Deus Trindade: Agostinho de Hipona e o dogma trinitariano
Franklin Ferreira *
Estimulados pelos escritos de Karl Barth, o teólogo que mais explorou o mistério trinitário no século XX, 1 várias
obras importantes sobre a doutrina da Trindade foram escritas. Nas duas décadas finais do século XX Karl
Rahner, Jürgen Moltmann, Leonardo Boff, Wolfhart Pannenberg, Colin Gunton e Millard Erickson, buscaram
refletir e reaplicar a doutrina trinitária, produzindo um grande número de estudos dogmáticos, bíblicos e
históricos. 2 O alvo deste ensaio é expor a compreensão da doutrina trinitariana como formulada por Agostinho
de Hipona, que produziu uma obra seminal sobre este tema, A Trindade, com a qual todos estes escritores
interagem.
Introdução: o testemunho 3
Aurélio Agostinho nasceu em Tagaste, na província romana da Numídia, no norte da África em 13 de novembro
de 354. 4 Ele foi o primogênito de Patrício, oficial romano do escalão inferior, que permaneceu pagão até as
vésperas de sua morte, e da cristã Mônica, a quem Agostinho atribuiu grande crédito, por suas constantes
orações em seu favor. Ele teve um irmão, Navígio, que morreu jovem, e uma irmã que, tendo ficado viúva,
dirigiu um mosteiro feminino. Em 365, com 11 anos, foi iniciado nos cursos de educação geral em Madaura.
Em 370, voltou a Tagaste, e, aos 17 anos, transferiu-se para Cartago, a fim de estudar retórica e artes liberais.
Seu pai, Patrício, morreu no ano seguinte, e Agostinho, conheceu uma mulher e se uniu a ela neste mesmo ano –
ele a abandonou depois, e não menciona seu nome em suas obras.
Em 373 tornou-se maniqueu, uma seita filosófico-religiosa dualista, 5 e este foi provavelmente o ano do
nascimento de seu filho, Adeodato. Ele se decepcionou com o maniqueísmo ao não ter suas dúvidas sobre o
problema do mal respondidas satisfatoriamente. Em 374 regressou a Tagaste como professor de gramática, e em
383, foi para Roma, onde continuou a docência. Ele se dedicou ao estudo de vários autores neoplatônicos, “os
quais lhe mostraram que o problema da origem do mal não era insuperável”, e que o “fizeram ver que a
realidade não consistia somente em matéria, mas também tinha realidades intelectuais ou espirituais”. Dois anos
depois, ganhou a cátedra de retórica da Casa Imperial, e foi para Milão, onde conheceu Ambrósio, bispo da
*
O autor é bacharel em teologia pela Escola Superior de Teologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie e mestre em teologia pelo
Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil. É diretor e professor de teologia sistemática e história da igreja no Seminário Martin
Bucer, em São José dos Campos, São Paulo, e consultor acadêmico de Edições Vida Nova. Autor dos livros A Igreja Cristã na
História, Teologia Cristã e Teologia Sistemática (este em coautoria com Alan Myatt), publicados por Edições Vida Nova, entre
outros.
1
Cf. especialmente Church Dogmatics, I/1 §8-12 (Peabody, MA: Hendrickson, 2010), p. 295-489, Esboço de uma dogmática (São
Paulo: Fonte Editorial, 2006), p. 53-58 e Geoffrey W. Bromiley, Introduction to the Theology of Karl Barth (Edinburgh: T&T Clark,
2001), p. 13-21.
2
Para a bibliografia, cf. J. Scott Horrell, “O Deus trino que se dá, a imago Dei e a natureza da igreja local”, Vox Scripturae v. 6 – n. 2
(Dezembro 1996), p. 243-244. Cf. também J. Scott Horrell, “Uma cosmovisão trinitariana”, Vox Scripturae v. 4 – n. 1 (Março de
1994), p. 55-77.
3
Para o título desta seção, cf. a sugestão de interpretação do título da mais famosa obra de Agostinho, Confissões, em Garry Wills,
Santo Agostinho (Rio de Janeiro: Objetiva, 1999), p. 9-19.
4
Justo L. González, História ilustrada do cristianismo, v. 1 (São Paulo: Vida Nova, 2011), p. 207-215 e “Agostinho de Hipona”, em
Justo L. González (ed.), Dicionário ilustrado dos intérpretes da fé (São Paulo: Hagnos, 2008), p. 25-32. Para um resumo de suas
obras, cf. Norman Geisler, “Agostinho de Hipona”, em Walter A. Elwell, Enciclopédia histórico-teológica da igreja cristã [v. 1] (São
Paulo: Vida Nova, 2009), p. 32-35. O melhor e mais amplo estudo biográfico ainda é Peter Brown, Santo Agostinho: uma biografia
(Rio de Janeiro: Record, 2005).
5
O maniqueísmo era uma religião persa como dois princípios ou deuses: luz e trevas. Estes estão em constante conflito. Para os
maniqueus, o universo físico originou-se das trevas, enquanto a alma humana é produto da luz. Esta teoria também tentava explicar a
origem do mal, e negava a responsabilidade pelas ações más cometidas – pois elas eram originadas pelas trevas. Agostinho chegou a
ver, posteriormente, que o maniqueísmo levantava tantos problemas quanto os resolvia, e começou a procurar a verdade em outro
lugar – o neoplatonismo e, depois, o cristianismo. cf. W. A. Hoffecker, “Maniqueísmo”, em Walter A. Elwell, op. cit. [v. 2], p. 471472.
cidade. 6 Em 386, no outono, converteu-se, 7 e no ano seguinte, com 33 anos, na noite da Páscoa, em 24-25 de
abril, foi batizado em Milão. Após estes eventos, sua piedosa mãe, Mônica, faleceu em Óstia Tiberina, porto de
Roma.
Agostinho voltou para a África, indo de novo para Tagaste, onde vendeu suas posses e projetou seu ideal de
vida comum: estudo, pobreza, trabalho e meditação – a análise meditativa da vida interior, dos desejos e das
paixões é umas das principais características da espiritualidade agostiniana. 8 Em 391 foi ordenado sacerdote em
Hipona, e quatro anos depois foi sagrado bispo coadjutor. Em 396, aos 42 anos, sucedeu ao bispo Valério em
Hipona. Nos próximos trinta e quatro anos, Agostinho se dedicou integralmente a três diferentes tarefas
pastorais:
1) a igreja de Hipona, a que estava e sentia-se ligado: a pregação (duas vezes por semana — sábado e domingo —, às vezes por
mais dias consecutivos ou ainda duas vezes ao dia), a audientia episcopalis, que ocupava também o dia todo, o cuidado com os
pobres e os órfãos, a formação do clero, a organização dos mosteiros masculinos e femininos; a administração dos bens
eclesiásticos de que não gostava, mas tolerava, a visita aos enfermos; 2) a igreja africana: participação nos concílios
programados anualmente, frequentes viagens para responder ao convite dos colegas ou para atender a necessidades
eclesiásticas; 3) a Igreja universal: controvérsias dogmáticas, resposta a muitas interpelações, livros e livros sobre as mais
variadas questões que lhe eram propostas e impostas. 9
O fim do seu longo ministério coincidiu com o fim de uma era. Roma foi saqueada em 410 pelos visigodos, sob
o comando do rei Alarico I. Em 430, os vândalos, liderados por seu rei, Genserico, atacaram a Numídia e
cercaram a cidade de Hipona. No terceiro mês do cerco, aos 76 anos de vida, em 28 de agosto de 430,
Agostinho morreu. 10 Em 431, depois de quatorze meses de duros combates, a cidade caiu nas mãos dos
bárbaros. No ano seguinte, o imperador romano do ocidente, Valentiniano III, reconheceu Genserico como
soberano dos territórios da Numídia.
Foi Agostinho quem deu à tradição ocidental a sua expressão madura e final acerca da Trindade. 11 Não obstante
ser Agostinho mais conhecido através de obras como as Confissões (sua autobiografia, publicada em 400) 12 ou
6
Ambrosio (339-397) foi um dos gigantes entre os Pais da Igreja. Cf. Justo L. González, História ilustrada do cristianismo, v. 1, p.
194-197.
7
Agostinho foi desafiado pelas narrativas das conversões do proeminente filósofo neoplatonista Mário Vitorino e do simples monge
Antônio. Rasgado entre dois caminhos, um dia saiu correndo para o jardim da casa onde morava. Lá ele ouviu uma voz de criança
cantando: “Toma e lê, toma e lê”. Agostinho pegou sua cópia das cartas de Paulo aos Romanos 13.13-14. Ele não foi além de “revestivos do Senhor Jesus Cristo, e não penseis como satisfazer os desejos da natureza pecaminosa”. Ele escreveu mais tarde: “Não li mais
nada, e não precisei de coisa alguma. Instantaneamente, ao terminar a sentença, uma clara luz inundou meu coração e todas as trevas
da dúvida se desvaneceram” (Confissões 8.29). Sua conversão não somente transformou sua vida, como também reorientou seu
pensar.
8
Meditação significa “refletir com nossas mentes sobre a Bíblia e as verdades divinas, a fim de amar a Deus mais pessoalmente e
viver como ele deseja que vivamos. A meditação é a forma de conversa com Deus, ou diante dele, que é mental, em vez de
verbalizada”. Cf. James Houston, Oração (São Paulo: Palavra, 2009), p. 264-268. Para a diferença entre a oração verbal, meditação,
contemplação e oração extática, cf. p. 252-276.
9
A. Trapè, “Agostinho de Hipona”, em Ângelo Di Berardino (org.), Dicionário patrístico e de antiguidades cristãs (Petrópolis, RJ:
Vozes, 2002), p. 55.
10
Para a imensa influência de Agostinho, cf., por exemplo, Colin Brown, Filosofia e fé cristã (São Paulo: Vida Nova, 2009), p. 19:
“Frequentemente se afirma que tanto o catolicismo quanto o protestantismo tiveram sua origem em Agostinho. O primeiro obtém de
Agostinho (mas não exclusivamente dele) seu alto conceito da igreja e dos sacramentos. O segundo segue Agostinho em sua visão da
soberania de Deus, da perdição do homem no pecado e da graça de Deus, como o único meio para trazer a salvação ao homem. Assim
como ocorre a todas as generalizações, esta declaração acerca de Agostinho simplifica-o por demais. Há, certamente, católicos hoje
que compartilham do ponto de vista de Agostinho acerca da salvação, assim como há protestantes que não compartilham dele. Seja
como for, porém, foi de Agostinho, mais do que qualquer outro teólogo, que o pensamento medieval recebeu seu arcabouço teológico
de idéias. Mesmo que pensadores posteriores tenham alterado certos detalhes da pintura dentro desse quadro, o arcabouço pelo qual
começaram foi a teologia da igreja primitiva em geral, e a de Agostinho em particular”.
11 Antes de Agostinho, diversos Pais da igreja já haviam explanado o tema do mistério da Trindade. No oriente: Ireneu de Lião,
Clemente de Alexandria, Atanásio, Basílio de Cesaréia, Gregório de Nissa, Gregório Nazianzo e Cirilo de Alexandria. No ocidente:
Hipólito, Tertuliano, Hilário de Poitiers e Ambrósio. Apesar de reconhecer sua divida para com eles, só menciona um escrito latino, o
A Cidade de Deus (publicada em 426), provavelmente sua obra prima é o tratado conhecido por A Trindade,
que ele demorou dezesseis anos para redigir – entre 400 e 416. Esta obra está dividida em duas partes, bem
distintas. A primeira, com uma ênfase bíblica, vai do livro I ao VII. É a seção teológica propriamente dita. A
segunda parte, do livro VIII ao XV apresenta um caráter especulativo psicológico e filosófico, no gênero
analógico. Conforme suas palavras: “Sendo ainda muito jovem, iniciei a elaboração destes meus livros sobre a
Trindade, que é o Deus sumo e verdadeiro. Agora, entrado em anos, trago-os a público”. 13 De fato, A Trindade
é a obra de sua maturidade.
Agostinho pressupôs como uma verdade bíblica que existe um só Deus que é Trindade, e que o Pai, o Filho e o
Espírito Santo são simultaneamente distintos e co-essenciais, numericamente um quanto à substância:
O Pai, o Filho e o Espírito Santo, isto é, a própria Trindade, una e suprema realidade, é a única Coisa a ser fruída [una
quaedam summa res], bem comum de todos. Se é que pode ser chamada Coisa e não, de preferência, a causa de todas as
coisas – se também puder ser chamada causa. Não é fácil encontrar um nome que possa convir a tanta grandeza e servir para
denominar de maneira adequada a Trindade. A não ser que se diga que é um só Deus, de quem, por quem e para quem
existem todas as coisas (Rm 11,36). Assim, o Pai, o Filho e o Espírito Santo são, cada um deles, Deus. E os três são um só
Deus. Para si próprio, cada um deles é substância completa e, os três juntos, uma só substância. O Pai não é o Filho, nem o
Espírito Santo. O Filho não é o Pai, nem o Espírito Santo. E o Espírito Santo não é o Pai nem o Filho. O Pai é só Pai, o Filho
unicamente Filho, e o Espírito Santo unicamente Espírito Santo. Os três possuem a mesma eternidade, a mesma
imutabilidade, a mesma majestade, o mesmo poder. No Pai está a unidade, no Filho a igualdade e no Espírito Santo a
harmonia entre a unidade e a igualdade. Esses três atributos todos são um só, por causa do Pai, todos são iguais por causa do
Filho e todos são conexos por causa do Espírito Santo. 14
Em nenhum lugar Agostinho tentou demonstrar biblicamente estas afirmações. “Trata-se de um dado da
revelação que, para ele, as Escrituras proclamam quase a cada página, e que a ‘fé católica’ (fides catholica)
transmite aos fiéis”. 15 Em seu entendimento, Deus é incompreensível, mas não incognoscível, havendo duas
vias de conhecimento de Deus: a via da eliminação, ou negação (apofática), que consiste em suprimir de Deus
todos os defeitos das criaturas, e a eminência (catafática), que consiste em atribuir a Deus, elevando-as ao
infinito, todas as perfeições: “Todo aquele que refletir sobre Deus desse modo, embora não chegue a conhecer
plenamente o que ele é, contudo – enquanto pode – como homem piedoso, evitará pensar dele, o que ele não
é”. 16
Como delineia J. N. D. Kelly, seu “imenso esforço teológico é uma tentativa de compreensão, sendo esse o
exemplo supremo de seu princípio de que a fé deve preceder a compreensão (praecedit fides, sequitur
intellectus)”.
A fé busca, o entendimento encontra; por isso diz o profeta: Se não crerdes, não entendereis (Is 7.9). Doutro lado, o
entendimento prossegue buscando aquele que a fé encontrou, pois, Deus olha do céu para os filhos dos homens, como é
cantado no salmo sagrado: para ver se alguém que tenha inteligência e busque a Deus (Sl 13.2). Logo, é para isto que o
homem deve ser inteligente: para buscar a Deus. 17
tratado De Trinitate, de Hilário (A Trindade 6.9). Além desse, certamente leu as traduções feitas para o latim dos escritos trinitarios
gregos, realizadas por seu amigo Mário Vitorino.
12
Segundo Houston, “enquanto não lermos as Confissões, de Agostinho, não faremos idéia da honestidade que podemos expressar
diante de Deus”. Cf. James Houston, op. cit. p. 255.
13
“Carta 174” dirigida ao bispo Aurélio de Cartago, em 416. in: Santo Agostinho, A Trindade (São Paulo: Paulus, 1994), p. 19.
14
Santo Agostinho, A doutrina cristã (São Paulo: Paulus, 2002), 1.5, p. 46-47.
15
J. N. D. Kelly, Patrística: origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da fé cristã (São Paulo: Vida Nova, 2009), p. 205. Cf. A
Trindade 1-4, p. 23-189.
16
A Trindade 5.2, p. 193.
17
A Trindade 15.2, p. 480-481.
Portanto, nesta obra, Agostinho, pressupondo a veracidade do testemunho bíblico sobre o ensino acerca do Deus
trino e baseando-se nas decisões conciliares estabelecidas em Nicéia e Constantinopla, construiu o primeiro
tratado verdadeiramente sistemático da doutrina da Trindade. 18
São contínuas as orações cheias de amor e confiança que Agostinho dirige a Deus, no correr de sua tarefa de
investigar o mistério da Trindade. E são um testemunho da dependência e ardente súplica, tão características da
oração agostiniana. Constata-se assim estar toda obra teológica de Agostinho elaborada em clima de oração.
Nele está unido a sapientia (“a sabedoria refere-se à contemplação”) e a scientia (“a ciência diz respeito à
ação”), o esforço na busca de sabedoria espiritual. 19
1. A Santíssima Trindade
Seguiremos aqui os pontos básicos do resumo que J. N. D. Kelly fez da exposição da doutrina trinitária em
Agostinho. 20 Esta é inteiramente fundamentada nas Escrituras, porém, em contraste com a tradição oriental, que
fez da pessoa do Pai o seu ponto de partida, Agostinho principia com a natureza divina em si mesma. É esta
simples e imutável natureza ou essência que é Trindade. 21 A unidade da Trindade é assim claramente
asseverada, eliminando-se rigorosamente “o arianismo e o subordinacionismo da sua doutrina da Trindade”. 22
Portanto, tudo o que é afirmado de Deus é afirmado igualmente de cada uma das três pessoas da deidade: “O
Deus único e verdadeiro não é somente o Pai, mas o Pai, o Filho e o Espírito Santo”. 23
Como Kelly nota, diversas consequências se seguem desta ênfase na unidade da natureza divina. Primeiro, as
pessoas da Trindade não são três indivíduos separados, antes “cada uma das pessoas divinas é idêntica às
demais ou à própria substância divina”, e deve-se afirmar “que cada uma das pessoas habita nas outras ou é
inerente às outras”. Como Agostinho escreveu:
Creia o homem no Pai, no Filho e no Espírito Santo, como um só Deus, grande, onipotente, bom, justo, misericordioso,
criador de todas as coisas visíveis e invisíveis, e tudo o mais que dele se possa dizer digna e verdadeiramente, conforme a
capacidade da inteligência humana. E quando ouvir dizer que o Pai é um só Deus, não separe o Filho e o Espírito Santo,
18
No primeiro concílio doutrinal da igreja, realizado na cidade de Nicéia (na atual Turquia), em 325, foi elaborado o Credo de Nicéia.
Este credo expressa mais precisamente a doutrina da trindade contra o arianismo. Esta posição foi reafirmada no Concílio de
Constantinopla (que também está localizada na atual Turquia), realizado em 381: “Creio em um só Deus, o Pai onipotente, criador do
céu da terra, de todas as coisas, visíveis e invisíveis. E em um só Senhor Jesus Cristo, filho unigênito de Deus e nascido do Pai antes
de todos os séculos, Deus de Deus, Luz de Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não feito, consubstancial ao Pai, por
quem foram feitas todas as coisas; o qual por amor de nós homens e por nossa salvação, desceu dos céus, e encarnou, pelo Espírito
Santo, na virgem Maria, e se fez homem; foi também crucificado em nosso favor sob Pôncio Pilatos; padeceu e foi sepultado; e ao
terceiro dia ressuscitou, segundo as Escrituras; e subiu aos céus; está sentado à destra do Pai, e virá pela segunda vez, em glória, para
julgar os vivos e os mortos; e seu reino não terá fim. E no Espírito Santo, Senhor e vivificador, o qual procede do Pai, que juntamente
com o Pai e o Filho é adorado e glorificado; que falou pelos profetas. E a igreja, una, santa, católica e apostólica. Confesso um só
batismo, para a remissão dos pecados, e espero a ressurreição dos mortos e a vida do século vindouro. Amém”. Cf. Henry Bettenson,
Documentos da Igreja Cristã (São Paulo: ASTE, 1998), p. 63-64.
19
“Eis, a piedade é sabedoria; e apartar-se do mal é ciência” (Jó 28.28). Esta oposição corresponde às duas funções da razão: uma
superior, pela qual a alma se dedica à contemplação das realidades eternas; e outra inferior, pela qual a alma aplica-se ao
conhecimento das realidades temporais. A Trindade 12.21b-23, p. 386-390.
20
Cf. J. N. D. Kelly, op. cit., p. 205-210. Cf. também Justo L. González, Uma história do pensamento cristão. v. 1: do início até o
Concílio de Calcedônia (São Paulo: Cultura Cristã, 2004), p. 317-323.
21
Como diz J. N. D. Kelly, op. cit., p. 205: Ele “prefere ‘essência’ a ‘substância’, pois esta última implica um sujeito com atributos,
enquanto, para Agostinho, Deus é idêntico a Seus atributos”: et haec trinitas unus est deus e trinitatem quae deus est, cf. Santo
Agostinho, A Cidade de Deus v. II [Livros IX a XV] (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993), 11.10, p. 1011-1014. Para uma
explicação dos termos-chave da doutrina trinitariana (principalmente “substância = natureza = essência: uma única” e “hipóstase =
subsistência = pessoa: três realmente distintas”), cf. Leonardo Boff, A Trindade, a sociedade e a libertação (Petrópolis, Vozes: 1986),
p. 111-126.
22
Henry Chadwick, A Igreja Primitiva (Lisboa: Ulisseia, 1967), p. 257. Cf. especialmente Millard J. Erickson, Who’s Tampering with
the Trinity? An Assessment of the Subordination Debate (Grand Rapids, MI: Kregel, 2009), p. 153-159. Este livro é uma crítica muito
bem elaborada contra a noção da subordinação eterna do Filho ao Pai, que tem sido revivida em certos setores da igreja evangélica
norte-americana.
23
A Trindade 6.9, p. 227-229.
porque com ele são um só Deus. Quando ouvir dizer que o Filho é um só Deus é mister entender assim, mas sem separá-lo do
Pai e do Espírito Santo. E de tal modo diga que existe uma só essência, e não considere a essência de um ser maior ou melhor
do que a do outro e diferente em algum aspecto. Contudo, não pense que o Pai é o Filho ou Espírito Santo ou qualquer coisa
que uma pessoa em separado diga relação às outras, como por exemplo, o termo ‘Verbo’ aplica-se somente ao Filho, e Dom
afirma-se somente a respeito do Espírito Santo. 24
Segundo, “tudo o que pertence à natureza divina como tal” deve, numa linguagem exata, “ser expresso no
singular, já que esta natureza é única”. Portanto, embora cada uma das três pessoas seja incriada, infinita,
onipotente, eterna, não há três incriados, infinitos, onipotentes e eternos, mas apenas um.
Os diferentes nomes aplicados a cada uma das três pessoas na Trindade, traduzem relação recíproca, tais como: Pai e Filho, e
o Dom de ambos, o Espírito Santo. Com efeito, não se pode dizer que o Pai é a Trindade, ou que o Filho é a Trindade, nem o
Dom ser a Trindade. O que é dito, porém, de cada um dos três em relação a si mesmo, é dito não no plural, mas no singular,
pois referente a uma única realidade: a própria Trindade. 25
Terceiro, “a Trindade possui uma única e indivisível ação e uma única vontade”. Em outras palavras, sua
operação é “inseparável”, 26 isto é, em relação à ordem contingente as três pessoas atuam como “um único
princípio (unum principium)” 27 e como as pessoas são inseparáveis, “assim também operam
inseparavelmente”. 28 Como exemplo disto, de acordo com Kelly, Agostinho argumenta que as teofanias,
manifestações de Deus registradas no Antigo Testamento, não devem ser consideradas como manifestações
exclusivamente do Filho. Algumas vezes as teofanias podem ser atribuídas ao Filho, ou ao Espírito Santo,
algumas vezes ao Pai, outras vezes a todas as três pessoas da deidade. Outras vezes ainda é impossível decidir a
qual das três pessoas atribui-las. 29
A dificuldade que esta teoria sugere é que ela parece ignorar os diversos papéis das três pessoas. A isto
Agostinho responde que, embora seja verdade que o Filho, embora distinto do Pai, nasceu, sofreu e ressuscitou,
“é igualmente verdade que o Pai cooperou com o Filho” na realização da encarnação, paixão e ressurreição. Era
conveniente para o Filho, entretanto, “em virtude de sua relação com o Pai, manifestar-se e fazer-se visível”. 30
Logo, já que cada uma das pessoas possui a natureza divina de uma maneira particular, é apropriado “atribuir a
cada uma delas, na operação externa da Divindade, o papel que lhe é próprio em virtude de Sua origem”. 31
2. A distinção das pessoas 32
24
A Trindade 7.12, p. 256-257.
A Trindade 8.1, p. 259; cf. também 6.9, p. 227-229; 5.10-16, p. 203-213.
26
A Trindade 2.9, p. 78.
27
A Trindade 5.15, p. 208-210.
28
A Trindade 1.7, p. 31; 2.3, p. 71-73.
29
A Trindade 2.14-34, p. 85-110; 3.4-27, p. 114-143.
30
A Trindade 2.9, p. 78-80; 2.18, p. 90-91.
31
A teologia cristã tem distinguido entre Trindade imanente e Trindade econômica. Trindade imanente é a Trindade considerada em si
mesma, em sua eternidade e comunhão pericorética entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. A Trindade econômica é a Trindade
enquanto se auto-revelou na história da humanidade e age em vista à nossa participação na comunhão trinitária. Cf. Karl Rarhner, “O
Deus Trino, fundamento transcendente da história da salvação”, in: Johannes Feiner & Magnus Loehrer, Mysterium Salutis;
compêndio de dogmática histórico-salvífica – a histórica salvífica antes de Cristo II/1 (Petrópolis: Vozes, 1972), p. 292-294, 342-344.
32
O tema da distinção de pessoas, em que o Deus Trino é amor mútuo (1Jo 4.8), foi desenvolvido por um monge escocês chamado
Ricardo de São Vitor, que vivia no Mosteiro de São Vitor, perto de Paris, no século XII. Seu entendimento, afirmado na obra Tratado
sobre a Santíssima Trindade 3.2-7, pode ser resumido assim: Não há nada mais perfeito que a caridade. Portanto, se Deus possui a
plenitude de tudo o que é bom e perfeito, Ele possui a plenitude da caridade. Se Deus é a perfeição do amor, o homem, sendo criado
conforme a imagem de Deus, deve refletir essa perfeição ao máximo possível. Crescer na experiência do amor e da caridade é crescer
em direção à imagem de Deus e tornar-se mais unido com Ele. Todavia, o exercício da caridade exige uma outra pessoa. Ninguém tem
caridade para consigo mesmo. O amor precisa ser direcionado a outra pessoa para que se constitua em verdadeira caridade. Onde
existe apenas uma pessoa não existe caridade. Daí, sua conclusão lógica de que se Deus é amor Ele não pode existir solitariamente,
não pode ser um Deus uno. Cf. especialmente Ricardo Barbosa de Souza, “A Trindade, o pessoal e o social na espiritualidade cristã”,
Vox Scripturae v. 5 – n. 1 (Março de 1995), p. 19-21. Esta abordagem que opta por encontrar a Trindade nas relações pessoais
contrasta com a análise agostiniana centrada, para alguns, num individualismo radical.
25
Segundo Agostinho, a distinção das pessoas se fundamenta nas “suas relações mútuas dentro da Divindade”.
Embora consideradas enquanto substância divina, as pessoas sejam idênticas, o Pai se distingue enquanto Pai
por gerar o Filho, e o Filho se distingue enquanto Filho por ser gerado.
Com respeito às relações mútuas na Trindade, se aquele que gerou é principio do gerado, o Pai é principio em referencia ao
Filho, porque o gerou. Entretanto não é uma investigação de pouca importância inquirir se o Pai é também principio com
relação ao Espírito Santo, pois está escrito: procede do Pai. Se assim for, é principio não somente do que gera ou faz (o
Filho), mas também da pessoa que ele dá (o Espírito). Isso lançaria uma possível luz sobre a questão que a muitos preocupa,
sobre a possibilidade de dizer-se que o Espírito Santo também seja Filho, já que sai do Pai, como se lê no Evangelho (Jo
15.26). Saiu do Pai, sim, mas não como nascido, mas como Dom, e por isso, não se pode dizer filho, já que não nasceu como
o Unigênito e nem foi criado como nós, que nascemos para a adoção filial pela graça de Deus. 33
O Espírito Santo, semelhantemente, distingue-se do Pai e do Filho enquanto “outorgado” por eles, sendo o
“dom comum” (donum) de ambos, “uma espécie de comunhão de Pai e Filho (quaedam patris et filii
communiio), ou, então, o amor que, juntos, Eles derramam em nossos corações”. 34 Surge então a questão: “o
que são, na verdade, os três”? Agostinho reconhece que tradicionalmente eles são designados como pessoas,
mas ele fica descontente com o termo. Provavelmente a expressão lhe trazia a conotação de indivíduos
separados. Mas ele consente em usar a expressão, por causa da necessidade de afirmar a distinção dos três
contra o modalismo, e com um profundo sentido da inadequação da linguagem humana. 35 Sua teoria positiva,
original e muito importante para a história subseqüente da doutrina da Trindade no ocidente, foi a de que “os
três são relações reais ou subsistentes”. Em outras palavras, toda distinção nas pessoas divinas consiste numa
relação subsistente, mútua, entre elas.
O motivo que levou Agostinho a esta colocação foi o dilema colocado pelos arianos. 36 Estes, baseando-se no
esquema aristotélico das categorias, afirmaram que as distinções na Divindade, se elas existissem, teriam que
“ser classificadas sob a categoria de substância ou de acaso”. 37 Na categoria do acaso não poderia sê-lo, porque
em Deus não há nada acidental; se o fossem, porém, na categoria da substância, então a conclusão seria que
existem três deuses.
Agostinho nega ambas as alternativas, explicando que a categoria da relação é uma alternativa possível. Os três,
ele passa a afirmar, são relações tão reais e eternas como o “gerar, ser gerado e proceder (ou ser outorgado)”,
que fundamentam as relações dentro da Divindade.
Não há, pois, senão um bem simples e, conseqüentemente, senão um bem imutável – Deus. E este bem criou todos os bens
que, não sendo simples, são, portanto, mutáveis. Digo, precisamente, criou, isto é, fez, e não gerou. É que o que é gerado de
um ser simples é simples como ele e é o mesmo que aquele que o gerou. A estes dois seres chamamos Pai e Filho e um e
outro com o seu Santo Espírito são um só Deus. A este Espírito do Pai e do Filho se chama nas Sagradas Escrituras Espírito
Santo por uma espécie de apropriação deste nome. É, porem, distinto do Pai e do Filho, pois não é nem o Pai nem o Filho.
Disse que é distinto mas não é outra coisa, porque também Ele é igualmente simples, igualmente imutável e co-eterno. E esta
Trindade é um só Deus e não deixa de ser simples por ser Trindade. (...) É por isso que se chama simples a natureza que nada
tem que possa perder; ou é simples a natureza em que aquele que tem se identifica com aquilo que tem. [Portanto] chama-se
33
A Trindade 5.15, p. 208-209; 5.6, p. 196-197; 5.8 p. 199-201.
A Trindade 5.12, p. 204-206; 5.15-17, p. 208-213; 8.1, p. 259-260.
35
Como diz João Calvino, Agostinho “em razão da pobreza da linguagem humana em matéria de tão alto importe, esta palavra
hipóstase havia sido forçada pela necessidade, não para que se expressasse o que é, mas apenas para que não se passasse em silêncio o
fato de que são três o Pai, o Filho e o Espírito”. Cf. As Institutas da Religião Cristã I.13.5, 18 (São Paulo: Cultura Cristã, 2006), p.
126, 146-147. Calvino parece se distanciar das analogias psicológicas, apesar de praticamente repetir a abordagem de Agostinho a
respeito da Trindade.
36
A Trindade 5.4, p. 194.
37
Cf. J. N. D. Kelly, op. cit. p. 12-13. Para Aristóteles, haviam dez categorias: substância (ousia – no sentido de uma coisa),
quantidade ou dimensão (quantitas), qualidade (qualitas), relação com alguma coisa (relatio ad aliquid), local (locus), tempo
(tempus), posição ou situação (situs), habito ou exterior (habitus), ação (actio), paixão ou ação sofrida (passio). Aristóteles acreditava
que essas categorias representavam não apenas as maneiras de a mente pensar no mundo externo, mas também os modos em que as
coisas existem objetivamente nesse mundo.
34
simples as perfeições que, por excelência e na verdade, constituem a natureza divina: porque nelas não é a substância uma
coisa e a qualidade outra coisa. 38
O Pai, o Filho e o Espírito Santo são assim relações, “no sentido de que tudo aquilo que cada um é, Ele é em
relação a um dEles ou a ambos”. 39
3. A processão do Espírito Santo
Agostinho também procurou explicar o que é a processão do Espírito Santo, ou “em que ela difere da geração
do Filho”. 40 Ele considerou como certo que o Espírito Santo é o amor mútuo do Pai e do Filho (communem qua
invicem se diligunt pater et filius caritatem), o amor comum pelo qual o Pai e o Filho se amam mutuamente. 41
Assim, Agostinho afirma que “o Espírito Santo não é o Pai nem o Filho, mas somente o Espírito Santo do Pai e
do Filho, igual ao Pai e ao Filho e pertencente à unidade da Trindade”. 42 Desta maneira, em relação ao Espírito
Santo, o Pai e o Filho formam um único princípio, o que é inevitável, “pois a relação de ambos” para com o
Espírito Santo “é idêntica e onde não há diferença de relação, a operação dEles é inseparável”. Agostinho,
portanto, ensinou a doutrina da dupla processão do Espírito Santo do Pai e do Filho (filioque). 43
Então, de acordo com Agostinho, o Pai é autor da processão do Espírito Santo porque Ele gerou o Filho, e ao
gerá-lo tornou-o também fonte a partir do qual o Espírito procede e já que tudo o que o Filho tem, o tem do Pai,
do Pai tem também que dEle proceda o Espírito Santo. Daqui, porém, não se deve concluir, ele nos adverte, que
o Espírito Santo tenha duas fontes ou princípios. 44 Pelo contrário, “a ação do Pai e do Filho” na processão do
Espírito “é comum, assim como é a ação de todas as três pessoas na criação”. Além disso, não obstante a dupla
processão, o Pai permanece “a fonte primordial”, na medida em que é dEle que deriva a capacidade do Espírito
Santo de proceder do Filho. 45
Entenda também que, assim como o Pai tem a vida em si mesmo, para que dele proceda o Espírito Santo, assim deu ao Filho
para que dele também proceda o mesmo Espírito Santo; o qual procedeu de ambos, fora do tempo. E pelo fato de dizer-se
que o Espírito Santo procede do Pai, deve-se entender que o Filho recebe-o do Pai, e então, o Espírito Santo procede também
do Filho. Pois o que o Filho tem, recebe-o do Pai, e assim recebe do Pai para que dele proceda, o mesmo Espírito Santo. 46
Portanto, o Espírito Santo é algo comum ao Pai e ao Filho. “O Pai é apenas o Pai do Filho, e o Filho apenas o
Filho do Pai; o Espírito, entretanto, é o Espírito tanto do Pai como do Filho, unindo-os em um vínculo de amor”.
Portanto, o Espírito Santo é o “elo que une, por um lado, o Pai e o Filho, e, por outro lado, Deus e os cristãos. O
Espírito é um dom, dado por Deus, o qual une os cristãos a Deus e aos demais cristãos. O Espírito Santo forma
os elos de união entre os cristãos, dos quais depende fundamentalmente a unidade da igreja. A igreja é o
38
A Cidade de Deus 11.10, p. 1011-1012.
A Trindade 5-7, p. 191-258; Cf. também Santo Agostinho, Comentário aos Salmos 68 1.5 [Enarrationes in psalmos] Salmos 51-100
(São Paulo: Paulus, 1997), p. 435-437. Segundo J. N. D. Kelly, op. cit., p. 207: “Para as pessoas da atualidade, menos versadas em
filosofia técnica, soa estranho a noção de que as relações (e.g. ‘acima’, ‘à direita de’, ‘maior’) possuem uma subsistência real, embora
possam em geral concordar com sua objetividade, isto é, que tais relações existem por si mesmas, independente do observador. Para
Agostinho, essa era uma idéia mais familiar, pois tanto Plotino quanto Porfírio haviam-na ensinado. Para ele, a vantagem era que, ao
permitir que falasse significativamente sobre Deus num novo nível de linguagem, ela fazia com que fosse possível afirmar ao mesmo
tempo a unidade e a pluralidade da Divindade, sem cair num paradoxo”.
40
A Trindade 15.46, p. 546-550.
41
A Trindade 15.27-37, p. 521-534. Em 7.6, p. 244, o Espírito Santo é referido como “suma caridade, laço que une um ao outro [o Pai
ao Filho], e nos submete a eles” (summa charitas, utrumque coniungens, nosque subiungens).
42
A Trindade 1.7, p. 31.
43
Para o papel de Agostinho na controvérsia filioque, cf. Alister E. McGrath, Teologia sistemática, histórica e filosófica (São Paulo:
Shedd, 2005), p. 395-398.
44
A Trindade 5.15, p. 208-210.
45
O que a teologia oriental (ortodoxa) nem sempre considerou é que os latinos, inclusive Agostinho, sempre conceberam o Pai como a
fonte (Fons Trinitatis) ou origem especial (origo principalis) na Trindade. O Espírito Santo, como afirma Agostinho, procede do Pai
principaliter; procede do Pai e do Filho communiter, por causa do dom que o Pai dá ao Filho. A maioria dos ortodoxos poderia aceitar
tal formulação, mas, até que um concílio ecumênico agisse, tal idéia continuaria sendo mero “ensino teológico” (theologoumena). Cf.
A Trindade 15.50, p. 553-555.
46
A Trindade 15.47, p. 549.
39
‘templo do Espírito Santo’, e em seu interior o Espírito Santo habita. O mesmo Espírito que une o Pai e o Filho,
tornando-os um, também une os cristãos em uma só igreja”. 47
4. A formulação das “analogias psicológicas”
De acordo com J. N. D. Kelly, “o uso de analogias tiradas da estrutura da alma humana”, ainda que afirmada
timidamente, é, provavelmente, “a contribuição mais original de Agostinho à teologia trinitária”. 48 A função
destas analogias não é demonstrar que Deus é Trindade, já afirmada nas Escrituras, mas aprofundar nosso
entendimento do mistério da absoluta unidade e também da distinção real dos três. No sentido estrito, de acordo
com Agostinho, há vestígios da Trindade em todo o lugar, porque as criaturas, na medida em que existem,
“existem por participar das idéias de Deus; portanto, tudo deve refletir”, embora de forma tênue, a Trindade que
as criou. 49
Para buscar a verdadeira imagem da Trindade, entretanto, o homem deve olhar primeiramente dentro de si,
porque as Escrituras representa Deus dizendo: “Façamos [isto é, os três] o homem à nossa imagem e à nossa
semelhança”. Portanto, mesmo o homem exterior, isto é, o homem considerado em sua natureza sensível,
fornece “uma certa figura da Trindade” (quandam trinitatis effigiem). 50 De acordo com Kelly, “o processo de
percepção, por exemplo, revela três elementos distintos que são ao mesmo tempo intimamente ligados, dos
quais o primeiro, em certo sentido, gera o segundo, enquanto que o terceiro mantém aos outros dois unidos”.51
Por exemplo, o objeto externo (res quam vivemus, a coisa que vemos), a representação sensível da mente
(visio), e a intenção ou ato de focalizar a mente (intentio; voluntas; intentio voluntatis, a intenção da vontade).
Quando o objeto externo é removido temos uma segunda trindade, que lhe é superior, pois é localizada
inteiramente dentro da mente. 52 Neste sentido, Agostinho fala da impressão da memória (memoria), a imagem
interna da memória (visio interna), e a intenção ou disposição da vontade (voluntas).
Para a imagem real, entretanto, da Trindade, devemos olhar no homem interior, ou alma. Ao comentar a
pergunta do Salmo, “por que estás triste, ó minha alma? E por que me perturbas?”, ele escreveu: “Entendemos,
então, que temos algo onde se encontra a imagem de Deus, a saber, a mente, a razão. A mente invocava a luz de
Deus e a verdade de Deus. Com ela entendemos o que é justo e o que é injusto, discernimos o verdadeiro do
falso... Nosso intelecto, por conseguinte, fala a nossa alma”. 53
Como Kelly afirma, frequentemente tem sido dito que a principal analogia trinitária do A Trinitate é a do
amante (amans), do objeto amado (id quod amatur) e do amor que os une (amor). 54 Porém a discussão de
Agostinho desta trindade é bastante curta, e é apenas “uma transição” para aquela que ele considera sua mais
importante analogia, a da “atividade da mente enquanto dirigida para si mesma ou, melhor ainda, para Deus”.
Quem poderá compreender a Trindade onipotente? E quem não fala dela, ainda que não a compreenda? É rara a pessoa que,
ao falar da Santíssima Trindade, saiba o que diz. Discute-se, debate-se, mas ninguém é capaz de contemplar essa visão, sem
paz interior. Quisera meditassem os homens sobre três coisas que tem dentro de si mesmos, as três bem diferentes da
Trindade. Indico-as, para que se exercitem, e assim experimentem e sintam quão longe estão desse mistério. Aludo à
existência, ao conhecimento e à vontade. De fato existo, conheço e quero. Existo, sabendo e querendo; sei que existo e quero;
47
Alister E. McGrath, op. cit., p. 367-368.
Henry Chadwick, op. cit., p. 257. Cf. Millard Erickson, Introdução à teologia sistemática (São Paulo: Vida Nova, 2012), p. 138: “A
maior contribuição de Agostinho para a compreensão da Trindade são suas analogias extraídas do campo da personalidade humana.
Ele argumentou que, se a humanidade é feita à imagem de Deus, que é triúno, é razoável esperar encontrar, numa análise da natureza
humana, um reflexo, mesmo que tênue, da triunidade de Deus.”
49
Santo Agostinho, A verdadeira religião 13 (São Paulo: Paulus, 2002), p. 39-40.
50
A Trindade 11.1, p. 335-336.
51
A Trindade 11.2-5, p. 337-342.
52
A Trindade 11.6, p. 343-345.
53
Santo Agostinho, Comentário aos Salmos 42.6 [Enarrationes in psalmos]; Salmos 1-50 (São Paulo: Paulus, 1997), p. 718-719.
54
A Trindade 8.12-9.2, p. 260-289 e A Cidade de Deus v. II, 11.26. É interessante notar que na concepção barthiana-anselmiana a fé é
amans, o entendimento da fé é id quod amatur e a teologia é amor. Cf. Karl Barth, Fé em busca de compreensão (São Paulo: Fonte
Editorial, 2006), p. 14. Cf. também Anselmo de Cantuária, Monol. 67 e passim.
48
quero existir e conhecer. Repare, quem puder, como é inseparável a vida nessas três faculdades: uma só vida, uma só
inteligência, uma só essência. Como são inseparáveis os objetos dessa distinção. Distinção, no entanto, que existe! Cada um
está diante de si mesmo. Estude-se, veja e responda-me. Contudo, mesmo que reflita e me responda, não julgue ter
compreendido a essência deste Ser imutável que está acima de todas as criaturas, o Ser que imutavelmente existe,
imutavelmente sabe e imutavelmente quer. Será porventura graças a essas três faculdades que há em Deus a Trindade, ou
essa tríplice faculdade existe em cada uma das três pessoas, de modo a serem três em cada uma? Ou ambas as coisas se
realizam de modo admirável, numa simplicidade múltipla, sendo a Trindade o seu próprio fim infinito, pela qual existe, se
conhece e se basta imutavelmente, na grande abundância de sua Unidade? Quem poderia exprimir facilmente esse conceito?
Quem teria palavras para o exprimir? Quem, de algum modo, ousaria pronunciar-se temerariamente a esse respeito? 55
Esta última analogia fascinou Agostinho por toda a sua vida, as trindades resultantes sendo: a) a mente (mens),
seu conhecimento de si mesma (notitia) e seu amor de si mesma (amor); 56 b) a memória (memoria), ou, mais
propriamente, “o conhecimento latente que a mente tem de si mesma”; o entendimento (intelligentia), isto é,
“sua apreensão de si mesma à luz das razões eternas”; e a vontade (voluntas), ou amor de si mesma, “pela qual
este processo de autoconhecimento é posto em atividade”; 57 c) a mente, enquanto lembrando, conhecendo e
amando ao próprio Deus. 58 “É, contudo, a última das três analogias que Agostinho considera a mais
satisfatória”. Agostinho considera que somente quando a mente focalizou a si mesma com todas as suas
potências de lembrança, entendimento e amor em seu Deus é que a Sua imagem que ela traz em si, corrompida
como está pelo pecado, pode ser plenamente restaurada.
Embora se demorando nestas analogias, Agostinho não tem ilusões quanto às suas imensas limitações. Primeiro,
“a imagem de Deus na mente do homem é, de qualquer maneira, uma imagem remota e imperfeita”. Segundo,
“embora a natureza racional do homem exiba as trindades acima mencionadas, (...) elas representam faculdades
ou atributos que o ser humano possui, enquanto que a natureza divina é perfeitamente simples”. Terceiro, a
memória, entendimento e vontade operam no homem separadamente, enquanto que as três pessoas divinas
“pertencem-se mutuamente e Sua ação é perfeitamente una e indivisível”. Finalmente, em Deus os três
membros da Trindade são pessoas, mas o mesmo não ocorre na mente humana. Parafraseado o próprio
Agostinho, a imagem da Trindade se encontra numa pessoa, mas a suprema Trindade é ela própria três pessoas:
o que é um paradoxo, quando alguém reflete que, não obstante isso, os três são mais inseparavelmente um do
que a trindade da mente. 59
O fundamento para seguir esta religião [cristã] é a história e a profecia. Aí se descobre a disposição da divina Providência, no
tempo, em favor do gênero humano, para reforma-lo e restaura-lo, em vista da posse da vida eterna. Crendo nisso, a mente
vai se purificando num modo de vida ajustado aos preceitos divinos. Isso a habilitará à percepção das realidades espirituais.
Essas realidades não são nem do passado, nem do futuro, mas são sempre idênticas a si mesmas, imunes de qualquer
mudança temporal. Trata-se do mesmo e único Deus Pai, Filho e Espírito Santo. Conhecida essa Trindade – o quanto é
possível na vida presente – sem dúvida alguma a mente percebe que toda criatura intelectual, animal e corporal, recebe dessa
mesma Trindade criadora: o ser para ser o que é; a sua forma; e a direção dentro da perfeita ordem universal. Não se entenda
por aí, porém, que apenas parcela das criaturas é feita pelo Pai, outra pelo Filho e outra ainda pelo Espírito Santo. O certo é
que todas e cada uma das naturezas individuais recebe a criação do Pai pelo Filho, no dom do Espírito Santo. Visto que todas
as coisas, substância, essência, natureza ou qualquer termo mais adequado, que se dê possui ao mesmo tempo estas três
propriedades: é algo único, distingue-se por sua forma das demais coisas, e está dentro da ordem universal. 60
Conclusão: louvor a Deus
Para encerrar, podemos resumir as contribuições de Agostinho à doutrina trinitariana: (a) Na explicação da
Trindade, ele concebe a natureza divina, antes das pessoas, separadamente. Sua formula da Trindade é: uma só
natureza subsistindo em três pessoas. Ao contrário, a dos gregos era: três pessoas tendo uma mesma natureza.
Em Agostinho, a divindade única aparece logo. A igualdade das pessoas divinas também aparece com mais
55
Santo Agostinho, Confissões 13.11 (São Paulo: Paulus, 1997), p. 412-413.
A Trindade 9.2-8, p. 287-296.
57
A Trindade 10.17-19, p. 330-334.
58
A Trindade 14.11-15.28, p. 453-557.
59
Para as críticas que são feitas a esta análise, cf. Alister E. McGrath, op. cit., p. 386-388.
60
A verdadeira religião 13, p. 48; A Trindade 15.43, p. 541-543.
56
brilho. 61 (b) Outro progresso da doutrina trinitariana de Agostinho é a insistência em fazer de todas as operações
ad extra a obra indistinta das três pessoas, isto é, as operações exteriores são atribuídas ou apropriadas ao Pai,
Filho e Espírito Santo. 62 (c) Enfim, Agostinho lançou os fundamentos da teoria psicológica das processões,
concernentes à origem do Filho e à do Espírito Santo.
Agostinho, juntamente com os maiores teólogos que lograram vislumbrar as dimensões do mistério trinitário,
costumavam terminar suas obras como orações ardorosas, de louvor e agradecimento, sempre conscientes de
suas limitações: “Ó minha fé, vai avante na tua confissão. Diz ao Senhor teu Deus: santo, santo, santo é o
Senhor meu Deus. Fomos batizados em teu nome, Pai, Filho e Espírito Santo”. 63 O silêncio reverente da razão
deixa o coração extravasar sua admiração. Deus está envolto em mistério “na luz inacessível” (1Tm 6.13-16):
Portanto, quando chegarmos à tua presença, cessará o muito que dissemos, mas muito nos ficará por dizer e tu permanecerás
só, tudo em todos (1Cor 15.28), e então eternamente cantaremos um só cântico, louvando-te em um só movimento, em ti
estreitamente unidos. Senhor, único Deus, Deus Trindade, tudo o que disse de ti nestes livros, de ti vem. Reconheçam-no os
teus, e se algo há de meu, perdoa-me e perdoem-me os teus. AMÉM. 64
61
A comunhão inseparável, recíproca e continua entre as Três pessoas divinas é conhecida, em linguagem teológica, como pericórese.
Este termo foi usado pela primeira vez (como uma forma de afirmar a unidade divina) por João Damasceno, o último dos Pais da
igreja oriental. Significa “conter um ao outro, inabitar, como que morar, um no outro”. Essa palavra foi traduzida em latim, pelos
escolásticos, por dois outros termos: circumsessio (de circum: em torno, sessio: ação de estar sentado; manifesta o aspecto estático da
pericórese) e circumcessio (derivado de circum e incedere: que significa caminhar, permear, interpretar; lembra a comunhão contínua
e eterna que vigora entre as pessoas da Trindade, manifestando o aspecto dinâmico da pericórese. A escola franciscana com João
Boaventura, João Duns Scotus e Guilherme de Ockham aprofundaram o termo e a questão. Cf. Leonardo Boff, op. cit., p. 169-186.
62
As ações ad extra são as que a Trindade opera para fora do círculo trinitário, como a criação do universo, a revelação, a salvação.
As ações ad intra são as ações intratrinitárias, dentro do círculo trinitário, como a geração do Filho e a espiração do Espírito Santo
pelo Pai e o Filho.
63
Confissões 13.12, p. 413.
64
A Trindade, 15.28, p. 557.