha sido espalhado até então no domínio público, em virtude de
certos inconvenientes que se arriscavam a ultrapassar as vanta-
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gens, 6. Também é bastante inverossímil que a legenda que fez da
Idade Média uma época de “trevas”, de ignorância e de barbárie,
tenha nascido e se estabelecido por si mesma, e que a autêntica
falsificação da história à qual os modernos se entregaram tenha
sido empreendida sem qualquer idéia preconcebida. Mas não
iremos muito mais longe no exame dessa questão porque, seja
qual for a maneira como esse trabalho tenha sido feito, neste
momento o que nos importa mais, em resumo, é a verificação do
resultado.
Há uma palavra que recebeu honrarias no Renascimento e que
resumia, já nessa altura, todo o programa da civilização moderna:
é a palavra “humanismo”. Tratava-se, com efeito, de reduzir tudo
a proporções puramente humanas, de fazer abstração de todo o
princípio de ordem superior, e, poderíamos dizer simbolicamente,
de se afastar do céu sob pretexto de conquistar a terra. Os gregos,
de quem se pretendia seguir o exemplo, nunca tinham ido tão
longe nesse sentido, mesmo na época da sua maior decadência
intelectual, e pelo menos as preocupações utilitárias nunca
tinham, entre eles, passado para primeiro plano, tal como em
breve se iria produzir entre os modernos. O “humanismo” era já
uma primeira forma do que se tornou o “laicismo” contemporâneo; e, querendo tudo remeter à medida do homem, tomado como
um fim em si próprio, acabou por descer, de degrau em degrau,
ao nível do que há neste de mais inferior, procurando apenas a
satisfação das necessidades inerentes ao lado material da sua
natureza – procura bem ilusória, de resto, porque cria sempre
mais necessidades artificiais do que aquelas que pode satisfazer.
Irá o Mundo Moderno até ao fundo desse declive fatal ou, como
aconteceu na decadência do mundo greco-romano, uma nova
recuperação se produzirá ainda desta vez, antes que ele atinja o
fundo do abismo para onde foi arrastado? Parece que uma paragem a meio do caminho já não será possível e que, segundo todas
as indicações fornecidas pelas doutrinas tradicionais, entramos
realmente na fase final de “Kali-Yuga”, no período mais sombrio
desta “Idade Sombria”, neste estado de dissolução do qual não é
mais possível sair senão por um cataclismo, porque não é já
necessária apenas uma simples recuperação, mas antes uma
renovação total. A desordem e a confusão reinam em todos os
6 Citaremos apenas dois exemplos entre os fatos desse tipo que deviam ter as mais
graves conseqüências: a pretensa invenção da Imprensa, que os chineses já
conheciam antes da era cristã, e a “descoberta” oficial da América, com a qual
tinham existido comunicações muito mais constantes do que se pensa, durante
toda a Idade Média.
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domínios; foram levadas a tal ponto, que ultrapassam de longe
tudo o que se tinha visto anteriormente e, partindo do Ocidente,
ameaçam agora invadir o Mundo inteiro. Sabemos bem que o seu
triunfo nunca pode ser mais do que aparente e passageiro, mas
um tal grau parece ser o sinal da mais grave de todas as crises
que a Humanidade atravessou no decurso do seu ciclo atual. Não
teremos nós chegado a essa época temível, anunciada pelos Livros
sagrados da Índia, “em que as castas serão misturadas, em que a
própria família não existirá”? Basta olharmos à nossa volta para
nos convencermos que esse estado é realmente o do Mundo atual,
e para verificar por toda a parte essa profunda queda que o Evangelho chama “a abominação da desolação”. Não devemos esconder
a gravidade da situação; convém encará-la tal como ela é, sem
nenhum “otimismo” mas também sem qualquer “pessimismo”,
visto que, tal como eu disse anteriormente, o fim do Mundo antigo
será igualmente o começo de um Mundo novo.
Neste momento, uma questão se põe: qual a razão de ser de
um período como aquele que vivemos? Efetivamente, por anormais que sejam as atuais condições consideradas em si mesmas,
elas devem, no entanto, entrar na ordem geral das coisas – nessa
ordem que, segundo uma fórmula do Extremo Oriente, é feita da
soma de todas as desordens. Esta época, por muito penosa e
conturbada que seja, deve igualmente ter, como todas as outras,
o seu lugar marcado no conjunto do desenvolvimento humano.
Aliás, o próprio fato de que ela tenha sido prevista pelas doutrinas
tradicionais é indicação suficiente nesse aspecto. O que foi dito
quanto à marcha geral de um ciclo de manifestação, que caminha
no sentido de uma materialização progressiva, dá imediatamente
a explicação de um tal estado e mostra bem que o que é anormal
e desordenado segundo um certo ponto de vista particular é, no
entanto, apenas a conseqüência de uma lei que se reporta a um
ponto de vista superior ou mais amplo. Acrescentarei ainda que,
como em toda mudança de estado, a Passagem de um ciclo para
outro só se pode efetuar na obscuridade; há aí uma lei muito importante e cujas aplicações são múltiplas, mas cuja exposição
mais detalhada, por isso mesmo, nos levaria demasiado longe 7.
E não é tudo: a época moderna deve necessariamente
corresponder ao desenvolvimento de certas possibilidades que,
desde a origem, estavam incluídas na potencialidade do ciclo
Esta lei era representada nos mistérios de Elêusis pelo simbolismo do grão de
trigo; os alquimistas figuravam-na pela “putrefação” e pela cor negra que marca o
começo da Grande Obra; o que os místicos cristãos chamam a “noite obscura da
alma” é apenas a sua aplicação ao desenvolvimento espiritual do ser que se eleva a
estados superiores; e seria fácil assinalar ainda outras concordâncias.
atual. Por inferior que seja o lugar ocupado por essas possibilidades na hierarquia do conjunto, elas devem, tal como as outras,
ser chamadas à manifestação, de acordo com a ordem que lhes
estava destinada. Neste aspecto, eu poderia dizer que o que
caracteriza a última fase do ciclo, segundo a Tradição, é a exploração de tudo o que foi desprezado ou rejeitado no decurso das
fases anteriores; e, efetivamente, é isso mesmo que podemos verificar na civilização moderna, que, de certo modo, vive apenas
daquilo que as civilizações anteriores tinham rejeitado. Para nos
darmos conta disso basta ver como os representantes daquelas
civilizações orientais que se mantiveram até hoje no Mundo
oriental apreciam as ciências ocidentais e as suas aplicações
industriais.
Esses conhecimentos inferiores, tão pueris para quem possui
um conhecimento de outra ordem, deviam, no entanto, ser “realizados”; e só o podiam ser num estágio em que a verdadeira intelectualidade tivesse desaparecido. Essas pesquisas de alcance
exclusivamente prático, no sentido mais estreito da palavra,
deviam ser efetuadas, mas só o podiam ser no extremo oposto da
espiritualidade primordial, por homens mergulhados na matéria a
ponto de nada mais poderem conceber para além dela, tornandose tanto mais escravos dessa matéria quanto mais se servissem
dela, o que os conduz a uma agitação sempre crescente, sem
regra e sem objetivo, à dispersão na multiplicidade pura, até à
dissolução final.
Esta é a verdadeira explicação do Mundo Moderno, esboçada
nos seus grandes traços e reduzida ao essencial; mas, declaro
com nitidez, esta explicação não pode ser tomada como justificação. Uma desgraça, mesmo se inevitável, não deixa de ser uma
desgraça; e mesmo se do mal deve sair um bem, esse fato não tira
ao mal o seu caráter. Claro está que utilizo aqui estes termos de
“bem” e “mal” para me fazer entender melhor, e fora de qualquer
intenção especificamente “moral”. As desordens parciais não
podem deixar de o ser pelo fato de constituírem elementos necessários da ordem total. Uma época de desordem é, em si mesma,
qualquer coisa de comparável a uma monstruosidade que, embora sendo conseqüência de certas leis naturais, não deixa de
representar um desvio e uma espécie de erro; assim como um
cataclismo que resulta do curso normal das coisas é, se o encararmos isoladamente, uma desordem e uma anomalia.
A civilização moderna, como todas as coisas, tem forçosamente
a sua razão de ser, e se ela é realmente aquela que termina um
ciclo, pode-se dizer que ela é o que deve ser, que vem no seu
tempo e no seu lugar; mas nem por isso deixará de ser julgada
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segundo as palavras do Evangelho, tantas vezes mal compreendidas: “É preciso que haja escândalo; mas ai daquele por quem o
escândalo vier!”.
2. A oposição entre Oriente
e Ocidente
Uma das características peculiares do mundo moderno é a
cisão que nele se verifica entre o Oriente e o Ocidente; embora eu
já tenha já tratado desta questão de modo especial, é necessário
voltar aqui a ela para tornar mais precisos certos aspectos e dissipar alguns mal-entendidos. A verdade é que houve sempre civilizações diversas e múltiplas, cada uma das quais se desenvolveu
de maneira própria e num sentido ajustado às aptidões de um
certo povo ou de uma certa raça. Mas distinção não quer dizer
oposição, e pode haver uma espécie de equivalência entre civilizações de formas muito diferentes, desde que repousem todas sobre
os mesmos princípios fundamentais, dos quais elas representam
somente aplicações condicionadas por variadas circunstâncias. É
esse o caso de todas as civilizações que podemos chamar normais, ou ainda tradicionais; não existe entre elas nenhuma oposição essencial, e as divergências, se existem, são exteriores e
superficiais. Pelo contrário, uma civilização que não reconhece
nenhum princípio superior, que na realidade é baseada apenas
numa negação de princípios, é por isso mesmo desprovida de
todos os meios de entendimento com as outras, porque esse
entendimento, para ser verdadeiramente profundo e eficaz, só
pode ser estabelecido a partir do alto, ou seja, precisamente por
aquilo que falta a esta civilização anormal e desviada. No estado
atual do Mundo, fitemos então, de um lado, todas as civilizações
que se mantiveram fiéis ao espírito tradicional, e que são as civilizações orientais e, do outro lado, uma civilização propriamente
anti-tradicional, que é a civilização ocidental moderna.
É certo que alguns chegaram a ponto de contestar que a própria divisão da humanidade em Oriente e Ocidente correspondia a
uma realidade; mas, pelo menos quanto à época atual, isso não
parece passível de dúvida. Primeiro, que existe uma civilização
ocidental, comum à Europa e à América, é um fato acerca do qual
toda a gente deve estar de acordo, qualquer que seja o juízo que
se faça sobre o valor dessa civilização. Quanto ao Oriente, as coisas são menos simples, porque existem efetivamente não uma,
mas várias civilizações orientais; mas basta que elas possuam
certos traços comuns, os que caracterizam o que nós chamamos
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de civilização tradicional, e que estes mesmos traços não se
encontrem na civilização ocidental, para que a distinção e mesmo
a oposição entre Oriente e Ocidente sejam plenamente justificadas8. Ora, é assim mesmo que ocorre, e o caráter tradicional é
efetivamente comum a todas as civilizações Orientais. A fim de
melhor fixar idéias, lembrarei a divisão geral que adaptei anteriormente e que, embora talvez um pouco simplificada demais se
se quiser entrar no pormenor, é, no entanto, exata quanto às
suas grandes linhas: o Extremo Oriente, representado essencialmente pela civilização chinesa; o Oriente Médio, pela civilização
hindu; o Oriente Próximo, pela civilização islâmica. Convém
acrescentar que esta última, em vários aspectos, deveria antes ser
encarada como intermediária entre o Oriente e o Ocidente, e que
muitas das suas características a aproximam, sobretudo, do que
foi a civilização ocidental da Idade Média; mas se a olharmos em
relação ao Ocidente moderno, devemos reconhecer que ela se lhe
opõe da mesma forma que as civilizações propriamente orientais,
e por isso a devemos associar a elas.
É sobre este ponto que convém insistir: a oposição entre
Oriente e Ocidente não tinha nenhuma razão de ser quando no
Ocidente também havia civilizações tradicionais; portanto, ela só
tem sentido quando se trata essencialmente do Ocidente moderno, porque essa oposição é muito mais a de dois espíritos do
que a de duas entidades geográficas definidas mais ou menos
nitidamente. Em certas épocas, das quais a mais próxima é a
Idade Média, o espírito ocidental assemelhava-se muito, pelos
seus aspectos mais importantes, ao que é ainda hoje o espírito
oriental, bem mais do que ao que ele mesmo se tornou nos tempos modernos; a civilização ocidental era então comparável às
civilizações orientais, ao mesmo título em que estas o são entre si.
No decurso dos últimos séculos produziu-se uma mudança considerável, muito mais grave do que todos os desvios que se
haviam manifestado anteriormente em épocas de decadência,
visto que ela chega a determinar uma verdadeira inversão na
direção dada à atividade humana; e foi exclusivamente no Mundo
ocidental que esta mudança teve origem. Por conseqüência,
quando digo espírito ocidental refiro-me ao que existe atualmente;
e como o outro espírito apenas se manteve no Oriente, chamo-o,
sempre em relação às condições atuais, espírito oriental. Estes
8 Esta oposição continua, ainda que mais atenuada, depois da Segunda Guerra
Mundial e das sucessivas convulsões que têm assolado o Oriente, graças à invasão
do espírito moderno (anti-tradicional). É preciso lembrar que Guénon escreve este
livro em 1927. (Nota de Antonio Carlos Cabral)
dois termos, em suma, não exprimem senão uma situação de
fato; e se é possível ver claramente que um dos dois espíritos em
presença é efetivamente ocidental, porque a sua aparição pertence à História recente, não pretendo conjeturar quanto à proveniência do outro, que foi outrora comum ao Oriente e ao Ocidente. A origem dele, para dizer a verdade, deve se confundir com
a da própria Humanidade, visto que é esse o espírito que poderíamos qualificar de normal, ao menos porque inspirou todas as
civilizações que conhecemos mais ou menos completamente, com
exceção de uma única, que é a civilização ocidental moderna.
Algumas pessoas, que certamente não se deram ao trabalho de
ler meus livros, julgaram de seu dever acusar-me de ter dito que
todas as doutrinas tradicionais tinham origem oriental, que a
própria Antiguidade ocidental, em todas as épocas, tinha sempre
recebido as suas tradições do Oriente. Nunca escrevi nada de
semelhante, nem mesmo algo que possa sugerir uma tal opinião,
pela simples razão de saber muito bem que isso é falso. De fato,
são precisamente os dados tradicionais que se opõem nitidamente
a uma asserção desse gênero: por toda a parte se encontra a
afirmação formal que a Tradição primordial do ciclo atual proveio
das regiões hiperbóreas; houve a seguir várias correntes secundárias, correspondentes a diversos períodos, e de que uma das mais
importantes, pelo menos entre aquelas cujos vestígios são ainda
reconhecíveis, partia incontestavelmente do Ocidente em direção
ao Oriente. Mas tudo isso se refere a épocas muito distantes,
aquelas que são vulgarmente chamadas “pré-históricas”, e não é
isso que tenho em vista. O que digo, em primeiro lugar, é que
desde há muito tempo o depósito da Tradição primordial foi
transferido para o Oriente, e que é aí que se encontram atualmente as formas doutrinais nele originadas mais diretamente; e
em segundo lugar que, no estado atual das coisas, o verdadeiro
espírito tradicional, com tudo o que implica, só tem representantes autênticos no Oriente.
Para completar este esclarecimento, devo também explicar-me,
pelo menos rapidamente, acerca de certas idéias de restauração
de uma “tradição ocidental” que surgiram em diversos meios
contemporâneos. O único interesse que elas apresentam, no
fundo, é o de mostrar que alguns espíritos já não estão satisfeitos
com a negação moderna, sentem necessidade de outra coisa diferente da que lhes oferece a nossa época, e entrevêem a possibilidade de um retorno à Tradição, sob uma forma ou outra, como o
único meio de sair da crise atual. Infelizmente, o “tradicionalismo”
não é bem a mesma coisa que o verdadeiro espírito tradicional;
pode não ser, e muitas vezes efetivamente não é, senão uma sim-
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ples tendência, uma aspiração mais ou menos vaga, que não
pressupõe nenhum conhecimento real. E devo dizer que, na confusão mental do nosso tempo, essa aspiração provoca, sobretudo,
concepções fantasiosas e quiméricas desprovidas de qualquer
fundamento sério. Não encontrando nenhuma Tradição autêntica
sobre a qual possam apoiar-se, as pessoas chegam ao ponto de
imaginar pseudo-tradições que nunca existiram, e às quais faltam
princípios, tanto quanto faltam ao modelo que queriam substituir.
Toda a desordem moderna se reflete nestas construções, e, quaisquer que possam ser as intenções dos seus autores, o único
resultado que obtêm é o de darem uma nova contribuição para o
desequilíbrio geral. Mencionarei apenas de memória, neste
gênero, a pretensa “tradição ocidental” fabricada por certos ocultistas com a ajuda dos elementos mais disparatados, e destinada
sobretudo a fazer concorrência a uma “tradição oriental” não menos imaginária, a dos teosofistas. Já falei suficientemente destas
coisas em outros livros e prefiro passar agora ao exame de algumas outras teorias que podem parecer mais dignas de atenção
porque, pelo menos, encontra-se nelas o desejo de fazer apelo a
tradições que tiveram efetiva existência.
Mencionei há pouco a corrente tradicional vinda das regiões
ocidentais; os relatos dos antigos com respeito à Atlântida indicam a sua origem. Depois da desaparição desse continente, que
foi o último dos grandes cataclismos ocorridos no passado, não
parece duvidoso que restos da sua tradição tenham sido transportados para diversas regiões, onde se misturaram com outras
tradições preexistentes, principalmente com ramos da grande
Tradição hiperbórea; e é muito possível que as doutrinas dos celtas, em particular, tenham sido um dos produtos dessa fusão.
Estou muito longe de contestar estas coisas, mas que se pense
bem nisto: a forma propriamente “atlante” desapareceu há milhares de anos, com a civilização à qual pertencia, e cuja destruição
só se pode ter produzido na seqüência de um desvio que era talvez comparável, em certos aspectos, ao que constatamos hoje,
embora com uma notável diferença, uma vez que a Humanidade
não tinha ainda entrado em “Kali-Yuga”.
Pensemos também que essa Tradição já correspondia a um
período secundário do nosso ciclo, e que seria um grande erro
pretender identificá-la com a Tradição primordial de que todas as
outras provieram, e que só ela permanece do começo até ao fim.
Não viria a propósito expor aqui todos os dados que justificam
estas afirmações; reterei apenas a sua conclusão, que é a da
impossibilidade de se fazer reviver hoje uma Tradição “atlante”,
ou mesmo de se ligar a ela mais ou menos diretamente. Aliás,
existe muita fantasia nas tentativas desse tipo. É verdade que
pode ser interessante procurar a origem dos elementos que se
encontram nas tradições posteriores, desde que isso seja feito
com todas as precauções necessárias para se resguardar de
certas ilusões; mas estas pesquisas não podem, em caso algum,
levar à ressurreição de uma Tradição que estivesse adaptada a
qualquer das condições atuais do nosso Mundo.
Há outros que querem ver-se ligados ao “celtismo” e, como
fazem apelo a alguma coisa que se encontra menos afastada de
nós, pode parecer que aquilo que propõem seja menos irrealizável;
no entanto, onde encontrariam eles, hoje, o celtismo no estado
puro e dotado ainda de uma vitalidade suficiente para que fosse
viável fazer dele um ponto de apoio? Efetivamente, não me refiro a
reconstituições arqueológicas ou simplesmente “literárias”, como
já se têm visto algumas; é de outra coisa que se trata. É verdade
que elementos célticos, facilmente reconhecíveis e ainda utilizáveis, chegaram até nosso tempo através de diversos intermediários; mas esses elementos estão muito longe de representar a
integralidade de uma tradição. E, coisa surpreendente, nos
próprios países onde essa tradição outrora viveu, ela é atualmente
ainda mais completamente ignorada do que as de muitas civilizações que foram sempre estranhas a esses mesmos países; não
existe aí qualquer coisa que devia dar azo a reflexão, pelo menos
para aqueles que não estão ainda inteiramente dominados por
uma idéia preconcebida? Digo ainda mais: em todos os casos
como este, em que se trata de vestígios deixados por civilizações
desaparecidas, não é possível compreendê-las verdadeiramente
senão por comparação com o que há de similar nas civilizações
tradicionais que estão ainda vivas.
Pode-se dizer o mesmo a respeito da própria Idade Média, onde
se encontram tantas coisas cujo significado se perdeu para os
ocidentais modernos. Essa tomada de contato com as tradições
cujo espírito subsiste é mesmo o único meio de revivificar o que é
ainda susceptível de ser revivificado; e esse, como já indiquei
muitas vezes, é um dos menores serviços que o Oriente pode
prestar ao Ocidente. Não nego a sobrevivência de um certo
“espírito céltico” que pode ainda manifestar-se sob formas
diversas, como já o fez em épocas diferentes; mas quando me vêm
assegurar que continuam a existir centros espirituais
conservando integralmente a tradição druídica, fico à espera de
que me forneçam a respectiva prova e, até nova ordem, isso me
parece muito duvidoso e até mesmo inverossímil.
A verdade é que os elementos célticos subsistentes foram, na
sua maior parte, assimilados pelo Cristianismo na Idade Média; a
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lenda do “Santo Graal”, com tudo o que se liga a ela, é um exemplo particularmente comprovador e significativo, nesse aspecto.
Penso, além disso, que se uma tradição ocidental chegasse a
reconstituir-se, ela tomaria forçosamente uma forma exterior religiosa, no sentido mais estrito da palavra, e que essa forma só
poderia ser cristã, porque, por um lado, as outras formas possíveis são há muito tempo estranhas à mentalidade ocidental, e,
por outro lado, é somente no Cristianismo, ou mais precisamente
ainda, no Catolicismo, que se encontram, no Ocidente, os restos
de espírito tradicional que ainda sobrevivem. Qualquer tentativa
“tradicionalista” que não leve em conta este fato está inevitavelmente votada ao insucesso, porque carece de base; é demasiado
evidente que só podemos nos apoiar no que existe de modo efetivo, e que onde falta a continuidade só pode haver reconstituições artificiais que não poderiam ser viáveis. À objeção de que o
próprio Cristianismo, na nossa época, já não é verdadeiramente
compreendido no seu sentido mais profundo, respondo que ele
pelo menos conservou, na sua própria forma, tudo o que é necessário para fornecer a base de que se necessita. A tentativa menos
quimérica, a única mesmo que não se choca com imediatas impossibilidades, seria então a de visar restaurar algo comparável
ao que existiu na Idade Média, com as diferenças requeridas pela
modificação das circunstâncias. Considerando tudo o que está
inteiramente perdido no Ocidente, conviria fazer apelo às tradições que se conservam integralmente, como indiquei há pouco, e
efetuar a seguir um trabalho de adaptação que somente poderia
ser feito por uma elite intelectual fortemente constituída.
Tudo isto eu já havia dito; mas convém insistir ainda nestes
pontos, porque muitas ilusões inconsistentes circulam agora
livremente, e também porque é preciso compreender que, se as
tradições orientais, nas suas formas próprias, podem certamente
ser assimiladas por uma elite que, por definição, deve estar de
certo modo para além de todas as formas, elas certamente nunca
poderão ser assimiladas, a menos que haja transformações não
previstas, pela generalidade dos ocidentais, para quem não foram
feitas. Se uma elite ocidental chegar a constituir-se, será indispensável, pela razão que acabei de indicar, que adquirira verdadeiro conhecimento das doutrinas orientais, para cumprir a sua
função; mas aqueles que tiverem apenas que recolher o fruto do
seu trabalho, e que serão o maior número, poderão muito bem
não ter qualquer consciência destas coisas. A influência que receberem, por assim dizer sem se darem conta, e através de meios
que lhes hão de escapar inteiramente, não será por isso menos
real nem menos eficaz. Eu sempre disse essa mesma coisa, mas
quero aqui repeti-la tão claramente quanto possível, porque, se
não devo esperar ser sempre compreendido por todos, pelo menos
faço questão de que não me atribuam intenções que me são inteiramente alheias.
Mas deixemos agora de lado todas as antecipações, visto que é
o atual estado de coisas que nos deve ocupar, acima de tudo, e
voltemos ainda por um instante às idéias de restauração de uma
“tradição ocidental”, tal como podemos observá-las à nossa volta.
Uma única observação basta para mostrar que estas idéias não se
integram “na ordem”, se posso dizer assim: é que elas são quase
sempre concebidas num estado de espírito de hostilidade mais ou
menos confessada em relação ao Oriente. Mesmo aqueles que
poderiam querer apoiar-se no Cristianismo são, por vezes, animados desse espírito; parecem procurar, antes de tudo, descobrir
oposições que na realidade são inexistentes.
É dessa forma que ouvimos a opinião absurda de que as
mesmas coisas que se encontram no Cristianismo e nas doutrinas
orientais, expressas de uma parte e outra sob uma forma quase
idêntica, não têm o mesmo significado nos dois casos, têm mesmo
significado contrário! Aqueles que emitem semelhantes afirmações
provam, desse modo, que, sejam quais forem as suas pretensões,
não foram suficientemente longe na compreensão das doutrinas
tradicionais, já que não viram a identidade fundamental que se
dissimula sob todas as diferenças de formas exteriores, e mesmo
onde essa identidade se toma visível, obstinam-se em desconhecêla. Assim, esses só encaram o Cristianismo de uma maneira
exterior, que não poderia responder à noção de uma verdadeira
doutrina tradicional que oferece uma síntese completa em todas
as ordens de coisas. É o princípio que lhes falta, e são afetados,
muito mais do que podem pensar, por esse espírito moderno
contra o qual queriam reagir; e quando lhes acontece utilizar a
palavra “Tradição”, certamente não o fazem no mesmo sentido em
eu o faço.
Na confusão mental que caracteriza a nossa época, chegamos
ao ponto de aplicar indistintamente esta mesma palavra “Tradição” a todas as espécies de coisas muitas vezes insignificantes,
como simples costumes sem qualquer alcance e por vezes de origem muito recente; aliás, assinalo um abuso desse tipo também
no que diz respeito à palavra “religião”. Devemos desconfiar destes desvios da linguagem, que traduzem uma espécie de degenerescência das idéias correspondentes; e não é porque alguém se
intitule “tradicionalista” que podemos ficar seguros de que ele
saiba, mesmo imperfeitamente, o que é a Tradição no verdadeiro
sentido da palavra. Por minha parte, eu me recuso absolutamente
27
28
a dar este nome a tudo o que é de ordem puramente humana; e
não é inoportuno declará-lo expressamente numa época em que
se encontra, por exemplo, a todo o momento, uma expressão
como “filosofia tradicional”. Uma filosofia, mesmo se é verdadeiramente tudo o que pode ser, não tem qualquer direito a esse
título, porque se mantém inteiramente na ordem racional, ainda
que não negue o que a ultrapassa, e porque é apenas uma construção erguida por indivíduos humanos, sem revelação ou inspiração de qualquer espécie. Ou ainda, para resumir tudo isso
numa única palavra, porque ela é algo de essencialmente “profano”. Além disso, apesar de todas as ilusões com que alguns
parecem deliciar-se, não há de ser certamente uma ciência inteiramente “livresca” que poderá bastar para retificar a mentalidade
de uma raça e de uma época. Para isso é preciso outra coisa diferente de uma especulação filosófica, que, mesmo no caso mais
favorável, está condenada pela sua própria natureza a permanecer exterior e muito mais verbal que real.
Para restaurar a Tradição perdida, para verdadeiramente a
reivindicar, é necessário o contato do espírito tradicional vivo e,
como já foi dito, só no Oriente esse espírito está inteiramente vivo;
não é menos verdade que isso supõe, antes de tudo o mais, no
Ocidente, uma aspiração de retorno a esse espírito tradicional,
mas não pode ser uma simples aspiração. Os poucos movimentos
de reação “anti-moderna” que se produziram até aqui, aliás muito
incompletos, segundo o meu ponto de vista, só me confirmam
essa convicção, porque tudo isso que sem dúvida é excelente na
sua parte negativa e crítica está, no entanto, muito afastado de
uma restauração da verdadeira intelectualidade, e desenvolve-se
apenas dentro dos limites de um horizonte mental bastante restrito. É, no entanto, alguma coisa, no sentido de que constitui o
índice de um estado de espírito do qual dificilmente encontraríamos o menor traço há poucos anos. Se nem todos os ocidentais
são unânimes, hoje, em se contentarem com o desenvolvimento
exclusivamente material da civilização moderna, está talvez aí um
sinal de que, para eles, não se encontra inteiramente perdida toda
a esperança de salvação.
Seja como for, se supusermos que o Ocidente de alguma forma
volte à sua tradição, a sua oposição ao Oriente seria por isso
mesmo resolvida e deixaria de existir, visto que ela só nasceu a
partir do fato do desvio ocidental, e constitui realmente a oposição
entre o espírito tradicional e o espírito anti-tradicional. Assim,
contrariamente ao que supõem aqueles que mencionei há pouco,
o retorno à Tradição teria entre os seus primeiros resultados o de
tornar imediatamente possível um entendimento com o Oriente,
tal como é possível entre todas as civilizações que possuem elementos comparáveis ou equivalentes, e apenas entre essas, porque são estes elementos que constituem o único terreno no qual
esse entendimento pode se efetuar validamente. O verdadeiro
espírito tradicional, seja qual for a forma de que se revista, é fundamentalmente por toda a parte sempre o mesmo; as suas diversas formas, que estão especificamente adaptadas a estas ou
àquelas condições mentais, a estas ou àquelas circunstâncias de
tempo e de lugar, são apenas expressões de uma única e mesma
verdade; mas é preciso poder colocar-se na ordem da pura intelectualidade para descobrir essa unidade fundamental sob a sua
aparente multiplicidade. Aliás, é nesta ordem intelectual que residem os princípios de que resultam todas as conseqüências ou
aplicações mais ou menos diretas; portanto, é sobre esses princípios que se deve, antes de tudo, chegar a acordo caso se trate de
um entendimento verdadeiramente profundo, visto que aí está o
essencial.
Desde que os princípios sejam realmente compreendidos, o
acordo se faz por si próprio. Efetivamente, deve-se notar que o
conhecimento dos princípios, que é o conhecimento por
excelência, o conhecimento metafísico no verdadeiro sentido da
palavra, é universal como os próprios princípios, portanto inteiramente separado de todas as contingências individuais – que,
por sua vez, intervêm necessariamente quando se passa às aplicações. Assim, este domínio puramente intelectual é o único em
que não há necessidade de um esforço de adaptação entre diferentes mentalidades. Além disso, quando um trabalho dessa
ordem é efetuado, só resta desenvolver os resultados para que o
acordo em todos os outros domínios seja igualmente realizado,
visto que, como acabei de dizer, é disso que tudo depende direta
ou indiretamente. Ao contrário, o acordo obtido num domínio
particular, fora dos princípios, será sempre eminentemente instável e precário, e muito mais semelhante a um ajuste diplomático
do que a um verdadeiro entendimento.
É por esse motivo que, insisto, esse entendimento só pode ser
feito realmente pelo alto, e não por baixo. E isto deve ser
compreendido num sentido duplo: é preciso partir do que existe
de mais elevado, ou seja, dos princípios, para descer
gradualmente às diversas ordens de aplicação, observando
sempre rigorosamente a dependência hierárquica que existe entre
elas; e essa obra, pelo seu próprio caráter, só pode ser efetuada
por uma elite. Dou a esta última palavra a sua acepção mais
verdadeira e completa: é exclusivamente a uma elite intelectual
que me refiro, e aos meus olhos não poderia haver outras, sendo
29
30
que as distinções sociais exteriores não têm qualquer importância
no ponto de vista em que me coloco.
Estas breves considerações já permitem compreender tudo o
que falta à civilização ocidental moderna, não apenas quanto à
possibilidade de uma aproximação efetiva com as civilizações
orientais, mas também em si mesma, para ser uma civilização
normal e completa. Na verdade, as duas questões estão tão
estreitamente ligadas que formam apenas uma, e acabei precisamente de apresentar as razões pelas quais é assim. Pretendo
agora mostrar mais completamente em que consiste o espírito
anti-tradicional, que é exatamente o espírito moderno, e quais são
as conseqüências que traz em si mesmo, conseqüências que vejo
desenrolar-se com uma lógica implacável nos atuais acontecimentos; mas antes de chegar a esse ponto impõe-se ainda uma
última reflexão.
Ser resolutamente “anti-moderno” não é de nenhum modo ser
“anti-ocidental”, se posso utilizar essa expressão, visto que, pelo
contrário, é fazer o único esforço válido para tentar salvar o
Ocidente da sua própria desordem. Por outro lado, nenhum
oriental fiel à sua tradição poderá ver as coisas de modo diferente
do meu; há certamente muito menos adversários do Ocidente
como tal do que do Ocidente enquanto identificado com a
civilização moderna. Alguns falam hoje de “defesa do Ocidente”, o
que é verdadeiramente singular quando, tal como veremos mais
adiante, é este que ameaça submergir tudo e arrastar a Humanidade inteira no turbilhão da sua atividade desordenada. Singular
e injustificado, se pretendem, como parece, apesar de certas restrições, que essa defesa deve ser dirigida contra o Oriente, porque
o verdadeiro Oriente não pensa em atacar nem em dominar o que
quer que seja, a única coisa que pede é a sua independência e a
sua tranqüilidade, o que, deve-se concordar, é bastante legítimo.
A verdade, no entanto, é que o Ocidente tem efetivamente
grande necessidade de ser defendido, mas unicamente contra si
próprio, contra as suas próprias tendências que, se forem levadas
até ao fim, conduzi-lo-ão inevitavelmente à ruína e à destruição.
É, portanto, “reforma do Ocidente” que se deveria dizer, e essa
reforma, se ela fosse o que deve ser, ou seja, uma verdadeira restauração tradicional, teria como conseqüência natural uma aproximação com o Oriente. Pela minha parte, só desejo contribuir, na
medida das minhas possibilidades, simultanea-mente, nessa
reforma e nessa aproximação, se ainda houver tempo, e se um tal
resultado puder ser obtido antes da catástrofe final para a qual a
civilização moderna caminha a passos largos. Mas, mesmo que já
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fosse muito tarde para evitar essa catástrofe, o trabalho efetuado
com essa intenção não seria inútil porque serviria para preparar,
longinquamente que fosse, essa “discriminação” de que falei no
início, e assegurar, assim, a conservação dos elementos que deverão escapar ao naufrágio do Mundo atual para se tornarem os
germes do Mundo futuro.
32
Consideremos agora, de uma maneira mais particular, um dos
principais aspectos da oposição que existe atualmente entre o
espírito oriental e o espírito ocidental, e que é, mais geralmente, a
do espírito tradicional e do espírito anti-tradicional, tal como foi
explicado. Num certo ponto de vista, que é aliás um dos mais
fundamentais, essa oposição aparece como a da contemplação e
da ação, ou, para falar mais exatamente, como dizendo respeito
aos lugares respectivos que convém atribuir a um e a outro destes
dois termos. Estes podem, na sua relação, ser encarados de
maneiras diferentes: são verdadeiramente dois contrários, como
se parece pensar a maior parte das vezes, ou seriam, sobretudo,
dois complementares? Ou, melhor ainda, não haverá realmente
entre eles uma relação, não de coordenação, mas de subordinação? São esses os diferentes aspectos da questão, e esses aspectos referem-se a outros tantos pontos de vista, aliás de importância muito desigual, ainda que cada um possa se justificar sob
certos aspectos e corresponda a uma certa ordem de realidade.
Primeiramente, o ponto de vista mais superficial, o mais exterior de todos, é aquele que consiste em opor, pura e simplesmente, a contemplação à ação, como dois contrários no sentido
apropriado desta palavra. A oposição existe efetivamente nas aparências, isso é incontestável; e, no entanto, se ela fosse absolutamente irredutível, haveria uma incompatibilidade completa entre
contemplação e ação, que, desse modo, nunca se poderiam
encontrar reunidas. Ora de fato não é bem assim; não há, pelo
menos nos casos normais, povo, nem mesmo talvez indivíduo, que
possa ser exclusivamente contemplativo ou ativo. A verdade é que
há aí duas tendências em que uma ou outra dominam quase
necessariamente, de tal modo que o desenvolvimento de uma
parece efetuar-se em detrimento da outra, pela simples razão de
que a atividade humana, entendida no seu sentido mais geral,
não pode exercer-se igual e simultaneamente em todos os domínios e em todas as direções. É isso que dá a aparência de uma
oposição, mas deve haver uma conciliação possível entre assim
chamados “contrários”. De resto, poderemos dizer o mesmo para
todos os contrários que deixam de o ser quando, para os observarmos, nos elevamos acima do nível em que a sua oposição tem
toda a realidade. Quem diz oposição ou contraste diz, por isso
mesmo, desarmonia ou desequilíbrio, ou seja, algo que só pode
existir sob um ponto de vista relativo, particular e limitado, como
já foi suficientemente indicado.
Considerando a contemplação e a ação como complementares,
colocamo-nos, então, num ponto de vista já mais profundo e mais
verdadeiro que o precedente, porque a oposição se encontra aí
conciliada e resolvida, com os dois termos equilibrando-se um
pelo outro. Tratar-se-ia, então, segundo parece, de dois elementos
igualmente necessários, que se completam e se apóiam mutuamente, e que constituem a dupla atividade – interior e exterior –
de um único e mesmo ser, seja cada homem tomado em particular, seja a Humanidade encarada coletivamente. Essa concepção é
seguramente mais harmoniosa e satisfatória do que a primeira;
no entanto, se atendêssemos exclusivamente a ela, seríamos tentados, em virtude da correlação assim estabelecida, a colocar no
mesmo plano a contemplação e a ação, de tal modo que teríamos
apenas que nos esforçar em manter a balança igual para ambas,
sem nunca pôr a questão da superioridade de uma em relação à
outra. O que mostra bem que tal ponto de vista é ainda insuficiente é que essa questão da superioridade, pelo contrário, efetivamente se coloca e sempre se colocou, qualquer que seja o sentido no qual se quis resolvê-la.
O que importa nesse aspecto, de resto, não é o problema de
uma predominância de fato – que é, afinal, questão de temperamento ou de raça –, mas o que se poderia chamar uma predominância de direito; e as duas coisas só estão ligadas até certo
ponto. Sem dúvida o reconhecimento da superioridade de uma
das duas tendências incitará a desenvolvê-la o mais possível, de
preferência à outra; mas, na sua aplicação, é igualmente verdade
que o lugar que terão a contemplação e a ação no conjunto da
vida de um homem ou de um povo resultará sempre, em grande
parte, da natureza própria deste, porque é preciso levar em conta
as possibilidades particulares de cada um. É manifesto que a aptidão à contemplação está mais espalhada e mais geralmente
desenvolvida entre os orientais; não há provavelmente nenhum
país onde o esteja tanto como na Índia, e é por isso que esse país
é considerado o representante por excelência do que chamamos o
espírito oriental. De outro lado, é incontestável que, de modo
geral, a aptidão para a ação, ou a tendência que resulta dessa
aptidão, é a que predomina entre os povos ocidentais, no que diz
respeito à grande maioria dos indivíduos. Mesmo se essa tendência não estivesse exagerada e desviada como o está atualmente,
pelo menos subsistiria, de modo que a contemplação nunca poderia ser senão o caso de uma elite muito mais restrita; é por esse
motivo que se diz muitas vezes, na Índia, que se o Ocidente vol-
33
34
3. Conhecimento e ação
tasse a um estado normal e possuísse uma organização social
regular, certamente encontrar-se-iam muitos “Xátrias” mas poucos "Brâmanes”9. Todavia, isso seria o bastante para que tudo
reentrasse na ordem, se a elite intelectual estivesse efetivamente
constituída e se a sua supremacia fosse reconhecida, porque o
poder espiritual não é de modo nenhum baseado sobre o número,
cuja lei é a da matéria. Além disso, note-se bem que na Antiguidade, e sobretudo na Idade Média, a disposição natural para a
ação, existente entre os ocidentais, não os impedia de reconhecer
a superioridade da contemplação, ou seja, da inteligência pura.
Por que é que não acontece o mesmo na época moderna? Será
porque os ocidentais, desenvolvendo desmedidamente as suas
faculdades de ação, chegaram a ponto de perder a sua intelectualidade, e, para se consolar, inventaram teorias que situam a ação
acima de tudo, chegando mesmo, com o “pragmatismo”, a negar
que exista o que quer que seja de válido fora dela, ou, pelo contrário, foi esta maneira de ver que, tendo inicialmente prevalecido,
conduziu à atrofia intelectual que hoje constatamos? Nas duas
hipóteses, e também no caso bastante provável de que a verdade
se encontre numa combinação de uma e outra, os resultados são
exatamente os mesmos: as coisas chegaram a tal ponto que é
tempo de reagir. É aqui, direi mais uma vez, que o Oriente pode
vir em auxílio do Ocidente, se este realmente o desejar, não para
lhe impor concepções que lhe são estranhas, como alguns pareceram recear, mas sim para o ajudar a reencontrar a sua própria
tradição, cujo sentido ele perdeu.
Poder-se-ia dizer que a antítese do Oriente e do Ocidente, no
estado atual das coisas, consiste em que o Oriente mantém a
superioridade da contemplação sobre a ação, enquanto o Ocidente moderno afirma, pelo contrário, a superioridade da ação
sobre a contemplação. Aqui já não se trata, como quando se
falava simplesmente de oposição ou de complementaridade –
portanto de uma relação de coordenação entre os dois termos em
presença –, de pontos de vista que podem ter cada qual a sua
razão de existir e ser aceito, pelo menos como a expressão de uma
certa verdade relativa. Se se trata de uma relação de subordinação irreversível pela sua própria natureza, as duas concepções
são realmente contraditórias, portanto mutuamente exclusivas,
9 A contemplação e a ação, com efeito, são respectivamente as funções próprias
das duas primeiras castas, a dos "Brâmanes” e a dos “Xátrias"; assim, as suas
relações são, ao mesmo tempo, as da autoridade espiritual e do poder temporal;
mas não me proponho focar especialmente aqui este aspecto da questão, que
mereceria ser tratado à parte.
35
de modo que, forçosamente, desde que se admita que há efetivamente subordinação, uma é verdadeira e a outra é falsa. Antes de
ir ao fundo da questão, notemos ainda que, enquanto o espírito
que se manteve no Oriente é verdadeiramente de todos os tempos,
tal como eu disse mais atrás, o outro espírito só apareceu numa
época muito recente, o que, além de qualquer outra consideração,
já pode fazer pensar que existe qualquer coisa de anormal. Esta
impressão é confirmada pelo próprio exagero em que o espírito
ocidental moderno cai, seguindo a tendência que lhe é própria:
não contente em proclamar em todas as ocasiões a superioridade
da ação, chegou a ponto de a tornar sua preocupação exclusiva e
de negar todo o valor à contemplação, cuja verdadeira natureza,
aliás, ignora ou desconhece inteiramente. Pelo contrário, as
doutrinas orientais, sempre afirmando tão claramente quanto
possível a superioridade e mesmo a transcendência da contemplação em relação à ação, não deixam de conceder a esta o seu
lugar legítimo e reconhecem toda a sua importância na ordem das
contingências humanas 10.
As doutrinas orientais e também as antigas doutrinas ocidentais são unânimes em afirmar que a contemplação é superior à
ação, como o imutável é superior à mudança11. A ação, sendo
apenas uma modificação transitória e momentânea do ser, não
poderia ter em si mesma o seu princípio e sua razão suficiente; se
ela não se liga a um princípio que está além do seu domínio contingente, é apenas pura ilusão. E esse princípio, do qual ela
obtém toda a realidade de que é susceptível, a sua existência e
mesmo a sua possibilidade, só se pode encontrar na contemplação ou, se preferirmos, no conhecimento, porque no fundo estes
dois termos são sinônimos ou pelo menos coincidentes, não podendo de modo algum ser separados12. Igualmente a mudança, na
sua acepção mais geral, é ininteligível e contraditória, ou seja,
10
Aqueles que duvidarem da real – embora relativa – importância que as doutrinas tradicionais do Oriente, especialmente a da Índia, concedem à ação, só precisam se reportar ao "Bhagavad-Gita” para se convencer. Não devemos esquecer,
aliás, se quisermos compreender o seu sentido, que esse é um livro especialmente
destinado aos "Xátrias".
11 É em virtude da relação assim estabelecida que é dito que o “Brâmane” é o tipo
dos seres estáveis e que o “Xátria" é o tipo dos seres móveis ou em mudança;
assim, todos os seres deste mundo, seguindo a sua natureza, estão principalmente em relação um com o outro, porque existe perfeita correspondência entre a
ordem cósmica e a ordem humana.
12
Deve-se notar, com efeito, como conseqüência do caráter essencialmente
momentâneo da ação, que no domínio desta os resultados estão sempre separados
do que os produz, enquanto o conhecimento, pelo contrário, traz o fruto em si
mesmo.
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impossível, sem um princípio de que procede e que, pelo fato de
ser um princípio, não lhe pode ser submetido, portanto é forçosamente imutável. É por isso que na Antiguidade ocidental Aristóteles tinha afirmado a necessidade do “motor imóvel” de todas
as coisas. Essa função de “motor imóvel” é precisamente a que o
conhecimento desempenha em relação à ação; é evidente que esta
pertence inteiramente ao Mundo da mudança, do “devir”.
Só o conhecimento permite sair desse Mundo e das limitações
que lhe são inerentes e, quando ele alcança o imutável, o que é o
caso do conhecimento principal ou metafísico, que é o conhecimento por excelência, possui ele próprio a imutabilidade, porque
todo o conhecimento verdadeiro é essencialmente identificação
com o seu objeto. É justamente isso que ignoram os ocidentais
modernos que, em matéria de conhecimento, não vêem mais do
que o conhecimento racional e discursivo, portanto indireto e imperfeito: o que se poderia chamar de conhecimento por reflexo. E
ainda, além disso, apreciam cada vez mais esse conhecimento
inferior na medida em que ele pode servir imediatamente para fins
práticos; comprometidos na ação a ponto de negar tudo o que a
ultrapassa, não percebem que essa ação degenera, assim, por
defeito de princípio, numa agitação tão vã como estéril.
É realmente esse o caráter mais visível da época moderna:
necessidade de agitação incessante, de contínua mudança, de
velocidade sempre crescente, como aquela em que se desenrolam
os próprios acontecimentos. É a dispersão na multiplicidade, e
numa multiplicidade que já não está unificada pela consciência
de qualquer princípio superior. Na vida corrente, assim como nos
conceitos científicos, é a análise levada ao extremo, a divisão
indefinida, uma verdadeira desagregação da atividade humana
em todas as ordens em que se exerça; e daí a inaptidão para a
síntese, a impossibilidade de qualquer concentração, tão surpreendente aos olhos dos orientais. Essas são as conseqüências
naturais e inevitáveis de uma materialização cada vez mais
acentuada, porque a matéria é essencialmente multiplicidade e
divisão, e é por isso, digamos de passagem, que tudo o que dela
procede só pode engendrar lutas e conflitos de todas as espécies,
tanto entre os povos como entre os indivíduos. Quanto mais nos
afundamos na matéria, mais os elementos de divisão e de oposição se acentuam e se ampliam; inversamente, quanto mais nos
elevamos em direção à espiritualidade pura, tanto mais nos aproximamos da unidade, que só pode ser plenamente realizada pela
consciência dos princípios universais.
O mais estranho é que o movimento e a mudança são
verdadeiramente procurados por si mesmos, e não tendo em vista
um fim qualquer ao qual poderiam conduzir; e este fato resulta
diretamente da absorção de todas as faculdades humanas pela
ação exterior, cujo caráter momentâneo assinalei há pouco. Tratase ainda da dispersão, vista sob um outro aspecto e num estágio
mais acentuado. É, podemos dizer, como uma tendência para a
instantaneidade, tendo por limite um estado de puro desequilíbrio
que, se pudesse ser atingido, coincidiria com a dissolução final
deste mundo; e é ainda um dos sinais mais claros do último
período de “Kali-Yuga”.
Sob este aspecto, a mesma coisa se produz também na ordem
científica: é a pesquisa pela pesquisa, muito mais do que pelos
resultados parciais e fragmentários aos quais conduz; é a sucessão cada vez mais rápida de teorias e de hipóteses sem fundamento, que, mal se levantam, desmoronam-se para serem substituídas por outras que durarão ainda menos. É um verdadeiro
caos no meio do qual seria inútil procurar alguns elementos definitivamente adquiridos, se não for mesmo uma monstruosa acumulação de fatos e pormenores que nada podem provar ou significar. Refiro-me, bem entendido, ao ponto de vista especulativo,
na medida em que ele ainda subsiste; pelo que diz respeito a aplicações práticas, há, pelo contrário, resultados incontestáveis. Isso
é fácil de compreender, visto que essas aplicações referem-se
imediatamente ao domínio material, e que este domínio é precisamente o único em que o homem moderno pode gabar-se de
uma superioridade real.
Devemos então esperar que estas descobertas, ou melhor, as
invenções mecânicas e industriais, vão ainda desenvolver-se e
multiplicar-se cada vez mais depressa, até ao fim da idade atual;
e quem sabe se, com os perigos de destruição que elas trazem em
si mesmas, não serão um dos principais agentes da última catástrofe, se as coisas chegarem a um ponto tal que esta não possa
ser evitada?
Em todo o caso, temos geralmente a impressão de que não
existe, no estado atual, nenhuma estabilidade; mas enquanto
alguns sentem o perigo e tentam reagir, a maior parte dos nossos
contemporâneos deleita-se com esta desordem em que vêem uma
espécie de imagem exteriorizada da sua própria mentalidade.
Existe, efetivamente, uma exata correspondência entre um
mundo em que tudo parece estar em puro “devir”, em que não
existe mais nenhum lugar para o imutável e para o permanente, e
o estado de espírito dos homens que entendem que toda a realidade consiste neste mesmo “devir”, o que implica a negação do
verdadeiro conhecimento, isto é, dos princípios transcendentes e
universais. Podemos mesmo ir mais longe: é a negação de todo o
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38
conhecimento real, em qualquer ordem que seja, mesmo no relativo, visto que, como indiquei mais atrás, o relativo é ininteligível
e impossível sem o absoluto, o contingente sem o necessário, a
mudança sem o imutável, a multiplicidade sem a unidade.
O “relativismo” encerra uma contradição em si próprio, e,
quando se quer reduzir tudo à mudança, dever-se-ia chegar logicamente ao ponto de negar a própria existência da mudança; no
fundo, era esse o sentido dos famosos argumentos de Zenão de
Eléia. É preciso dizer que as teorias deste gênero não são exclusivamente próprias dos tempos modernos, porque não se deve exagerar; podemos encontrar exemplos desses na Filosofia grega. O
caso de Heráclito com o seu “fluxo universal” é o mais conhecido
neste aspecto; foi mesmo o que levou os Eleatas a combaterem
estes conceitos, assim como os dos atomistas, por uma espécie de
redução ao absurdo. Na própria Índia encontrou-se algo comparável, mas, bem entendido, num ponto de vista diferente do da
Filosofia. Certas escolas budistas, com efeito, apresentaram também o mesmo caráter porque uma das suas teses principais era a
da “dissolubilidade de todas as coisas”13. Ocorre simplesmente
que essas teorias eram então apenas exceções, e tais revoltas
contra o espírito tradicional, que vêm se produzindo durante todo
o curso de “Kali-Yuga”, tinham um alcance muito limitado; o que
é novo é a generalização de semelhantes concepções, tal como o
verificamos no Ocidente contemporâneo.
Deve-se também notar que as “filosofias do devir”, sob a
influência da idéia muito recente de “progresso”, assumiram entre
os modernos uma forma especial que as teorias do mesmo gênero
nunca tiveram entre os antigos: essa forma, susceptível, aliás, de
múltiplas variedades, é o que se pode de modo geral designar pelo
nome de “evolucionismo”. Não voltarei ao que já disse outras
vezes acerca deste assunto; lembrarei apenas que todo o conceito
que só admite o “devir” é necessariamente, por isso mesmo, um
conceito “naturalista”, e como tal implica uma negação formal do
que está para além da natureza, ou seja, no domínio metafísico,
que é o domínio dos princípios imutáveis e eternos. Assinalarei
também, a propósito dessas teorias antimetafísicas, que a idéia
bergsoniana da “duração pura” corresponde exatamente a essa
dispersão na instantaneidade de que falei mais atrás. A pretensa
intuição que se modela sobre o fluxo incessante das coisas sensíveis, longe de poder ser o meio de um verdadeiro conhecimento,
representa na realidade a dissolução de todo o conhecimento possível.
Isso me leva a repetir uma vez mais, porque se trata de um
ponto essencial e sobre o qual é indispensável não deixar subsistir nenhum equívoco, que a intuição intelectual pela qual – e só
por ela – se obtém o verdadeiro conhecimento metafísico nada
tem em comum com esta outra intuição de que falam certos filósofos contemporâneos: esta é de ordem sensível, é propriamente
de ordem infra-racional, enquanto a outra, que é a inteligência
pura, é, pelo contrário, supra-racional. Mas os modernos, que
nada conhecem de superior à razão na ordem da inteligência,
nem sequer concebem o que pode ser a intuição intelectual,
enquanto as doutrinas da Antiguidade e da Idade Média, mesmo
quando tinham um caráter simplesmente filosófico e, por conseqüência, não podiam efetivamente apelar para essa intuição, não
deixavam de reconhecer expressamente a sua existência e a sua
supremacia sobre todas as outras faculdades.
É por esse motivo que não houve “racionalismo" antes de Descartes; isso é coisa especificamente moderna e que é, aliás,
estreitamente solidária ao “individualismo”, visto que é apenas a
negação de qualquer faculdade de ordem supra-individual.
Enquanto os ocidentais se obstinarem em desconhecer ou em
negar a intuição intelectual, não poderão ter qualquer Tradição
no verdadeiro sentido desta palavra, e não poderão igualmente
entender-se com os autênticos representantes das civilizações
orientais, nas quais tudo está como suspenso dessa intuição,
imutável e infalível em si, e único ponto de partida de qualquer
desenvolvimento conforme às normas tradicionais.
13
Pouco tempo depois da sua origem, o Budismo, na Índia, associou-se a uma
das principais manifestações da revolta dos “Xátrias” contra as autoridades dos
“Brâmanes”; e, como é fácil compreender pelas indicações anteriores, existe, de
modo geral, uma ligação muito direta entre a negação de qualquer princípio imutável e a da autoridade espiritual, entre a redução de toda a realidade ao "devir" e
a afirmação da supremacia do poder temporal, cujo domínio próprio é o mundo da
ação. Pode-se verificar que a aparição de doutrinas “naturalistas” ou antimetafísicas produz-se sempre que o elemento que representa o poder temporal numa
civilização se torna predominante sobre aquele que representa a autoridade espiritual.
39
40
4. Ciência sagrada e ciência
profana
Acabamos de dizer que nas civilizações que possuem caráter
tradicional a intuição intelectual está no princípio de tudo; em
outras palavras, é a pura doutrina metafísica que constitui o
essencial, e todo o resto se liga a ela a titulo de conseqüências ou
de aplicações nas diversas ordens de realidades contingentes.
Acontece assim principalmente para as instituições sociais; e, por
outro lado, o mesmo é verdadeiro também no que diz respeito às
ciências, ou seja, aos conhecimentos que se referem ao domínio
do relativo. Em tais civilizações, as ciências não podem ser vistas
senão como simples dependências e, de certo modo, como prolongamentos ou reflexos do conhecimento absoluto e principal. Assim, a verdadeira hierarquia é sempre e em toda parte observada:
o relativo não é de modo nenhum tido como inexistente, o que
seria absurdo; é tomado em consideração na medida em que
merece sê-lo, mas é colocado no seu devido lugar, que só pode ser
um lugar secundário e subordinado. E mesmo nesse relativo há
graus muito diversos, conforme se trate de coisas mais ou menos
afastadas do domínio dos princípios.
Existem, então, no que diz respeito às ciências, dois conceitos
radicalmente diferentes e mesmo incompatíveis entre si, que
podemos chamar o conceito tradicional e o conceito moderno. Tive
muitas vezes ocasião de aludir a essas “ciências tradicionais” que
existiram na Antiguidade e na Idade Média, e que continuam a
existir no Oriente, mas que são totalmente estranhas para os ocidentais dos nossos dias, até mesmo em idéia. Deve-se acrescentar
que cada civilização teve “ciências tradicionais” de um tipo particular, que lhe são próprias, porque aqui já não estamos na ordem
dos princípios universais, à qual se refere apenas a Metafísica
pura, mas sim na ordem das adaptações. Tratando-se este de um
domínio contingente, deve-se levar em conta o conjunto das condições, mentais e outras, de determinado povo, e mesmo deste
período da existência desse povo, dado que vimos mais atrás que
há épocas em que as readaptações se tornam necessárias. Tais
“readaptações” não são senão mudanças de forma, que em nada
atingem a própria essência da Tradição. Para a doutrina metafísica, só a expressão pode ser modificada, de uma maneira que é
41
bastante comparável à tradução de uma língua para outra; quaisquer que sejam as formas de que se reveste para se exprimir, na
medida em que isso é possível, só existe absolutamente uma
Metafísica, como só há uma verdade. Mas quando passamos às
aplicações o caso é naturalmente diferente: com as ciências, tal
como com as instituições sociais, estamos no mundo da forma e
da multiplicidade; é por isso que se pode dizer que outras formas
constituem verdadeiramente outras ciências, mesmo que elas
tenham, pelo menos parcialmente, o mesmo objeto. Os lógicos
têm por hábito ver uma ciência como inteiramente definida pelo
seu objeto, o que é inexato por excesso de simplificação; o ponto
de vista segundo o qual este objeto é encarado deve também
entrar em conta na definição da ciência.
Há uma multidão indefinida de ciências possíveis; pode
acontecer que diversas ciências estudem as mesmas coisas, mas
sob aspectos de tal modo diferentes e, portanto, por métodos e
com intenções também de tal modo diferentes, que serão ciências
realmente distintas. Este caso em particular pode se apresentar
para as “ciências tradicionais” de civilizações diversas, que, embora comparáveis entre si, não são, no entanto, sempre assimiláveis umas às outras, de tal forma que muitas vezes constitui
abuso designá-las pelos mesmos nomes. A diferença é ainda
muito mais considerável, é evidente, se em lugar de estabelecer
uma comparação entre “ciências tradicionais” – que, pelo menos,
têm todas o mesmo caráter fundamental, – quisermos comparar
estas ciências com as ciências tal como são concebidas pelos modernos. À primeira vista pode parecer, por vezes, que o objeto é o
mesmo de um lado e de outro, e, no entanto, o conhecimento que
os dois tipos de ciência dão respectivamente desse objeto é de tal
modo diferente que se hesita, após um exame mais amplo, em
afirmar a sua identidade, mesmo que seja apenas sob um certo
aspecto.
Alguns exemplos serão úteis para fazer compreender melhor
aquilo de que se trata; e, primeiro que tudo, daremos um exemplo
de grande alcance, o da “Física” tal como é compreendida pelos
antigos e pelos modernos. Aliás, nesse caso não será sequer
necessário sair do Mundo ocidental para ver a diferença profunda
que separa as duas concepções. O termo “Física” na sua acepção
primeira e etimológica, significa nada menos que “ciência da
Natureza” sem nenhuma restrição. É, então, a ciência que se
relaciona com as leis mais gerais do “devir”, porque “natureza” e
“devir” são, no fundo, sinônimos e era assim que o entendiam os
gregos, particularmente Aristóteles. Se existem ciências mais
particulares referindo-se à mesma ordem, são apenas “especifica42
ções” da Física para este ou aquele domínio mais estreitamente
determinado. Há, portanto, algo de bastante significativo já no
desvio que os modernos impuseram a esta palavra “Física”, utilizando-a para designar exclusivamente uma ciência particular
entre outras ciências da Natureza. Esse fato está ligado com a
fragmentação que já assinalei como uma das características da
ciência moderna, com a “especialização” gerada pelo espírito de
análise e que influencia as pessoas a ponto de tornar para elas
verdadeiramente inconcebível uma ciência referente à Natureza
considerada no seu conjunto.
Não passaram despercebidos, muitas vezes, alguns dos
inconvenientes dessa “especialização" e, sobretudo, a estreiteza de
vistas que é uma conseqüência inevitável; mas parece que aqueles
mesmos que se davam mais claramente conta desse fato se resignaram a encará-la como um mal necessário, em virtude da acumulação dos conhecimentos de pormenor que nenhum homem
podia abarcar com um simples olhar. Eles não compreenderam,
por um lado, que esses conhecimentos de pormenor são insignificantes em si mesmos e não valem o sacrifício de um conhecimento sintético que, mesmo limitado ao relativo, é de uma ordem
muito mais elevada. Também não compreenderam, por outro
lado, que a multiplicidade desses conhecimentos, e a impossibilidade de unificá-los, resultam do fato de ter sido vedada a possibilidade de os ligar a um princípio superior, bem como da obstinação em proceder a partir de baixo e do exterior, quando teria sido
necessário fazer o contrário, para ter uma ciência de autêntico
valor especulativo.
Se quisermos comparar a Física antiga não ao que os modernos designam pela mesma palavra, mas ao conjunto das ciências
da Natureza, tal como estão atualmente constituídas – porque é
isso o que devia corresponder-lhe na realidade –, poderemos
apontar, como primeira diferença, a divisão em múltiplas “especialidades” que são, por assim dizer, estranhas umas às outras.
No entanto, esse é apenas o lado mais exterior da questão e não
se deverá pensar que, reunindo todas estas ciências especiais,
obteríamos o equivalente da antiga Física. A verdade é que o
ponto de vista é totalmente diferente, e é aqui que vemos aparecer
a diferença essencial entre as duas concepções, como mencionada
há pouco: a concepção tradicional liga todas as ciências aos princípios, na condição de aplicações particulares, e é essa ligação
que a concepção moderna não admite. Para Aristóteles, a Física
era apenas “segunda” em relação à Metafísica, ou seja, estava
dependente desta, e no fundo era apenas uma aplicação ao domínio da Natureza dos princípios superiores à Natureza e que se
refletem nas suas leis. Pode-se dizer o mesmo da “cosmologia" da
Idade Média. A concepção moderna, pelo contrário, pretende tornar as ciências independentes, negando tudo o que as ultrapassa,
ou pelo menos declarando-o “incognoscível” e recusando tomá-lo
em conta, o que acaba por significar negá-lo na prática. Essa
negação existia, de fato, muito tempo antes que se tenha pensado
em erigi-la em teoria sistemática, sob nomes tais como “positivismo” e “agnosticismo”, porque se pode dizer que ela constitui
verdadeiramente o ponto de partida de toda a ciência moderna.
Simplesmente, foi só no século 19 que pudemos ver homens vangloriarem-se da sua ignorância – porque proclamar-se “agnóstico”
não significa outra coisa – e pretenderem proibir a todos o conhecimento do que eles próprios ignoravam; e isso marcou mais uma
etapa na queda intelectual do Ocidente.
Querendo separar radicalmente as ciências de qualquer princípio superior, sob pretexto de assegurar a sua independência, a
concepção moderna retira-lhes toda a significação profunda e
mesmo todo o verdadeiro interesse, do ponto de vista do conhecimento, e conduz a um impasse, visto que se encerra num domínio
irremediavelmente limitado 14.
O desenvolvimento que se efetua no interior desse domínio não
constitui, aliás, um puro aprofundamento, como alguns imaginam; pelo contrário, mantém-se totalmente superficial e consiste
apenas nessa dispersão em pormenores que assinalei, numa análise estéril e digna de dó, que pode prosseguir indefinidamente
sem que avance um único passo na via do verdadeiro conhecimento. Também não é propriamente por ela mesma, devo dizer,
que os ocidentais em geral cultivam a ciência assim entendida: o
que eles têm em vista não é o conhecimento, mesmo inferior; são
as aplicações práticas. Para nos convencermos de que é realmente
assim, basta ver com que facilidade a maior parte dos nossos
contemporâneos confundem ciência e indústria, e como são
numerosos aqueles para quem o engenheiro representa o tipo
próprio do sábio; mas isto diz respeito a outra questão, que tratarei mais completamente a seguir.
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14 Podemos notar que se produziu qualquer coisa de análogo na ordem social, em
que os modernos pretenderam separar o temporal do espiritual: não se trata de
contestar que haja aí duas coisas distintas, visto que elas se referem efetivamente
a domínios diferentes, tal como no caso da Metafísica e das ciências; mas, por um
erro inerente ao espírito analítico, esqueceu-se que distinção não quer dizer separação. É por aí que o poder temporal perde a sua legitimidade, e a mesma coisa
poderia ser dita a respeito das ciências, na ordem intelectual.
A ciência, constituindo-se à maneira moderna, não perdeu
apenas em profundidade, mas também, podemos dizer, em solidez, porque a ligação aos princípios a fazia participar da imutabilidade destes em toda a medida em que o seu próprio objeto permitia, enquanto que, encerrada exclusivamente no mundo da
mudança, não encontra aí mais nada de estável, nenhum ponto
fixo onde se possa apoiar. Como não parte de qualquer certeza de
absoluto, é reduzida a probabilidades e a aproximações ou construções puramente hipotéticas, que são apenas a obra da fantasia
individual. Assim, mesmo se acontece acidentalmente de a ciência
moderna alcançar, por um caminho muito desviado, certos
resultados que parecem concordar com alguns dados das antigas
"ciências tradicionais”, cometeríamos o maior erro vendo nesse
fato uma confirmação, que não é necessária para esses dados.
Seria perder tempo querer conciliar pontos de vista totalmente
diferentes ou estabelecer uma concordância com teorias hipotéticas que talvez se encontrem inteiramente desacreditadas dentro
de poucos anos 15.
Com efeito, para a ciência atual, as coisas de que trata não
podem pertencer senão ao domínio das hipóteses, enquanto para
as “ciências tradicionais” elas eram outra coisa e apresentavam-se como conseqüências indubitáveis de verdades conhecidas
intuitivamente, portanto infalivelmente, na ordem metafísica 16. É,
aliás, uma singular ilusão, própria do “experimentalismo” moderno, julgar que uma teoria pode ser provada pelos fatos,
quando, na realidade, os mesmos fatos podem sempre explicar-se
igualmente por diversas teorias diferentes. Certos promotores do
método experimental, como Claude Bernard, reconheceram eles
próprios que não podiam interpretá-los senão com a ajuda de
“idéias preconcebidas”, sem as quais esses fatos permaneceriam
“fatos em bruto”, desprovidos de qualquer significação e de qualquer valor científico.
Visto que acabei por falar do “experimentalismo”, devo aproveitar a ocasião para responder a uma pergunta que se pode colocar
a este respeito: por que é que as ciências propriamente experimentais receberam, na civilização moderna, um desenvolvimento
A mesma observação é válida, do ponto de vista religioso, a respeito de uma
certa “apologética” que pretende pôr-se de acordo com os resultados da ciência
moderna, trabalho perfeitamente ilusório e sempre a refazer, que apresenta, além
disso, o grave perigo de parecer solidarizar a religião com concepções mutáveis e
efêmeras, em relação às quais ela deve permanecer totalmente independente.
16 Seria fácil dar aqui exemplos: citaremos apenas, como um dos mais espantosos,
a diferença de caráter das concepções que dizem respeito ao éter na Cosmologia
hindu e na Física moderna
que nunca tiveram noutras civilizações? É que estas ciências são
as do mundo sensível, as da matéria, e também são as que dão
lugar a aplicações práticas mais imediatas. O seu desenvolvimento, acompanhado do que eu chamaria de boa vontade a
“superstição do fato”, corresponde, então, às tendências especificamente modernas, enquanto, pelo contrário, as épocas
precedentes não tinham encontrado aí suficientes motivos de
interesse para se prenderem a elas a ponto de desprezar os
conhecimentos de ordem superior.
É necessário compreender que não se trata de declarar ilegítimo em si mesmo um conhecimento qualquer, mesmo que seja
inferior; o que é ilegítimo é apenas o abuso que se produz quando
coisas deste gênero absorvem toda a atividade humana, tal como
vemos atualmente. Poderíamos mesmo conceber que, numa civilização normal, ciências constituídas por um método experimental
estivessem ligadas aos princípios, tal como outras, e providas,
assim, de um real valor especulativo. De fato, se este valor não
parece ter-se apresentado é que a atenção foi dada de preferência
a outro aspecto, e também porque, quando se tratava de estudar
o mundo sensível na medida em que parecia interessante fazê-lo,
os dados tradicionais permitiam efetuar mais favoravelmente esse
estudo por outros métodos e de um outro ponto de vista.
Eu disse mais atrás que uma das características da época
atual é a exploração de tudo o que tinha sido desprezado até
então por ser considerado de uma importância demasiado secundária para que os homens lhe consagrassem a sua atividade.
Disse que essas coisas deviam, no entanto, ser também desenvolvidas antes do fim deste ciclo, visto que tinham o seu lugar entre
as possibilidades chamadas à manifestação: este caso é precisamente o das ciências experimentais que surgiram nestes últimos
séculos. Há mesmo certas ciências modernas que representam
verdadeiramente, no sentido mais literal, “resíduos” de ciências
antigas hoje incompreendidas. Foi a parte mais inferior destas
últimas que, isolando-se e destacando-se de todo o resto num
período de decadência, materializou-se grosseiramente e depois
serviu de ponto de partida para um desenvolvimento diferente,
num sentido conforme às tendências modernas, de modo a levar à
constituição de ciências que não têm realmente nada em comum
com aquelas que as precederam. É assim que, por exemplo, é
falso dizer, como se faz habitualmente, que a Astrologia e a
Alquimia se tornaram respectivamente a Astronomia e a Química
modernas, embora haja nessa opinião uma certa parte de verdade
do ponto de vista simplesmente histórico. Se num certo sentido é
verdade que as duas ciências recentes procedem efetivamente das
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15
primeiras, não é por “evolução” ou “progresso”, como se pretende,
mas pelo contrário, por degenerescência; e isto pede ainda algumas explicações.
Deve-se notar, primeiro que tudo, que a atribuição de significações distintas aos termos “Astrologia” e “Astronomia” é relativamente recente; entre os gregos estas duas palavras eram indiferentemente utilizadas para designar todo o conjunto daquilo que
hoje é coberto por uma e outra. Parece, então, à primeira vista,
que se trata de mais uma dessas divisões por “especialização” que
separaram aquelas que eram primitivamente partes de uma ciência única. Mas o que há de particular neste caso é que, enquanto
uma destas partes, a que representava o lado mais material da
ciência em questão, atingia um desenvolvimento independente, a
outra parte, pelo contrário, desaparecia inteiramente. Isso é de tal
modo verdade que não se sabe hoje o que pode ter sido a Astrologia antiga, e que mesmo aqueles que tentaram reconstituí-la só
chegaram a verdadeiras contrafações, seja por querer fazer dela o
equivalente de uma ciência experimental moderna, com intervenção das estatísticas e do cálculo das probabilidades, seja aplicando-se exclusivamente a restaurar uma “arte divinatória” que
foi apenas um desvio da Astrologia em vias de desaparição, e na
qual se podia ver, quanto muito, uma aplicação muito inferior e
bastante pouco digna de consideração, tal como é ainda possível
de verificar nas civilizações orientais.
O caso da Química é talvez ainda mais claro e característico; e
a ignorância dos modernos a respeito da Alquimia é pelo menos
tão grande como no que diz respeito à Astrologia. A verdadeira
Alquimia era essencialmente uma ciência de ordem cosmológica
e, ao mesmo tempo, era aplicável também à ordem humana, em
virtude da analogia do “macrocosmos” e do “microcosmos”. Além
disso, era constituída expressamente tendo em vista permitir a
sua transposição para o domínio puramente espiritual, o que
conferia aos seus ensinamentos um valor simbólico e uma significação superior, e fazia dela um dos tipos mais completos das
“ciências tradicionais”. O que deu origem à Química moderna não
foi essa Alquimia, com a qual ela não tem, em suma, qualquer
relação; foi antes uma deformação, um desvio no sentido mais
rigoroso da palavra. Esse desvio se originou, talvez desde a Idade
Média, da incompreensão de alguns que, incapazes de penetrar o
verdadeiro sentido dos símbolos, tomaram tudo ao pé da letra e,
julgando que se tratava de operações materiais, lançaram-se
numa experimentação mais ou menos desordenada. Foram esses,
que os alquimistas qualificavam ironicamente de “sopradores” e
de “queimadores de carvão”, os verdadeiros precursores dos quí-
micos atuais; e é assim que a ciência moderna se edifica com o
auxilio dos restos das ciências antigas, com os materiais rejeitados por estas e abandonados aos ignorantes e aos “profanos”.
Acrescento ainda que os chamados renovadores da Alquimia, por
seu lado, alguns dos quais se encontram entre os nossos contemporâneos, só prolongam esse mesmo desvio, e as suas pesquisas
estão tão afastadas da Alquimia tradicional como as dos astrólogos o estão da antiga Astrologia. É por esse motivo que tenho o
direito de afirmar que as “ciências tradicionais” do Ocidente se
encontram realmente perdidas para os modernos.
Limitar-me-ei a estes simples exemplos, embora seja fácil dar
ainda outros, tomados em ordens um pouco diferentes e mostrando todos a mesma degenerescência. Pode-se mostrar que a
Psicologia tal como hoje é entendida, ou seja, o estudo dos fenômenos mentais em si, é um produto natural do empirismo
anglo-saxônico e do espírito do século 18. O ponto de vista ao
qual ela corresponde era tão desprezível para os antigos que,
ainda que lhes acontecesse ocasionalmente encará-lo, nunca
teriam pensado em fazer dele uma ciência especial; tudo o que
pode haver aí de válido encontrava-se para eles transformado e
assimilado em pontos de vista superiores.
Num outro domínio seria possível mostrar que as Matemáticas
modernas representam apenas, por assim dizer, a casca da
Matemática pitagórica, o seu lado puramente “exotérico”. A antiga
idéia dos números tornou-se mesmo absolutamente ininteligível
para os modernos, porque também aí a parte superior da ciência,
aquela que lhe dava, com o caráter tradicional, um valor propriamente intelectual, desapareceu totalmente; e este caso é bastante
comparável ao da Astrologia. Mas não podemos passar em revista
todas as ciências, o que seria acima de tudo maçante; creio ter
dito o bastante para fazer compreender a natureza da mudança à
qual as ciências modernas devem a sua origem e que é exatamente o contrário de um “progresso”, é uma verdadeira regressão
da inteligência. Volto agora a fazer considerações de ordem geral
acerca do papel respectivo das “ciências tradicionais” e das ciências modernas, e da diferença profunda que existe entre o verdadeiro destino de umas e de outras.
Uma ciência qualquer, segundo a concepção tradicional, tem
interesse menos em si mesma do que no fato de ser um prolongamento ou um ramo secundário da doutrina, cuja parte essen-
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cial é constituída pela Metafísica pura 17. Efetivamente, se toda
ciência é seguramente legítima, desde que ocupe apenas o lugar
que lhe convém em virtude da sua natureza própria, é todavia
fácil de compreender que, para quem possua um conhecimento
de ordem superior, os conhecimentos inferiores perdem
forçosamente muito do seu interesse. O interesse por esses
conhecimentos só se conserva em função do conhecimento principal, ou seja, na medida em que, por um lado, eles o refletem
neste ou naquele domínio contingente, e, por outro lado, são susceptíveis de conduzir a esse mesmo conhecimento principal, o
qual nunca pode ser perdido de vista, nem sacrificado a considerações mais ou menos acidentais. São estes os dois papéis complementares que pertencem às “ciências tradicionais”: por um
lado, como aplicações da doutrina, elas permitem ligar entre si
todas as ordens de realidade, integrá-las na unidade da síntese
total; por outro lado, são, pelo menos para alguns, e em conformidade com as aptidões destes, preparação para um conhecimento mais alto, uma espécie de movimento na direção deste
último.
Na sua repartição hierárquica segundo os graus de existência
aos quais se reportam, as ciências constituem, então, como que
escalões com a ajuda dos quais é possível elevar-se até à intelectualidade pura 18. Ë demasiado evidente que as ciências modernas não podem, em nenhum grau, preencher qualquer destes
dois papéis; é por isso que elas não são e não podem ser senão a
“ciência profana”, enquanto as “ciências tradicionais”, pela sua
ligação aos princípios metafísicos, estão incorporadas de modo
efetivo na “ciência sagrada”.
A coexistência dos dois papéis que acabei de indicar não implica contradições nem círculo vicioso, contrariamente ao que
poderiam pensar aqueles que encaram as coisas apenas superficialmente; e esse é um dos pontos sobre os quais vale a pena
insistir um pouco. Poder-se-ia dizer que há aí dois pontos de
vista, um descendente e outro ascendente, dos quais o primeiro
corresponde a um desenvolvimento do conhecimento partindo dos
17 É o que exprime, por exemplo, uma denominação como a de “upaveda”, aplicada na Índia a certas "ciências tradicionais” e indicando a sua subordinação em
relação ao “Veda”, i. e., ao conhecimento sagrado por excelência.
18 Em meu estudo sobre “O Esoterismo de Dante” indiquei o simbolismo da
escada na qual, segundo diversas tradições, os degraus correspondem a certas
ciências, ao mesmo tempo que aos estados do ser, o que implica necessariamente
que essas ciências, em lugar de serem encaradas de uma maneira totalmente
“profana” como acontece entre os modernos, davam lugar a uma transposição,
conferindo-lhe um alcance verdadeiramente “iniciático”.
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princípios para chegar às aplicações cada vez mais afastadas
deles, e o segundo uma aquisição gradual desse mesmo conhecimento procedendo do inferior para o superior, ou, ainda, do exterior para o interior. A questão não é, então, a de saber se as ciências devem ser constituídas de baixo para o alto ou do alto para
baixo; se será necessário, para que elas sejam possíveis, tomar
como ponto de partida o conhecimento dos princípios ou, pelo
contrário, a do mundo sensível. Essa questão, que se pode colocar
do ponto de vista da filosofia “profana” – e que parece mesmo ter
sido posta nesse domínio pela Antiguidade grega –, não existe
para a “ciência sagrada”, que só pode partir dos princípios universais. O que lhe tira toda a razão de ser é a função primeira da
intuição intelectual, que é o mais imediato de todos os conhecimentos e o mais elevado, e que é absolutamente independente do
exercício de toda faculdade de ordem sensível ou mesmo racional.
As ciências só podem ser constituídas validamente, enquanto
“ciências sagradas”, por aqueles que, antes de tudo o mais, possuem plenamente o conhecimento principal e que, por isso, são os
únicos qualificados para realizar, em conformidade com a ortodoxia tradicional mais rigorosa, todas as adaptações requeridas
pelas circunstâncias de tempo e de lugar. Simplesmente, quando
as ciências estão assim constituídas, o seu ensino pode seguir
uma ordem inversa: elas são, de certo modo, como que “ilustrações” da doutrina pura, que podem torná-la mais facilmente acessível a certos espíritos. E, pelo próprio fato de que dizem respeito
ao mundo da multiplicidade, a diversidade quase indefinida dos
seus pontos de vista pode convir à não menos grande diversidade
das aptidões individuais dos espíritos cujo horizonte está ainda
limitado a esse mesmo mundo da multiplicidade.
As vias possíveis para alcançar o conhecimento podem ser extremamente diferentes no grau mais baixo, e em seguida elas vão
se unificando cada vez mais, à medida que se chega a estágios
mais elevados. Não é que algum desses graus preparatórios seja
de uma necessidade absoluta, visto que são apenas meios contingentes e sem medida comum com o fim a alcançar; é mesmo possível que alguns, entre aqueles em que domina a tendência contemplativa, se elevem à verdadeira intuição intelectual de um só
golpe e sem o socorro de tais meios 19, mas esse é apenas um caso
excepcional. Mais habitualmente, proceder no sentido ascendente
19 É por isso, segundo a doutrina hindu, que os "Brâmanes” devem manter o seu
espírito constantemente dirigido para o conhecimento supremo, enquanto os
“Xátrias” devem, antes, aplicar-se ao estudo sucessivo das diversas etapas pelas
quais se chega gradualmente a esse ponto.
50
será o que se pode chamar de necessidade da conveniência.
Pode-se igualmente, para fazer compreender isto, utilizar a imagem tradicional da “roda cósmica”: na realidade, a circunferência
só existe pelo centro; mas os seres que estão sobre a circunferência devem forçosamente partir desta, ou mais precisamente, do
ponto desta onde estão colocados, e seguir o raio para chegar ao
centro. Além disso, em virtude da correspondência existente entre
todas as ordens da realidade, as verdades de uma ordem inferior
podem ser consideradas como um símbolo das verdades das
ordens superiores, e servir de “suporte” para se chegar analogicamente ao conhecimento destas últimas20. É isso que confere a
qualquer ciência o sentido superior ou “anagógico”, mais profundo do que aquele que ela possui em si mesma, e que pode
dar-lhe o caráter de uma verdadeira “ciência sagrada”.
Como eu disse, qualquer ciência pode revestir-se desse caráter,
seja qual for o seu objeto, com a única condição de ser constituída e encarada segundo o espírito tradicional; somente convém
ter em conta os graus de importância dessas ciências segundo o
lugar hierárquico das realidades diversas às quais elas se reportam. Mas, num grau ou noutro, o seu caráter e a sua função são
essencialmente os mesmos na concepção tradicional.
O que vimos como verdadeiro para qualquer ciência o é igualmente para toda a arte, enquanto esta pode ter um valor propriamente simbólico que a torna apta a fornecer “suportes” para a
meditação, e também enquanto as suas regras são, tal como as
leis cujo conhecimento é objeto das ciências, reflexos e aplicações
dos princípios fundamentais. Há assim, em toda civilização normal, “artes tradicionais” que são tão desconhecidas dos ocidentais
modernos quanto as “ciências tradicionais”21. A verdade é que não
existe, na realidade, um “domínio profano” que se oporia de certo
modo ao “domínio sagrado”; existe somente um “ponto de vista
profano”, que é propriamente o ponto de vista da ignorância22. É
por isso que a “ciência profana”, a dos modernos, pode, a justo
título, ser olhada como um “saber ignorante”; saber de ordem
inferior, que se mantém inteiramente ao nível da mais baixa realidade, e saber ignorante de tudo o que o ultrapassa, ignorante de
qualquer finalidade superior a si próprio e de todo o princípio que
lhe poderia assegurar um lugar legítimo entre as diversas ordens
do conhecimento integral. Irremediavelmente encerrado no domínio relativo e limitado em que se quis proclamar independente,
tendo assim cortado ele próprio toda a comunicação com a verdade transcendente e com o conhecimento supremo, não é mais
do que uma ciência vã e ilusória que, para dizer a verdade, não
provém de nenhum ponto e a nada conduz.
O que ficou exposto permitirá compreender tudo o que falta ao
Mundo Moderno no aspecto da ciência, e como essa mesma ciência, de que tanto se orgulha, representa apenas um simples desvio e a perda da verdadeira ciência, que aqui chamei “ciência
sagrada” ou “ciência tradicional”. A ciência moderna, procedendo
de uma limitação arbitrária do conhecimento a uma certa ordem
particular e a mais inferior – a da realidade material ou sensível –
perdeu, graças a essa limitação e às conseqüências que ela
arrasta imediatamente atrás de si, todo o valor intelectual, pelo
menos se damos à intelectualidade a plenitude do seu verdadeiro
sentido, recusando-nos a partilhar o erro “racionalista” que assimila a inteligência pura à razão, negando a intuição intelectual. O
que está no fundo desse erro, como de uma grande parte dos
outros erros modernos, o que está na raiz de todo o desvio da
ciência, tal como acabamos de explicar, é o que se pode chamar
de “individualismo”, que se une ao espírito anti-tradicional e
cujas múltiplas manifestações em todos os domínios constituem
um dos fatores mais importantes da desordem da nossa época; é
esse “individualismo” que devemos agora examinar mais de perto.
20
É o papel que desempenha, por exemplo, o simbolismo astronômico, tão
freqüentemente utilizado nas diferentes doutrinas tradicionais; e o que foi dito
aqui pode fazer entrever a verdadeira natureza de uma ciência tal como a Astrologia antiga.
21
A arte dos construtores da Idade Média pode ser mencionada como exemplo
particularmente notável dessas “artes tradicionais”, cuja prática implicava, aliás, o
conhecimento real das ciências correspondentes.
22 Para nos convencermos disto basta observar fatos como este: uma das ciências
mais “sagradas”, a Cosmogonia, que como tal tem o seu lugar em todos os Livros
inspirados, incluindo a Bíblia hebraica, tornou-se para os modernos o objeto das
hipóteses mais puramente “profanas”; o domínio da ciência é o mesmo nos dois
casos, mas o ponto de vista é totalmente diferente.
51
52
Entendemos por “individualismo” a negação de qualquer
princípio superior à individualidade e, por conseqüência, a redução da civilização, em todos os domínios, apenas aos elementos
humanos. No fundo, é a mesma coisa que foi designada na época
do Renascimento pelo nome de “Humanismo”, como já foi dito, e é
também o que caracteriza propriamente o que chamei há pouco
de “ponto de vista profano”. Tudo isso em suma é apenas uma e a
mesma coisa, sob designações diversas; eu disse ainda que esse
espírito “profano” se confunde com o espírito anti-tradicional, no
qual se resumem todas as tendências especificamente modernas.
Não é, sem dúvida, que esse espírito seja inteiramente novo;
ele já teve em outras épocas manifestações mais ou menos acentuadas, mas sempre limitadas e aberrantes, e que nunca tinham
se alargado a todo o conjunto de uma civilização, como ocorreu
no Ocidente no decurso destes últimos séculos. O que nunca se
tinha visto até aqui é uma civilização inteiramente construída
sobre algo puramente negativo, sobre o que se poderia chamar de
ausência de princípio. É isso precisamente que dá ao Mundo moderno o seu caráter anormal, o que faz dele uma monstruosidade,
explicável apenas se o consideramos como correspondente ao
final de um período cíclico, de acordo com o que foi inicialmente
explicado.
É realmente o individualismo tal como acabamos de defini-lo,
portanto, que é a causa determinante da atual queda do Ocidente, pelo próprio fato de que ele é, de certo modo, o motor do
desenvolvimento exclusivo das possibilidades mais inferiores da
Humanidade, daquelas cuja expansão não exige a intervenção de
nenhum elemento supra-humano, e que, inclusive, só se podem
manifestar completamente na ausência desse elemento, pois que
estão no extremo oposto de toda a espiritualidade e de toda a verdadeira intelectualidade.
O individualismo implica primeiramente a negação da
intelectualidade, que é essencialmente uma faculdade supra-individual, e da ordem de conhecimento que constitui o
domínio próprio dessa intuição, ou seja, da Metafísica entendida
no seu verdadeiro sentido. É por isso que tudo o que os filósofos
modernos designam por esse mesmo nome, quando admitem
qualquer coisa que intitulam assim, não tem absolutamente nada
em comum com a verdadeira Metafísica; são apenas construções
racionais ou hipóteses imaginativas, portanto concepções totalmente individuais, e cuja maior parte, aliás, diz respeito somente
ao domínio “físico”, quer dizer, à Natureza. Mesmo quando se
encontra aí alguma questão que poderia estar efetivamente ligada
com a ordem metafísica, a maneira como é encarada e tratada a
reduz a ser apenas “pseudo-Metafísica” e, de resto, torna impossível qualquer solução real e válida. Parece mesmo que, para os
filósofos, trata-se mais de colocar “problemas”, às vezes artificiais
e ilusórios, do que de resolvê-los, o que é um dos aspectos da
necessidade desordenada da pesquisa pela pesquisa, ou seja, da
agitação mais vã na ordem mental, assim como na ordem corporal.
Trata-se também, para esses mesmos filósofos, de ligar o seu
nome a um “sistema”, quer dizer, a um conjunto de teorias estritamente reduzido e limitado que seja bem deles, que não seja
outra coisa senão a sua própria obra. Daí o desejo de ser original
a todo preço, mesmo que a verdade deva ser sacrificada a essa
originalidade: mais vale, para o prestígio de um filósofo, inventar
um erro novo do que repetir uma verdade que foi já exprimida por
outros. Essa forma do individualismo, à qual se devem tantos
“sistemas” contraditórios uns aos outros, quando não o são em si
mesmos, encontra-se tanto entre os sábios como entre os artistas
modernos, mas é talvez entre os filósofos que se pode ver mais
nitidamente a anarquia intelectual que é a sua inevitável conseqüência.
Numa civilização tradicional é quase inconcebível que um
homem pretenda reivindicar a propriedade de uma idéia, e, em
todo o caso, se o faz, por esse mesmo fato retira-lhe todo o crédito
e toda a autoridade, porque a reduz assim a ser apenas uma
espécie de fantasia sem qualquer alcance real: se uma idéia é
verdadeira, ela pertence igualmente a todos aqueles que são
capazes de compreendê-la; se ela é falsa, não há motivo para se
vangloriar de tê-la inventado. Uma idéia verdadeira não será
"nova", porque a verdade não é um produto do espírito humano,
existe independentemente de nós e temos somente que a conhecer. Fora desse conhecimento só pode haver o erro; mas, no
fundo, estarão os modernos preocupados com a verdade e saberão mesmo ainda o que ela é? Também aí as palavras perderam o
seu sentido, visto que alguns, como os "pragmatistas” contemporâneos, chegam a ponto de atribuir abusivamente este nome “verdade” ao que é muito simplesmente a utilidade prática, ou seja, a
algo que é inteiramente estranho à ordem intelectual. Trata-se,
como conclusão lógica do desvio moderno, da autêntica negação
da verdade, assim como da inteligência da qual ela constitui o
53
54
5. O individualismo
objeto próprio. Mas não quero antecipar demasiado, e acerca
deste ponto só direi ainda que esse tipo de individualismo é a
origem das ilusões quanto ao papel dos “grandes homens” ou que
assim são chamados. O “gênio”, entendido no sentido “profano”,
é, na realidade, muito pouca coisa, e não poderia de nenhum
modo substituir a falta de verdadeiro conhecimento.
Visto que falei da filosofia, assinalarei também, mas sem
entrar em todos os pormenores, algumas das conseqüências do
individualismo nesse domínio. A primeira de todas foi, pela negação da intuição intelectual, colocar a razão acima de tudo e fazer
dessa faculdade puramente humana e relativa a parte superior da
inteligência, ou mesmo reduzir inteiramente esta à razão; é isso
que constitui o “racionalismo”, cujo verdadeiro fundador foi Descartes. Esta limitação da inteligência era, aliás, apenas uma primeira etapa; a própria razão não devia tardar a ser rebaixada
cada vez mais a um papel eminentemente prático, à medida que
as aplicações se adiantavam às ciências que podiam ter ainda um
certo caráter especulativo. O próprio Descartes já estava, no
fundo, muito mais preocupado com essas aplicações práticas do
que com a ciência pura.
Mas não é tudo: o individualismo arrasta inevitavelmente consigo o “naturalismo”, visto que tudo o que está para além da
Natureza está, por isso mesmo, fora do alcance do indivíduo
enquanto tal. “Naturalismo” e negação da Metafísica são uma e a
mesma coisa, e como que a intuição intelectual é desconhecida,
não há mais Metafísica possível. Enquanto alguns se obstinam,
no entanto, em construir uma “pseudo-Metafísica” qualquer,
outros reconhecem mais francamente essa impossibilidade; daí o
“relativismo” sob todas as suas formas, seja o “criticismo” de Kant
ou o “positivismo” de Auguste Comte.
E como a razão, ela mesma, é totalmente relativa e só pode
aplicar-se validamente a um domínio igualmente relativo, é bem
verdade que o “relativismo” é a única conclusão lógica do "racionalismo”. Este, de resto, devia chegar por esse caminho a destruir-se a si mesmo: “natureza” e “devir”, como já assinalei mais
atrás, na realidade são sinônimos; portanto, um “naturalismo”
conseqüente consigo mesmo só pode ser uma dessas “filosofias do
devir” de que já falei e cujo tipo especificamente moderno é o
“evolucionismo”. Mas é precisamente este que devia finalmente
voltar-se contra o “racionalismo”, criticando que a razão não
pudesse aplicar-se adequadamente ao que é apenas mudança e
pura multiplicidade, nem encerrar nos seus conceitos a indefinida
complexidade das coisas sensíveis. Tal é, com efeito, a posição
tomada por essa forma do “evolucionismo” que é o “intuicionismo”
bergsoniano, o qual, bem entendido, é tão individualista e antimetafísico quanto o “racionalismo” e, embora critique justamente
este, cai ainda mais baixo ao fazer apelo a uma faculdade propriamente infra-racional, a uma intuição sensível bastante mal
definida e mais ou menos misturada com imaginação, instinto e
sentimento.
O que é bem significativo é que a questão, aqui, já não é mais a
“verdade” mas somente a “realidade”, reduzida exclusivamente à
ordem sensível e concebida como algo essencialmente móvel e
instável. Com tais teorias, a inteligência é verdadeiramente reduzida à sua parte mais baixa e a própria razão passa a ser admitida apenas enquanto se aplica a moldar a matéria para utilizações industriais.
Depois de tudo isto, só restava dar mais um passo: era o da
negação total da inteligência e do conhecimento, a substituição da
“verdade” pela “utilidade”. Esse passo foi o “pragmatismo”, ao
qual já fiz alusão há pouco; e aqui já nem mesmo estamos no
humano puro e simples, como no caso do “racionalismo”; estamos
verdadeiramente no infra-humano, com o apelo ao “subconsciente”, que marca a inversão completa de toda a hierarquia normal. Eis, nas suas grandes linhas, a marcha que devia fatalmente
seguir, e que efetivamente seguiu, a Filosofia “profana” entregue a
si própria, pretendendo limitar todo o conhecimento ao seu próprio horizonte. Enquanto existia um conhecimento superior, nada
de semelhante se podia produzir porque a Filosofia devia, pelo
menos, respeitar o que ignorava e não podia negar; mas quando
esse conhecimento superior desapareceu, a sua negação, que
correspondia ao estado de fato, foi rapidamente erguida como
teoria e é daí que procede toda a Filosofia moderna.
Mas já basta de falar sobre a Filosofia, à qual não convém atribuir uma excessiva importância, qualquer que seja o lugar que
ela pareça ter no Mundo Moderno. No ponto de vista em que me
coloco, ela é interessante principalmente porque exprime, sob
uma forma tão nítida quanto possível, as tendências deste ou
daquele momento, bem mais do que verdadeiramente as cria; e se
se pode dizer que as dirige até certo ponto, só o faz secundariamente e fora de tempo. Assim, é certo que toda a Filosofia moderna tem a sua origem em Descartes; mas a influência que este
exerceu, primeiro sobre a sua época e depois sobre aquelas que se
seguiram – influência que não se limitou apenas aos filósofos –,
não teria sido possível se as suas concepções não tivessem correspondido a tendências pré-existentes, que eram, em suma, as
da grande parte dos seus contemporâneos.
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O espírito moderno encontrou-se no cartesianismo e, através
deste, tomou uma consciência mais clara de si próprio do que a
que tivera até então. Aliás, em qualquer domínio, um movimento
tão aparente como o cartesianismo foi sob o aspecto filosófico, é
sempre uma resultante, mais do que um verdadeiro ponto de
partida; não é algo espontâneo, é o produto de todo um trabalho
latente e difuso. Se um homem como Descartes é particularmente
representativo do desvio moderno, se podemos dizer que ele o
encarna de certo modo e sob um certo ponto de vista, não é ele,
no entanto, o único nem o primeiro responsável, e seria necessário remontar muito mais longe para encontrar as raízes desse
desvio. Igualmente a Renascença e a Reforma, olhadas a maior
parte das vezes como as primeiras grandes manifestações do espírito moderno, na verdade concluíram a ruptura com a Tradição,
muito mais do que a provocaram; para o ponto de vista que eu
adoto, o começo dessa ruptura data do século 16 e de fato é aí, e
não um ou dois séculos mais tarde, que se deve fazer começar os
tempos modernos.
É sobre essa ruptura com a Tradição que insistirei ainda, visto
que foi dela que nasceu o Mundo Moderno, cujas características
próprias todas poderiam ser resumidas numa só: a oposição ao
espírito tradicional, que é o individualismo. Isto, de resto, está em
perfeito acordo com o que foi dito até aqui, visto que são a intuição intelectual e a doutrina metafísica pura que estão no princípio de toda a civilização tradicional; negando-se o princípio
negam-se também todas as conseqüências, pelo menos
implicitamente e, assim, todo o conjunto que verdadeiramente
merece o nome de Tradição encontra-se destruído por isso
mesmo.
Vimos já o que se produziu a esse respeito no que diz respeito
às ciências; vamos agora encarar um outro aspecto da questão,
em que as manifestações do espírito anti-tradicional são talvez
ainda mais imediatamente visíveis, porque se trata aqui de mudanças que afetaram a própria massa ocidental. Com efeito, as
"ciências tradicionais” da Idade Média estavam reservadas a uma
elite mais ou menos restrita, e algumas delas eram mesmo apanágio exclusivo de escolas muito fechadas, constituindo um
“esoterismo”, no sentido mais estrito da palavra; mas, por outro
lado, havia também na Tradição algo que era comum indistintamente a todos, e é dessa parte exterior que quero falar.
A tradição ocidental era nessa altura, exteriormente, uma
tradição de forma especificamente religiosa, representada pelo
Catolicismo; é então no domínio religioso que temos que ver a
revolta contra o espírito tradicional, revolta que, quando tomou
uma forma definida, se chamou Protestantismo. É fácil dar-se
conta que se trata de uma manifestação do individualismo, a tal
ponto que se poderia dizer que é o individualismo considerado na
sua aplicação à religião. O que faz o Protestantismo, como o que
faz o Mundo Moderno, é apenas uma negação, essa negação dos
princípios que é a própria essência do individualismo; e pode-se
ver ainda nisso um dos exemplos mais surpreendentes do estado
de anarquia e de dissolução que é a sua conseqüência.
Quem diz individualismo diz necessariamente recusa de admitir uma autoridade superior ao indivíduo, assim como uma faculdade de conhecimento superior à razão individual; as duas coisas
são inseparáveis uma da outra. Por conseqüência, o espírito moderno devia respeitar toda autoridade espiritual no verdadeiro
sentido da palavra, buscando a sua origem na ordem
supra-humana, e também toda organização tradicional, que se
baseia essencialmente sobre uma tal autoridade – qualquer que
seja, aliás, a forma de que ela se reveste, pois a forma difere naturalmente segundo as civilizações.
Foi, efetivamente, o que aconteceu: para substituir a autoridade da organização qualificada para interpretar legitimamente a
tradição religiosa do Ocidente, o Protestantismo pretendeu colocar
o que chamou de “livre exame”, ou seja, a interpretação deixada
ao arbítrio de cada um, mesmo dos ignorantes e dos incompetentes, e fundada unicamente sobre o exercício da razão humana.
Era, portanto, no domínio religioso, o análogo do que iria ser o
“racionalismo” em Filosofia; era a porta aberta a todas as discussões, a todas as divergências, a todos os desvios. E o resultado foi
o que devia ser: a dispersão numa multidão sempre crescente de
seitas, cada uma das quais representa apenas a opinião particular de alguns indivíduos. Como era, nessas condições, impossível
se entender em relação à doutrina, esta passou rapidamente para
segundo plano, e foi o aspecto secundário da religião – a moral –
que tomou o primeiro lugar; daí essa degenerescência em “moralismo”, que é tão sensível no Protestantismo atual.
Produziu-se aí um fenômeno paralelo ao que assinalei a respeito da Filosofia: a dissolução doutrinal, a desaparição dos elementos intelectuais da religião, arrastava consigo essa conseqüência inevitável; partindo do “racionalismo”, devia-se cair no
“sentimentalismo” e é nos países anglo-saxônicos que se poderiam encontrar os exemplos mais surpreendentes. Aquilo de que
se trata, então, já não é religião, é simplesmente “religiosidade”,
ou seja, vagas aspirações sentimentais que não se justificam por
qualquer conhecimento real; e a este último estágio correspondem
teorias como a da “experiência religiosa” de William James, que
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chega a ponto de ver no “subconsciente” o meio, para o homem,
de entrar em comunicação com o divino. Aqui, os últimos produtos da queda religiosa fundem-se com os da decadência filosófica:
a “experiência religiosa” incorpora-se no “pragmatismo”, em nome
do qual se preconiza a idéia de um Deus limitado com mais
“vantagens” do que a do Deus infinito, porque se pode ter por ele
sentimentos comparáveis aos que se têm a respeito de um homem
superior. Ao mesmo tempo, através do apelo ao “subconsciente”, a
teoria chega a juntar-se ao Espiritismo e a todas as
“pseudo-religiões” características da nossa época, que estudamos
noutras obras.
Por outro lado, a moral protestante, eliminando cada vez mais
toda a base doutrinal, acaba por degenerar no que se chama a
“moral laica”, que conta entre os seus partidários os representantes de todas as variedades do “Protestantismo liberal”, assim
como os adversários declarados de toda idéia religiosa. No fundo,
num e noutros são as mesmas tendências que predominam, e a
única diferença é que nem todos vão igualmente longe no desenvolvimento lógico de tudo o que se encontra aí implicado.
Com efeito, sendo a religião propriamente uma forma da Tradição, o espírito anti-tradicional só pode ser anti-religioso; começa
por desnaturar a religião e, quando pode, acaba por suprimi-la
inteiramente. O Protestantismo é ilógico no sentido em que, esforçando-se por “humanizar” a religião, deixa ainda subsistir, apesar
de tudo, pelo menos em teoria, um elemento supra-humano, que
é a revelação. Não ousa levar a negação até ao fim, mas, entregando essa revelação a todas as discussões que são conseqüência
de interpretações puramente humanas, ele a reduz efetivamente,
em breve, a não ser coisa nenhuma. Quando se vê pessoas que,
persistindo em se afirmarem “cristãos”, já não admitem sequer a
divindade de Cristo, é permitido pensar que esses, sem darem
talvez por isso, estão muito mais perto da negação completa do
que do verdadeiro Cristianismo.
Semelhantes contradições, aliás, não nos devem espantar
demasiado, porque são, em todos os domínios, um dos sintomas
da nossa época de desordem e de confusão, tal como a divisão
incessante do Protestantismo é simplesmente uma das numerosas manifestações dessa dispersão na multiplicidade que se
encontra por toda a parte na vida e na ciência modernas. Por
outro lado, é natural que o Protestantismo, com o espírito de
negação que o anima, tenha dado origem a essa “crítica” dissolvente que, nas mãos de pretensos “historiadores das religiões”,
tornou-se uma arma de combate contra todas as religiões e que,
assim, sempre pretendendo reconhecer apenas a autoridade dos
Livros sagrados, tenha contribuído numa larga parte para a destruição dessa mesma autoridade, ou seja, do mínimo de Tradição
que ainda conserva. A revolta contra o espírito tradicional, uma
vez começada, não podia parar a meio caminho.
Poder-se-ia fazer aqui uma objeção; não seria possível que
mesmo separando-se da organização católica, o Protestantismo,
pelo fato de admitir os Livros sagrados, tivesse guardado a doutrina tradicional que está aí contida? É a introdução do “livre
exame” que se opõe absolutamente a tal hipótese, visto que permite todas as fantasias individuais; a conservação da doutrina
supõe, aliás, um ensino tradicional organizado, pelo qual se
mantém a interpretação ortodoxa. Esse ensinamento, no mundo
ocidental, identifica-se com o Catolicismo. Sem dúvida pode
haver, em outras civilizações, organizações de formas muito diferentes dessa para desempenhar a função correspondente; mas é
da civilização ocidental, com as suas condições particulares, que
estamos tratando. Não se pode, então, fazer valer que, por exemplo, não existe na Índia qualquer instituição comparável ao
Papado; o caso é totalmente diferente, primeiro porque não se
trata de uma tradição de forma religiosa no sentido ocidental
desta palavra, pelo que os meios pelos quais ela se conserva e se
transmite não podem ser os mesmos, e, segundo, porque sendo o
espírito hindu diferente do espírito europeu, a Tradição pode ter
por si mesma, no primeiro caso, um poder que não teria no
segundo caso sem o apoio de uma organização muito mais estritamente definida na sua constituição exterior.
Eu já disse que a tradição ocidental, desde o Cristianismo,
devia necessariamente ser revestida de uma forma religiosa; seria
demasiado longo explicar aqui todas as razões disso, que não
podem ser plenamente compreendidas sem fazer apelo a considerações bastante complexas; mas esse é um estado de fato23, que
não nos podemos recusar a ter em conta e, a partir dai, é preciso
também admitir todas as conseqüências que resultam desse fato
no que diz respeito à organização apropriada a uma semelhante
forma tradicional.
Por outro lado, é bem certo, como indiquei mais atrás, que foi
no Catolicismo que se manteve o que apesar de tudo ainda subsiste de espírito tradicional no Ocidente. Significaria isto que, pelo
menos aí, podemos falar de uma conservação integral da Tradição, ao abrigo de qualquer ataque do espírito moderno? Infelizmente não parece que seja assim; ou, para falar com mais exati-
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Segundo as palavras evangélicas, esse estado deve, aliás, manter-se até a “consumação dos séculos”, ou seja, até o fim do ciclo atual.
dão, se o depósito da Tradição permaneceu intacto, o que já é
muito, é bastante duvidoso que o seu sentido profundo seja ainda
compreendido efetivamente, mesmo por uma elite pouco
numerosa, cuja existência se manifestaria sem dúvida por uma
ação, ou melhor, por uma influência que de fato não verificamos
em parte nenhuma. Trata-se, então, certamente, do que chamaríamos de bom grado de conservação no estado latente, permitindo
sempre, àqueles que forem capazes disso, encontrar o sentido da
Tradição, mesmo que esse sentido não fosse atualmente consciente para ninguém.
Há também, aliás, dispersos aqui e ali no Mundo ocidental,
fora do domínio religioso, muitos sinais ou símbolos que provêm
de antigas doutrinas tradicionais e que são conservados sem
serem compreendidos. Nesses casos, um contato com o espírito
tradicional plenamente vivo é necessário para despertar o que
está assim mergulhado numa espécie de sono, para restaurar a
compreensão perdida. E, repito, é sobretudo nesse aspecto que o
Ocidente terá necessidade do auxílio do Oriente se quiser voltar à
consciência da sua própria Tradição.
O que acabo de dizer refere-se propriamente às possibilidades
que o Catolicismo, pelo seu princípio, traz de modo constante e
inalterável em si mesmo; aqui, por conseqüência, a influência do
espírito moderno limita-se forçosamente a impedir, durante um
período mais ou menos longo, que certas coisas sejam efetivamente compreendidas. Mas, falando do estado presente do catolicismo, quem quisesse entender a maneira como ele é encarado
pela grande maioria dos seus próprios aderentes seria obrigado a
verificar uma ação mais positiva do espírito moderno, se essa
expressão pode ser utilizada para algo que, na realidade, é essencialmente negativo. O que aponto a este respeito não são apenas
movimentos bem claramente definidos, como por exemplo aquele
ao qual se deu precisamente o nome de “modernismo” e que não
foi senão uma tentativa, felizmente frustrada, de infiltração do
espírito protestante no interior da própria Igreja católica. Refirome sobretudo um estado de espírito muito mais geral, mais difuso
e mais dificilmente captável, portanto mais perigoso ainda, inclusive porque é, muitas vezes, completamente inconsciente entre
aqueles que são por ele afetados. Alguém pode julgar-se sinceramente religioso e, no fundo, não o ser de modo nenhum, pode
mesmo afirmar-se “tradicionalista” sem possuir a menor noção do
verdadeiro espírito tradicional; esse é um dos sintomas da desordem mental da nossa época.
O estado de espírito ao qual faço alusão é, primeiramente,
aquele que consiste, se assim se pode dizer, em “minimizar” a
religião, em fazer dela uma coisa que se põe à parte, à qual se
indica um lugar bem delimitado e tão estreito quanto possível,
algo que não tem nenhuma influência real sobre o resto da existência e que está isolada dela por uma espécie de divisão estanque. Haverá hoje muitos católicos que tenham na vida corrente
maneiras de pensar e de agir sensivelmente diferentes das dos
seus contemporâneos mais "arreligiosos”?
É também a ignorância quase completa do ponto de vista
doutrinal, e mesmo a indiferença a respeito de tudo o que se lhe
refere. A religião, para muitos, é simplesmente uma questão de
“prática”, de hábito, para não dizer de rotina, e abstêm-se cuidadosamente de procurar compreender o que quer que seja, chegam
mesmo a pensar que é inútil compreender ou talvez que não há
nada para compreender. De resto, se compreendessem verdadeiramente a religião, poderiam atribuir-lhe um lugar tão medíocre
entre as suas preocupações? A doutrina encontra-se, então, de
fato esquecida ou reduzida a quase nada, o que se aproxima singularmente da concepção protestante, porque é um efeito das
mesmas tendências modernas, opostas a toda intelectualidade; e
o mais deplorável é que o ensino que é dado geralmente, em lugar
de reagir contra esse estado de espírito, pelo contrário favorece-o,
adaptando-se bem demais a ele.
Fala-se sempre de moral, não se fala quase nunca de doutrina,
sob pretexto de que esta não seria compreendida; a religião agora
não é mais do que “moralismo” ou, pelo menos, parece que ninguém quer mais ver o que ela é realmente, e que se trata de coisa
diferente. Se ainda se chega, no entanto, a falar algumas vezes de
doutrina, é em geral para rebaixá-la, discutindo com adversários
no seu próprio terreno “profano”, o que conduz inevitavelmente a
fazer-lhes as concessões mais injustificadas. É assim, por exemplo, que alguns católicos se julgam obrigados a ter em conta,
numa medida mais ou menos extensa, os pretensos resultados da
“crítica” moderna, enquanto nada seria mais fácil, colocando-se
num outro ponto de vista, do que mostrar toda a sua vacuidade.
Nestas condições, que pode restar efetivamente do verdadeiro
espírito tradicional?
Esta digressão que nos levou para o exame das manifestações
do individualismo no domínio religioso não é inútil porque mostra
que o mal, nesse aspecto, é ainda mais grave e mais extenso do
que se poderia crer à primeira vista. Por outro lado, ela não nos
afasta da questão que encarávamos e à qual minha última observação se liga diretamente, pois é o individualismo que introduz
por toda a parte o espírito de discussão. É muito difícil fazer compreender aos nossos contemporâneos que há coisas que, pela sua
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própria natureza, não se podem discutir. O homem moderno, em
vez de procurar elevar-se para a verdade, pretende fazê-la descer
ao seu nível; e é sem dúvida por esse motivo que há tantos que,
quando ouvem falar de “ciências tradicionais” ou mesmo de Metafísica pura, imaginam que se trata apenas de “ciência profana” e
de “filosofia”.
No domínio das opiniões individuais pode-se sempre discutir,
porque não se ultrapassa a ordem racional e porque, não fazendo
apelo a qualquer princípio superior, é fácil encontrar argumentos
mais ou menos válidos para sustentar os “prós” e os “contras”.
Pode-se mesmo, em muitos casos, prosseguir a discussão indefinidamente, sem chegar a nenhuma solução, e é assim que quase
toda a Filosofia moderna é feita de equívocos e de questões mal
postas. Bem longe de esclarecer as questões, como se supõe vulgarmente, a discussão quase sempre meramente as desloca,
senão mesmo as obscurece ainda mais; e o resultado mais habitual é que cada um, esforçando-se por convencer o seu
adversário, agarra-se cada vez mais à sua própria opinião e
encerra-se nela de modo ainda mais exclusivo do que antes.
Em tudo isso, no fundo, não se trata de chegar ao conhecimento da verdade, mas de ter razão apesar de tudo ou, pelo menos, a persuadir-se a si próprio, se não for possível persuadir os
outros. Essa impossibilidade, aliás, será ainda mais lamentada
porque se mistura sempre nisso a necessidade de “proselitismo”
que é também um dos elementos mais característicos do espírito
ocidental. Por vezes, o individualismo, no sentido mais vulgar e
mais baixo da palavra, manifesta-se de uma maneira mais visível
ainda: não vemos a cada instante pessoas que querem julgar a
obra de um homem de acordo com o que sabem da sua vida privada, como se pudesse haver entre estas duas coisas alguma
relação? Da mesma tendência, juntamente com a mania do pormenor, derivam também, diga-se de passagem, o interesse
devotado às menores particularidades da existência dos “grandes
homens” e a ilusão de explicar tudo o que fizeram por uma espécie de análise “psico-fisiológica”; tudo isso é bem significativo para
quem quer dar-se conta do que constitui realmente a mentalidade
contemporânea.
Mas volto ainda um instante à introdução dos hábitos de
discussão em domínios nos quais esta não deveria entrar, para
dizer claramente isto: a atitude “apologética” é, em si mesma,
uma atitude extremamente fraca, porque é puramente “defensiva”, no sentido jurídico desta palavra. Não é por acaso que é
designada por um termo derivado de “apologia”, que tem por significado próprio o discurso de um advogado de defesa e que,
numa língua como o inglês, tomou mesmo correntemente a acepção de “desculpa”. A importância preponderante dada à “apologética” é, então, a marca incontestável de um recuo do espírito religioso. Essa fraqueza acentua-se ainda mais quando a
“apologética” degenera, como dizíamos há pouco, em discussões
puramente “profanas” pelo método e pelo ponto de vista, em que a
religião é posta no mesmo plano que as mais contingentes e
hipotéticas teorias filosóficas e científicas, ou pseudo-científicas, e
em que um homem, para parecer “conciliador”, chega ao ponto de
admitir, numa certa medida, concepções que foram inventadas
apenas para arruinar todas as religiões. Aqueles que agem deste
modo fornecem eles próprios a prova de que estão perfeitamente
inconscientes do verdadeiro caráter da doutrina de que se julgam
representantes mais ou menos autorizados.
Aqueles que são qualificados para falar em nome de uma doutrina tradicional não têm que discutir com os “profanos” nem que
entrar em “polêmica”; só têm que expor a doutrina tal como ela é,
para aqueles que a podem compreender, e, ao mesmo tempo,
denunciar o erro por toda a parte onde ele se encontre, fazendo-o
aparecer como tal e projetando sobre ele a luz do verdadeiro
conhecimento. O seu papel não é o de encetar um combate e
comprometer nele a doutrina, mas sim de fazer o juízo que têm o
direito de emitir se possuem mesmo os princípios que devem inspirá-los infalivelmente. O domínio da luta é o da ação, ou seja, o
domínio individual e temporal; o “motor imóvel” produz e dirige o
movimento sem ser arrastado por ele. O conhecimento ilumina a
ação sem participar nas suas vicissitudes, o espiritual guia o
temporal sem se misturar nele, e, assim, cada coisa permanece
na sua ordem, no lugar que lhe compete na hierarquia universal.
Mas, no Mundo Moderno, onde se pode encontrar ainda a noção
de uma verdadeira hierarquia? Já nada nem ninguém se encontra
no lugar onde devia normalmente estar; os homens já não reconhecem nenhuma autoridade efetiva na ordem espiritual,
nenhum poder legítimo na ordem temporal. Os “profanos” permitem-se discutir as coisas sagradas, contestar-lhe esse caráter e
até a própria existência; é o inferior que julga o superior, a ignorância que impõe limites à sabedoria, o erro que ultrapassa a verdade, o humano que toma o lugar do divino, a Terra que toma a
dianteira ao Céu, o indivíduo que se faz medida de todas as coisas
e pretende ditar ao Universo leis tiradas inteiramente da sua própria razão relativa e falível. “Ai de vós, guias cegos”, diz-se no
Evangelho; hoje, efetivamente, só se vêem por toda a parte cegos
que conduzem outros cegos e que, se não forem detidos a tempo,
os conduzirão fatalmente ao abismo, onde cairão com eles.
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O que os homens chamam “acaso” é simplesmente a sua ignorância das causas; se o que se pretende, ao dizer que uma coisa acontece por acaso, é afirmar
que não existe causa, então a suposição é contraditória em si mesma.
existem entre os homens. A causa de toda esta desordem é a
negação dessas mesmas diferenças, arrastando consigo a de toda
a hierarquia social. Tal negação foi, a princípio, talvez pouco
consciente e mais prática que teórica, porque a confusão das
castas precedeu a sua supressão completa ou, por outras palavras, desprezou-se a natureza dos indivíduos antes de se chegar a
ponto de não fazer qualquer caso dela. Mais tarde, no entanto, ela
foi erigida pelos modernos em pseudo-princípio sob nome de
“igualdade”.
Seria muito fácil mostrar que a igualdade não pode existir em
lugar nenhum, pela simples razão de que não poderia haver dois
seres que fossem ao mesmo tempo realmente distintos e inteiramente semelhantes entre si sob todos os aspectos. Seria fácil
também salientar todas as conseqüências absurdas que decorrem
dessa idéia quimérica, em nome da qual se pretende impor por
toda parte uma completa uniformidade, por exemplo distribuindo
a todos ensino idêntico, como se todos fossem igualmente aptos a
compreender as mesmas coisas e como se para as fazer compreender os mesmos métodos conviessem a todos indistintamente.
Pode-se, aliás, perguntar se não se trata mais de “aprender” do
que de “compreender” realmente, ou seja, se a memória não é
substituta da inteligência na concepção inteiramente verbal e
“livresca” do ensino atual, em que se visa apenas a acumulação
de noções rudimentares e heteróclitas, e em que a qualidade é
inteiramente sacrificada à quantidade, tal como se produz por
toda a parte, no Mundo Moderno, por razões que explicarei mais
completamente a seguir: é sempre a dispersão na multiplicidade.
Haveria, a este respeito, muitas coisas a dizer acerca dos
malefícios do “ensino obrigatório”; mas este não é o lugar para
insistir nesse aspecto, e, para não sair do quadro traçado, contento-me em assinalar de passagem essa conseqüência especial
das teorias “igualitárias”, como um dos numerosos elementos de
desordem atuais.
Naturalmente, quando nos encontramos em presença de uma
idéia como a de “igualdade” ou como a de “progresso”, ou como os
outros “dogmas laicos” que quase todos os nossos contemporâneos aceitam cegamente, e a maior parte dos quais começou a se
formular claramente no decorrer do século 18, não nos é possível
admitir que tais idéias tenham nascido espontaneamente. Tratase de verdadeiras “sugestões” no sentido mais estrito desta palavra, que, aliás, não podiam produzir o seu efeito senão num meio
já preparado para recebê-las; elas não criaram inteiramente o
estado de espírito que caracteriza a época moderna, mas contribuíram largamente para o criar e desenvolver até um ponto que
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6. O caos social
Não pretendo neste estudo prender-me especialmente ao ponto
de vista social, que só nos interessa muito indiretamente, porque
representa apenas uma aplicação bastante longínqua dos princípios fundamentais e, por conseqüência, não é nesse domínio que
poderia começar uma recuperação do Mundo Moderno. Efetivamente, se essa recuperação fosse feita assim, começada ao contrário, quer dizer, partindo das conseqüências em vez de partir
dos princípios, faltar-lhe-ia forçosamente uma base séria e ela
seria ilusória. Nada de estável poderia jamais resultar daí e tudo
teria de recomeçar incessantemente, porque as pessoas teriam
esquecido o entendimento inicial acerca das verdades essenciais.
É por esse motivo que só nos é possível atribuir às contingências
políticas, mesmo dando a esta palavra o seu sentido mais lato, o
valor de simples sinais exteriores da mentalidade de uma época;
mas mesmo sob esse aspecto não podemos deixar passar inteiramente em silêncio as manifestações da desordem moderna no
domínio social propriamente dito.
Como foi dito há pouco, já ninguém se encontra, no presente
estado do Mundo ocidental, no lugar que lhe convém normalmente em virtude da sua própria natureza. É isso que exprimimos
ao dizer que as castas já não existem, porque a casta, entendida
no seu verdadeiro sentido tradicional, é simplesmente a própria
natureza individual, com todo o conjunto das aptidões especiais
que ela comporta e que predispõem cada homem ao cumprimento
desta ou daquela função determinada. Como o acesso a certas
funções já não se encontra submetido a qualquer regra legítima,
daí resulta, inevitavelmente, que cada um será levado a fazer seja
o que for e, muitas vezes, precisamente aquilo para o que se
encontra menos qualificado. O papel que desempenhará na sociedade será determinado não pelo acaso, que na realidade não
existe 24, mas pelo que pode dar a ilusão do acaso, ou seja, pela
confusão de todas as espécies de circunstâncias acidentais. O que
intervirá menos aí será precisamente o único fator que deveria
contar em semelhante caso, isto é, as diferenças de natureza que
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sem dúvida não teria alcançado sem elas. Se estas sugestões
desaparecessem, a mentalidade geral estaria muito perto de
mudar de orientação; é por isso que elas são tão cuidadosamente
sustentadas por todos aqueles que têm qualquer interesse em
manter a desordem, senão em agravá-la ainda mais, e é também
a razão pela qual, numa época em que se pretende submeter tudo
à discussão, elas são as únicas coisas que nunca é permitido discutir. É, aliás, difícil determinar exatamente o grau de sinceridade
daqueles que se fazem propagadores de semelhantes idéias, saber
em que medida certos homens chegam a agarrar-se às suas próprias mentiras e a sugestionar-se a si próprios sugestionando os
outros; e mesmo numa propaganda deste tipo aqueles que
desempenham um papel de enganados são muitas vezes os melhores instrumentos, porque lhe dão uma convicção que os outros
teriam alguma dificuldade em simular e que é facilmente contagiosa. Mas por detrás de tudo isso, e pelo menos na origem, é
necessária uma ação muito mais consciente, uma direção que só
pode provir de homens que sabem perfeitamente a que se referem
as idéias que eles assim põem a circular.
Falo de “idéias”, mas tal palavra só impropriamente pode ser
aplicada neste caso, porque é bem evidente que não se trata de
modo algum de idéias puras, nem mesmo de algo que pertença de
perto ou de longe à ordem intelectual. Pode-se dizer que são
idéias falsas, mas mais valeria ainda chamar-lhes “pseudo-idéias”
destinadas principalmente a provocar reações sentimentais, o que
é efetivamente o meio mais eficaz e mais fácil para agir sobre as
massas.
Neste aspecto, a palavra tem, aliás, uma importância maior do
que a noção que supostamente representa e, na sua maior parte,
os “ídolos” modernos não passam de palavras, porque se produz
neste caso esse singular fenômeno conhecido pelo nome de “verbalismo”, em que a sonoridade das palavras basta para dar a ilusão do pensamento. A influência que os oradores exercem sobre
as multidões é particularmente característica sob este aspecto, e
não há necessidade de estudá-la de muito perto para se dar conta
que se trata de um processo de sugestão comparável ao dos hipnotizadores.
Mas, sem estender mais estas considerações, voltemos às
conseqüências que traz consigo a negação de toda verdadeira hierarquia e notemos que, no estado atual das coisas, não apenas
um homem só cumpre a sua função própria em casos excepcionais e como por acidente – enquanto é o contrário que deveria
normalmente ser a exceção –, mas ainda acontece que o mesmo
homem seja chamado a exercer sucessivamente funções todas
elas diferentes, como se ele pudesse mudar de aptidões à sua
vontade. Isso pode parecer paradoxal numa época de "especialização” levada ao extremo, e, no entanto, é o que ocorre, sobretudo
na ordem política. Se a competência dos “especialistas” é muitas
vezes ilusória e, em todo o caso, limitada a um domínio muito
estreito, a crença nessa competência é, todavia, um fato e podemos perguntar como é possível que essa crença não desempenhe
qualquer papel quando se trata da carreira dos homens políticos,
em que a incompetência mais completa raramente é obstáculo. No
entanto, se refletimos nesse fato percebemos facilmente que não
há nisso nada de que nos devamos espantar, pois trata-se, em
suma, apenas do resultado muito natural da concepção “democrática”, em virtude da qual o poder vem de baixo e apóia-se
essencialmente sobre a maioria, o que tem necessariamente por
corolário a exclusão de toda verdadeira competência, porque a
competência é sempre uma superioridade pelo menos relativa e só
pode ser o apanágio de uma minoria.
Neste ponto serão úteis algumas explicações para fazer sobressair, por um lado, os sofismas que se escondem sob a idéia
“democrática” e, por outro lado, os laços que ligam essa mesma
idéia a todo o conjunto da mentalidade moderna. Dado o ponto de
vista em que me coloco, é quase supérfluo fazer notar que essas
observações serão formuladas fora de todas as questões de partidos e de todas as querelas políticas, às quais não pretendo me
misturar nem de perto nem de longe.
Encaro essas coisas de modo absolutamente desinteressado,
como o poderia fazer em relação a qualquer outro objeto de estudo, e procurando somente dar-me conta, tão nitidamente
quanto possível, de tudo o que está no fundo disto, o que é a condição necessária e suficiente para que se dissipem todas as ilusões que os nossos contemporâneos criam a este respeito. Também aí se trata verdadeiramente de uma “sugestão”, como afirmei
há pouco em relação a idéias um pouco diferentes, mas pelo menos conexas; e desde que se saiba que se trata apenas de uma
sugestão, desde que se compreenda como atua, então ela já não
se pode exercer. Contra coisas deste gênero, um exame um tanto
aprofundado e puramente “objetivo”, como se diz hoje na linguagem especial emprestada dos filósofos alemães, é bem mais eficaz
do que todas as declamações sentimentais e todas as polêmicas
de partido, que nada provam e nada mais são do que a expressão
de simples preferências individuais.
O argumento mais decisivo contra a “democracia” resume-se
em poucas palavras: o superior não pode emanar do inferior, porque o “mais” não pode sair do “menos”; isto é de um rigor mate-
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mático absoluto, contra o qual nada poderia prevalecer. Importa
notar que é precisamente o mesmo argumento que, aplicado
numa outra ordem, vale também contra o “materialismo”; nada
há de fortuito nesta concordância e as duas coisas são muito
mais estreitamente solidárias do que poderia parecer à primeira
vista. É demasiado evidente que o povo não pode conferir um
poder que ele próprio não possui; o verdadeiro poder só pode vir
do alto, e é por isso, diga-se de passagem, que só pode ser
legitimado pela sanção de alguma coisa superior à ordem social,
ou seja, uma autoridade espiritual. Se for de outra maneira, será
apenas uma contrafação de poder, um estado de fato que é injustificável por defeito de princípio, e em que não pode haver senão
desordem e confusão.
Esta inversão de toda hierarquia começa no momento em que
o poder temporal se quer tornar independente da autoridade espiritual e, a seguir, subordiná-la, pretendendo que sirva fins políticos. Há uma primeira usurpação que abre caminho a todas as
outras, e pode-se mostrar que, por exemplo, a realeza francesa,
desde o século 14, trabalhou inconscientemente ela mesma na
preparação da Revolução que a devia derrubar. Talvez eu tenha
algum dia ocasião de desenvolver como merecido este ponto de
vista, que, de momento, só posso indicar de modo secundário.
Se se define a “democracia” como o governo do povo por si
mesmo, trata-se de uma verdadeira impossibilidade, uma coisa
que nem mesmo pode ter simples existência de fato, e não mais
na nossa época do que em qualquer outra. Não devemos nos deixar enganar pelas palavras, e é contraditório admitir que os mesmos homens possam ser simultaneamente governantes e governados, visto que, para utilizar a linguagem aristotélica, um
mesmo ser não pode ser “em ato” e “em potência” ao mesmo
tempo e sob o mesmo aspecto. Há uma relação que supõe necessariamente dois termos em presença; não poderia haver governados se não houvesse também governantes, ainda que ilegítimos e
sem outro direito ao poder que aquele que atribuíram a si mesmos; mas a grande habilidade dos dirigentes, no Mundo Moderno,
é a de fazer crer ao povo que ele se governa a si próprio. E o povo
deixa-se persuadir de boa vontade, tanto mais porque se sente
lisonjeado com isso e é incapaz de refletir bastante para ver o que
há aí de impossível.
Foi para criar essa ilusão que se inventou o “sufrágio universal”: é a opinião da maioria que supostamente faz a lei, mas falta
perceber que a opinião é algo que se pode facilmente dirigir e modificar. Pode-se sempre, com o auxílio de sugestões apropriadas,
provocar nela correntes dirigidas neste ou naquele sentido deter-
minado; já não me lembro quem falou em “fabricar a opinião” e
esta expressão é completamente justa, embora se deva dizer que
não são sempre os dirigentes visíveis que têm realmente à sua
disposição os meios necessários para obter esse resultado.
Esta última observação dá-nos certamente a razão pela qual a
incompetência dos políticos mais destacados parece ter apenas
uma importância muito relativa; mas como não se trata aqui de
desmontar as engrenagens do que se poderia chamar de
“máquina governativa”. Limito-me a assinalar que essa mesma
incompetência oferece a vantagem de manter a ilusão que acabo
de mencionar: é somente nessas condições, efetivamente, que os
políticos em questão podem aparecer como a emanação da maioria, sendo assim feitos à sua imagem, porque a maioria, seja qual
for o assunto acerca do qual for chamada a dar a sua opinião, é
sempre constituída pelos incompetentes, cujo número é incomparavelmente maior do que o dos homens que são capazes de se
pronunciar com perfeito conhecimento de causa.
Isto leva-nos imediatamente a perceber em que é que está
essencialmente errada a idéia segundo a qual a maioria deve fazer
a lei – porque, mesmo se essa idéia, pela força das coisas, é sobretudo teórica e não pode corresponder a uma realidade efetiva,
resta, no entanto, explicar como é que ela pôde se implantar no
espírito moderno, quais são as tendências deste às quais ela corresponde e que ela satisfaz, pelo menos aparentemente. Pois bem,
seu defeito mais visível é exatamente aquele indicado há instantes: a opinião da maioria só pode ser a expressão da incompetência, quer esta resulte da falta de inteligência, ou da ignorância
pura e simples. Pode-se fazer intervir, a este respeito, certas
observações de “psicologia coletiva” e lembrar notadamente o fato
bastante conhecido de que, numa multidão, o conjunto das reações mentais que se produzem entre os indivíduos que a compõem leva à formação de uma espécie de resultante que não está
nem sequer no nível da média, mas no nível dos elementos mais
inferiores.
Haveria aqui lugar para fazer notar, por outro lado, como certos filósofos modernos quiseram transportar para a ordem intelectual a teoria “democrática” que faz prevalecer a opinião da
maioria, fazendo do que chamam de “consenso universal” um
pretenso “critério da verdade”. Mesmo supondo que haja efetivamente uma questão acerca da qual todos os homens estejam de
acordo, esse acordo não provaria nada em si mesmo; mas, além
disso, se essa unanimidade existisse realmente, o que é tanto
mais duvidoso quanto há sempre muitos homens que não têm
nenhuma opinião sobre qualquer questão e que nunca a defini-
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ram, seria em todo caso impossível verificá-la de fato, pelo que, o
que se invoca a favor de uma opinião e como sinal da sua verdade
reduz-se a ser apenas o consentimento do maior número, e ainda
restringindo-se a um meio forçosamente muito limitado no espaço
e no tempo. Neste domínio aparece ainda mais claramente que a
teoria carece de bases, porque é mais fácil subtrair-se à influência
do sentimento que, pelo contrário, entra em jogo quase inevitavelmente quanto se trata do domínio político, e essa influência é
um dos principais obstáculos à compreensão de certas coisas,
mesmo entre aqueles que teriam capacidade intelectual largamente suficiente para alcançar sem dificuldade essa compreensão. Os impulsos emotivos impedem a reflexão, e uma das mais
vulgares habilidades da política é a que consiste em tirar partido
dessa incompatibilidade.
Mas vamos mais ao fundo da questão: o que é exatamente essa
lei do maior número que invocam os governos modernos e da qual
pretendem extrair a sua única justificação? É simplesmente a lei
da matéria e da força bruta, a lei em virtude da qual uma massa,
arrastada pelo seu peso, esmaga tudo o que se encontra no seu
caminho; é aí que se encontra precisamente o ponto de junção
entre a concepção “democrática” e o “materialismo” e é também o
que faz que essa mesma concepção esteja tão estreitamente ligada
à mentalidade atual. É a inversão completa da ordem normal,
visto que é a proclamação da supremacia da multiplicidade como
tal, supremacia que, de fato, só existe no mundo material 25. Pelo
contrário, no mundo espiritual e mais simplesmente ainda na
ordem universal, é a unidade que está no cimo da hierarquia,
porque é ela o princípio de onde parte toda a multiplicidade 26;
mas quando o princípio é negado ou perdido de vista, só resta a
multiplicidade pura, que se identifica com a própria matéria. Por
outro lado, a alusão que acabo de fazer à gravidade dos corpos
implica mais do que uma simples comparação, porque a gravidade representa efetivamente, no domínio das forças físicas, no
sentido mais vulgar desta palavra, a tendência descendente e
compressiva, que traz para o ser uma limitação cada vez mais
estreita e que vai ao mesmo tempo no sentido da multiplicidade,
representada aqui por uma densidade cada vez maior 27. Essa
tendência é realmente a que marca a direção segundo a qual a
atividade humana se desenvolveu desde o começo da época moderna. Além disso, é caso para notar que a matéria, pelo seu
poder de divisão e de limitação, simultaneamente, é o que a doutrina escolástica chama de “princípio de individuação”, e isso liga
as considerações que expus agora ao que foi dito anteriormente a
respeito do individualismo: essa tendência referida por último é
também, poder-se-ia dizer, a tendência “individualizante”, aquela
segundo a qual se efetua o que a tradição judaico-cristã designa
como a “queda” dos seres que se separam da unidade 28.
A multiplicidade vista fora do seu princípio, e que desse modo
não pode mais ser remetida à unidade, é, na ordem social, a coletividade concebida como sendo simplesmente a soma aritmética
dos indivíduos que a compõem, e que com efeito é apenas isso
mesmo, quando não se encontra ligada a qualquer princípio
superior aos indivíduos. E a lei da coletividade, sob este aspecto,
é bem essa lei do maior número sobre a qual se funda a idéia
“democrática”.
Nesta altura devemos parar um instante para dissipar uma
confusão possível: falando do individualismo moderno, consideramos quase exclusivamente as suas manifestações na ordem
intelectual; poder-se-ia crer que, no que respeita à ordem social, o
caso é diferente. Com efeito, se tomamos esta palavra “individualismo” na sua acepção mais estreita, poderíamos ser tentados a
opor a coletividade ao indivíduo e a pensar que fatos tais como o
do papel cada vez mais invasor do Estado e o da complexidade
crescente das instituições sociais são a marca de uma tendência
contrária ao individualismo. Na realidade não é assim, porque a
coletividade, não sendo outra coisa senão a soma dos indivíduos,
não pode ser oposta a estes, aliás como o próprio Estado concebido à maneira moderna, ou seja, como simples representação da
massa, onde não se reflete qualquer princípio superior. Ora, é
precisamente na negação de todo princípio supra-individual que
consiste verdadeiramente o individualismo tal como o definimos.
Portanto, se há no domínio social conflitos entre diversas tendências todas elas pertencentes igualmente ao espírito moderno,
Basta ler S. Tomás de Aquino para ver que “numerus stat ex parte materiae”.
26 De uma ordem de realidade à outra, a analogia, aqui como em todos os casos
similares, aplica-se estritamente em sentido inverso.
singular que isso possa inicialmente parecer, é, na realidade, correlativa da divisão
e da dispersão na multiplicidade. O mesmo se passa com a uniformidade realizada
por baixo, ao nível mais inferior, segundo a concepção “igualitária”, e que está no
extremo oposto da unidade superior e principal.
27 Essa tendência é a que a doutrina hindu chama tamas e que ela assimila à
ignorância e à obscuridade: notar-se-á que, segundo o que foi dito acerca da aplicação da analogia, a compressão ou condensação de que se trata é o oposto da
concentração encarada na ordem espiritual ou intelectual, pelo que, por muito
28 É por isso que Dante coloca a residência simbólica de Lúcifer no centro da
Terra, isto é, no ponto onde convergem de todas as partes as forças da gravidade;
é, por esse ponto de vista, o inverso do centro da atração espiritual ou “celeste”
que é simbolizada pelo Sol na maior parte das doutrinas tradicionais.
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esses conflitos não existem entre o individualismo e outra coisa,
mas simplesmente entre as múltiplas variedades de que o próprio
individualismo é suscetível; e é fácil dar-se conta de que, na falta
de um princípio capaz de unificar realmente a multiplicidade, tais
conflitos devem ser mais numerosos e mais graves na nossa
época do que jamais o foram, porque quem diz individualismo diz
necessariamente divisão. E essa divisão, com o estado caótico que
origina, é a conseqüência fatal de uma civilização totalmente
material, visto que é a própria matéria que é a raiz da divisão e da
multiplicidade.
Dito isto, devo ainda insistir numa conseqüência imediata da
idéia "democrática", que é a negação da elite entendida na sua
única acepção legítima; não é propriamente “por acaso” que
“democracia” se opõe a “aristocracia”, esta última palavra designando precisamente, pelo menos quando é tomada no seu sentido
etimológico, o poder da elite. A elite, de qualquer modo, por definição só pode ser um pequeno número, e o seu poder, ou antes, a
sua autoridade, que vem apenas da sua superioridade intelectual,
nada tem em comum com a força numérica sobre a qual repousa
a “democracia”, cujo caráter essencial é o de sacrificar a minoria à
maioria, e também por isso mesmo, como dizíamos mais acima, a
qualidade à quantidade, e, portanto, a elite à massa. Assim, o
papel diretor de uma verdadeira elite e a sua própria existência,
porque ela desempenha forçosamente esse papel desde que
exista, são radicalmente incompatíveis com a “democracia”, que
está inteiramente ligada à concepção “igualitária”, quer dizer, à
negação de toda a hierarquia. O próprio fundo da idéia “democrática” é o de que qualquer indivíduo vale tanto como outro porque
são iguais numericamente, e embora só o possam ser numericamente.
Uma autêntica elite, como já disse, só pode ser intelectual; é
por isso que a “democracia” apenas se pode instaurar onde a pura
intelectualidade já não existe, o que é efetivamente o caso do
Mundo Moderno. Somente, como a igualdade é impossível de fato,
e como não se podem suprimir praticamente todas as diferenças
entre os homens, apesar de todos os esforços de nivelamento,
chega-se, por um curioso ilogismo, a ponto de inventar falsas elites, aliás, múltiplas, que pretendem substituir a única elite real.
Essas falsas elites são baseadas na consideração de quaisquer
superioridades, eminentemente relativas e contingentes, e sempre
de ordem puramente material. Podemo-nos aperceber facilmente
disso notando que a distinção social que mais conta no atual
estado de coisas é a que se baseia na fortuna, isto é, sobre uma
superioridade toda ela exterior e de ordem exclusivamente quan-
titativa – a única, em suma, que é conciliável com a “democracia”,
porque procede do mesmo ponto de vista. Acrescente-se, de resto,
que aqueles mesmos que se colocam atualmente como adversários deste estado de coisas, não fazendo intervir qualquer princípio de ordem superior, são incapazes de remediar eficazmente
uma tal desordem, se é que não se arriscam mesmo a agravá-la
ainda mais, indo sempre mais longe no mesmo sentido. A luta é
apenas travada entre variedades da “democracia”, acentuando
mais ou menos a tendência “igualitária”, que se encontra, como
foi dito, entre as variedades do individualismo, o que aliás vem
dar exatamente ao mesmo.
Parece-me que estas curtas reflexões são suficientes para
caracterizar o estado social do mundo contemporâneo e, ao
mesmo tempo, para mostrar que nesse domínio, como em todos
os outros, só há um único meio de sair do caos: a restauração da
intelectualidade e, por conseqüência, a reconstituição de uma
elite que atualmente deve ser encarada como inexistente no Ocidente, porque não se pode dar esse nome a alguns elementos isolados e sem coesão que representam apenas, de certo modo, possibilidades não desenvolvidas. Com efeito, esses elementos, em
geral, têm apenas tendências ou aspirações, que os levam sem
dúvida a reagir contra o espírito moderno, mas sem que a sua
influência se possa exercer de maneira efetiva. O que lhes falta é
o verdadeiro conhecimento, são os dados tradicionais que não se
improvisam, e que uma inteligência entregue a si própria, sobretudo em circunstâncias tão desfavoráveis em todos os aspectos,
não pode substituir senão muito imperfeitamente e em fraca medida. Não há, então, senão esforços dispersos e que muitas vezes
se perdem por falta de princípios e de direção doutrinal;
poder-se-ia dizer que o Mundo Moderno se defende pela sua própria dispersão, à qual os seus próprios adversários não conseguem subtrair-se.
Será assim enquanto estes se mantiverem no terreno “profano”, em que o espírito moderno tem vantagem evidente, visto
que é esse o seu campo próprio e exclusivo. Aliás, se eles se
mantêm aí é porque esse espírito tem ainda sobre eles, apesar de
tudo, forte domínio. É por isso que tantas pessoas, embora animadas de incontestável boa vontade, são incapazes de compreender que se deve necessariamente começar pelos princípios, e obstinam-se em gastar as suas forças neste ou naquele domínio
relativo, social ou de outro tipo, embora nada de real ou de duradouro possa ser feito nessas condições. A verdadeira elite, pelo
contrário, não teria que intervir diretamente nesses domínios nem
que se misturar com a ação exterior; ela dirigiria tudo por uma
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influência inapreensível para o homem comum e tanto mais profunda quanto menos visível fosse. Se pensarmos no poder das
sugestões de que falei há pouco, e que, no entanto, não supõem
qualquer verdadeira intelectualidade, podemos suspeitar o que
seria, com muito mais razão, o poder de uma influência como
essa, exercendo-se de maneira ainda mais escondida em virtude
da sua própria natureza, e buscando a sua origem na intelectualidade pura. Um poder que, aliás, em lugar de ser diminuído pela
divisão inerente à multiplicidade e pela fraqueza que comporta
tudo o que é mentira ou ilusão, seria, pelo contrário, intensificado
pela concentração na unidade principal e identificar-se-ia com a
própria força na verdade.
7. Uma civilização material
De tudo o que se disse parece resultar claramente que os
orientais têm plenamente razão quando censuram à civilização
ocidental moderna o fato de ser apenas uma civilização material:
foi realmente nesse sentido que ela se desenvolveu exclusivamente e, qualquer que seja o ponto de vista adotado, encontramo-nos sempre em presença das conseqüências mais ou menos diretas dessa materialização. Todavia, posso ainda completar
o que já disse a este respeito e, primeiro que tudo, explicar os
diferentes sentidos nos quais pode ser tomada uma palavra como
“materialismo”, porque se a empregarmos para caracterizar o
Mundo contemporâneo, alguns que não se julgam de modo algum
“materialistas”, sempre tendo a pretensão de ser muito “modernos”, não deixarão de protestar e de se persuadir que se trata de
uma verdadeira calúnia. Assim, um esclarecimento se impõe para
afastar desde já todos os equívocos que se poderiam produzir a
respeito.
É bastante significativo que a própria palavra “materialismo”
date apenas do século 18; foi inventada pelo filósofo Berkeley, que
se serviu dela para designar toda teoria que admite a existência
real da matéria; quase não existe necessidade de dizer que não é
disso que se trata aqui, em que essa existência não está de
maneira alguma em causa. Um pouco mais tarde, a mesma palavra tomou um sentido mais restrito, aquele que conservou desde
então: caracterizou uma concepção segundo a qual nada mais
existe senão a matéria e o que dela procede; e é o caso de notar a
novidade de uma tal concepção, constatando que ela é essencialmente um produto do espírito moderno e, portanto, corresponde
pelo menos a uma parte das tendências que são próprias deste 29.
Mas é sobretudo numa outra acepção, muito mais larga e
todavia muito clara, que tenho aqui falado de “materialismo”: o
que esta palavra representa é todo um estado de espírito, do qual
a concepção que acabo de definir é uma manifestação entre muitas outras, e que é em si mesmo independente de toda a teoria
filosófica. Tal estado de espírito é aquele que consiste em dar
29 Anteriormente ao séc. 18 houve teorias “mecanicistas”, do atomismo grego à
Física cartesiana; mas não se devem confundir “mecanicismo” e “materialismo”,
apesar de certas afinidades que puderam criar uma espécie de solidariedade de
fato entre um e outro, desde a aparição do “materialismo” propriamente dito.
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mais ou menos conscientemente a preponderância às coisas de
ordem material e às preocupações que se lhe referem, quer estas
preocupações mantenham ainda uma certa aparência especulativa, quer sejam puramente práticas; e não se pode contestar
seriamente que seja essa a mentalidade da imensa maioria dos
nossos contemporâneos.
Toda ciência “profana” que se desenvolveu no decurso dos últimos séculos vê apenas o estado do mundo sensível, encerrou-se
aí exclusivamente, e os seus métodos só são aplicáveis a esse
domínio; ora, esses métodos são proclamados “científicos” com
exclusão de qualquer outro, o que é o mesmo que negar toda ciência que não se relacione com as coisas materiais. Entre aqueles
que pensam assim e mesmo entre aqueles que se consagraram
especialmente a essas ciências, há todavia muitos que se recusariam a declarar-se “materialistas” e a aderir à teoria filosófica que
tem esse nome. Há mesmo alguns que fazem imediatamente uma
profissão de fé religiosa cuja sinceridade não é duvidosa; mas a
sua atitude “científica” não difere sensivelmente da dos materialistas confessos.
Muitas vezes se discutiu, do ponto de vista religioso, a questão
de saber se a ciência moderna devia ser denunciada como atéia
ou materialista, e na maior partes das vezes essa questão foi mal
posta. É bem certo que essa ciência não faz expressamente profissão de ateísmo ou de materialismo, que se limita a ignorar
intencionalmente certas coisas sem se pronunciar a seu respeito
por uma negação formal, como o fazem estes ou aqueles filósofos;
então, no que lhe diz respeito, só se pode falar de um materialismo de fato, que eu bem chamaria de materialismo prático. Mas
o mal é talvez ainda mais grave, porque é mais profundo e mais
extenso. Uma atitude filosófica pode ser uma coisa muito superficial, mesmo entre os filósofos “profissionais”; mais ainda, há espíritos que recuariam diante da negação mas que se acomodam em
uma completa indiferença. E a indiferença é o que há de mais
temível, porque para negar uma coisa é necessário ao menos pensar nela, por pouco que seja, enquanto neste caso chega-se a
ponto de não se pensar nela de modo algum. Quando se vê uma
ciência exclusivamente material apresentar-se como a única ciência possível, quando os homens se habituam a admitir como verdade indiscutível que não pode haver conhecimento válido fora
desta, quando toda a educação que lhes é dada tende a inculcar-lhes a superstição dessa ciência, que vem a ser o “cientificismo”, como é que esses homens poderiam não ser praticamente
materialistas, ou seja, não ter todas as suas preocupações viradas
para o lado da matéria?
Para os modernos, nada aparece existir fora do que se pode ver
e tocar, ou pelo menos, mesmo se admitem teoricamente que
pode existir qualquer outra coisa, apressam-se a declará-la não
apenas desconhecida mas também incognoscível, o que os dispensa de se ocuparem dela. Todavia, se há quem tente fazer
alguma coisa de um “outro mundo”, como para isso não faz apelo
senão à imaginação, representa-o segundo o modelo do mundo
terrestre e transporta para aí todas as condições de existência que
são próprias deste, incluindo o espaço e o tempo, até mesmo uma
espécie de “corporeidade". Mostrei em outro livro, entre as concepções espíritas, exemplos particularmente chocantes desse
gênero de representações grosseiramente materializadas; mas se
esse é um caso extremo, em que tal caráter é exagerado até à
caricatura, seria um erro acreditar que o Espiritismo e as seitas
que lhe são mais ou menos aparentadas têm o monopólio desse
gênero de coisas. De resto, de um modo mais geral, a intervenção
da imaginação nos domínios em que ela nada pode dar, e que
deveriam normalmente ser-lhe interditos, é um fato que mostra
muito nitidamente a incapacidade dos ocidentais modernos de se
elevarem acima do sensível.
Muitos não sabem estabelecer qualquer diferença entre “conceber” e "imaginar", e certos filósofos, como Kant, chegam ao ponto
de declarar “inconcebível” ou “impensável” tudo o que não é susceptível de representação. Também tudo o que se chama “espiritualismo” ou “idealismo” é, na maior parte das vezes, uma espécie
de materialismo transposto. Isso não é verdadeiro somente para o
que designamos pelo nome de “neo-espiritualismo”, mas também
para o próprio espiritualismo filosófico, que se considera, no
entanto, como o oposto do materialismo. Para dizer a verdade,
espiritualismo e materialismo, entendidos no sentido filosófico, só
se podem compreender um pelo outro: são simplesmente as duas
metades do dualismo cartesiano, cuja separação radical foi
transformada numa espécie de antagonismo, e desde então toda a
Filosofia oscila entre estes dois termos sem poder ultrapassá-los.
O espiritualismo, apesar do seu nome, nada tem em comum com
a espiritualidade; o seu debate com o materialismo só pode deixar
perfeitamente indiferentes aqueles que se situam num ponto de
vista superior, e que vêem que esses contrários, no fundo, estão
bem perto de ser simples equivalentes. Sua pretensa oposição
sobre muitos pontos se reduz a uma vulgar disputa de palavras.
Os modernos, em geral, não concebem outra ciência que não
seja a das coisas que se medem, se contam e se pesam – em
suma, das coisas materiais – porque é apenas a estas que se pode
aplicar o ponto de vista quantitativo; e a pretensão de reduzir a
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qualidade à quantidade é muito característica da ciência moderna. Neste sentido, chegou-se a crer que não existe ciência propriamente dita onde não for possível introduzir a medida, e que
não há leis científicas senão as que exprimem relações quantitativas. O “mecanicismo” de Descartes marcou o início dessa tendência, que não fez mais do que acentuar-se desde então, apesar do
malogro da Física cartesiana, porque não se encontra ligada a
uma teoria determinada, mas a uma concepção geral do conhecimento científico.
Pretende-se hoje aplicar a medida até no domínio psicológico,
que, no entanto, escapa a isso pela sua própria natureza. Não se
compreende, enfim, que a possibilidade da medida repousa sobre
uma propriedade inerente à matéria, e que é a sua indefinida
divisibilidade, a menos que se pense que essa propriedade se
estende a tudo o que existe, o que significa materializar todas as
coisas. É a matéria que é princípio de divisão e multiplicidade
pura; a predominância atribuída ao ponto de vista da quantidade,
que se encontra até no domínio social, como vimos, é então realmente materialismo no sentido que indiquei mais atrás, embora
não esteja necessariamente ligada ao materialismo filosófico, que
ela, aliás, precedeu no desenvolvimento das tendências do espírito
moderno. Não insistirei sobre o que há de ilegítimo em querer
remeter a qualidade à quantidade, nem sobre o que têm de insuficiente todas as tentativas de explicação que se ligam mais ou
menos ao tipo “mecanicista”; não é esse o meu propósito aqui e a
esse respeito só farei notar que, mesmo na ordem sensível, uma
ciência desse tipo tem somente poucas relações com a realidade,
cuja parte mais considerável lhe escapa necessariamente.
A propósito de “realidade” mencionarei outro fato, que se
arrisca a passar despercebido para muitos, mas que é muito
digno de nota como sinal do estado de espírito que estamos examinando: é que esse nome, na sua utilização corrente, é exclusivamente reservado à realidade sensível. Como a linguagem é a
expressão da mentalidade de um povo e de uma época, é necessário concluir daí que, para aqueles que falam assim, tudo o que
não cai no domínio dos sentidos é “irreal”, quer dizer, ilusório ou
mesmo inexistente. Pode ser que não tenham clara consciência
disso, mas essa convicção negativa existe no fundo de si mesmos
e, se afirmam o contrário, podemos estar bem seguros que, embora não se dêem conta, essa afirmação corresponde neles a um
nível muito mais exterior, talvez mesmo puramente verbal. No
caso de se julgar que eu exagero, bastará ver, por exemplo, ao que
se reduzem as pretensas convicções religiosas de muitas pessoas:
algumas noções aprendidas de cor, de modo escolar e maquinal,
que eles nunca assimilaram de modo algum e nas quais nem
sequer refletiram um mínimo, mas que conservam na sua memória e que repetem ocasionalmente porque fazem parte de um certo
formalismo, de uma atitude convencional que é tudo o que podem
entender pelo nome de religião. Já tratei dessa "minimização” da
religião, de que o “verbalismo” em questão representa um dos
últimos graus; é ela que explica que os chamados “crentes”, em
matéria de materialismo prático, não fiquem em nada atrás dos
“descrentes”. Voltaremos ainda a esse ponto, mas, antes disso,
terminemos as considerações que dizem respeito ao caráter materialista da ciência moderna, porque essa é uma questão que pede
para ser encarada sob diferentes aspectos.
Devemos novamente lembrar que as ciências modernas não
possuem um caráter de conhecimento desinteressado, e que,
mesmo para aqueles que crêem no seu valor especulativo, essa é
apenas uma máscara sob a qual se escondem preocupações
exclusivamente práticas, mas que permite manter a ilusão de
uma falsa intelectualidade. O próprio Descartes, ao constituir a
sua Física, pensava sobretudo em tirar dela uma mecânica, uma
medicina e uma moral; e, com a difusão do empirismo
anglo-saxônico, foi ainda outra coisa. De resto, o que faz o prestígio da ciência aos olhos do grande público são quase unicamente
os resultados práticos que ela permite realizar, porque ainda aí se
trata de coisas que se podem ver e tocar.
Eu mencionei que o “pragmatismo” representa a conclusão de
toda a Filosofia moderna e o seu último grau de abaixamento;
mas há também há muito tempo, fora da Filosofia, um “pragmatismo” difuso e não sistematizado, que é para o outro o que o
materialismo prático é para o materialismo teórico, e que se confunde com o que vulgarmente se chama “bom senso”. Este utilitarismo quase instintivo é, aliás, inseparável da tendência materialista: o “bom senso” consiste em não ultrapassar o horizonte
terrestre, assim como em não se ocupar de tudo o que não tem
interesse prático imediato. É para o bom senso, sobretudo, que só
o mundo sensível é “real” e que não há conhecimento que não
venha dos sentidos. E para ele esse conhecimento restrito só vale
na medida em que permite dar satisfação a necessidades materiais, e, por vezes, a um certo sentimentalismo, porque (devo dizer
claramente, com risco de chocar o “moralismo” contemporâneo) o
sentimento está, na realidade, muito perto da matéria. Em tudo
isso, não resta nenhum lugar para a inteligência, senão enquanto
ela consente em sujeitar-se à realização de fins práticos e a não
ser mais do que simples instrumento submetido às exigências da
parte inferior e corporal do indivíduo humano – ou, segundo uma
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singular expressão de Bergson, “uma ferramenta de fazer ferramentas”. O que faz o “pragmatismo” sob todas as suas formas é a
indiferença total em relação à verdade.
Nestas condições, a indústria não é apenas uma aplicação da
ciência, aplicação de que esta deveria, em si mesma, ser totalmente independente; ela torna-se como que a razão de ser e a
justificação da ciência, de modo que também aqui as relações
normais se encontram confundidas. O Mundo Moderno aplicou
todas as suas forças, mesmo quando pretendeu fazer ciência à
sua maneira, apenas ao desenvolvimento da indústria e do
“maquinismo”; e querendo, assim, dominar a matéria e domá-la
para seu uso, os homens não conseguiram mais do que fazer-se
seus escravos, como eu dizia no começo. Os homens não somente
limitaram as suas ambições pessoais a inventar e a construir
máquinas, mas acabaram também por se tornar, eles próprios,
verdadeiras máquinas.
Efetivamente, a “especialização”, tão elogiada por certos
sociólogos sob o nome de “divisão do trabalho”, não se impôs
somente aos sábios mas também aos técnicos e mesmo aos operários, e, para estes últimos, todo trabalho inteligente é por isso
mesmo tornado impossível. Bem diferentes dos artesãos de outrora, os operários não passam de servidores das máquinas e
fazem, por assim dizer, corpo com elas; devem repetir sem cessar,
de um modo totalmente mecânico, certos movimentos determinados, sempre os mesmos, e sempre executados da mesma maneira,
a fim de evitar a menor perda de tempo. Assim o querem, pelo
menos, os métodos americanos, que são encarados como representativos do mais alto grau de “progresso”. Com efeito, trata-se
unicamente de produzir o mais possível; a qualidade pouco os
preocupa, só a quantidade interessa; voltamos uma vez mais à
mesma verificação que já tínhamos feito noutros domínios: a civilização moderna é realmente o que se pode chamar de civilização
quantitativa, o que não é senão uma outra maneira de dizer que é
uma civilização material.
Se alguém se quiser convencer ainda mais desta verdade,
basta ver o papel imenso que hoje desempenham, tanto na existência dos povos como na dos indivíduos, os elementos de ordem
econômica: indústria, comércio, finanças. Parece que só isso
conta, o que está de acordo com o fato, já assinalado, de que a
única distinção social que subsistiu é a que se baseia na riqueza
material. Parece que o poder financeiro domina toda a política,
que a concorrência comercial exerce uma influência preponderante nas relações entre os povos. Talvez isso não passe de uma
aparência e essas coisas não sejam as verdadeiras causas, mas
simples meios de ação; mas a escolha de tais meios indica bem o
caráter da época à qual eles convêm. Aliás, os nossos contemporâneos estão persuadidos de que as circunstâncias econômicas
são quase os únicos fatores dos acontecimentos históricos, e imaginam mesmo que foi sempre assim. Neste sentido, chegou-se a
ponto de inventar uma teoria que pretende tudo explicar exclusivamente desse modo e que recebeu a denominação significativa
de “materialismo histórico".
Pode-se ver ainda aí o efeito de uma dessas sugestões às quais
fiz alusão mais atrás, que atuam tanto melhor quanto mais correspondem às tendências da mentalidade geral; e o efeito dessa
sugestão é o de que os meios econômicos acabam por determinar
realmente quase tudo o que se produz no domínio social. Sem
dúvida as massas sempre foram conduzidas de um modo ou de
outro, e poder-se-ia dizer que o seu papel histórico consiste
sobretudo em se deixarem conduzir, porque representam apenas
um elemento passivo, uma “matéria” no sentido aristotélico. Mas
hoje, para as conduzir, basta dispor de meios puramente materiais, desta vez no sentido vulgar da palavra, o que mostra bem o
grau de abaixamento da nossa época; e, ao mesmo tempo, faz-se
crer a essas massas que elas não são conduzidas, que agem
espontaneamente e se governam a si próprias, e o fato de que elas
acreditam nisso permite entrever até onde pode ir a sua falta de
inteligência.
Enquanto estamos a falar dos fatores econômicos, aproveitarei
para assinalar uma ilusão muito espalhada a esse respeito, e que
consiste em imaginar que as relações estabelecidas no terreno das
trocas comerciais podem servir para uma aproximação e entendimento entre os povos, quando, na realidade, têm exatamente o
efeito contrário. A matéria é essencialmente multiplicidade e divisão, portanto fonte de lutas e de conflitos; assim, quer se trate
dos povos ou dos indivíduos, o domínio econômico não é e não
pode ser senão o das rivalidades de interesses. Em particular, o
Ocidente não tem que contar com a indústria, nem sequer com a
ciência moderna, de que ela é inseparável, para encontrar um
terreno de entendimento com o Oriente; se os orientais chegassem a aceitar essa indústria como uma necessidade desagradável
e, aliás, transitória, porque para eles não poderia ser mais do que
isso, nunca seria senão como uma arma que lhes permitiria
resistir à invasão ocidental e salvaguardar a sua própria existência. Importa que se saiba bem que não pode ser de outro modo: os
orientais que se resignam a encarar uma concorrência econômica
em relação ao Ocidente, apesar da repugnância que eles sentem
por esse gênero de atividades, só o podem fazer com uma inten-
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ção, a de se desembaraçarem de uma dominação estranha que se
apóia apenas na força brutal, no poder material que a indústria
coloca precisamente à sua disposição. A violência chama a
violência, mas devemos reconhecer que não foram certamente os
orientais quem procurou a luta neste terreno.
De resto, fora da questão das relações do Oriente e do Ocidente, é fácil verificar que uma das mais notáveis conseqüências
do desenvolvimento industrial é o aperfeiçoamento incessante dos
engenhos de guerra e o aumento do seu poder destrutivo em proporções formidáveis. Apenas isto deveria bastar para aniquilar os
delírios “pacifistas” de certos admiradores do “progresso” moderno, mas os sonhadores e os “idealistas” são incorrigíveis e a sua
ingenuidade parece não ter limites. O “humanitarismo” que está
tanto em moda não merece seguramente ser levado a sério; mas é
estranho que se fale tanto do final das guerras numa época em
que elas fazem mais estragos do que nunca fizeram, não somente
devido à multiplicação dos meios de destruição, mas também
porque, em lugar de se desenrolarem entre exércitos pouco numerosos e compostos unicamente de soldados de profissão, lançam
todos os indivíduos uns contra os outros, indistintamente, incluindo os menos qualificados para desempenhar semelhante função.
Esse é mais um exemplo espantoso da confusão moderna, e é
verdadeiramente prodigioso, para quem quiser refletir nesse fato,
que se tenha chegado a considerar como muito natural um
“levantamento em massa” ou uma “mobilização geral”, que a idéia
de uma “nação em armas” se tenha podido impor a todos os espíritos, com poucas exceções. Podemos também ver aí um efeito da
crença apenas na força do número: é conforme ao caráter quantitativo da civilização moderna pôr em movimento enormes massas de combatentes; e, ao mesmo tempo, o “igualitarismo”
encontra aí a sua conta, assim como em instituições como as do
“ensino obrigatório” e do “sufrágio universal”. Acrescente-se que
estas guerras generalizadas foram tornadas possíveis por um
outro fenômeno especificamente moderno, que é o da constituição
das “nacionalidades”, conseqüência da destruição do regime feudal e, por outro lado, da ruptura simultânea da unidade superior
da “Cristandade” da Idade Média. Sem ir muito longe, podemos
igualmente notar, como circunstância agravante, o desconhecimento de uma autoridade espiritual que possa exercer normalmente uma arbitragem eficaz, por se encontrar, pela sua própria
natureza, acima de todos os conflitos de ordem política. A negação da autoridade espiritual é ainda materialismo prático; e
aqueles mesmos que pretendem reconhecer tal autoridade em
princípio negam-lhe de fato toda a influência real e todo o poder
de intervir no domínio social, exatamente do mesmo modo que
estabelecem uma divisão estanque entre a religião e as preocupações vulgares da sua existência. Quer se trate da vida pública ou
da vida privada, é realmente o mesmo estado de espírito que se
afirma nos dois casos.
Admitindo que o desenvolvimento material tenha algumas
vantagens, ainda que de um ponto de vista muito relativo, podemos nos perguntar, quando encaramos conseqüências como as
que acabam de ser assinaladas, se essas vantagens não são
muito ultrapassadas pelos inconvenientes. Nem sequer olhamos
tudo o que foi sacrificado a esse desenvolvimento exclusivo, e que
valia incomparavelmente mais; não mencionei os conhecimentos
superiores esquecidos, a intelectualidade destruída, a espiritualidade desaparecida; acredito que se tomarmos simplesmente a
civilização moderna em si mesma, e pusermos em paralelo as
vantagens e os inconvenientes do que ela produziu, o resultado
arrisca-se muito a ser negativo. As invenções que se vão multiplicando atualmente com uma rapidez sempre crescente são tanto
mais perigosas quanto põem em jogo forças cuja verdadeira natureza é inteiramente desconhecida daqueles mesmos que as utilizam; e essa ignorância é a melhor prova da nulidade da ciência
moderna sob o aspecto do valor explicativo – portanto enquanto
conhecimento – mesmo limitado apenas ao domínio físico.
Ao mesmo tempo, o fato de que as aplicações práticas não são
de maneira nenhuma impedidas por esse motivo mostra que essa
ciência está apenas orientada num sentido, que é a indústria que
constitui o único fim real de todas as suas pesquisas. Como certamente não deixará de aumentar ainda mais, em proporções
difíceis de determinar, o perigo das invenções, mesmo das que
não são expressamente destinadas a desempenhar um papel
funesto para a Humanidade, mas ainda assim causam catástrofes
e perturbações insuspeitadas no ambiente terrestre, é permitido
pensar, sem ser demasiado inverossímil, que é talvez por aí que o
Mundo Moderno chegará a destruir-se a si próprio, se for incapaz
de se deter nesse caminho enquanto ainda é tempo.
Mas, no que diz respeito às invenções modernas, não basta
fazer as reservas que se impõem em virtude do seu lado perigoso;
devemos ir ainda mais longe: os pretensos “benefícios” do que se
convencionou chamar “progresso”, e que se poderia efetivamente
consentir em designar assim se houvesse o cuidado de especificar
que se trata apenas de um progresso material, esses “benefícios”
tão elogiados não serão em grande parte ilusórios? Os homens da
nossa época pretendem com eles aumentar o seu “bem-estar”;
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mas penso por minha parte que o objetivo que assim propõem,
mesmo se fosse realmente alcançado, não merece que se lhe consagrem tantos esforços. Mas, além do mais, parece-me muito
contestável que seja alcançado.
Primeiro, há que se ter em conta o fato de que nem todos os
homens têm os mesmos gostos nem as mesmas necessidades;
que ainda há alguns, apesar de tudo, que desejariam escapar à
agitação moderna, à loucura da velocidade e não o podem fazer;
haverá quem ouse sustentar que, para esses, seja um “benefício”
impor-lhes o que é mais contrário à sua natureza? Dir-se-á que
esses homens são atualmente pouco numerosos, e por esse fato
seria permitido tê-los como quantidade desprezível; aí, como no
campo político, a maioria arroga-se o direito de esmagar as minorias, que, aos seus olhos, cometem evidentemente o erro de existir, visto que essa existência vai contra a mania “igualitária” da
uniformidade. Mas se considerarmos o conjunto da Humanidade,
em vez de nos limitarmos ao mundo ocidental, a questão muda de
aspecto: a maioria de há pouco não irá se tornar uma minoria?
Assim, não é o mesmo argumento que se faz valer neste caso e,
por uma estranha contradição, é em nome da sua “superioridade”
que estes “igualitários” querem impor a sua civilização ao resto do
Mundo e que vão levar a perturbação a povos que nada lhes pediram. E como essa “superioridade” só existe do ponto de vista material, é natural que ela se imponha pelos meios mais brutais.
Mas que não haja equívocos nesse ponto: se o grande público
admite de boa fé esses pretextos de “civilização”, há certamente
alguns para quem isso é simplesmente uma hipocrisia “moralista”, uma máscara do espírito de conquista e dos interesses
econômicos. Mas que singular época esta em que tantos homens
se deixam convencer que se faz a felicidade de um povo submetendo-o, retirando-lhe o que ele tem de mais precioso, ou seja, a
sua própria civilização, obrigando-o a adotar costumes e instituições que são feitas para outra raça, e constrangendo-o aos trabalhos mais penosos para adquirir coisas que lhe são perfeitamente inúteis! Porque é assim: o Ocidente moderno não pode
tolerar que haja homens que prefiram trabalhar menos e contentar-se com pouco para viver; como só a quantidade conta, e como
o que não cai sob o domínio dos sentidos é tido como inexistente,
admite que aquele que se não agita e que não produz materialmente só pode ser um “preguiçoso”. Mesmo sem falar das apreciações feitas correntemente acerca dos povos orientais, basta ver
como são julgadas as ordens contemplativas, e isso mesmo nos
meios chamados religiosos. Num tal mundo, não existe qualquer
lugar para a inteligência nem para tudo o que é puramente inte-
rior, porque são coisas que não se vêem nem se tocam, que não
se contam nem se pesam; não há lugar senão para a ação exterior
sob todas as suas formas, incluindo as mais desprovidas de qualquer significação. Assim, não nos devemos espantar que a mania
anglo-saxônica dos esportes ganhe cada dia mais terreno; o ideal
desse mundo é o “animal humano” que desenvolveu ao máximo a
sua força muscular. Os seus heróis são os atletas, mesmo que
sejam brutos; são esses que suscitam o entusiasmo popular, é
pelas suas proezas que as multidões se apaixonam. Um mundo
onde se podem ver tais coisas caiu realmente muito baixo e
parece muito perto do seu fim.
Todavia, coloquemo-nos por instantes no ponto de vista daqueles que situam o seu ideal no “bem-estar” material, e que a esse
título se congratulam com todas as melhorias trazidas à existência pelo “progresso” moderno; estarão eles bem seguros de não
serem enganados? Será verdade que os homens são hoje mais
felizes do que outrora, porque dispõem de meios de comunicação
mais rápidos ou outras coisas desse gênero, e porque têm uma
vida agitada e mais complicada? Parece-nos que é exatamente o
contrário, o desequilíbrio não pode ser a condição de uma verdadeira felicidade. Aliás, quanto mais um homem tem necessidades
mais se arrisca a faltar-lhe qualquer coisa e, por conseqüência, a
ser infeliz.
A civilização moderna visa multiplicar as necessidades artificiais e, como vimos anteriormente, ela criará sempre mais necessidades do que aquelas que poderá satisfazer porque, uma vez
que se entrou nesse caminho, é muito difícil parar e não existe
mesmo qualquer razão para se deter num ponto determinado. Os
homens não poderiam sentir qualquer sofrimento por serem privados de coisas que não existissem e nas quais nem sequer
nunca tivessem pensado; agora, pelo contrário, sofrem forçosamente se essas coisas lhes faltarem, visto que se habituaram a
olhá-las como necessárias e que, de fato, elas se lhes tornaram
necessárias. Assim, esforçam-se por todos os meios para adquirir
o que lhes pode dar todas as satisfações materiais, as únicas que
são capazes de apreciar: trata-se apenas de “ganhar dinheiro”
porque é isso que permite obter as coisas e, quanto mais se tem,
mais se quer ainda, porque se descobrem sempre novas necessidades, e essa paixão torna-se o único objetivo de toda a vida.
Daí a concorrência feroz que certos “evolucionistas” elevaram à
dignidade de lei cientifica sob o nome de “luta pela vida” e cuja
conseqüência lógica é que só os mais fortes, no sentido mais
estreitamente material dessa palavra, têm direito à existência.
Daí, também, a inveja e mesmo o ódio dirigido pelos desprovidos
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de riqueza aos que a possuem; como é que homens a quem se
pregaram as teorias “igualitárias” poderiam não se revoltar verificando à sua volta a desigualdade sob a forma que lhes deve ser
mais sensível, visto que é a da ordem mais grosseira? Se a civilização moderna um dia se desmoronasse, empurrada pelos apetites desordenados que fez nascer nas massas, seria preciso estar
muito cego para não ver nesse fato o justo castigo do seu vício
fundamental, ou, para falar sem nenhuma fraseologia moral, o
ricochete da sua própria ação no próprio domínio em que se exerceu.
É dito no Evangelho: “Aquele que se serve da espada morrerá
pela espada”; aquele que desencadeia as forças brutais da matéria perecerá esmagado pelas mesmas forças, das quais não é mais
senhor quando as pôs imprudentemente em movimento, e cuja
marcha fatal não pode gabar-se de reter indefinidamente. Forças
da natureza ou forças das massas humanas, ou ambas juntas,
pouco importa, são sempre as leis da matéria que entram em jogo
e que despedaçam inexoravelmente aquele que julgou poder
dominá-las sem se elevar ele próprio acima da matéria. E o Evangelho diz ainda: “Toda a casa dividida contra si mesma desabará”;
essa parábola também se aplica exatamente ao Mundo Moderno,
com a sua civilização material que só pode, pela sua própria
natureza, suscitar por toda a parte a luta e a divisão. A conclusão
é muito fácil de se tirar e não é necessário fazer apelo a outras
considerações para se poder, sem receio de engano, predizer para
este mundo um final trágico, a menos que uma mudança radical
sobrevenha em curto prazo.
Bem sei que alguns me censurarão por ter desprezado, ao falar
do materialismo da civilização moderna, certos elementos que
parecem constituir pelo menos uma atenuação desse materialismo. Com efeito, se não houvesse nenhuma atenuação, é muito
provável que essa civilização já tivesse perecido lamentavelmente,
portanto, não contesto a existência de tais elementos. Mas, ainda
neste caso, não devemos nos iludir a esse respeito: por um lado,
não é o caso de considerar aí tudo o que no campo filosófico se
apresenta com etiquetas como as de “espiritualismo” e de “idealismo”, e que não passam de “moralismo” e “sentimentalismo” nas
tendências contemporâneas.
Já me expliquei suficientemente a esse respeito, e lembro simplesmente que esses, para mim, são pontos de vista tão “profanos” como o do materialismo teórico ou prático, e que estão muito
menos longe deles do que poderia parecer. Por outro lado, se há
ainda restos de espiritualidade verdadeira, é apesar do espírito
moderno e contra ele que subsistiram até aqui. Esses restos de
espiritualidade, para tudo que é propriamente ocidental, só é possível encontrar na ordem religiosa; mas já vimos quanto a religião
está hoje diminuída, quanto os seus próprios fiéis têm dela uma
concepção estreita e medíocre, e a que ponto eliminaram dela
toda a intelectualidade, que é a verdadeira espiritualidade. Nessas
condições, se certas possibilidades ainda restam, elas só existem
em estado latente, e, na atualidade, o seu papel efetivo reduz-se a
bem pouca coisa. Nem por isso devemos deixar de admirar a vitalidade de uma tradição religiosa, que, mesmo reabsorvida numa
espécie de virtualidade, persiste, apesar de todos os esforços tentados há vários séculos para a sufocar e aniquilar.
Se soubéssemos refletir, veríamos que há nessa resistência
qualquer coisa que implica um poder “não humano”; mas ainda
uma vez essa Tradição não pertence ao Mundo Moderno, não é
um dos seus elementos constitutivos, é mesmo o contrário das
suas tendências e aspirações. Devo dizer francamente o seguinte,
e não procurar vãs conciliações: entre o espírito religioso, no verdadeiro sentido desta palavra, e o espírito moderno, só pode haver
antagonismo; qualquer compromisso enfraqueceria o primeiro e
beneficiaria o segundo, cuja hostilidade nem por isso seria
desarmada, pois só pode querer a destruição completa de tudo o
que na Humanidade reflete uma realidade superior a ela.
Diz-se que o Ocidente moderno é cristão, mas isso é um erro: o
espírito moderno é anti-cristão porque é essencialmente
anti-religioso. E é anti-religioso porque, generalizando ainda mais,
é anti-tradicional; é isso que constitui o seu caráter próprio e que
o faz ser o que é. Certamente qualquer coisa do Cristianismo passou para a civilização anti-cristã da nossa época, cujos representantes mais “avançados”, como eles dizem na sua linguagem
especial, não podem fazer de conta que não tenham recebido e
que não recebam ainda, involuntariamente e talvez inconscientemente, uma certa influência cristã, pelo menos indireta. Isso é
assim visto que uma ruptura com o passado, por muito radical
que seja, nunca pode ser absolutamente completa e de modo
suprimir toda a continuidade. Irei mesmo mais longe, afirmando
que tudo o que pode haver de válido no Mundo Moderno veio do
Cristianismo, ou pelo menos através do Cristianismo, que trouxe
com ele toda a herança das tradições anteriores, que a conservou
viva tanto quanto o permitiu o estado do Ocidente, e que continua
a conservar em si mesmo as possibilidades latentes; mas quem é
que hoje, mesmo entre aqueles que se afirmam cristãos, tem
ainda a consciência efetiva dessas possibilidades? Onde estão,
mesmo no Catolicismo, os homens que conhecem o sentido profundo da doutrina que professam exteriormente, que não se con-
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tentam em “crer” de uma maneira mais ou menos superficial e
mais pelo sentimento do que pela inteligência, mas que “sabem”
realmente a verdade da tradição religiosa que consideram como
sua? Eu quisera ter provas de que existem pelo menos alguns,
porque isso seria para o Ocidente a maior e talvez a única esperança de salvação; mas devo confessar que até agora não os
encontrei; devemos supor que, como certos sábios do Oriente,
eles se mantêm escondidos em algum retiro quase inacessível, ou
devemos renunciar definitivamente a essa última esperança?
O Ocidente foi cristão na Idade Média, mas não o é mais; ninguém deseja mais do que eu que ainda possa voltar a sê-lo, e que
isso aconteça num dia mais próximo do que faz pensar tudo o que
vemos à nossa volta; mas que ninguém se engane a esse respeito:
nesse dia, o Mundo Moderno terá desaparecido.
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8. A invasão ocidental
A desordem moderna nasceu no Ocidente e até estes últimos
anos tinha permanecido estritamente aí localizada; mas agora
produz-se um fato cuja gravidade não deve ser dissimulada: é que
essa desordem se estende por toda a parte e parece atingir mesmo
o Oriente. Certamente a invasão ocidental não é recente, mas até
aqui tinha-se limitado a uma dominação mais ou menos brutal
exercida sobre os outros povos e cujos efeitos estavam limitados
ao domínio político e econômico; apesar de todos os esforços de
uma propaganda que se revestiu de múltiplas formas, o espírito
oriental era impenetrável a todos os desvios e as antigas civilizações tradicionais subsistiam intactas.
Hoje, pelo contrário, há orientais que estão quase completamente “ocidentalizados”, que abandonaram a sua tradição para
adotar todas as aberrações do espírito moderno; e esses elementos, desviados graças ao ensino das universidades européias e
americanas, tornam-se, no seu próprio país, causa de perturbação e de agitação. Não convém, aliás, exagerar a sua importância,
pelo menos neste momento: no Ocidente imagina-se imediatamente que essas individualidades estridentes, mas pouco numerosas, representam o Oriente atual, quando, na realidade, a sua
ação não é muito extensa nem profunda; essa ilusão explica-se
facilmente porque não se conhecem os verdadeiros orientais que,
de resto, não procuram de nenhum modo fazer-se conhecer, e os
“modernistas”, se os podemos chamar assim, são os únicos que
se mostram no exterior, falam, escrevem e agitam-se de todas as
maneiras.
Não é menos verdade que esse movimento anti-tradicional
pode ganhar terreno, e devem-se encarar todas as eventualidades,
mesmo as mais desfavoráveis. O espírito tradicional já está se
recolhendo de certo modo sobre si próprio, os centros onde se
conserva integralmente tornam-se cada vez mais fechados e dificilmente acessíveis; e essa generalização da desordem corresponde bem ao que se deve produzir na fase final de Kali-Yuga.
Deve ser dito muito claramente: sendo o espírito moderno
coisa puramente ocidental, aqueles que são afetados por ele,
mesmo se forem orientais por nascimento, devem ser considerados, sob o aspecto da mentalidade, como ocidentais, porque toda
a idéia oriental lhes é inteiramente estranha e a sua ignorância a
respeito das doutrinas tradicionais é a única desculpa da sua
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hostilidade. O que pode parecer bastante singular e mesmo contraditório é que esses mesmos homens, que se fazem os auxiliares
do "ocidentalismo” do ponto de vista intelectual, ou mais exatamente contra toda a verdadeira intelectualidade, aparecem por
vezes como seus adversários no domínio político; e, no entanto,
no fundo, não há aí nada de que nos devamos espantar. São eles
que se esforçam por instituir no Oriente “nacionalismos” diversos,
e todo “nacionalismo” é necessariamente oposto ao espírito tradicional. Se eles querem combater a dominação estrangeira é pelos
mesmos métodos do Ocidente, do mesmo modo que os diversos
povos ocidentais lutam entre eles; e talvez seja isso que faz a sua
razão de ser. Com efeito, se as coisas chegaram a um ponto tal
que o emprego de semelhantes métodos se tornou inevitável, a
sua utilização só pode ser feita por elementos que romperam
todos os laço com a Tradição; pode então acontecer que esses
elementos sejam, assim, usados transitoriamente, e seguidamente
eliminados como os próprios ocidentais. Será, aliás, bastante
lógico que as idéias que estes espalharam se voltem contra eles,
porque elas só podem ser fatores de divisão e de ruína.
É por aí que a civilização moderna perecerá de uma maneira
ou de outra; pouco importa que seja pelo efeito das desavenças
entre os ocidentais, desavenças entre nações ou entre classes
sociais ou, como alguns pretendem, pelos ataques dos orientais
“ocidentalizados”, ou ainda na seqüência de um cataclismo provocado pelos “progressos da ciência”. Em todos os casos, o Mundo
ocidental só corre perigos pelos seus próprios erros e pelo que sai
de si próprio.
A única questão que se põe é esta: o Oriente terá que sofrer,
por causa do espírito moderno, apenas uma crise passageira e
superficial, ou será que o Ocidente irá arrastar na sua queda a
Humanidade inteira? Seria difícil obter atualmente uma resposta
baseada em verificações indubitáveis; os dois espíritos opostos
existem agora, um e outro, no Oriente, e a força espiritual inerente à Tradição e desconhecida pelos seus adversários pode triunfar da força material quando esta tiver desempenhado o seu
papel, e fazê-la desaparecer tal como a luz dissipa as trevas. Pode
ser dito mesmo que ela triunfará necessariamente, cedo ou tarde,
mas pode ser que antes disso haja um período de obscurecimento
completo. O espírito tradicional não pode morrer porque ele é, na
sua essência, superior à morte e à mudança; mas pode se retirar
inteiramente do mundo exterior, e então será verdadeiramente o
“fim de um mundo”. De acordo com tudo o que vimos, a realização dessa eventualidade num futuro relativamente próximo nada
teria de inverossímil. Na confusão que, tendo partido do Ocidente,
atinge atualmente o Oriente, poderíamos ver o “começo do fim”, o
sinal precursor do momento em que, segundo a tradição hindu, a
doutrina sagrada deve ser inteiramente encerrada numa concha,
para dela sair intacta na alvorada de um mundo novo.
Mas deixemos mais uma vez as antecipações e olhemos apenas
os acontecimentos atuais. O que é incontestável é que o Ocidente
invade tudo; a sua ação exerceu-se primeiramente no campo
material, aquele que estava imediatamente ao seu alcance, quer
pela conquista violenta, quer pelo comércio e monopólio dos
recursos de todos os povos, mas agora as coisas vão ainda mais
longe. Os ocidentais, sempre animados por essa necessidade de
proselitismo que lhes é tão particular, chegaram a fazer penetrar
entre os outros, numa certa medida, o seu espírito
anti-tradicional e materialista; e, enquanto a primeira forma de
invasão só atingia os corpos, esta envenena as inteligências e
mata a espiritualidade. Uma, aliás, preparou a outra e tornou-a
possível, de tal modo que só definitivamente pela força brutal é
que o Ocidente conseguiu impor-se por toda a parte, e não podia
ser de outra forma, porque é nisso que reside a única superioridade real da sua civilização, tão inferior segundo qualquer outro
ponto de vista.
A invasão ocidental é a invasão do materialismo sob todas as
suas formas e apenas isso; todos os disfarces mais ou menos
hipócritas, todos os pretextos “moralistas”, todas as declamações
“humanitárias”, todas as habilidades de uma propaganda que
sabe tornar-se insinuante para melhor alcançar seu objetivo de
destruição, nada podem contra essa verdade, que só poderia ser
contestada por ingênuos ou por aqueles que têm interesse nessa
obra, verdadeiramente “satânica” no sentido mais rigoroso da
palavra 30.
Examinemos agora uma coisa extraordinária: este momento
em que o Ocidente invade tudo é aquele que alguns escolhem
para denunciar, como um perigo que os enche de pavor, uma
pretensa penetração de idéias orientais nesse mesmo Ocidente; o
que será esta nova aberração? Apesar do meu desejo de fazer
apenas considerações de ordem geral, não posso me dispensar de
dizer aqui pelo menos algumas palavras a respeito de uma
“Defesa do Ocidente” publicada recentemente pelo sr. Henri Mas-
30 “Satã” em hebraico significa “adversário”, ou seja, aquele que confunde todas as
coisas e as toma, de certo modo, ao contrário; é o espírito de negação e de subversão, que se identifica com a tendência descendente ou “inferiorizante”, infernal no
sentido etimológico, aquela mesma que seguem os seres neste processo de materialização segundo o qual se efetua todo o desenvolvimento da civilização moderna.
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sis, e que é uma das manifestações mais características desse
estado de espírito. O referido livro está cheio de confusões e
mesmo de contradições e mostra, uma vez mais, como a maior
parte daqueles que desejariam reagir contra a desordem moderna
são pouco capazes de o fazer de uma maneira verdadeiramente
eficaz, porque não sabem mesmo muito bem o que têm que combater.
O autor, por vezes, nega ter querido atacar o verdadeiro Oriente; e se ele tivesse feito efetivamente uma crítica das fantasias
“pseudo-orientais”, isto é, dessas teorias puramente ocidentais
que se espalham com etiquetas enganadoras e que não passam
de produtos do desequilíbrio atual, eu só poderia aprová-lo inteiramente, tanto mais que eu mesmo já assinalei, antes dele, o
perigo real desse tipo de coisas, assim como a sua inutilidade do
ponto de vista intelectual. Mas, infelizmente, logo a seguir, ele
sente necessidade de atribuir ao Oriente concepções que não
valem mais do que essas; para o fazer, apóia-se em citações pedidas de empréstimo a alguns orientalistas mais ou menos “oficiais”
e em que as doutrinas orientais são, tal como acontece vulgarmente, deformadas até à caricatura. Que diria ele se alguém utilizasse o mesmo processo a respeito do Cristianismo e pretendesse
julgá-lo segundo os trabalhos dos “hipercríticos” universitários? É
exatamente o que ele faz em relação às doutrinas da Índia e da
China, com a circunstância agravante de que os ocidentais cujo
testemunho ele invoca não possuem o menor conhecimento direto
dessas doutrinas, enquanto os seus colegas que se ocupam do
Cristianismo devem conhecê-lo pelo menos numa certa medida,
mesmo que a sua hostilidade contra o que é religioso os impeça
de compreendê-lo verdadeiramente.
Aliás, devo dizer nesta altura que tive por vezes alguma dificuldade em fazer admitir pelos orientais que as exposições deste ou
daquele orientalista procediam de uma incompreensão pura e
simples, e não de um preconceito consciente e voluntário, de tal
modo se sente nelas essa mesma hostilidade que é inerente ao
espírito anti-tradicional; e eu perguntaria de bom grado ao sr.
Massis se ele se julga muito hábil ao atacar a Tradição nos outros
quando quer restaurá-la no seu próprio país. Falo de habilidade
porque, no fundo, toda a discussão é levada por ele para o campo
político. Para a intelectualidade pura, a única questão que se põe
é uma questão de verdade; mas este ponto de vista é, sem dúvida,
demasiado elevado e sereno para que os polemistas possam
encontrar nele satisfação, e duvido mesmo que, enquanto pole-
mistas, o cuidado com a verdade possa ocupar grande lugar nas
suas preocupações 31.
O sr. Massis refere-se ao que chama “propagandistas orientais”,
expressão que encerra em si própria uma contradição, porque o
espírito de propaganda, repito, é coisa toda ela ocidental; e só isso
já indica claramente que existe aí algum equivoco. De fato, entre
os propagandistas visados podemos distinguir dois grupos, o primeiro dos quais é constituído por puros ocidentais; seria verdadeiramente cômico, se isso não fosse o sinal da mais deplorável
ignorância das coisas do Oriente, ver que se faz figurar alemães e
russos entre os representantes do espírito oriental. O autor faz a
respeito deles observações entre as quais algumas são muito
justas; mas por que é que não os mostra como eles são realmente?
A este primeiro grupo acrescentaremos ainda os “teosofistas”
anglo-saxônicos e todos os inventores de outras seitas do mesmo
gênero, cuja terminologia oriental é apenas uma máscara destinada a impor-se aos ingênuos e aos mal informados, e que encobre idéias tão estranhas ao Oriente como caras ao Ocidente moderno. Esses são, aliás, mais perigosos que os simples filósofos,
em virtude das suas pretensões a um “esoterismo” que eles não
possuem mas que simulam fraudulentamente para atrair a eles
os espíritos que procuram outra coisa diferente das especulações
“profanas” e que, no meio do caos presente, não sabem onde se
dirigir. Espanta-me um pouco que o sr, Massis não diga quase
nada a esse respeito. Quanto ao segundo grupo, encontram-se aí
alguns desses orientais ocidentalizados de que falei há pouco e
que, tão ignorantes como os anteriores acerca das verdadeiras
idéias orientais, seriam incapazes de as espalhar no Ocidente,
supondo que tivessem essa intenção.
De resto, o fim que eles se propõem realmente é contrário a
esse, visto que se trata de destruir essas mesmas idéias no Oriente, e ao mesmo tempo apresentar aos ocidentais o seu Oriente
modernizado, acomodado às teorias que lhes foram ensinadas na
Europa ou na América. Verdadeiros agentes da mais nefasta de
todas as propagandas ocidentais, a que ataca diretamente a inte-
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31 Sei que o sr. Massis não desconhece minhas obras, mas abstém-se cuidadosamente de lhes fazer a menor alusão, porque elas iriam contra a sua tese; o processo carece, pelo menos, de franqueza. Penso, aliás, que seja melhor esse silêncio, que evita que eu tenha de ver misturadas em polêmicas desagradáveis coisas
que, pela sua natureza, devem permanecer acima de toda a discussão; há sempre
algo de penoso no espetáculo da incompreensão “profana”, embora a verdade da
doutrina sagrada seja seguramente, em si mesma, demasiado alta para sofrer os
seus ataques.
ligência, é para o Oriente que eles constituem um perigo, e não
para o Ocidente, do qual eles não passam de reflexo. Quanto aos
verdadeiros orientais, o sr. Massis não menciona um único, e
teria bastante dificuldade em fazê-lo porque certamente não
conhece nenhum; a impossibilidade em que ele se encontrava de
citar o nome de um oriental que não fosse ocidentalizado deve têlo feito refletir e compreender que os “propagandistas orientais”
são perfeitamente inexistentes.
Aliás, embora isso me obrigue a falar de mim, o que está fora
dos meus hábitos, devo declarar formalmente o seguinte: que eu
saiba, não há ninguém que tenha exposto no Ocidente idéias
orientais autênticas, salvo eu mesmo; e o fiz sempre exatamente
como o teria feito qualquer oriental que se encontrasse aí levado
pelas circunstâncias, ou seja, sem a menor intenção de “propaganda” ou de “vulgarização”, e unicamente para aqueles que são
capazes de compreender as doutrinas tais como elas são, sem que
haja lugar para as desnaturar sob pretexto de colocé-las ao seu
alcance.
Acrescento que, apesar da decadência da intelectualidade ocidental, aqueles que compreendem não são tão raros como poderíamos supor, embora continuem, evidentemente, a ser uma minoria. Uma tal empresa não é certamente do gênero daquelas que o
sr. Massis imagina, não ouso dizer para as necessidades da sua
causa, embora o caráter político do seu livro possa autorizar uma
tal expressão; para ser tão benevolente quanto possível, digo que
ele as imagina porque o seu espírito é perturbado pelo medo, que
faz nascer nele o pressentimento de uma ruína mais ou menos
próxima da civilização ocidental. Lamento que ele não tenha
sabido ver claramente onde se encontram as verdadeiras causas
susceptíveis de conduzir a essa ruína, embora lhe aconteça, por
vezes, dar provas de uma justa severidade em relação a certos
aspectos do Mundo Moderno. É exatamente isso que torna contínua a indecisão da sua tese: por um lado, não sabe exatamente
quais são os adversários que deveria combater, e, por outro lado,
o seu “tradicionalismo” deixa-o ignorante de tudo o que constitui
a própria essência da Tradição, que ele visivelmente confunde
com uma espécie de “conservantismo” político-religioso da ordem
mais exterior.
Eu disse que o espírito do sr. Massis é perturbado pelo medo; a
melhor prova disso está talvez na atitude extraordinária, e mesmo
inconcebível, que ele atribui aos seus pretensos “propagandistas
orientais”: estes estariam animados de uma raiva feroz em relação
ao Ocidente e seria para o prejudicar que eles se esforçariam em
lhe comunicar as suas próprias doutrinas – ou seja, em lhe doar o
que eles têm de mais precioso, o que constitui, de certo modo, a
própria substância do seu espírito! Perante tudo o que há de
contraditório numa tal hipótese, não posso me impedir de sentir
uma verdadeira estupefação: toda a tese penosamente construída
se abate instantaneamente e parece que o autor nem sequer se
apercebeu disso, porque não quero supor que ele tenha estado
consciente de uma tal inverosimilhança e tenha simplesmente
contado com a pouca clarividência dos seus leitores torná-la
aceita.
Não há necessidade de refletir nela muito longamente nem
muito profundamente para se dar conta de que, se há pessoas
que odeiam tanto o Ocidente, a primeira coisa que devem fazer é
guardar ciumentamente as suas doutrinas para si, e todos os
seus esforços devem ser feitos no sentido de proibir o acesso dos
ocidentais a elas; trata-se, aliás, de uma censura que por vezes se
tem dirigido aos ocidentais, com aparência de razão. No entanto,
a verdade é bem diferente: os representantes autênticos das doutrinas tradicionais não sentem ódio por ninguém, e a sua reserva
só tem uma causa – é que eles julgam perfeitamente inútil expor
certas verdades àqueles que são incapazes de as compreender.
Mas nunca se recusaram a revelá-las àqueles, qualquer que seja
a sua origem, que possuem as “qualificações” requeridas; será
erro seu se entre estes últimos existem muito poucos ocidentais?
E, por outro lado, se as massas orientais acabam por ser verdadeiramente hostis aos ocidentais, depois de os terem olhado por
muito tempo com indiferença, quem é o responsável? Será essa
elite que, toda dada à contemplação intelectual, se mantém resolutamente à margem de agitação exterior, ou não serão antes os
próprios ocidentais, que têm feito tudo o que é preciso para tornar
a sua presença odiosa e intolerável? Basta que a questão seja
assim posta, como deve ser, para que qualquer pessoa se sinta
capaz de lhe responder imediatamente. E, admitindo que os
orientais, que têm dado até aqui provas de uma inacreditável
paciência, queiram finalmente ser os senhores na sua própria
terra, quem poderia pensar sinceramente em censurá-los?
É verdade que quando certas paixões se intrometem as mesmas coisas podem, segundo as circunstâncias, ser apreciadas de
maneiras muito diversas, ou mesmo totalmente contrárias: assim,
quando a resistência a uma invasão estrangeira é feita por um
povo ocidental, ela é chamada de “patriotismo” e é digna de todos
os elogios; quando é feita por um povo oriental, é chamada de
“fanatismo” ou “xenofobia” e não merece mais do que ódio ou
desprezo. Aliás, não é em nome do “Direito”, da “Liberdade”, da
“Justiça” e da “Civilização” que os europeus pretendem impor por
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toda a parte o seu domínio e proibir a todos os homens que vivam
e pensem de maneira diferente da que lhes é própria? Deve-se
concordar que o “moralismo” é realmente uma coisa admirável, a
menos que se prefira simplesmente concluir, como eu, que, salvo
exceções tanto mais honrosas quanto são mais raras, no Ocidente
não há mais do que dois tipos de pessoas, bastante pouco interessantes umas e outras: os ingênuos, que se deixam levar por
grandes palavras e que acreditam na sua “missão civilizadora”,
inconscientes como estão da barbárie materialista em que estão
mergulhados, e os hábeis, que exploram esse estado de espírito
para satisfação dos seus instintos de violência e de cupidez.
De toda forma, o que há de certo nisto tudo é que os orientais
não ameaçam ninguém e não pensam invadir o Ocidente de uma
maneira nem de outra; de momento têm bastante que fazer
defendendo-se contra a opressão européia, que ameaça atingi-los
até no seu espírito, e é pelo menos curioso ver os agressores colocarem-se no lugar das vítimas.
Este esclarecimento era necessário, porque há certas coisas
que devem ser ditas; mas seria censurável insistir demasiado,
sendo a tese dos “defensores do Ocidente” demasiado frágil e
inconsistente. De resto, se abandonei por instantes minha habitual reserva no que diz respeito às individualidades para citar o
sr. Henri Massis, é sobretudo porque este representa, nestas circunstâncias, uma certa parte da mentalidade contemporânea que
devemos ter em conta neste estudo acerca da situação do Mundo
Moderno. Como é que este "tradicionalismo” de ordem inferior,
estreitamente limitado e incompreensivo, talvez mesmo bastante
artificial, poderia se opor verdadeira e eficazmente a um espírito
com o qual partilha tantos preconceitos? De uma ou outra parte
existe praticamente a mesma ignorância dos verdadeiros princípios, a mesma intenção de negar tudo o que ultrapassa um certo
horizonte, a mesma inaptidão em compreender a existência de
civilizações diferentes, a mesma superstição do classicismo
greco-latino. Essa reação insuficiente só tem interesse para nós
no sentido em que assimila uma certa insatisfação do estado
atual entre alguns dos nossos contemporâneos.
Dessa mesma insatisfação existem, aliás, outras manifestações
que seriam susceptíveis de ir mais longe se fossem bem dirigidas;
mas, de momento, tudo isso é muito caótico e é ainda muito difícil
dizer o que se conseguirá desembaraçar daí. Todavia, algumas
previsões a esse respeito talvez não sejam inteiramente inúteis; e
como elas se ligam estreitamente ao destino do Mundo atual,
poderão, ao mesmo tempo, servir de conclusões ao presente
estudo, na medida em que é permitido retirar daí conclusões sem
dar à ignorância “profana” ocasião de fazer ataques demasiado
fáceis, desenvolvendo imprudentemente considerações que seria
impossível justificar pelos meios vulgares. Não penso que tudo
pode ser dito indiferentemente, pelo menos quando se sai do
campo da pura doutrina para se chegar às aplicações; há, então,
certas reservas que se impõem e questões de oportunidade que
devem inevitavelmente ser consideradas. Mas essas reservas legítimas, e mesmo indispensáveis, nada têm em comum com certos
receios pueris que não passam de resultado de uma ignorância
comparável à de um homem que, segundo a proverbial expressão
hindu, “toma a corda por uma serpente”. Quer se queira quer
não, o que deve ser dito será dito à medida que as circunstâncias
o exigirem; nem os esforços interessados de uns, nem a hostilidade inconsciente de outros, poderão impedir que seja assim.
Por outro lado, a impaciência daqueles que, arrastados pela
pressa febril do Mundo Moderno, desejariam saber tudo de
repente, não poderá fazer com que certas coisas sejam conhecidas
no exterior mais cedo do que convém; mas estes últimos poderão,
pelo menos, consolar-se pensando que a marcha acelerada dos
acontecimentos lhes dará, sem dúvida, rápida satisfação. Que
esses possam então não ter que lamentar por terem se preparado
insuficientemente para receber um conhecimento que eles procuram muitas vezes com mais entusiasmo do que com verdadeiro
discernimento!
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O que eu quis, sobretudo, foi mostrar aqui como a aplicação
dos dados tradicionais permite resolver as questões que se colocam atualmente do modo mais imediato, explicar o estado atual
da Humanidade terrestre, e, ao mesmo tempo, julgar de acordo
com a verdade e não segundo regras convencionais ou preferências sentimentais, tudo o que constitui propriamente a civilização
moderna. Não tive a pretensão de esgotar o assunto, de tratá-lo
em todos os seus detalhes, nem de desenvolver completamente
todos os aspectos sem exceção.
Os princípios de que me inspiro constantemente obrigam-me,
de resto, a apresentar visões essencialmente sintéticas e não analíticas, como as do saber “profano”; mas essas visões, precisamente porque são sintéticas, vão muito mais longe no sentido de
uma verdadeira explicação do que qualquer análise, que só possui
realmente um simples valor descritivo. Em todo caso, penso ter
dito o bastante para permitir, àqueles que são capazes de compreender, que extraiam eles próprios, do que foi exposto, pelo
menos uma parte das conseqüências que estão aí contidas implicitamente. Devem convencer-se de que esse trabalho será muito
mais proveitoso do que uma leitura que não deixe lugar para a
reflexão e a meditação, para as quais, pelo contrário, eu quis
somente fornecer um ponto de partida apropriado, um apoio suficiente para se elevarem acima da vã multidão das opiniões individuais.
Resta-me dizer algumas palavras do que se poderia chamar de
alcance prático de um tal estudo; esse alcance, eu poderia desprezá-lo ou desinteressar-me dele se me tivesse restringido à Metafísica pura, em relação à qual toda aplicação é contingente e
acidental; mas, neste caso, é precisamente das aplicações que se
trata. Estas têm, aliás, fora de qualquer ponto de vista prático,
uma dupla razão de ser: são as conseqüências legítimas dos princípios e o desenvolvimento normal de uma doutrina que, sendo
una e universal, deve abraçar todas as ordens de realidade sem
exceção; e, ao mesmo tempo, são também, pelo menos para
alguns, um meio preparatório para ascenderem a um conhecimento superior, tal como expliquei a respeito da “ciência
sagrada”. Mas, por outro lado, não é proibido, quando se está no
domínio das aplicações, considerá-las também em si mesmas e no
seu valor próprio, desde que nunca se seja levado, por esse fato, a
perder de vista a sua ligação aos princípios. Este perigo é muito
real, visto que é daí que resulta a degenerescência que deu origem
à “ciência profana”, mas não existe para aqueles que sabem que
tudo deriva e depende inteiramente da pura intelectualidade, e
que aquilo que não procede dela conscientemente só pode ser
ilusório.
Como já repetimos muitas vezes, tudo deve começar pelo
conhecimento; e o que parece estar mais afastado da ordem prática acaba por ser, no entanto, o mais eficaz nessa mesma ordem,
porque, aí como em toda a parte, é aquilo sem o que é impossível
efetuar qualquer coisa que seja realmente válida, que seja diferente de uma agitação vã e superficial. É por isso que, para voltar
mais especialmente à questão que nos ocupa atualmente, pode-se
dizer que, se todos os homens compreendessem o que é verdadeiramente o Mundo Moderno, este deixaria imediatamente de existir
porque a sua existência, como a da ignorância e de tudo o que é
limitação, é puramente negativa: não é mais do que a negação da
verdade tradicional e supra-humana. Essa mudança produzir-se-ia, assim, sem qualquer catástrofe, o que parece quase impossível por qualquer outro meio; estarei então errado se afirmar
que um tal conhecimento é susceptível de conseqüências práticas
verdadeiramente incalculáveis? Mas, por outro lado, parece infelizmente bem difícil admitir que todos cheguem a esse conhecimento do qual a maior parte dos homens estão certamente mais
afastados hoje do que nunca. É verdade que isso não é de
nenhum modo necessário, porque basta uma elite, pouco numerosa mas fortemente constituída, para dar uma direção às massas, que obedeceriam às suas sugestões sem mesmo terem a
menor idéia da sua existência nem dos seus meios de ação; a
constituição efetiva dessa elite será ainda possível no Ocidente?
Não tenho a intenção de voltar a dizer tudo o que já tive ocasião de expor em outro lugar, no que diz respeito ao papel da elite
intelectual nas diferentes circunstâncias que se podem encarar
como possíveis num futuro mais ou menos iminente. Limitar-me-ei, portanto, a dizer o seguinte: qualquer que seja a maneira como se efetua a mudança que se pode chamar de passagem de um mundo para outro, mesmo que se trate, aliás, de
ciclos mais ou menos extensos, essa mudança, ainda que tenha
as aparências de uma brusca ruptura, nunca implica uma descontinuidade absoluta, porque existe um encadeamento causal
que liga todos os ciclos entre si. A elite a que me refiro, se chegasse a formar-se enquanto ainda é tempo, poderia preparar a
mudança de tal modo que ela se produzisse nas condições mais
favoráveis ou, ao menos, que a perturbação que inevitavelmente a
99
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9. Algumas conclusões
acompanhará fosse reduzida ao mínimo. Mas, mesmo se não for
assim, ela terá sempre outra tarefa ainda mais importante: a de
contribuir para a conservação do que deve sobreviver ao mundo
atual e servir para a edificação do mundo futuro. É evidente que
não se deve esperar que a descida tenha terminado para preparar
a nova subida, quando se sabe que esta ocorrerá necessariamente, e mesmo se não se pode evitar que a descida desemboque
em algum cataclismo. Assim, em todos os casos, o trabalho efetuado não será perdido: não o pode ser quanto aos benefícios que
a elite extrairá para si mesma, mas também não o será quanto
aos seus resultados ulteriores para o conjunto da Humanidade.
Agora vejamos como convém encarar as coisas: a elite existe
ainda nas civilizações orientais, e, mesmo admitindo que ela aí se
reduza cada vez mais diante da invasão moderna, subsistirá até
ao fim, apesar de tudo, porque é necessário que seja assim para
conservar o depósito da Tradição que não se poderia perder, e
para assegurar a transmissão de tudo o que deve ser conservado.
No Ocidente, pelo contrário, a elite já não existe atualmente;
pode-se, então, perguntar se ela voltará a se formar antes do final
da nossa época, se o mundo ocidental, apesar do seu desvio, terá
uma parte nessa conservação e nessa transmissão. Se não for
assim, a conseqüência é que a sua civilização deverá perecer toda
inteira, porque não haverá mais nela qualquer elemento utilizável
para o futuro, porque todos os traços do espírito tradicional terão
desaparecido. A questão assim posta pode ter apenas uma
importância muito secundária quanto ao resultado final, mas não
deixa de apresentar certo interesse num ponto de vista relativo,
que devo tomar em consideração pois que consenti em levar em
conta as condições particulares do período no qual vivemos.
Em princípio, eu poderia contentar-me em fazer notar que este
Mundo ocidental é, apesar de tudo, uma parte do conjunto do
qual parece ter-se destacado desde o começo dos tempos modernos, e que na última integração do ciclo todas as partes devem se
reencontrar de uma certa maneira. Mas isso não implica forçosamente uma restauração prévia da tradição ocidental, porque esta
pode ser conservada apenas no estado de possibilidade permanente na sua própria origem, fora da forma especial de que se
revestiu num momento determinado. Aliás, apresento este dado
apenas a título de indicação porque para compreendê-lo plenamente seria necessário fazer intervir a consideração das relações
da Tradição primordial e das tradições secundárias, o que não é
cabível fazer aqui. Seria esse o caso mais desfavorável para o
Mundo ocidental tomado em si mesmo, e o seu estado atual pode
fazer recear que esse caso seja o que se realiza efetivamente; toda-
via, dissemos que existem alguns sinais que permitem pensar que
nem toda esperança de uma solução melhor está definitivamente
perdida.
Existe atualmente no Ocidente um número maior do que se
supõe de homens que começam a tomar consciência do que falta
à sua civilização; se eles se encontram reduzidos a aspirações
imprecisas e a pesquisas muitas vezes estéreis, se lhes acontece
mesmo perderem-se completamente, é porque lhes faltam dados
reais que nada pode substituir, e porque não existe qualquer
organização que lhes possa fornecer a direção doutrinal necessária. Não falo, bem entendido, daqueles que puderam encontrar
essa direção nas tradições orientais e que, desse modo, encontram-se intelectualmente fora do mundo ocidental; esses, que
representam, aliás, uma exceção, não poderiam de nenhum modo
fazer parte integrante de uma elite ocidental. Na realidade, eles
são um prolongamento das elites orientais, o qual poderia se tornar um traço de união entre estas e a elite ocidental, no dia em
que esta última chegasse a constituir-se; mas ela não pode, por
definição, ser constituída senão por uma iniciativa propriamente
ocidental, e é aí que reside toda a dificuldade.
Essa iniciativa só é possível de duas maneiras: ou o Ocidente
encontra os meios em si mesmo para um regresso direto à sua
própria tradição, regresso que seria como um despertar espontâneo de possibilidades latentes; ou certos elementos ocidentais
efetuarão esse trabalho de restauração com a ajuda de um certo
conhecimento das doutrinas orientais, conhecimento que, todavia, não poderá ser absolutamente imediato para eles, visto que
devem permanecer ocidentais, mas que poderá ser obtido por
uma espécie de influência de segundo grau, exercendo-se através
de intermediários tais como aqueles aos quais fiz alusão há
pouco. A primeira destas duas hipóteses é muito pouco verossímil, porque ela implica a existência, no Ocidente, de pelo menos
um ponto em que o espírito tradicional se teria conservado integralmente, e eu disse que, apesar de certas afirmações, essa
existência parece extremamente duvidosa. É então a segunda
hipótese que convém examinar de perto.
Neste caso, haveria vantagem, embora isso não seja de uma
necessidade absoluta, em que a elite em formação pudesse tomar
como ponto de apoio uma organização ocidental que já tenha
existência efetiva. Ora, parece que não existe no Ocidente senão
uma única organização que possui caráter tradicional e que conserva uma doutrina susceptível de fornecer uma base apropriada
ao trabalho em questão: é a Igreja católica. Bastaria restituir à
doutrina desta, sem nada modificar da forma religiosa segundo a
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qual ela se apresenta no exterior, o sentido sagrado que ela tem
realmente em si mesma, mas do qual os seus atuais representantes parecem já não ter consciência, tanto quanto não a têm da
sua unidade essencial com as outras formas tradicionais; as duas
coisas, aliás, são inseparáveis uma da outra. Isso seria a realização do Catolicismo no verdadeiro sentido da palavra, que etimologicamente exprime a idéia de “universalidade”, coisa que esquecem um pouco aqueles que desejariam fazer dela a denominação
exclusiva de uma forma especial e puramente ocidental, sem
qualquer laço efetivo com as outras tradições.
Pode-se dizer que, no estado atual das coisas, o Catolicismo só
tem uma existência virtual, visto que não encontramos realmente
nele a consciência da universalidade; mas não é menos verdadeiro que a existência de uma organização que usa tal nome é a
indicação de uma base possível para uma restauração do espírito
tradicional na sua acepção completa, e isso tanto mais quanto na
Idade Média ela já serviu de suporte a esse espírito no Mundo
ocidental. Tratar-se-ia, em suma, de uma reconstituição do que
existiu antes do desvio moderno, com as adaptações necessárias
às condições de uma certa época; e se alguns se espantam ou
protestam contra semelhante idéia é que eles próprios estão, sem
o saber, e talvez contra a sua vontade, imbuídos do espírito
moderno a ponto de terem perdido completamente o sentido de
uma Tradição da qual só conservam a parte exterior. Importaria
saber se o formalismo da “letra”, que é também uma das variedades do “materialismo”, tal como definido mais atrás, abafou definitivamente a espiritualidade, ou se esta apenas se encontra obscurecida passageiramente, podendo ainda despertar no próprio
seio da organização existente; mas será apenas a seqüência dos
acontecimentos que permitirá dar conta disso.
Pode ser que esses acontecimentos cedo ou tarde imponham
como uma necessidade inelutável, aos dirigentes da Igreja católica, aquilo cuja importância do ponto de vista da intelectualidade
pura eles não compreenderiam diretamente. Seria seguramente
lamentável que fosse necessário, para os fazer refletir, circunstâncias tão contingentes como aquelas que dependem do domínio
político, considerado fora de todo princípio superior; mas deve-se
admitir que a ocasião de um desenvolvimento de possibilidades
latentes deve ser fornecida a cada um pelos meios que se encontram mais imediatamente ao alcance da sua compreensão atual.
É por isso que direi o seguinte: diante do agravamento de uma
desordem que se generaliza cada vez mais, é caso para fazer apelo
à união de todas as forças espirituais que ainda exercem uma
ação no mundo exterior, no Ocidente assim como no Oriente; e do
lado ocidental não vemos outra que não seja a Igreja católica. Se
esta pudesse entrar, por esse meio, em contato com os representantes das tradições ocidentais, só teríamos que nos felicitar
desse primeiro resultado, que poderia ser precisamente o ponto
de partida do que tenho em vista, porque certamente não se tardaria a perceber que um entendimento simplesmente exterior e
“diplomático” seria ilusório e não poderia ter as conseqüências
desejadas. Desse modo, seria necessário voltar ao ponto pelo qual
se deveria normalmente começar, ou seja, encarar o acordo sobre
os princípios, acordo de que a condição necessária e suficiente
seria que os representantes do Ocidente voltassem a estar conscientes desses princípios, como o estão ainda os do Oriente. O
verdadeiro entendimento, repito ainda uma vez, só se pode efetuar pelo alto e do interior, portanto no domínio que se pode
chamar indiferentemente intelectual ou espiritual, porque estas
duas palavras têm, no fundo, exatamente a mesma significação.
A seguir, e partindo daí, o entendimento estabelecer-se-ia também forçosamente em todos os domínios, assim como, quando se
coloca um princípio, só resta deduzir, ou melhor, “explicitar”
todas as conseqüências que se encontram aí implicadas. Só pode
haver um obstáculo a isso: é o proselitismo ocidental, que não se
decide a admitir que se deve, por vezes, ter “aliados” que não
sejam “súditos”; ou, para falar com mais exatidão, é a falta de
compreensão, da qual o proselitismo não passa de um efeito. Esse
obstáculo será ultrapassado? Se não o for, a elite, para se constituir, poderá contar apenas com o esforço daqueles que sejam
qualificados pela sua capacidade intelectual, fora de qualquer
meio definido e também, bem entendido, com o apoio do Oriente.
O seu trabalho se tornará mais difícil e a sua ação só poderá se
exercer em um prazo mais longo, visto que terá que criar por si
mesma todos os instrumentos, em lugar de os encontrar já preparados, como no outro caso; mas não penso, de modo algum, que
essas dificuldades, por muito grandes que possam ser, sejam de
natureza a impedir o que deve ser efetuado de uma maneira ou de
outra.
Considero então oportuno declarar ainda o seguinte: existem
desde agora, no Mundo ocidental, indícios seguros de um movimento que se mantém ainda impreciso, mas que pode e deve
mesmo normalmente conduzir à reconstituição de uma elite intelectual, a menos que um cataclismo aconteça depressa demais
para lhe permitir desenvolver-se até ao fim. Quase não há necessidade de lembrar que a Igreja teria todo o interesse, quanto ao
seu futuro papel, em adiantar-se de algum modo a um tal movimento, muito mais do que de deixá-lo efetuar-se sem ela e de ser
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obrigada a segui-lo tardiamente para manter uma influência que
ameaçaria escapar-lhe. Não é necessário colocar-se num ponto de
vista muito elevado para compreender que, em resumo, ela é
quem teria as maiores vantagens a retirar de uma tal atitude –
que, aliás, bem longe de exigir da sua parte o menor compromisso
de ordem doutrinal, teria, pelo contrário, o resultado de desembaraçá-la de toda infiltração do espírito moderno, e pela qual, além
do mais, nada seria modificado exteriormente. Seria um pouco
paradoxal ver o Catolicismo integral realizar-se sem o concurso da
Igreja católica, que se encontraria talvez, então, na singular obrigação de aceitar ser defendida contra assaltos mais terríveis que
aqueles que ela jamais sofreu, por homens que os seus dirigentes,
ou pelo menos aqueles que eles deixam falar em seu nome, teriam
primeiramente procurado desconsiderar, lançando sobre eles uma
suspeita mal fundada.
Por minha parte, eu lamentaria que fosse assim; mas se não se
quer que as coisas cheguem a esse ponto, é tempo, para aqueles
cuja situação lhes confere as mais graves responsabilidades, de
agir em pleno conhecimento de causa e de não mais permitir que
tentativas que podem ter conseqüências da mais alta importância
se arrisquem a ser detidas pela incompreensão ou pela malevolência de algumas individualidades mais ou menos subalternas, o
que já se viu, e o que mostra, ainda uma vez mais, a que ponto a
desordem reina hoje por toda a parte. Prevejo que ninguém fará
caso destes avisos que dou com toda a independência e de
maneira inteiramente desinteressada; pouco me importa, e nem
por isso deixarei de continuar a dizer o que deve ser dito, quando
for necessário e pela forma que julgar mais conveniente de acordo
com as circunstâncias. O que digo agora é apenas o resumo das
conclusões às quais fui conduzido por certas “experiências” muito
recentes, empreendidas, nem é preciso dizer, num terreno puramente intelectual. Não tenho, pelo menos neste momento, que
entrar a este respeito em detalhes que, de resto, seriam pouco
interessantes em si mesmos; mas posso afirmar que, no que
escrevi até aqui, não existe uma única palavra que não tenha sido
maduramente refletida. Que se saiba que seria perfeitamente
inútil procurar opor-lhe argúcias filosóficas que quero ignorar;
falo seriamente de coisas sérias, mas não tenho tempo a perder
em discussões verbais que não possuem qualquer interesse, e
pretendo permanecer inteiramente alheio a toda polêmica e a toda
querela de escola ou de partido, assim como recuso deixar que me
apliquem uma etiqueta ocidental qualquer, porque não existe
nenhuma que me convenha; quer isso agrade ou desagrade a
alguns, é assim, e nada poderia me fazer mudar de atitude a esse
respeito.
Devo agora fazer também uma advertência àqueles que, pela
sua aptidão a uma compreensão superior, se não pelo grau de
conhecimento que efetivamente alcançaram, parecem destinados
a tornar-se elementos da elite possível. Não é duvidoso que o espírito moderno, que é verdadeiramente “diabólico” em todos os sentidos dessa palavra, se esforce por todos os meios em impedir que
esses elementos, hoje isolados e dispersos, cheguem a adquirir a
coesão necessária para exercer uma ação real sobre a mentalidade geral. Minha advertência, então, àqueles que mais ou menos
completamente tomaram consciência do objetivo para o qual
devem tender os seus esforços, é de não se deixarem desviar pelas
dificuldades, quaisquer que elas sejam, que se erguerão diante
deles. Para os que não chegaram ainda ao ponto a partir do qual
uma direção infalível não permite mais que se afastem do verdadeiro caminho, os desvios mais graves são sempre de recear; a
maior prudência é então, necessária, e digo mesmo de boa vontade que ela deve ser levada até à desconfiança, porque o “adversário” que não foi definitivamente vencido até esta altura sabe
tomar as formas mais diversas e, por vezes, as mais inesperadas.
Acontece que aqueles que julgam ter escapado ao “materialismo” moderno são recapturados por coisas que, embora pareçam se lhe opor, são na realidade da mesma ordem. E, dado o
tipo de espírito dos ocidentais, convém a esse respeito colocá-los
mais particularmente em guarda contra a atração que podem
exercer sobre eles os “fenômenos” mais ou menos extraordinários;
é daí que provêm, em grande parte, os erros “neo-espiritualistas”
e é de prever que esse perigo se agrave ainda mais, porque as
forças obscuras que alimentam a desordem atual encontram aí
um dos mais poderosos meios de ação. É mesmo provável que já
não estejamos muito longe da época à qual se refere esta predição
evangélica que recordamos em outro texto: “levantar-se-ão falsos
cristos e falsos profetas que farão grandes prodígios e maravilhas
tais que, se isso fosse possível, até os eleitos seriam seduzidos”.
Os “eleitos” são, como a palavra indica, aqueles que fazem parte
da “elite” entendida na plenitude do seu verdadeiro sentido – e,
aliás, é por isso que mantenho esse termo "elite" apesar do abuso
que se faz dele no mundo “profano”. Esses, por virtude da “realização” interior à qual chegaram, não podem mais ser seduzidos,
mas não acontece o mesmo com aqueles que, tendo ainda em si
somente possibilidades de conhecimento, não são propriamente
senão “chamados”; e é por esse motivo que o Evangelho diz que
“muitos serão chamados, mas poucos serão escolhidos” (eleitos).
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Entramos num tempo em que se tornará particularmente difícil “separar o joio do trigo” e efetuar realmente o que os teólogos
chamam de “discernimento dos espíritos”, em virtude das manifestações desordenadas que só farão intensificar-se e multiplicar-se, e também em virtude da falta de verdadeiro conhecimento
entre aqueles cuja função normal deveria ser a de guiar os outros,
e que hoje são, muitas vezes, “guias cegos”. Ver-se-á então se, em
tais circunstâncias, as sutilezas dialéticas são de alguma utilidade, e se é uma “filosofia”, ainda que seja a melhor possível, que
bastará para deter o desencadear dos “poderes infernais”. Essa é
ainda uma ilusão contra a qual alguns têm que se defender, porque há muitas pessoas que, ignorando o que é a intelectualidade
pura, imaginam que um conhecimento simplesmente filosófico –
que, mesmo no caso mais favorável, mal é uma sombra do verdadeiro conhecimento, – é capaz de dar remédio para tudo e de efetuar a retificação da mentalidade contemporânea, como há também quem julgue encontrar na própria ciência moderna um meio
de se elevar a verdades superiores, quando essa ciência se baseia
precisamente sobre a negação dessas verdades.
Todas essas ilusões são causas de desvio; muitos esforços são,
por esse motivo, efetuados em pura perda e é assim que muitos
daqueles que desejariam sinceramente reagir contra o espírito
moderno são reduzidos à impotência porque, não tendo sabido
encontrar os princípios essenciais, sem os quais toda ação é absolutamente vã, deixaram-se arrastar para impasses dos quais já
não lhes é possível sair.
Aqueles que hão de chegar a vencer todos esses obstáculos, e a
triunfar da hostilidade de um meio oposto a toda espiritualidade,
serão, sem dúvida, pouco numerosos; mas ainda desta vez não é
o número que importa, porque nos encontramos num campo em
que as leis são diferentes das da matéria. Não é, então, caso para
desesperar; e mesmo que não houvesse nenhuma esperança de
alcançar um resultado sensível antes que o Mundo Moderno
soçobre nalguma catástrofe, essa não seria uma razão válida para
não empreender uma obra cujo alcance real se estende muito
para lá da época atual. Aqueles que estariam tentados a ceder ao
desencorajamento devem pensar que nada do que é efetuado
nesta ordem jamais se poderá perder; que a desordem, o erro e a
obscuridade não podem levar a melhor senão aparentemente e de
maneira somente momentânea; que todos os desequilíbrios parciais e transitórios devem necessariamente concorrer para o
grande equilíbrio total; e que, finalmente, nada poderia prevalecer
contra o poder da verdade. A sua divisa deve ser aquela que ado-
taram, outrora, certas organizações iniciáticas do Ocidente:
"Vincit omnia Veritas” 32.
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“A Verdade tudo vence”.
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