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LARP: Jogo e Experiência Vivida

2019

Este estudo reúne autores e conteúdos interdisciplinares, para o entendimento da prática de um tipo de jogo, o Larp, como uma atividade imersiva e sob a ótica das performances culturais. A importância deste estudo se dá ao fato de haver carência de material científico que crie as conexões entre os estudos do Larp e das performances. Para isso, a seleção e pesquisa das referências são baseadas em revisões para se perceber a relação de pensamentos entre autores de maneira dialética e histórico-cultural. Dessa maneira, o trabalho buscou compreender o Larp como uma prática recreativa e artística para preencher a carência de material. Portanto, uma revisão bibliográfica constituída pelo materialismo histórico e dialético. Os resultados colhidos dessas conexões foram a percepção e conceitos sobre fenômenos emocionais em ações performáticas. Nas considerações finais, o caminho escolhido contribuiu para uma relação crítica de como as teorias estão para além da instrumentalização do objeto. Deste modo, permitindo que o estudo continue avançando mediante os contextos históricos e culturais observados dentro de futuras perspectivas.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS MESTRADO PERFORMANCES CULTURAIS INTERDISCIPLINAR Raoni Julian Pablo dos Santos Larp: Jogo e Experiência Vivida Linha de Pesquisa: Teorias e Práticas da Performance GOIÂNIA - GOIÁS 2019 sD sistema de bibliotecas ufg ,,·­ PRPG PIIO-AUTOIIIA Of l'OUAAOOAÇAo UFG TERMO DE CIÊNCIA E DE AUTORIZAÇÃO PARA DISPONIBILIZAR VERSÕES ELETRÔNICAS DE TESES E DISSERTAÇÕES NA BIBLIOTECA DIGITAL DA UFG Na qualidade de titular dos direitos de autor, autorizo a Universidade Federal de Goiás (UFG) a disponibilizar, gratuitamente, por meio da Biblioteca Digital de Teses e Dissertações (BDTD/UFG), regulamentada pela Resolução CEPEC nº 832/2007, sem ressarcimento dos direitos autorais, de acordo com a Lei nº 9610/98, o documento conforme permissões assinaladas abaixo, para fins de leitura, impressão e/ou download, a título de divulgação da produção científica brasileira, a partir desta data. 1. Identificação do material bibliográfico: [X] Dissertação ( ] Tese 2. Identificação da Tese ou Dissertação: Nome completo do autor: Raoni Julian Pablo dos Santos Título do trabalho: Larp: Jogo e Experiência Vivida 3. Informações de acesso ao documento: Concorda com a liberação total do documento [X] SIM [ ] NÃ01 Havendo concordância com a disponibilização eletrônica, toma-se imprescindível o envio do(s) arquivo(s) em formato digital PDF da tese ou dissertação. �ry_/4.$� �tura do(a) autor(a)2 Assinatur 1 Data: 07 I 02 I 2020 Neste caso o documento será embargado por até um ano a partir da data de defesa. A extensão deste prazo suscita justificativa junto à coordenação do curso. Os dados do documento não serão disponibilizados durante o período de embargo. Casos de embargo: - Solicitação de registro de patente; - Submissão de artigo em revista científica; - Publicação como capítulo de livro; - Publicação da dissertação/tese em livro. 2 A assinatura deve ser escaneada. Raoni Julian Pablo dos Santos LARP: JOGO E EXPERIÊNCIA VIVIDA Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Performances Culturais Interdisciplinar da Universidade Federal de Goiás para obtenção do título de Mestre em Performances Culturais. Linha de Pesquisa: Teorias e Práticas da Performance Orientador: Professor Doutor Daniel Christino GOIÂNIA - GOIÁS 2019 Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor, através do Programa de Geração Automática do Sistema de Bibliotecas da UFG. dos Santos, Raoni Julian Pablo Larp [manuscrito] : Jogo e Experiência Vivida / Raoni Julian Pablo dos Santos. - 2019. LXXXV, 88 f. Orientador: Prof. Dr. Daniel Christino. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Ciências Sociais (FCS), Programa de Pós-Graduação em Performances Culturais, Goiânia, 2019. Bibliografia. Inclui lista de figuras. 1. Larp. 2. Perezhivanie. 3. Performances. 4. RPG. 5. Vigotski. I. Christino, Daniel, orient. II. Título. CDU 316 RAONI JULIAN PABLO DOS SANTOS “LARP: JOGO E EXPERIÊNCIA VIVIDA” Trabalho final de curso de mestrado __________ e _________ em _____ de fevereiro de dois mil e vinte, pela banca examinadora constituída pelos professores: __________________________________ Prof. Dr. Daniel Christino (Orientador e Presidente da Banca) (UFG – FCS) __________________________________ Prof.ª Dr.ª Sainy Coelho Borges Veloso (UFG – FCS) __________________________________ Prof.ª Dr.ª Gisele Toassa (UFG – FE) __________________________________ Prof. Dr. Lisandro Magalhães Nogueira (UFG - FCS) Agradecimentos Agradeço ao Prof. Dr. Daniel Christino por ter aceitado meu projeto e ter me orientado durante a pesquisa. Agradeço à Prof.ª Dr.ª Sainy Veloso por ter me motivado desde a graduação e acreditado em mim, diante de tantas dificuldades. Agradeço à Prof.ª Dr.ª Edilene Dias Matos por ter me apresentado uma perspectiva poética sobre os estudos de cultura e sociedade. Agradeço ao Luiz Falcão e Tadeu Iuama por terem me apresentado perspectivas a respeito do Larp que ainda eram desconhecidas para mim. Agradeço à minha falecida tia Lusivane Nascimento dos Santos, vítima de uma condição de saúde nos últimos dois meses antes de eu encerrar este trabalho, mas que contribuiu desde a minha infância, me possibilitando conhecer os jogos citados, bem como me ajudando no primeiro ano de estudo e possibilitando meu retorno a Salvador. Agradeço aos grandes amigos Charles Lopes Cunha e Caio Lopes, com quem dividi não apenas as frustrações, mas maior parte das experiências desde nossa infância até este estudo. Agradeço imensamente a todas as amigas e amigos que estiveram presentes em cada momento durante essa etapa da minha vida. Agradeço à minha mãe, por toda atenção e cuidado diante das minhas dificuldades pessoais e por contribuir em minha formação humana. Agradeço especialmente ao amigo de longa data e Prof. Me. Wagner Luiz Schmit, por ter me motivado a continuar a formação e estudar objetos de tamanha complexidade, provocando reflexões sobre as várias inquietações da vida particular e acadêmica, assim como toda paciência e confiança por todas as vezes que pensei em desistir. RESUMO Este estudo reúne autores e conteúdos interdisciplinares, para o entendimento da prática de um tipo de jogo, o Larp, como uma atividade imersiva e sob a ótica das performances culturais. A importância deste estudo se dá ao fato de haver carência de material científico que crie as conexões entre os estudos do Larp e das performances. Para isso, a seleção e pesquisa das referências são baseadas em revisões para se perceber a relação de pensamentos entre autores de maneira dialética e histórico-cultural. Dessa maneira, o trabalho buscou compreender o Larp como uma prática recreativa e artística para preencher a carência de material. Portanto, uma revisão bibliográfica constituída pelo materialismo histórico e dialético. Os resultados colhidos dessas conexões foram a percepção e conceitos sobre fenômenos emocionais em ações performáticas. Nas considerações finais, o caminho escolhido contribuiu para uma relação crítica de como as teorias estão para além da instrumentalização do objeto. Deste modo, permitindo que o estudo continue avançando mediante os contextos históricos e culturais observados dentro de futuras perspectivas. Palavras-chave: Larp, Perezhivanie, Performances, RPG, Vigotski. ABSTRACT This study brings together authors and interdisciplinary content, to understand the practice of a type of game, Larp, as an immersive activity and from the perspective of cultural performances. The importance of this study is due to the lack of scientific material that creates the connections between Larp studies and performances. For this, the selection and research of references are based on reviews to understand the relationship of thoughts among authors in a dialectical and historical-cultural way. In this way, the work sought to understand Larp as a recreational and artistic practice to fill the shortage of material. Therefore, a bibliographic review constituted by historical and dialectical materialism was selected to make this research possible. The results obtained from these connections were the perception and concepts about emotional phenomena in performance actions. In the final considerations, the chosen path contributed to a critical relationship of how the theories are beyond instrumentalizing the object. This allows the studies to continue advancing through the historical and cultural contexts observed within future perspectives. Keywords: Larp, Perezhivanie, Performances, RPG, Vigotski. Lista de Figuras Figura 1. Jogo de tabuleiro Hero Quest ............................................................................................ 16 Figura 2. Primeiro livro didático de RPG ........................................................................................... 17 Figura 3. Livro de RPG do tipo Aventura-solo ................................................................................... 18 Figura 4. Revistas de RPG .................................................................................................................. 18 Figura 5. Magic: The Gathering ......................................................................................................... 19 Figura 6. Manual de RPG................................................................................................................... 19 Figura 7. Círculo de transformação ................................................................................................... 31 Figura 8. Sete Esferas de Schechner ................................................................................................. 38 Figura 9. Larp - Koikoi........................................................................................................................ 73 Figura 10. Larp - Koikoi...................................................................................................................... 74 Figura 11. Larp - Koikoi...................................................................................................................... 75 Figura 12. Larp - Koikoi...................................................................................................................... 76 Figura 13. Larp - Koikoi...................................................................................................................... 77 SUMÁRIO RESUMO ..................................................................................................................................... 5 ABSTRACT ................................................................................................................................. 6 SUMÁRIO .................................................................................................................................... 8 INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 12 2. 1.1. TRAJETÓRIA PESSOAL...................................................................................... 15 1.2. CONTATO COM LARP ............................................................................................... 20 PERFORMANCE.............................................................................................................. 22 2. JOGOS .................................................................................................................................. 33 2.1. RPG ......................................................................................................................... 41 2.2. LARP ........................................................................................................................ 48 3. CONCEITOS DE EXPERIÊNCIA ...................................................................................... 60 4. EXPERIÊNCIAS EM LARP................................................................................................ 67 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 79 REFERÊNCIAS ........................................................................................................................ 83 INTRODUÇÃO Este trabalho, de modo geral, está direcionado para um entendimento do Live Action Role-Playing (LARP), como um tipo de performance cultural. O principal questionamento deste estudo foi sobre como reconhecê-lo e explicá-lo, diante de suas características e como elas foram abordadas de diferentes maneiras por uma variedade de autores selecionados no desenvolvimento da pesquisa. Uma busca sobre quais fenômenos configuram essa prática com nome não muito familiar, sendo social, e como esta atividade envolve emocionalmente seus praticantes. Por já apresentar uma relação popularizada do título enquanto nome próprio, o termo “Larp” não será apresentado no decorrer do texto enquanto siglas. Para iniciar esse reconhecimento, foram necessárias as considerações a respeito da dinâmica de estudos já realizados acerca do que é Larp e sua historicidade dentro das sociedades que o praticam. Estas, com suas respectivas tradições, rituais, hábitos, costumes e possibilidades, formam uma trama de saberes e experiências que adentram na transdisciplinaridade. Com isso, a busca por um conhecimento cada vez mais palpável para os estudos de jogos: a ludologia – o campo no qual esta atividade está logicamente localizada – poderia tornar-se interpretável como performances culturais que difere da performance de uma máquina ou a performance de atletas, por exemplo. O ponto de partida, portanto, iniciou-se com dúvidas sobre o que é Larp para além de experiências pessoais e como este pode ser estudado dentro dos cânones acadêmicos. Portanto, Larp é, antes de tudo, um jogo de interpretar personagens, um jogo de faz de conta. É comum que o Larp seja comparado com as brincadeiras que realizamos na infância, sob a companhia de familiares e amigos, quando a imaginação permite transformar sofás em penhascos e o piso em lava de vulcão ou que a sala de casa seja um consultório médico. Larp é um jogo de representação em que todos são atores de uma experiência desenvolvida durante o jogo, sem roteiro, mas com um tema escolhido como regra implícita. É comum que Larps sistematizados se aproximem de práticas rituais e teatralizadas, como o uso de figurino, cenografia, sonoplastia e recursos comuns a uma estrutura desenvolvida para performatizá-lo. Há uma ampla distinção entre os campos abordados pela transdisciplinaridade dos estudos de performance. Todavia, quando se remete à 12 cultura, há um filtro que direciona o envolvimento desta área de conhecimento com interações sociais e referenciais simbólicos. A importância deste estudo se dá ao fato de que maior parte do que é desenvolvido, acerca do Larp dentro da academia, costuma ser instrumentalizado, como aplicação do Larp para o preparo de atores, aprendizado de alguma disciplina etc. A falta de material revisado, conectando as referências selecionadas, tanto dentro dos estudos de jogos como de performance, é o principal motivo pelo qual esta pesquisa se desenvolve pelos modelos trabalhados nela. Os Role-Playing Games (RPG) são jogos que dividem espaços entre a cultura pop midiatizada e a cultura popular das brincadeiras de faz de conta. Tabuleiros, miniaturas, dados, livros se tornaram comuns para identificação de alguns tipos de jogos presentes no “guarda-chuva” que forma a sigla, englobando artes visuais baseadas em fantasias, fossem elas medievais ou futuristas, o consumo de músicas temáticas, vestuário e acessórios que passaram a compor a identidade de quem joga. Mas um tipo específico RPG tem particularidades que dialogam performaticamente como arte, como linguagem, como jogo: o Larp, o principal objeto desta pesquisa. Desta forma, o objetivo geral deste estudo é preencher parte da carência de material que tratam do tema, estudando o Larp por ele mesmo, sendo uma prática recreativa e artística. A metodologia para o desenvolvimento desta pesquisa consistiu de utilizar como método as trajetórias de exposição fenomenológica e conceitual do RPG (Role-playing Games) e do LARP, que estarão necessariamente articuladas com a trajetória pessoal do próprio autor, sem perder a objetividade exigida ao trabalho acadêmico. A experiência individual do pesquisador, em estudos de performance desta natureza é, ao mesmo tempo, tanto uma necessidade metodológica quanto um imperativo de honestidade intelectual. Minha experiência como jogador de RPG e de LARP é meu principal guia na leitura dos textos e no exercício de encontrar pertinências entres estes textos teóricos no campo da performance e meu objeto de estudo. Assim boa parte do esforço de realização deste trabalho encontra-se exatamente em medir a distância exata entre a experiência subjetiva e a análise conceitual do fenômeno em sua materialidade, construindo uma teia de novos sentidos que permitem avanços teóricos e performáticos. 13 Na introdução, um breve apontamento sobre o Larp e uma trajetória pessoal de como cheguei a ele como objeto de pesquisa, dentro dos estudos de performance. No primeiro capítulo há um entendimento do que é performance, partindo dos conceitos de Richard Schechner, Erving Goffman e Victor Turner. No segundo capítulo, uma abordagem sobre as definições de jogos sob o olhar de Johann Huizinga, Roger Caillois e Franz Mäyrä, tendo um levantamento histórico dos jogos de RPG por Michael Tresca e chegando ao Larp, com as definições de Luiz Falcão, Jaakko Stenros e Markus Montola. No terceiro capítulo, uma abordagem sobre os conceitos de experiência, novamente sob a ótica dos autores dos estudos de performance, especialmente Turner, mas tendo foco na visão de Lev Vigotski, criador do conceito que explica o fenômeno, de mesmo nome, perezhivanie. No capítulo quatro, os estudos se direcionam para as experiências em Larp, partindo das discussões abordadas por Mike Pohjola, Jaakko Stenros e Erik Fatland. 14 1.1. TRAJETÓRIA PESSOAL O tRPG (Tabletop Roleplaying Game), modalidade de RPG popularmente conhecida como RPG de Mesa, foi o principal meio pelo qual o Larp foi massivamente disseminado na cultura pop lúdica, especialmente pela indústria editorial. O tRPG, como tipo de RPG mais popular no Brasil, ao lado dos atuais jogos digitais, é um tipo jogo cujas regras são indexadas e documentadas em livros conhecidos como módulos básicos, normalmente o conjunto de regras que compõem a estética de um tipo de RPG é chamado de sistema. O contato obtido com esse tipo de jogo desde a infância e como foi praticado em certos contextos formou uma trajetória e interesses até este presente estudo e como a investigação mediada por experiências pessoais permitiram uma observação crítica das definições de performance, este tipo de performance formou e motivou um repertório cultural pessoal. Assim como a maioria das pessoas que jogam Larp, meu contato com a prática foi mediado pelo tRPG, card games (jogos temáticos de cartas ilustradas) e board games (jogos de tabuleiro). O primeiro contato foi com o jogo de tabuleiro Hero Quest1 (Figura 1), com um tema de fantasia, terror e aventura baseado em mitos de mortos-vivos, seres mágicos e ausência de tecnologia avançadas, motivando jogadores a resolver conflitos com o mínimo de recursos, dadas as regras comuns a esse tipo de jogo. LUDOPEDIA. Hero Quest foi um jogo criado pela Milton Bradley Company (fundada por Milton Bradley, vendida para a Hasbro em 1984 e posteriormente incorporada pela mesma) juntamente com a Games Workshop em 1989 numa tentativa de aproximar jogos de tabuleiro ao estilo dos jogos de RPG. (...) Heroquest foi criado seguindo esta linha de raciocínio, mas simplificando as regras para se tornar adaptável aos jogadores de tabuleiro. Heroquest foi inicialmente lançado em 1989 no Reino Unido e apenas 1 ano depois foi lançado nos EUA. O jogo veio a ser lançado no Brasil apenas em 1994 pela Estrela (...). Disponível em: <https://www.ludopedia.com.br/jogo/heroquest>. Acesso em Jun. 2018. 1 15 Figura 1. Jogo de tabuleiro Hero Quest Fonte: Dias, 20172. Posteriormente, ao passar a consumir este tipo de mídia, me deparei com uma nova descoberta: “livros-jogo” - Livros no formato de bolso com uma narrativa cuja interação com leitores se baseiam em aventuras-solo (de um único jogador), com decisões diversas que avançam para outras páginas até atingir uma gama de encerramentos da aventura. Especificamente, o contato com os livros-jogo de RPG (Figura 2), da Editora Scipione. Estes livros eram parte complementar dos livros didáticos de professores da rede pública de ensino, dos quais cada um tinha uma temática referente à disciplina da qual o livro didático se tratava. Por exemplo: O livro-jogo de ficção científica, em um futuro super tecnológico, acompanhava o livro de química e física do professor. Disponível em: <https://medium.com/@douglaspicapau/de-hero-quest-at%C3%A9-j%C3%B3iada-alma-362ef18261f3> Acesso em: 28 jul. 2018. 2 16 Figura 2. Primeiro livro didático de RPG Fonte: Rios e Gonçalves, 19993. O segundo contato com este tipo de mídia se deu por uma frequência em bibliotecas e livrarias, desde a infância. No caso, o livro Cidadela do Caos4 (Figura 3), e revistas especializadas, como a Dragão Brasil (Figura 4), naquele momento da Editora Trama. O contato com este material mediou o consumo de outros produtos, como os jogos de carta Magic: The Gathering5 (Figura 5) e livros tradicionais de tRPG (Figura 6). Disponível em: < https://seboemnomedarosa.blogspot.com/2015/05/jogod-de-rpg-6-serieportugues-em.html> Acesso em: 28 Jul. 2018. 4 The Citadel of Chaos (A Cidadela do Caos em português) é o segundo livro-jogo da coleção Fighting Fantasy (que no Brasil e em Portugal recebeu o nome de Aventuras Fantásticas), escrito por Steve Jackson e ilustrado por Russ Nicholson publicado originalmente em 1983 pela Puffin Books, em 2002, foi republicado pela Wizard Books. Foi o primeiro livro-jogo da série a ser publicado no Brasil pela editora Marques Saraiva. (Fonte: Wikipedia) 3 WIKIPEDIA. Magic: the Gathering, M: TG, MTG ou simplesmente Magic, é um jogo de cartas colecionáveis (TCG, Trading Card Game) baseado em turnos, criado por Richard Garfield, no qual os jogadores utilizam um baralho de cartas construído de acordo com o seu modo individual de jogo para tentar vencer o baralho adversário. Disponível em: < https://pt.wikipedia.org/wiki/Magic:_The_Gathering>. Acesso em: Jun. 2019. 5 17 Figura 3. Livro de RPG do tipo Aventura-solo Fonte: NerdsVsNerds, 20136. Figura 4. Revista de RPG Fonte: Garotas Geeks, 20167 Disponível em: < http://www.nerdsvsnerds.com/2013/06/inserts-escolha-sua-aventura-ou.html/> Acesso em: 28 Jul. 2018. 7 Disponível em: < http://www.garotasgeeks.com/direto-tunel-tempo-revista-dragao-brasil/> Acesso em: 28 Jul. 2018. 6 18 Figura 5. Magic: The Gathering Fonte: Autor. Figura 6. Manual de RPG Fonte: Autor. Uma vez experimentando estas mídias, ao frequentar lojas especializadas e eventos, foi iminente a expansão da rede de contatos e amizades, possibilitando novas experiências, como o Larp. 19 1.2. CONTATO COM LARP Desde a infância, brincadeiras de faz de conta sempre foram um grande atrativo a quem escreve este estudo, permitindo que o contato com os jogos de RPG abrisse maior relação com esses tipos de prática. Então, atividades plurais como contação de histórias ou simulações ganharam novos sentidos e maneira pela qual essas experiências passaram a contribuir geraram curiosidades sobre um curso oferecido pelo corpo de bombeiros para brigada de incêndio, realizado durante a graduação de design gráfico, em 2008, mesmo ano em que ocorreu um evento internacional chamado Dia-D RPG, promovido por grandes editoras para reunir jogadores e demais consumidores de jogos de tabuleiro, cartas, tRPG, Larp e outros jogos. Uma vez participando de redes sociais já populares na época, o contato com grupos de outro estado ampliou a rede de amizades e o contato com mais experiências, assim facilitando um deslocamento realizado para a cidade de Londrina, na região sul do Brasil. Meio a esta ocasião, houve o primeiro contato com um pesquisador de grande importância para este atual estudo: o psicólogo Wagner Schmit, que já pesquisava jogos de RPG (SCHMIT, 2008), sob a ótica vigotskiana, bem como o fenômeno e conceito perezhivanie (SCHMIT, 2018) e a importância deste objeto para a compreensão de práticas lúdicas e artísticas como parte da formação da consciência. Para Schmit (2018), Vigotski formou o conceito para explicar o fenômeno e a aplicação do estudo deste fenômeno contribui enquanto método para facilitar a compreensão da formação de personalidade quando se experimenta vivências, como nas brincadeiras de faz de conta, jogos de RPG e principalmente o Larp. A palavra perezhivanie (lê-se perejivâne) deriva do idioma russo, diversas vezes traduzida como experiência emocional. Mas, para definir o que é perezhivanie, precisamos identificar perezhivanie o sentido dado à palavra em seu determinado contexto. No artigo Perezhivanie as a Phenomenon and a Concept: Questions on Clarification and Methodological Meditations, de 2016, Nikolai Veresov (2016, p. 2) explica a definição do fenômeno perezhivanie a partir dos textos originais do Vigotski de 1931, editados por Veer e Valsiner (1994, pg. 340-341): Essa definição foi retirada de um Dicionário Psicológico e reflete o significado tradicional clássico do termo perezhivanie como existia na psicologia da época. Esse significado abrange uma variedade de fenômenos psicológicos; é uma noção, uma definição fenomenológica. No entanto, o importante é que a mesma palavra possa significar um processo (ato, atividade) e um conteúdo; em outras palavras, perezhivanie é ‘Como 20 estou experimentando algo’ e ‘O que estou experimentando’. Por exemplo, em The Problem of Environment (1994), Vygotsky define perezhivanie como “como uma criança se torna consciente, interpreta e se relaciona emocionalmente com um certo evento” Veresov (2016), em seguida, no seu mesmo artigo, também explica brevemente a definição do conceito Perezhivanie, tendo como base a mesma leitura do texto The Problem of the Enviroment, nas palavras do Vigotski (1994) de que “perezhivanie é um conceito que nos permite estudar o papel e a influência do ambiente no desenvolvimento psicológico das crianças pela análise das leis do desenvolvimento”. Em reforço, Veresov (2016, p. 2) pontua a maneira radical de como perezhivanie ganha uma abordagem bem diferente quando apresentada como conceito, pois: Em primeiro lugar, perezhivanie é apresentada como um conceito, não como uma noção ou uma definição. Em segundo lugar, é apresentada em relação ao processo de desenvolvimento. Em terceiro lugar, está relacionada com o papel do ambiente no desenvolvimento. E, finalmente, tem uma forte referência às leis psicológicas do desenvolvimento. De acordo com Veresov (2016), ao estudar perezhivanie como fenômeno em diversas etapas da sua vida, muito da dedicação de Vigotski se deu com o trabalho teatral desenvolvido pelo dramaturgo Stanislavski. Stanislavski costuma ser conhecido por seus exercícios imersivos para performance teatral. A aproximação entre uma prática totalmente performática da arte, como o teatro, passa a aprofundar o assunto do estudo trazido até esta etapa. Logo, para observar as similaridades presentes nestas práticas e no Larp, é necessário um entendimento do que é performance, para não haver confusão sobre como as terminologias são aplicadas, bem como as definições de ritual, fenômenos de transporte e transformação, liminaridade e como os jogos são localizados dentro dos estudos de performance. A importância do contato de Vigotski com Stanislavski se dá também na relação de como autores do campo da performance vão analisar fenômenos de experiência, transporte e transformação sob o ponto de vista da dramatização. Os autores selecionados especialmente para abordar os estudos de performance possuem uma forte ligação com os conhecimentos sobre teatro ou pelos aspectos emocionais e sociais de como esta prática é observada na sociedade. 21 2. PERFORMANCE Existem muitas dúvidas sobre as definições de performance dentro da academia. Quando nos apropriamos dessa palavra, quais significados damos a ela? No nosso uso comum, muitas das nossas experiências transmitem o sentido gerado pela palavra performance quando nos remetemos a um processo de qualidade, desempenho, de máquinas, softwares e pessoas. O funcionamento, o estado, a ação desempenhada pode ser chamada de performance. Algumas vezes esportiva, outras vezes artística, outras vezes pela maneira virtualizada ou física que uma máquina desenvolve algo, como um computador com aplicações gráficas em atividade para gerar um vídeo de alta qualidade ou um carro realizando uma curva em determinada velocidade. Performances fazem parte do nosso dia a dia, do nosso cotidiano. Mas como entendê-las? Para entender performances, costuma-se estipular, nivelar algo, estabelecer um ou mais padrões. Para sabermos se a qualidade do salto de um atleta foi boa ou não, nivelamos esse salto a partir de outros. Performances artísticas algumas vezes costumam ser niveladas pelo grau de presença do corpo e a maneira como este inquieta algum padrão imposto ao mesmo - sejam por limites físicos, biológicos, morais, tecnológicos ou mesmo culturais. Performances popularmente conectam-se com resultados, objetivos. Mas também a ações, proezas, processos de se realizar algo. Nos limites humanos, performances são também maneiras de avaliarmos como desempenhamos algo que aprendemos, treinamos, exercitamos. Performances podem ser artísticas e o Larp também faz parte desse tipo de prática, tal qual o teatro, o happening, a dança, a música, artes visuais entre outras. Muitas dessas práticas passam por treinos, métodos, maneiras de se exercitar para que a performance alcance ou supere marcas qualitativas, em especial ao seu juízo estético e como o discurso constrói um pensamento transformador em quem participa da prática. Neste caso, entendese a performance pelas suas origens etimológicas: per/formar, para além da forma, um tipo de expressão realizada por completo. Performance também se relaciona a práticas do cotidiano, aprendidas mediante a cultura, o contexto pelo qual pessoas se conectem mediante práticas comuns que tanto os identifiquem como estejam em elementos normativos, éticos, morais e muito mais. A performance está na escrita, 22 na leitura, no hábito de cumprimentar, de se sociabilizar, de se realizar algo para alguém, por exemplo. Segundo Richard Schechner (2006, p. 29): (...) para realizar arte, isto envolve treino e ensaio. Mas a vida cotidiana também envolve anos de treino e de prática, de aprender determinadas porções de comportamentos culturais, de ajustar e atuar os papéis da vida de alguém em relação às circunstâncias sociais e pessoais. Para compreender o que são performances são necessários estudos sérios sobre o tema. Durante anos diversos estudiosos de diferentes disciplinas dedicaram seus olhares para se aprofundarem nesse campo de conhecimento. Antropólogos, teatrólogos, psicólogos, sociólogos, historiadores entre outros. As performances são práticas, e uma vez estudadas, teorizadas, estas passam a ser objeto de estudo de áreas que pensam o comportamento humano e seus efeitos individuais, comunitários e até antropomórficos. A materialidade dos estudos de performance é ampla o suficiente para abranger uma multidisciplinaridade. Para compreender este objeto de estudo, Schechner (2013, p. 2), antes de tudo, explica que performances são ações e organizou quatro caminhos que identificam o campo de estudo das performances: Primeiro, comportamento é o "objeto de pesquisa" dos estudos de performances. (...) seu foco é dedicado ao "repertório", ou seja, as atividades realizadas pelas pessoas. Segundo, a prática artística é uma grande parte do projeto dos estudos de performances. (...) A relação entre estudar e fazer performance é integral. Terceiro, o trabalho de campo como "observação participante" é um método muito valorizado, adaptado da antropologia e usado de uma nova maneira. Na antropologia, na maioria das vezes, a “cultura doméstica” é ocidental, o “outro” não ocidental. Mas, nos estudos de performances, o "outro" pode fazer parte da própria cultura (não ocidental ou ocidental), ou mesmo de um aspecto do próprio comportamento. (...) Quarto, segue-se que os estudos de performances estão ativamente envolvidos em práticas e advocacia sociais. Maioria dos estudiosos de performances não possuem aspiração à neutralidade ideológica. De fato, uma afirmação teórica básica é que nenhuma abordagem ou posição é "neutra". Não existe algo que seja imparcial. O desafio é tornar-se o mais consciente possível das próprias posições em relação às posições dos outros - e depois tomar medidas para manter ou mudar de posição. Os tipos de performances são diversos. Schechner (2013) alega que a performance se apresenta de acordo com o que estiver ao alcance humano, como rituais, jogos/brincadeiras/esportes, entretenimento popular, performances artísticas e performances do cotidiano mediadas por normas sociais, profissionais, de gênero, de raça, de classe de mídias etc. O autor supracitado forma críticas ao modelo colonizador pelo qual o olhar científico reforçou por muito tempo o que é e 23 o que não é performance. Nas palavras do próprio Schechner (2013, p. 2), “a noção subjacente é que qualquer ação que está enquadrada, promulgada, apresentada, realçada, ou exibida, é uma performance.” Os estudos de performances precisam sempre ser identificados como um campo independente, transdisciplinar. E, neste aspecto, os caminhos disciplinares que se cruzam permitem que os estudos de performance transitem em áreas completamente distintas, mas com objetos de estudo complementares que perpassem por trajetórias que exijam tal pluralidade, como fez um dos principais autores selecionados para este estudo: Vigotski. Ainda que seus estudos sejam aprofundados no decorrer deste estudo, tratar a transdisciplinaridade e as transformações possíveis de uma gama de conhecimentos permitiu que Vigotski utilizasse conhecimentos de linguística, direito, história, artes, antropologia, psicologia, filosofia e outros que se desdobraram na construção do conceito que explica o fenômeno presente em práticas performáticas: Perezhivanie, um objeto de estudo muito próximo ao que pensadores aqui selecionados conectam com suas pesquisas sobre performances. E isso também representa um conjunto de abordagens metodológicas das áreas de conhecimento que estudam as performances e que formam conceitos para explicar fenômenos sociais que se desdobram nas culturas. É o caso das Performances Culturais. De acordo com Camargo (2013), o termo foi designado cientificamente pela primeira vez em 1955, entre diálogos do antropólogo e psicólogo Milton Singer com o sociólogo e etnolinguista Robert Redfield. Enquanto conceito, Performances Culturais buscam entender as culturas pelo que estas produzem. Como método, Performances Culturais realizam comparações sobre o que é produzido culturalmente. Performances Culturais, por meio das conexões, diálogos, materialidades, divergências, entre outras qualidades que se manifestam nas ações humanas, permitem compreensões críticas para envolver teorias sobre os efeitos dessas ações. De acordo com Schechner (2013), pessoas podem praticar mais de um tipo de performance ao mesmo tempo. Por exemplo, um jogador de futebol enquanto atleta realiza um gol, em seguida ele realiza uma comemoração com uma dança ou destacando o uniforme do time para torcida. Também quando um Larp está sendo jogado e personagens participam de uma festa na qual dançam coreografias que 24 participantes aprenderam em suas vidas cotidianas fora do jogo. Qualquer ação desempenhada no universo de jogo, que não seja parte da regra explícita, mas que esteja socialmente como uma norma implícita, pode se configurar como performance dentro ou alinhada paralelamente a outra performance. Neste caso, considerando a relação de jogo com regras, distinto do processo pelo qual surge a brincadeira, cujas regras estão implícitas naquilo que ela esteja imitando. Nas palavras de Victor Turner (1982, p. 13), a etimologia de "performance" não possui relação com "forma", mas deriva do francês antigo parfournir, que significa "completar" ou "executar completamente". Portanto, segundo o autor, performance é “o final apropriado de uma experiência”. Schechner e Turner se conheceram e trocaram muitas experiências do que conhecemos hoje como parte dos estudos de performances. Pelos estudos da dramaturgia, Schechner observou na sociedade uma conexão com a teatralidade, tal qual Turner observou a relação dos rituais no cotidiano, à medida que é possível observar culturas nas ações de uma pessoa, seus gestos, suas falas e a maneira como suas interações simbólicas destacam essas conexões. A teatralidade, os rituais e os jogos possuem muito em comum, pois o conjunto de normas explicitas e implícitas dos jogos constroem eventuais padrões que distanciam o performer de sua realidade comum, permitindo que este desempenhe um papel específico dentro de um dado contexto, o que está sendo jogado. Os procedimentos de entrada para o jogo regulam o nível de imersão no processo e como os resultados transformam a realidade de quem participou, seja por um jogo de regras colaborativas ou competitivas. Ao considerar a importância dos estudos antropológicos de Turner e dramatúrgicos de Schechner, cabe reforçar sobre suas contribuições teóricas para base metodológica multidisciplinar das Performances Culturais. Schechner (2013) cita Stern e Henderson (1993) em uma breve explicação sobre esse campo de estudo performances culturais e como identificamos o que são essas performances: O termo performance incorpora todo um campo de atividade humana. Ela abrange um ato verbal na vida cotidiana ou uma peça teatral, um ritual de inventividade nas ruas urbanas, uma performance nas tradições ocidentais da alta arte ou uma obra de arte performática. Inclui apresentações culturais, como a narrativa pessoal ou contos populares e de fadas, ou formas mais comuns de cerimônia - a Convenção Nacional Democrática, uma marcha de vigília prolongada para pessoas com AIDS, Mardi Gras ou uma tourada. Também inclui performance literária, celebração da genialidade individual e conformidade com as definições ocidentais da arte. Em todos os casos, um ato de performance, de natureza interacional e 25 envolvendo formas simbólicas e corpos vivos, fornece uma maneira de constituir significado e afirmar valores individuais e culturais. Uma outra maneira de entender o olhar de Schechner sobre o conceito de performance é quando este recorre a Goffman (2006, p. 29) para uma breve explicação do que se trata seu objeto de estudo alegando que “uma performance pode ser definida como toda e qualquer atividade de um determinado participante em uma certa ocasião, e que serve para influenciar de qualquer maneira qualquer dos participantes.” A importância dos estudos de Goffman (2006/1956) se dá ao fato deste construir uma interpretação da vida cotidiana como uma metáfora de um palco dramático, um teatro imaginário. De tal maneira que é possível compreender como nos apresentamos socialmente com práticas análogas a uma atuação artística. Por essa razão é possível compreender um aspecto do drama social pelo olhar de Goffman um processo que aproxima o faz de conta, a experiência vivida e como a construção de emoções permeia o processo de conduzir os interesses dos presentes mediante um dado contexto, tal qual o Larp e como as interações simbólicas se tornam a chave para avanços do que estiver em experiência. De modo mais objetivo, para Goffman (1956), tendo o mundo como palco, nossas ações ocorrem em cenários, onde se contextualizam os limites das ações performatizadas por sujeitos que se configuram como atores e/ou plateia. Diante desses cenários, tais sujeitos se expressam por padrões, como estereótipos, para formar a imagem que querem que os outros tenham de si, assim formando papéis que se escolhe desempenhar no dado contexto. Goffman (1956, p. 23) explica os conceitos de enquadramento e fachada, como equipamentos expressivos de tipos padronizados, intencional ou inconscientemente, empregados pelos indivíduos durante suas representações. Ao considerar as diferentes experiências em diálogo com o cenário, cabe a nós compreendermos, que assim como um jogo, o contexto tem começo, meio e fim, numa relação de fachadas como máscaras para distintas situações. Para o Larp, isso incorpora o processo imersivo de viver o papel e trocas de experiências com demais participantes. Uma vez que, no Larp, espectador e performer estejam vivendo a experiência de “palco” de modo mais participativo, pretendo analisar a teoria do Goffman pensando o Larp também como metáfora da vida cotidiana. 26 A exemplo, a maneira como Schechner (2011, p. 26) configura a trajetória de aprendizado dos nossos comportamentos, compreender o que há de comum entre as performances e seus fenômenos é observar como se dá o processo imersivo e transformador: (...) todas as performances compartilham pelo menos uma qualidade: o comportamento em performance não é livre e fácil. O comportamento em performance e/ou o comportamento praticado é conhecido antecipadamente ou ensaiado ou aprendido previamente ou aprendido por osmose desde criança ou, ainda, revelado durante a performance pelos mestres, gurus, guias, ou pelos mais velhos, ou gerado através de regras que determinam os resultados, como no teatro improvisado ou no esporte. As regras de uma dada sociedade, em um dado momento, configuram como sujeitos constroem suas trajetórias diante das interações sociais e como formam significado mediante tais práticas. Desde a infância, somos formados pela repetição de práticas que automatizamos, naturalizamos no nosso cotidiano. Durante práticas de performance, fenômenos de transporte e transformação retiram o participante de um recorte de sua realidade para novos recortes. A experiência vivida pode provocar rupturas com o sentido de realidade ou rotinas comuns a sujeitos. Goffman (1956, p. 10), por exemplo, compreende a imersão da seguinte maneira: (...) encontramos o performer que pode ser totalmente imerso por seu próprio ato; ele pode estar sinceramente convencido de que a impressão de realidade que ele encena é a verdadeira realidade. Quando seu público também está convencido sobre o espetáculo que ele encena - e este parece ser o caso típico - então, no momento, de qualquer maneira, apenas o sociólogo ou uma pessoa socialmente insatisfeita terá dúvidas sobre o “realismo” do que é apresentado. O antropólogo Victor Turner (2005a, 2005b) estudou a performance sob a concepção dos ritos de passagem, diante de conceitos desenvolvidos por van Gennep, outro antropólogo que aprofundou seus estudos a respeito dessas práticas. Em suas pesquisas, Turner compreendeu que os ritos de passagem estão presentes no nosso cotidiano, tal qual para povos autônomos, ainda que as finalidades sejam o fenômeno de transporte. A relação de ritual, tanto presente em uma rotina diária de um grupo como em momentos antes do início de uma partida de um jogo possui muito mais coisas em comum, quando observamos a configuração do rito de passagem em um dado contexto performático, conforme Turner (2005, p. 137): Ritos de passagem existem em todas as sociedades, mas tendem a alcançar a sua expressão máxima nas sociedades de pequena escala, relativamente estáveis e cíclicas, onde a mudança está em estreita 27 correlação com as recorrências e ritmos biológicos, muito mais do que com as inovações tecnológicas. Tais ritos indicam e constituem transições entre estados. Por “estado”, entendo aqui, 'uma condição relativamente fixa ou estável', e tenderia a incluir, no seu significado, certas constantes sociais, como estatuto legal, profissão, cargo público ou ocupação habitual, posição ou categoria. Considero que o termo designa, também, a condição de uma pessoa tal como é determinada pelo seu grau de maturidade culturalmente reconhecido, como quando se fala do “estado de casado ou solteiro” ou do “estado de infância”. O termo “estado” pode aplicar-se, igualmente, às condições ecológicas, ou à condição física, mental ou emocional em que uma pessoa ou grupo se encontra num determinado momento. Schechner (2011) também possui uma compreensão sobre as referências de estado e fenômeno de transporte, comum a Goffman (1956) e Turner (2005), podendo ser observado de maneiras específicas ou amplas, dado o contexto de uma prática performática. Schechner (2011) chama de “mundo performativo” (pg. 163), o que é observável em vários autores como parte do fenômeno de transporte, como Huizinga (2000, p. 13), que também aplica a referência de um “círculo mágico” durante a relação imersiva de um jogo e como seus participantes são transportados e transformados: O caráter especial e excepcional do jogo é ilustrado de maneira flagrante pelo ar de mistério em que frequentemente se envolve. (...) Dentro do círculo do jogo, as leis e costumes da vida quotidiana perdem validade. Somos diferentes e fazemos coisas diferentes. Esta supressão temporária do mundo habitual é inteiramente manifesta no mundo infantil, mas não é menos evidente nos grandes jogos rituais dos povos autônomos. De maneira complementar, Schechner (2011, p. 163) exemplifica parte do processo subjetivo e imaginativo durante o fenômeno de experiência de jogo, o círculo de jogo e círculo mágico, sob a perspectiva do processo de transformação: O performer vai do ‘mundo habitual’ ao ‘mundo performativo’, de uma referência de tempo/espaço à outra, de uma personalidade à outra ou às outras. Ele interpreta um personagem, luta com demônios, entra em transe, viaja pelo céu, ou pelo oceano, ou pela terra: ele é transformado, capaz de fazer coisas “em performance”, que ele não é capaz de fazer normalmente. Mas quando a performance acaba, ou ainda em sua parte final, ele retorna ao ponto em que começou. Mas há aspectos que diferem os olhares sobre performances cotidianas, dentro do espectro do drama social. Para destacar as distinções presentes nos trabalhos de outros autores, Turner (1985, p. 180) reforça o que Schechner (197028 1976, 1977; p. 120-123) escreveu a respeito no Ensaio sobre Teoria da Performance: Victor Turner analisa 'dramas sociais' usando terminologia teatral para descrever situações desarmônicas ou de crise. Essas situações argumentos, combates, ritos de passagem - são inerentemente dramáticas porque os participantes não apenas fazem as coisas, tentam mostrar aos outros o que estão fazendo ou fizeram; as ações assumem um aspecto de "realizado para um público". Erving Goffman adota uma abordagem cenográfica mais direta ao usar o paradigma teatral. Ele acredita que toda interação social é encenada - as pessoas se preparam nos bastidores, confrontam os outros enquanto usam máscaras e desempenham papéis, usam a área principal do palco para o desempenho das rotinas e assim por diante. Para Turner e Goffman, o enredo humano básico é o mesmo: alguém começa a se mudar para um novo lugar na ordem social; esse movimento é realizado por meio de ritual ou bloqueado nos dois casos em que surge uma crise porque qualquer mudança de status envolve um reajuste de todo o esquema; esse reajuste é realizado cerimonialmente, ou seja, por meio do teatro. As definições destes três autores sobre ritual também apresentam-se de maneiras distintas, segundo Turner (1985). E ritual é um termo chave para se compreender a relação funcional dos jogos. Por isso, os métodos e áreas de conhecimento de cada autor dialogaram diretamente com os contextos pelos quais todos estiveram expostos, de maneira que a compreensão do dado momento histórico colabore com a compreensão dos processos que suscitam a prática ritual dentro de uma sociedade. Embora os jogos ainda não sejam mencionados por ambos os três como exemplo desse processo, a relação como pensam o ritual permite uma compreensão aprofundada no capítulo específico sobre jogos. Ao mostrar as distinções do que é pensado por Erving Goffman e Richard Schechner, Victor Turner considera breves explicações e exemplos sobre ritual e drama social. Segundo Turner (1985, p. 181-182): Primeiro, deixe-me comentar sobre a diferença entre meu uso do termo "ritual" e as definições de Schechner e Goffman. De um modo geral, eles parecem significar por ritual um ato unitário padronizado, que pode ser secular e sagrado, enquanto eu busco identificar uma performance de uma sequência complexa de atos simbólicos. Ritual para mim, (como coloca Ronald Grimes); é uma "performance transformadora que revela grandes classificações, categorias e contradições de processos culturais". Para Schechner, o que chamo de "violação", o evento inaugural de um drama social, é sempre efetuado por um ato ritual, ritualizado ou "movimento". Há alguma verdade nisso. Vou usar como exemplo aqui o primeiro drama social do meu livro sobre o processo social de Ndembu, Cisma e Continuidade. (...) O que é mais interessante para mim nesse contexto do que a definição de ritual é a conexão estabelecida por Schechner entre drama social e teatro, e o uso feito por Goffman e por mim do "paradigma teatral". Para Goffman, "o mundo todo é um palco", o mundo da interação social e, de qualquer maneira, está cheio de atos rituais. Para mim, a fase dramatúrgica começa quando surgem crises no fluxo diário da interação 29 social. Assim, se a vida cotidiana é uma espécie de teatro, o drama social é uma espécie de metateatro, ou seja, uma linguagem dramatúrgica sobre a linguagem da interpretação de papéis e da manutenção de status comuns, que constitui a comunicação no processo social cotidiano. Uma vez considerando o pensamento de Erving Goffman (1956) como a vida cotidiana sendo um tipo de teatro, Turner (1985) defende que os bastidores dessa vida cotidiana é o drama social, configurando como um metateatro. Alguns jogos, enquanto linguagens, são frutos desse processo dramático da vivência de papéis, se utilizando das referências comuns do dia a dia como parte de suas regras. Um grande exemplo desse tipo de jogo é o Larp. Pois, em sua essência, como um jogo de faz de conta, de interpretar papéis, os saberes práticos da vida cotidiana são o principal acervo para jogar até mesmo uma ficção fantasiosa. Toda diegese (o universo ficcional de personagens) é composta por elementos de quem participa da configuração deste universo ficcional. Tais quais as referências presentes em outras obras artísticas e na literatura. Turner (1985) compreende e reforça dois aspectos práticos do cotidiano: rituais e drama social, sendo um conectado ao outro. Pensemos que o jogo e o metajogo são partes de um todo que reproduz normas e processos transformadores da vida social, de maneira que participantes, durante o tempo e espaço de jogo, possam tomar decisões que não afetem diretamente sua realidade fora da diegese. É como poder experimentar um caminho que deixou de ser tomado no dia a dia para buscar novas possibilidades na ficção. E essa curiosidade comum permite aos jogos e brincadeiras de faz de conta se configurarem como um tipo de performance que passa pelas etapas estudadas e ilustradas por Richard Schechner (2011) como um círculo de transformações de experiência vivida (Figura 7), assemelhando-se diversas vezes com a descrição do que Huizinga (2000) configura enquanto círculo de jogo, também conhecido por círculo mágico, mencionado anteriormente. 30 Figura 7. Círculo de transformação Fonte: Schechner, 2011. Johan Huizinga (2000, p. 14), um historiador holandês que estudou jogos e brincadeiras como performances e explorou a imersão e o fenômeno de transporte e transformação. Ao compreender os jogos com antecessores à cultura, Huizinga (2000) defende que a cultura existe potencialmente pelos desafios e relações com o faz de conta presente nas relações socias e como estas se organizam e sistematizam em normas para dados contextos em certo tempo e espaço. Ao longo dos seus estudos, Huizinga (2000, p. 14) considera a importância do potencial transformador das etapas presentes no que antecede, no durante e nos pós-jogo, no seguinte exemplo: A criança representa alguma coisa diferente, ou mais bela, ou mais nobre, ou mais perigosa do que habitualmente é. Finge ser um príncipe, um papai, uma bruxa malvada ou um tigre. A criança fica literalmente “transportada” de prazer, superando-se a si mesma a tal ponto que quase chega a acreditar que realmente é esta ou aquela coisa, sem, contudo, perder inteiramente o sentido da “realidade habitual”. Mais do que uma realidade falsa, sua representação é a realização de uma aparência: é ‘imaginação’, no sentido original do termo. Notamos que jogos estão presentes no paradigma performático. No entanto, compreender como os jogos se localizam dentro da sociedade é de demasiada importância, especialmente sob a profundidade do olhar dos autores citados. O papel de Huizinga e outros autores tem uma legitimidade histórica que abrange elementos estudados no que temos como partes dos hábitos e costumes diários, como performances do dia a dia, dos hábitos comuns, aprendidos e reproduzidos 31 para vivências do contexto que estivermos inseridos. Portanto, cabe o entendimento de como autores selecionados observam jogos e suas definições. 32 2. JOGOS As referências mais comuns a todo estudo que compreenda os jogos como manifestações culturais levam a Johan Huizinga8 (1872-1945). Huizinga argumenta que o jogo pode ser considerado uma forma cultural profunda, uma espécie de “estrutura” que subjaz a toda manifestação cultural, das linguagens comuns a um povo até os ritos mais populares. Com isso ele forjou um vocabulário conceitual de alta importância para esse campo de conhecimento, defendendo os jogos como hábitos inerentes ao comportamento humano, antecessores à sociedade. Embora ele se utilize de argumentos controversos do animismo, colocando o comportamento animal como parte dessa estrutura, algo ainda conflituoso nas literaturas científicas. Duas características são fundamentais para entender o jogo, de acordo com Huizinga: O jogo é tido como livre e próprio da liberdade, como primeira característica. Na segunda, ainda relacionada à primeira, o jogo não é vida “corrente”, nem mesmo “real”, segundo Huizinga (2000, p. 10), o jogo é: (...) uma evasão da vida “real” para uma esfera temporária de atividade com orientação própria. Toda criança sabe perfeitamente quando está “só fazendo de conta” ou quando está “só brincando”. Para Huizinga (2000, p. 14), assim como a função do jogo relaciona objetivos de alcançar algo ou uma representação de algo, essas relações podem se tornar uma, como um desafio a ser representado ou uma representação de um desafio. Essas duas características são alicerces para o entendimento do processo performático do jogo, uma vez que haja uma localização de sujeitos participantes da experiência em um dado tempo e espaço destinado a regras que formam o que estiver sendo jogado: A função do jogo, nas formas mais elevadas que aqui nos interessam, pode de maneira geral ser definida pelos dois aspectos fundamentais que nele encontramos: uma luta por alguma coisa ou a representação de alguma coisa. Estas duas funções podem também por vezes confundir-se, de tal modo que o jogo passe a “representar” uma luta, ou, então, se torne uma luta para melhor representação de alguma coisa. Huizinga (2000), ao afirmar que o jogo antecede a sociedade, ele considera a maneira como as pessoas constituíram as sociedades e culturas. Pois “mesmo Johann Huizinga foi historiador e linguista holandês, responsável por estudos no campo da cultura, história medieval e historicidade dos jogos. Sua obra Homo Ludens é um dos pilares da ludologia. 8 33 em suas definições menos rigorosas, pressupõe sempre a sociedade humana”. Todavia, Roger Caillois (2001), estudando a relação sociocultural do jogo, constrói uma crítica à seguinte colocação do Huizinga (2000, p. 16): Numa tentativa de resumir as características formais do jogo, poderíamos considerá-lo uma atividade livre, conscientemente tomada como “nãoséria” e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total. É uma atividade desligada de todo e qualquer interesse material, com a qual não se pode obter qualquer lucro, praticada dentro de limites espaciais e temporais próprios, segundo uma certa ordem e certas regras. Promove a formação de grupos sociais com tendência a rodearem-se de segredo e a sublinharem sua diferença em relação ao resto do mundo por meio de disfarces ou outros meios semelhantes. Caillois (2001, p. 5), critica a maneira como Huizinga desconsidera os jogos de apostas. Pois estes tipos de jogos não são desligados dos interesses materiais. Por reforço, jogos de aposta são o que são por relação ao interesse material de quem joga. À relação de seriedade e não-seriedade poderíamos aplicar com intensidades do que tem fins recreativos ou não. Até porque, em algumas línguas, e consequentemente suas respectivas culturas, jogo, esporte e brincadeiras podem ser coisas completamente distintas. Cabe aqui reforçar também que, na língua inglesa, game e play possuem caráter distinto, o que é complexo quando passa para o holandês, língua do Huizinga, em que game e play são uma coisa só. O mesmo se aplica a outras línguas, como o francês, do Caillois. Mas, nessas línguas, incluindo a russa, costumam ter uma palavra específica para se referir a jogos e brincadeiras. Ao analisar Huizinga (2000), Caillois (2001) atribui distinções que podem ser observadas de maneiras ainda mais complexas, ganhando características que são presentes em manifestações que temos por distintas do que entendemos como uma atividade recreativa e/ou competitiva. Certos jogos, digitais e físicos, possuem e/ou adquiriram um caráter competitivo e esportivo, ainda sendo recreativos. Alguns jogos de cartas, também chamados de estampas ilustradas, como Magic: The Gatherig, são tão complexos que englobam aspectos de coleção (seja pelas artes das cartas ou demais referências delas), literários (conjuntos de narrativas em tornos de personagens e ambientações), formatos de finalidade recreativa e formatos de finalidade competitiva. Todavia, algumas destas características podem se misturar, como um jogo que ganhou aspectos espetaculares e esportivos, os 34 interesses materiais pelas premiações passou a configurar o jogo em um campo de seriedade pelo juízo de valor atribuído às cartas lançadas em expansões/coleções. Tal qual, algumas dessas cartas, não mais acessíveis por coleções recentes, podem ser encontradas em leilões com valores acima de 150 mil dólares 9. O que quero dizer é que a relação material do jogo Magic: The Gathering compromete uma incessante busca pelo prazer de abrir, em um pacote de cartas sortidas das expansões, cartas cujo valor compense tanto a inscrição em um campeonato e valor de um baralho destinado a um formato de competição, até mesmo pelo prazer de comprar o pacote de cartas sem jogar com baralhos. O prazer de se obter o resultado, contra outra pessoa que jogue, dentro de um mesmo parâmetro de igualdade (regras de um formato), mesmo materializado, existe pelo mero objetivo de vencer e receber um prêmio. Contudo, é necessário reconhecer o que ambos os autores tentaram distinguir do que queriam definir por jogo e suas configurações dentro dos seus estudos. A visão de Caillois (2001, p. 25) sobre estas classificações é a seguinte: O jogo é a ocasião de gasto puro: de tempo, de energia, de engenhosidade, de destreza e, muitas vezes, de dinheiro - para a compra dos acessórios do jogo ou para pagar eventualmente o aluguel do local. Quanto aos profissionais, boxeadores, ciclistas, jóqueis ou atores que ganham a vida no ringue, na pista, no hipódromo ou nos tablados, e que devem pensar no prêmio, no salário ou no cachê, está claro que sob este aspecto não são jogadores, mas profissionais. Quando jogam, jogam um jogo diferente. (...) Por outro lado, não resta dúvida de que o jogo deve ser definido como uma atividade livre e voluntária, fonte de alegria e de divertimento. Também podemos entender que, nos esportes, quando os jogos se tornam grandes espetáculos, estes podem deixar de ser uma mera recreação e se tornar trabalho. Com isso, a seriedade pela qual Huizinga (2000) e Caillois (2001) localizam dentro das definições de jogos desconsideram certos aspectos adquiridos pela natureza destes espetáculos, até pela maneira como há um distanciamento de quem organiza o evento (alguém que não está jogando), quem treina quem está jogando e quem assiste quem está jogando. EBAY. Considerado um dos leilões de uma peça de jogo mais caro da história. Disponível em: https://www.ebay.com/itm/1993-Magic-The-Gathering-MTG-Alpha-Black-Lotus-R-A-BGS-9-5-GEMMINT-PWCC-/143136537077>. Acesso em: Jun. 2019. 9 35 Portanto, as complexidades das definições de jogos são diversas, mas identificáveis, uma vez que brincar ou competir são comportamentos comuns, restaurados. Caillois (2001) atribui definições que em vários momentos do seu discurso se tornam antagônicas. Como por exemplo distanciar os jogos mais competitivos dos recreativos e qualidades hoje complexas, pelo aspecto narrativo e de representações desenvolvidas para expandir o uso do jogo por personalizações, compreensões em torno da ambientação que a narrativa se passa, como as leis da realidade se aplicam ou não dentro do jogo etc. Jogo produz significado, criando dinâmicas de interação que possibilitam o surgimento de práticas e relações que podem, depois, cristalizar-se em ritos, festas e até numa nova linguagem. Em uma cultura se pode observar hábitos, costumes e tradições que funcionam de modo semelhante ao jogo, no que diz respeito aos seus limites, tais como a relação de duração, ambiente e regras diversas para que uma prática aconteça, seja ela em uma sala de aula, uma firma ou um local religioso. Portanto, o jogo se distingue da vida “comum” (Huizinga, 2000) e seus limites de tempo e espaço o tornam fenômeno cultural, já que mesmo se encerrando, ele se conserva como memória e, uma vez transmitido, torna-se tradição, como quaisquer das manifestações específicas que se enquadrem com suas devidas regras de duração, ambientação e comportamentos. Para Huizinga (2000, p. 5) o jogo não só gera sentido como também se torna o sentido. Quando retiramos a barreira entre esportes transmitidos para o mundo inteiro ou uma brincadeira infantil no quintal de casa, o jogo e quem participa dele se integram a regras que constroem significados como toda experiência humana. O autor supracitado afirma que o jogo “é uma função significante, isto é, encerra um determinado sentido. No jogo existe alguma coisa ‘em jogo’ que transcende as necessidades imediatas da vida e confere um sentido à ação. Todo jogo significa alguma coisa”. A maneira de se jogar, as regras que funcionam dentro de um dado tempo, de um determinado espaço, formam o jogo. Suas qualidades e configurações estão além da realidade ou inerente a ela (caso o jogo esteja simulando-a). Suas regras são absolutas, assim como as possibilidades de encerramento. Portanto, mesmo que haja um trapaceiro, o jogo continua acontecendo (CAILLOIS, 2001) e só é interrompido quando alguém percebe a trapaça e usa alguma regra para encerrá36 la. Neste momento, o jogo deixa de fazer sentido. Ainda, para Caillois (2001, p. 28), alguns jogos não possuem regras, assim, jogos e brincadeiras de faz de conta estão dentro do seguinte espectro: Muitos jogos não têm regras, de modo que elas não existem, pelo menos que sejam fixas e rígidas, para brincar de boneca, soldado, polícia e bandido, cavalo, trenzinho, avião, geralmente nos jogos que supõem uma livre improvisação e cujo principal atrativo vem do prazer de desempenhar um papel (...) A visão que o Caillois (2001) configura sobre o faz de conta, inicialmente ignora as regras que ele posteriormente se refere no mesmo parágrafo, ao alegar que “o sentimento do como se substitui a regra e cumpre exatamente a mesma função”. No entanto, numa interpretação aberta, podemos analisar a prática do faz de conta por outros aspectos que regulam o jogo. A própria realidade, no faz de conta, é um regulador. Num aspecto fantasioso, uma criança pode fazer de conta que voa por ter superpoderes, ignorando a física presente em sua realidade. Mas outras normas afetarão a performance de tal experiência, como a presença de um objeto místico que cancele tais capacidades. Do mesmo modo, crianças que fazem de conta que são uma família, quando brincam de casinha, utilizam regras sociais de conduta. O repertório que possuem do que é ser aquelas pessoas é um regulador, uma interpretação do comportamento duplamente vivenciado (SCHECHNER, 2006). Portanto, continuará havendo regra para caracterizar o valor estético presente na prática do jogo e, consequentemente, limitar certas ações que inviabilizam a simulação do referencial que jogadores possuem do que sejam as realidades dos papéis performados. Neste caso, configuram-se as regras implícitas, ali presentes, mas não documentadas, sistematizadas, como as regras explícitas. Frans Mäyrä (2008), identifica que os jogos possuem “aspectos culturais interativos similares”: um com a construção de significados mediados pela ação de jogar (ludosis), em contrapartida ao da construção de significados mediados pela decodificação de mensagens (semiosis). Para Mäyrä, o entendimento e apreciação de um jogo (game) são baseados nos prazeres derivados da experiência de jogo (play). Mas há uma variedade de normas e valores sociais que regulam o jogo, mesmo que não estejam escritas, como no caso das regras implícitas e explícitas. Ao identificar as experiências de jogo considerando a formação de significados, Mäyrä (2008, pg. 45) reforça a importância dos estudos de 37 performance, tendo como base Schechner e Goffman. Mäyrä localiza os jogos como performance mediante a perspectiva do interacionismo simbólico, estudado por Goffman (1956, pg.13) e seu conceito de performance como "toda a atividade de um determinado participante em uma determinada ocasião, que serve para influenciar de qualquer maneira os outros participantes". Mäyrä também interpreta o efeito da experiência de jogo nos indivíduos de maneira que: Jogar um determinado jogo afeta não apenas a maneira como outras pessoas percebem o indivíduo em questão, mas também o modo como ele se percebe. Em um caso extremo, o jogo pode até ser algo que uma pessoa tenta negar a si mesma, porque é incompatível com sua autoimagem, ou algo para manter oculto e silencioso. Assim, uma pessoa pode considerar a brincadeira como algo pertencente apenas ao seu eu privado ou, ao contrário, celebrá-la como uma parte visível de seu “fachada” (front), ou self interpessoal público na terminologia de Goffman. (MÄYRÄ, 2008, p. 45) Por meio das sete esferas interligadas de Schechner (Figura 8), Frans Mäyrä (2008, pg. 46) fornece mais de suas interpretações sobre como os jogos também possuem caráter performático ao propiciar a seus participantes - e, dependendo do jogo, até espectadores - as experiências presentes nos círculos: formação de identidade, senso de comunidade, entretenimento, cura, persuasão ou aprendizagem, beleza, resolução de conflitos internos: Figura 8. Sete Esferas de Schechner Fonte: Schechner, 2006 38 Frans Mäyrä (2008) considera fundamental a maneira como Huizinga (2000) introduziu no espaço acadêmico a importância do ritual e como este se manifesta na cultura, sendo essa a questão central do seu livro Homo Ludens. Ao ponto de que é possível notar certas semelhanças nas homenagens feitas aos espíritos e deuses em diversas culturas, mediadas pelas experiências de jogo, com a origem dos Jogos Olímpicos e seus respectivos rituais. Outra consideração importante, a respeito de Frans Mäyrä (2008), é sobre a importância do desenvolvimento durante a experiência de jogo, sob a perspectiva cultural. Segundo o autor supracitado, os jogos fazem parte de grandes e complexas redes multi estruturais provenientes da cultura, como linguagens, comportamentos e pensamentos percebidos ou não. De inúmeras maneiras, tais processos contribuem para formação do que somos à medida em que adquirimos experiências vividas desde a nossa infância. Vigotski (2008), em seus estudos sobre a brincadeira e sua função no desenvolvimento psíquico da criança, considera dois aspectos importantes para iniciar a compreensão dessa atividade: a gênese da brincadeira e o papel desempenhado por esse tipo de prática no desenvolvimento. Mesmo que a brincadeira não seja predominante, ela é a fundamental para o desenvolvimento na idade pré-escolar. Vigotski (2008) critica o pensamento de que nem toda brincadeira promove satisfação, como é reforçado na definição de brincadeira. Ele cita uma atividade cuja experiência seja funcionalmente satisfatória, como a sucção de uma chupeta. Em contrapartida, ele considera insatisfatórias as brincadeiras que “trazem satisfação somente quando seu resultado se revela interessante para criança”, como no caso dos esportes, os quais ele reforça que não necessariamente envolvem exercícios físicos, mas resultados, premiações. Do mesmo modo, Vigotski (2008) reforça que muitas das dificuldades, ao se estudar os jogos e o desenvolvimento, estão na maneira como se intelectualiza os problemas da prática, que costumam ignorar as demandas, necessidades, impulsos afetivos das crianças. Compreender a formação das pessoas por suas experiências é considerar suas trajetórias, suas etapas. Vigotski realizou um trabalho bastante engenhoso ao estudar muitos dos nossos comportamentos desde a infância. A brincadeira foi um 39 dos modos pelos quais ele compreendeu como o amadurecimento e os interesses mudam à medida que a criança se desenvolve. De acordo com Vigotski (2008, pg. 25), ainda na idade pré-escolar, impulsos e necessidades específicas conduzem a criança até a brincadeira. Pois, nessa etapa, a criança possui desejos menos imediatos, não realizáveis. Em seguida, na primeira infância, a criança se torna mais imediatista: o que ela quer, ela precisa para aquele momento. Mas há um tipo de brincadeira que o Vigotski também destaca e que, de acordo com ele, era relacionada com o período tardio da idade pré-escolar, mas é de fundamental importância para idade escolar: as brincadeiras com regras10. Vigotski (2008) reforça que situações imaginárias possuem regras de comportamento, mesmo que não haja complexidade nas regras. Como regras implícitas, também abordadas por Caillois e Mäyrä. Por exemplo: Uma criança com uma boneca, ao brincar de que a boneca seja seu bebê, essa criança se comporta sob seu ponto de vista do que é ser mãe, o que ela pensa como regra do comportamento materno. A brincadeira, para criança, conduz processos imaginativos que colaboram com o desenvolvimento. Dadas as características das brincadeiras e faz de conta e a maneira como as crianças começam a desenvolver regras implícitas presentes nas relações sociais, cabe a nós definir o tipo de jogo que promove a experiência do faz de conta por um modelo mais dramático: os jogos de RPG. 10 Jogo e brincadeira possuem a mesma referência ao traduzir a palavra igra, da língua russa. 40 2.1. RPG RPG, do inglês Roleplaying Game, é como chamamos os jogos que entendemos como jogo de interpretação de personagens, jogo de papéis, entre outros títulos que remetem às suas origens. Enquanto um jogo comercial, industrializado pela cultura pop, podemos dizer que o RPG foi criado na década de 70, quando Gary Gygax e Dave Arneson adaptaram um jogo de miniaturas do gênero wargame (jogos de guerra) para um processo mais individualizado (TRESCA, 2011). Ainda de acordo com Michael Tresca (2011), o wargame foi um jogo criado na china, há mais de 2000 anos antes do calendário cristão, com o nome Wei Hai, traduzido como “cerco”, e consistia em peças num dado cenário ou tabuleiro, onde jogadores deslocavam essas peças como tropas para cercar seus oponentes e vencerem uma guerra por meio de estratégias e táticas de guerra. Inspirado no Wei Hai, alguns séculos depois, o Japão criou um jogo popular até os dias atuais, conhecido como GO. Em seguida, na Índia, surgiu o Chaturanga, também conhecido como origem do Xadrez e seguindo até os dias atuais com vários jogos de miniaturas. Todos esses jogos consistem em simular guerras, por meio de tropas. Tresca (2011, p.60) documenta que, em 1969, Dave Wesley organizou uma sessão de wargame onde estudava, na Universidade de Minnesota. Neste jogo, participantes interpretavam personagens individuais em um cenário de guerra napoleônico que se passava na cidade de Braunstein (Posteriormente, chegou a se tornar o nome do jogo). Foi durante essa experiência que houve o surgimento do Game Master, o mestre de jogo, como criador de cenários e contextos. Wasley foi inspirado pelo manual de treinamento de guerra Strategos: The American Game of War, que ele encontrou na biblioteca da universidade e foi desenvolvido pelo Tenente Charles Adiel Lewis Totten. Inicialmente, Wesley mestrava para oito pessoas, sendo que dois jogavam e seis assistiam. Até que ele desenvolveu papéis para os demais jogadores, com seus próprios objetivos durante o jogo. À medida que o grupo crescia, novos papéis surgiam, desenvolvidos conjuntamente. Wesley desenvolveu uma versão melhorada do jogo, na qual os jogadores passariam a interpretar líderes de uma ficcional república de bananas. Nessa versão, o jogo contou com a participação de Dave Arneson. Arneson passou a mestrar ambas as versões dos jogos e desenvolveu cenários, expandindo o jogo com a inclusão de 41 elementos presentes em obras como O Senhor dos Anéis e Dark Shadows, que levou a criação do jogo com miniaturas chamado Blackmoor. E, ainda de acordo com Michael Tresca, naquele momento, Wesley reivindicou o uso de dados poliédricos de quatro, oito, doze e vinte lados. Estes dados, antes usados por professores de matemática, até hoje são ferramentas comuns nos jogos de RPG de Mesa. Tresca (2011, p.61) prossegue o estudo ao documentar que, em 1967, Jeff Perren modificou e criou suas próprias regras por cima do wargame medieval Siege of Bodenburg, do mesmo ano, e compartilhou com Gary Gygax. Então, em 1968, Perren e Gygax criaram o wargame medieval Chainmail, no qual cada miniatura representava vinte pessoas, em três diferentes tipos, entre soldados e cavaleiros. Em 1971, Perren e Gygax criaram um “Fantasy Supplement”, no qual foram adicionadas criaturas fantásticas, magia e os alinhamentos “leal” e “caótico” a estas criaturas. Os tipos de soldados e suas respectivas hierarquias passaram a ser representados por espécies provenientes de mitos e lendas folclóricas da cultura européia, como Hobbits, Elfos etc. Arneson então adaptou uma campanha de aventuras chamada Blackmoor, para que o jogo não se limitasse apenas ao combate e ganhasse um aspecto mais cooperativo, onde o jogador só seria bemsucedido se o grupo fosse bem-sucedido. Ainda em 1971, Arneson apresentou uma nova possibilidade de jogo para Gygax, que colaborou com a organização das regras e chamou inicialmente de Fantasy Game. Incapazes de encontrar uma editora, eles renomearam o jogo para Dungeon & Dragons (D&D, numa tradução literal: Masmorras e Dragões). Até o fim de 1973, muitas cópias de pré-lançamento do Dungeons & Dragons entraram em circulação, então Gygax escreveu o prefácio do que viria a ser o primeiro Livro de Regras de Dungeons & Dragons, destacando quatro espécies, até então chamadas por “raças”: Humanos, Anões, Elfos e Hobbits, bem como três classes: Guerreiros, usuários de magia e clérigos. O jogo também apresentou estatísticas individuais que ainda não existiam: Força, Inteligência, Sabedoria, Destreza, Constituição e Carisma, algo bem diferente dos jogos anteriores, descrevendo características específicas de uma pessoa, não de uma unidade. E então, em 1974, Dungeons & Dragons foi oficialmente publicado como primeira versão comercial, do que viria a ser o primeiro jogo de RPG comercial. 42 Porém, esse aspecto específico direcionado às espécies influenciou e foi influenciado pelo universo ficcional criado por John Ronald Reuel Tolkien, conhecido como J. R. R. Tolkien, autor de grandes obras literárias do gênero de Fantasia Medieval, publicadas entre as décadas de 30 e 60, tendo como as mais populares: O Hobbit e O Senhor dos Anéis. Obras cujas qualidades narrativas são as mais fortes referências para as mais variadas linguagens, tanto literárias como cinematográficas. E, como sabemos, os jogos digitais e não digitais são totalmente afetados por esse tipo de produção. Pois são produtos consumidos por um públicoalvo formado por uma rede mercadológica que industrializa o entretenimento. Soa óbvio, mas os aspectos visuais presentes nos detalhes, descrições e posteriormente produções visuais e audiovisuais, reforçam presença das mesmas espécies desenvolvidas para os clássicos tRPGs por um modelo maniqueísta, como binarismo moral, classificando “raças” cujos juízos de valor se dão por aparências. De modo observável, as tecnologicamente avançadas e eruditas como boas, tendo uma predominância étnica referida ao mundo real como proveniente do hemisfério norte, e as cuja aparência eram desagradáveis, desprovidas de “progresso” como ruins. Numa cultura-pop alimentada por países ricos, nada mais tendencioso para operar juízo de valor até em países que não pertencessem ao mesmo bloco econômico, mas que consumissem uma cultura popular hegemônica. A observar, a própria história da antropologia legitima o estranhamento e distanciamento para povos autônomos e colonizados como não civilizados. Os fatos históricos expõem a compreensão do mundo sob óticas questionadas em nosso período contemporâneo. Portanto, cabe compreender que os jogos foram produzidos mediante os contextos midiáticos e industrializados. Essa observação parte do entendimento de que há uma enorme ausência de obras como jogos ambientados ou contextualizados em culturas que não as economicamente dominantes. Costumamos lidar com as apropriações geradas por grandes monopólios que usam o entretenimento para nos ensinar o que é Egito, países do continente asiático sob narrativas não produzidas pelos mesmos. E mesmo assim ainda são raras as representações nos jogos de RPG ambientadas em narrativas como O Livro Das Mil e Uma Noites, ou mesmo os Vedas indianos ou narrativas populares do continente africano, povos indígenas e autônomos espalhados no mundo. 43 No entanto, os jogos de RPG se aproximam bastante das atividades lúdicas da cultura popular de diversos povos, tais como contação de histórias, brincadeiras de faz de conta e várias outras atividades que se envolvem em processos criativos e de improvisação. Estes processos presentes no RPG se desdobraram em vários gêneros e subgêneros, formando um guarda-chuva daquilo que temos como jogos de faz de conta, ao ponto de que o D&D remete a categoria que chamamos de tRPG (tabletop role-playing game). Outras categorias de destaque são as leituras interativas, também conhecidas por livros-jogo, aventuras solo, entre outros termos e os RPGs digitais e demais jogos que surgiram posteriormente para plataformas digitais. E é claro, nosso principal objeto: O Live Action Role-playing, o Larp, que em diversos momentos se cruza com o tRPG, como vem sendo observado no decorrer deste estudo. O tRPG, como tipo de RPG mais popular no Brasil, ao lado dos atuais jogos digitais, é um tipo jogo cujas regras são indexadas e documentadas em livros conhecidos como módulos básicos, normalmente o conjunto de regras que compõem a estética de um tipo de RPG é chamado de sistema. Por exemplo: As regras presentes no RPG D&D foram adaptadas para o predominante uso do poliedro de vinte faces, dando o nome do sistema de D20. É comum que um conjunto de regras carregue o título do sistema ou do cenário que ele faça parte. No entanto, as exceções costumam ter um forte destaque. Por exemplo: A editora White Wolf desenvolve o cenário de horror World of Darkness (Mundo das Trevas), para jogar nessa ambientação se utiliza as regras que dão o nome ao sistema: storyteller (narrador), no qual jogadores escolhem módulos básicos específicos com regras adaptadas para jogar com criaturas místicas como vampiros, lobisomens e outras lendas populares. Diferente dos wargames, o tRPG não é competitivo. Como a trama se desenvolve conjuntamente, pela participação dos jogadores e suas respectivas decisões e ações, consideramos como um jogo colaborativo. Como um jogo que só ocorre com a participação de mais de um jogador, tanto a criação ou adaptação da história, bem como de personagens perpassa pela interpretação de seus jogadores, de como seja essa relação subjetiva de personalidade e ambiente, tanto em unidade dialógica como individualizada pelos respectivos participantes, dadas as diferentes experiências de vida e conhecimentos que cada um tenha adquirido por mídias que tiveram contato. 44 A dinâmica de jogo do tRPG se caracteriza também pela sua configuração. O termo tabletop (acima da mesa; mesa) refere-se ao espaço onde o mesmo ocorre tecnicamente, por isso, em uma tradução livre, popularmente chamamos no Brasil de RPG de Mesa. Ainda abordando essa configuração, o tRPG geralmente conta com a participação de um ou mais jogadores e um jogador especial chamado de mestre, narrador, game master, dungeon master entre outros termos. O papel desse jogador é de mediar os acontecimentos e a relação entre o metajogo e a dramatização da história construída enquanto o jogo estiver ocorrendo. É muito comum que a base da história e a orientação sobre os tipos de personagens sejam orientadas por este jogador. Ele também é responsável não só por criar ou adaptar, como também interpretar os NPCs (Non-player characters), que são personagens não pertencentes aos jogadores, cuja função é contribuir para o desenvolvimento das cenas. Para quem desconhece, muitos dos termos utilizados nos jogos de RPG se assemelham a termos que conhecemos de outras manifestações artísticas, tais como o cinema, a televisão, a literatura e o teatro. Alguns exemplos são: personagens, cena, cenário, figurino, papel, interpretação, narrativa entre outros. Estas características artísticas nos jogos de RPG, bem como suas capacidades de transitar por diferentes plataformas, fornecem aos RPGs um caráter transmidiático (JENKINS, 2013). Como uma mídia apropriada e massificada na cultura pop, o RPG passou a influenciar e ser influenciado por toda indústria criativa. Seja quando adaptam obras do cinema para esse tipo de jogo, ou quando esse tipo de jogo é exposto num programa ou série de tv como parte do entretenimento das personagens. Assim, séries animadas foram criadas como campanha publicitária de jogos como D&D. Com um título homônimo ao jogo, a série de tv Dungeon & Dragons produzida pelas empresas Marvel Productions, TSR e Toei Animation de 1983 a 1985, que carrega o mesmo nome do primeiro jogo de RPG comercial citado anteriormente. Aqui no Brasil a série foi difundida com o título Caverna do Dragão, geralmente nas manhãs de diversos programas infantis da Rede Globo, e contava com uma diversidade de personagens relacionados às classes (ofícios e atividades dos personagens) presentes no jogo homônimo. Nessa série, seis jovens viajam para uma outra dimensão após entrarem em um brinquedo no parque de diversões. Nessa nova dimensão, com roupas totalmente distintas das que vestiam em seu 45 mundo, eles se deparam com criaturas fantásticas, como um dragão de cinco cabeças chamado Tiamat e o principal antagonista da série, o Vingador. Esses jovens recebem armas mágicas referentes às suas classes: o gorro para o mago, o escudo para o cavaleiro, a capa para ladina, o bastão para acrobata, o tacape para o bárbaro e o arco para o “guarda” (tradução literal para ranger). Devido a esses exemplos, os jogos de RPG tiveram uma forte influência e foram muito influenciados pelas culturas pop dos anos 80 até os dias atuais. Mas isso não retirou sua preservação, autonomia e possibilidades que se desdobrasse em novas linguagens. Em seus estudos, José Abrão (2018) aborda que: "A forma como lidamos com a mídia nos ajuda a moldar nossas identidades e nossa visão de mundo, e o jeito de se pensar mídia e comunicação está bem no meio de uma fase de transição gerada, grosso modo, pelo advento da internet.". Ao pesquisar jogos sob o olhar da comunicação, conectando autores como McLuhan, Castells e Jenkings, ele reforça as teorias de que as tecnologias mudam, mas que o conteúdo simbólico permanece. Portanto, terminologias e discursos comuns nos produtos acessíveis à cultura pop podem relacionar distintas linguagens dos jogos. Isso quer dizer que o Larp se modernizou em conjunto com diversas mídias e tipos de jogos. Produções para TV, cinema, jogos eletrônicos e outros, compreendem possibilidades de se autopreservarem enquanto dialogarem com os discursos consumidos por quem joga. As relações afetivas pelas quais produções envolvem o público consumidor de jogos podem abusar da metalinguagem, seja quando constroem frases memoráveis de personagens que protagonizaram a série de TV The Big Bang Theory ou Stranger Things. Esta série, especificamente, traz uma ambientação nos anos 80, com suas respectivas manifestações culturais entre os jovens: seja pelas referências sonoras e visuais, seja pelos hábitos muito bem reproduzidos. A série usa fortes referências cinematográficas, sonoras e literárias presentes nos anos 80, para atender ao gênero de terror e ficção científica, tornando fácil de perceber linguagens próximas de Spielberg, Stephen King e John Carpenter (GOLDMAN, 2016). A primeira vez em que os protagonistas da série aparecem, eles estão jogando o tRPG D&D, da maneira como é jogado originalmente e até tradicionalmente por muitos grupos: à mesa, jogadores, mestre, livros de regras, dados e miniaturas. O foco aqui é para como as linguagens comuns a uma cultura 46 passa a integrar outra, de modo que consumidores de um produto se identifiquem como consumidores de outro produto. Um forte argumento pode ser encontrado nos estudos de Firmino (2018, p. 46), quando, ao analisar Jenkins (2013), conectando os estudos de jogos e o olhar da comunicação interpreta que: Nosso relacionamento pela mídia e com a mídia se tornou muito mais pessoal e social. Se antes era necessário esperar para ver um programa de TV, por exemplo, os novos formatos permitem ao consumidor selecionar o que ele quer ver na hora em que ele quer ver. O sucesso de um produtor de mídia passa a ficar muito mais nas mãos do consumidor que, tendo mais opções, vai consumir o que conquistar sua atenção em um mar de informações. Esse pensamento é importante para compreendermos o caráter flexível, dialógico com a maneira pela qual nos apropriamos dos referenciais e repertórios produzidos para as mídias diversas, que no caso de hoje, a internet se tornou uma poderosa potência e, como reforçam os autores estudados por Abrão (2018), quando este documenta que as novas tecnologias expandem o sentido de comunidades. Isso permite que de qualquer parte do mundo um conteúdo interessante a um grupo de Larp ou tRPG possa contribuir para outro. Então, ao associarmos as demandas de consumo de certas características de um gênero de Larp, outro estilo passa a nascer, ou como dizemos quando algo é adaptado no Brasil: o Larp pode se abrasileirar. E esse potencial mecanismo transformador age de várias maneiras na subjetividade da produção técnica e de como controlamos o processo imersivo, tão presente em um Larp praticado em países escandinavos, por exemplo. Tal aspecto da relação da indústria do RPG com a cultura é observável quando, ao analisar o ambiente ficcional de RPG World of Darkness não termos vampiros de origens no continente americano, mas temos os que vieram juntos a colonizadores. Do mesmo modo, no mesmo ambiente ficcional, pouco é citado sobre as práticas místicas relacionadas à historicidade dos povos de origem no continente africano. Portanto, localizar práticas da cultura dentro desses jogos costuma se manifestar mais como parte de regras implícitas, muitas vezes como um comportamento duplamente vivenciado (SCHECHNER, 2006), como quando algum descendente indígena tem contato com o jogo e intuitivamente reproduz práticas de sua realidade sem que esteja perceba. 47 2.2. LARP Iuama (2016, p.11), pesquisador de Larp na área da comunicação, em sua dissertação, aborda uma básica distinção entre Larp e tRPG: (...) as próprias limitações e características de cada um dos jogos (narrativa oral e narrativa dramática) faz com que o desenvolvimento de cada um seja distinto. RPG tendem (mas não se resumem) a tramas mais voltadas à ação, enquanto larps costumam (embora também não se restrinjam) desenvolver tramas mais centradas em diálogos. Isso porque, nos RPG, existe a liberdade de, oralmente, narrar quaisquer situações, como batalhas ou perseguições. Nos larp, por outro lado, a representação feita pelos próprios participantes inibe ações fisicamente mais intensas. Já para Falcão (2013), organizador de Larps e autor do livro LIVE! Live Action Roleplaying, um guia prático para larp, descreve Larp como: (...) um jogo de interpretar personagens e um tipo de arte participativa. (...) uma experiência imersiva, uma vivência e um jogo relacional. (...) os participantes vão improvisando suas ações e se relacionando uns com os outros como se fossem seus personagens. A história então se desenrola a partir das escolhas e ações dos participantes, na medida em que interagem uns com os outros. Ainda, segundo Falcão (2013), o Larp pode ter elementos da performance ou do teatro e em alguns momentos se parecer com ambos, mas o larp tem uma linguagem própria. A principal qualidade do Larp é de que ele não é feito para ser visto... é para ser vivido. Tresca (2011), diz que qualquer brincadeira de infância com envolvimento da imaginação e faz de conta poderia ser tratado como Larp. Dos xamãs performando rituais a respeito dos seus contos, mitos e lendas, até crianças brincando de ser outra pessoa, o Larp sempre tem sido parte da experiência humana. A Commedia dell’Arte do século 16 é uma forma precoce do Larp. Outros exemplos dados por Michael Tresca são o Modelo de Organizações Internacionais: Um evento cuja duração é de geralmente cinco dias, formado por estudantes secundaristas ou universitários por diversos órgãos das Nações Unidas com a intenção de criar uma prática didática das conferências oficiais das práticas parlamentares das relações políticas e internacionais. Além de Jacob L. Moreno, que utilizou o formato de Larp para uma proposta psicoterapêutica que foi chamada de psicodrama. E, é claro, Viola Spolin e Keith Johnstone, que iniciaram nos anos 50 uma improvisação moderna, chamada de jogos teatrais. Spolin usou esses jogos para treinar atores ao invés do puro entretenimento. 48 A história do Larp é muito nebulosa. Poderíamos relatar o processo das brincadeiras entre os animais e como os povos antigos também brincavam de “simular combates” desde a infância, sendo a brincadeira e o jogo algo biológico (HUIZINGA, 2000). Traçar um perfil histórico do Larp é complexo, à medida que temos poucas referências sobre suas possíveis origens. E falar da estrutura do Larp enquanto jogo seria como realmente traçar um paralelo com os RPG. O papel analítico do amadurecimento do Larp como cultura é parte deste estudo. Portanto, a profundidade do mesmo se caberá por meio de novas fontes e dados coletados ao longo da pesquisa. Falcão (2013), relata que Larps podem ser pequenas produções, feitas em casa, por pequenos grupos (amigos e familiares), como também podem ser produções complexas, exigindo uma grande estrutura (um grande evento reunindo pessoas distintas de várias partes do mundo). Ainda, segundo ele, a duração e o espaço podem exigir uma dinâmica do grupo que realiza o larp, assim como a dinâmica pode exigir uma dada duração e espaço. Os espaços de um larp podem ser de um quarto em casa, como um espaço teatral ou mesmo um enorme campo aberto. Tudo varia conforme o tipo de larp a ser praticado. Concordando com o Luiz Falcão, cabe reforçar que não há plateia ou roteiro, o que distingue o Larp de diversas outras manifestações artísticas. Como também, diferente de muitas práticas lúdicas, o larp não necessariamente é interativo, mas é totalmente participativo. Deste modo, Falcão (2013, p. 20) reforça que: Interatividade implicaria em fazer escolhas em sistemas que prevêem quais respostas dar para essas escolhas. Participativo não. Não há um sistema definido para lidar com suas escolhas, como num jogo de computador, por exemplo. As reações do sistema são completamente orgânicas, afinal, você está lidando com outras pessoas. A principal característica dos jogos de RPG são a espontaneidade, e o Larp leva ainda mais à risca o sentido dessa espontaneidade à medida que todos os jogadores encontram-se em um mesmo contexto, onde não há um desfecho ou decisões e respostas preestabelecidas. Interpretar um personagem para um Larp é muito diferente de interpretar para televisão, cinema ou teatro. Pois se considera que são situações distintas, onde o fato de haver um ator no grupo não determina como a dramaticidade do outro seja menor. Vale lembrar que o Larp é uma atividade imersiva, passiva de uma série de possibilidades dramáticas. 49 Os tipos de Larp costumam variar de acordo com os objetivos práticos e interesses do grupo que esteja organizando o jogo. Alguns estilos se conservam bem fechados em algumas características, outros se misturam, formando novos gêneros. O valor estético de cada tipo de Larp é como o de qualquer outro tipo de arte. Uma experiência poderia provocar de prazer a repulsa. Mas os tipos de Larp costumam facilitar a imersão em um contexto e consequentemente os tipos de emoções que possam ser sentidas e externalizadas no processo. Existem tipos para atender todos os interesses. E cabe aqui reforçar que cada vez que um mesmo Larp é jogado, as experiências são completamente distintas das anteriores. As possibilidades se multiplicam à medida que se joga tipos diferentes. Como que cada tipo funcione como idas a um museu, galeria, teatro ou cinema. Um dos estilos mais famosos de Larp é o Boffer. Esse gênero costuma ser facilmente identificado pela conexão com a cultura pop: fantasia medieval ou distópica, narrativa épica, magia, aventuras, monstros, ferramentas mágicas e todo aparato fantasioso para que um grupo pequeno de participantes ou mesmo um numeroso, em um evento amplamente organizado, possam imaginar e narrar o tilintar de espadas enquanto alguém lança bolas de fogo. Os Larps conhecidos como Boffers costumam ser relacionados tecnicamente a aventuras de RPG de Mesa, como D&D, pois linguagens comuns às relações entre regras, narrativas, universos ficcionais e construções de personagens são facilmente identificadas nesse estilo. Ao lado do Boffer, existem Larps como o Swordplay, Live Steel e Salon. O Swordplay é amplamente conhecido por ser mais focado em lutas com espadas, bastões e outros armamentos feitos com espuma e/ou materiais que não provoquem qualquer machucado a quem participe. A estética deste tipo de larp é o combate. Figurino, narrativa ou mesmo cenografia são componentes mais cosméticos para esse gênero, ainda que grupos diversos misturem com outros gêneros e criem campanhas ou aventuras curtas com detalhes riquíssimos para compor a experiência de jogo, formando um diferencial a todo evento de swordplay produzido, mediante uma temática. O Live Steel é conhecido por utilizar um processo mais realista de detalhes, como armaduras, confrontos em arenas e simulações de combates entre cavaleiros, soldados, guerreiros de modo mais espetacular, como um esporte. Alguns eventos de Live Steel podem reproduzir cenas históricas de guerra. Portanto, a estética 50 deste gênero envolve a experiência da reprodução e as respectivas possibilidades representar minuciosamente cada detalhe do figurino, cenário, combates e principalmente o armamento. Já o Salon engloba encontros como banquetes, participantes com trajes e acessórios de época, música e um trabalho muito focado na cenografia e contexto temático. A experiência estética deste tipo de Larp costuma ter um perfil de encontro ou festival anual. Alguns Larps Salon podem acontecer em ambientes abertos, como um parque, fazenda ou sítio em conjunto com Larp do tipo Boffer. Outros, seguindo o nome que intitula o formato desse Larp, acontecem em locais fechados, salões, algumas vezes em um espaço que enriqueça o cenário, como uma construção histórica. À medida que Larps se tornam mais específicos, começam a surgir tipos mais voltados para trama. Muitos destes Larps possuem uma estética muito comum às literaturas de fantasia, horror, romance policial, faroeste e todos os possíveis aspectos dos conflitos sociais e da relação subjetiva com o universo que nos cerca. Entre esses tipos de Larps temos o Mind’s Eye Theatre, produzido pelo By Night Studios. Esse tipo de Larp é totalmente conectado e ambientado no universo ficcional World of Darkness, produzido pela White Wolf: a mesma desenvolvedora de jogos de tRPG populares como Vampiro: A Máscara, Lobisomem: O Apocalipse e Mago: A Ascensão. A estética deste tipo de Larp se baseia em horror e punk gótico. Isso quer dizer que a temática, os discursos e problemas enfrentados por personagens deste tipo de trama está totalmente envolvido por questões de mistério, poder político e social, assuntos místicos envolvendo lendas urbanas e como estas se preservam no caos do mundo contemporâneo e suas novas tecnologias. Neste tipo de jogo, tanto como tRPG ou como Larp, participantes constroem personagens que vivem conflitos identitários e com o estranhamento de algo que os tira das normas humanas, fisicamente, biologicamente, mentalmente e/ou espiritualmente. Muitas editoras e lojas brasileiras especializadas em jogos não digitais promovem, desde os anos 90, eventos nos quais os Larp de WoD são praticados como uma expansão do tRPG. É muito comum que participantes e entusiastas desse gênero de Larp o chame apenas de Live ou Live-action, pela maneira como as editoras e empresas que organizam esses eventos ainda chamam 51 tradicionalmente assim. Por questões logísticas, estes Larps se aproximam bastante da estética Salon, permitindo que ocorram nos espaços das lojas ou locações fechadas contratadas por quem organiza os eventos. Os Larps de WoD ganharam destaque pelas misturas de ficção científica com os mistérios de mitos e lendas urbanas presentes em produções literárias e audiovisuais contemporâneas. Geralmente este Larp costuma ter um alto investimento em figurino e longos diálogos de disputas de poder. Ostentar joias, roupas, conversas sobre arte, luxo, geopolítica e versões pessoais da história do mundo são comuns a vampiros. Tal como livros, artefatos, broches, camafeus e outros acessórios podem conter misteriosos encantamentos nas mãos de magos, ou mesmo peças ritualísticas e tatuagens formarem conexões espirituais de Lobisomens com espíritos ancestrais da natureza. A franquia Harry Potter, de autoria da J. K. Rowling e seu universo ficcional, também exerce uma forte influência no consumo de Larps com linguagens e estéticas mistas. Alguns desses Larps seguem completamente a trama, se desdobrando em expansões transmidiática do universo ficcional desenvolvido para franquia. Outros tomaram a base desse universo para criar ambientações que não precisassem prestar contas à franquia, tendo uma liberdade maior para como e por quais caminhos poderiam seguir, sem que dependessem de uma storyline canônica. Um exemplo comum é o Larp College of Wizardry, baseado no College of Witchcraft and Wizardry, da franquia Harry Potter. Esse tipo de Larp ganhou suas próprias qualidades, mesclando diferentes estilos, como Boffer, Salon ou mesmo o aspecto competitivo do Swordplay ao simular esportes ou confrontos mágicos, passou por um auge e atualmente o evento encontra-se em dificuldades para sua manutenção e continuidade. Numa tentativa de permanecer, seus organizadores decidiram criar uma campanha e financiamento coletivo para arrecadar dinheiro para pagar as dívidas e demais despesas para prosseguirem com o Larp. Para Sumar (2016, p.7), a construção do jogo passa por três pilares: College of Wizardry é um larp sobre uma escola mágica, onde jovens espirituosos vão estudar magia avançada. É também uma instituição com mais de mil anos de idade e com todos os elementos de um antigo colégio interno; Rivalidades de casas, clubes secretos, rituais antigos e dúzias de tradições. (...) é, antes de mais nada, um larp de uma escola, e deveria parecer uma escola. Rivalidades e tradições escolares são importantes aqui. Magia pode ser real, mas a vida escolar também é! Em segundo lugar, College of Wizardry é um larp sobre jovens que exploram a vida e adultos que a definem. A idade do jogador não importa, mas jogar com um Junior ou um Sênior é muito importante. (...) é também um larp sobre 52 bruxas e bruxos, mas isso vem em terceiro lugar. Confrontos mágicos e épicos são mais interessantes se não usadas em demasia. Maravilhas são melhores em doses! Seguindo por um caminho de emoções do suspense, da adrenalina, certos tipos de Larp se popularizaram com práticas comuns a romances policiais ou obras midiáticas de assuntos mais críticos, como lidar com os próprios medos, terror psicológico, inimigos invisíveis, ameaças externas, experimentar uma realidade com poucos recursos ou em parâmetros totalmente fora do alcance de quem participa. Esses Larps envolvem principalmente os chamados Murder Mistery e Survival. Segundo Falcão (2013, p. 33): Murder Mysteries são jogos populares há séculos! Talvez eles possam ser considerados os avós dos larps e são realizados pela Europa, provavelmente, desde a era vitoriana. (...) há um assassinato (ou roubo) que faz parte da trama e os jogadores devem investigar o local onde se passa o jogo atrás de pistas para solucionar o mistério. Os jogos do tipo Murder Mystery se manifestam como vários tipos de jogos sociais, em rodas de amigos. Normalmente envolvendo títulos como um assassino, um investigador, um advogado etc, que se baseiam em dicas, pistas, blefes e códigos de linguagens corporais para resolver o mistério. Enquanto os Survival possuem uma estética de resistência, por alguma ameaça biológica, mística, tecnológica ou alienígena, experimentar limites em um dado contexto de limitações e fugas. É muito comum que sejam adaptados para cenários contemporâneos ou futuros distópicos, pós apocalípticos. Obras audiovisuais relacionadas a “apocalipse zumbi” costumam ser a maior referência desse gênero de larp. Simulações costumam entrar no guarda-chuva do roleplay, mas suas relações recreativas ou experimentais não as enquadram como um tipo de jogo. Mesmo que recreativo, um encontro de jogadores de paint-ball só se torna larp caso participantes agenciem uma trama para que protagonizem como personagens, dentro de um contexto ficcional. Assim como, uma equipe de treino para segurança do trabalho, brigada de incêndio ou mesmo instrutores para cursos do campo de saúde podem adaptar técnicas do teatro de improvisação como um modelo no qual haja características e sensações de jogo. É comum que esteja em uma atividade performática, como um jogo, saiba que estão jogando. 53 2.2.1. Larp Nórdico Adotando aspectos menos fantasiosos e mais fatos reais, com poéticas e experimentos emocionais, certos larps mesclam o melhor de cada gênero para sua construção técnica, mantendo um aspecto específico deste tipo. Um exemplo são os chamados Larps Nórdicos, com abordagem e estética mais adulta, materialista e poética. São assim chamados por terem se tornado uma prática muito comum em países como Finlândia, Suécia, Noruega e Dinamarca. Existem diversos subgêneros de Larps Nórdicos, muitas vezes se mesclando ou tendo mais de um estilo como base comum. No sítio virtual oficial das produções de Larp Nórdico, a nordiclarp.org (2019), consta a seguinte descrição: Larp Nórdico é um termo para tradições de Larp compartilhadas na Noruega, Suécia, Dinamarca e Finlândia. O que diferencia as tradições nórdicas de larp é uma forte ênfase na colaboração e criação coletiva, regras discretas, bem como uma rica variedade de estilos de jogo e configurações, às vezes incluindo temas pesados. Uma das principais e inegáveis características das tradições do Larp Nórdico é a propensão de imersão dos participantes. E esta pesquisa envolve precisamente o entendimento desta prática e como esta dialoga com rituais e experiências transformadoras, a partir dos autores trabalhados aqui. A escolha por um autor que abordasse a imersão dentro da prática de Larp se deu pelas referências utilizadas pelo mesmo. Stenros11 (2010, p. 300), como um dos maiores estudiosos de Larp da atualidade, tem uma crítica pontual sobre a prática comum de imersão no Larp Nórdico e como é importante ter o estudo da psicologia para compreender o contexto: Embora o objetivo em larps nórdicos seja muitas vezes uma completa ilusão, e perder-se em um personagem é muitas vezes visto como desejável, na prática isso só acontece momentaneamente. (Afinal, a completa imersão do personagem seria mais parecida com a psicose do que com o jogo). A desenvolvedora de larp finlandesa Ranja Koverola (1998) descreveu larp como um colar de pérolas. As pérolas são momentos perfeitos no jogo, quando a ilusão do mundo está completa. Em vez de pensar em interpretar um personagem, você é o personagem. Alguns colares têm mais pérolas, outros têm menos. O colar de pérolas contínuo é inatingível, mas suas ambições são parte da estética dos larps nórdicos. Jaakko Stenros (PhD) é professor universitário em Ludologia, trabalhando no Centro de Excelência em Estudos da Cultura do Jogo (no Game Research Lab, Universidade de Tampere). 11 54 A partir deste ponto, considero a necessário reforçar certas proximidades e distanciamentos entre Larp e Teatro. À medida que a pesquisa se desdobra com a explicação de estudiosos e seus respectivos conceitos e demais estudos, é importante lembrar que as poucas referências e literaturas acadêmicas a respeito do Larp costumam se restringir a poucos nomes em sua produção. Por isso, as relações do Larp com o Teatro são necessárias para uma breve compreensão introdutória do que se trata o primeiro, uma vez que existem muitas práticas comuns como figurino, cenografia e/ou sonoplastia. No entanto, é inegável que não haja uma natureza artística, seja pelas referências, seja pela produção, seja pelo desdobramento ou mesmo pela construção prática da performance. Mas como identificar as proximidades e diferenças? No Larp, participantes constroem personagens e com eles passam a viver experiências não ensaiadas. Costumo dizer que o ensaio para o larp é a vivência e repertório adquirido de saberes, habilidades e emoções na vida cotidiana, que antecedem o ritual, que antecedem a prática. Stenros (2010) alega que “improvisação e performances são tão centrais ao Larp que à primeira vista é difícil distinguir do teatro” e que “a estética de participação é distinta da estética de plateia e distanciamento”. É importante lembrar que o Larp não necessariamente é composto por artistas formados em atuação. Quando estes participam de um Larp, geralmente é por interesse pessoal. É como ser cantora e atriz. São práticas distintas, mas que se conectam em uma série de contextos, e podem até auxiliar uma a outra. No Larp, por exemplo, a importância dos profissionais de teatro ajuda na dramatização, nos exercícios de voz, gestos, expressões. Especialmente para quem tem mais entusiasmo com a imersão. Do mesmo modo, profissionais que lidam com questões técnicas como contra-regras, quem usa máquinas de fumaça, ou quaisquer aparelhagens que colaborem com a dramatização. No teatro, o Larp contribui com os exercícios apropriados por bastante profissionais da dramaturgia que realizam preparo de atores mediante certos contextos improvisados e exercícios recreativos que fazem parte do Larp. Uma maneira de observar o Larp é sob a ótica dos jogos digitais. Imaginando que o avatar do personagem é uma materialização virtual pela qual jogadoras e jogadores personalizam a construção visual da personagem para uma melhor 55 interpretação. Esse tipo de prática também é comum em uma outra atividade, às vezes confundida com o Larp: o cosplay. Cosplay é a abreviação do inglês costume play, ou ato de vestir-se e agir como um personagem ficcional. Uma prática na qual fãs de personagens da cultura pop estudam maneiras de viver experiências trajando o figurino, maquiagem e acessórios dessas personagens e interagindo socialmente em eventos destinados a reunir consumidores desta cultura. A construção do cosplay é uma etapa comum ao Larp. Com a diferença de que os conceitos de personagens costumam ser desenvolvidos por seus ilustradores, comumente das séries ilustradas ou animadas japonesas ou de quadrinhos de super-heróis ou franquia de jogos da indústria dos videogames. O ato de desenvolver o cosplay, pesquisando acessórios, tecidos, costurando, é comum a ambas as artes. E é comum também que cosplayers sejam larpers e vice-versa, uma vez que uma atividade também possa auxiliar uma a outra nos quesitos técnicos de figurino. No Larp, todo conceito é desenvolvido por quem constrói o personagem. Imaginar como a personagem se veste, desenhar croquis e em seguida passar pelas mesmas etapas do cosplay. Profissionais de moda, figurinistas, certamente é uma ocupação pela qual o conhecimento técnico e teórico costuma dialogar bastante, seguindo trajetórias de amadores a profissionais. Do mesmo modo, um Larp baseado em um universo ficcional pronto já possui conceitos e se aproxima muito mais do cosplay com as dramatizações improvisadas. Mas há também exceções. Certos Larps organizados fixamente por grupos, como uma espécie de franquia, como no caso do CoW, que possui uma estética muito próxima da franquia Harry Potter, sua referência. Alguns encontros live steel já possuem armaduras e acessórios disponíveis para seus participantes, geralmente alugados ou cobrando alguma taxa, relacionada à manutenção do equipamento. Neste caso, onde personagens são mais efêmeros, figurativos, temporários, é comum que os conceitos venham pré-montados. Portanto, Larp é uma performance recreativa, praticada de diversas maneiras, mas identificada pelas práticas do fazer de conta. No seu uso mais popularizado, o Larp envolve práticas que motivam a imersão em personagens, como o estudo para que seus jogadores possam caracterizá-los, a partir de conceitos geralmente desenvolvidos por estes mesmos jogadores. Há larps com regras específicas, geralmente determinadas pela estética proposta por quem o 56 organiza. Um aprendiz de bruxo da CoW dificilmente poderia utilizar um phazer da franquia Star Trek, ou um sabre de luz da franquia Star Wars. A menos que haja um propósito elaborados por seus organizadores para que haja um equipamento exótico à estética do tipo de Larp praticado. Identificar o Larp dentro dos estudos de performance é também perceber possibilidades de compreensão individual do sujeito performer, pois manter-se no papel, no faz de conta, depende sempre do modo como as nossas experiências encontrem caminhos nas impressões que os outros passam. E, para o Larp ou qualquer brincadeira, isso consiste na nossa relação de blefe, troca de interesses e outros códigos criados para lidar com a situação vivenciada. Para Goffman (1956), como já dito anteriormente, os sujeitos tendem a criar e viver situações de “primeira impressão” pela maneira como se constrói o olhar do outro mediante uma apresentação. Moldar o que outra pessoa pensa, provocar sensações de agrado, prazer, repulsa é algo estudado dentro dessas teorias. É claro que todo esse processo se dá mediante uma troca. Poderíamos dizer que funciona como um jogo participativo, sem necessariamente conseguir premeditar a resposta do próximo. Quando Goffman (1956) teoriza uma concepção de realidade análoga ao teatro, podemos observar todos os seus exemplos no contexto do que conhecemos por teatro. Porém, se considerarmos os mesmos exemplos sob a analogia do Larp, ou mesmo sob a prática, é possível observar menos a passividade dos presentes, pois na prática do Larp todos estão atuando. A relação de distanciamento entre ator e espectador é substituída por quem está em ação, dada a concepção de que todos os presentes estão atuando de acordo com seus graus de segurança, dramatização e conhecimentos prévios ali como repertório emprestado à personagem. Ao ler a referência selecionada sobre o estudo do Erving Goffman, compreendi seu título como Expressão do Eu na Vivência Cotidiana, dada a possibilidade de perceber Expressão e Vivência numa continuidade tão sublime quanto o que entendemos por experiência. A formação do self é um processo dialógico, dado numa interação social. Ao interagir e participar em um contexto compartilhado, os recortes da específica experiência provocam transformações que podem carregar um aprendizado por toda uma vida. Uma gíria, um gesto, uma frase, um conhecimento, um exercício para o desenvolvimento de uma habilidade. 57 Quando se cria um personagem para um Larp, selecionando suas características, conhecimentos, habilidades e detalhes psicológicos, a pessoa participante do Larp constrói conhecimentos como quem estuda um personagem dado por um diretor. Os Larps mais imersivos costumam ter um intenso trabalho de criação de personagem. Viver as experiências de personagem antes, durante e depois remonta possibilidades de experiências complexas. Para um Larp eu já aprendi vocabulário jurídico para interpretar um promotor, numa corte onde vampiros julgariam uns aos outros. Bem como eu tive que estudar mais detalhadamente sobre histórias e filosofias gregas para construir um sátiro com referência no Diógenes. Essa experiência da construção de personagens, mesmo que seja comum em muitos jogos de RPG não digitais, passa do aspecto descritivo para algo mais dramático no Larp, tanto para quem está com o personagem como para quem interage com ele. No Larp não há roteiro, mas o estudo de referências é essencial para formar um acervo, um repertório que identifica a essência da personagem. Por não haver ensaios até uma apresentação, o Larp confere experiências trocadas em tempo real como “inéditas”. Cabe aqui lembrar que usamos o que aprendemos em nossa trajetória de vida quando performatizamos. Portanto, o ineditismo perpassa o comportamento restaurado (SCHECHNER, 2006). Se entendemos a relação das emoções aprendidas como parte de um repertório do que sentimos medo, do que sentimos raiva, do que nos dá prazer, isso não se torna distinto ao viver um personagem criado. Tal relação com a experiência ganha significado também com Turner (2005, P.180): A experiência incita a expressão, ou a comunicação, com os outros. Somos seres sociais e queremos dizer o que aprendemos com a experiência. As artes dependem desse ímpeto para confessar e declamar. Os significados obtidos às duras penas devem ser ditos, pintados, dançados, dramatizados, enfim, colocados em circulação. Aqui o ímpeto do pavão para exibir-se não se distingue da necessidade ritualizada de se comunicar. O eu e o não-eu, o ego e o não-ego, a autoafirmação e o altruísmo, encontram-se e se fundem em comunicações significativas. Uma experiência vivida em Larp pode ser bastante intensa. E se pensarmos o quanto o Larp é uma experiência imersiva, as sensações podem transbordar a todo momento, fornecendo laços complexos do que entendemos como uma tristeza, do que vivemos por uma tristeza e como é viver a tristeza de um personagem. Neste caso, o comportamento duplamente vivenciado (SCHECHNER, 2006) torna-se 58 ainda mais complexo. Mas perceptível na ótica do que estudamos por autores escolhidos neste estudo. 59 3. CONCEITOS DE EXPERIÊNCIA Larp não é uma palavra muito familiar a muitas pessoas, incluindo pessoas que jogam tRPG; perezhivanie é ainda mais desconhecida para quem não entende russo ou quem não pesquisa a respeito. Na literatura acadêmica ainda há uma grande distância entre ambas as terminologias. Mas como identificá-las e quais suas conexões? Ao se pesquisar de maneira mais rasa, perezhivanie é uma palavra da língua russa que se refere ao ato de experienciar emoções, viver uma experiência, emocionar-se intencionalmente e coisas relacionadas a tentativas de se traduzir ao pé da letra. Falar sobre perezhivanie dentro de um estudo aprofundado envolve saber o que é, como é, por que é de qual perezhivanie estamos falando. Perezhivanie apresenta-se de maneiras distintas, especialmente depois que Vigotski desenvolveu um conceito com o mesmo nome do fenômeno com a intenção de explicá-lo. Muitos autores, especialmente dos campos das linguagens, abordam perezhivanie no seu aspecto emocional, como por exemplo, o dramaturgo Stanislavski, que desenvolveu técnicas para artistas de teatro alcançarem emoções mais intensas. Lev Semenovich Vigotski nasceu em 1896, em Orsha, uma histórica cidade de um país hoje chamado Bielorrússia. De acordo com Van der Veer & Valsiner (2001), Vigotski nasceu em uma família tradicional judaica e, desde cedo, teve contato com literatura, poesia e uma diversidade de linguagens artísticas. Segundo Toassa (2009), Vigotski formou-se na Universidade de Moscou, em direito, uma das poucas profissões autorizadas para judeus, mas nunca exerceu. Bem como em história e filosofia, na Universidade do Povo Shaniavski. Todavia, o título não havia reconhecimento por parte do regime czarista, mas isso não o impediu de se aprofundar cientificamente em várias áreas de conhecimento. Como sujeito interdisciplinar, seus estudos até hoje contribuem para a compreensão dos aspectos culturais, até então não reconhecido na psicologia. Para Vigotski, a cultura e as interações sociais são de grande importância para compreender o desenvolvimento humano. Em momentos distintos da sua carreira, Vigotski abordou sobre perezhivanie. No entanto, é importante salientar que ele formulou o estudo do conceito só no final de sua vida. A complexidade de explicar essa terminologia é maior que suas aplicações. Diversas pensadoras e pensadores terão exemplos dos mais distintos. 60 Schmit (2018), organizou estas informações de maneira sintetizada, de acordo com um sistema que Veresov (2016) utiliza para identificar as perezhivanie: P1) Perezhivanie como fenômeno; P1.1) Processo de experimentar o fenômeno; P1.2) Conteúdo do processo da experiência; P2) Perezhivanie como conceito; P2.1) Refração do meio social; P2.2) Unidade de personalidade e ambiente; P2.3) Unidade funcional da consciência. Como parte de um apanhado histórico, em sua tese, Ferholt (2009) localiza o uso instrumental do fenômeno pelo russo Stanislaviski. Este que foi ator, diretor, escritor e pedagogo, nasceu em 1863, na cidade de Moscou. Ferholt identifica que “perezhivanie foi usado pela primeira vez como mais do que uma palavra cotidiana no sistema dramático de Constantin Stanislavski”. De acordo com Ferholt (2009), Stanislavski instrumentalizou o fenômeno, elaborando o uso de perezhivanie para atrizes e atores criarem personagens mediante o reavivamento das próprias experiências passadas. Ao criarem personagens, revitalizam as memórias emocionais autobiográficas por ações físicas. Fherholt (2009) também identifica a perezhivanie nas definições de comportamento restaurado do Schechner. Este, como já explicado nos capítulos anteriores, ao considerar o processo de fluxo das repetições de experiências e como estas dão uma margem de aprendizado de uma performance à qual exercitamos (SCHECHNER, 2013). Uma das importantes informações dadas por Veresov & Fleer (2016) é que, como dito anteriormente, “essa definição foi retirada de um dicionário psicológico e refletia o significado clássico tradicional do termo perezhivanie como existia na psicologia naquela época, tendo se originado de Dilthey, Dewey e James.” Dilthey, pensador alemão, nascido em 1833, foi filósofo, historiador, pedagogo, psicólogo e sociólogo. Ele ficou conhecido por considerar aspectos da experiência vivida como caráter de desenvolvimento. Em Dilthey, temos o estudo dos fenômenos de experiência vivida como caráter filosófico, segundo Silva (2009, p. 20): A ordem do pensamento diltheyano (...) é de que uma fundamentação epistemológica precisa haver-se com proposições universalmente válidas, e tais proposições podem ser buscadas na estrutura da “vida anímica” ou nos “fatos da consciência”. A vida mesma oferece ao observador a 61 possibilidade de colher desta “experiência vivida” as regularidades que demonstram as relações entre sujeito e dados ou objetos percebidos na experiência sensível. Como observou Turner (1986/2005), Dilthey analisou o fenômeno de experiência vivida (Erlebnis) e suas relações simbólicas. Partindo disso, observamos este fato tal qual Stanislavski e Vigotski fizeram ao tratar de perezhivanie. Quando consideramos as interações simbólicas e o uso desses símbolos como parte da mediação dialética numa sociedade, é possível entender que vários pensadores, mesmo que filosoficamente divergentes, pareciam falar da mesma coisa. John Dewey, por exemplo, possuía uma visão pragmatista, que ele preferiu chamar de instrumentalismo. Nessa corrente o pensamento e ações ganham importância pela sua praticidade e objetividade. Dewey foi um filósofo e pedagogo estadunidense, nascido em 1859. Turner (2005a, p. 178) fornece o seguinte pensamento a respeito da visão de Dewey sobre experiência: (...) parcialmente compartilho, mas que – devo parcialmente concluir – precisa ser superada em relação a um importante aspecto. Dewey (1934) sustentou que as obras de arte, incluindo obras teatrais, são “celebrações, reconhecidas como tais, da experiência cotidiana” (ordinary experience). Ele estava, evidentemente, rejeitando a tendência nas sociedades capitalistas de colocar a arte num pedestal, separada da vida humana, mas comercialmente valiosa dentro de normas estabelecidas por especialistas esotéricos. Turner, em 1986, escreveu um texto presente no livro The Anthropology of Experience chamado “Dewey, Dilthey, and Drama: An Essay in the Anthropology of Experience”, traduzido para o português para publicação Cadernos de Campo, em 2005. Nesse texto, Turner faz uma breve comparação entre Dilthey e Dewey: Turner (2005) coloca pontos em comuns, como ambos pensarem as artes tendo origens nas experiências humanas, nas cenas e objetos do cotidiano, nas quais o teatro é um dos gêneros que reproduzem essas experiências. No entanto, Turner cita a visão de experiência em Dewey de maneira biológica, enquanto Dilthey apresenta um caráter de maior interação, numa influência construída em fenômenos externos, com graus, intensidades diversificadas de tais experiências. Por essa via, Turner (2005a, p. 179) também comenta a presença de especificidade nas experiências e seu potencial formador e transformador: Algumas dessas experiências formativas são altamente pessoais, outras são partilhadas com grupos aos quais pertencemos por nascimento ou 62 escolha. Dilthey via tais experiências como tendo uma estrutura temporal ou processual – elas são ‘processadas’ através de estágios distinguíveis. Ao diferenciar a concepção de experiência em Dewey e Dilthey, Turner (1986/2005) trata um conceito que se desdobra numa “ação reparadora”: drama social. Em termos práticos, o drama social ocorre quando um grupo, uma sociedade, uma comunidade entra em conflito e buscam uma solução para o conflito; seja uma solução que resolva-o ou que concordem que não possa ser resolvido, mas que construam outro caminho até atingirem, em suas próprias palavras, a “normalidade”. Uma referência que o Turner utiliza para explicar sobre o drama social é o fato do teatro reproduzir aspectos da vida social cotidiana, nas suas mais variadas estéticas. Segundo Turner (2005b, p. 182) ritualização da ação reparadora pode se manifestar na forma da lei ou religiosamente, pois: Os processos judiciais acentuam a razão e a evidência; os processos religiosos enfatizam as questões éticas, as maldições ocultas que operam através de bruxarias, ou a ira dos ancestrais contra as quebras de tabu ou a impiedade dos vivos em relação aos mortos. Do início ao seu encerramento, um drama envolve ações reparadoras. Conflitos, antagonismos, todas as etapas para que personagens concluam seus ciclos normalmente perpassam por contextos narrativos dentro de um fluxo. Um processo de busca pela normalização. Segundo Turner (1986/2005b, p. 184), é importante reforçar o quanto o teatro busca referências na realidade e nas narrativas orais, fictícias ou não, documentadas pela sociedade. O teatro é uma dessas muitas herdeiras do grande sistema multifacetado que chamamos de “ritual tribal”, que abrange idéias e imagens do cosmos e do caos, interdigitando palhaços e suas folias com deuses e suas solenidades, e fazendo uso de todos os códigos sensoriais para produzir sinfonias para além da música: o entrelaçamento da dança, de diferentes tipos de linguagens corporais, canções, cânticos, formas arquitetônicas (templos e anfiteatros), incensos, oferendas, banquetes ritualizados, pinturas, tatuagens, circuncisões, escarificações, e marcações corporais de muitos tipos, a aplicação de loções e a ingestão de poções, a encenação de tramas míticos e heróicos retirados de tradições orais – e muito mais. Ao interpretar o conceito de liminaridade de van Gennep para compreender a experiência transformadora de um grupo, Victor Turner (1986/2005b) configura as três fases elaboradas por van Gennep em sua obra Os Ritos de Passagem - são elas separação, margem e agregação - sendo a margem o processo intermediário liminar. Nesta fase, os fenômenos de experiência ocorrem, separando os sujeitos 63 envolvidos da realidade, transportando e transformando estes para novos processos de representação simbólica, tal qual interpretou Schechner (2011) a respeito do comportamento restaurado e Huizinga (2000) em seu círculo mágico. O fenômeno de experiência singular, Erlebnis para Dilthey, Perezhivanie para Vigotski, é caracterizado como parte da relação ritualizada por um grupo. Neste caso, Turner direciona para ação reparadora como performance, pondo as três fases como antecedentes ao processo, intermediária e pós atividade. Essa configuração e trajetória presentes neste método analítico torna comum a compreensão e como são simbolicamente estruturados os fenômenos de experiência vivida. As conexões presentes nas maneiras como cada autor elabora seu discurso a respeito da experiência vivida, enquanto fenômeno, são distintas em suas aplicações, ou maneiras como foram analisadas. No entanto, pelo campo simbólico, as maneiras como se referem ao fenômeno mostra que estamos falando de algo em comum. Ao falar sobre a fase liminar, Turner (2005) compreende uma predominância no que ele chama de "modo subjuntivo da cultura". Neste sentido, temos uma relação de possibilidades e aberturas questionáveis de maneira totalmente dialética, pois o mesmo trata em suas próprias palavras a ideia do situacional, tal qual as fantasias, desejos, sonhos, condições e dúvidas. Em suas próprias palavras (1986/2005), os seguintes modos: “do 'talvez', do 'pode ser', do 'como se', hipótese, fantasia, conjectura, desejo", de acordo com qual processo esteja dominante durante o contexto. Considerando a divisão do fenômeno por Veresov, podemos também observar a experiência vivida, no olhar de Turner, como Liminaridade (P1); Ritual (P1.1); Ação reparadora (P1.2). Partindo deste prisma, podemos constituir o Larp como um tipo de jogo que, uma vez que este seja essencialmente imersivo, seus participantes buscam ações reparadoras intermediados por uma experiência estética, idealizada para o desenvolvimento durante o jogo. Sendo assim, tendo jogo como ritual, seus participantes se conduzem a processos de uma busca por se tornarem parte da história do jogo - neste caso, sendo construída coletivamente, durante sua vivência - e assim abrindo margem/palco (TURNER, 1986/2005) para transformação. Quando uma ou mais cenas geram significado para quem participa do Larp, mediados pelas interações sociais, pessoas que participam do jogo reproduzem as 64 experiências reais dentro do contexto ficcional, vivido ludicamente. Dessa maneira, o uso do conceito de perezhivanie para entender a unidade de personalidade e ambiente, um caráter funcional da consciência e contexto, pode ser elaborado com intenção de possibilitar uma experiência ou de gerar significado pelo contato com a experiência desejada durante uma cena, assim podendo também entender o grau situacional que forma uma ação reparadora a cada contexto de um Larp, formando individualmente as experiências possíveis daquele jogo. Neste caso, pela ótica do Turner (2005b, p. 184), a performance de Larp, como uma atividade de viver experiências em tempo real, seria interpretável no seu ponto de vista da seguinte maneira: Meu argumento tem sido que a antropologia da experiência encontra, em certas formas recorrentes de experiência social – entre elas, os dramas sociais –, fontes de forma estética, incluindo o drama de palco. Mas o ritual e sua progênie, com destaque às artes performativas, derivam do coração subjuntivo, liminar, reflexivo e exploratório do drama social, onde as estruturas de experiência grupal (Erlebnis) são copiadas, desmembradas, rememoradas, remodeladas, e, de viva voz ou não, tornadas significativas – mesmo quando, como acontece freqüentemente em culturas declinantes, “o significado é de que não há significado”. Diante dos dados relacionados pelos pensadores citados anteriormente, cabe um reconhecimento de certos padrões no que é entendido por experiência emocional - perezhivanie - e como pode se manifestar ou ser estudar tal fenômeno. Perezhivanie, por sua essência, é de natureza psicológica e assim deve ser reconhecida; seja em um jogo mediado por interações sociais, um ritual ou uma peça teatral. Vigotski (2009, p. 21), ao escrever “Sobre o Problema da Psicologia do Trabalho Criativo do Ator”, traduzido e organizado em 2009 por Delari, descreve essa natureza do fenômeno: A psicologia ensina que as emoções não são uma exceção, algo diferente de outras manifestações de nossa vida mental. Como todas as outras funções mentais, as emoções não permanecem na conexão em que elas estão dadas inicialmente em virtude da organização biológica da mente humana. No processo da vida social, os sentimentos desenvolvem‐se e as conexões iniciais desintegram‐se, emoções aparecem em novas relações com outros elementos da vida mental, novos sistemas se desenvolvem, novas ligações de funções mentais e unidades de uma ordem superior aparecem dentro de tais padrões especiais, interdependências, formas especiais de conexão e movimento são dominantes. O exercício de experimentar emoções, interagindo socialmente, em contextos que nos transportam para outro campo da realidade, permite observar certas práticas como intencionalmente direcionadas à perezhivanie. O Larp é um 65 desses exemplos porque o caráter estético desse tipo de jogo é justamente de experimentar situações e circunstâncias da realidade em diversas linguagens, dentro de um círculo que isola seus praticantes do tempo e espaço da realidade fora do que está sendo jogado. De acordo com Schmit (2018), Vigotski descreve as Funções Psicológicas Superiores como “reorganizações das Funções Psicológicas Elementares” (FPE). As FPE são nossas capacidades inatas, pelos sentidos físicos e como aprendemos com estas capacidades e formamos nossas personalidades e experiências. O resultado dessa trajetória de sensações, aprendizados e experiências mediados por nossas capacidades e sociabilização, formam a personalidade, logo FPS é um sistema psicológico resultado de “relações sociais internalizadas”. Uma vez aplicado às emoções, esse prisma configura-se como perezhivanie. Ao se reproduzir dentro de um jogo as experiências cotidianas, aprendidas durante as trajetórias individuais de participantes, em um contexto desenvolvido em um momento do jogo, temos o que o Schechner chamou de comportamento restaurado (2011), um conteúdo da experiência vivida (VERESOV, 2016). Personagens desenvolvidos para um Larp, bem como outros jogos como tRPG, têm sua construção mediada pelas FPS de quem estiver criando. Do mesmo modo, são vividos de maneira dramática para que jogadoras e jogadores adaptem comportamentos, hábitos, costumes, gestos e corporeidades aprendidos durante sua trajetória de vida para um dado tempo e espaço fora de suas realidades. Portanto, uma vez que haja uma refração do ambiente (SCHMIT, 2018), neste caso, uma unidade entre personalidade e contexto, esse prisma é entendido pelo que chamamos de perezhivanie enquanto conceito. Logo, o pensamento vigotskiano analisa os aspectos histórico culturais para percepção do fenômeno ao desdobrarse em Funções Psicológicas Superiores. 66 4. EXPERIÊNCIAS EM LARP Parafraseando Luiz Falcão (2013), “Larp é um jogo e uma arte participativa”. Isso quer dizer que é um tipo de arte pela sua qualidade dramática, técnica (Quando envolve uma produção cenográfica, figurino, maquiagem, iluminação e uma série de preparos), bem como uma estética que una os aspectos reflexivos de uma performance artística com os desafios e regras que formam essa atividade de interação social como um jogo. Uma outra explicação é de que seja um jogo de faz de conta, cujo pleno acontecimento se dá pelo fato de todas as pessoas presentes estarem em jogo, vivendo papéis fantasiosos. Larping (Ação de jogar Larp) é um processo que se desenvolve de maneira autônoma, se comparado a outros tipos de jogos. É circunstancialmente confundido, ou sintomaticamente comparado com uma série de outras atividades muitas vezes pluralizadas com outras performances de entretenimento e motivações criativas, como o cosplay ou atividades menos narrativas e/ou dramáticas. Sem o devido estudo, costumamos explicar de formas mais diversas as relações fundamentais destas atividades de maneira reducionista, ou mesmo desconsiderando sua potencial independência. Ao considerar a importância das artes participativas e jogos com estéticas artísticas, assim como entender o funcionamento das representações que ocorram nessas atividades, esse estudo visa esclarecer como estas práticas possuem suas respectivas autonomias, em virtude dos seus contextos e como seus participantes são emocionalmente afetados, de modo que criem interesses em viver essas experiências sob novas possibilidades das interações e regras da atividade. Para entender sobre perezhivanie e suas interpretações por outros autores e, principalmente, que Larp é por si só uma atividade imersiva devido à sua estética, cabe aqui reforçar o caráter de que algumas tradições de Larp tratam essa prática de maneiras mais intensas e artísticas. É o caso da tradição do Larp Nórdico. Jaakko Stenros, um dos maiores estudiosos de Larp do mundo, durante o quadro Nordic Larp Talks, em 2014, publicado também no periódico homônimo ao evento: Knutepunkt 2014, descreve o Larp Nórdico como uma tradição. Essa tradição possui esse nome por ter sido desenvolvido e praticada predominantemente por países que compõem os chamados países nórdicos, como: Noruega, Suécia, Finlândia e Dinamarca. A característica principal que difere o Larp 67 Nórdico dos outros Larps é a seriedade e linguagem tratada nos jogos. Larps com temáticas de debates socioambientais a holocausto. Ainda no mesmo livro, Knutepunkt 2014, Stenros (2014, p. 25) cita uma frase dita por ele em um quadro do evento do ano anterior, chamado Nordic Larp Talks, do qual ele descreve a tradição de Larp Nórdico da seguinte maneira: Uma tradição que vê o larp como uma forma válida de expressão, digna de debate, análise e experimentação contínua, que emergiu em torno da convenção Knutepunkt. Tipicamente, valoriza coerência temática, ilusão contínua, ação e imersão, enquanto mantém o larp co-criativo e sua produção não comercial. Oficinas e debates são comuns. A dimensão dessa tradição cresceu e formou escolas de pensamento que se apropriaram de linguagens comuns a vanguardas artísticas e políticas para documentar manifestos e desenvolveram os seus próprios. Tal qual outro grande estudioso da cultura do Larp, Mike Pohjola, é um dos autores: O Manifesto Turku12. Neste manifesto, Pohjola desenvolve a filosofia pela qual os participantes de Larps dessa estética envolvem-se com o processo imersivo e quais são as características específicas dessa escola, que ao longo do texto aparecerá em fragmentos, quando comparada a outras escolas. Para criação do manifesto e da filosofia da Escola Turku, Pohjola realizou um estudo bastante denso sobre imersão, publicado nos periódicos Beyond Role and Play, em 2004 e no Nordic Larp Talks, referente ao Knutepunkt 2014. No seu artigo, Pohjola [2014 (2004)] debate a problemática abordagem sobre o tema e compara as Escolas Turku, Meilahti13 e Post-Bjorneborgian14 em relação ao conceito de personagem e imersão, argumentando que a interação é trivial para o conceito que define role-play, explorando o impacto das realidades percebidas em alcançar a imersão e o efeito da imersão na realidade dos jogos. Quando compreendemos essas possibilidades, sempre temos que pensar no caráter imersivo de um Larp e como este pode ser definido. Por detalhe específico 12 O Manifesto da Escola Turku pode ser encontrado em: POHJOLA, Mike. The Manifesto of The Turku School, p. 34-39. In: GADE at al. As Larp Grows Up. 2003; disponível em: <https://nordiclarp.org/w/images/c/c2/2003-As.Larp.Grows.Up.pdf>. Acesso em: Jun. 2019. 13 O Modelo Meilahti pode ser encontrado em: STENROS, J.; HAKKARAINEN, H. The Meilahti Model, p.56-64. In: GADE at al. As Larp Grows Up. 2003; disponível em: <https://nordiclarp.org/w/images/c/c2/2003As.Larp.Grows.Up.pdf>. Acesso em: Jun. 2019. 14 O Modelo Post-Bjorneborgian pode ser encontrado em: HARVIAINEN, J. T. The Multi-Tier Game Immersion Theory, p. 4-8 (The Lost Chapters). In: GADE at al. As Larp Grows Up. 2003; disponível em: <https://nordiclarp.org/w/images/c/c2/2003-As.Larp.Grows.Up.pdf>. Acesso em: Jun. 2019. 68 do Larp Nórdico, algumas de suas escolas ganham destaque nesse aspecto. Pohjola (2014, p.115) descreve as três perspectivas de imersão, de acordo com as três escolas do seguinte modo: 1. No modelo Meilahti, participante e personagem são partes distintas, formando narrativas individuais que antecedem o quadro diegético, quando a imersão une ambos à narrativa. 2. No modelo Turku, participantes podem se tornar personagens após a leitura da descrição escrita da personagem. Ao olhar para narrativa por ela própria, o caminho para imersão é criado. De acordo com o Manifesto Turku, o que define role-playing é imersão e interatividade. 3. Ao descrever o modelo de Harviainen (2003), o Post-Bjorneborgian School, Pohjola destaca três tipos de imersão: de personagem, de realidade e de narrativa. Pela divisão de Harviainen (2003), Pohjola (2014, p.116) conecta fatores fundamentais para o entendimento da imersão e simulação, ao comparar com as divisões estabelecidas no modelo do Manifesto Turku, de modo que participantes imersivos vivem a experiência de personagem, enquanto participantes simuladores fazem de conta que vivem a experiência. Não há como negar tal pensamento, ao se tratar de performance, ritual e tradição. Afim de compreender o agenciamento dessa relação de participante e personagem, a transformação é um estágio entre a passagem de estados. Pohjola (2014, p.116) demonstra um grande entusiasmo para tratar dessa condição que difere a imersão total e o fingimento: (...) a imersão é inspirada e natural, a simulação é consciente e forçada. (...). Ao imergir na realidade de outra pessoa, participantes voluntariamente mudam sua própria realidade. Participantes fingem ser outra pessoa. (...) Mas mais do que fingir ser personagem, participantes fingem acreditar que são personagem. É esse estado auto induzido que torna tudo tão legal. Até certa parte do desenvolvimento deste estudo, participante, participativo e participação eram palavras mais comuns. É necessário reforçar que no Larp processos como interativo, interação e interatividade estão mais direcionados aos seus aspectos sociais, que independem do jogo. Pelas constituições simbólicas provocadas pelas interações sociais, o jogo torna-se apenas uma zona na qual essas interações ocorram. Dado o processo de como um Larp se desenvolve, a terminologia participação torna-se mais coerente com seus papéis abstratos e materiais. Portanto, no Larp participamos do jogo, enquanto um dado acontecimento com suas constituições de tempo e espaço, tendo a realidade objetiva como referência. 69 Pohjola (2014, p.117) também discute a diferença do modelo Turku pelo fato desta escola considerar “interações” com o ambiente, o cenário e o que nele faça parte. Pensemos a performance arte, dentro deste espectro. É possível construir uma experiência em contato com transeuntes, mas também é possível construir uma experiência de autoconhecimento e de contato com o ambiente. Em seguida, o autor compara duas situações diferenciais entre o Modelo Meilahti e o Manifesto Turku, de maneira que, no primeiro, é impossível ter uma experiência jogando só, pois o Modelo Meilahti desconsidera as interações com o cenário, de maneira que a diegese exista “somente quando transmitida através dos jogadores”. Ao contrário, o Manifesto Turku torna tal circunstância totalmente possível, nas palavras do próprio autor, uma vez que na ausência de um mestre/narrador, jogadores tenham que agir sozinhos. Neste caso, as imersões funcionam de maneiras totalmente distintas, ainda que a interação não seja essencial, mesmo que ambos os modelos defendam que sim, nas palavras de Pohjola. O estadunidense, designer de jogos, Greg Costikyan, afirma que jogo por natureza é algo interativo. Mas Pohjola (2014, p. 117-118) busca nesse autor tal afirmação para justificar que há uma contradição no sentido de interação enquanto mídia, da seguinte maneira: (...) essa definição de interatividade não se encaixa no role-playing, uma vez que um RPG não é um objeto que pode existir sem os jogadores. (...). Um ser humano não pode escolher se é interativo ou não; Um ser humano é interativo por padrão. Não faz sentido, então, dizer que um participante de RPG deve interagir para que o jogo seja interativo. Enquanto o jogo de RPG tiver até um único ser humano, ele tem interação. Da mesma forma, um personagem (supondo que seja relativamente humano) é automaticamente interativo e em interação com sua realidade, ou seja, a diegese do jogo. Para reforçar tal contradição, Pohjola (2014, p. 119) critica o fato dos RPGs serem frequente e falsamente considerados "mídia interativa" ou "arte interativa". Embora não haja uma totalidade nesta afirmação, considerar tal fato é no mínimo trivial, pois "uma vez que toda a arte e todas as mídias são interativas - não necessariamente quando são percebidas ou experimentadas, mas definitivamente quando são criadas", assim localizando o problema do uso da terminologia: Como não adianta dizer que a interpretação de papéis é interativa, a definição precisa ser revisada. Simplesmente retirar a interatividade das definições ou substituí-las pelo imediatismo não funcionaria. De acordo com o modelo Meilahti, a imersão sem interação (“sozinha”) é como sonhar acordada, devaneio. De acordo com o Manifesto Dogma 99, “larp é ação, não literatura” (Fatland & Wingård 2003). De certo modo, ambos estão 70 certos. Imersão sem ação é devaneio e pode resultar ou ser o resultado de uma narrativa. Pohjola (2014, p.120) define Inter-Imersão como “um estado alcançado quando um ou mais participantes ‘interagem’ entre si e com objetos à sua volta”. Algo que novamente chama a atenção pela maneira como os recortes são descritos. Como o próprio autor explica, na mesma página, materializando o contexto e subjetividade, do cenário e personalidade: Inter-imersão pode ser explicada sem mencionar interação. Inter-imersão é um fenômeno que fortalece a identidade do personagem (em oposição à identidade do jogador), que ocorre quando o jogador está imerso em uma diegese crível. Por esse aspecto, podemos levantar uma consideração a outro detalhe. Ao se mapear a experiência diegética, é possível encontrar a caracterização do conceito de communitas, um entre-lugar, como quando indivíduos estão no “interior da liminaridade” (SARTIN, 2011; DAWSEY, 2011). Pois, se a liminaridade (TURNER, 2005) é o fenômeno, communitas é o conteúdo do fenômeno, a InterImersão seria também uma etapa de Perezhivanie (VERESOV, 2016). Mediante as teorias de Richard Schechner e Victor Turner, o aspecto que o fenômeno de transformação adquire aqui passa a se aplicar no objeto de estudo com uma maior profundidade. Como outro exemplo, a negação de si e a retomada de se reassumir no que Schechner (2011) elaborou a partir de Turner (1974) com o entendimento do “Não-Eu” e “Não Não-Eu”, pela maneira como a transformação ocorre com a pessoa transformada. O experimento liminar (DAWSEY, 2011) também ganha certo sentido, dentro da perspectiva da imersão intencional e coletiva. Jogos são formados por conjuntos de regras explícitas e implícitas, como explicado por Huizinga (2000) e Caillois (2001). A criação de personagens reúne processos limitadores sobre o que se pode ou não fazer com tal personagem. Mesmo quando personagens são entregues parcialmente prontas para participantes, as informações contidas e expostas são as limitadoras. E por meio desses limites as construções subjetivas que formam a unidade entre participante e personagem começam a fluir, especialmente pelo modo como as regras implícitas são as que mais colaboram com a imersão em um Larp. Uma vez compreendido que um jogo se dá dentro de um contexto construído em um momento e espaço, o mestre de jogo, narrador, geralmente organizador e, 71 algumas vezes, desenvolvedor do jogo (algo comum ao Larp), estabelece procedimentos de funcionamento da narrativa. A diegese será mediada por esses procedimentos e limitações, como foi citado pouco antes. A condução de decisões e reações fica a cargo da subjetividade de quem joga. Para explicar o procedimento comparativo e sobre regras, Pohjola (2014, p. 14) explica: Nos jogos de Larp, o mestre do jogo cria regras para a sociedade. Ela pode decidir sobre um novo idioma, novo estilo de roupa ou mudar completamente as leis. Ela muda temporariamente um conjunto de regras arbitrárias para outro. Pohjola (2014) também compara os larps com Zonas Autônomas Temporárias (Temporary Autonomous Zones), de modo que ambos se manifestam com detalhes comuns. As ZAT são um conceito anárquico de Hakim Bey, pseudônimo do historiador, filósofo, poeta e escritor estadunidense Peter Lamborn Wilson. Hakim Bey é responsável por desenvolver estudos e desenvolvimento de obras sobre a organização social dos piratas. Bey (1985) define ZAT da seguinte maneira: A ZAT é uma espécie de rebelião que não confronta o Estado diretamente, uma operação de guerrilha que libera uma área (de terra, de tempo, de imaginação) e se dissolve para se refazer em outro lugar e outro momento, antes que o Estado possa esmagá-la. (...) E, uma vez que a ZAT é um microcosmo daquele “sonho anarquista” de uma cultura de liberdade, não consigo pensar em tática melhor para prosseguir em direção a esse objetivo e, ao mesmo tempo, viver alguns de seus benefícios aqui e agora. Por reforçar as semelhanças entre Larp e ZAT, Pohjola (2014, p.122-123) considera que “a criação de sociedades de larp habilita e nos capacita a comentar sobre as sociedades da vida real e até mesmo alterá-las”. Em um processo dialético, o autor trata a potencial possibilidade de mudança da única e concreta realidade, no caso, vivida fora do jogo. Do mesmo modo que, com suas personagens, podem mudar a experiência da realidade de jogo, as mudanças se tornam possíveis na “realidade objetiva”, pelo fato de terem sido experimentadas na primeira. Em suas próprias palavras: “As identidades podem mudar e as realidades também podem mudar”. A transformação (Schechner, 2011) não ocorre apenas individualmente. Ela ocorre no mundo que cerca a pessoa transformada. Portanto, do mesmo modo que identidades mudam, realidades podem estar sujeitas a essas reconstruções. De maneira mais objetiva, a relação entre ZAT, Larp também pode concentrar características que começamos a nos familiarizar depois de conhecer os autores 72 que fundamentam este estudo. Os ritos de passagem, fenômenos de transformação, interações simbólicas e funções psicológicas superiores configuram a rede que forma o aspecto fenomenológico e conceitual que se observa na imersão do objeto deste estudo. Como exemplo, foi selecionado um Larp trabalhado como experiência antropológica, chamado Koikoi, ocorrido de 1 a 5 de julho de 2014, jogado por quatro dias e três noites. Figura 9. Larp - Koikoi Fonte: Koikoi, por Xin Li, 201415. Os dados a respeito desse Larp foram publicados The Nordic Larp Year Book 2014, como parte integrante do Knutepunkt do mesmo ano. Koikoi foi organizado por Eirik Fatland, Tor Kjetil Edland, Margrethe Raaum, Martin Knutsen, Trine Lise Lindahl, Elin Nilsen e Jørn Slemdal. De acordo com a pesquisadora Kaisa Kangas, neste Larp, seus participantes vivem uma experiência como uma sociedade de bando, uma sociedade autônoma chamada Ankoi (palavra que se refere a “pessoa” na língua desse povo). Os bandos de Ankoi são chamados de "Fam", integrados por dez a vinte pessoas que vivem vagando por uma floresta como nômades. Cada Fam possui 15 Disponível em: < https://www.flickr.com/photos/yunyard/sets/72157645868486273/> Acesso em: 10 Out. 2018. 73 seu próprio totem. A cada dois anos, os Ankoi se reúnem em um local sagrado chamado Koi para celebrar um ritual chamado Koikoi. Figura 10. Larp - Koikoi Fonte: Koikoi, por Xin Li, 201416. O jogo acontece a partir do encontro dos Fam. Em dados técnicos de jogo, a cultura dos Ankoi se apresenta como um misto de várias culturas do mundo real. Mas com uma organização social muito distinta. Diferente da estrutura familiar de nossas sociedades, com estruturas quase que homogêneas sobre a organização familiar, seus "pais", que têm a função de educá-los e alimentá-los, são os irmãos de suas "mães", que por sua vez são as mulheres que cuidaram e amamentaram quando bebês. Crianças não possuem um gênero, quando alcançam certa idade, passam por um ritual para testar se estão aptos a se tornam adultos e então pertencerem a um dos seguintes gêneros: kvinn (mulher), mann (homem) e nuk. Este povo possui equidade de gênero, com a única diferença sendo o papel desempenhado no seu Fam. Nuk, por exemplo, costumam desempenhar papéis de guardas ou shamans, e este é o senso que Nuks possuem de si, pois não há 16 Disponível em: < https://www.flickr.com/photos/yunyard/sets/72157645868486273/> Acesso em: 10 Out. 2018. 74 identidade de gênero determinante. Por haver essa distinção, os papéis de sexo são isolados a um contexto apenas biológico e espiritual. Figura 11. Larp - Koikoi Fonte: Koikoi, por Xin Li, 201417. Os Ankoi preservam sua história pela oralidade. Acreditam que suas origens espirituais remetem a espíritos chamados kwath: entidades divinas/espirituais que vivem na composição do mundo, seja nas águas, nas rochas, no vento e nas plantas. O espírito do fogo vive nas kvinn, enquanto os de água nos mann e nuk possuem ambos os espíritos. Uma mulher sempre dá a luz sozinha nas matas. Durante este momento, homens não podem acender fogueiras, a fim de que não provoquem a fúria dos kwath. Entre os Ankoi não há leis que não sejam as espirituais, naturais e implícitas ao convívio com as duas anteriores. Portanto, não há juízes, nem prisões e qualquer 17 Disponível em: < https://www.flickr.com/photos/yunyard/sets/72157645868486273/> Acesso em: 10 Out. 2018. 75 incômodo é resolvido com uma briga organizada. Quanto a estranhos, eles são agressivos e trabalharão para matar quem não for do seu próprio povo. Por ser um Larp sobre rituais, sem um plot específico, o modelo de ritual ficou a cargo da interpretação e diegese de quem participou. Logo, participantes utilizaram suas referências, funções psicológicas superiores, seus comportamentos restaurados para realizar os rituais: cânticos, música, dança, comida, brincadeiras, pinturas, à margem da improvisação. Os Ankoi possuem rituais para muitas coisas. Para o sol nascer, para ventar, para chover, bem como para um integrante passar de um Fam para outro. Figura 12. Larp - Koikoi Fonte: Koikoi, por Xin Li, 201418. Por não possuir a estética de um Larp sobre fantasia, participantes focaram em tornar real quaisquer possibilidades humanas dentro daquele contexto. Como uma experiência antropológica de um povo que só existe naquele jogo, Koikoi (FATLAND & EDLAND, 2014), permitiu que participantes explorassem ao máximo as relações e construções sociais, mediadas pelas interações e o ambiente. Assim retirando a zona de conforto de uso das experiências cotidianas em muitos eventos ocorridos durante essa experiência social. As sensações de crescimento, 18 Disponível em: < https://www.flickr.com/photos/yunyard/sets/72157645868486273/> Acesso em: 10 Out. 2018. 76 convivência, envelhecimento, pertencimento, foram práticas exercitadas durante a performance. Dentro dessa experiência (auto) etnográfica, os relatos dos seus autores a respeito dessa experiência formam um olhar interessante aos estudos de performance. Pois a realização de uma experiência fora da zona de conforto, do que conhecemos pelas tradições de Larp, configura uma prática totalmente imersiva que converge o uso recreativo e instrumental, dada a qualidade de estudo antes, durante e depois do Larp. Segundo Fatland e Edland (2015, p. 52): Para fornecer um ponto de vista sobre esses temas, construímos os Ankoi como uma mescla de tradições e idéias tão estranhas à nossa própria cultura quanto possível, mas ainda 'autênticas': documentadas na história e na antropologia. O resultado foi uma sociedade muito mais complexa do que pode ser descrita aqui, mas não um representante de qualquer sociedade real de caçadores-coletores. Estes são bastante diversos - os Inuit do Ártico têm menos em comum com os Umanikaina da Nova Guiné do que a Dinamarca com a Coréia do Norte Figura 13. Larp - Koikoi Fonte: Koikoi, por Xin Li, 201419. A respeito da dinâmica e design do jogo, a maneira como personagens evoluíram dentro da diegese provocou mais processos significativos para 19 Disponível em: < https://www.flickr.com/photos/yunyard/sets/72157645868486273/> Acesso em: 10 Out. 2018. 77 ambientação e a relação de como participaram da construção da história do jogo, para Fatland e Edland (2015, p. 53): A cultura serviu como o mecanismo dramatúrgico, projetado para oferecer oportunidades de jogo significativas - transições, relacionamentos e escolhas - para cada personagem. Para os jovens adultos encontrarem um ou mais amantes e serem aceitos como membros da mesma família. Para adultos mais velhos: considerarem se era hora de se estabelecerem em Koi como um Ald, um ancião. Para os anciãos: considerarem se o seu caminho estava próximo do fim. E para as crianças: procurarem a idade adulta como mulher, homem ou nuk. A complexidade de viver a experiência de nômades, tendo que buscar alimento, construir suas casas quando chegam ao destino e também viver linguagens adaptadas é uma maneira de estudar performances. Tendo em mente a contextualização crítica das teorias presentes na área de conhecimento, deixar levar-se por Koikoi está além do ritual. As análises de Turner (2005b, 2005b) podem ser observadas e aplicadas com Koikoi assim como no povo Ndembu, mesmo em processo de diegese, reforçando as experiências transformadoras de comunidade aprofundadas em Turner (1987). Na perspectiva vigotskiana, se faz necessário considerar aqui os aspectos de análise sob a refração social e como as experiências individuais afetam todo o grupo, de maneira que se aprofunde pelo conceito de perezhivanie para ampliar o caráter transformador do Larp como performance diegética. 78 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS A primeira coisa a se pensar, ao desenvolver esse tipo de pesquisa, é considerar que ela não é nova e não apresenta algum fator relevante para mudança em seu aspecto essencial. A segunda coisa é considerar que a importância dela se dá pelos questionamentos que motivaram a uma mudança metodológica. Por exemplo: Inicialmente, foi intencional realizar uma pesquisação. Pesquisar durante a prática, sob o intermédio de teoria fundamentada. No entanto, a dificuldade de encontrar pesquisas específicas sobre os conceitos abordados, bem como a aplicação desses conceitos para o estudo de fenômenos acerca do objeto ainda é algo fragmentado. A maior parte das teorias ainda se encontram em pequenos artigos em periódicos dos eventos especializados, aguardando tradução de línguas escandinavas para o inglês. A presença de material da literatura acadêmica, sistematizados, catalogados e indexados como livros chega a ser utópico, neste momento. Pois muito do que é produzido em teoria costuma-se vincular a alguma prática realizada em um contexto muitas vezes distante do que é praticado em lugares culturalmente distintos. O Larp Nórdico é uma concentração de tradições práticas e manifestos desenvolvidos sob as perspectivas de países escandinavos. Uma vez na realidade brasileira, tais perspectivas mudam uma vez que hábitos e costumes, dos mais variados presentes em um país de dimensão continental como o Brasil, estejam em esferas materiais distintas das realidades cotidianas de diferentes povos. Portanto, ao realizar a trajetória de algumas das teorias dos jogos, sob o olhar dos estudos de performance, a primeira dificuldade é de deparar com tradições que já estejam canônicas, na prática dos Larps ou mesmo dos estudos, pelo próprio princípio que fundamenta às áreas de conhecimento aqui contempladas. Selecionar referências que estejam abertas a práticas que estejam além do que entendemos por teatro, performance arte, direcionamentos para estudos sobre identidade ou a natureza política dessas manifestações culturais, é ter o cuidado de lidar com conhecimentos que exigem longos processos de formação. Leituras que são importantes, mas que não dialogam diretamente com o objeto, ou que desviem o sentido obtido e questionado em torno do mesmo. Parte da dificuldade de encontrar o material é o fato de que, na maioria das pesquisas relacionadas a Larp ou perezhivanie, não terem tanto estímulo para além 79 de uma instrumentalização, como desenvolver uma aplicabilidade do Larp para facilitar algum conhecimento ou função, tendo a experiência de quem joga em segundo plano. A falta de continuidade de importantes estudos também tem relação de que muitos dos materiais não estão mais disponíveis em plataformas que foram publicados, ou seus autores já não respondem por e-mails indicados nessas plataformas ou e que até sejam inacessíveis por redes sociais, dificultando a obtenção de suas referências. Logo, a ideia de propor um acesso ao conteúdo, uma sistematização e apoio para o estudo e desenvolvimento de meios que facilitem este acesso é de grande necessidade para uma rede de estudos sobre a sociedade e como se configuram suas experiências. As referências pesquisadas e revisadas neste estudo conduzem a objetos comuns, ainda que apresentando terminologias aplicáveis ou entendidas pelas áreas específicas de conhecimentos dos seus autores, em seus respectivos contextos. Muitos destes autores são pensadores que encerraram suas vidas antes de concluir suas pesquisas, ou mesmo tendo traduções que alteram o sentido das terminologias que são parte dos seus objetos de estudo. A contribuição possível e almejada nesta pesquisa se dá pela maneira como é possível pensar uma prática e seu caráter de entretenimento e arte, contemplando ou não a diversidade de afirmações acerca do objeto. Larp é uma prática ao alcance de todo mundo, ao mesmo tempo que parece não ser. E com isso entra uma série de questões sobre separar Larp e tRPG, usar outras terminologias para se referir a Larps e outros jogos com suas fundamentais aplicações e seus resultados favoráveis ao modo como são instrumentalizados. Muito deste trabalho partiu de uma busca por discursos concisos para conectar teorias que são pouco abordadas conjuntamente, fora de esferas acadêmicas. Isso tornou o olhar sobre objeto dialógico com outras linguagens, possibilitando abertura para novas pesquisas e, consequentemente, abrindo portas para o desenvolvimento de eventos maiores, para além dos espaços que são mais praticados no Brasil. Considero que nenhuma pesquisa se encerra dentro dela mesma. Pois desenvolvi novas dúvidas e questionamentos que promovam uma qualidade melhor do tipo de busca que posso realizar e como me antecipar para eventuais dificuldades estruturais nas teorias estudadas para o desenvolvimento deste 80 trabalho. Pois, dentro do campo interdisciplinar, torna-se mais difícil e em certos detalhes inviável navegar em mar aberto sem um mapa e uma bússola. O caráter principal deste estudo considerou a possibilidade desses novos questionamentos durante seu desenvolvimento. E é importante ter ciência dessa possibilidade em uma trajetória com objetivo de resolver uma dificuldade bibliográfica e dialética no que se refere a fenômenos, como também conceitos que os expliquem. Portanto, do conteúdo reunido e estudado, todas as análises de conceitos, terminologias e significados abordados aqui nesta pesquisa recaem sobre um entendimento geral do fenômeno e como este se aplica ao contexto de interesse do autor abordado. Deste modo, o fato de muitos dos autores terem alguma relação direta ou indireta com o teatro transfere muitos dos seus exemplos para esta prática. Mas nem por isso torna menos legítimo. Pois retifica a relação psicológica de como as emoções são pensadas em um dado contexto histórico e como suas manifestações conduzem a processos comuns a diversas tradições. Quando Huizinga (2000) realiza, em seu contexto, uma analogia do jogo com aspecto ritual, desenvolvendo o fenômeno de passagem pelo círculo mágico, não difere do devir, do entre-lugar, presente na liminaridade do Turner (2005), ao relatar o conceito de communitas em um ritual. Do mesmo modo, Richard Schechner (2011) também provoca uma reflexão em torno do processo teatral como um ritual e de qual maneira os fenômenos de transporte e transformação promovem nos sujeitos participantes um desligamento momentâneo de sua realidade, a ponto de ter uma negação de si. Por fim. O trânsito feito nesta pesquisa também permite enxergar o Larp dentro desses pensamentos que parecem levar a um mesmo assunto. Quando Pohjola (2014), realiza uma comparação dos modelos estéticos de Larp, o juízo que se faz a título de como é a imersão e a inter-imersão, ou toda e qualquer camada que configure um transporte do sujeito participante para um processo dado pela experimentação feita durante o jogo. Pois o Larp é uma experiência, é uma performance. E por isso, a importância do Vigotski aqui é como quem estudou as brincadeiras e mostrou suas importâncias para o desenvolvimento, mediado pelas interações sociais. Vigotski não apenas estudou o fenômeno provocado pelo ato de experimentar e obter a experiência vivida, tendo o conceito para explicar o fenômeno. 81 A experiência vivida, aqui também entendida como erlebnis ou perezhivanie, é fruto de referências simbólicas e ações que são frutos da cultura. Os conceitos e fenômenos conectam o olhar de Vigotski ao Larp. As emoções atribuídas e compartilhadas em Larps são parte de experiências que configuram Larp como um meio de viver uma experiência, como parte da dialética transformadora de relações sociais em Funções Psicológicas Superiores. Para concluir, penso que a maneira como cada elemento definido nessa pesquisa se conecta, foi feita pensando previamente nessa possibilidade, visto que a relação diegética do Larp dialoga com o que cada um definiu nesse prisma de fenômenos emocionais, o qual Vigostki definiu como parte do entendimento de Perezhivanie, uma refração do ambiente em que as performances e Funções Psicológicas Superiores se apresentem. Encerro dizendo que uma atividade imersiva por natureza já pressupõe o fenômeno de experiência vivida seja parte de si, manifestado por diferentes classificações, mas que se unificam quando estudadas em sua prática e funções simbólicas. 82 REFERÊNCIAS BAUMAN, R. Fundamentos da performance. Sociedade e Estado, v. 29, n. 3, p. 727–746, dez. 2014. BEY, H. The Temporary Autonomous Zone, Ontological Anarchy, Poetic Terrorism - Hakim Bey - Hermetic Library. Disponível em: <https://hermetic.com/bey/taz_cont>. Acesso em: 20 jul. 2019. BLUNDEN, A. 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