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A MATERNIDADE EM TONI MORRISON E MARGARET ATWOOD

2005, XVII Seminário do CELLIP

Em um artigo de meados da década de 1970, Adrienne Rich (1995a), discutindo o papel social da maternidade, divide-a em duas vertentes: maternidade como experiência, de um lado, e como instituição política, de outro. Esta última afeta consideravelmente a primeira-principalmente devido aos valores da sociedade patriarcal-ao prescrever "como, quando e até mesmo onde as mulheres devem conceber, parir, nutrir e instruir seus filhos" (p. 196). Interferência que se dá por meio da gerência masculina do controle de natalidade e abortos; da subserviência, ao longo da história, de mulheres e crianças; da dominação econômica do pai sobre a família e da usurpação do processo natalício por um sistema médico masculino. É a maternidade como instituição.

A MATERNIDADE EM TONI MORRISON E MARGARET ATWOOD Vanderlei J. Zacchi (Mestre) – Faculdades Campo Real Em um artigo de meados da década de 1970, Adrienne Rich (1995a), discutindo o papel social da maternidade, divide-a em duas vertentes: maternidade como experiência, de um lado, e como instituição política, de outro. Esta última afeta consideravelmente a primeira – principalmente devido aos valores da sociedade patriarcal – ao prescrever “como, quando e até mesmo onde as mulheres devem conceber, parir, nutrir e instruir seus filhos” (p. 196). Interferência que se dá por meio da gerência masculina do controle de natalidade e abortos; da subserviência, ao longo da história, de mulheres e crianças; da dominação econômica do pai sobre a família e da usurpação do processo natalício por um sistema médico masculino. É a maternidade como instituição que, “através da mais selvagem das ironias” (Rich, 1995b, p. 271), tem sido a responsável por alienar as mulheres de seus corpos ao encarcerá-las neles mesmos. À mulher não resta muita escolha: comecei a compreender a centralidade da instituição e como ela se relaciona com o medo da diferença que contamina todas as sociedades. Sujeitas a essa instituição, todas as mulheres são vistas primordialmente como mães; todas as mães devem experimentar a maternidade sem ambivalência e de acordo com os valores patriarcais; e a mulher que não é mãe é vista como uma desviada. (Rich, 1995a, p. 197) Apesar de se opor ao discurso da vitimização da mulher pelo homem, a autora francesa Elisabeth Badinter (cf. Corrêa, 2005) afirma que as mulheres devem sempre se perguntar se realmente querem ser mães e em que condições, pois nem todas têm espontaneamente esse desejo. Para ela, a maternidade não é atribuição biológica, mas um construto social. A autora chega a essa conclusão ao pesquisar o papel da maternidade em séculos anteriores. Até o século XVIII as crianças eram na maioria negligenciadas. Para as mulheres da alta burguesia, era desprestigioso dedicar-se aos filhos, enquanto que para as operárias essa era uma tarefa impossível, devido às longas jornadas de trabalho. É a partir do século XIX que a atual configuração de amor materno começa a se delinear. As mulheres passam cada vez mais a viver seus papéis de progenitoras, sem sobrar espaço para outras aspirações. Conforme aponta Corrêa (2005, p. 55), “O valor dos cuidados maternos ganha nova dimensão em detrimento da liberdade da mulher”. O discurso do papel da mulher e da maternidade na sociedade, nesse caso, reflete os valores e interesses particulares da ideologia dominante. Esse papel é colocado como algo natural e biológico, portanto essencial e imutável. Para Bakhtin (1990) o grupo que detém o poder se esforça por mascarar a disputa entre os interesses sociais no interior do discurso, fazendo com que sua ideologia particular se apresente como única e universalizante. No entanto o discurso é marcado por uma arena de conflitos sociais e lutas políticas que reflete o meio social em que é enunciado, sendo assim contraditório e dinâmico. Esse aspecto aponta para o fato de que os valores apresentados pela ideologia dominante como universais e acabados são na verdade contingentes e estão sujeitos ao questionamento por parte de segmentos da sociedade que não se sintam contemplados. Dois romances de língua inglesa da década de 1980 parecem reforçar a idéia de que “a experiência da maternidade pelas mulheres [...] está apenas começando a ser descrita pelas próprias mulheres” (Rich, 1995a, p. 196): The handmaid’s tale, publicado em 1985 pela canadense Margaret Atwood, e Beloved, publicado em 1987 e de autoria da escritora afro-norte-americana Toni Morrison. O primeiro apresenta uma sociedade futura, em que a maternidade é vista como instrumento de opressão e de reprodução das estruturas patriarcais. Beloved, por outro lado, é ambientado nos Estados Unidos do século XIX. Nele, a maternidade é apresentada como uma forma de resistência à escravidão. Apesar das diferenças, em ambos a função procriativa da mulher está inserida no contexto de uma sociedade patriarcal e assume portanto aspectos sociais, políticos e culturais. A narrativa de Atwood faz menção a várias questões polêmicas da segunda metade do século XX, como destruição ambiental, guerra biológica, imperialismo e, principalmente, os movimentos feministas dos anos 1960 e 1970. Com a eleição de Ronald Reagan e a ascensão da direita religiosa nos Estados Unidos, os anos 1980 foram marcados por apelos à retomada de valores tradicionais, pela reação ao feminismo e pela perda de direitos das mulheres. Atwood temia que a onda antifeminista não só impedisse outros ganhos para as mulheres, mas também causasse um retrocesso. Brians (1996) afirma que, em The handmaid’s tale, são examinadas as atitudes tradicionais relacionadas com o pensamento da direita religiosa e que Atwood considerava perigosas. Por isso ele classifica essa obra no gênero das distopias, caracterizadas pelo exagero com que certas tendências sociais são mostradas, de modo a tornar evidentes suas qualidades mais negativas. As distopias feministas desenham infernos patriarcais de opressão, discriminação e violência contra mulheres, mapeando assim a sociedade contemporânea. Ao mesmo tempo, e revelando sua natureza ambígua, essas ficções expressam de forma importante desejos e esperanças utópicos pertinentes às mulheres. Vistos sob um ângulo específico, esses textos oferecem um antídoto à banalização da misoginia, que ainda se constitui como um dos males da nossa sociedade. Em outras palavras, eles trazem à luz atitudes e valores androcêntricos que na maioria dos casos passam despercebidos. E questionam tais valores e atitudes através do exagero na assimetria de poder entre os sexos, um exagero motivado pelo princípio crítico e indicativo da proximidade existente entre as distopias e as sátiras. (Cavalcanti) The handmaid’s tale mostra uma sociedade teocrática e puritana em que as mulheres assumem um papel central. Devido à alta taxa de infertilidade – causada pela poluição e radiação –, as mulheres, em geral jovens e saudáveis, capazes de gerar filhos são cuidadosamente “protegidas” pela sociedade e a elas é atribuída única e exclusivamente a função da procriar, não para si mesmas, mas para as mulheres estéreis da classe dominante. Esse é o papel de uma handmaid, “uma espécie de concubina oficial designada para cada família da classe dominante como ‘mãe de aluguel’” (Funck, 1990, p. 99). Apesar da centralidade da mulher, é uma sociedade altamente hierarquizada e patriarcal, governada e dirigida pelos homens. A proteção que elas recebem não implica necessariamente mais liberdade. Como aponta Brians (1996), basta lembrar que, na época vitoriana, a necessidade de se proteger as “boas” mulheres das perversões sexuais justificava outras formas de repressão, como confiná-las em casa e impedi-las de votar. A protagonista Offred é uma dessas handmaids. Seu nome indica que ela pertence (of Fred) a um Comandante, o chefe da família, chamado Fred. Foi doutrinada e treinada para a função biológica da procriação. A adoção de um novo nome, em função do nome de seu comandante, implica uma total perda de identidade. Uma identidade que, pouco a pouco, no decorrer do romance, ela procura recuperar, ou recriar. Suas relações sexuais com o comandante são portanto legitimadas pela sociedade e o Estado, desde que para fins exclusivamente procriativos. Essa idéia se aproxima de certas passagens do livro do Gênesis – citadas inclusive nas epígrafes do romance –, que mostram que era perfeitamente legítimo para um homem fazer sexo e ter filhos com suas criadas na sociedade patriarcal dos hebreus, principalmente se sua mulher fosse estéril. Para Funck (1990, p. 99), “o que houve foi a substituição da poligamia consecutiva, possibilitada pelo divórcio, por uma forma mais antiga – a poligamia simultânea – justificada pelo Velho Testamento através da história de Raquel”. O tratamento dado a essa questão no romance sugere que as tradições patriarcais que valorizam as mulheres apenas como objetos de fertilidade podem ser tão degradantes quanto os costumes modernos que as valorizam como objetos sexuais. Note-se que em Gilead, a sociedade onde se passa a narrativa, todo tipo de pornografia foi, pelo menos aparentemente, abolido. Até mesmo revistas femininas foram proibidas, e queimadas, numa clara alusão a manifestações feministas da década de 1970 que também as condenavam. Offred descreve o conteúdo dessas revistas, nesse caso específico uma Vogue: O que havia nelas era promessa. Elas lidavam com transformações; sugeriam uma série infinita de possibilidades, estendendo-se como as imagens em dois espelhos colocados frente a frente, desdobrando-se, réplica após réplica, até o infinito. Elas sugeriam uma aventura após a outra, um guarda-roupa após o outro, um aprimoramento após o outro, um homem após o outro. Sugeriam rejuvenescimento, superação e transcendência da dor, amor sem fim. Sua promessa real era a imortalidade. (Atwood, 1998, p. 157) O exemplar foi-lhe apresentado pelo próprio comandante, que como outros de sua classe tinha acesso a vários itens proibidos, incluindo escapadas a festas de orgias com suas próprias handmaids, o que atesta o grau de hipocrisia daquela sociedade. Outro aspecto que faz alusão às escrituras está relacionado com as “martas”, que são as criadas domésticas. Na Bíblia (Lucas: 10, 38-42), Marta e Maria são duas irmãs que recebem Jesus em sua casa. Enquanto a primeira se dedica ao trabalho doméstico, a segunda se põe a ouvir Jesus. Ele obviamente acaba por dar preferência a Maria. Mas o sistema patriarcal de Gilead escolhe Marta como ideal de comportamento (cf. Brians, 1996). As martas estão em terceiro lugar na hierarquia doméstica, abaixo das esposas e das handmaids, todas gravitando ao redor do chefe supremo, o comandante. Fora do círculo doméstico, há também as econowives e as unwomen (não-mulheres). As primeiras são das classes mais inferiores, casadas com homens pobres, e que não têm portanto handmaids e martas para lhes servir. As unwomen são mulheres sem capacidade reprodutiva, que vivem em colônias à margem da sociedade. Para lá, são enviadas as handmaids que falham em sua função de procriar. Há ainda Jezebel, uma área intermediária de prostituição situada entre a sociedade e as colônias. Como se pode observar, qualquer que seja sua função, a mulher é apenas um corpo, não tendo direito à educação ou à comunicação com membros das outras castas. Entre as próprias “handmaids”, a inveja e a competição pela tão almejada gravidez acentuam ainda mais o isolamento a que estão submetidas. (Funck, 1990, p. 100) Existe um fetichismo em torno da mulher grávida comparável ao da obsessão por “corpos perfeitos”, que marca a mulher como objeto sexual dos dias de hoje. Ela é invejada e chama a atenção não por um corpo modelado e modificado esteticamente, mas por sua barriga avantajada. A uma certa altura, Offred e sua colega Ofglen estão na fila da mercearia. Entra uma handmaid “imensamente grávida”, todas se voltam para vê-la. “Ela é uma presença mágica para nós, um objeto de inveja e desejo, nós a cobiçamos.” (Atwood, 1998, p. 26) Alguém então comenta: “Exibida”. Offred concorda: Uma mulher grávida assim não precisa sair, não precisa ir às compras. A caminhada diária já não é mais prescrita, para manter os músculos abdominais em boas condições de funcionamento. Ela só precisa de exercícios de solo, de respiração. Ela poderia ficar em casa. E é perigoso para ela sair, deve haver um Guardião do lado de fora lhe esperando. Agora que é a portadora da vida, ela está próxima da morte e precisa de segurança especial. Ela poderia ser pega pelo ciúmes, já aconteceu antes. Todas as crianças são desejadas agora, mas não por todo mundo. (Atwood, 1998, p. 26) Em The handmaid’s tale, a maternidade é posta como uma dádiva para as mulheres. Uma instituição legitimada pelas posições ideológicas e religiosas da classe patriarcal dominante e fundamental para a manutenção do sistema opressivo. Um comandante, em um dos muitos rituais celebrados naquela sociedade, afirma: “Adão não foi enganado, mas a mulher, tendo sido enganada, transgrediu. Todavia ela pode ser salva pelo parto” (Atwood, 1998, p. 221). Deixando evidente que essa é uma visão contingencial, própria da ideologia vigente, Offred reflete: “O que imaginávamos ser nossa salvação na época anterior?”. A idéia de que a transgressão do paraíso bíblico foi um ato eminentemente feminino atravessa os tempos e pode ser encontrada em obras como Paradise lost (1996), escrita no século XVII pelo poeta inglês John Milton. Baseado no livro do Gênesis, esse poema narra o episódio da desobediência de Adão e Eva que culminou com a expulsão de ambos do Jardim do Éden. Na obra de Milton, é Eva quem comete o pecado original. Se Adão decide partilhar da punição imputada a ela, ele o faz conscientemente, movido por motivos estritamente cavalheirescos. Como aponta Funck (1990, p. 102), em Gilead a mulher é sempre relegada ao pólo negativo das oposições que indicam o valor social do indivíduo: produtivo vs. reprodutivo; transcendente vs. imanente; público vs. doméstico. “Pior ainda é que o polo negativo é mascaradamente apresentado pela ideologia política e religiosa como sendo altamente desejável e essencial.” Em Beloved (1988), Toni Morrison mostra a maternidade de um ponto de vista diverso. A partir da década de 1980, as escritoras afro-norte-americanas começam a questionar os próprios movimentos feministas, principalmente aqueles que propunham uma unidade essencialista entre as mulheres. Esses movimentos tinham como base a mulher branca, classe média, da sociedade européia ou norte-americana, e refletiam portanto seus valores. As negras não se sentiam representadas. Tampouco havia espaço para elas na literatura afro-norte-americana, um universo totalmente dominado pelos homens negros. Elas se sentiam então duplamente oprimidas: pela sociedade branca – homens e mulheres – e pelos homens negros, que eram ao mesmo tempo opressores e oprimidos. O vínculo com suas mães passa a ter papel fundamental no trabalho dessas escritoras: Na literatura, ao nomear os vínculos com as suas mães, as mulheres negras norte-americanas aproximam-se mais de seus ancestrais africanos, afastando-se do contexto intelectual branco dominante do mundo acadêmico americano. Os mitos e o tema da figura da mãe têm um enorme poder e são parte continuadora de muitas culturas africanas onde a maternidade é glorificada e tradicionalmente venerada. (Humm, 1989, p. 96) Para Edwards (2000, p. 25), a intenção de Morrison em Beloved é auxiliar os negros, e principalmente as negras, a criar e recriar uma imaginação do eu (self) negada tanto pela história dos brancos como pela história dos homens. Para Toni Morrison (apud Darling, 2000, p. 35), uma das questões principais do romance é a tensão entre “ser você mesma” e ser mãe, já que “uma das melhores coisas que as mulheres fazem é nutrir outras pessoas”, o que em alguns casos pode implicar a renúncia ao próprio eu. Para a autora, a escravidão era a situação ideal para discutir essa questão. Como a maternidade era negada às mulheres negras, todas tinham interesse em formar e manter uma família tão numerosa e produtiva quanto possível. Esse desejo se opõe a visões estereotipadas que sustentavam, em boa parte ainda do século XX, que os escravos não tinham interesse em estabelecer laços conjugais. Na verdade, a família era uma instituição forte e valorizada pelos cativos, que tinham normas familiares próprias, dissociadas das de seus senhores (cf. Slenes, 1999). A história se passa em 1873. Sethe, uma ex-escrava, vive em Ohio com sua filha Denver. Sethe havia fugido de uma fazenda anos atrás. Quando seus antigos feitores vêm procurá-la, ela reúne seus filhos e tenta matá-los, para que não caiam nas mãos dos brancos. Algumas pessoas a impedem de consumar o ato, mas não chegam a tempo de salvar uma das crianças, que como fantasma passa a assombrar a casa. Com a chegada de Paul D – um antigo companheiro de Sethe e de seu marido – à casa, o fantasma desaparece. Logo depois surge misteriosamente uma adolescente, chamada Beloved, que se hospeda com eles e que com o tempo leva a especulações de que seja a encarnação do fantasma. Horvitz (2000, p. 59) afirma que Beloved é uma criança-fantasma intercontinental e “intergeracional”, que representa uma identidade combinada da criança de dois anos assassinada e da mãe africana de Sethe. O surgimento de Beloved estimula em Sethe memórias e histórias sobre sua mãe, sugerindo que essa linhagem materna tem o poder de proporcionar a vida. A própria mãe de Sethe havia também sido cruelmente separada da sua, pelos homens brancos, ainda em território africano. Para Horvitz todos os relacionamentos entre mãe e filha no romance estão marcados por um ciclo de perda, abandono, traição e reparação. Sethe mal se lembra de sua própria mãe, que foi apontada para ela pela criança de oito anos que cuidava dos mais novos – apontada como uma entre tantas mulheres de costas para ela, curvadas sobre um terreno pantanoso. Pacientemente Sethe esperou que a dona daquelas costas em particular chegasse ao fim da fileira e se endireitasse. O que ela viu foi um chapéu de pano e não de palha, algo suficientemente singular naquele mundo de mulheres de fala suave, cada qual chamada de Senhora. (Morrison, 1998, p. 30) Com a chegada de Beloved, as lembranças começam a emergir, para surpresa de Denver, que nunca havia ouvido qualquer coisa a respeito de sua avó: – Sua senhora ela nunca arruma seu cabelo? – perguntou Beloved. [...] – Minha senhora? Você quer dizer minha mãe? Não que eu me lembre. (p. 60) Sethe lembra-se então de quando sua mãe foi enforcada. A razão desse enforcamento é obscura. Ela pode ter sido pega tentando fugir da fazenda, o que implicaria que Sethe teria sido abandonada. Assim as memórias que ela tinha de sua mãe podem ter sido sepultadas não apenas porque o relacionamento entre elas era vago, mas também porque suas lembranças estão marcadas pela sensação de um doloroso abandono. Mas os sentimentos de Sethe se tornam contraditórios quando lhe vem à mente a figura de Nan, uma escrava que cuidava das crianças na fazenda onde ela fora criada. Nan usava “palavras diferentes. Palavras que Sethe entendia naquela época, mas que agora não podia recordar nem repetir” (p. 62). Essas palavras fazem a conexão de Sethe com sua mãe e a terra dela, a África, “o lugar onde as mulheres colhiam flores em liberdade e brincavam na grama antes da chegada dos homens brancos” (Horvitz, 2000, p. 60). Nan também lhe faz ver que ela, concebida com um homem negro e por amor – e não através do estupro por um senhor branco –, é a única criança que sua mãe permitiu que sobrevivesse, além de herdar o nome do pai. Esse ciclo de fusão, perda, traição e recuperação que caracteriza o relacionamento entre mães e filhas no romance se repete na relação entre Sethe e Beloved. Beloved passa de uma menina afetuosa e solitária a uma tirana possessiva e exigente e, como aponta Horvitz (2000, p. 62), sua crueldade quase mata Sethe. O infanticídio praticado por Sethe é indicativo também da resistência ao sistema escravocrata. Ao assassinar uma filha querida, ela restaura sua posse sobre a criança, não permitindo que venha a ser propriedade do seu antigo senhor. Há um paralelo entre esse ato extremo de Sethe, a decisão de sua mãe de livrar-se de todos os filhos gerados com senhores brancos e o caso de Ella, uma outra ex-escrava. Em sua adolescência, Ella foi violentada pelos seus senhores. Tendo gerado uma “coisa branca peluda” (Morrison, 1998, p. 258), ela optou por não nutrir a criança, que morreu cinco dias depois. São situações que exemplificam uma oposição à subversão da mulher pela voz da cultura, internalizada nas mulheres, que sempre as está culpando por ficar grávidas e por recusar o papel de mãe, em um mundo dominado por homens que, de acordo com Rich (1995b, p. 270), vêem tanto o planeta quanto os corpos das mulheres como recursos a serem tomados, explorados, drenados, escavados e controlados. Para Keenan (2000, p. 126), a definição de maternidade de Sethe é uma resposta desafiadora à destruição brutal da conexão materna pela escravidão, demonstrando que a maternidade não é uma categoria fixa e natural. Há uma série de possibilidades em que a função procriativa, ou a rejeição dela, se torna uma forma de resistência feminina à escravidão e à transformação do corpo da mulher em mercadoria. E Sethe optou por uma solução extrema. A autora conclui que Morrison é capaz de delinear a inter-relação particular entre a maternidade e a história das/os afroamericanas/os e desfazer a mitologização estereotipada da identidade das mulheres negras. Ao mesmo tempo, os esforços de sua protagonista para encontrar uma maneira de falar sobre seu passado, e assim confrontar seus horrores, sugerem metaforicamente o dilema histórico das/os afro-americanas/os de escrever sua própria história fora do âmbito das mitologias retóricas e restritivas da cultura hegemônica. (Keenan, 2000, p. 121) A narrativa inscreve os cativos no âmbito de uma historicidade em que a família escrava pode funcionar como elemento de transformação do sistema escravista, conferindo-lhes portanto a qualidade de agentes sociais e produtores também de sua própria história (cf. Slenes, 1999). A análise desses dois romances reforça a afirmação de Funck de que a maternidade – voluntária, consciente e compartilhada – poderá proporcionar um modelo positivo para o relacionamento humano somente fora de uma estrutura polarizada e hierárquica, livre de qualquer pressão social e ideológica. Mistificada pela religião, institucionalizada pelo costume e vinculada à família nuclear patriarcal torna-se causa e instrumento de opressão, “o determinante social por excelência” (1990, p. 102). A construção da identidade feminina é também aspecto fundamental nos dois romances. Em ambos a mulher é posta como um objeto apropriado e explorado pela estrutura patriarcal, em situações eminentes de escravidão, seja ela aberta ou velada. Em oposição aos valores a elas determinados, as principais personagens femininas tratam de recuperar ou recriar suas identidades ao longo das narrativas. Tanto numa ambientação passada como futura, as questões de gênero deixam evidente que o papel da mulher na sociedade não é uma atribuição natural e biológica, mas antes de tudo cultural e convencionada, o que possibilita a mudança e a transformação das relações. Conforme aponta Adrienne Rich, os temas envolvendo a maternidade podem suscitar os mais variados sentimentos e idéias. Mas fugir deles, ou trivializá-los, e deixar de examinar as emoções que eles despertam é fugir de nós mesmas/os e da esperança incipiente de que as mulheres e os homens podem um dia experimentar formas de amor e ma/paternidade, identidade e comunidade que não estarão atolados em mentiras, segredos e silêncio. (Rich, 1995a, p. 197) REFERÊNCIAS ATWOOD, Margaret. The handmaid’s tale. New York: Anchor, 1998. BAKHTIN, Mikhail (Volochínov). Marxismo e filosofia da linguagem. 5. ed. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1990. BRIANS, Paul. 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