Arte sobre foto de Marcos Santos/USP Imagens
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Renan Wil
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M
Arte sobre foto de Marcos Santos/USP Imagens
resumo
abstract
O artigo compara as relações de religiões
brasileiras com a esfera política a partir de
dois planos distintos: o das concepções
políticas dos fiéis e o da atuação eleitoreira
das igrejas. São utilizados como fonte
principal dados de uma pesquisa nacional
de opinião conduzida no ano de 2016
pelo Instituto Datafolha. Procuramos
compatibilizar aqui o diagnóstico
sociológico de avanço da modernidade
religiosa, a partir do qual a religião em
seus moldes tradicionais se torna cada
vez mais sujeita a bricolagens de fiéis
alheios às regulações institucionais, com
a constatação do crescente poder de
influência eleitoral de igrejas evangélicas
em comparação com as demais
instituições religiosas.
The article compares the relations of
Brazilian religions with the political sphere
based on two distinct plans: i) the political
conceptions of the faithful, and ii) the
electoral activities of churches. The main
source of data is a national opinion poll
conducted in 2016 by Instituto Datafolha.
Here we seek to reconcile the sociological
diagnosis of the advance of religious
modernity, according to which religion in
its traditional forms becomes more and
more subject to the bricolage done by the
faithful outside institutional regulations,
with the confirmation of the growing
power of the electoral influence of certain
evangelical churches when compared with
other religious institutions.
Palavras-chave: religião e política;
orientações religiosas; igrejas evangélicas;
eleições no Brasil; secularização.
Keywords: religion and politics; religious
orientation; evangelical churches; elections
in Brazil; secularization.
N
os contextos sociais modernos, pessoas das mais
diferentes origens, com
as mais diversas concepções de mundo, são levadas a interagir de variadas formas nas relações
sociais no trabalho, na
praça pública, no mercado, na arena política,
etc. Em cada um desses
contextos, múltiplas possibilidades de construção
da identidade são oferecidas ao indivíduo,
cada vez mais livre das amarras e pertenças
tradicionais, inclusive no campo religioso:
“não há bairro da metrópole que se preze
se aí não se puder achar, num só giro do
olhar, a igreja crente, a loja de umbanda e a
academia de aeróbica e musculação” (Prandi,
1996, p. 259). Nesses ambientes culturais
modernos, as diversas instituições produtoras
de sentido, religiosas ou não, precisam coexistir, ainda que de forma competitiva, disponibilizando “serviços pessoais ao alcance
da mão de qualquer um que se sinta interessado, necessitado ou simplesmente curioso”
(Pierucci, 1997, p. 113).
Essa autonomia do indivíduo na construção de seu próprio sistema de valores e
orientações de conduta constitui um imenso
obstáculo às pretensões totalizantes das instituições religiosas tradicionais (Hervieu-Léger,
2015). As diferentes dimensões da crença
passam a ser articuladas pessoalmente por
fiéis cada vez mais alheios aos controles e
imposições doutrinais das instituições religiosas. A dimensão comunitária, que diz
respeito ao círculo social daqueles que se
identificam com a mesma denominação, não
está mais necessariamente conectada com a
dimensão ética, pois nem todos têm a mesma
interpretação das mensagens religiosas nem
REGINALDO PRANDI é Professor Emérito
da Universidade de São Paulo e membro
do grupo de pesquisa Diversidade Religiosa
na Sociedade Secularizada do CNPq.
RENAN WILLIAM DOS SANTOS é doutorando
do Programa de Pós-Graduação em Sociologia
da USP (com apoio financeiro da Fapesp)
e membro do grupo de pesquisa Diversidade
Religiosa na Sociedade Secularizada do CNPq.
MASSIMO BONATO é doutor em Sociologia pela
USP e membro do grupo de pesquisa Diversidade
Religiosa na Sociedade Secularizada do CNPq.
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dossiê religião e modernidade
as aceitam em sua totalidade. Em decorrência disso, perde-se também a coerência da
dimensão cultural, pois cada fiel traduz suas
concepções em diferentes práticas, representações, costumes alimentares, orientações
sexuais, vestuários, etc. Por fim, torna-se
frágil a articulação da dimensão emocional,
abalizada em um sentimento de “nós” que
quase não encontra mais fundamento real
(Hervieu-Léger, 2015, pp. 66-8).
Para contornar essa busca de autonomia individual, que junto com o pluralismo
e o igualitarismo constitui os três pontos
fundamentais da descrição sociológica da
modernidade religiosa (Santos, 2016), as
religiões precisam se valer das mais diversas
estratégias que as possibilite assumir um
papel relevante nas contínuas construções
pessoais de sentido dos fiéis. Quanto mais
o sentido religioso se ausenta das práticas
rotineiras dos indivíduos, menos importância terão os ensinamentos transmitidos
nos cultos, e vice-versa (Ammerman, 2017,
p. 202). Mais do que nunca, portanto, as
religiões precisam se fazer presentes e
persuasivas para que suas doutrinas não
sejam simplesmente ignoradas, pois não se
pode mais esperar que a comunidade por
si mesma exerça sobre o indivíduo uma
pressão social que o conforme às normas
religiosas tradicionais.
No Brasil, as religiões evangélicas1
são as que mais têm obtido sucesso nessa
empreitada. Elas são as que mais convertem e crescem ininterruptamente, enquanto
1 Este artigo utilizará o termo “evangélico” para designar tanto os protestantes históricos ou de missão
(dentre outros: luteranos, presbiterianos, metodistas,
batistas, anglicanos) quanto as denominações pentecostais e neopentecostais.
46
outras não param de declinar. Tal sucesso,
contudo, também vem ligado a uma fraqueza, inerente à transformação da oferta
religiosa em bem de consumo livremente
buscado em vez de obrigação tradicionalmente imposta: nada garante que o “cliente”
seja fidelizado, no sentido de eleger tal ou
qual denominação como ponto exclusivo de
seu consumo religioso2.
Um paradoxo se apresenta, assim, quando
nos deparamos com o contínuo aumento de
visibilidade e de participação de evangélicos
na esfera política brasileira. Como pode a
religião em geral se tornar cada vez mais
um acessório simbólico, sujeito às bricolagens individuais e alheio às regulações
institucionais, ao mesmo tempo em que
as igrejas evangélicas parecem dispor de
um crescente controle até mesmo sobre as
concepções políticas de seus adeptos? Para
resolver esse paradoxo, é preciso analisar,
em primeiro lugar, outra questão fundamental: as religiões evangélicas formulam visões
de mundo que levariam os fiéis a dotar de
um sentido religioso suas escolhas políticas,
ou seu trunfo eleitoral, na verdade, estaria
ligado a outro fator que não propriamente
a mensagem pregada nas igrejas?
Para responder a essas questões, o presente trabalho se vale principalmente de
dados coletados pelo Instituto Datafolha em
dezembro de 2016, por meio de uma amostra representativa do conjunto da população
nacional, na qual foram entrevistados 2.828
2 O lema “Deus é fiel”, reiteradamente propalado no
círculo neopentecostal, é uma boa ilustração dessa
nova forma de consumo religioso: espera-se que Deus
cumpra sua parte nos acordos com os frequentadores
do culto, acordos esses que se firmam no mais das
vezes por meio de dízimos e outras contribuições
financeiras (Prandi & Santos, 2015, pp. 370-1).
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indivíduos maiores de 16 anos, distribuídos
entre 174 municípios3.
A FORÇA DA ORIENTAÇÃO RELIGIOSA
EM RELAÇÃO À VIDA COTIDIANA
E AOS TEMAS POLÍTICOS
Já é sabido que, na conduta da vida cotidiana, em geral, a orientação religiosa tem
um peso maior no segmento dos evangélicos
quando comparado aos demais grupos religiosos brasileiros. De fato, conforme mostra a Tabela 1, os evangélicos que declaram seguir totalmente as recomendações
religiosas sobre o uso de roupas adequadas
somam 56,2% entre os protestantes históricos
e 57,6% entre os pentecostais e neopentecostais. Entre os católicos, a porcentagem
que declara seguir totalmente os mesmos
tipos de orientações diminui para 45,1%. Já
sobre recomendações acerca de alimentos
que devem ser evitados, entre os evangélicos registram-se porcentagens de 58,6%
entre os protestantes históricos e 54,7% entre
os pentecostais e neopentecostais. Entre os
católicos, esse número cai para menos da
metade, atingindo apenas 25%.
Com relação às orientações sobre o consumo de bebidas alcoólicas, entre os evangélicos o número de fiéis que declara segui-las
totalmente é o maior dentre os assuntos abordados na pesquisa, chegando a 74,1% entre
os protestantes históricos e 79,9% entre os
pentecostais e neopentecostais. Entre os católicos, menos da metade, 43,9%, declara seguir
3
Os autores agradecem ao Instituto Datafolha e ao
seu diretor-geral, Mauro Paulino, pela disponibilização dos dados originais que possibilitaram a confecção deste trabalho.
totalmente os ensinamentos religiosos sobre
esse assunto. Algo bem parecido se apresenta
também quando se trata das recomendações
sobre conteúdos impróprios na TV e internet:
63,5% dos protestantes históricos e 69,1% dos
pentecostais e neopentecostais afirmam evitá-los. Entre os católicos, a taxa é de 39,5%.
Ainda no âmbito do lazer, com relação às
festas e datas comemorativas que devem ser
evitadas, 39,4% dos católicos declaram seguir
totalmente as orientações que recebem em
suas igrejas, contra 64,5% dos protestantes
históricos e 66,4% dos pentecostais e neopentecostais que afirmam acatar as respectivas
restrições religiosas.
Em uma escala4 que vai de 0 a 5, a
orientação religiosa da conduta cotidiana
apresenta uma média mais alta entre os
evangélicos, respectivamente 1,9 entre os
protestantes históricos e 2,1 entre os pentecostais e neopentecostais, ao passo que
a média é de 0,6 entre católicos, 0,4 entre
espíritas e 0,8 entre os afro-brasileiros. Ou
seja, fica claro que o ramo evangélico em
geral se destaca no mercado religioso brasileiro como aquele que mais procura impor
determinados tipos de conduta aos fiéis
em seu cotidiano fora do círculo religioso.
Ainda, mesmo não ignorando o fato de que
a declaração de aceitação dessas imposições
por parte dos devotos não significa necessa-
4 Construída a partir das questões referentes à orientação da religião no tocante aos itens uso de roupas
consideradas adequadas, consumo de certos alimentos, de bebidas, as práticas de lazer relacionadas à
audiência televisiva e frequência a festas e datas
comemorativas. Perguntou-se se a religião fazia referência a esses itens em seus ensinamentos e se os
mesmos eram seguidos pelo entrevistado. Em caso
de dupla afirmação, para cada item, um ponto foi
adicionado à escala. O total, assim, pode variar de 0
a 5, valor este último que indica adesão máxima às
restrições propostas pela religião.
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dossiê religião e modernidade
TABELA 1
Aderência dos fiéis aos ensinamentos religiosos em temas do cotidiano
Somente para quem responde previamente
Total
Brasil
Católicos
Protestantes
históricos
Pentecostais e
neopentecostais
Segue totalmente
os ensinamentos
ou recomendações
sobre o uso de
roupas adequadas
no dia a dia
45,1
56,2
57,6
(*)
(*)
52,8
Segue totalmente
os ensinamentos
ou recomendações
sobre os tipos de
alimentos que
devem ser evitados
25
58,6
54,7
(*)
(*)
42,6
Segue totalmente
os ensinamentos
ou recomendações
sobre não consumir
bebidas alcoólicas
43,9
74,1
79,9
(*)
(*)
61,7
Segue totalmente
os ensinamentos
ou recomendações
sobre conteúdos
impróprios na TV e
internet que devem
ser evitados
39,5
63,5
69,1
(*)
(*)
54,5
Segue totalmente
os ensinamentos
ou recomendações
sobre festas e datas
comemorativas que
devem ser evitadas
39,4
64,5
66,4
(*)
(*)
56,1
Número de casos
1.416
208
611
62
45
2.828 (**)
Espíritas Afro-brasileiros
* O número de casos não é estatisticamente significativo.
** Inclui outras religiões, sem religião e ateus.
Fonte: Pesquisa Datafolha realizada em dezembro de 2016. Dados elaborados pelos autores
riamente sua tradução na prática, o simples
fato de os evangélicos se sentirem menos
à vontade do que os demais para declarar
que não seguem totalmente as orientações
de suas igrejas já é, por si só, significativo.
48
O que ocorre, porém, quando se mede
esse peso da orientação religiosa em temas
relativos à política? Uma vez que a pregação evangélica tende a ser mais efetiva na
regulamentação de práticas do cotidiano
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(vestuário, alimentação, entretenimento, etc.),
era de se esperar que o mesmo “sucesso”
se reproduzisse na regulamentação das
concepções e escolhas políticas dos fiéis
evangélicos. Uma boa parte da literatura
das ciências sociais sobre o assunto parece,
inclusive, fundamentar essa expectativa. É o
caso, por exemplo, do artigo de Maria das
Dores Machado e Joanildo Burity (2014),
“A ascensão política dos pentecostais no
Brasil na avaliação de líderes religiosos”.
A partir de entrevistas com lideranças religiosas do segmento evangélico, os autores
generalizam que “a participação na esfera
da política se tornou fundamental para esse
grupo religioso que, embora em expansão,
é minoritário e se sente discriminado na
sociedade civil e no sistema político brasileiro” (Machado & Burity, 2014, p. 602).
Ricardo Mariano também se volta ao ativismo de grupos evangélicos conservadores
e destaca sua “luta para conservar elementos
de uma ordem moral e social que creem estar
sendo, malignamente, atacados e destruídos
por forças seculares” (Mariano, 2016, p. 726).
Pouca ênfase é dada, contudo, à discussão
sobre “como” e “se” esse ativismo de grupos conservadores está organicamente ligado
à massa dos fiéis evangélicos. O mesmo
ocorre em um artigo de Christina Vital da
Cunha (2014), que discute a relação entre
religião e democracia no contexto brasileiro
a partir da atuação de frentes parlamentares
religiosas. Ela afirma ser possível observar, “entre os integrantes da FPE [Frente
Parlamentar Evangélica], o acionamento de
argumentos com a finalidade publicamente
difundida de salvar ou guardar a moral
social” (Vital da Cunha, 2014, p. 122). Mais
uma vez, porém, não se discute as semelhanças e as diferenças entre a retórica das
lideranças evangélicas atuantes na esfera
política e as opiniões dos fiéis.
Os exemplos poderiam ser multiplicados,
mas o ponto aqui já se faz claro. Não se
trata de discordar das interpretações propostas pelos autores anteriormente citados
– pelo contrário, concordamos com elas no
que tange à atuação das lideranças evangélicas. Trata-se, contudo, de chamar a atenção
para o fato de que focar o ativismo religioso
das lideranças ou de grupos específicos
politicamente engajados leva muitos analistas a assumir que essas lideranças de fato
retratam as concepções e anseios políticos dos fiéis5. Os dados aqui analisados,
que partem das concepções e expectativas
expressas pelos próprios fiéis, indicam o
contrário, evidenciando uma grande desconexão entre o sentido que os representantes evangélicos dão à atuação política e
a concepção que os fiéis evangélicos têm
da mesma. No primeiro caso, a religião é
declarada como fonte e respaldo de todos
os posicionamentos políticos; no segundo,
entre os fiéis, religião e política são consideradas como temas que devem se manter,
ao menos em alguma medida, separados.
Conforme mostra a Tabela 2, perguntados
se a igreja que frequentam recomenda que
se dê preferência a pessoas religiosas nas
eleições para cargos públicos, disseram que
sim 14,1% dos católicos, 24,6% dos protestantes históricos e 32,6% dos pentecostais e
neopentecostais. A fatia pentecostal e neopentecostal representa menos de um terço
5 Algumas das discrepâncias significativas entre as
concepções dos membros da bancada evangélica e
as dos fiéis evangélicos foram apontadas no artigo
“Quem tem medo da bancada evangélica?” (Prandi
& Santos, 2017).
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dossiê religião e modernidade
TABELA 2
Opiniões dos fiéis em temas da política
Católicos
Protestantes Pentecostais e
Espíritas Afro-brasileiros Total Brasil
históricos neopentecostais
A igreja que você
frequenta atualmente
possui ensinamentos
ou recomendações
sobre dar preferência
a pessoas religiosas
nas eleições para
cargos públicos
14,1
24,6
32,6
3,2
4,4
19,2
Segue totalmente
os ensinamentos
ou recomendações
sobre dar preferência
a pessoas religiosas
nas eleições para
cargos públicos
32,8
49
54,3
(*)
(*)
44,6
Em época de eleição,
não leva em
consideração a
opinião de líderes
da sua igreja que
fazem campanha
para políticos
ligados à igreja
89,7
78,8
75,8
95,1
91,1
85,3
Líderes religiosos não
deveriam se candidatar
a cargos políticos
67,2
49,8
48,6
77,4
62,2
62,2
Políticos ligados à Igreja
Católica são melhores
que os demais políticos
11,4
5,8
8,2
1,6
4,4
8,7
Políticos ligados às
igrejas evangélicas
são melhores que os
demais políticos
5,2
13,5
16,5
1,6
9,3
8,2
Políticos ligados a
religiões de matriz
africana são melhores
que os demais políticos
2,9
0,5
1,6
3,3
15,6
2,8
Os valores religiosos
devem ter pouca ou
nenhuma influência
na política
71,4
57,7
64
80,4
77,3
68,7
Número de casos
1.416
208
611
62
45
2.828 (**)
* O número total de casos não é suficiente.
** Inclui outras religiões, sem religião e ateus.
Fonte: Pesquisa Datafolha realizada em dezembro de 2016. Dados elaborados pelos autores
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de seu grupo, o que deve ser ressaltado
tendo em vista que a impressão passada
em muitas análises é que a quase totalidade
desse seguimento postula recomendações
políticas recorrentemente em seus cultos.
A despeito disso, a comparação com os
católicos e até mesmo com os protestantes
históricos mostra que esse é um tema mais
presente nas pregações dessas instituições
do que nas demais. Isso se destaca mais
ainda se levarmos em conta que o número
de espíritas e adeptos das religiões afro-brasileiras que responderam sim à mesma
pergunta não chega sequer a 5%. Ou seja,
o tema “política” não é um tema marginal
nos cultos do segmento evangélico.
Já quando se trata de medir a aderência
a essas recomendações, dentre os fiéis que
relataram receber indicações sobre votar
em candidatos religiosos, 32,8% dos católicos, 49% dos protestantes históricos e
54,3% dos pentecostais e neopentecostais
disseram que as seguem totalmente. Mais
uma vez, os pentecostais e neopentecostais se destacam, embora aquela parcela já
minoritária (de um terço da amostra) seja
ainda mais reduzida se levarmos em conta
que aproximadamente apenas a metade dela
diz seguir a recomendação em questão.
Saindo da recomendação genérica de dar
preferência a políticos religiosos e testando
a aderência à recomendação de líderes religiosos que fazem campanha para políticos
ligados à igreja, o tão alardeado poderio
político das lideranças religiosas explicita
sua fragilidade: 89,7% dos católicos, 78,8%
dos protestantes históricos e 75,8% dos
pentecostais e neopentecostais reportam
explicitamente não levar em consideração
a campanha de seus líderes religiosos para
políticos ligados à igreja.
Esse alheamento em relação às indicações eleitorais feitas pelos líderes religiosos
se torna um pouco mais matizado quando
se trata de apoiar uma candidatura dos próprios líderes em questão: 67,2% dos católicos,
49,8% dos protestantes históricos, 48,6% dos
pentecostais e neopentecostais, 77,4% dos
espíritas e 62,2% dos adeptos das religiões
afro-brasileiras afirmam que líderes religiosos
não deveriam se candidatar a cargos políticos. A não ser no segmento evangélico, a
maioria dos entrevistados não se mostra à
vontade com a candidatura de suas lideranças. O segmento evangélico, por sua vez,
mostra-se dividido nesse caso: metade apoiaria e a outra metade rejeitaria a candidatura
das próprias lideranças. Essa menor rejeição na comparação com os demais grupos
religiosos pode estar ligada ao caráter mais
personalista das religiões evangélicas, cujos
pastores dependem mais do carisma pessoal em sua legitimação religiosa do que
da autoridade do cargo, tal como ocorre nas
religiões sacerdotais, como a católica.
De toda forma, em todos os grupos religiosos, é extremamente minoritária a fatia
daqueles que acham que os políticos ligados
ao próprio segmento religioso são melhores
que os demais: 11,4% entre os católicos,
13,5% entre os protestantes históricos, 16,5%
entre os pentecostais e neopentecostais, e
15,6% entre os adeptos das religiões afro-brasileiras. Em suma, o conjunto desses
dados reproduz o resultado que se encontra
em praticamente todo o Ocidente, mesmo
em países com grande maioria religiosa: a
maior parte da população vê a política e a
religião como esferas que devem se manter
separadas, e a influência de líderes religiosos em decisões governamentais não é vista
com bons olhos (Pickel, 2017, pp. 268-9).
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51
dossiê religião e modernidade
Mesmo quando a questão é despersonalizada, deixando-se de lado os representantes e questionando os fiéis sobre o quanto
os valores religiosos devem ter influência
na política, a maioria em todos os grupos
religiosos reporta que essa influência deveria ser baixa ou inexistente: 89,7% no caso
dos católicos, 78,8% entre os protestantes
históricos, 75,8% entre os pentecostais e
neopentecostais, 95,1% entre os espíritas e
91,1% entre os adeptos das religiões afro-brasileiras. Como sempre, a menor aversão
à influência dos valores religiosos na política
aparece no segmento evangélico como um
todo. Mesmo assim, ao menos três em cada
quatro fiéis desse segmento não veem com
bons olhos esse tipo de influência. São dados
impressionantes, na medida em que dissipam
empiricamente a impressão de que os valores
religiosos seriam preponderantes nas opiniões
políticas da população, sobretudo entre os
fiéis de denominações evangélicas.
Esvazia-se assim não só essa impressão,
mas também a reivindicação, repetida por
muitas lideranças evangélicas que atuam na
esfera política, de que representam seus fiéis
numa espécie de cruzada moral contra os
avanços liberalizantes defendidos por grupos
LGBT, feministas, laicistas, etc. Os valores
que reinam na esfera política demonstram ter
muito mais autonomia em relação aos princípios religiosos do que aqueles que operam
em outras esferas da vida social, como a do
lazer, por exemplo. Mesmo os fiéis evangélicos, alvos de um proselitismo que enfatiza
muito mais do que as demais religiões as
questões políticas, reportam em sua maioria
opiniões e tomadas de posição autônomas e
emancipadas da orientação religiosa, o que
vai de encontro à já apontada autonomia
individual dos fiéis nas sociedades modernas.
52
Segundo Talal Asad (2003, p. 201), é
uma estratégia secularista das elites intelectuais e políticas das sociedades ocidentais
definir a religião de maneira essencialmente
incompatível com a vida política, forçando-a
a se contentar com sua marginalização na
esfera privada. Uma vez que, como se constatou aqui, são os próprios fiéis comuns que,
em sua maioria, defendem essa separação, a
teoria proposta por Asad e reproduzida por
muitos analistas no contexto brasileiro só
faria sentido se assumíssemos que as pessoas entrevistadas fazem parte elas mesmas
dessa elite, ou que elas foram “contaminadas” por sua ideologia secularista.
O fato é que a própria presença de líderes religiosos na esfera pública discutindo
sobre os mais diversos assuntos ou até
mesmo tendo de lutar por certos privilégios que há pouco tempo seriam tacitamente
aceitos mostra que o lugar da religião no
centro de poder das sociedades ocidentais
já não é mais algo naturalizado. Em suma,
é a progressiva perda de importância social
da religião e não o seu fortalecimento que
alimenta os debates políticos nos quais os
representantes religiosos procuram se engajar como mais uma voz em meio a tantas outras (Pickel, 2017, p. 289), como o
“segundo violino” – gostava de dizer Candido Procopio Ferreira de Camargo (Pierucci, 1997, p. 107).
A FONTE ORGANIZACIONAL
DO PODER POLÍTICO DAS
LIDERANÇAS EVANGÉLICAS
Se descartarmos a ideia de que a orientação religiosa é preponderante nas escolhas
e opiniões políticas dos fiéis, de onde vem,
Revista USP • São Paulo • n. 120 • p. 43-60 • janeiro/fevereiro/março 2019
então, a força das lideranças evangélicas
para ainda assim eleger diversos candidatos
para cargos legislativos e executivos? Se a
resposta não está na mensagem, isto é, no
convencimento fundamentado nas crenças
e valores da religião, ela deve estar, então,
na própria instituição religiosa.
Desse ponto de vista, não a religião em si
ou a pregação das lideranças religiosas, mas
a própria igreja é que se torna central por
funcionar como uma espécie de “máquina
eleitoral” – na maioria das vezes tão ou mais
efetiva que os próprios partidos políticos.
Isso também explicaria o destaque quase
exclusivo do segmento evangélico no campo
político: as religiões afro-brasileiras não têm
quase nenhuma centralização institucional
(Prandi, 2005), enquanto a Igreja Católica,
após a redemocratização do país e sobretudo
em razão do prevalecimento de setores neoconservadores (Mainwaring, 2004), tornou-se
avessa ao uso de sua estrutura organizacional
para fins político-partidários explícitos. Já
nas instituições evangélicas, sobretudo nas
do ramo pentecostal e neopentecostal, são
raros os impedimentos de ordem prática ou
dogmática que atuem no sentido contrário
de sua instrumentalização política6.
Dentre os elementos que compõem a
morfologia dessas máquinas eleitorais, vale
destacar, em primeiro lugar, a mão de obra
que as igrejas evangélicas podem fornecer
à sustentação de uma candidatura. Tal mão
de obra consiste em obreiros e voluntários
que atuam de forma análoga aos cabos eleitorais nos bairros e arredores das igrejas
6 Exceção digna de nota nesse aspecto é a Congregação
Cristã no Brasil, completamente avessa a qualquer tipo
de envolvimento ou proselitismo político (Foerster,
2006).
de mesma denominação. No maior templo
de uma das maiores igrejas neopentecostais
do Brasil, cujo líder apoiou explicitamente
Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais de
2018, pudemos observar, por exemplo, um
pastor dizendo durante a pregação que as
igrejas estavam proibidas de apresentar candidatos e apoiar partidos, mas que os fiéis
sabiam em quem votar. Encerrado o culto,
já fora das dependências do templo, voluntários da igreja (os chamados “obreiros”)
distribuíram folhetos e santinhos aos que
deixavam o lugar7.
Esse “recurso humano” também é
importante na intermediação entre as
lideranças (que se candidatam), os fiéis
em geral e, além deles, os habitantes dos
entornos das igrejas que não necessariamente
compartilham da mesma fé. Os obreiros são
capazes de mobilizar tanto o linguajar religioso quanto afinidades extrarreligiosas no
convencimento político dos habitantes de suas
comunidades. É essa elasticidade que permite
à liderança político-religiosa, ou o candidato
por ela apoiado, tornar-se amplamente conhecido e transbordar o círculo denominacional,
mesmo que nele permaneça ancorado em
última instância.
Em segundo lugar, as igrejas evangélicas
podem mobilizar, em favor das candidaturas
que lhes interessam, uma rede de contatos de
divulgação e execução de serviços essenciais
7 Fatos muito parecidos com esse estão relatados
também em reportagens feitas no Rio de Janeiro.
Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/
mp-eleitoral-notifica-eduardo-lopes-filho-de-crivella-por-suspeita-de-abuso-de-poder-religioso-23066573,
acesso em 14/10/2018; e: http://agenciabrasil.ebc.
com.br/geral/noticia/2018-09/justica-do-rio-quer-combater-abuso-do-poder-religioso-nas-eleicoes.
Acesso em: 14/10/2018.
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a qualquer campanha política: “irmãos” que
são donos ou que trabalham em gráficas, que
são advogados, que possuem carros de som,
que trabalham nos cartórios eleitorais, nos
Correios, etc. Essa gama de contatos fornece
a qualquer candidatura um capital social não
contabilizado que permite alcançar círculos
muito mais distantes daquele centrado no
bairro da própria comunidade religiosa.
Por último, mas não menos importante,
com as restrições de doação atualmente
impostas aos canais tradicionais do fazer
político, as instituições religiosas também
podem funcionar como forma de canalização de recursos financeiros para as campanhas eleitorais. Não há ainda sobre elas
os controles e fiscalização de doações que
amarram as instituições seculares, como
partidos, sindicatos e ONGs. Os próprios
dízimos, esmolas, ofertas e outras formas
de donativos não tributáveis oriundos dos
fiéis engrossam, assim, o poderio financeiro
mobilizável pelos líderes religiosos. Uma
vez direcionados à igreja, esses recursos
podem respaldar o funcionamento daquela
série de mecanismos citados anteriormente,
lubrificando e potencializando o poder das
máquinas eleitorais religiosas com expedientes que não poderiam ser mobilizados por
outras organizações políticas. Nesse caso,
conta-se com um verdadeiro caixa dois de
difícil fiscalização.
As igrejas se mostram, portanto, como
um celeiro de lideranças político-religiosas
que podem dispor de: uma capilaridade
sem igual, alcançando desde comunidades
carentes até círculos empresariais; um amplo
repertório simbólico, que lhes permite se
comunicar com variados tipos de demandas
políticas – as quais, como vimos, raramente
são ligadas a valores religiosos –; e, por fim,
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uma via de financiamento livre dos constrangimentos impostos aos canais tradicionais
da prática política.
Um dos sinais de que esses mecanismos
organizacionais das instituições evangélicas
estão sendo usados de forma crescente no
apoio a uma série de candidaturas é o fato
de que o próprio Estado, via esfera jurídica, está começando a ajustar seu radar
para captar e reprimir aquilo que vem sendo
tipificado como “abuso de poder religioso”
– uma mescla de abuso de poder econômico
(devido à captação ilegal de recursos para
uma campanha) e abuso de autoridade (por
ser exercido por alguém que tem proeminência hierárquica sobre um grupo de pessoas),
com o simbolismo e com as crenças religiosas (o atrelamento da orientação política aos
desígnios divinos) (TRE-MG, 2016).
No município de Limeira, no estado
de São Paulo, por exemplo, um candidato
a vereador foi denunciado pelo Ministério Público em 2016 por pedir votos no
altar de uma igreja evangélica e por ter
contado com os esforços da instituição em
sua candidatura, “inclusive mediante propaganda irregular”8. O vereador defendeu-se afirmando que nasceu naquela igreja e,
naturalmente, a campanha foi feita em seu
ambiente, sendo apenas apresentado pelo pastor, que em seguida fez uma oração em favor
de sua campanha9. A princípio, a denúncia
foi rejeitada pelo juiz responsável pelo caso
sob a alegação de que “a legislação eleitoral
não relaciona especificamente a influência
8 Disponível em: https://g1.globo.com/sp/piracicaba-regiao/noticia/tre-sp-cassa-mandato-do-vereador-anderson-pereira-por-abuso-de-poder-religioso-em-eleicao-de-limeira.ghtml. Acesso em: 25/6/2018.
9 Idem.
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religiosa como uma daquelas espécies de
poder cujo abuso deva ser reprimido”10. Em
recurso junto ao TRE-SP, no entanto, já em
2018, a denúncia foi aceita e o vereador teve
seu mandato cassado.
Em 2015, o TRE-MG já havia cassado
o mandato de dois deputados também por
abuso de poder religioso11. Um dos deputados era sobrinho do pastor Valdemiro
Santiago, fundador e principal liderança da
Igreja Mundial do Poder de Deus, listado
em 2013 pela Forbes como uma das pessoas mais ricas do mundo, com um patrimônio estimado em 700 milhões de reais12.
A denúncia se baseava no fato de que ambos
os candidatos distribuíram panfletos e outros
materiais de campanha, além de serem apresentados no palco de um showmício custeado
e divulgado pela Igreja Mundial. O sobrinho
de Valdemiro, Márcio Santiago, defendeu-se
afirmando que “não se tratava de um evento
político e, sim, de uma celebração religiosa”,
portanto ele estaria sofrendo uma discriminação inaceitável em um estado democrático
de direito13. A desculpa não colou e o TSE
manteve a cassação14.
10 Idem.
11 Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2015/08/27/justica-eleitoral-cassa-dois-deputados-em-mg-por-abuso-de-poder-religioso.
htm. Acesso em: 25/6/2018.
12 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/
poder/2017/02/1855747-apostolo-valdemiro-santiago-usa-ma-fase-como-chamariz-de-sua-igreja.shtml.
Acesso em: 25/6/2018.
13 Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2015/08/27/justica-eleitoral-cassa-dois-deputados-em-mg-por-abuso-de-poder-religioso.
htm. Acesso em: 25/6/2018.
14 Disponível em: https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/
noticia/2018/10/10/deputado-missionario-marcio-santiago-perde-mandato-na-assembleia-de-minas.
ghtml. Acesso em: 8/11/2018.
Vale mencionar ainda um processo semelhante que corre na justiça contra o atual
prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella,
bispo licenciado da Igreja Universal do Reino
de Deus e sobrinho de Edir Macedo – fundador da Igreja Universal que também figura
na lista da Forbes como uma das pessoas
mais ricas do mundo, com patrimônio estimado em 1,1 bilhão de dólares em 201615.
A denúncia é referente à campanha para o
governo do estado do Rio de Janeiro, em 2014.
Relata-se que uma filial da igreja em Duque
de Caxias foi usada como comitê eleitoral,
tendo uma fiscalização no local encontrado
“fichas cadastrais com indicação de páginas
de Crivella na internet e centenas de formulários pastorais, alguns já preenchidos por
fiéis, com destinação de campo específico
para o número do título eleitoral”16. Haveria
inclusive planos de execução de “propaganda
em carros de som, organização de carreatas e
divulgação da campanha em feiras do município”, além de 100 mil “santinhos” e vários
veículos com adesivos da campanha no estacionamento da igreja17. Conforme o parecer
do vice-procurador geral eleitoral que acompanha o caso, “esses documentos indicam, de
forma clara e precisa, o desvirtuamento de
grupos de evangelização para cooptação de
eleitores, arregimentação de cabos eleitorais
e realização de propaganda eleitoral”18.
15 D i s p o n í v e l e m : h t t p s : //e x a m e . a b r i l . c o m . b r/
negocios/20-fotos-que-dizem-mais-de-edir-macedo-estreante-na-forbes. Acesso em: 25/6/2018.
16 Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2017/03/20/vice-procurador-eleitoral-acusa-crivella-por-abuso-de-poder-religioso.
htm. Acesso em: 25/6/2018.
17 Idem.
18 Idem.
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Outros casos podem ser citados, como o
afastamento do deputado pastor João Luiz,
pelo TRE-AL, em 2016. O pastor era uma
das principais lideranças da Igreja do Evangelho Quadrangular de Alagoas. Tal como
nos casos anteriores, mas sem mencionar
a tipificação “abuso de poder religioso”,
a denúncia descrevia a “transformação do
templo em espécie de plataforma e base de
campanha”19. Nas eleições de 2018, a Justiça Eleitoral do Rio de Janeiro chegou até
a montar uma força-tarefa de fiscais que,
sem os coletes de identificação, adentraram
e percorreram os arredores de “templos e
igrejas, de todas as religiões, para fiscalizar, flagrar, coibir e multar o que já é
chamado de abuso do poder religioso” 20.
O procurador responsável pelas diligências
afirma ainda “não ter dúvidas de que as
ações desenvolvidas por igrejas em apoio a
candidatos sejam um esquema organizado,
não apenas casos isolados” 21.
Uma vez que a tipificação do abuso de
poder religioso ainda não é oficial, não
se tem um número exato de casos com
o mesmo viés, mas o TSE vem buscando
a elaboração de uma cláusula para barrar sobretudo a canalização de recursos
financeiros por meio das igrejas para as
campanhas eleitorais. Conforme a fala do
ministro do STF Gilmar Mendes, à época
presidente do TSE: “Depois da proibição
das doações empresariais pelo Supremo
Tribunal Federal, hoje quem tem dinheiro?
As igrejas. Além do poder de persuasão. O
cidadão reúne 100 mil pessoas num lugar
e diz: ‘Meu candidato é esse’. Estamos
discutindo para cassar isso” 22.
As lideranças evangélicas mais ativas
na esfera política, obviamente, não veem
com bons olhos essas pretensões de regulamentação jurídica de suas práticas eleitorais. Questionado sobre o assunto, o icônico deputado Marco Feliciano, pastor da
Assembleia de Deus, afirma que se essa
caracterização de abuso de poder coubesse
aos pastores, deveria também ser estendida
a outros profissionais, “um médico sobre
seus pacientes, por exemplo” 23. O raciocínio, no entanto, deixa de lado o fato de
que os templos religiosos são caracterizados pela lei eleitoral como “‘bens públicos
de uso do povo’, mesmo caso de cinemas,
paradas de ônibus e lojas, por exemplo” 24.
A controvérsia sobre esse tema, portanto, está apenas começando. Para os
propósitos da discussão apresentada neste
artigo, contudo, mais do que o surgimento
ou não de regulamentações jurídicas ou a
coerência dos argumentos apresentados por
ambos os lados, o que importa é deixar
claro que a reconhecida existência desses
mecanismos institucionais religiosos com
fins eleitorais é sociologicamente signi-
19 Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/
ultimas-noticias/2017/07/27/abuso-de-poder-religioso-entra-na-mira-da-justica-eleitoral.htm. Acesso em:
25/6/2018.
22 Disponível em: https://br.reuters.com/article/topNews/
idBRKBN16F2TZ-OBRTP. Acesso em: 25/6/2018.
20 Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/
geral/noticia/2018-09/justica-do-rio-quer-combater-abuso-do-poder-religioso-nas-eleicoes. Acesso em:
14/10/2018.
23 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/06/abuso-de-poder-religioso-divide-cortes-eleitorais-e-e-contestado-por-pastores.shtml?utm_
source=newsletter&utm_medium=email&utm_
campaign=newsfolha. Acesso em: 25/6/2018.
21 Idem.
24 Idem.
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ficativa, sejam eles legítimos ou não. O
surgimento de novas pesquisas com o
intuito de compreender melhor a mecânica dessas máquinas eleitorais religiosas
pode ser, assim, um bom caminho para
fazer avançar o debate sobre as formas e
consequências do envolvimento do setor
evangélico na política partidária e sobre
as razões de seu relativo sucesso.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar de declararem uma maior obediência à orientação religiosa sobre temas
do cotidiano do que o observado para as
demais religiões, como foi visto, grande
parte dos fiéis evangélicos não reporta que
as recomendações de suas lideranças sejam
significativas em suas escolhas políticas.
Dessa maneira, destoam, em suas declarações, daquela imagem de rebanho eleitoral
facilmente manejável e influenciável pelas
pregações proferidas nos cultos.
Isso configura um paradoxo na medida
em que o segmento evangélico se faz presente e representa parcela relevante na
esfera política brasileira, como atesta o
fato de ter reunido em sucessivos pleitos
uma das maiores bancadas da Câmara dos
Deputados. Quando se leva em consideração o papel que as igrejas evangélicas,
como instituições, podem desempenhar,
contudo, o quadro muda de figura. O paradoxo tem uma saída possível na medida
em que a explicação do poderio político
dos evangélicos no Brasil se desloca do
plano simbólico das pregações religiosas
para o plano organizacional das próprias
igrejas. É nas igrejas e a partir delas que
se pode fornecer o respaldo necessário à
ascensão política das figuras que se aliam
ou que saem das fileiras da denominação
em questão.
O uso dessa máquina eleitoral pôde ser
constatado, por exemplo, na eleição presidencial de 2018. No âmbito da grande
diversidade de ramos e denominações evangélicas, muitas foram as igrejas que não
apoiaram candidatos ou partidos específicos. Entre aquelas que o fizeram, porém, o
aporte eleitoral não se restringiu, na esteira
do que se procurou demonstrar ao longo
deste artigo, às recomendações ou mesmo
insinuações proferidas nos púlpitos das
igrejas. Após um acerto de bastidores25,
por exemplo, o braço midiático da Igreja
Universal, isto é, a Rede Record de televisão, chegou a transmitir uma entrevista
exclusiva ao vivo com Bolsonaro (com
direito a uma série de dramatizações) no
mesmo horário em que acontecia o último
e mais importante debate presidencial do
primeiro turno na Rede Globo, do qual,
evidentemente, Bolsonaro se ausentou.
Na pesquisa de intenção de voto do
Datafolha realizada nos dias 3 e 4 de
outubro de 2018, o candidato à Presidência da República Jair Bolsonaro recebeu
do conjunto total dos eleitores 31% dos
votos, contra 37% dados pelo segmento
evangélico. Por sua vez, Fernando Haddad
obteve 17% no total da amostra e 13%
entre os evangélicos26. Ambos foram para
25 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/entrevista-de-bolsonaro-na-record-sela-aproximacao-do-candidato-com-a-universal.shtml.
Acesso em: 14/10/2018.
26 Disponível em: http://media.folha.uol.com.br/datafolha/2018/10/05/bdcfba6168cae4406aee6991eec625IV.
pdf. Acesso em: 14/10/2018.
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o segundo turno: Bolsonaro com 46% e
Haddad com 29% dos votos válidos (que
excluem os votos nulos e os em branco).
Já na pesquisa do Datafolha divulgada
às vésperas do segundo turno, Bolsonaro
aparecia com 69% dos votos válidos no
segmento evangélico, enquanto Haddad
obtinha 31%27. Esses dados apontam que
o voto evangélico teve em Bolsonaro, eleito
com 55% dos votos do conjunto total da
população, seu candidato preferencial.
Ao que tudo indica, portanto, a mensagem
religiosa é só um verniz, a última camada de
uma carpintaria política cuja matéria-prima
fundamental e determinante é o poder organizacional e financeiro das igrejas evangélicas, que, ao contrário dos aparelhos seculares
de organização política, atuam livres de uma
série de constrangimentos (como a fiscalização de doações oriundas dos dízimos e
ofertas), não pagam impostos sobre os espaços físicos que ocupam (os templos), além
de contar com uma mão de obra voluntária
e uma rede de contatos e de divulgação que
dificilmente estaria disponível mesmo aos
partidos políticos de grande porte.
27 Disponível em: http://media.folha.uol.com.br/datafol
ha/2018/10/26/3416374d208f7def05d1476d05ede73e.
pdf. Acesso em: 14/10/2018.
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