FILHOS DE IMPÉRIO E PÓS-MEMÓRIAS EUROPEIAS
CHILDREN OF EMPIRES AND EUROPEAN POSTMEMORIES
ENFANTS D’EMPIRES ET POSTMÉMOIRES EUROPÉENNES
Sábado, 16 de março de 2019
Fantástica (da série Open House) | 2006 | José Bechara (cortesia do artista)
ASSASSINOS
Paulo de Medeiros
A dado momento no romance Beloved (1987), de Toni Morrison, galardoado com um Pulitzer, Sethe, a
protagonista diz: “Algumas coisas vão-se. Passam. Algumas coisas ficam. Eu costumava pensar que
era a minha rememória. Você sabe. Algumas coisas esquecemos. Outras nunca se esquecem. Mas isso
não. Sítios, os sítios ainda estão lá. Se uma casa arde, ela desaparece, mas o lugar - a imagem dela permanece, e não apenas na minha rememória, mas lá fora, no mundo. O que eu recordo é uma imagem
flutuando algures longe da minha cabeça” (p.43). Num artigo recente, Nadine El-Enany, professora
da Faculdade de Direito de Birkbeck (Universidade de Londres), referiu-se a este romance sobre a
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escravidão e suas consequências para nos lembrar não apenas dos perigos de esquecer o passado, mas
também do fato de que, para alguns, esquecer nunca será uma opção (1).
El-Enany cita Catherine Hall, em Histories, Empires and the Post-Colonial Moment que, já em 2002,
referiu precisamente Beloved para alertar sobre as terríveis consequências para a Europa de esquecer
o seu passado imperial e colonial: “Beloved, de Toni Morrison, evoca poderosamente um passado que
afro-americanos e americanos brancos acharam doloroso demais para lembrar, mas que precisa de
ser recuperado através do que a autora chama de ‘rememória’ para que essa sociedade se possa
reorientar de tal maneira que possa chegar a um acordo com a sua própria história racializada. Se tais
memórias não são ‘lembradas’, elas assombrarão a imaginação social e perturbarão o presente “(66).
Pode dizer-se que o presente da Europa é interrompido precisamente pelo esquecimento intencional
de tais memórias a ponto que o futuro da Europa, pelo menos o seu futuro como uma comunidade
democrática de estados livres e um projeto de paz bem sucedido, está seriamente ameaçado.
Chegamos agora ao ponto de estarmos a menos de um mês de uma separação possivelmente danosa e
altamente prejudicial, do Reino Unido da União Europeia, a 29 de março de 2019. Deve-se ter em mente
que a Europa tem muitas outras preocupações além desta, seja na forma da disseminação e crescente
influência de forças xenofóbicas ultra-nacionalistas alastrando como fogo por todo o continente, seja
na forma do grande influxo de migrantes que, em parte, ajudou a atear precisamente aquelas chamas.
Mas mesmo que o Brexit possa parecer uma questão menos importante, dependendo de qual lado do
Canal se vive, ele deve ser visto como inextricavelmente ligado a estas outras duas grandes questões.
Sem dúvida, pode dizer-se que o Brexit é apenas uma forma aguda do mal-estar profundo que aflige o
continente. Visto desta maneira, um olhar mais atento à situação iniciada pelo Reino Unido pode ajudarnos a entender melhor os perigos para que Hall alertou. Ou seja esquecer o passado imperial e colonial
do Reino Unido e da Europa está a assombrar a nossa imaginação social a ponto de nos arriscarmos
a perder o sentido não apenas da História, mas do nosso lugar no mundo no momento presente.
Recentemente, foi anunciado que o custo para o Reino Unido desde o referendo é de aproximadamente
40 bilhões de libras por ano, ou seja, 800 milhões todas as semanas. Uma maneira de compreender
como, apesar do que se tornou inevitável e claro de ver, as evidências que apontam para esse imenso
dano económico já sofrido, é refletir sobre como o Brexit tem vindo a ser impulsionado pela nostalgia
pós-imperial. Este é um ponto sugerido, entre outros, por Nadine El-Enany: “Os termos em que ocorreu
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o debate no referendo da UE são sintomáticos de uma Grã-Bretanha lutando para encontar o seu lugar
no mundo pós-Império. Presente no discurso de alguns dos que defendem o voto de separação, havia
uma tendência para romantizar os dias do Império Britânico, época em que Britannia governava os
mares e era definida pela sua superioridade racial e cultural. O Brexit não é apenas uma expressão de
nostalgia do império, é também fruto do império”.
A ligação direta entre as formas passadas de racismo ligadas à escravatura de africanos para alimentar
os empreendimentos capitalistas imperiais e as formas atuais e alargadas de racismo na Europa tornase clara, novamente, na análise de Catherine Hall: “O meu trabalho como historiadora convenceu-me
que diversas maneiras de pensar em termos raciais é o legado mais destrutivo herdado do passado
imperial da Grã-Bretanha. Na sequência do voto do Brexit, assistimos a um aumento profundamente
perturbador do número de crimes de ódio cometidos contra polacos, muçulmanos e minorias raciais. A
globalização, com todos os prejuízos que trouxe para muitos, claramente atuou como um gatilho para
este surto de raiva e ressentimento, o desejo de “retomar o controle” e “proteger as nossas fronteiras”
(2). O aumento acentuado do racismo e da xenofobia, aliado à nostalgia de um passado imperial no
qual a Europa estava no centro do mundo, não é um fenómeno único do Reino Unido: claramente,
ambos têm alastrado por toda a Europa. E na sua base, em qualquer ponto da Europa, existe uma
ilusão específica e extremamente perigosa, possibilitada pelo esquecimento intencional do passado
imperial da Europa e a recusa de assumir responsabilidade.
Vendo bem, a atual situação política no Reino Unido - uma profunda crise da qual o Brexit é apenas uma
parte, mas que expõe a natureza básica das questões e como o país está dividido - serve como um sinal
para o resto da Europa, alertando-nos para como chegámos ao ponto de quase negar os nossos ideais,
e os direitos e liberdades dolorosamente conquistados desde o Iluminismo. O desejo de “recuperar o
controle” e a obsessão de “proteger as fronteiras” - uma ilusão trágica e desesperada tornada talvez
mais fácil de ser tecida devido à insularidade da Inglaterra - tem muitas facetas. Além de restringir
quem pode entrar, o movimento em direção à criação de uma sociedade baseada na exclusão também
depende de deportações forçadas. Nisha Kapoor, num estudo recém publicado, não deixa margem para
dúvidas sobre a importância que as deportações forçadas vêm assumindo nos últimos anos: “Os números
de deportações também aumentaram drasticamente em relação aos escassos milhares de pessoas no
início dos anos 90. Entre 2010 e 2015, aproximadamente 40.000 a 45.000 pessoas foram deportadas
anualmente” (3). Estes números devem suscitar alarme, especificamente no que diz respeito à questão
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dos direitos humanos e ao devido processo legal. Estes números também incluem cerca de dez por
cento de cidadãos da UE, o que levou Adrienne Yong, professora da City Law School da Universidade de
Londres, a declarar: “Existem leis para proteger os cidadãos da UE de serem deportados. No entanto,
o Ministério do Interior parece querer minimizar as obrigações que tem ao abrigo da legislação da UE,
mas também ao abrigo da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH). A tentativa de fugir às
suas responsabilidades, mesmo antes de o Brexit ter ocorrido, não estabelece um precedente positivo
para a proteção dos direitos dos cidadãos da UE no futuro” (4).
Um dos casos mais infames envolvendo o “Ambiente hostil” adotado pelo Ministério do Interior,
quando Theresa May estava à sua frente, foi o escândalo Windrush que ocorreu em março e abril de
2018, estimulado pelo trabalho de investigação feito por repórteres do Guardian. Como noticiado, o
Ministério do Interior tinha como alvo um número desconhecido de pessoas, a maioria pertencente
à chamada geração Windrush de migrantes do Caribe que viajaram no Empire Windrush em 1948 e
que eram, em grande parte, cidadãos britânicos de acordo com o British Nationality Act desse ano. No
final, além de numerosas pessoas (até oito mil) que foram detidas, foram ameaçadas com deportação
e foram excluídas de serviços sociais vitais, incluindo serviços de saúde - especialmente graves, já
que muitos foram os primeiros a trabalhar no Serviço Nacional de Saúde (NHS), inaugurado também
em 1948 - cerca de 63 pessoas foram realmente deportadas. David Lammy, deputado trabalhista que
enfrentou o problema diretamente, escreveu: “Em 2018, no 70º aniversário da chegada do Empire
Windrush, no 50º aniversário do abominável discurso Rivers of Blood (Rios de Sangue) de Enoch Powell
e no 25º aniversário do assassinato de Stephen Lawrence, a trágica, mas incontestável realidade, é
que a Grã-Bretanha ainda tem um enorme caminho a percorrer no campo das relações raciais e da
migração. O escândalo Windrush foi mais do que um erro único causado por funcionários - foi uma
exibição vergonhosa e ainda não resolvida de uma corrente tóxica e racista, impulsionada pelo alarme
público sobre a imigração”.
Este ‘esquecimento’ intencional dos direitos dos cidadãos que são vistos como racialmente diferentes
levou à demissão de Amber Rudd, por impor as regras estabelecidas pela sua antecessora. Ainda assim,
pode pensar-se que quaisquer mudanças decorrentes, incluindo a nomeação de um novo Ministro
do Interior, foram meramente estéticas, na melhor das hipóteses. Não só Amber Rudd está de volta
como Ministra com outra pasta, como também é vista como uma das estrelas em ascensão no partido
conservador. Quanto ao novo Ministro do Interior, Sajid Javid, filho de imigrantes paquistaneses, várias
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das suas intervenções mostram até que ponto o “Ambiente hostil” continua vivo. Quer se pense no
seu anúncio de ter pedido a intervenção de um navio da Marinha de Guerra para patrulhar o Canal e
afugentar eventuais migrantes, ou o anúncio de uma decisão - logo depois revelada como altamente
problemática - de retirar a cidadania britânica a uma jovem por ter se juntado ao Daesh na Síria, podese também ver um desejo adicional de agradar abertamente aos membros mais conservadores e de
extrema-direita do público. E, ainda mais pertinente, embora o prometido esquema de compensação
para as vítimas das ações questionáveis do Ministério do Interior contra membros da geração Windrush
ainda aguarde concretização, é a decisão do Ministério do Interior de retomar os voos especiais de
deportação. Como referiu o editorial do Guardian de 5 de fevereiro de 2019: “A decisão do governo de
retomar as deportações para o Caribe antes do inquérito independente sobre o escândalo Windrush
apresentar as suas conclusões e antes que qualquer um dos afetados receba uma compensação, é
uma afronta à decência e um desprezo calculado para com os críticos da política de “Ambiente Hostil”
criada por Theresa May, quando era Ministra do Interior. A mensagem é que a abordagem agressiva do
Ministério do Interior, depois de uma pausa, está de volta”.
Igualmente preocupante é que, mesmo quando pressionado, o Ministério do Interior não parece capaz
de fornecer o número de pessoas diretamente afetadas pelas suas diretivas e ações. Pelo menos onze
dessas pessoas morreram - e a questão da responsabilidade é grande. Mas os números exatos não
podem ser produzidos como admitido pelo Ministro do Interior que “disse que as autoridades britânicas
também não conseguiram contatar muitos dos que pensaram ter sido apanhados no escândalo,
sugerindo que o verdadeiro número de mortos poderia ser ainda maior” (5). Como Toni Morrison
apropriadamente escreveu, “Algumas coisas são para esquecer. Outras coisas nunca se esquecem”.
No Boxing Day - o segundo dia de Natal, quando tradicionalmente os trabalhadores receberiam um
presente ou uma caixa de Natal do seu patrão - a BBC exibiu o primeiro dos três episódios de uma nova
adaptação de The ABC Murders, de Agatha Christie, realizada por Sarah Phelps. Com John Malkovich no
papel principal, como uma espécie de noir Hercule Poirot - uma decisão que levou a muitas críticas de
alguns espectadores alheios à sua grandeza e profundamente preocupados por ser americano - esta
versão da ficção de 1936 de Christie foi retrocedida ligeiramente para 1933, enquanto também de forma
indireta, mas não menos poderosa, sugeriu aos telespectadores que refletissem sobre os paralelos com
a Europa de hoje.
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Indagada sobre a sua decisão de escolher 1933, Phelps explicou, de modo a, mais uma vez, convidar à
reflexão sobre o presente: “escolhi 1933 especificamente porque estamos num período na Grã-Bretanha
onde a British Union of Fascists [União Britânica de Fascistas] (BUF) começou a tornar-se muito atraente,
especialmente dentro de outros partidos políticos dominantes que sentiram essa onda e começaram a
adotar algumas das suas próprias expressões. Na década de 1930, a Grã-Bretanha também passou por
um período de recessão selvagem e muitas pessoas necessitavam de encontrar alguém para culpar”.
Phelps mudou vários aspetos importantes do romance de Christie. Um deles é o passado incerto
de Poirot, na Bélgica, antes de migrar para a Inglaterra. Nesta versão - que repetidamente mostra
como a atmosfera era hostil para qualquer um visto como estrangeiro - Poirot é-nos apresentado
como tendo sido um padre, e não um inspetor da polícia belga. Como padre, tenta salvar alguns dos
seus paroquianos que se tinham refugiado na pequena igreja rural fugindo das tropas alemãs que se
aproximavam, no início da Grande Guerra, em 1914. Numa cena intensa, Poirot implora silenciosamente
ao jovem soldado que o tem na mira da sua espingarda, para que não dispare; isso, enquanto a voz de
um comandante alemão ordena que ele atire. Até que um tiro estala, e percebemos que o oficial decidiu
executar o soldado que tinha sido incapaz de assassinar o padre. Atirado para o chão pelo cabo da arma
do oficial, quando Poirot se reanima, vê a sua igreja completamente envolta em chamas. Quando Poirot
consegue levantar-se do chão, solta um grito em francês: “Assassins”. A crescente xenofobia assassina
desse período histórico, que há muito se pensava, embora não completamente banida, mas pelo
menos reduzida à insignificância, ressurgiu de novo e ocupa um lugar central na política europeia. Seja
alimentada pelos problemas económicos cada vez mais profundos, pela sensação de complacência por
parte de uma elite cultural, convencida de que a paz na Europa, depois de tanta destruição, seria mais
ou menos um dado irrevogável, ou mesmo apenas por causa da crueldade humana básica, não pode ser
ignorada por mais um momento: o tempo dos assassinos está de volta para nos assombrar e, na sua
raiz, encontra-se uma nostalgia pós-imperial renovada, impulsionada por uma negação intencional,
vergonhosa e desavergonhada, do passado imperial da Europa.
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(1) “Things Fall Apart: From Empire to Brexit Britain”. 2 May 2017.
(2) Catherine Hall. ‘The racist ideas of slave owners are still with us today: The surge in hate crime since the Brexit vote is one
legacy of an overlooked period of British history”. The Guardian, 26 September 2016.
(3) Nisha Kapoor. Deport Deprive Extradite: 21st Century State Extremism. London: Verso, 2019.
(4) Adrienne Yong. ‘When Britain can deport EU citizens – according to the law. The Conversation. 23 November 2017.
(5) “Windrush: 11 people wrongly deported from UK have died – Javid.
Officials unable to contact many of those affected, suggesting death toll could be higher”. The Guardian. 12 November 2018.
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Paulo de Medeiros é Professor Catedrático no Department of English & Comparative Literary Studies
da Universidade de Warwick, Reino Unido. É investigador associado do projeto MEMOIRS - Filhos de
Império e Pós-memórias Europeias (ERC n. 648624).
ISSN 2184-2566
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MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro
Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624) e está sediado
no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.