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O peso normativo do factual

2015, Artefilosofia

O peso normativo do factual: O Homem Unidimensional no século XXI Douglas Garcia Alves Júnior Uma característica central do trabalho de Marcuse em O homem unidimensional é o fato de lidar com um grande número de temas que são apresentados a partir de fontes empíricas, como relatórios administrativos, anúncios publicitários, pesquisas sociológicas e notícias de jornal. O leitor do livro dificilmente consegue evitar por-se seguidas vezes uma questão: que tipo de material empírico teria à disposição Marcuse caso lhe coubesse escrever O homem unidimensional não nos anos sessenta do século passado, mas nas duas primeiras décadas do século XXI? Esse leitor hipotético seria levado a reformular sua questão inicial: como a obra de Marcuse encara o século XXI? Não a pergunta frequentemente autocomplacente: “o que a obra do passado tem a nos dizer?” e sim: “o que nós temos a dizer à obra?” Antes disso, seria preciso perguntar: o que O homem unidimensional queria mostrar à sua época? Sem pretender dar conta da riqueza do livro, limito-me a apontar alguns de seus traços fundamentais que dizem respeito à sua pretensão de diagnóstico de época. Dois aspectos devem ser levados em conta, antes de tudo: em primeiro lugar, o grande número de autores, das mais diversas proveniências, mobilizado pelo exercício de pensamento de Marcuse – com efeito, seria possível caracterizar O homem unidimensional como uma sequência de ensaios, no sentido forte do termo. Autores tão variados como Adorno, Bachelard, Barthes, Blanchot, Freud, Hegel, Heidegger, Husserl, Karl Kraus, Marx, Sartre, Simondon, Valéry e Whitehead comparecem no livro. Longe de um ecletismo vulgar, o recurso a autores tão variados mostra a disposição de Marcuse em pensar o seu tempo a partir de um diálogo com autores que desdobram perspectivas originais a respeito da cultura e da sociedade contemporâneas. Trata-se também, aqui, do segundo aspecto que gostaria de salientar: a palavra “compreender” é uma das que aparecem mais vezes no livro, indicando o seu caráter hermenêutico e prospectivo1. Essa profusão de materiais e referências não prejudica a clareza do conjunto. Marcuse é bem claro ao expor o núcleo central do livro: 1 Dentre um grande número de ocorrências, seleciono a seguinte: “o pensamento dialético compreende (understands) a tensão crítica entre „é‟ e „deve‟ primeiramente como uma condição ontológica pertencente à própria estrutura do Ser. Contudo, o reconhecimento desse estado de Ser – sua teoria – intenta, desde o início, uma prática concreta. Vistos à luz de uma verdade que aparece neles falsificada ou negada, os próprios fatos em questão parecem falsos e negativos”. MARCUSE. One-Dimensional 86 O homem unidimensional oscila entre duas hipóteses contraditórias: 1) a de que a sociedade industrial desenvolvida seja capaz de conter a transformação qualitativa pelo futuro previsível; 2) a de que existem formas e tendências que podem romper essa contenção e fazer explodir a sociedade... Ambas as tendências existem lado a lado.2 Pensar a transformação e o movimento de seu bloqueio na dinâmica das sociedades industriais. Pensar o caráter contraditório do desenvolvimento social. Essa é uma atitude de pensamento que vem da crítica da economia política, de Marx – e assumirei aqui, como hipótese de leitura, que é ela que comanda a reflexão marcuseana sobre a dinâmica da técnica, ou melhor, da “racionalidade tecnológica”, na “civilização industrial”. Entende-se One-Dimensional Man a partir de suas próprias premissas quando se considera 1) a dinâmica eminentemente social da tecnologia 3 moderna, 2) a sua dinâmica dúplice de dominação mediante controle e integração mediante satisfação (ainda que sob a forma restrita da “dessublimação repressiva”, 3) seu caráter sistêmico e englobante, que a consolida como uma forma de vida, isto é, um horizonte normativo para formas de sentir e de pensar, 4) sua posição contraditória no interior da dinâmica do capitalismo avançado: por um lado, ela possibilita aumentos sucessivos de produtividade às custas da desvalorização do trabalho e, por outro, ela cria possibilidades objetivas – mediante o desenvolvimento das forças produtivas – para a supressão do trabalho alienado e a libertação da humanidade face à escassez material. Quando se toma a noção de “racionalidade tecnológica” como espinha dorsal de ODM, se percebe a sua complexidade e ambição. Marcuse toma para si a tarefa de explicitar os sentidos da dinâmica conservadora da cultura e da sociedade contemporâneas, sob o peso normativo do factual, isto é, a tendência de restrição da dimensão transcendente do pensamento e da ação. Em que sentido, para Marcuse, a Man: Studies in the Ideology of Advanced Industrial Society. Beacon Press: Boston, 1991; p. 133. Na tradução brasileira, A ideologia da sociedade industrial, p. 134. 2 MARCUSE. One-Dimensional Man, p. xlii. Doravante indicado como ODM. Na tradução brasileira, A ideologia da sociedade industrial, p. 18. 3 A questão da relação de Marcuse com a obra de Heidegger, sobretudo quanto à questão da técnica, é polêmica e não pretendo tratá-la aqui. Defendo de todo modo, a posição de que o pano de fundo teórico do tratamento da questão da racionalidade tecnológica em ODM é dado por Marx, Adorno e Horkheimer, isto é, pertence inteiramente ao horizonte teórico da dialética. Minha leitura, assim, é mais próxima da de John Abromeit, do que da de Andrew Feenberg. Cf. ABROMEIT. “Heideggerianismo de esquerda ou marxismo fenomenológico? Reconsiderando a teoria crítica da tecnologia de Herbert Marcuse”. Caderno CRH, Salvador, v. 24, n. 62, p. 285-305, Maio/Ago. 2011; e FEENBERG. “Marcuse‟s phenomenology: reading chapter 6 of Marcuse‟s One-Dimensional Man”. Constellations, Vol. 20, n. 4, 2013. 87 sociedade e o pensamento sucumbem ao “unidimensional”? Como se deve entender a palavra? É disso que trata Marcuse ao longo de todo o livro. Não é difícil, em todo caso, compreender que Marcuse toma “unidimensional” em três sentidos principais: a) como atitude teórica da ciência e da tecnologia da “civilização industrial” e também de parte da filosofia contemporânea, como certas vertentes da filosofia analítica (ODM, p. 170ss) – em ambos os casos (e resumindo muito a demonstração de Marcuse) trata-se da atitude de abstrair dos componentes contextuais e da particularidade e contingência dos objetos de que dispõe o pensamento, em proveito exclusivo de sua quantificação, classificação e controle – gesto que implica ao menos três consequências: a perda da dimensão histórica dos objetos, o encobrimento da dimensão de conflito social que está por trás do processo de articulação teórica do mundo e a redução da dimensão do conceito à operacionalidade (ODM, p. 136-139); b) como atitude linguística do universo da cultura como um todo, desde a produção de conteúdos de informação e entretenimento pelas mais diversas mídias até a forma com que as corporações, os governos e os agentes políticos moldam sua comunicação social – trata-se da atitude de condensar a produção de significados linguísticos em torno de procedimentos de designação arbitrária e imediata, típica da associação de imagens por contiguidade e analogia (ODM, p. 89s, 101s) – gesto que implica a perda da dimensão dialética do conceito, aberto à exploração da tensão entre os estados de coisas por ele designados e sua significação irredutível, seu potencial objetivo transcendente; c) como atitude comportamental dos sujeitos socializados sob a vigência da racionalidade tecnológica – trata-se da atitude de aceder a uma relação a si (e ao mundo social e à natureza) marcada pela adaptação pragmática a imperativos sociais de desempenho eficaz, pelo conformismo normativo em estética, moral e política e pela avaliação de todos os comportamentos e relações humanas em termos funcionais (ODM, p. 78s) – gesto que implica a perda da dimensão expressiva da subjetividade, em ao menos três planos: na redução da complexidade da experiência estética à roteiros padronizados de consumo cultural, na redução da ambiguidade da experiência moral à protocolos de adequação a regras de conduta convencionais e na redução da experiência erótica da ligação com o corpo a rituais de otimização de desempenhos sociais aprovados pela cultura. Segundo Marcuse, se o peso normativo do factual em sociedades tradicionais (pré-tecnológicas) era configurado por uma dominação direta e pessoal do processo de trabalho e justificada ideologicamente pela estrutura hierárquica e teleológica do 88 cosmos, nas sociedades pós-tradicionais (tecnológicas), o factual tem o seu peso normativo em função de estruturas de dominação impessoais, que organizam o processo do trabalho como “gerência” de desempenho (ODM, p. 30s) – situação em que a caução ideológica do existente não se deve a um sistema organizado de crenças na significação transcendente do real, mas à simples constatação de que a organização do aparato produtivo tecnológico é capaz de promover melhorias no padrão de vida daqueles que a ele se integram. Em outros termos, Marcuse explora os termos da transformação qualitativa na estrutura de legitimação da dominação social: ela passa a constituir um universo “unidimensional” uma vez que aquilo que “é” – as instituições, comportamentos, pensamentos e relações sociais existentes – obtém em si mesmo a sua própria medida e justificação – situação que arruína as possibilidades de negação contidas na transcendência da esfera religiosa, que Horkheimer já havia valorizado. É esse peso normativo do factual, em sociedades tecnológicas, que torna possíveis comportamentos e atitudes marcados pelo que Marcuse caracteriza como “dessublimação repressiva” (ODM, p. 71s), isto é, a satisfação das necessidades vitais humanas de criatividade, afeição, amizade e erotismo em termos estritamente correspondentes aos imperativos funcionais do aparato produtivo. Marcuse certamente percebeu, como leitor e intérprete refinado de Hegel e de Marx, que a crux da racionalidade tecnológica reside na dinâmica dos modos de relação entre Espírito e natureza. Em outros termos, na relação entre a subjetividade humana (com suas faculdades práticas e teóricas) constituída mediante socialização e a natureza, objetividade que sustenta e torna possível a vida do Espírito. Dito de outro modo: Marcuse tenta descrever, na racionalidade tecnológica em ação na civilização industrial, a maneira específica, determinada, em que se dá o entrelaçamento de natureza e sociedade. Além disso, como ele é o autor de Eros e civilização, ele tentou pensar como seria possível uma “negação determinada” desse estado de coisas, isto é, sua transformação interna, automotivada. Como Adorno, Marcuse pensou a “história natural” da constituição civilizacional e social da ciência e da tecnologia, e os princípios internos que guiariam a sua superação em uma figura nova do Espírito (como diria Hegel), em uma nova forma, mais racional, da organização social da relação humana com a natureza (como diria Marx). ODM foi escrito depois das catástrofes da Segunda Guerra, quando a ameaça permanente de extermínio nuclear recíproco de Estados Unidos e União Soviética amplificava as preocupações com o poderio destruidor da alta tecnologia desenvolvida 89 exatamente a partir das necessidades da guerra. Nesse sentido, o contexto a partir do qual Marcuse escreve ganha força. Cito: Qual será esse contexto mais universal e mais amplo no qual as criaturas falam e agem e que da á sua palavra o seu significado? Esse contexto da experiência mais amplo, esse mundo empírico real, é ainda hoje em dia, o das câmaras de gás e dos campos de concentração, de Hiroxima e Nagasaki, dos Cadillacs americanos e Mercedes alemães, do Pentágono e do Kremlin, das cidades nucleares e das comunas chinesas, de Cuba, das lavagens cerebrais e dos massacres. Mas o mundo empírico é também aquele em que essas coisas são tidas como fatos consumados, esquecidas, reprimidas ou desconhecidas, um mundo no qual as criaturas são livres... no qual a labuta diária e as comodidades diárias são as únicas coisas que constituem toda experiência. E esse segundo universo empírico restrito é parte do primeiro; os poderes que governam o primeiro também moldam a experiência restrita (ODM, p. 180). Marcuse, aqui, indica a continuidade das formas de dominação, bem como dos seus potenciais tecnológicos associados – e ainda mais, a continuidade entre ambos e as formas de vida, a “experiência restrita” que faz com que a dimensão destrutiva da racionalidade tecnológica permaneça excluída da consciência. Estamos aqui bem perto da caracterização da “vida falsa” por Adorno: uma restrição da experiência que é moldada não por um poder coercitivo esmagador, mas por uma dinâmica social que convida à integração. Talvez seja este o momento de voltar à pergunta na origem deste texto: o que o século XXI teria a mostrar a O homem unidimensional? Em que aspectos seria possível enxergar a continuidade da dominação, das formas de vida e dos potenciais tecnológicos associados? Em que aspectos seria possível enxergar turning points qualitativos? O que se segue é apenas um esboço exploratório e indicativo de algumas tendências. Ele é requerido, no entanto, pelo peso que o contexto empírico adquire na reflexão sobre a racionalidade tecnológica na obra de Marcuse. O olhar que ODM endereçaria ao século XXI poderia ter as seguintes características: Na economia e no trabalho: um capitalismo internacional sem áreas “em branco”, que conta com “desregulamentação” e superexploração do trabalho, transformado em trabalho 24/7, ininterrupto por obra da revolução digital4; desmonte das estruturas de seguridade social, acompanhado, nas economias mais poderosas, de uma política de forte aporte de recursos estatais às corporações transnacionais de seus países, visando protegê-las da instabilidade global. 4 CRARY, Jonathan. 24/7 - Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify, 2014. 90 Nas relações internacionais: nos países das economias dominantes, uma extensão agressiva da política econômica de defesa dos interesses das corporações de seus países, que leva em conta a doutrina de “guerra preventiva” contra ameaças difusas permanentes e globais; o risco de ameaça a direitos e garantias individuais dos cidadãos nacionais ou estrangeiros em função de uma doutrina abrangente de proteção à “segurança interna”. Na ciência e na tecnologia: uma conexão digital de dados de todo tipo em rede mundial, a partir da qual se tornou possível obter acesso virtualmente ilimitado às informações pessoais de qualquer cidadão do mundo conectado à rede para instituições públicas ou privadas que tiverem o poder e o know how para tanto – isto é: vigilância e controle virtuais em uma escala inimaginável para Marcuse ou para qualquer outro teórico das sociedades de controle. Na esfera da cultura: uma fusão inaudita de vida privada, mídias digitais e consumo, organizada intensiva e extensivamente por grandes corporações que fornecem o tráfego digital e produzem conteúdo online; a cultura vista como um fluxo de informações sobrepostas e medium de integração a algo que talvez se possa chamar de Culturocapitalismo: não mais “indústria cultural”, que supunha ainda uma relativa autonomia da esfera cultural, mas um universo em que bens materiais, imagens das mercadorias, rituais de participação imaginária na comunidade digital se desdobram em um ciclo de retroalimentação que dura todo o tempo em que as pessoas estiverem na web – o que, na era dos smartphones, virtualmente coincide com o tempo todo. O século XXI visto no espelho de ODM revela, assim, continuidades em três dos mais importantes aspectos diagnosticados por Marcuse: a economia concentrada em poucas grandes corporações que contam com ações maciças de suporte político e econômico do Estado investidor capitalista, nas economias dominantes; a colaboração entre ameaça difusa de guerra e ganhos de capital nos setores econômicos associados à indústria bélica (e hoje em dia, de telecomunicações e informática); a “Consciência Feliz” integrada às mercadorias e à forma social de satisfação das necessidades que elas proporcionam (ODM, p. 19). Mas parece ter ocorrido também um turning point qualitativo: a web tornou-se um meio universal de integração e controle muito mais efetivos do que jamais qualquer instrumento técnico fora capaz no passado – isso trouxe também implicações para a forma prevalecente da “Consciência Feliz” e para o processo de reprodução do capital de um modo que hoje mal se começa a compreender. 91 A intensa aceitação social do progresso tecnológico alcançado nas áreas de informática, telecomunicações, transportes, medicina, biotecnologia e bens de consumo trouxe para o centro dos embates do presente uma questão que teria interessado especialmente Marcuse, caso ele tivesse tido tempo de vida para acompanhar seu desenvolvimento: a da antropotécnica5, outro grande turning point qualitativo que se anuncia no século XXI. Com ela é chegado o momento em que a dimensão da tecnologia alcança o seu ponto mais radical: o poder de reconfigurar o patrimônio genético individual e até mesmo o da espécie humana. Nenhum outro campo da atuação da razão tecnológica expõe tão decisivamente as implicações universais da técnica, particularmente quanto ao estatuto da ideia de autonomia, que Kant havia diferenciado categorialmente da de capacidade de ação eficaz, de desempenho comportamental – confusão que é feita sem maiores problemas pela antropotécnica. Para os seus defensores, o progresso crescente nas tecnologias genéticas seria caracterizado pelo fato de que teríamos nos livrado da ideia metafísica de liberdade que iludia nossas avós, substituindo-as pela ideia de aumento da autonomia pessoal entendida exatamente como capacidade de ação instrumental. Uma defesa típica da antropotécnica que dissolve o conceito de autonomia em um sentido puramente operacional é dada pelo americano Ronald Dworkin (19312013), em “Brincar de Deus: genes, clones e sorte”. Para ele não há problemas morais substantivos com o advento de práticas de clonagem humana para fins de reprodução e nem com “a possibilidade da engenharia genética total – que promete alterar a composição genética do zigoto para produzir uma bateria de propensões físicas, mentais e emocionais”. 6 Assim, ele aprova a possibilidade técnica de engenharia genética de características físicas e propensões mentais selecionadas pelos pais, sob o argumento da analogia com a educação, que também é usualmente realizada segundo um projeto dos genitores, uma vez que “a finalidade da educação, tanto comum quanto reparadora, é aumentar a inteligência e os níveis de capacidade de maneira abrangente.”7 Com base no argumento de analogia com a medicina terapêutica, Dworkin também admite não só 5 O termo “antropotécnica” aparece pela primeira vez, salvo engano, no polêmico escrito de Peter Sloterdijk, “Regras para o parque humano”: “é a marca da era técnica e antropotécnica que os homens mais e mais se encontrem no lado ativo ou subjetivo da seleção... será provavelmente importante, no futuro, assumir de forma ativa o jogo e formular um código das antropotécnicas”. SLOTERDIJK, Peter. Regras para o parque humano. Trad. de José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2000; p. 44-45. 6 DWORKIN, Ronald. “Brincar de Deus: genes, clones e sorte”; in A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. Trad. de Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2005; p.625. 7 Ibid., p.629. 92 a técnica genética para a cura de doenças, mas também para a seleção de características (isto é “resistir às catástrofes naturais ou aprimorar o que a natureza nos deu”).8 Ele admite que a técnica genética tem o poder de alterar nossas representações morais básicas, fundadas na distinção entre aquilo que somos por natureza e acaso e aquilo que decidimos ser por nossa escolha responsável, mas minimiza o impacto desse deslocamento fundamental da estrutura comum da experiência moral, a qual, em virtude de sua plasticidade, está sempre pronta a se reconfigurar pragmaticamente: “a moralidade [...] é um dispositivo para coordenar nosso comportamento de maneiras úteis e pacíficas perante possíveis conflitos”.9 Em última análise, Dworkin confia em “fundo moral crítico” para fazer frente à situação de “queda livre moral” introduzida pela técnica genética, isto é, “um conjunto fundamental de convicções” que ele reconstitui em termos de alguns ideais humanistas éticos que chamo de individualismo ético e que definem o valor associado à vida humana. O primeiro princípio afirma que é objetivamente importante que qualquer vida humana, depois de iniciada, tenha êxito, em vez de fracassar... o segundo princípio... insiste que essa pessoa... tem uma responsabilidade especial por todas as vidas, e que, devido a essa responsabilidade, ela tem o direito de tomar decisões fundamentais que definam, para ela, o que seria uma vida bem-sucedida.10 O primeiro princípio, para Dworkin, assegura o direito das pessoas à igualdade de tratamento perante o Estado, e o segundo princípio protege a liberdade dos indivíduos, perante o Estado, de poder configurar seus projetos de vida conforme suas próprias concepções de vida boa. Embora Dworkin admita que, com relação às questões de clonagem e engenharia genética, “seu tema principal não são os interesses de determinadas pessoas, mas qual tipo de pessoa, produzido de qual forma, deve existir” 11 , ele não vê maiores problemas na justificação do critério quanto à futura produção técnica de pessoas. Sua declaração a esse respeito é bastante clara: nisso o individualismo ético oferece orientação. Não há nada de errado na aspiração independente de tornar a vida das gerações futuras mais longas e mais repletas de talento e, por conseguinte, de realizações... se brincar de Deus significa lutar por aprimorar nossa espécie, trazer aos nossos projetos conscientes a resolução de aperfeiçoar o que Deus, de maneira deliberada, ou a natureza, às cegas fez evoluir no decorrer dos tempos, então o primeiro princípio do individualismo ético rege tal luta.12 8 Ibid., p.631. Ibid., p.637. 10 Ibid. p. 639 11 Ibid. p. 644 12 Ibid. p. 644. 9 93 Lembrando o enunciado do primeiro princípio: “que toda vida humana, depois de iniciada, tenha êxito, ao invés de fracassar”. A circularidade autovalidante do enunciado não surpreenderia Marcuse, atento ao “fechamento do universo da locução” e a um tipo de pensamento que aceita sem mais as definições estabelecidas de êxito como desempenho instrumental. Os desafios com que se depara o século XXI visto no espelho de ODM, que lhe reflete de volta os contornos das imagens da antropotécnica e da sociedade de controle informacional talvez possam ser imaginados a partir dessa simples frase, quase periférica no texto de Dwokin “qual tipo de pessoa, produzido de qual forma, deve existir”. Enfatizei a questão do estatuto da autonomia face às nascentes técnicas de manipulação genética. Alternativas à perspectiva funcional e behaviorista da autonomia por Dworkin foram desenvolvidas por Hans Jonas e, em bases que recuperam parcialmente o trabalho de Jonas, por Jürgen Habermas. Um comentário detido dessas visões contrastantes a respeito do impacto da técnica sobre a “autocompreensão ética da espécie humana”13 ocuparia, no entanto, o espaço de um artigo inteiro. O que desejo ressaltar é: a alternativa está posta entre, por um lado, a aspiração por uma tecnificação radical da base somática da experiência humana – cujos contornos mal podemos imaginar hoje – e, muito diversamente, a aspiração por uma vida em que nossas representações morais mantenham uma dimensão independente de fruição, criatividade e afetividade irredutíveis a qualquer ideal normativo de adequação aos poderes do existente. O homem do século XXI, assim, não “tem de” ser o objeto de uma técnica tornada planetária e estendida à natureza interna, mesmo porque ele é sempre mais do que “o homem unidimensional”, é o sujeito encarnado que, conforme os termos de Eros e civilização 14 , é capaz de satisfazer-se com as experiências restritas propostas no interior de uma civilização repressiva, ao mesmo tempo em que vai sempre recusar toda satisfação determinada, figura hegeliana da negação, própria do Espírito, que Marcuse vai encontrar na fragilidade e irredutibilidade da condição pulsional humana, no desejo de Ser, em Eros. Gostaria de dedicar este artigo ao meu filho Eduardo 13 Cf. HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana. Tradução de Karina Janini. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 14 MARCUSE, Herbert. Eros e civilização. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC, 1999. 94