Entre os fatos e as provas: padrões que
condenam
Acomodação aos padrões promove um perigoso salto causal rumo à suposta verdade dos
acontecimentos
TIAGO GAGLIANO
There’s a blaze of light in every word
It doesn’t matter which you heard
(…)
I did my best, it wasn’t much
I couldn’t feel, so I tried to touch
I’ve told the truth, I didn’t come to fool you”
(“Hallelujah – Leonard Cohen)
A prova oral se inicia. A primeira testemunha apresenta uma versão
bem encadeada, coerente e absolutamente crível. A segunda, atuando
da mesma forma, corrobora o que fora relatado pela primeira; a
terceira opera na mesma toada, assim como a quarta. Depoimentos
“coerentes, harmônicos e firmes”, como se costuma dizer no já
cansado jargão forense. Conclusão: está comprovada a versão dos
fatos narrados pelas testemunhas, correto? Não, necessariamente.
Infelizmente, a questão não é tão iluminada assim pela clareza solar
com que usualmente se compreende.
Já remonta há algum tempo a ideia segundo a qual o ser humano
necessita de padrões para obtenção de estabilidade. Isso não é
novidade e encontra raízes antropológicas, sociológicas e de outras
naturezas, científicas ou não. Ocorre que no direito, em especial no
ambiente nababesco da valoração racional da prova, este, digamos,
detalhe, passa desapercebido.
A tendência (biased), quer se queira ou não, será sempre a de que nos
acomodemos mais aos padrões, simplesmente porque nos trazem a
sensação (falsa, por vezes), de conforto e segurança. E, ao fazê-lo,
promove-se um perigoso salto causal rumo à suposta verdade dos
acontecimentos[1].
Vamos com calma. Primeiro os padrões. Há interessantes estudos
sugerindo que buscamos padrões por associação (convergência), ou
por divergência (dissociação). Dito de outro modo: buscamos
padrões quando os buscamos e quando também não atuamos assim,
pretensamente procurando divergências. De qualquer modo e em
qualquer situação, procuramos estabilidade e segurança, traduzida
pela busca de padrões[2].
Uma vez encontrado o padrão, por convergência ou divergência,
estabelece-se uma espécie de conforto mental, uma estabilidade no
pensamento e uma sensação de segurança de que aquela versão,
corroborada pelos padrões encontrados, representa a verdade.
De fora parte a discussão quanto à existência ou não de verdade no
ambiente da premissa fática, a situação é que, encontrado o padrão,
dificilmente se apelará ao oposto do salto causal: a análise
deontológica (ou axiológica) para valoração do material probatório
submetido à apreciação do juiz. Ao contrário, a prova da prova, isto
é, a meta-comprovação de que a prova se encontra adequada, estará
fixada na própria coerência, coesão, harmonia e firmeza dos
depoimentos colhidos. Nada mais equivocado.
Se várias testemunhas apresentaram versões idênticas, assemelhadas
ou parecidas de determinados acontecimentos, a única coisa que se
pode ter por comprovado a partir desta situação é que, simplesmente,
várias testemunhas apresentaram versões idênticas, assemelhadas ou
parecidas. Apenas isso. Da mesma maneira, se as testemunhas
ofertaram versões totalmente díspares, desconexas ou disparatadas
dos mesmos acontecimentos, o que se deve ter por comprovado é
apenas e tão somente que as testemunhas apresentaram versões
diversas acerca da mesma situação fática. Ponto.
Se, a partir da coerência, harmonia e coesão dos depoimentos, ou, de
outro lado, do total ou parcial divergência, você concluiu que, no
primeiro caso, a situação ocorreu e no segundo que não, você acabou
de promover o salto causal, que ostenta vício na sua forma, substância
e metodologia.
Na forma, o salto causal não se sustenta, porque não apresenta
qualquer mecanismo de validação, procedimental ou substancial.
Simplesmente não se pode, por dedução, indução, ou abdução,
comprová-lo, na medida em que representa quase uma crença
subjetiva, intuitiva e oriunda de percepções pessoais despidas de
embasamento de quaisquer ordens.
Na substância, o salto causal parece ser oriundo de uma simples
escolha valorativa. Simplesmente escolherei acreditar nas
testemunhas, baseado na coincidência, ou não, dos depoimentos. No
fundo, entretanto, não o farei pelo teor dos depoimentos em si, mas
pelo fato de que a concatenação, ou não, das dinâmicas ofertadas
pelas testemunhas, ultimaram por me passar uma condição de
estabilidade que causou conforto e segurança na resolução de
determinado caso. É um ato de escolha, puro e simples. E lastreado
em elementos mais psicológicos do que jurídicos.
E, finalmente, o salto causal tampouco apresenta metodologia, sob o
ponto de vista jurídico, para verificação de consistência, validade ou
veracidade. Não há qualquer metodologia prevista no direito positivo
para análise da valoração da prova, ou do standard a partir do qual a
massa fática deverá ser examinada. Aliás, temos muito a evoluir neste
ponto, no ambiente do direito positivo, da jurisprudência, e também
do dia-a-dia forense, em que os saltos causais são mais comuns do
que se pode perceber ou aquilatar em uma primeira análise.
Formatações metodológicas para exames de prova, como a da tese
prevalecente existente, por exemplo, no art. 401 da Federal Rules of
Evidence dos EUA, ou a ideia de discricionariedade guiada praticada
em países em que o rigor técnico-científico costuma a ser aquilatado
e valorado em ambiente judicial[3], representam tentativas de
contribuir para o estabelecimento de critérios objetivos da valoração
de algo que, se não tiver qualquer base consolidada, dar-se-á em
esfera subjetiva, individual e, muitas vezes, equivocada, porque
enviesada.
Na prova oral, a situação é mais angustiante. Os Códigos Processuais,
civil e penal, limitam-se a estabelecer juízos de exclusão:
quem não pode depor, quais perguntas não podem ser formuladas e
por aí adiante. Não há elementos legais de direcionamento para
valoração da prova oral. A jurisprudência, neste ponto, também não
ajuda, porque nada indica a respeito, diversamente do que assentou o
Tribunal Supremo espanhol ao fixar os seguintes critérios para
validação da credibilidade da prova oral: i) ausência de
incredibilidade
subjetiva
da
testemunha; ii) declaração
verossímil; iii) declaração firme ao longo do procedimento; iv) prova
oral corroborada mediante dados objetivos[4].
Se nada é estabelecido, o salto causal ocorrerá naturalmente, porque
sua origem advém do nosso comportamento enquanto ser humano,
sempre buscando estabilidade e segurança.
Mas não conclua açodadamente. É equivocada a ideia de que os
padrões, uma vez identificados, não sejam aptos a conduzir a uma
resposta crível em todos os casos. O problema não se situa,
propriamente, na busca por padrões, que é natural e heurístico, no
sentido de que será a primeira reação, quase orgânica, ao perceber a
existência de elementos comuns ou divergentes associados. O juiz
poderá concluir no sentido da ocorrência ou não de determinado
evento tendo como base os padrões, por associação ou divergência,
obtidos a partir dos depoimentos, sem qualquer problema. Isso desde
que obedeça a uma condição apenas: decida, valorativamente, por
compreender que deve ser dado este encaminhamento à dinâmica
fática; e não, o que é inapropriado, ser levado a crer que algo ocorreu
ou não, em virtude de padrões encontrados. Na primeira opção,
identificação de padrões e consciente opção por, valorando-os,
compreender que a reconstrução dos fatos se deu de tal ou qual modo,
o juiz terá interrompido o natural salto causal, não sendo induzido a
crer em algo. Na segunda hipótese, no entanto, o juiz terá
acreditado, em virtude do salto causal, nas testemunhas somente pelo
fato de que encontrou, consciente ou inconscientemente, padrões no
que elas afirmaram, ou em que se omitiram.
Portanto, a ocorrência de padrões, por si, não é inidônea; mas sim o
salto causal inconsciente produzido a partir da coerência,
consistência, harmonia e firmeza (ou falta delas) que se possa
depreender de depoimentos.
Voltando ao início do texto. A quarta testemunha acabou de
apresentar a sua versão, extremamente símile às anteriores. Você
observa todo aquele encadeamento fático narrado de maneira
incrivelmente coesa, respira por alguns segundos e pensa: como devo
valorar isto? Terão sido ser sinceras a narrativas, embora
coincidentes? Terão sido falsas? Com base em quais outros
elementos valorarei as coincidências encontradas em relação ao que
foi mencionado?
Parabéns! Você interrompeu o salto causal.
Compartilhe a paz.
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[1]
A literatura a respeito de padrões é imensa e pertinente a diversos
ramos do conhecimento. Limito-me, por isso, a mencionar um autor
que aborda o tema sob o ponto de vista da economia comportamental,
Richard Thaler, e um psicólogo experimental, Daniel Kahneman, que
examina a questão a partir do chamado viés confirmatório. THALER,
Richard H. Misbehaving. A construção da economia
comportamental. Tradução de George Schlesinger. Rio de Janeiro:
Intrínseca, 2019. KAHNEMAN, Daniel. Pensar rápido, pensar
despacio. Traducción de Joaquín Chamorro Mielke. Ciudad
Autónoma de Buenos Aires: Debate, 2016.
[2]
Malcolm Gladwell apresenta, a partir de situações concretas como
o aumento do consumo de tabaco apesar da diminuição da
publicidade a respeito e o incremento nas taxas de suicídio entre
adolescentes e jovens ao final da década de 80 na Micronésia, alguns
interessantes estudos a respeito da busca por padrões de
comportamento por convergência ou dissociação. GLADWELL,
Malcolm. El punto clave. Traducción de Inés Belaustegui. México:
Debolsillo, 2017, p. 235-272.
[3]
TARUFFO, Michele. Uma simples verdade. O Juiz e a
construção dos fatos. Tradução de Vitor de Paula Ramos. São Paulo:
Marcial Pons, 2012.
[4]
Amplo estudo a respeito pode ser encontrado em: FENOLL, Jordi
Nieva. La valoración de la prueba. Madrid: Marcial Pons, 2010 e,
bem assim, em: ABELLÁN, Marina Gascón. Cuestiones
probatórias. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2012.
TIAGO GAGLIANO PINTO ALBERTO – Pós-doutor pela
Universidad de León/Espanha. Pós-doutor pela Pontifícia
Universidade Católica do Paraná (PUC/PR). Doutor em Direito pela
Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito pela
Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor da Pontifícia
Universidade Católica do Paraná (PUC/PR), Professor da Escola da
Magistratura do Estado do Paraná (EMAP), da Escola da
Magistratura Federal em Curitiba (ESMAFE), da Academia Judicial
de Santa Catarina e da Escola Superior da Magistratura Tocantinense
(ESMAT). Coordenador e Professor do Curso de Argumentação
Jurídica ministrado nas Escolas da Magistratura dos Estados do
Paraná (EMAP), Santa Catarina (TRT - 12ª Região) e Tocantins
(ESMAT). Coordenador da Pós-graduação em teoria da decisão
judicial na Escola da Magistratura do Estado de Tocantins (ESMAT).
Integrante do grupo de pesquisa "CONFLICTOS DE DERECHOS:
TIPOLOGIAS, RAZONAMIENTOS, DECISIONES", liderado pelo
Professor Doutor Juan Antonio García Amado. Juiz de Direito Titular
da 4ª Turma Recursal do Poder Judiciário do Estado do Paraná.
Membro suplente do Tribunal Regional Eleitoral do Paraná.
Fonte: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/entre-os-fatos-e-as-provas-padroes-quecondenam-23122019