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Entre os fatos e as provas: padrões que condenam

2019, https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/entre-os-fatos-e-as-provas-padroes-que-condenam-23122019

O artigo trata da ocorrência de padrões que não são percebidos na tomada de depoimentos, gerando o que se denomina salto causal.

Entre os fatos e as provas: padrões que condenam Acomodação aos padrões promove um perigoso salto causal rumo à suposta verdade dos acontecimentos  TIAGO GAGLIANO There’s a blaze of light in every word It doesn’t matter which you heard (…) I did my best, it wasn’t much I couldn’t feel, so I tried to touch I’ve told the truth, I didn’t come to fool you” (“Hallelujah – Leonard Cohen) A prova oral se inicia. A primeira testemunha apresenta uma versão bem encadeada, coerente e absolutamente crível. A segunda, atuando da mesma forma, corrobora o que fora relatado pela primeira; a terceira opera na mesma toada, assim como a quarta. Depoimentos “coerentes, harmônicos e firmes”, como se costuma dizer no já cansado jargão forense. Conclusão: está comprovada a versão dos fatos narrados pelas testemunhas, correto? Não, necessariamente. Infelizmente, a questão não é tão iluminada assim pela clareza solar com que usualmente se compreende. Já remonta há algum tempo a ideia segundo a qual o ser humano necessita de padrões para obtenção de estabilidade. Isso não é novidade e encontra raízes antropológicas, sociológicas e de outras naturezas, científicas ou não. Ocorre que no direito, em especial no ambiente nababesco da valoração racional da prova, este, digamos, detalhe, passa desapercebido. A tendência (biased), quer se queira ou não, será sempre a de que nos acomodemos mais aos padrões, simplesmente porque nos trazem a sensação (falsa, por vezes), de conforto e segurança. E, ao fazê-lo, promove-se um perigoso salto causal rumo à suposta verdade dos acontecimentos[1]. Vamos com calma. Primeiro os padrões. Há interessantes estudos sugerindo que buscamos padrões por associação (convergência), ou por divergência (dissociação). Dito de outro modo: buscamos padrões quando os buscamos e quando também não atuamos assim, pretensamente procurando divergências. De qualquer modo e em qualquer situação, procuramos estabilidade e segurança, traduzida pela busca de padrões[2]. Uma vez encontrado o padrão, por convergência ou divergência, estabelece-se uma espécie de conforto mental, uma estabilidade no pensamento e uma sensação de segurança de que aquela versão, corroborada pelos padrões encontrados, representa a verdade. De fora parte a discussão quanto à existência ou não de verdade no ambiente da premissa fática, a situação é que, encontrado o padrão, dificilmente se apelará ao oposto do salto causal: a análise deontológica (ou axiológica) para valoração do material probatório submetido à apreciação do juiz. Ao contrário, a prova da prova, isto é, a meta-comprovação de que a prova se encontra adequada, estará fixada na própria coerência, coesão, harmonia e firmeza dos depoimentos colhidos. Nada mais equivocado. Se várias testemunhas apresentaram versões idênticas, assemelhadas ou parecidas de determinados acontecimentos, a única coisa que se pode ter por comprovado a partir desta situação é que, simplesmente, várias testemunhas apresentaram versões idênticas, assemelhadas ou parecidas. Apenas isso. Da mesma maneira, se as testemunhas ofertaram versões totalmente díspares, desconexas ou disparatadas dos mesmos acontecimentos, o que se deve ter por comprovado é apenas e tão somente que as testemunhas apresentaram versões diversas acerca da mesma situação fática. Ponto. Se, a partir da coerência, harmonia e coesão dos depoimentos, ou, de outro lado, do total ou parcial divergência, você concluiu que, no primeiro caso, a situação ocorreu e no segundo que não, você acabou de promover o salto causal, que ostenta vício na sua forma, substância e metodologia. Na forma, o salto causal não se sustenta, porque não apresenta qualquer mecanismo de validação, procedimental ou substancial. Simplesmente não se pode, por dedução, indução, ou abdução, comprová-lo, na medida em que representa quase uma crença subjetiva, intuitiva e oriunda de percepções pessoais despidas de embasamento de quaisquer ordens. Na substância, o salto causal parece ser oriundo de uma simples escolha valorativa. Simplesmente escolherei acreditar nas testemunhas, baseado na coincidência, ou não, dos depoimentos. No fundo, entretanto, não o farei pelo teor dos depoimentos em si, mas pelo fato de que a concatenação, ou não, das dinâmicas ofertadas pelas testemunhas, ultimaram por me passar uma condição de estabilidade que causou conforto e segurança na resolução de determinado caso. É um ato de escolha, puro e simples. E lastreado em elementos mais psicológicos do que jurídicos. E, finalmente, o salto causal tampouco apresenta metodologia, sob o ponto de vista jurídico, para verificação de consistência, validade ou veracidade. Não há qualquer metodologia prevista no direito positivo para análise da valoração da prova, ou do standard a partir do qual a massa fática deverá ser examinada. Aliás, temos muito a evoluir neste ponto, no ambiente do direito positivo, da jurisprudência, e também do dia-a-dia forense, em que os saltos causais são mais comuns do que se pode perceber ou aquilatar em uma primeira análise. Formatações metodológicas para exames de prova, como a da tese prevalecente existente, por exemplo, no art. 401 da Federal Rules of Evidence dos EUA, ou a ideia de discricionariedade guiada praticada em países em que o rigor técnico-científico costuma a ser aquilatado e valorado em ambiente judicial[3], representam tentativas de contribuir para o estabelecimento de critérios objetivos da valoração de algo que, se não tiver qualquer base consolidada, dar-se-á em esfera subjetiva, individual e, muitas vezes, equivocada, porque enviesada. Na prova oral, a situação é mais angustiante. Os Códigos Processuais, civil e penal, limitam-se a estabelecer juízos de exclusão: quem não pode depor, quais perguntas não podem ser formuladas e por aí adiante. Não há elementos legais de direcionamento para valoração da prova oral. A jurisprudência, neste ponto, também não ajuda, porque nada indica a respeito, diversamente do que assentou o Tribunal Supremo espanhol ao fixar os seguintes critérios para validação da credibilidade da prova oral: i) ausência de incredibilidade subjetiva da testemunha; ii) declaração verossímil; iii) declaração firme ao longo do procedimento; iv) prova oral corroborada mediante dados objetivos[4]. Se nada é estabelecido, o salto causal ocorrerá naturalmente, porque sua origem advém do nosso comportamento enquanto ser humano, sempre buscando estabilidade e segurança. Mas não conclua açodadamente. É equivocada a ideia de que os padrões, uma vez identificados, não sejam aptos a conduzir a uma resposta crível em todos os casos. O problema não se situa, propriamente, na busca por padrões, que é natural e heurístico, no sentido de que será a primeira reação, quase orgânica, ao perceber a existência de elementos comuns ou divergentes associados. O juiz poderá concluir no sentido da ocorrência ou não de determinado evento tendo como base os padrões, por associação ou divergência, obtidos a partir dos depoimentos, sem qualquer problema. Isso desde que obedeça a uma condição apenas: decida, valorativamente, por compreender que deve ser dado este encaminhamento à dinâmica fática; e não, o que é inapropriado, ser levado a crer que algo ocorreu ou não, em virtude de padrões encontrados. Na primeira opção, identificação de padrões e consciente opção por, valorando-os, compreender que a reconstrução dos fatos se deu de tal ou qual modo, o juiz terá interrompido o natural salto causal, não sendo induzido a crer em algo. Na segunda hipótese, no entanto, o juiz terá acreditado, em virtude do salto causal, nas testemunhas somente pelo fato de que encontrou, consciente ou inconscientemente, padrões no que elas afirmaram, ou em que se omitiram. Portanto, a ocorrência de padrões, por si, não é inidônea; mas sim o salto causal inconsciente produzido a partir da coerência, consistência, harmonia e firmeza (ou falta delas) que se possa depreender de depoimentos. Voltando ao início do texto. A quarta testemunha acabou de apresentar a sua versão, extremamente símile às anteriores. Você observa todo aquele encadeamento fático narrado de maneira incrivelmente coesa, respira por alguns segundos e pensa: como devo valorar isto? Terão sido ser sinceras a narrativas, embora coincidentes? Terão sido falsas? Com base em quais outros elementos valorarei as coincidências encontradas em relação ao que foi mencionado? Parabéns! Você interrompeu o salto causal. Compartilhe a paz. ——————————————————————————— ——— [1] A literatura a respeito de padrões é imensa e pertinente a diversos ramos do conhecimento. Limito-me, por isso, a mencionar um autor que aborda o tema sob o ponto de vista da economia comportamental, Richard Thaler, e um psicólogo experimental, Daniel Kahneman, que examina a questão a partir do chamado viés confirmatório. THALER, Richard H. Misbehaving. A construção da economia comportamental. Tradução de George Schlesinger. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2019. KAHNEMAN, Daniel. Pensar rápido, pensar despacio. Traducción de Joaquín Chamorro Mielke. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Debate, 2016. [2] Malcolm Gladwell apresenta, a partir de situações concretas como o aumento do consumo de tabaco apesar da diminuição da publicidade a respeito e o incremento nas taxas de suicídio entre adolescentes e jovens ao final da década de 80 na Micronésia, alguns interessantes estudos a respeito da busca por padrões de comportamento por convergência ou dissociação. GLADWELL, Malcolm. El punto clave. Traducción de Inés Belaustegui. México: Debolsillo, 2017, p. 235-272. [3] TARUFFO, Michele. Uma simples verdade. O Juiz e a construção dos fatos. Tradução de Vitor de Paula Ramos. São Paulo: Marcial Pons, 2012. [4] Amplo estudo a respeito pode ser encontrado em: FENOLL, Jordi Nieva. La valoración de la prueba. Madrid: Marcial Pons, 2010 e, bem assim, em: ABELLÁN, Marina Gascón. Cuestiones probatórias. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2012. TIAGO GAGLIANO PINTO ALBERTO – Pós-doutor pela Universidad de León/Espanha. Pós-doutor pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR). Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR), Professor da Escola da Magistratura do Estado do Paraná (EMAP), da Escola da Magistratura Federal em Curitiba (ESMAFE), da Academia Judicial de Santa Catarina e da Escola Superior da Magistratura Tocantinense (ESMAT). Coordenador e Professor do Curso de Argumentação Jurídica ministrado nas Escolas da Magistratura dos Estados do Paraná (EMAP), Santa Catarina (TRT - 12ª Região) e Tocantins (ESMAT). Coordenador da Pós-graduação em teoria da decisão judicial na Escola da Magistratura do Estado de Tocantins (ESMAT). Integrante do grupo de pesquisa "CONFLICTOS DE DERECHOS: TIPOLOGIAS, RAZONAMIENTOS, DECISIONES", liderado pelo Professor Doutor Juan Antonio García Amado. Juiz de Direito Titular da 4ª Turma Recursal do Poder Judiciário do Estado do Paraná. Membro suplente do Tribunal Regional Eleitoral do Paraná. Fonte: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/entre-os-fatos-e-as-provas-padroes-quecondenam-23122019