etnográfica
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Sofrimento social:
idiomas da exclusão e políticas
do assistencialismo
Chiara Pussetti e Micol Brazzabeni
O conceito de sofrimento social emergiu nas últimas décadas como um novo
paradigma das ciências sociais e como lente particularmente apropriada para
olhar as relações profundas entre a experiência subjetiva do mal-estar e os processos históricos e sociais mais amplos. O presente artigo, e os contributos aqui
reunidos, pretendem abordar o sofrimento social sob três pontos de vista que
consideramos fundamentais: 1) a forma paradoxal como é retirado ou atribuído o poder às pessoas; 2) a apropriação, por parte das instituições que criam
as condições para que o sofrimento tenha lugar, das teorias “salvíficas” sobre
a utilidade do sofrimento com vista a um bem-estar maior e futuro da humanidade; 3) a evidência de quanto a assistência, os cuidados, o Estado-social, a
proteção humanitária e até os direitos, podem ser manipulados e imbricados na
definição e organização das modalidades de pertença ou exclusão nacional, até
ao extremo da redução do indivíduo à sua “vida nua”.
PALAVRAS-CHAVE:
sofrimento social, agência e subjetividade, políticas de assis-
tencialismo.
O PRimEiRO dEbAtE SObRE SOfRimEntO SOCiAL E indiViduAL quE
estabelecemos com os autores do presente dossiê decorreu no painel “Vivenciar
o sofrimento social: suas ambiguidades e articulações”, por nós organizado, no
iV Congresso da Associação Portuguesa de Antropologia (APA), que teve lugar
em Lisboa em setembro de 2009. Os autores aqui reunidos aceitaram o desafio
de sugerir novos elementos de reflexão sobre a temática do sofrimento social
que tem merecido grande atenção nas últimas décadas nos campos científicos
da antropologia, da sociologia, da psicologia social, como também no âmbito
das políticas públicas e económicas internacionais.
Os contributos provêm de pesquisas de terreno de investigadores e docentes
que exploram o tema nas suas variadas formas e expressões e que se propõem
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abordar o conceito de sofrimento social em diálogo com questões de género,
saúde pública, juventude, exclusão social, migração, pertenças identitárias,
desvio social e crime, com especial atenção às suas repercussões nos corpos e
nas palavras dos sujeitos afetados.
O objetivo é examinar as causas sociais e as experiências individuais do
sofrimento em diferentes contextos, focando em particular questões como: a
natureza social e política da doença e do mal-estar; as interfaces entre os significados da pertença identitária e social dos sujeitos, e os saberes e as práticas
da agenda institucional dirigida às políticas dos cuidados e do acolhimento; as
narrativas subjetivas da dor; a responsabilidade e o posicionamento ético-político dos antropólogos face à produção e implementação de formas de violência
e sofrimento social.
É intenção dos autores explicitar também as ambiguidades do sofrimento
social através de dois aspetos: por um lado, a análise das intervenções sociais
para aliviar o sofrimento dos sujeitos definidos como “vulneráveis” e que frequentemente resultam na sua intensificação; por outro, a problematização das
mesmas intervenções, que classificam os sujeitos em categorias rígidas, através
de mecanismos complexos de patologização, criminalização e exclusão social.
Será dedicada particular atenção às formas locais de agência, individual ou
coletiva, para “lidar” com a experiência do sofrimento social, de forma a tentar
acompanhar os aspetos processuais da vida social.
O conceito de sofrimento social emergiu nas últimas décadas como lente
particularmente apropriada para olhar as relações profundas entre a experiência
subjetiva do mal-estar e os processos históricos e sociais mais amplos. O sofrimento, enquanto sentimento humano, foi por muito tempo imaginado como
uma experiência inata, ligada ao corpo natural e, portanto, universal – fenómeno pan-humano e pré-cultural, associado aos lugares simbólicos da interioridade –, pouco interessante, nesse sentido, e ainda menos acessível aos métodos
da análise sociocultural. Este paradigma universalista está ligado a uma espécie
de “realismo ingénuo segundo o qual o amor, a chuva, o casamento, os cultos, as
árvores, o sofrimento, a morte, a comida e mil outras formas de realidade têm o
mesmo significado para todos os seres humanos” (bibeau 1995 [1981]: 41).1
todavia, a partir de uma análise mais atenta, o sofrimento revela-se como
um facto especificamente social: o primeiro livro (de uma trilogia) de Kleinman,
das e Lock (1997) dedicado à questão do sofrimento social inaugura a linha
de pensamento segundo a qual o mal-estar não pode ser observado e explicado
independentemente das dinâmicas sociais e dos interesses políticos e económicos que o constroem, reconhecem e nomeiam. As interpretações do sofrimento
apelam a uma consciência da história do discurso que as elabora, cujo contexto
é sempre o das relações de poder locais. necessariamente, um olhar crítico
1
todas as traduções de citações em língua estrangeira são da nossa responsabilidade.
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sobre o sofrimento considera portanto as práticas e estratégias – produzidas
e sustentadas dentro de um quadro de relações de poder – que o definem e o
aliviam, avaliando a posição dos interlocutores e a ideologia veiculada pelas
categorias em jogo.
O sofrimento social, nesta perspetiva, resulta de uma violência cometida pela
própria estrutura social e não por um indivíduo ou grupo que dela faz parte:
o conceito refere-se aos efeitos nocivos das relações desiguais de poder que
caracterizam a organização social. Alude, ao mesmo tempo, a uma série de problemas individuais cuja origem e consequência têm as suas raízes nas fraturas
devastantes que as forças sociais podem exercitar sobre a experiência humana.
O mal-estar social deriva, portanto, daquilo que o poder político, económico
e institucional faz às pessoas e, reciprocamente, de como tais formas de poder
podem influenciar as respostas aos problemas sociais. O sofrimento social é o
resultado, em outras palavras, da limitação da capacidade de ação dos sujeitos
e é através da análise das biografias dos sujeitos que podemos compreender o
impacte da violência estrutural no âmbito da experiência quotidiana.2
Comparando as biografias dos indivíduos e grupos que protagonizam as
histórias reunidas neste dossiê, verificamos que o elemento comum é uma relação incómoda entre sujeito e ordem social: eles partilham a mesma condição
de viverem nas margens de organizações sociais, profundamente desiguais, e
de não poderem negociar os termos da própria existência. Resulta claro neste
ponto o nexo entre violência estrutural, agência e sofrimento social: uma certa
configuração da ordem social restringe a capacidade e a liberdade de escolha
de certos indivíduos ou grupos.
A capability-based approach, proposta por Amartya Sen (2005, 2009),3
sugere que as forças sociais limitam as possibilidades de ação e de escolha
dos sujeitos e conformam as suas experiências quotidianas; noutros termos, a
maior ou menor liberdade das pessoas depende também da maior ou menor
possibilidade de escolherem entre diversas alternativas possíveis. todas as
etnografias do dossiê salientam, no fundo, de forma mais ou menos explícita,
a relevância da dialética entre sofrimento, liberdade, subjetividade, agência e
responsabilidade – esta última não só das etnografias dos antropólogos e das
suas análises, mas também dos sujeitos envolvidos na produção, implementação e disseminação de sofrimento.
2
Paul farmer (2004) avança com uma proposta teórica fundada sobre o conceito de violência estrutural, definida pelo filósofo Johan Galtung como aquela forma particular de violência que não precisa
da ação direta do sujeito para acontecer, mas que é caracterizada pela sua natureza processual e indireta.
3
A “capabilidade” é definida pelo autor como “a oportunidade de ter à disposição”, e portanto de
poder escolher, “combinações [alternativas] de funcionamentos humanos aos quais atribuímos valor –
o que uma pessoa é capaz de fazer ou ser” (Sen 2005: 153). Para uma análise mais detalhada da teoria,
ver Sen (1985).
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O elemento interessante e pertinente da teoria de Sen sobre o desenvolvimento como liberdade assenta na ligação que o conceito de “capabilidade”
estabelece entre liberdade e direitos humanos: “ao avaliarmos as nossas vidas,
temos todas as razões para estarmos interessados, não apenas no tipo de vida
que conseguimos levar, mas também na liberdade de que realmente dispomos
para escolhermos entre estilos e maneiras de viver diferentes” (2009: 227).
desta forma, as teorias sociais que abordam o sofrimento como o resultado
de ações, comportamentos ou privações “internas” aos sujeitos esquivam-se a
analisar as oportunidades que os indivíduos têm para alcançarem os seus objetivos e os processos através dos quais chegam a escolher ou não. de facto, o que
é relevante é a liberdade disponível para efetuar escolhas entre várias opções,
e não tanto ou apenas o que realmente temos – o que Sen chama culmination
outcomes (2009: 215).
O sofrimento não entra portanto no quotidiano das pessoas só por mero
acaso, por contingências específicas da vida ou por existirem mecanismos objetivos de “disfunção social”. Como afirma das (1997), nas sociedades contemporâneas, a violência e o sofrimento infligidos podem ser interpretados como
um preço a pagar pelos indivíduos para vivenciarem sentimentos de pertença
identitária e social – uma “teodiceia secular” que funciona quer como instrumento social para enfrentar as frustrações, quer como instrumento de poder
para explicar e justificar o sofrimento atribuindo-lhe uma alegada “utilidade
social” e “pedagógica” (ver das 1995, 1997; Herzfeld 1992).
Se considerarmos os fenómenos de sofrimento social como “factos sociais
totais” que acarretam consigo outras e diversas dimensões e questões interligadas – como as da saúde, do trabalho, do welfare, religiosas, políticas, morais,
legais, éticas, culturais – e se considerarmos a experiência direta ou indireta
do sofrimento por parte dos indivíduos, conseguimos vislumbrar toda a sua
complexidade enquanto novo paradigma das ciências sociais e, de certa forma,
a sua inefabilidade do ponto de vista fenomenológico. Elizabeth Challinor, no
presente volume, procura pôr em diálogo as abordagens do sofrimento social
e as dimensões subjetivas que permitem analisá-lo mais proficuamente, tentando ainda situar-se, através de uma etnografia densa, nas tensões entre os
aspetos universais e individuais da experiência humana. A sugestão de que
o sofrimento pode resultar de dinâmicas intersubjetivas de posicionamento
social e de uma matização identitária alerta o nosso olhar para os aspetos processuais do próprio sofrimento (ver biehl, Good e Kleinman 2007).4
4
“O sujeito é ao mesmo tempo produto e agente da história, o lugar da experiência, memória, narrações
e juízos estéticos; um agente de conhecimento assim como de ação; e o lugar conflituoso de atos e gestos
morais no meio de sociedades e instituições incrivelmente amorais. […]. todavia a subjetividade não é só o
resultado do controle social ou do inconsciente; mas também constitui o terreno para os sujeitos refletirem
através das circunstâncias e sentirem através das contradições e, desta forma, suportarem interiormente
experiências que, diversamente, e por fora, seriam insustentáveis” (biehl, Good e Kleinman 2007: 14).
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Embora não diretamente abordados pelos autores do dossiê, os estudos sobre
refugiados (e não nos referimos aqui necessariamente ao âmbito mais institucionalizado dos refugees studies) são exemplos claros e dramáticos de alguns aspetos que nos interessa introduzir e que estão diretamente ligados à temática do
sofrimento social e da violência estrutural: primeiro, a forma paradoxal como é
retirado ou atribuído o poder às pessoas (ver Harrell-bond 1999); segundo, a
apropriação, por parte das instituições que criam as condições para que o sofrimento tenha lugar, das teorias “salvíficas” sobre a utilidade do sofrimento com
vista a um bem-estar maior e futuro da humanidade (ver das 1997; e a “violência do zelo” de Lock 2000); e, finalmente, a evidência de quanto a assistência,
os cuidados, o Estado-social, a proteção humanitária e até os direitos podem
ser manipulados e imbricados na definição e organização das modalidades de
pertença ou exclusão nacional (ver bauman 2005 [2004]; Van Aken 2005), até
ao extremo da redução do indivíduo à sua “vida nua” (Agamben 1995).
O que se pretende defender é uma nova forma de olhar para o sofrimento
(e para as pessoas que sofrem) e uma antropologia virada, não somente para a
análise dos mecanismos que criam sofrimento, mas também para a intervenção
ao nível político, social e económico. Esta antropologia pretende investigar
e problematizar as dinâmicas através das quais forças sociais como pobreza,
racismo, diferenças de género, migração, heranças coloniais e exclusão social
são incorporadas como fatores de risco e patologia, recusando um relativismo
extremo como resposta fácil a um universalismo ingénuo e problemático.
de facto, a articulação entre história, política e sociedade está, muitas vezes,
ausente das análises antropológicas que interrogam as linguagens múltiplas do
corpo e do sofrimento; e a erosão destas áreas do saber representa provavelmente o problema central que uma antropologia do sofrimento, que se queira
crítica e politicamente engajada, deve enfrentar.
bauman (2005 [2004]: 84-85) sublinha como, a partir dos anos 80, assistimos a uma grande transformação na moderna organização da ordem e do progresso mundial, cuja consequência fatal, entre outras, se refere à “passagem de
um modelo de comunidade inclusivo, inspirado no ‘Estado social’, a um Estado
exclusivo, inspirado na ‘justiça penal’ e no ‘controle da criminalidade’”.5
O artigo de Paulo Artur malvasi é um claro exemplo: a sua etnografia,
enquanto antropólogo e diretor de uma OnG em São Paulo, introduz-nos nas
dobras ambíguas do processo institucional de “criminalização das periferias”
e dos “jovens em risco” que nelas habitam. As medidas socioeducativas para
jovens “marginais” são alvo de uma reflexão “militante”6 que procura ver por
5
A alusão às “instituições totais” de Goffman parece-nos aqui evidente.
6
no seu “Rumo a um campo intermédio militante”, Herzfeld (2008 [2005]: 271) critica, de certa
forma, o debate ciência-moralidade por conduzir a um binarismo, que ele define como pernicioso, porque sustenta “a prescrição ética sobre o grau apropriado do envolvimento político dos antropólogos nas
questões morais respeitantes às sociedades que estudam”.
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dentro e desvendar os processos complexos e contraditórios de uma política
institucional dirigida aos cuidados e à reinserção de indivíduos sob cujo perfil
se esconde um discurso de vitimização das suas vítimas, moralização, psicologização e medicalização.
A este propósito, Herzfeld (2006 [2001]: 265) interroga-se sobre o papel
da antropologia face a uma reformulação possível do social, no sentido de
este se tornar um lugar de cuidados, acolhimento e conforto e não somente
de punição, culpa e regulamentação. Este, no fundo, é o mesmo apelo de das
(1997) quando alerta sobre a possibilidade de as ciências sociais facilitarem a
reprodução do silêncio das sociedades face ao sofrimento, como se existisse,
denuncia Renault (2008: 25-26), “um efeito em espiral entre a invisibilidade,
o caráter indizível e os obstáculos à mobilização”.
Esta antropologia, noutras palavras, socialmente responsável, propõe interrogar-se incessantemente sobre os seus próprios instrumentos e interpretações,
animada por uma reflexividade que não se limita à questão da subjetividade do
antropólogo, mas que defende o empenho político do pesquisador. uma leitura
antropologicamente sensível do sofrimento é portanto uma questão política e
uma responsabilidade ética em relação a atores sociais, tantas vezes silenciados, e que consideramos, antes de tudo, como sujeitos políticos e morais que,
muitas vezes, manifestam sintomas produzidos pela estrutura social, pelas suas
desigualdades ou pelas profundas feridas da história.7
O poder que se procura analisar, todavia, não entra em jogo somente para
produzir as condições que favorecem a exclusão social, mas também para criar
respostas institucionais e políticas de intervenção adequadas ao sofrimento
que se propõe aplacar. Seguindo a proposta de fassin (2005, 2006), um dos
maiores desafios atuais consiste em investigar as políticas contemporâneas,
não tanto nas suas instituições e técnicas, quanto no ethos que as anima e
que fassin (2005) define como “ethos da compaixão”: trata-se de políticas que
se empenham em aliviar o sofrimento, afastando o olhar das suas próprias
causas.
Sofrimento social é, de facto, um conceito muito utilizado hoje, não somente
nas ciências sociais, mas também nos programas governamentais e não governamentais de apoio social, e que abrange aspetos diferentes relacionados com a
perda de qualidade de vida, podendo ser vivenciado tanto no plano individual
quanto no plano coletivo.
7
Acreditamos que seja necessário que a antropologia reflita sobre o seu papel, não somente para
explorar as formas como pode tornar evidente e significativo o sofrimento, mas também para conseguir
dialogar com as perspetivas e as “possibilidades” de todos os atores, inclusive os institucionais que, frequentemente até pela própria análise e crítica antropológica, se encontram subsumidos e cristalizados
nos seus próprios papéis – muitas das abordagens antropológicas de matriz foucaultiana têm sublinhado sobretudo a agência das “vítimas” do poder institucional, perdendo de vista frequentemente a
dimensão plural, contraditória, paradoxal, das próprias estruturas institucionais e burocráticas.
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A retórica da “qualidade de vida” que informa estes programas, entendida
em termos morais, além de materiais, representa a instigação contemporânea de uma intervenção destinada a uma maior inserção e realização pessoal
(empowerment) das faixas vulneráveis da população, com uma maximização
da segurança pública. A população “em risco” é também uma população “de
risco”, que ameaça, que contagia, segundo uma lógica caracterizada, por um
lado, por “discursos sobre direitos e empowerment” e, por outro, por “discursos
sobre o contágio e o controlo” (Seidel 1993).
As populações ou os indivíduos “em excesso”, que todavia permanecem
dentro dos confins dos Estados, necessitam de ser “alojados” ou, mantendo a
metáfora baumaniana, “reciclados”, de forma a que a sua anómala estranheza
e exclusão sejam rapidamente reintegradas através dos “cuidados” e da reabilitação.
O caso de Lucas, analisado por Ana Paula Serrata malfitano, introduz-nos
nos meandros da legislação brasileira sobre crianças e adolescentes e sobre
os conceitos de tutela / autonomia quando estes colidem com as experiências
subjetivas dos “jovens”, alvo de políticas sociais específicas. Perder ou ganhar
a possibilidade de construir um percurso de autonomia – sendo a tutela assegurada só até à maioridade – é um dos danos colaterais incalculáveis de tais
políticas, que perpassam as questões ligadas às desigualdades económicas,
arriscando esvaziar, de tal forma, os sentidos teóricos da proteção e da tutela.
O sofrimento social aparece aqui, por um lado, como um “empecilho”, que
obriga as instituições a enquadrar médica e psicologicamente os jovens num
quadro sintomatológico “normal”, para que eles possam ter acesso a algum
nível de cuidado; por outro, surge como uma variável, quase imprevisível, que
só pode ser gerida se o jovem decide “aderir” a um percurso fortemente institucionalizado e “institucionalizante”, no qual, de facto, pode acabar por encontrar um lugar, mesmo que de sofrimento, no mundo.
Os destinatários das intervenções sociais têm efetivamente poucas formas
de acesso às respostas do Estado. Por um lado, estão relegados para as margens,
sendo ao mesmo tempo vítimas e ameaças da estrutura; por outro, é exatamente
esta posição de exclusão e marginalização que os torna recetores de intervenção
social. A única forma que eles têm de aceder a uma modernidade individualizante é apresentar uma patologia social: nguyen (2008) define esta condição
como “cidadania humanitária”, isto é, a constituição de sujeitos detentores de
direitos e responsabilidades na base de uma específica condição social.
O conceito de “cidadania humanitária” aproxima-se do conceito de “biolegitimidade” proposto por fassin (2001) para refletir sobre as contradições das
políticas francesas destinadas aos imigrantes não documentados, inexistentes
como detentores de direitos civis, a não ser quando esteja em jogo a preservação da sua existência orgânica. É enquanto “vida nua” (Agamben 1995) que
o imigrante (ou o pobre, o marginal, o vulnerável, etc.) obtém os direitos de
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cidadão que, de outra forma, lhe seriam negados, e pode reivindicar com veemência a sua presença na sociedade.
A marginalidade, a dor, a doença, até a morte tornam-se assim terreno para
uma revindicação de direitos, exatamente através da exclusão de uma vida
socialmente significativa. Pandolfi (2005) define a “biocidadania” como uma
modalidade de inclusão produzida por e produtora de formas subtis de exclusão; é justamente nas contradições do neoliberalismo global que os excluídos,
os homines sacri (Agamben 1995), assumem diferentes formas, podendo ser
considerados, ao mesmo tempo, vítimas que precisam de ajuda, perigos que
devem ser controlados ou, ainda, agentes de formas inéditas de ação política
(Comaroff 2007). Esta ambivalência justifica uma intervenção maciça nos segmentos mais precários e indesejáveis da sociedade, que visa ajudar os sujeitos
na construção dos seus próprios projetos de vida para se tornarem cidadãos
bem integrados na ordem social e moral dominante.
Surge nesta lógica uma nova espécie de pacto social entre os marginais,
que devem fazer o possível para se integrarem, e os especialistas (psicólogos,
assistentes sociais, educadores, mas também sociólogos e antropólogos), que
se disponibilizam para aliviar o sofrimento daqueles, ajudando-os a construir
novos projetos de vida.8 Este pacto particular constitui, nas palavras de isabelle
Astier (1996: 99), “um dispositivo que favorece uma vasta empresa de exploração da intimidade das pessoas”: o destinatário da intervenção social deve,
quer expor a sua própria infelicidade, quer dispor-se a repensar o passado e a
imaginar o futuro, para mudar a precariedade do presente e para poder obter
o apoio esperado.
O sofrimento, a dor, a violência – enquanto fenómenos sociais, mas também
enquanto instrumentos conceptuais e analíticos –, tal como as intervenções a
seu favor e por eles justificadas, estão a ser cada vez mais submetidos a processos, por um lado, de progressiva institucionalização, por outro, de mediatização e hipervisibilização (ver Kleinman e Kleinman 1996), processos que
evidenciam o seu potencial ambivalente e perigoso e a sua relevância enquanto
assunto político, no sentido mais amplo do termo. não são já algo escondido
ou silenciado, mas, pelo contrário, são expostos, comentados, monitorizados,
estudados – segundo lógicas que refletem obviamente realidades económicas e de financiamento e interesses governamentais específicos. dentro deste
quadro de sofrimento “amplificado”, multiplicam-se as reuniões profissionais
8
Estamos a falar de todas aquelas tecnologias do self implementadas através da disciplina dos corpos,
que produzem “bons” cidadãos. Citamos entre elas: as instituições disciplinares (escolas, hospitais, prisões), que educam o corpo; as capitalistas (fábricas, exércitos, empresas), que orientam o corpo numa
direção produtiva; e as práticas do self (educação moral, sexual, alimentar, exercício físico, psicoterapia),
que constroem sujeitos adequados às expectativas da ordem dominante (para uma análise completa, ver
Rose 1996, 1999, 2006).
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e científicas, as publicações (este dossiê é um claro exemplo disto mesmo),
os projetos, os pedidos institucionais de formação e expertise específicas, os
dispositivos de avaliação e diagnósticos, os centros de apoio e as organizações
destinadas a responder ao escândalo do sofrimento.
O sofrimento – comenta ironicamente Jackie Assayag (1999) – “coloniza
hoje o nosso futuro com os seus pesadelos” e a análise das respostas disponíveis no mercado assistencial não pode ignorar as dimensões políticas, económicas e morais em jogo. A “psicologização do social” (fassin 2005) é uma
destas dimensões: a psicologia torna-se o instrumento principal através do
qual se intervém nas situações de pobreza, marginalidade e violência, e os
psicólogos operam para curar as feridas das periferias, dos segmentos marginais da população. As leituras e as lógicas contemporâneas destinadas a tratar
os sintomas do sofrimento concentram-se hoje mais no léxico do apoio e do
empowerment, criando um consenso geral que desarma a crítica: a compaixão
não tem inimigos.
Como demonstra o artigo de Rubens de Camargo ferreira Adorno, sobre
as populações em situação de rua, os programas de apoio social gravitam em
torno daquela a que podemos chamar a dicotomia vulnerabilidade / risco. Por
um lado, impõe-se uma representação que costuma relacionar os marginais
com o desvio e a criminalidade, a falta de competências sociais e a insegurança,
associando-os, deste modo, à ideia de risco que eles próprios simbolizam para
o resto da sociedade. Por outro, divulga-se uma imagem dos mesmos sujeitos
como pessoas em dificuldade, vítimas de uma estrutura desigual, necessitados
e desprotegidos, num estado permanente de vulnerabilidade.
As soluções propostas para responder à questão impertinente do sofrimento
social gravitam à volta de ações que têm por objetivo cuidar dos vulneráveis
e, ao mesmo tempo, controlar os riscos desta vulnerabilidade. Estas oscilações
entre representações de vulnerabilidade e risco, de vítimas e criminosos, de
apoio e preocupação, de políticas da piedade e de controlo, tornam-se particularmente evidentes analisando as intervenções na vida dos imigrantes não
documentados (fassin 2001), dos pobres urbanos (Geremek 1987 [1978];
Wacquant 1999), ou dos jovens dos bairros sociais (fassin 2004). Segundo
fassin (2005, 2006), trata-se de uma polarização moral entre compaixão e
repressão, onde o processo de “securização” se articula com as lógicas da intervenção social.
A “Cracolândia” paulistana, onde bruno Ramos Gomes desenvolveu a sua
pesquisa, é um lugar de “exposição” dos corpos, das ações e da intimidade dos
usuários (os “noias”) e vendedores de crack que sofrem com a constante presença de intervenções militares, altamente performáticas e mediatizadas, de
vários agentes da assistência social e da saúde, e de fiscais da vigilância sanitária, funcionários de companhias de energia elétrica, de gás e saneamento, com
vista à requalificação da área. todavia, a persistência dos “noias” na região é
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descrita como uma forma de resistência “tática” que acaba por incorporar, de
facto, a identidade específica que lhes é atribuída e que se torna um “valor”.
A antropologia, portanto, deverá aceitar o desafio provocador lançado por
Herzfeld (2006 [2001]: 286): queremos, de facto, ceder “toda a agência às
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Social suffering: languages of exclusion and welfare policies Chiara Pussetti Centro em
Rede de investigação em Antropologia (CRiA-iuL), instituto universitário de Lisboa, Portugal
[email protected] micol brazzabeni Centro em Rede de investigação em Antropologia (CRiA-iuL), instituto universitário de Lisboa, Portugal
[email protected]
the concept of social suffering has emerged in recent decades as a new paradigm in social sciences and
as a particularly appropriated lens to look at the deep relationships between the subjective experience
of malaise and the broader historical and social processes. this article and the contributions gathered in
this dossier aim to address social suffering from three different basic points of view: 1) the paradoxical
form by which power is taken from or given to the people; 2) the appropriation, by the institutions
478
CHiARA PuSSEtti E miCOL bRAzzAbEni
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15 (3): 467-478
that create the conditions for that suffering to take place, of “salvific” theories about the usefulness of
suffering in order to achieve a greater and future well-being of humanity; 3) the evidence of the extent
to which care and cure, the welfare-state, humanitarian protection, or even rights can be manipulated
and intertwined in the definition and organization of the modalities of national belonging or exclusion,
to the extreme reduction of the individual to his “bare life”.
KEYWORdS:
social suffering, agency and subjectivity, welfare policies.
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15 (3): 479-500
Identidade e pertença:
para além das dimensões materiais
do sofrimento social
Elizabeth Pilar Challinor
Um olhar antropológico sobre as relações sociais em dois microcosmos etnográficos – um bairro e um centro de saúde – revela as limitações de encarar
a pobreza material como o único critério para compreender os processos de
sofrimento social. De forma a explorar como o sofrimento social pode ser vivenciado através das identificações e das pertenças, a identidade étnica e a identidade profissional são examinadas como exemplos da identidade social em geral.
A relação dialética entre a identidade social e a identidade pessoal demonstra
como o poder não está depositado nas pessoas, mas depende das suas relações
sociais. Dado que o exercício de poder não pode ser garantido pelo simples
estatuto de uma determinada categoria social, urge procurar vivências e subjetividades nas fissuras das categorias, distinguindo entre uma categoria de prática
e uma categoria de análise, de forma a alargar o horizonte sobre a natureza dos
processos de sofrimento social.
PALAVRAS-CHAVE:
Cabo Verde, identidade, prática biomédica.
No SEU LIVRo ThE WEighT of ThE World: SoCial SuffEring in
Contemporary Society, Bourdieu (1999) argumenta que, se a pobreza material
servir, nas ciências sociais, como o único critério para analisar o sofrimento
social, será difícil descobrir todo o tipo de sofrimento social que existe nas
sociedades contemporâneas.1 Bourdieu refere-se, mais especificamente, às
categorias sociais – profissionais que trabalham no âmbito da luta contra a
pobreza – que ocupam lugares inferiores nos microcosmos onde estão inseridos, que não deixam de ser contextos privilegiados, em termos materiais,
1
Agradeço a Rosa Silva as correções do português e as críticas e sugestões feitas a versões anteriores
deste texto por Micol Brazzabeni, Chiara Pusssetti, Teresa Joaquim, Jeremias Carvalho e o parecerista
anónimo. Todas as limitações do texto são da minha responsabilidade.
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ELIzABETH PILAR CHALLINoR
etnográfica
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comparados com outros microcosmos. Se adotarmos o ponto de vista do
macrocosmo, o seu sofrimento torna-se relativo e quase insignificante comparado com o “verdadeiro” sofrimento de pobreza material. Porém, segundo
Bourdieu, se não houver espaço para incluir a dimensão subjetiva do sofrimento destas categorias sociais, o estudo do sofrimento social será incompleto,
por deixar de parte aquilo que ele considera serem vários tipos de “sofrimento
vulgar” que ocorrem no quotidiano (1999: 4).
A forma como cada categoria social vive e sente o posicionamento que ocupa
na sociedade é afetada pelas interações sociais que ocorrem dentro dos microcosmos sociais, tais como a família alargada, o trabalho e a vizinhança (Bourdieu
1999: 4). Estas interações sociais poderão ser fonte de sofrimento social coletivo ou individual, quando, por exemplo, contribuem para o isolamento, para a
exclusão e para o desempoderamento (disempowerment) das pessoas.
Ao adotar esta perspetiva, o objetivo deste artigo é examinar as formas
como o sofrimento social pode ser vivenciado, dentro de microcosmos sociais,
através das identificações e das pertenças. A fundamentação para esta análise
provém dos argumentos de Maalouf (2003) sobre a identidade e as pertenças,
da abordagem cognitiva de Brubaker (2004) na sua análise da etnicidade, e
do realismo crítico das teorias desenvolvidas por Archer (2000, 2003) sobre a
relação dialética entre a identidade social e a identidade pessoal.
Maalouf (2003: 19-20) afirma que cada indivíduo tem, sem exceção, uma
identidade composta de muitas afiliações ou pertenças. Ao isolar uma das suas
pertenças, o indivíduo pode partilhar uma espécie de parentesco com uma
grande quantidade de seres humanos, mas, juntando-as todas, encontra a sua
identidade pessoal e única. As pessoas são levadas a vivenciar a sua identidade
como se tivessem uma única afiliação ou pertença, segundo Maalouf, quando
sentem que essa afiliação está a ser ameaçada (2003: 26). Embora o objetivo
de Maalouf seja o de tentar compreender o que leva as pessoas a cometerem
massacres “em nome da identidade”, o objetivo da abordagem aqui adotada é
outro. Trata-se de investigar o “sofrimento vulgar” dos microcosmos em dois
casos etnográficos – um bairro e um centro de saúde – onde a identidade de
uma pessoa é reduzida a uma única afiliação, através das suas relações sociais.
o primeiro caso etnográfico refere-se a uma mãe cabo-verdiana, imigrante
em Portugal, envolvida em conflitos com os seus vizinhos, que expressava através das supostas rivalidades “intraétnicas” entre sampajudus – cabo-verdianos
originários das ilhas de Barlavento – e badius – cabo-verdianos originários das
ilhas de Sotavento. o segundo caso refere-se a uma médica que atendia a
criança da mãe cabo-verdiana, cuja identidade profissional de pediatra, a trabalhar rodeada de médicos de família, constituía o foco das tensões à volta do
qual se disputavam competências e pertenças.2
2
Ambos os nomes das pessoas foram modificados de forma a garantir o anonimato.
IDENTIDADE E PERTENçA : PARA ALéM DAS DIMENSõES MATERIAIS…
481
Ao escolher estes dois casos, que estão interligados, importa clarificar algumas questões. Em primeiro lugar, estes dois processos de sofrimento acontecem com pessoas que se relacionam, mas os processos, aparentemente, terão
pouca relação entre si. Conflitos intraétnicos terão algo a ver com conflitos
profissionais? Como já foi referido, ambos os casos descrevem situações em
que a pessoa é levada a vivenciar a sua identidade social como se uma única
afiliação – étnica, num caso, e profissional, no outro – a definisse. Em segundo
lugar, tanto a identidade étnica como a identidade ocupacional devem, segundo
Jenkins (1994), ser teorizadas como exemplos da identidade social em geral.
A escolha do caso da pediatra também pretende responder ao apelo de
Bourdieu (1999) para criar espaço, na análise, para os pontos de vista das
categorias sociais que ocupam uma posição inferior num mundo relativamente
mais privilegiado, de forma a investigar o “sofrimento posicional”. No caso da
pediatra, não se trata de uma posição inferior a nível material; trata-se da falta
de reconhecimento do seu trabalho, que, segundo Araújo (2005: 7), “associa,
na maioria das vezes, a recusa de autonomia e de poder para os trabalhadores”.
o exercício do poder não é automaticamente garantido pelo simples estatuto
de ser médico, depende das interações sociais no microcosmo social onde o
médico está inserido. E, neste caso, o facto de ambas as pessoas dos estudos
de caso se relacionarem nas consultas médicas é significativo. A falta de poder
que a pediatra sentia nas suas relações profissionais com o pessoal dentro do
centro de saúde, que contrasta com o seu exercício de poder médico durante as
consultas observadas com a mãe do bairro (e com outras mães cabo-verdianas),
evidencia a forma como o poder está “inscrito” (embedded) nas relações sociais
(Jenkins 1994: 199).
A análise que apresento em seguida oferece uma reflexão teórica sobre a
identidade e as pertenças para enquadrar cada estudo de caso.
QUEM SoU “EU”, QUEM é o “oUTRo”?
Maalouf (2003: 31) afirma que, quando encaramos a identidade como algo
composto por várias pertenças e, ao refletir, constatamos que algumas destas
pertenças até são incompatíveis entre si, deixa de ter sentido falar das nossas
relações sociais em termos de “nós” e “eles”. Ao reconhecer a multiplicidade e
incompatibilidade de todas as suas pertenças, um indivíduo que vai à guerra em
nome da religião ou da etnia, por exemplo, vai descobrir que existem pessoas
no “seu lado” com quem tem pouco em comum e pessoas do “outro lado” com
quem poderá ter muitas mais afinidades. Mas quando uma pertença parece estar
ameaçada, a necessidade de a defender pode ocultar essas outras afinidades.
Ser alvo de uma “definição externa” que entra em contradição com a “definição interna” que uma pessoa detém da sua própria identidade (Jenkins 1994)
pode criar sofrimento social, quando o indivíduo se sente impossibilitado de
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ELIzABETH PILAR CHALLINoR
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influenciar a perceção que os outros têm de si. Antes de discutirmos como esta
vivência pode afetar o self, a primeira questão a abordar é a de como teorizar
esse self. 3
Excluindo a dimensão transcendental da sua abordagem sociológica, Archer
(2000: 228) alega que a realidade é feita de três dimensões com as quais nós,
seres humanos, lidamos: a natural, que corresponde ao bem-estar físico, a da
prática, que corresponde à competência performativa, e a social, que corresponde ao valor próprio na ordem social. A identidade social – o resultado das
nossas relações com a sociedade – deve ser distinguida da nossa identidade
pessoal, que é mais abrangente, dado que emerge das nossas relações com as
três dimensões da realidade. Ambas as identidades estão entrelaçadas e o seu
aparecimento é um processo dialético, mas a identidade pessoal é o árbitro
que tem de regular as relações do self com toda a realidade. As três dimensões
podem estar em conflito: atendendo ao bem-estar físico, o professor, por exemplo, ao fugir de um cão que está a ladrar, e ao fazê-lo à frente dos alunos, pode
estar a comprometer a sua competência performativa. é preciso fazer escolhas,
separar as preocupações principais das preocupações secundárias, o que acontece através de um constante diálogo interno, testando os compromissos contra os diferentes comentários emocionais. Somos quem somos, alega Archer,
por causa daquilo que nos preocupa. Ao estabelecermos as nossas preocupações principais e ao acomodarmos as preocupações secundárias, definimo-nos
a nós próprios (Archer 2000: 10). Esta capacidade para a reflexividade não
pode ser relegada para a disciplina da psicologia, porque faz parte da prática,
interagindo com a socialidade (2000: 194). No entanto, somos mais do que a
sociedade faz de nós, devido à nossa capacidade de refletir sobre ela.
Além da distinção entre identidade pessoal e identidade social, Archer
(2000, 2003) também separa o “agente” do “ator”, o “eu” do “mim”. o agente
refere-se à nossa posição involuntária face à distribuição dos escassos recursos
da sociedade: podemos ser desfavorecidos ou mais privilegiados. Trata-se de
uma identidade coletiva. Não escolhemos o meio onde nascemos, que condiciona, mas não determina, os papéis que ocupamos como atores. o ator existe
no singular. Nem todas as pessoas conseguem ser ator, no sentido em que nem
todas conseguem encontrar um papel no qual sentem que podem investir a
sua pessoa, de forma que a identidade social correspondente exprima a sua
identidade pessoal (Archer 2003: 118). o “eu” pode sofrer ao descobrir que
se considera que o seu “mim” fala com uma pronúncia errada ou é desprezado
pela sua cor ou género e que o seu “eu” não pode fazer nada, nesse momento,
para mudar a situação (Archer 2000: 264). Para voltarmos aos argumentos de
Maalouf (2003), o “eu” é reduzido a uma ou poucas pertenças e, muitas vezes,
3
Segundo Damásio (2000: 233), não existe uma palavra própria nas línguas românicas para traduzir o conceito de self.
IDENTIDADE E PERTENçA : PARA ALéM DAS DIMENSõES MATERIAIS…
483
é a forma como olhamos para o “outro” que o torna prisioneiro. E mesmo que
se saiba que as afirmações que produzem generalizações e julgamentos sobre
povos inteiros ocultam a sua verdadeira diversidade, tal não deixa de ser uma
prática comum. os estereótipos oferecem o caminho da menor resistência, que
pode acabar, nalguns contextos extremos, em derramamentos de sangue.
As “nossas palavras” afirma Maalouf, “não são inocentes, nem sem consequência” (2003: 21-22, tradução minha).
Porque é que se continua por este caminho da menor resistência? No que
diz respeito aos estereótipos étnicos e raciais, Brubaker (2004) oferece uma
explicação para a sua persistência. Na sua abordagem cognitiva, sugere que,
em vez de analisar os estereótipos como deficiências cognitivas, como crenças
falsas ou exageradas que revelam a natureza preconceituosa de quem os utiliza, os estereótipos devem ser examinados de uma forma mais neutra, como
“estruturas cognitivas que contêm conhecimento, crenças e expectativas sobre
grupos sociais” (Hamilton e Sherman 1994, em Brubaker 2004: 72). Brubaker
afirma que tratar os estereótipos e categorias sociais como representações mentais de objetos sociais elucida a relação entre o indivíduo e o social nos processos de produção e utilização de “moldes” (templates) estandardizados para
tirar sentido dos objetos sociais (2004: 73). No caso mais específico das classificações étnicas, os indivíduos são despersonalizados de forma que a pessoa
singular seja transformada num exemplar de um grupo qualificado (Levine
1999, em Brubaker 2004: 73). Na terminologia de Archer (2000, 2003), o
“eu” vê-se transformado num “mim” – membro de uma coletividade com a
qual pode, ou não, identificar-se. No entanto, este mesmo “eu” também não
deixa de transformar o “eu” de outras pessoas em membros representativos
de coletividades – “eles”. é neste sentido que Brubaker argumenta que uma
abordagem cognitiva não equivale a uma abordagem individualista: trata-se de
“um conhecimento partilhado socialmente sobre objetos sociais” (2004: 86,
tradução minha). Trata-se de examinar fenómenos “sócio-mentais” (zerubavel
1997, em Brubaker 2004: 86) onde se cruzam a cognição e a cultura. Para este
efeito, é preciso estudar os contextos de interação ou “microcosmos sociais”
(Bourdieu 1999) onde os estereótipos e categorizações sociais são ativados
(Brubaker 2004: 76). E, como afirma Jenkins, também é preciso articular a
identidade social com a identidade pessoal:
“[…] social identity must be constructed as a proper subject for theorization in such a way as to allow for the inclusion of individual and collective
identities within a unified analytical framework. Even the most private of
identities is not imaginable as anything other than the product of a socialised consciousness and a social situation. Even the most collective of identities must in some sense exist in the awareness of individual actors” (Jenkins
1994: 218).
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o primeiro caso etnográfico evidencia o entrelaçamento entre a identidade
social e pessoal na forma como a etnicidade é ativada e vivenciada.
ETNICIDADE, géNERo E PERTENçAS
Depois de ter sido abandonada pelo pai das suas filhas, no bairro espontâneo
de cabo-verdianos onde Sara vivia, a relação com os vizinhos mudou drasticamente. o seu “eu” começou a sofrer ao descobrir como o seu “mim” passou a
ser tratado em função das rivalidades “intraétnicas” entre sampajudus e badius.
Realizei uma entrevista num banco de um jardim porque Sara não queria
levar-me à sua casa, dizendo que, se me levasse, os vizinhos iriam tornar a sua
vida ainda mais miserável, acusando-a de estar a pedir ajuda. Nem dentro de
casa estava à vontade; uma vez os vizinhos mandaram calar a sua filha quando
cantava. Explicou que os vizinhos não gostavam dela por ser sampajudu – “Eles
são como os portugueses com os pretos: racistas”.
Sara emigrou para Portugal para trabalhar como doméstica na casa de uma
senhora portuguesa. Em Cabo Verde, tinha abandonado a escola para ajudar a
mãe a sustentar a família. E era a própria mãe quem ia levantar o seu salário,
que não podia ser entregue a uma menor. Vir para Portugal fazia parte do imaginário cabo-verdiano do stranjer como um paraíso (Carling e Åkesson 2009:
136) onde iria melhorar as suas condições de vida. Quase todo o dinheiro
que ganhava enviava para a mãe em Cabo Verde, mas comia mal na casa da
senhora, onde havia outra empregada, portuguesa, que se aproveitava dela
para a sobrecarregar de trabalho. Depois conheceu um cabo-verdiano, Carlos.
Apaixonou-se por ele e deixou a casa da senhora para viverem juntos numa
barraca na cidade. Carlos era muito ciumento e não a deixava estar com os
amigos, nem falar ao telemóvel com eles. No entanto, Sara interpretava a sua
atitude como “prova de amor”. Aos poucos, foi perdendo as amizades e teve a
sua primeira filha, que tinha quatro anos na altura em que a conheci. Quando
realizámos a entrevista, já era mãe de novo, de um bebé de seis meses. Contou-me como o pai da sua filha tentou indiretamente provocar um aborto
porque não queria que tivesse outro bebé. Ele tinha uma relação com outra
mulher, que também tinha engravidado:
“Queria que eu tirasse o bebé. Chateava-me muito, chamava-me nomes.
Eu ficava nervosa, a pressão subia. Tudo aquilo para ver se eu abortava porque [com] toda aquela pressão, aquele nervosismo, a pessoa aborta mesmo.
Só que eu sou forte, senão perdia o bebé”.
Sara usou em casa um tratamento da terra para travar um possível início de
aborto espontâneo, não ousando ir sozinha ao hospital e sabendo que Carlos
não iria acompanhá-la. Depois de ter nascido a segunda filha, Carlos deixou
IDENTIDADE E PERTENçA : PARA ALéM DAS DIMENSõES MATERIAIS…
485
Sara para ficar com a outra mulher. Ficou desempregada, a viver na barraca,
num bairro ilegal entre o rio e uma linha férrea, que era preciso atravessar com
cuidado, dado que o lugar de travessia era entre dois túneis dos quais poderia
surgir a qualquer momento um comboio. A barraca deixava entrar a chuva em
certos lugares e a eletricidade era fornecida através de uma ligação clandestina.
os seus pedidos junto da Câmara Municipal para que lhe fosse atribuído um
alojamento social foram negados por habitar numa barraca ilegal e por ter um
visto temporário. Sara contou como passou uma noite em branco depois de
a filha se ter soltado repentinamente da sua mão à beira da linha férrea e ter
atravessado no momento em que se aproximava um comboio.
As condições de vida desta mãe cabo-verdiana, partilhadas pelos outros
residentes do bairro, constituem um sofrimento social coletivo, definido em
função da pobreza material e que deve ser analisado no contexto estrutural da
história da emigração de Cabo Verde. De acordo com a teoria de Archer (2000,
2003), os residentes são “agentes” posicionados desfavoravelmente na distribuição escassa dos recursos na sociedade. Porém, sem querer desvalorizar esta
dimensão material do sofrimento social, o objetivo desta análise é o de focar o
sofrimento social individual, criado através das interações sociais.
A principal razão que Sara apontava para querer sair do bairro não se referia
tanto às más condições materiais de vida, como ao seu isolamento social dentro do bairro. Cada vez que saía de casa, os vizinhos insultavam-na. Acordava
bem-disposta de manhã, a conviver com as suas filhas, mas, mal punha os pés
fora de casa, os vizinhos começavam a chamar-lhe nomes. E, como explicou,
não sendo uma mulher para permanecer calada, retribuía, desencadeando uma
discussão que lhe tirava toda a boa disposição para o resto do dia. Estava a ser
medicada para a depressão e disse-me, várias vezes, que as suas filhas eram a
única fonte de alegria na sua vida e que, por elas, tinha de ultrapassar os problemas, pois, se ela se deixasse ir abaixo, se adoecesse, se morresse, quem iria
tratar das filhas?
Entendia o seu isolamento social dentro do próprio bairro como fruto
de racismo entre os cabo-verdianos. Afirmou que, como eu já vivi em Cabo
Verde, não precisava de me explicar a rivalidade que existia entre badius e
sampajudus, e acrescentou: “Sampajudu e badiu não dá: é sempre rival”. Esta
rivalidade corresponde a uma divisão regional dentro do arquipélago que
facilmente ganha dimensões raciais, dado que os badius costumam ser mais
escuros, se não negros, e os sampajudus mais claros, ou até brancos (Batalha
2004: 74).
Embora Batalha (2004) afirme que, na diáspora, estas rivalidades geralmente desaparecem, tal não aconteceu nas vivências de Sara no microcosmo
social da sua vizinhança. Queixava-se de ser mal tratada por todos os vizinhos
desde que o pai das suas filhas, que é badiu, se foi embora. As relações entre
Sara e os seus vizinhos badius, que tinham sido cordiais antes da saída de
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Carlos, foram piorando, de tal maneira que evitava sair de casa. Sendo ela filha
de sampadjudu e de badiu, afirmou que os seus vizinhos tinham inveja “porque
o sampadjudu é mais bonito, olho azul, verde, cabelo mais fino. o badiu tem o
cabelo mais grosso, sabia?” Como afirma Brubaker, “os que são categorizados
são eles próprios categorizadores crónicos” (2004: 68, tradução minha).
Um posicionamento antropológico perante a rivalidade entre badius e sampadjudus obriga-nos a olhar em duas direções ao mesmo tempo. Esta rivalidade,
também documentada por outros antropólogos (Meintel 1984), tem de ser
analisada como um fenómeno social que é simultaneamente verdadeiro e falso.
é verdadeiro como categoria de prática em certos contextos, no sentido em que
Brubaker (2004) fala da hiperacessibilidade das categorizações e estereótipos
raciais para dar sentido aos acontecimentos. Esta hiperacessibilidade de categorias raciais e étnicas nas representações culturais coletivas faz com que as
pessoas interpretem mais rapidamente os eventos em termos étnicos ou raciais
do que em outros termos (2004: 79). Porém, esta rivalidade também tem de
ser encarada como falsa, no sentido em que é insuficiente como categoria de
análise. Em vez de encarar os grupos raciais, étnicos e nacionais como entidades substanciais, eles devem ser vistos como representações coletivas: formas
de ver o mundo e de interpretar a experiência social. Cabe ao investigador, não
somente analisar como as pessoas são classificadas, mas também como é que
palavras, situações, ações e gestos são classificados, interpretados e vivenciados
(Brubaker 2004: 77). Este alargamento do horizonte analítico ajuda a ver além
das categorizações étnicas.
No caso de Sara, a deterioração das relações sociais com os vizinhos na
sequência da saída de Carlos constitui uma situação significativa para o alargamento da análise. Vivendo em proximidade com os seus vizinhos badius, Sara
não partilhou com eles a notícia da saída de casa do seu marido, quebrando
desta forma as expectativas sociais de reciprocidade que se desenvolvem entre
vizinhos que partilham as mesmas condições precárias de vida. Segundo Sara,
os seus vizinhos terão interpretado o seu silêncio como sinal de superioridade
de sampadjudu. Analisada na perspetiva de Brubaker (2004), podemos afirmar
que esta interpretação era a forma mais fácil de dar sentido ao seu comportamento.
Do ponto de vista de Sara, recorrer à rivalidade entre badius e sampadjudus era a forma mais fácil e acessível de dar sentido ao seu sofrimento social,
enquadrando-o numa lógica de pertença coletiva. E a sua subjetividade é verdadeira. No entanto, esta rivalidade também tem de ser encarada como falsa,
uma vez que é insuficiente como enquadramento da análise do seu sofrimento
social. os dados apontam ainda para a necessidade de se enquadrar o seu testemunho pessoal numa análise, não somente sobre os efeitos materiais da emigração cabo-verdiana de mão de obra pouco qualificada, mas também sobre as
relações de género. Várias mães entrevistadas contam como os pais dos seus
IDENTIDADE E PERTENçA : PARA ALéM DAS DIMENSõES MATERIAIS…
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filhos não quiseram assumir a paternidade.4 os meus contactos com mulheres
cabo-verdianas também revelaram que Carlos era pai de mais crianças com
uma terceira mulher: uma situação que Sara desconhecia.
No seu estudo de relações conjugais na ilha de São Vicente, Åkesson (2004:
102) afirma que o comportamento polígamo é visto como sinal de que se é
um “verdadeiro” homem e é consequentemente encarado como algo natural.
Todavia, este comportamento não deixa de ser criticado, como demonstra o
conteúdo da seguinte conversa entre duas mulheres cabo-verdianas residentes
em Portugal, reproduzida a partir das notas de campo:
“– é aquela coisa, às vezes namora com outra. Por isso eu quero um português – comenta uma rapariga ansiosa porque desconfia que está grávida
do seu namorado cabo-verdiano em quem pouco confia.
– Será que não são todos iguais? – responde a amiga, que está à espera de
um bebé cujo pai também é cabo-verdiano.
– Não, não forçam. Tu dizes ‘não quero’, e eles aceitam. Cabo-verdiano,
não. Dizem que já esperaram muito e querem ‘prova de amor’. Se não, vão
para outra mulher”.
olhando agora para trás, Sara também lamenta a forma como perdeu as
amigas por ter acreditado no discurso de Carlos sobre a sua “prova de amor”.
Ao refletir sobre o assunto, vemos o árbitro da sua identidade pessoal (Archer
2000) em ação.
“Eu sou uma pessoa… às vezes, dá-me raiva de mim mesmo, eu quando
me apaixono por uma pessoa entrego tudo, a cabeça, esqueço tudo à
volta… E isto é que faz mal… Elas ficaram todas magoadas. Chegaram a
me dizer, disseram: ‘Sara, isso não se faz, homem não é certo, mas amigas é sempre certo, porque as amigas, se tu estás em situação grave, elas
podem tentar ajudar… e tu nos trocaste todas pelo Carlos’… Agora estou
arrependida, também a gente aprende com os erros, agora não faço isso
com ninguém”.
Estas palavras (gravadas numa entrevista) não podem, no entanto, ser
analisadas meramente como uma forma individual de raciocínio, dado que
a disposição natural que Sara afirma ter, de ser incapaz de resistir à sedução, corresponde às observações de Åkesson de como as mulheres em São
Vicente constroem a “fraqueza” feminina como “algo inerente e inevitável”
na sua sexualidade, que “predispõe as mulheres a serem incapazes de resistir
4
Estes dois estudos de caso enquadram-se numa investigação mais alargada sobre jovens mães cabo-verdianas em Portugal.
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a serem conquistadas” (2004: 108, tradução livre). No entanto, se olharmos
para as circunstâncias em que Sara foi viver com Carlos, vemos que também
se tratava de uma estratégia de sobrevivência. Dado que não se sentia bem no
seu trabalho de empregada doméstica interna, numa casa onde achava que
estava a ser explorada, juntar-se a Carlos foi uma forma de sair dessa situação.
Trocou a sua precária independência económica para desempenhar o papel
tradicional cabo-verdiano de “mulher” dependente do “marido” (embora não
fossem casados). Sujeitou-se à sua autoridade, perdendo, no processo, as amigas. Seguiu as regras do “contrato”, segundo o qual o seu corpo lhe pertencia,
mas era responsabilidade do homem mantê-lo (Massart 2005: 252). Tiveram
filhos, o que, segundo Massart, transforma a “namorada” em “mulher” com
mais “direitos” para reivindicar a responsabilidade do homem (2005: 252).
Terá sido por isto que Carlos não a apoiou durante a segunda gravidez, quando
estava em situação de ameaça de aborto espontâneo? Estaria também já sujeito
às reivindicações da outra mulher grávida com quem tinha relações? Durante
a entrevista, Sara afirmou que os seus vizinhos badius a criticavam por não ter
conseguido impedir que o seu marido a deixasse:
“Deitam piada, que eu penso que sou melhor que eles mas que não passo
de uma coitada porque, quer dizer, o meu marido fez-me aquilo. Não consegui apresar o meu marido dentro de casa. Porque ninguém não vai apresar
ninguém porque ninguém é dono de ninguém. Eles acham que eu não tive
pulso, força, para ter o meu marido dentro de casa”.
A falta de “pulso” não correspondia ao novo modelo emergente da feminilidade que, acompanhando as transformações económicas e sociais de Cabo
Verde nas últimas décadas, não se submete tão facilmente à dominação masculina, negociando os termos da sua relação (Massart 2005). Vejamos, a título de
exemplo deste novo modelo, a afirmação de uma estudante cabo-verdiana que
cortou as relações com o pai do seu filho, residente em Cabo Verde, quando
ele recusou assinar o termo de responsabilidade para que ela pudesse enviar
o filho, nascido em Portugal, para a avó materna em Cabo Verde, de forma a
poder continuar com os estudos em Portugal: “Ele não pode mandar em tudo
na minha vida. Isso não é vida para mim. Em Cabo Verde, homens mandam
nas mulheres, as mulheres não têm voz”.
Durante a entrevista que fiz e em todas as ocasiões em que acompanhei
Sara nas consultas de pediatria das filhas, o mau relacionamento com os
vizinhos parecia constituir a sua maior preocupação. Ciente do desfasamento
entre o seu “eu”, com o qual se identificava, e um “mim” que lhe era imposto
pelos vizinhos – convencida, coitada, sem “pulso” –, a sua identidade pessoal velava pela sua identidade social, pelo seu valor próprio (self-worth) na
ordem social. Acreditava que, livrando-se dos vizinhos, iria ultrapassar os
IDENTIDADE E PERTENçA : PARA ALéM DAS DIMENSõES MATERIAIS…
489
seus problemas: “Eu tenho certeza que se eu sair de lá vou vencer. Porque eu
tenho muita força e as minhas filhas dão-me muita força. Muita! Porque lá
é toda uma pressão. Eu saio para a rua e deitam piada porque eu já não falo
com ninguém lá…”
Mesmo sem ter acesso aos pontos de vista dos vizinhos badius de Sara e
deixando alguma margem de tolerância para as possíveis “distorções” no seu
relato, não deixa de ser evidente como as interações sociais dentro do bairro
ativaram estereótipos de etnicidade e de género (Brubaker 2004: 76). o papel
dos insultos verbais e da má-língua na ativação de categorizações étnicas é
salientado por Jenkins:
“Verbal abuse and violence, in particular, are connected with the beating
of ethnic boundaries through the enforcement of definitions of what the
ethnic ‘other’ is, or may or must do. Issues of power and control are at the
heart of the matter.
Power and control are also central to sexual relationships… gossip is one
of the most effective ways of policing inter-ethnic sex and friendship relationships” (Jenkins 1994: 211-212).
Será que as “piadas” sobre a incapacidade de manter o marido dentro de
casa, ao ativar estereótipos de etnicidade, segundo os quais os sampajudus se
consideram superiores, serviram para insinuar que Carlos não devia ter relações com uma mulher sampajudu e para afirmar a superioridade e maior poder
da mulher badiu?
Do ponto de vista de Sara, estas “piadas”contribuíram para o seu isolamento
e sofrimento social. Passava os dias fechada em casa a ver televisão. A vontade
e a capacidade de alterar a sua posição involuntária face à distribuição dos
escassos recursos da sociedade (Archer 2000), procurando, por exemplo, um
novo trabalho, também foram afetadas por estas relações sociais, visto que
tinha a “certeza” de “vencer” se saísse do microcosmo do seu bairro. Falava de
arranjar uma creche para a bebé e de procurar trabalho, mas o primeiro passo
a dar era, sempre, sair do bairro.
o caso analisado em seguida elucida de uma forma patente o argumento
de Bourdieu sobre como a experiência do posicionamento na sociedade é afetada pelos efeitos das interações sociais dentro dos microcosmos sociais (1999:
4-5). Neste caso, passamos da vizinhança para o trabalho.
o SoFRIMENTo “PoSICIoNAL”
Articular o sofrimento social com questões de identidade foi uma abordagem
que surgiu no contexto de uma investigação em curso sobre as vivências de
maternidade e de paternidade de imigrantes cabo-verdianos residentes no
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Norte de Portugal.5 o objetivo principal da pesquisa é procurar compreender de
que forma estas vivências – transmitidas em narrativas, através de entrevistas e
conversas informais, e observadas no dia a dia em consultas médicas – podem
contribuir para uma teorização do self.
o trabalho de campo anterior foi orientado por uma perspetiva teórica sobre
a hegemonia do poder médico.6 Existem muitos estudos sobre como a experiência de gravidez e de parto, em contexto hospitalar, pode alienar a mulher do
seu próprio corpo, que é transformado num objeto sobre o qual perde o controlo (Marck 1994; Davis-Floyd e Sargent 1997). Este sentido de alienação,
provocado pela hegemonia do conhecimento biomédico, será provavelmente
mais forte para a mulher imigrante, dado que as suas vivências culturais não
coincidem com a cultura dominante. No seu caso, não somente a experiência
de parto, mas também divergências culturais nos cuidados, na forma de tratar
o bebé, podem criar sentimentos de alienação que resultam num questionamento do self (Moro, Neuman e Réal 2008). Nesta ótica, os profissionais de
saúde podem ser vistos como “instrumentos” de uma ciência biomédica que
disciplina os corpos (Foucault 1979) e, nalguns casos, sujeita o “corpo-ser”
(Van Wolputte 2004) a uma violência simbólica (Bourdieu 1977).
Porém, a identidade profissional ou ocupacional também constitui uma das
mais importantes identidades sociais; além de servir de base para garantir o
sustento, também está intimamente ligada ao estatuto social (Jenkins 1994:
205) que é criado através do relacionamento com o “outro”:
“[…] a psicodinâmica do trabalho salienta quanto a construção da identidade assenta no campo social, em referência ao necessário olhar do outro:
o indivíduo inscreve-se nas relações sociais de trabalho onde são operantes as regras, os códigos próprios e as ideias e o julgamento do outro […]”
(Araújo 2005: 7).
A falta de reconhecimento no trabalho pode ser fonte de sofrimento mental
(Araújo 2005) e social. Sara deixou o trabalho, onde sentia que estava a ser
explorada, para viver no bairro com Carlos. No estudo de caso que apresento
em seguida, vemos como as relações sociais de trabalho podem contribuir para
o “sofrimento posicional” (Bourdieu 1999: 4).
5
Contrato de investigação financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Portugal, ao
abrigo do Programa Ciência 2008, e correspondente ao projeto de investigação “Immigrant motherhood
at the cross-roads: engaging with self, others and the State”.
6
Trabalho de campo desenvolvido no âmbito de uma bolsa de pós-doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Portugal (SFRH / BPD / 36914 / 2007), correspondente ao projeto
de investigação “Ciência médica, cultura e poder: a produção de saberes ‘transfronteiriços’ sobre a
maternidade”.
IDENTIDADE E PERTENçA : PARA ALéM DAS DIMENSõES MATERIAIS…
491
Conheci a pediatra Inês quando acompanhei várias mães cabo-verdianas
que levavam os seus bebés às consultas no centro de saúde onde ela trabalhava.
A pediatra mostrou um interesse ativo pelo meu trabalho e quando conheceu
Sara, numa consulta, pediu-lhe autorização para me dar o seu contacto, e foi
assim que comecei a acompanhar Sara às suas consultas. Inês também quis
ajudar-me a conseguir autorização para desenvolver a pesquisa num hospital e
por isso apresentou-me aos seus antigos colegas e, à medida que fomos convivendo e conversando, comecei a ter acesso aos seus pontos de vista.
Habituada a trabalhar no hospital, resolveu mudar de local de trabalho,
por razões familiares. A fazer urgências dois fins de semana por mês, e tendo
o marido exigências profissionais que também requeriam frequentes ausências
de casa, Inês resolveu concorrer a vagas abertas para pediatras nos centros de
saúde, de forma a ter mais tempo livre para acompanhar os seus filhos. Quando
foi selecionada, pôde escolher entre vários centros de saúde e gostou muito da
entrevista que teve com o diretor do centro onde resolveu ficar. No entanto, passado algum tempo, Inês queixava-se agora de que não era bem-vinda. Passava
alguns dias inteiros sem ver uma única criança, porque somente um dos médicos de família do centro encaminhava os bebés e as crianças doentes para ela.
Explicou-me que a Administração Regional de Saúde colocou pediatras nalguns centros de saúde para descongestionar os hospitais de crianças doentes,
mas ela quase nunca via crianças. No início, o diretor do centro tinha sugerido
algumas alterações ao seu programa de trabalho, às quais, na altura, não deu
importância: dar prioridade aos bebés sem médico de família, ver os bebés dos
médicos que estavam de baixa e ver os bebés do diretor, porque, como diretor,
não podia ter consultório. Agora, apercebia-se de que a queriam para “tapar
buracos”, porque não via outros bebés a não ser estes. Inês sentia-se de mãos
atadas: “Eles com três meses e eu com cinco anos de especialização! Só faço
consultas de rotina! Para quê estar no centro de saúde?”
Contou como o único médico no centro com quem falava um pouco veio
pedir-lhe para atualizar o plano alimentar para crianças que estava a ser usado
no centro de saúde. Depois de ter feito o plano, o médico, com poder de decisão sobre os programas de atividades a realizar no centro de saúde, recusou
aceitar as alterações propostas, alegando que os médicos de família sabiam
muito bem o que faziam. Mas, segundo a pediatra, os médicos de família não
estavam a par das novas recomendações, porque, por exemplo, não assistiam,
como ela, às conferências sobre pediatria.
Tendo notado, durante o meu trabalho de campo, que outros médicos de
família, noutros centros de saúde, recomendavam comida sólida aos bebés de
quatro meses, perguntei-lhe sobre esta prática e Inês respondeu-me que correspondia às recomendações de há vinte anos e que, agora, se recomendava a amamentação exclusiva até aos seis meses. Esta orientação também está de acordo
com as recomendações da organização Mundial de Saúde, que vi expostas em
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cartazes com fotografias de mães a amamentarem os seus bebés nos serviços de
obstetrícia e pediatria dos hospitais.
A pediatra sentia-se isolada. Não convivia com os outros médicos nem com
outras pessoas no centro de saúde. Contou-me que, um dia, convidou uma
auxiliar de ação médica para tomar café com ela no centro e pagou-lhe o café.
Soube depois que a superior hierárquica da auxiliar de ação médica reprovou
a auxiliar, dizendo que, nessa instituição, o pessoal de limpeza falava com o
pessoal de limpeza, os enfermeiros com os enfermeiros e os médicos com os
médicos. Até chegou a ameaçá-la com mudança de local de trabalho. Sem ter
acesso aos pontos de vista da superior hierárquica da auxiliar de ação médica,
não é possível saber o que ativou esta interdição de sociabilidade, no centro
de saúde, entre as categorias profissionais; mas, seja o que for, elucida bem a
maneira como uma pessoa pode ser reduzida, num determinado microcosmo
social, a uma única pertença. De todas as formas, os efeitos do poder institucional nas relações entre médicos, enfermeiros e auxiliares (Seixas e Pereira
2005; Carapinheiro 1998) oferecem, certamente, um enquadramento contextual significativo para compreender a reação da superior hierárquica.
No seu estudo sobre os serviços hospitalares portugueses, Carapinheiro
(1998: 104-105, 79) descreve como a “segregação física” entre médicos, enfermeiros e doentes impõe hierarquias. As regras de circulação no serviço, a definição dos lugares onde cada um deve estar são permanentemente acionadas,
servindo como uma forma de controlo social, na qual o saber dos enfermeiros
é periférico e o seu poder delimitado pelo poder médico. A afirmação feita pela
superior hierárquica da auxiliar de ação médica que tomou café com a Inês, de
que o pessoal de limpeza falava com o pessoal de limpeza e os médicos com os
médicos, sugere que a mesma cultura de segregação funcionava no centro de
saúde. Será que, ao tomar café com a pediatra, a auxiliar de ação médica estava
a gozar de um privilégio reservado aos seus superiores? Carapinheiro constatou
que só os enfermeiros-chefes entravam, ocasionalmente, na sala dos médicos
para resolver certos problemas:
“Ao penetrar neste lugar reforça a sua posição de prestígio hierárquico,
fazendo desta possibilidade de convívio direto e informal com os médicos
um capital cultural para investir oportunamente noutros domínios da sua
ação profissional” (1998: 104).
Mas o poder, como Foucault (1980) salienta, não é depositado nas pessoas.
No centro de saúde, onde estava tão isolada, pouco valia à pediatra a sua posição hospitalar de prestígio hierárquico. Se uma criança sujava o chão do seu
consultório, ninguém atendia o telefone quando a pediatra ligava a pedir que
o fossem limpar. Também veio a descobrir que, no balcão de atendimento do
centro, mães e filhos eram mandados embora com o pretexto de que ela estava
IDENTIDADE E PERTENçA : PARA ALéM DAS DIMENSõES MATERIAIS…
493
ausente, ou não estava disponível, quando, na realidade, estava sentada no seu
consultório sem fazer nada. Começou a aconselhar as mães a irem diretamente
ao seu consultório sem passar pela receção.
Também estava a tratar uma depressão que a obrigava a estar de baixa, de
vez em quando; no entanto, pedia sempre ao centro de saúde para avisar os
seus pacientes, mas veio a descobrir que o pessoal na receção não os avisava e os
pacientes chegavam ao centro para ter uma consulta, em vão. Quando voltava
para o trabalho, o pessoal administrativo também não avisava as pessoas de
que ela já estava de regresso. Às vezes, o pessoal administrativo marcava-lhe
as consultas de forma muito inconveniente. Por exemplo, após um período de
baixa verificou que o pessoal administrativo tinha marcado um dia inteiro com
quinze consultas, seguido de outro dia com uma consulta no início da manhã
e outra no fim da tarde, e dias a seguir sem nada. Mesmo sem consultas, era
obrigada a ficar o tempo todo no centro de saúde. Inês queixou-se ao colega do
centro – o único que lhe encaminhava os bebés – e este respondeu-lhe:
“– Já ouviste falar de um médico queixar-se por falta de trabalho? Escuta,
Inês: pagam-te, não pagam?
– Sim, pagam – respondeu a Inês.
– Então estás-te a queixar de quê?”
Esta reação do colega corresponde às atitudes comuns descritas por Bourdieu
face ao “sofrimento posicional” dos indivíduos que ocupam uma posição inferior dentro de um universo relativamente privilegiado:
“[…] how painfully the social world may be experienced by people who
[…] occupy an inferior, obscure position in a prestigious and privileged universe. The experience is no doubt all the more painful when the universe
in which they participate just enough to feel their relatively low standing is
higher in social space overall. This positional suffering, experienced from inside
the microcosm, will appear, as the saying goes ‘entirely relative’, meaning
completely unreal, if we take the point of view of the macrocosm and compare it to the ‘real suffering’ of material poverty. This is invariably the point of
reference for criticism (‘You really don’t have anything to complain about’),
as for consolation (‘You could be worse of, you know’)” (Bourdieu 1999: 4).
o argumento do salário não consolava Inês, cuja frustração seria ainda agravada por saber que, se voltasse a trabalhar num hospital, deixaria de ocupar
uma posição subalterna.
Tive oportunidade de efetuar alguma triangulação que, ao surgir naturalmente no decorrer do meu trabalho de campo, corroborou as queixas da
médica. Enviei uma mensagem de telemóvel à Lisandra – outra mãe que eu
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acompanhava nas consultas pediátricas de Inês – para saber quando era a próxima consulta do seu bebé. Ela respondeu-me que a médica estava doente.
Passada meia hora, telefonou-me a dizer que já tinha marcado uma consulta,
e que, afinal, a médica já tinha voltado para o trabalho há muito tempo, mas,
contrariamente ao prometido, os administrativos não a tinham avisado, nem
por carta, nem por telefone. Também conheci uma jovem mãe angolana, à
espera de uma consulta de recurso noutro centro de saúde, que, ao conversar
com a mãe cabo-verdiana que eu acompanhava, descobriu que ambas conheciam a pediatra Inês e declarou ter desistido das suas consultas. Afirmou que,
quando a sua filha tinha à volta de três ou quatro meses, a pediatra adoeceu e
o pessoal administrativo do centro ficou de enviar uma carta para casa quando
a Dr.ª Inês voltasse ao trabalho; no entanto, a carta nunca foi enviada: “Cheguei a ir lá duas vezes com o meu marido mas ela ainda não estava. Depois,
não disseram mais nada… Volta e meia tem depressões, esgotamento. Depois
resolvi ir ao privado porque não posso estar à espera”.
Também observei, no próprio centro de saúde onde a pediatra trabalhava,
que havia algum mal-estar nas relações entre Inês e as enfermeiras. Quando
acompanhava as mães nas consultas com a pediatra, reparava que, algumas
vezes, as enfermeiras pareciam pesar os bebés de má vontade, e ouvi uma vez
uma enfermeira comentar à outra: “é a tal situação”. Não foi possível conquistar a confiança das enfermeiras para compreender o conteúdo deste comentário, que deixa entender, no entanto, que existia algum descontentamento.
Ao desabafar comigo, Inês afirmou que a cultura do centro de saúde era diferente da cultura dos hospitais e sentia que os médicos de família achavam que
o lugar dela era no hospital. Segundo Carapinheiro, a medicina interna – “uma
prática de medicina que preserva a perspetiva global e sistémica” (1998: 219)
– é desvalorizada nos hospitais face às especializações médicas que ganham
mais terreno, prestígio e poder. Colocada num centro de saúde, a Inês estava
rodeada de médicos de medicina geral. Poderia a presença de uma pediatra
ameaçar a identidade profissional dos médicos de família? observações de
uma consulta de desenvolvimento da criança, noutro centro de saúde, sugerem que poderia ser o caso. Nesta consulta, o pediatra recusou-se a responder
às perguntas dos pais porque dizia ser uma questão de ética profissional não
interferir com o médico de família.
Se os médicos terão sentido a presença da pediatra como ameaçadora,
como compreender a atitude do pessoal administrativo? Conflitos entre o
poder médico e o poder administrativo também ocorrem nos hospitais, onde,
segundo Carapinheiro, a tentativa de conciliar o exercício da medicina com uma
gestão racionalizada dos recursos, de forma a não interferir demasiado com o
exercício da profissão médica, é sempre tensa (1998: 134-148). Um caso de
exercício de poder administrativo, contado pela Inês, poderá ter contribuído
para a desvalorização do papel da pediatra no centro de saúde.
IDENTIDADE E PERTENçA : PARA ALéM DAS DIMENSõES MATERIAIS…
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A pediatra conta que, nos primeiros tempos, recebeu no consultório um
pai que ia pedir uma declaração médica sobre a deficiência da filha para
poder pedir subsídios à Segurança Social. Como foi sem a criança, a pediatra
pediu que marcasse outra consulta e que levasse a criança para ser observada.
o pai respondeu: “Para quê? é só uma deficiente, coitada!” Mas marcou a
consulta para o dia seguinte. No entanto, não apareceu, e quando, no fim do
dia, a pediatra saiu do centro de saúde, viu o pai também a sair, sozinho, de
outra consulta médica. Descobriu que o pai tinha conseguido marcar uma
consulta com outro médico através da receção e foi queixar-se ao diretor do
centro. Achava que o pessoal administrativo e o médico de família tinham
respondido aos interesses monetários do pai, em detrimento das necessidades médicas da criança. Já tinha constatado, através do sistema informático,
que o pai não levara a criança a nenhuma consulta no hospital. No entanto,
o diretor afirmou que não havia problema porque este médico tinha sido
nomeado como médico de família do pai, antes da consulta. A funcionária
da receção nomeou o médico, sem o consultar, para poder justificar a marcação da consulta sem ter que passar pela pediatra. Inês estava furiosa, por
se tratar de um caso grave de interferência no seu trabalho como médica,
e por pôr em risco a saúde de uma criança. A partir deste momento, a funcionária na receção deixou de colaborar com ela. De acordo com os relatos
da pediatra, este acontecimento específico terá contribuído para o processo
do seu isolamento no centro de saúde, reforçando ou ativando rivalidades
profissionais, e foi seguido de mais casos de interferência no seu trabalho
como médica.
Durante uma consulta na qual participei com a Lisandra e com a sua filha,
Inês contou que, quando voltou ao trabalho depois de ter estado doente,
várias mães se queixaram de terem sido mandadas embora pelas administrativas sem conseguir ter uma consulta de rotina, porque estas afirmavam que,
se o bebé não estava doente, não precisava de consulta. os bebés ficaram
três meses sem serem vistos. Inês afirmou que o desenvolvimento dos bebés
jovens precisa sempre de ser monitorizado. Lisandra também se queixou nesta
consulta de que, durante a baixa da pediatra, tinha levado a filha ao centro de
saúde para que fosse vista por um médico, pois estava com uma tosse muito
forte, e que a consulta lhe foi negada por uma enfermeira ao constatar que
a criança não tinha febre. Durante a consulta que acompanhei, a pediatra
observou a bebé e, embora não tivesse febre, verificou que tinha uma infeção
no ouvido. Disse que isto era um bom exemplo de como o pessoal administrativo não devia interferir com o seu trabalho, por não ter conhecimentos
adequados.
As interações sociais dentro do microcosmo social do trabalho, onde o pessoal do centro desvalorizava o papel e os conhecimentos da pediatra, contrastam com as interações sociais durante as consultas, entre a médica e os seus
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pacientes, através das quais o “conhecimento autoritativo” (Jordan 1997) foi
construído.7
CoNHECIMENTo, PoDER E SoFRIMENTo SoCIAL
As mães cabo-verdianas levavam os seus filhos às consultas da pediatra Inês
porque não tinham médico de família no centro de saúde onde estavam inscritas e existia um acordo, neste sentido, entre os dois centros. Como as consultas
da pediatra ficavam mais afastadas do centro da cidade, às vezes, algumas
mães optavam pelas consultas de recurso com médicos não especialistas do
outro centro de saúde.
Numa das consultas com Lisandra, a pediatra estranhou estar a faltar uma
dose na vacina para a bebé, que agora já não poderia ser administrada por ser
demasiado tarde, e perguntou quem a tinha receitado. A mãe respondeu que
a vacina tinha sido receitada pela médica de recurso: “Mas a médica disse que
com um ano é só uma dose”. E a pediatra discordou: “Se a médica não explica,
a mãe não tem culpa. A mãe não sabe, a enfermeira que lhe dá a injeção também não sabe. A médica tinha que explicar”.
Depois da consulta, Lisandra mencionou duas amigas que também só
tinham comprado uma dose de vacina para os seus filhos e acrescentou: “Por
isso, não gosto de ir àquele centro de saúde. Um médico diz uma coisa, outro
médico diz outra coisa. Antes eu ia às consultas dos dois lados, agora só vou
aqui. Ela é que é a pediatra”.
Jordan (1997: 56) afirma que, em muitas situações, coexistem diferentes
sistemas de conhecimento, igualmente legítimos, e as pessoas servem-se de
todos, segundo o contexto e as suas necessidades. o “conhecimento autoritativo” surge quando um tipo de conhecimento ganha mais legitimidade, porque
explica melhor o estado do mundo para os objetivos em questão (eficácia) ou
porque está associado a uma base de poder mais forte (superioridade estrutural) e, normalmente, por estas duas razões juntas. Uma das consequências disto
é que os outros tipos de conhecimento são desvalorizados ou postos de parte.
A forma como os pacientes contribuem para a reprodução do “conhecimento autoritativo”, no contexto da consulta, evidencia-se no caso de Sara
quando a pediatra, ao constatar que a barriga da sua filha estava dura, recomendou muita água, sopa, legumes e salada e Sara perguntou: “E arroz e carne,
não?” A pediatra olhou para ela e, com um ligeiro ar de irritação, respondeu
que estava a falar dos intestinos. Pareceu-me, que, ao fazer esta pergunta, Sara
estava à procura de uma aprovação da dieta alimentar quotidiana da filha, em
7
o termo “autoritativo” (authoritative) não deve ser confundido com o termo “autoritário”, porque
o “conhecimento autoritativo” não ganha o seu estatuto através da imposição do poder, dado que a sua
legitimidade é construída através do consenso.
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termos gerais. Se nas interações sociais da consulta o conhecimento da pediatra era solicitado, nas suas relações sociais, com os médicos não especialistas,
era posto de parte, por exemplo, quando a sua proposta de atualização do
plano alimentar para bebés foi rejeitada por um colega.
Será esta desautorização por parte dos colegas que explica o aparente
excesso de zelo ou autoridade médica de Inês, em alguns momentos durante as
consultas, onde parecia transformar o mais simples saber à volta dos cuidados
de bebé num conhecimento exclusivo da profissão médica? Quando Lisandra
comentou, por exemplo, que a filha gostava muito de lavar os dentes, a pediatra olhou-a fixamente e perguntou com ar muito sério como é que estava a
fazer. A mãe, apanhada de surpresa com a intensidade da pergunta, hesitou,
e depois respondeu que estava a usar uma escova de dentes pequena e uma
pequena quantidade de pasta de dentes. Inês interrompeu-a, dizendo, num
tom intenso e imperativo, que devia pegar na criança, encostá-la com as costas coladas contra ela e a cara virada para frente, que podia usar um banco,
porque era pesada, mas para ter cuidado para que não caísse, e depois escovar
para cima e para baixo com uma escova pequena e qualquer pasta de dentes.
A expressão na cara de Lisandra parecia revelar um sentimento de surpresa
misturado com um ligeiro divertimento.
A forma como o conhecimento da pediatra era valorizado nas consultas e
posto de parte pelo pessoal do centro corrobora o argumento de Jordan (1997:
59) de que são as interações sociais que determinam, em cada contexto, que
tipo de conhecimento pode ser produzido e manifestado e que outro não é
permitido.
os conflitos com o pessoal administrativo e médico no centro de saúde
começaram a afetar a vida pessoal da pediatra. Ela manifestou o desejo de
proteger a sua família, ao afirmar que não podia deixar a sua situação profissional afetá-la demasiado, porque esta tinha contribuído para a sua depressão
e quem sofria as consequências eram os seus filhos e marido. Sara tinha feito
uma afirmação parecida quando disse que tinha de tentar ignorar os vizinhos
badius porque, se ela adoecesse ou morresse, não sabia quem tomaria conta das
suas filhas.
os casos de sofrimento social analisados aqui não são mediáticos; não se
trata de situações extremas de violência ou brutalidade. Trata-se do “sofrimento vulgar” (Bourdieu 1999) que ocorre no quotidiano, trata-se da “faca
mole” – soft knife – (Kleinman, Das e Lock 1996) de processos rotineiros de
opressão, onde as “palavras não são inocentes” (Maalouf 2003: 22) e ferem
subjetividades. o enfoque do argumento de Brubaker (2004: 77-78), sobre
como a etnicidade é ativada quase automaticamente, de forma não consciente
ou deliberada, chama a nossa atenção sobre como os atores veem e interpretam
o mundo social. A afirmação da superior hierárquica da auxiliar de ação médica
de que os auxiliares só falam com os auxiliares e os médicos só falam com os
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médicos equipara-se à afirmação de Sara de que “Sampajudu e badiu, não dá: é
sempre rival”. Neste caso, pouco interessa ao investigador tentar classificar os
atores sociais. Vimos como, em ambos os casos, foi a partir de circunstâncias
particulares que as categorizações sociais foram ativadas, criando crispações
nas relações sociais.
Ambos os casos discutidos aqui abrem fissuras nas categorias que habitualmente condicionam o nosso olhar sobre os processos de sofrimento social
(Kleinman, Das e Lock 1996). Não se trata da opressão do imigrante africano pelo nativo europeu e também não se trata unicamente da hegemonia do poder médico face ao paciente. é a partir destas fissuras que vemos
como o poder é implicado na construção social de identidades (Jenkins 1994:
219) e reconhecemos a necessidade de olharmos simultaneamente em duas
direções opostas, atentos à diferença entre uma categoria de prática e uma
categoria de análise (Bourdieu 1977; Brubaker 2004). E é também a partir
destas fissuras que reconhecemos a utilidade de se fazer análise comparativa.
o sofrimento social de duas mulheres com estatutos sociais diferentes e com
posicionamentos desiguais face à distribuição dos recursos da sociedade foi,
contudo, vivenciado e expresso, em cada caso, através das pertenças, revelando processos sociais e vivências semelhantes que apontam para a nossa
humanidade comum (Archer 2000). Se a noção de uma humanidade comum
não for posta em causa pelo investigador, o seu reconhecimento nem sempre
está presente nas categorias da prática dos atores sociais que criam barreiras
insuperáveis entre o “eu” e o “outro” que acabam, em alguns casos, por gerar
situações extremas de violência. Explorar como o sofrimento social pode ser
vivenciado através das identificações e das pertenças constitui um excelente
ponto de partida para responder ao desafio de Bourdieu (1999) de alargar os
nossos horizontes de forma a que a pobreza material não seja o único critério
utilizado para reconhecer e compreender a natureza do sofrimento social nas
sociedades contemporâneas.
IDENTIDADE E PERTENçA : PARA ALéM DAS DIMENSõES MATERIAIS…
499
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Identity and belonging: beyond the material dimensions of social suffering Elizabeth Pilar
Challinor Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA-UM), Universidade do Minho,
Portugal
[email protected]
An anthropological view of social relations in the microcosms of a neighbourhood and a health centre
reveals the limitations of using material poverty as the sole criterion for understanding processes of
social suffering. In order to explore the ways in which social suffering may be experienced through
identifications and belonging, ethnic and professional identity are both examined as examples of social
identity. The dialectic relationship between social and personal identity shows how power is not deposited in people, but rather depends upon their social relations. Since the exercise of power is not
guaranteed by the mere status of a given social category, we need to focus on the experiences and
subjectivities to be found in the cracks between categories, always on guard to distinguish between
categories of practice and categories of analysis, in order to widen our horizons regarding the nature of
processes of social suffering.
KEYWoRDS:
Cape Verde, identity, biomedicine.
etnográfica
outubro de 2011
15 (3): 501-521
Suspeito empreendedor de si:
trajeto e sofrimento
de um adolescente durante
intervenção socioeducativa
Paulo Artur Malvasi
Este trabalho analisa a natureza social e política do sofrimento de um jovem
em cumprimento de medida socioeducativa. Partindo de uma perspectiva foucaultiana do poder, o artigo considera a experiência subjetiva do jovem em sua
interação com o sistema socioeducativo; observa as manifestações do poder na
ação de uns sobre os outros, no agir reiterado em torno de saberes e poderes
que delineiam os modos de ação sobre o campo de ação do jovem. A análise da experiência subjetiva de um adolescente durante o cumprimento de
medida socioeducativa revela o modo pelo qual a intervenção pode situá-lo no
limite das possibilidades de integração, intensificando as aflições de uma vida
sob constante suspeição. A abordagem adotada permite observar de que modo
o jovem elabora significados sobre o sistema socioeducativo e como expressa
por meio de palavras, gestos e movimentos as contradições desta política
pública. A posição do jovem como alguém que deve explorar individualmente
os riscos, as perdas e as benesses das suas escolhas constitui uma zona de confluência entre o discurso socioeducativo e o do crime. Simultaneamente, um
aparato governamental difuso e um modelo de gestão do comércio de drogas
acompanham o jovem no trajeto de cumprimento de medida socioeducativa,
cada qual dos sistemas com suas próprias estratégias e esquemas de gestão da
sua vida.
PALAVRAS-CHAVE:
sofrimento social, poder e violência, medida socioeducativa.
A máximA dE quE A EtnogRAfiA SE CARACtERizA Como A AboRdAgEm
das experiências humanas que se constroem a partir de uma experiência pessoal
constitui possivelmente, para os “não iniciados”, um dos pontos mais intrigantes da pesquisa antropológica. Em minha atuação profissional junto aos agentes do “sistema socioeducativo”, a relação direta e pessoal que estabeleço com
jovens que trabalham no tráfico de drogas, “em conflito com a lei”, é motivo
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PAuLo ARtuR mALVASi
etnográfica
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de curiosidade, levanta dúvidas e provoca surpresa. “A vida é loka e nela estou
de passagem”, dizem meus interlocutores. Esta frase sintetiza bem o sentido
de imprevisibilidade da “caminhada” de um traficante.1 Em um campo tão
distinto do domínio do crime – o da antropologia –, o adágio “o caminho se
faz ao andar” se reafirma: lidar com o imponderável é uma condição do ofício
do antropólogo. Após dois anos de pesquisa de campo, minha “caminhada”
segue pelos labirintos da experiência de jovens que vivem no fio da navalha,
nas interfaces do conflito social mais recorrente nas cidades brasileiras: o do
combate das forças governamentais ao pequeno tráfico feito em esquinas, nas
ruas de determinados bairros.
A especificidade de meu trabalho como pesquisador dá-se no trânsito entre
as margens e o centro do sistema socioeducativo.2 na pesquisa de campo, mergulho no cotidiano de jovens que trabalham no comércio varejista de drogas,
frequento o território em que residem, conheço suas famílias e seus amigos,
acompanho os fluxos de significados, as práticas e as performances em sua vida
cotidiana. minha inserção no campo é complexa, pois, além de realizar pesquisas no terreno dos próprios jovens, sou professor do Programa de mestrado
“Adolescentes em Conflito com a Lei”, cujos alunos são profissionais de diversas
áreas relacionadas ao trabalho com tal grupo: psicólogos, defensores públicos,
promotores, policiais, assistentes sociais, educadores e afins. meus alunos – que
muitas vezes experimentam as mesmas contradições que eu – ocupam posições
institucionais em órgãos do Estado e em organizações de defesa de direitos e
de execução de políticas sociais. Esta pesquisa se realiza, portanto, em terreno
ambíguo, em que a violência institucional que combato é reproduzida por um
1
A “caminhada” pode ser considerada como a trajetória de um ladrão no “crime”. Pode ainda
expressar uma série de procedimentos a serem cumpridos pelo criminoso (biondi 2010). A expressão,
entretanto, não se limita às fronteiras internas do “crime”: a “caminhada” se refere a trajetos de vida,
que envolvem relações comunitárias e sociais, de muitos jovens que se utilizam dessa expressão.
2
utilizo os termos “margens” e “centro” para caracterizar a situação institucional do sistema socioeducativo. no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei n.º 8069 / 90, brasil), o ato infracional
praticado por adolescentes deve receber a aplicação de medidas socioeducativas, pois os menores de
dezoito anos são “penalmente inimputáveis” (ECA, art.º 104.º). As medidas socioeducativas são operadas por um sistema que inicia com a abordagem das polícias, envolve o poder judiciário que aplica as
medidas, organizações estatais especializadas na medida de privação de liberdade, e poderes públicos
e instituições civis responsáveis pela execução das medidas em meio aberto. o sistema socioeducativo
constitui um campo político complexo que envolve diversos atores institucionais, interfaces entre os
programas de atendimento, o poder judiciário, ministério Público e conselhos de direitos, polícias e
secretarias municipais e estaduais (principalmente das áreas de saúde e assistência social), parcerias entre
órgãos governamentais e não governamentais. Envolve também a busca por “ações descentralizadas”,
construídas de modo “participativo”, a “articulação intersetorial das áreas de políticas públicas” no
âmbito municipal, estadual e federal, para garantir a “universalidade” das políticas e serviços. uma
imbricada rede de interesses, perspectivas e disputas marca o sistema socioeducativo. no cerne de todo
este emaranhado institucional, há (idealmente) o adolescente autor de ato infracional, o “sujeito de
direitos” para o qual todo o sistema deve convergir.
SuSPEito EmPREEndEdoR dE Si: tRAjEto E SofRimEnto…
503
campo institucional em que, de certa forma, eu atuo. Lembro por isto aos meus
alunos que a antropologia não serve para “pacificar”, mas para “manter o mundo
em desequilíbrio, puxando tapetes, virando mesas e soltando rojões”. o ofício
do antropólogo é como o de um “mercador do espanto” (geertz 2001: 65).
Considerar os jovens com os quais trabalho como margem do sistema socioeducativo é uma escolha que marca uma referência simbólica e uma abordagem
teórica e política do sistema socioeducativo. Sigo a perspectiva de das e Poole
(2008), ao tomar as margens como elos que constituem as condições necessárias para se pensar etnograficamente o Estado como objeto teórico e político.
Ao tomar uma política pública, como o sistema socioeducativo, desde suas
margens, não retrato apenas dinâmicas territoriais específicas nem segmentos populacionais considerados excluídos ou marginalizados. Procuro antes
mapear sítios de práticas em que (certas) leis e outros mecanismos de poder e
alteridade são acionados (das e Poole 2008). no caso pesquisado, refiro-me às
intervenções governamentais junto a pessoas consideradas insuficientemente
socializadas segundo o marco normativo do Estado – os adolescentes –, e,
ainda, “em conflito com a lei”.
Este artigo é baseado em uma etnografia realizada em dois bairros do Estado
de São Paulo, brasil, onde existe a coincidência entre o comércio varejista de
drogas feito nas ruas, relações de vizinhança e ação intensiva de forças de
repressão / assistência / atenção governamentais. A etnografia aborda, especificamente, as interfaces entre os jovens que trabalham no tráfico de drogas e um
poder constituído para intervir no início da “carreira criminosa” – o sistema
socioeducativo. no presente texto, analiso as ambiguidades na experiência de
um adolescente ao passar pelo sistema socioeducativo; considero como, no
cotidiano deste adolescente, são incorporados mecanismos de gestão da sua
vida e quais as formas de lide com tal engenharia “socioeducativa”.
Parto de uma inspiração foucaultiana da análise do poder, isto é, considero
entre o adolescente e o sistema socioeducativo um poder disperso e cotidiano,
que “está em toda parte” e “provém de todos os lugares” (foucault 2001: 89).3
Procuro, portanto, observar as manifestações do poder na ação de uns sobre os
outros, no agir reiterado em torno de saberes e poderes que delineiam os modos
3
na primeira aula do curso “Segurança, território e População”, foucault sustenta que a sua análise do poder são indicações de opção, “nem princípios, nem regras, nem teoremas” (2008b: 3). não é
proposta uma teoria geral do poder, mas que o poder seja tomado como “um conjunto de mecanismos
e de procedimentos que têm como papel ou função e tema – mesmo que não o consigam – justamente o
poder” (2008b: 4). Segundo foucault, tais mecanismos são parte intrínseca de diversas relações (familiares, sexuais, de produção, etc.), sendo efeito e causa delas e, portanto, é possível percorrer de uma
maneira “ao mesmo tempo lógica, coerente e válida o conjunto de mecanismos de poder e apreendê-los
no que podem ter de específico num momento dado, durante um período dado, num campo dado”
(2008b: 5). A análise dos mecanismos de poder para foucault tem “o papel de mostrar quais são os
efeitos de saber que são produzidos em nossas sociedades pelas lutas, os choques, os combates que nela
se desenrolam, e pelas táticas de poder que são os elementos dessa luta” (2008b: 5).
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PAuLo ARtuR mALVASi
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de ação sobre o campo de ação de um jovem que recebeu medidas socioeducativas; sua experiência, suas relações e suas interações com os “outros” – os
técnicos do sistema, a mãe, os amigos, os companheiros de trabalho no tráfico,
o próprio pesquisador. isto implica reconhecer, no contexto estudado, formas
de conhecimento, regimes de autoridade e práticas de intervenção de diferentes origens sobre a vida do jovem “traficante”.
A escolha de uma trajetória em particular se deve à proximidade que tenho
com o adolescente, sua família e rede comunitária. tal proximidade permite
descer ao cotidiano. Ao acompanhar uma trajetória de cumprimento de medidas socioeducativas, a etnografia recupera a voz desta personagem e descreve
de que modo os sentimentos com relação à sua passagem pelo sistema socioeducativo são incorporados em sua vida cotidiana (das 2006). Parto do pressuposto de que as emoções são experiências e estratégias retóricas pelas quais
as pessoas expressam, reclamam, promovem, proíbem ou justificam suas ações
(Epele 2010). Esta abordagem permite a investigação das experiências individuais de sofrimento em um contexto delimitado, observando as ambiguidades
das práticas institucionais voltadas para abrandar o sofrimento dos sujeitos
tidos como excluídos e vulneráveis e que, paradoxalmente, resultam em sua
intensificação (Kleinman, das e Lock 1997).
A análise da experiência subjetiva de um adolescente durante seis meses
de cumprimento de duas diferentes “medidas socioeducativas” revela o modo
pelo qual a intervenção socioeducativa, seguindo o objetivo institucional de
“reinserir” o jovem, pode situá-lo no limite das possibilidades de integração,
intensificando as aflições de uma vida sob constante suspeição. A abordagem
aqui adotada permite observar de que modo o jovem elabora significados sobre
o sistema socioeducativo e como expressa por meio de palavras, gestos e movimentos suas contradições.
fRiEzA do CáLCuLo E SofRimEnto: A vidA lokA dE zEzinHo
Contarei, a partir de agora, a trajetória de zezinho durante seis meses, um
“quase-personagem” que sustenta as ideias que desenvolvo neste ensaio. trago
à tona uma trajetória empírica, com o intuito de materializar o sofrimento
presente na experiência dos adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas os quais tenho acompanhado.4
Conheço zezinho desde que ele tinha 11 anos de idade; em 2009, quando
acompanhei sua trajetória de medidas socioeducativas, ele contava 16 anos.
4
Este caso foi apresentado em outro artigo (malvasi 2011). o nome dado ao adolescente é fictício,
assim como os nomes de seus familiares, citados no transcorrer do artigo: as informações sobre a trajetória de zezinho que não observei presencialmente são oriundas de suas narrativas. os trechos que se
referem a acontecimentos que presenciei são aqueles nos quais menciono minha presença.
SuSPEito EmPREEndEdoR dE Si: tRAjEto E SofRimEnto…
505
trabalhei com sua mãe, dona ivone, em um programa de geração de renda,
do qual eu era “facilitador”, numa cidade localizada nas franjas da região
metropolitana de São Paulo. zezinho é filho adotivo de dona ivone (63) e de
Seu Patrício (61). Conversei com dona ivone em 2009, após três anos sem
nos vermos. Ela me contou, então, que o filho havia “virado traficante”. Sua
expressão facial demonstrava vergonha. Chegou a cometer um “ato falho”,
negando ser sua mãe. quando perguntei a ela se zezinho era seu neto – era o
que eu pensava –, ela respondeu: “meus filhos… são todos honestos”.
zezinho mora em um dos dois bairros em que realizei pesquisa de campo
sobre a atividade do tráfico de drogas. Ele foi um dos meus principais interlocutores. Sua casa é de alvenaria, tem aproximadamente 40 m2 e é situada em
um terreno de 150 m2 onde há mais duas casas, de tamanho semelhante, em
que moram filhos e netos de dona ivone e de Seu Patrício. famílias extensas,
com laços variados além da consanguinidade, e uma rede de ajuda e proteção
mútua que difere muito do modelo pretensamente “estruturado” da família
nuclear de classe média no brasil (fonseca 2005). Exatamente na frente da
casa de zezinho, existe um ponto de venda de drogas: uma “lojinha”. o ponto
é estratégico, pois ao lado da casa há um beco e, no final deste, um rio e um
matagal para onde fugir da polícia.
Entre fevereiro e julho de 2009, zezinho ganhou dinheiro, foi preso, recebeu “medida de internação”, saiu e esteve em cumprimento da “medida de
liberdade assistida”.
no dia 20 de fevereiro, véspera de Carnaval, zezinho estava vendendo
cocaína e crack em frente à sua casa. Eram mais ou menos 23 horas e ele já
contabilizava cinco mil reais em vendas e mil e duzentos de lucro para si.
da frente de casa, com seu pai a aproximadamente 30 metros, ele viu a polícia
chegando: “Eu fiquei olhando, olhando, para ver se era a força [a polícia]…
Aí quando eu vi, era mesmo e já estava perto. Aí eu joguei do lado a mercadoria e fui para perto do meu pai, que estava na porta do bar”. A polícia o
abordou, perguntou de quem era a droga e o dinheiro, puxou seu braço, deu
uma bronca em seu pai, que não entendia o que estava acontecendo. o pai o
acompanhou até a delegacia. durante o trajeto, uma série de xingamentos e
provocações foi proferida contra ele pelos policiais. zezinho foi encaminhado
para a fundação de Atendimento Socioeducativo (fundação Casa), órgão do
Estado de São Paulo responsável pela internação de adolescentes.
tive a oportunidade de reencontrar zezinho na fundação Casa durante
a internação. fui convidado, como diretor de uma ong, para a cerimônia de
formatura dos internos. o espaço é uma prisão: três complexos de grades,
portas e seguranças até que se chegue ao local onde os adolescentes permanecem. quando cheguei à última grade, observei os formandos descendo
para o evento: divididos em grupos de cinco, roupas iguais, cabelos raspados,
cabeças baixas e mãos para trás; a cada segurança por que passavam diziam:
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“dá licença, senhor”, “dá licença, senhora”. Entrei pelo corredor, recebendo
indicação da sala para onde deveria me encaminhar. os adolescentes estavam
em uma sala com seguranças, de um lado, e nós fomos para outra, onde
seria o evento. os educadores, psicólogos e outros técnicos ficaram com os
convidados. quando estávamos acomodados, trouxeram os jovens para a sala;
quarenta e cinco ao todo. Antes da distribuição dos certificados do Curso de
Empreendedorismo e turismo, discursaram o representante do fórum, a diretora da unidade, o psicólogo responsável, o presidente do Conselho dos direitos da infância e Adolescência e eu mesmo, como representante da “sociedade
civil”. dois educadores cantaram, acompanhados por violão, enquanto os adolescentes eram chamados para receberem seus certificados. Eu estava ao lado
da diretora da unidade de internação e comentei com ela como os meninos
tinham uma aparência boa, saudável, destaquei o quanto eram bonitos. Ela
disse: “também… aqui, eles têm dentista, médico, comida boa, aqui dormem
bem, não usam drogas, ficam menos vulneráveis”.
Para encerrar o evento, alguns adolescentes apresentaram uma “dramatização”. o esquete, singelo a despeito da desenvoltura de alguns internos, consistia
no seguinte: um jovem sai com o diploma da fundação Casa (curso de turismo,
empreendedorismo, etc.) para procurar emprego. Ao chegar aos estabelecimentos, o jovem se apresenta e mostra o diploma. os entrevistadores demonstram
apreensão; afastam-se, mudam de assunto, evidenciando preconceito pelo fato
de o jovem ter passado pela internação. A visão dos jovens, apresentada na
dramatização, é a do estigma de quem passou por uma situação que caracteriza
a pessoa como “criminosa”. zezinho representava um dos garotos que está procurando emprego. Em sua performance, entrega seu currículo em três lugares
diferentes. Sem conseguir uma oportunidade, volta, ao final do dia, para seu
bairro e encontra um grupo de amigos que estão trabalhando no “movimento”
(tráfico de drogas). Seus amigos o convidam para voltar a trabalhar no tráfico e ele diz que não, não quer; está procurando emprego. Seus amigos estão
fumando maconha e circulam o cigarro até a mão de zezinho. no momento
em que ele segura o cigarro, a polícia chega. os adolescentes da Casa riram bastante após a apresentação, comungando significados. A mensagem que transmitiram foi patente: independentemente do que façam, ou deixem de fazer,
serão, sempre, considerados suspeitos; ao saírem da internação, sua marca será
a de ex-internos da “fEbEm”.5
zezinho ficou aproximadamente dois meses internado. o prazo de internação não é predeterminado; depende da decisão do juiz, que costuma seguir a
5
Atualmente a instituição responsável pela privação de liberdade de adolescentes no Estado de
São Paulo é a fundação Casa, antiga fEbEm. Apesar de o nome ter mudado em 2006, grande parte da
população chama a fundação Casa pelo antigo nome – fEbEm –, que é identificado, popularmente,
como sinônimo de prisão de adolescentes “bandidos” e “perigosos”.
SuSPEito EmPREEndEdoR dE Si: tRAjEto E SofRimEnto…
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indicação apresentada no laudo dos técnicos da fundação Casa. geralmente,
os laudos são assinados por psicólogos. não tive acesso ao laudo, mas dona
ivone me mostrou uma carta de zezinho que sensibilizou a psicóloga ao ponto
de esta escrever um relatório recomendando a soltura de seu filho. na carta,
endereçada à mãe, zezinho aponta uma mudança comportamental: “Aqui descobri que o crime não compensa; to no sofrimento, mãe. me perdoa, mãe; to
aprendendo uma profissão, pra lá fora enfrentar o mundão. Vou-me armar com
enxadas e pá; minha mão calejar. Cuidar bem da minha família, uma família
firmona, mãe. Só tenha uma certeza: de que um dia seu filho vai voltar”.
no início de abril zezinho foi solto e iniciou o cumprimento da medida de
liberdade assistida. Encontrei-o na segunda semana de atividades da liberdade
assistida, quando foi para uma oficina de rap. Ao final da atividade, levei-o
para casa e ficamos por mais ou menos uma hora conversando. Perguntei a ele
o que é a liberdade assistida. Respondeu:
“– É um documento que eu assino, para o juiz ver que eu estou indo lá,
estou comparecendo, estou fazendo o que ele pede… tem Conselho, tem
carro à paisana e tem polícia… tudo de olho em mim; na guarda do juiz. Aí
na escola… eu ando na rua, assim ele sabe tudo. Ele sabe aonde eu vou, o
que eu faço, da escola… Eles vão lá; perguntam como eu estou.
– Eles quem? – perguntei.
– os policiais”.
E continuou a descrição da relação que imagina ter (ou que de fato tem)
com as instituições do sistema socioeducativo:
“Só que eu não sei disso, né? A psicóloga é que me avisou. Ela falou;
‘o juiz ta na sua cola; ele ta com olho deste tamanho em você [e fez o sinal
com a mão abrindo os olhos]; pensa que não tem ninguém de olho em você?
mas a polícia, a diretora da escola, ta todo mundo de olho em você”.
Perguntei o que ele pensava sobre isso:
“não vou falar que eu acho bom, porque fui eu que cometi este erro e
tenho que pagar. deixei vergonha na família, joguei o nome da minha família na lama”.
Ao deixá-lo em casa, conversei com dona ivone e pedi permissão para visitá-los uma vez por semana. Ela demonstrou satisfação. temos uma relação de
amizade; convivemos com certa intimidade durante três anos. zezinho também pareceu gostar, talvez tenha sido apenas simpático. Voltei durante três
semanas consecutivas, por volta das 11 horas da manhã, e zezinho estava
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sempre dormindo. Em um dos dias, sua mãe me disse que estava desconfiada
de que zezinho havia voltado para o “crime”. disse que “é uma judiação” o
que acontece com os jovens de hoje em dia; que muitos “meninos do tráfico”
cresceram em sua casa, eles eram “bons”. insistiu para que eu voltasse para
conversar com zezinho.
Voltei no dia combinado, 10 de junho. zezinho estava no bar conversando
com alguns homens mais velhos, um travesti e um amigo, este sentado em uma
bicicleta. “É o gerente da biqueira”, disse-me a tia de zezinho.6 dona ivone
saiu ao portão no momento que cheguei e começou a gritar com zezinho e seu
colega da bicicleta. “olha menino”, dizia se dirigindo ao rapaz de bicicleta,
“eu não quero mais você aqui na porta da minha casa; que história é essa que
você plantou maconha no meu jardim?” Começaram a bater boca. zezinho
manteve distância, como se fosse absolutamente indiferente ao ocorrido. dona
ivone chamou zezinho: “Você acha que vai ser alguma coisa sendo traficante?
Você não vai ser nada. meus filhos são todos trabalhadores, agora você, que eu
adotei e cuidei como se fosse meu filho, faz isso”. zezinho continuava a expressar indiferença. “Você sempre foi frio e calculista”, disse dona ivone. zezinho
riu, talvez porque veja estas características como qualidades. dona ivone, até
então com uma expressão severa, riu, resignada.
no dia 24 de junho, voltamos a nos encontrar. Convidei zezinho pra ir
até o centro; era aniversário da cidade. tradicionalmente, acontece um desfile
cívico de que todas as escolas e ong da cidade participam. Conversei com
dona ivone enquanto aguardava o garoto, e ela falou sobre seus problemas de
saúde, dando a entender que as preocupações com zezinho deixavam-na desgostosa. dona ivone mudou de perspectiva repentinamente, revelando uma
percepção muito pessoal sobre seu filho e os amigos dele. Lembrou dos vários
meninos que hoje estão no tráfico e “cresceram” em sua casa. Ela atribui ao
ganho “fácil” – e tudo o que o acompanha, como boas roupas, utensílios tecnológicos, lazer, mulheres – a grande motivação para os jovens aderirem ao
tráfico. “Essa geração de hoje é muito difícil. Eles têm outra cabeça”.
zezinho saiu de casa pronto para ir comigo ao centro da cidade. Vestindo
um casaco vermelho de gola alta fechada por uma corrente dourada, tênis
nike brilhando de tão novos, bermuda larga vermelha e um boné azul e vermelho, estava animado com o passeio. Chegamos ao centro e ele caminhava
com um estilo facilmente reconhecido pelos seus pares geracionais. Passos largos, cabeça erguida, gestos largos com as mãos para cumprimentar as pessoas. Percebi olhares de admiração e outros de atenção de muitos jovens que
6
“biqueira” é o nome dado pelos meus interlocutores aos pontos de venda de drogas. Esses são
chamados também de “boca” ou “lojinha” – ou ainda de “shopinho” – dependendo do contexto e do
local. “Lojinha” e “shopinho” são denominações mais recentes. “biqueira” é termo que tem sido mais
usado nas conversas entre os comerciantes e “boca” o que representa os aspectos mais violentos do
“mundo do crime”.
SuSPEito EmPREEndEdoR dE Si: tRAjEto E SofRimEnto…
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o conheciam; e não eram poucos. Paramos, então, em uma lanchonete, onde
havia um grupo de amigos dele. Sentou-se e ficou conversando. fiquei alguns
minutos com o grupo, composto por alguns jovens de estilo parecido, outros
não. despedi-me do grupo, pois tinha que acompanhar o desfile da ong à qual
pertenço. quando voltei, os garotos estavam desolados na praça em frente à
lanchonete. Eles haviam sofrido uma “batida” policial na frente de centenas de
pessoas que acompanhavam a festa. o dono desconfiara de que eles pudessem
estar observando o local para tramar um assalto – pelo menos foi isto o que o
policial argumentou, segundo a versão dos jovens. zezinho, que estava imponente, vaidoso, agora mostrava expressão de revolta e humilhação. Ao deixá-lo
em casa, no momento exato em que chegamos, a polícia passava lentamente
em frente à sua casa. os policiais olharam com agressividade para nós, como
se fôssemos suspeitos.
na última visita à casa de zezinho, em 29 de julho, aconteceu algo inesperado.
Ele estava no bar em frente à sua casa. ficou meio sem jeito. Percebi que ele
estava vendendo drogas. Chegou então um rapaz de, aparentemente, vinte e
poucos anos, cabelo com reflexos loiros, correntes de prata, dirigindo um Vectra
azul metálico com equipamento de som de última geração, e chamou zezinho
para ir com ele comprar vinho em uma adega tradicional da cidade. zezinho
me perguntou se eu sabia onde era a tal adega. Eu sabia. Então, o rapaz me
chamou para ir com eles. Entramos no automóvel e saímos em direção ao local.
Carro impecável, com equipamento de som tocando Racionais mC’s, o grupo
de rap mais conhecido do brasil. A caminho, descobri que o rapaz não tinha
carteira de habilitação. fiquei um pouco apreensivo, mas percebi que estava
em uma situação interessante para a pesquisa e tinha que seguir adiante.
Avisei o condutor do automóvel que é costume haver “comandos” (blitzes
com parada e inspeção de carros e de condutores) na entrada da cidade. Paramos de esquina em esquina, observando de longe se havia algum “comando”.
Conseguimos entrar na autoestrada que contorna a cidade, antes de passarmos
pela polícia. Seguimos até a última entrada e nos dirigimos à adega. os rapazes
compraram o vinho e conversaram um pouco com o “senhor” sobre os processos de produção da bebida.
Creio que pelo gosto do risco e da aventura, o rapaz que dirigia o automóvel
resolveu voltar pelo centro da cidade, mesmo estando em um veículo rebaixado,
com som bem alto, tocando música rap, sem usar o cinto de segurança, além da
falta da carteira de habilitação (o que – exceto ouvir rap – no brasil são infrações
às leis de trânsito). Enquanto passávamos pelas ruas centrais, o rapaz comentou
que não via o centro há uns dois anos e que saíra da cadeia há cinco semanas.
os dois observavam todas as ruas, as pessoas, os prédios do centro. Passamos,
inclusive, em frente a policiais. Com o vinho aberto rodando de mão em mão,
bebido a goles amplos e contundentes, os dois cantavam com fúria uma canção
dos Racionais mC’s, encenando com gestos, poses e expressões faciais.
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“deixa eu falá, pocê, tudo, tudo, tudo vai, tudo é fase irmão. Logo mais
vamos arrebentar no mundão, de cordão de elite, 18 quilate, põe no pulso,
logo bright, que tal, ta bom, de lupa bausch&lomb, bombeta branca e vinho,
champanhe para o ar, que é pra abrir nossos caminhos, pobre é o diabo,
eu odeio ostentação, pode rir, ri, mas não desacredita não, é só questão
de tempo, o fim do sofrimento, um brinde pros guerreiro, zé-povinho eu
lamento, vermes que só faz peso na terra, tira o zoio, tira o zoio, vê se me
erra […] quente é mil grau, o que o guerreiro diz, o promotor é só um
homem, deus é o juiz, enquanto zé-povinho apedrejava a cruz, um canalha
fardado, cuspiu em jesus, Hó… aos 45 do segundo arrependido, salvo e
perdoado, é dimas o bandido, é louco o bagulho, arrepia na hora, dimas
primeiro vida loka da história, eu digo, glória… Sei que deus ta aqui, e só
quem é, só quem é vai sentir, e meus guerreiro de fé, quero ouvir… E meus
guerreiro de fé, quero ouvir… irmão… Programado pra morrê nois é, certo
[…] miséria traz tristeza, e vice-versa, inconscientemente, vem na minha
mente inteira uma loja de tênis, o olhar do parceiro feliz de poder comprar,
o azul, o vermelho, o balcão, o espelho, o estoque, a modelo, não importa,
dinheiro é puta, e abre as portas, dos castelos de areia que quiser, preto e
dinheiro são palavras rivais, é, então mostra pra esses cu como é que faz, o
seu enterro foi dramático como um blues antigo, mas de estilo me perdoe de
bandido, tempo pá pensar, quer parar, que se quer, viver pouco como um rei,
ou muito como um zé” (vida loka, parte 2, Racionais mC’s).7
A ideia de vida loka (vida louca), expressa neste rap, é comumente utilizada em periferias paulistas, publicada em adesivos, em carros, pichações em
muros, síntese do imponderável na casualidade. Ela parece revelar a imponderabilidade da experiência comum; o aparente caos que cada indivíduo deve
gerenciar, mas, também, o reconhecimento de que o mistério do fluxo da vida
cotidiana não é controlado por ações governamentais (como aquelas presentes
no sistema socioeducativo) ou por qualquer poder humano. A complexidade
da vida loka no interior do “crime” leva o jovem a um dilema: sair dele e procurar viver como um “zé”, realizando trabalhos enfadonhos e mal remunerados,
comuns aos moradores das periferias paulistas, sem acesso ao mundo de bens
desejados, ou continuar vivendo como um “Rei”, ainda que de maneira fugaz
e perigosa. no limite, trata-se de uma escolha econômica.
7
Canção do álbum Nada como Um dia após o outro dia, dos Racionais mC’s, editado por Cosa nostra, em 2002. diversas expressões presentes na letra da música são comuns no vocabulário de jovens
moradores das periferias paulistas. não me proponho aqui a fazer uma interpretação desta letra, mas
considero importante destacar a alusão ao personagem “dimas”, presente no evangelho bíblico: dimas
era um bandido que foi crucificado ao lado de jesus Cristo e foi “perdoado” por este, que ao “salvar” a
sua alma garantiu-lhe a vida eterna.
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descrevi situações cotidianas, em certo sentido, imponderáveis, que delimitaram os contornos de uma forma de vida humana. no momento em que
zezinho me disse que iria continuar traficando, ele se autojustificou. disse que
sua mãe nunca teve nada e que ele nunca teria uma oportunidade. A transgressão foi explicada por um discurso que enfatiza a injustiça social no brasil
contemporâneo. uma leitura precipitada pode indicar uma consciência racional e política nos moldes de movimentos políticos que se opõem à violência
do Estado. Entretanto, a obstinação contra o “sistema” manifesta nas falas e
nas performances estilo “bandido” de zezinho revelam formas de resposta ao
discurso dominante no sistema socioeducativo, contexto em que é difícil para
ele responder às demandas de ajustamento exigidas. Esta impossibilidade é
experimentada no cotidiano; como lidar com uma vida loka?
o trânsito pela rua, também por mim vivenciado, é exemplo de onde tudo
é mesmo imponderável: a falta dos documentos de habilitação e do carro,
ou o vinho sendo tomado enquanto se dirige não significam que seríamos
apanhados pela polícia. Poderíamos sê-lo em qualquer outra situação, como
aquela expressa no esquete durante a internação de zezinho. o sentido transcendente reivindicado na música dos Racionais mC’s, o “promotor é só um
homem, deus é o juiz”, revela o inusitado: a participação no mundo do consumo e a realização pelo dinheiro através da participação no tráfico de drogas
é um crime, que merece punição, para os homens. E para deus? Se existe a
possibilidade de não serem julgados por deus pelos crimes mundanos, estes
jovens fogem, simbolicamente, da lógica moral da repressão ao crime; o chamamento ao divino enfatiza a ideia de um indivíduo “de passagem pela vida”,
que marca a disputa simbólica presente na expansão do marco discursivo do
“crime”.
não tive mais convívio com zezinho. Em uma das poucas vezes em que nos
encontramos nas ruas do bairro, presenciei novamente seu dilema; ele estava
com outro jovem, gerente (coordenador de vendas) de uma “biqueira”, e a
conversa versava sobre a fuga de zezinho do posto de trabalho: ele “tomou um
enquadro da polícia” e fugiu da “lojinha”, passando uma semana sem “trabalhar” e, no momento em que os encontrei, eles conversavam sobre este fato:
o gerente dizia que zezinho não servia para o crime, pois se no “primeiro
enquadro que você toma da polícia já some… Ladrão não fica entre a cruz e a
espada; ladrão é ladrão”.8
8
“tomou enquadro da polícia”: expressão que significa que o jovem foi abordado pela polícia.
quanto ao termo “ladrão”, para este grupo, refere-se, genericamente, àquele que é reconhecido como
envolvido com o “crime”, independentemente da modalidade de infração. o termo “bandido” costuma
ter a mesma acepção.
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dA intERVEnção SoCioEduCAtiVA A SuSPEito EmPREEndEdoR dE Si
no centro da trama até agora descrita, sobressaem encontros humanos singulares entre pessoas (adolescente, seus pares, educadores e psicólogos, familiares,
o próprio pesquisador) que desnudaram no cotidiano a própria configuração
de poder que encerra a experiência de todos os envolvidos. Como ensina Veena
das (2006), a pesquisa antropológica não identifica um padrão de escala independente da perspectiva. Para o antropólogo, a questão é estabelecer um horizonte em que ele possa localizar os interlocutores em suas relações e interações
com o outro. É uma perspectivação. A perspectiva adotada neste artigo está na
posição ocupada pelo pesquisador como profissional do campo socioeducativo
e em sua interação com um adolescente em cumprimento de medida socioeducativa. interpreto nas próximas páginas a experiência de um adolescente
em seu fluxo pelo sistema socioeducativo: o trajeto de zezinho aos olhos do
pesquisador revela um sistema de fragmentos, lacunas e violências.
A entrada de zezinho para o sistema socioeducativo (definido no discurso
institucional como um campo de “proteção” e “garantia de direitos”) deu-se
através da “guerra às drogas”: ações de repressão institucional que levam
jovens moradores de bairros de baixa renda, como o de zezinho, a serem constantemente tidos como suspeitos. Ao ingressar no sistema socioeducativo, o
rapaz experimentou uma série de situações de constrangimento. A aplicação de
medida socioeducativa (primeiro a de internação e depois a de liberdade assistida) causou uma inflexão na vida do adolescente; a intervenção institucional
delineou um complexo campo de poder sobre a vida de zezinho, e suas diversas (re)ações desenharam a incorporação deste poder em sua vida cotidiana.
A medida de internação, como a prisão dos adultos (maiores de 18 anos de
idade), é executada em locais que se situam nas margens, nos limiares da vida
social. Além disto, a gestão da medida de internação de zezinho foi marcada
por dispositivos de controle cada vez mais apertados e intrusivos no que se
refere a jovens assistidos, os “adolescentes em conflito com a lei”. o isolamento do adolescente é combinado com um processo de mapeamento de sua
vida familiar e comunitária que será conjugada, no momento do retorno ao lar,
com a “guerra às drogas” das forças de segurança sobre jovens considerados
suspeitos em sua vizinhança. Concretiza-se assim um modelo disciplinar na
internação com uma intervenção sobre o ambiente do mercado de drogas no
bairro de zezinho.9
9
Ao analisar as leituras dos neoliberais americanos da política penal, foucault interpretou as consequências do modelo de inteligibilidade deste pensamento. “É sobre o ambiente de mercado em que o
indivíduo faz o seu crime e encontra uma demanda positiva ou negativa, é sobre isso que se deve agir.
o que levantará o problema [...] da técnica dessa nova tecnologia ligada, creio eu, ao neoliberalismo,
que é a tecnologia ambiental ou a psicologia ambiental nos Estados unidos” (foucault 2008a: 354).
foucault não aprofundou a análise dessa tecnologia nas aulas e textos posteriores às aulas no College
de france em 1979.
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As expressões de zezinho durante a internação – olhar perdido de desamparo e, ao mesmo tempo, reflexivo e resignado – inscrevem em seu corpo a presença do delito como demonstração da sujeição a que deve se submeter para
se mostrar como alguém que quer mudar de vida. A possibilidade de ter uma
recaída é a marca de seu lugar social no mundo institucional – suspeito, irá
reincidir ou não? Em sua relação com os representantes do sistema socioeducativo, zezinho representou o comportamento esperado para ser solto. Privado
de liberdade, o adolescente percebe que é por meio do “bom comportamento”,
de seu “ajuste”, que se dá a possibilidade de absolvição: as expressões faciais e a
gestualidade do corpo, nos momentos em que pude presenciar sua relação com
os representantes institucionais, foram marcadas por elementos de uma performance de submissão – mãos para trás, cabeça baixa, expressões de resignação –
que diferem substancialmente de sua linguagem, de seus gestos e movimentos
na rua, entre seus pares. zezinho expressa, sem o dizer, que não se submete.
Ele lida com a lógica operada no sistema socioeducativo para se manter livre,
manejando seu comportamento e narrativas de acordo com o esperado.
na rua, zezinho manteve a performance que o identifica como alguém de
estilo “bandido” – como se canta no rap dos Racionais mC’s. ou seja, nos momentos em que se apresenta para o seu grupo de relações, nas “baladas” (diversões,
geralmente em bares e danceterias) noturnas, em contextos nos quais pode seduzir e usar seu dinheiro, ele tem posturas corporais, gestos e movimentos de força,
altivez, coragem. Ele sabe que, assim, recebe a atenção de garotas e o respeito
de garotos. desempenha com desenvoltura o estilo “bandido” e parece sentir-se
adequado nele. tal estilo não é estranho aos seus amigos, sejam do “mundo do
crime”, ou não.10 A mudança comportamental durante a internação não representa, contudo, necessariamente, manipulação ou falsificação de suas intenções.
Sua fala sobre a “vergonha que deixou na família” indica a interiorização da
culpa e a dúvida com relação a suas escolhas. A humilhação vivida por seu pai
quando foi para a delegacia, e por sua mãe ao visitar o filho em um centro de
internação, foi incorporada como sentimentos de dor e de culpa por zezinho.
A mãe navega na ambivalência da situação do filho: ora defende aquela
moral de valorização do trabalho e da família, mostrando-se então no limite
do abandono de seu filho “bandido” (neste caso, destacado como adotivo),
ora esta mulher é capaz de expressar sensivelmente o reconhecimento da
diversidade de zezinho, incluindo amigos ou colegas dele que flertam com o
“mundo do crime”. A família sofre uma investida que causa mais dor do que
contribui para o fortalecimento dos laços afetivos entre os parentes, um dos
10 Segundo gabriel feltran “o ‘mundo do crime’ é uma representação construída de modos distintos, tanto no senso comum brasileiro quanto entre adolescentes e jovens das periferias de São Paulo.
trata-se tanto de um ambiente criminal quanto de espaços de sociabilidade e produção simbólica, que
têm-se expandido para além das relações entre praticantes de atos ilícitos” (2008: 13).
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objetivos propalados pelo sistema socioeducativo. no processo de execução
das medidas socioeducativas, a família é chamada para tratar da cidadania que
falhou, por meio de encontros com psicólogos, assistentes sociais e representantes da justiça. Exposta a tais procedimentos, parece-me que dona ivone,
mãe de zezinho, sentiu-se impelida a reforçar o discurso institucional, embora
sem desconsiderar circunstâncias muito particulares da vida de seu filho e dos
amigos, cujo crescimento ela acompanhou.
A conduta da mãe foi influenciada por práticas pontuais de profissionais do
sistema socioeducativo que revelam uma racionalidade governamental que espalha o controle de forma capilar até dentro da casa do adolescente. A ação socioeducativa, aplicada desta forma, interfere e influencia o papel de cada um dentro
da família, levando à opressão dos adolescentes em seu próprio lar. no retrato
que observei do conflito entre as gerações em meio a uma intervenção institucional, “fica evidente a existência de formas narrativas, simbólicas e sociais, nas
quais se tece uma violência difusa […] no processo de sua articulação, às vezes
de sua prática, a violência parece definir os contornos dentro dos quais ocorre
a experiência de uma forma de vida enquanto forma de vida humana” (das
1999: 36). o sistema socioeducativo, através de suas práticas de intervenção,
causou desacordos e desassossegos para zezinho e para seus parentes.
A representação dramática de que zezinho participou indica que a marca da
privação de liberdade constitui, para os adolescentes, um estigma de segregação
dificilmente superável. A dramatização revela a leitura que eles fazem de suas
próprias experiências entre as fronteiras do consumo e do tráfico de drogas, da
pobreza, do preconceito e da falta de oportunidades. de forma crescente, os
adolescentes são presos por crime de tráfico; na singeleza do teatro, os jovens
internados na fundação Casa exibiram o sentimento do risco constante que
sofrem: eles podem perder a liberdade por consumirem ou por venderem drogas em pequenas quantidades.
Ao passar da medida socioeducativa de internação para a de liberdade assistida, zezinho, inicialmente, compreendeu essa última como um ritual burocrático que deveria ser cumprido para atender à determinação do juiz. identificou
na medida um controle total, um big brother em que o juiz representa o poder
central, a psicóloga a “mensageira”, e a polícia mais a escola os “tentáculos”
que, em seu próprio território, o observam e o constrangem. Expressar cólera
e revolta no contexto do atendimento socioeducativo é correr o risco de ser
enquadrado em alguma psicopatologia. Vistas como entidades reais e universais, as emoções são subsumidas na biomedicina e na psicologia em esquemas
normativos (saúde / doença, normal / patológico) como lócus sujeito a controle,
regulação e tratamento (Epele 2010: 224). zezinho sabe que suas reações
emocionais estão sendo permanentemente monitoradas pela psicóloga, para
que ela possa saber da sua “verdade interna” e intervir para protegê-lo de seu
potencial de reincidência.
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A aflição que o adolescente sentia ao ser tido como um suspeito (na escola,
nas ruas, nos espaços públicos) era por ele contida quando submetido aos
encontros com a psicóloga. Ele buscou demonstrar controle emocional, embora
tenha passado por uma série de acontecimentos que considerou opressores:
após a “batida” policial e o consequente constrangimento pelo qual passou
na lanchonete, justamente no dia do aniversário de sua cidade, zezinho não
construiu naquele momento uma narrativa sobre sua revolta, sua dor – ele
apenas afirmou, com raiva: “Eu vou traficar mesmo!” Algumas semanas após
o acontecimento, eu voltei ao assunto com ele e, então, ele interpretou o acontecimento de forma ampliada, organizando uma exposição de aspectos mais
perenes em sua vida: citou sua mãe, a dedicação da vida inteira ao trabalho de
empregada doméstica e a pobreza persistente, e da avaliação da situação da
mãe conjecturou sobre sua própria vida: “Eu nasci aqui na favela; eles nunca
vão me dar um boi”.11 Perguntei-lhe: “Eles quem?” “A sociedade”, respondeu.
zezinho realiza uma interpretação por meio do sistema de valores do qual
decorre a afetividade manifesta. Ele passou por uma cena pública de depreciação, sentiu-se desvalorizado e diminuído. mas também elaborou sua relação
com o mundo a partir de uma perspectiva de confronto com o que chamou
de “sociedade”. A raiva surgiu como expressão emotiva de sua relação com o
mundo.
o contexto de vida de um adolescente como zezinho é permeado por violências institucionalizadas no estado de São Paulo. os adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas costumam viver em territórios urbanos
de baixa renda genericamente chamados de “periferias”. o aprisionamento dos
jovens moradores de zonas urbanas de baixa renda constitui atualmente política estatal: tal política é praticada por meio da “guerra às drogas” em bairros
considerados de “alta vulnerabilidade”, o que sugere a prática governamental de punir a pobreza e de conter as inúmeras “patologias” a ela associadas
(Wacquant 2008). Parte substantiva dos jovens que estão no sistema socioeducativo advém destas zonas urbanas.
A periferia expressa, simbolicamente, um lócus existencial onde pessoas
insuficientemente socializadas, segundo o marco normativo, podem sofrer
interferências em suas vidas. os jovens pobres, no discurso da “fala do crime”,
constituem o principal grupo em risco de sucumbir ao crime, ao mal: 12
“são considerados muito jovens para se protegerem do mal por si mesmos, e por não serem totalmente racionais, ainda, precisam ser controlados.
11 A expressão “dar um boi” significa dar uma chance, uma oportunidade.
12 Caldeira (2000: 27) define a “fala do crime” como “todos os tipos de conversas, comentários,
narrativas, piadas, debates e brincadeiras que têm o crime e o medo como tema”. Este discurso é corrente na sociedade brasileira das últimas décadas.
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Por serem homens, resistem ao controle e são atraídos pelos ambientes em
que o mal abunda, principalmente a rua. Ali encontram as drogas, que perturbam sua consciência e os transformam em alvos fáceis para as forças do
mal” (Caldeira 2000: 90).
Como consequência lógica deste discurso, os limites entre delinquência e
insensatez ficam extremamente tênues e legitimam o controle sobre segmentos
jovens de baixa renda.
A centralidade no sistema socioeducativo de jovens “da periferia” expressa a
dinâmica da disputa simbólica que se dá, por meio do processo de expansão do
marco discursivo do “crime”, entre jovens que habitam as periferias paulistas
(feltran 2008). Atualmente, entre os jovens,
“… essa disputa contribui para a ressignificação do trabalho como ganho,
dos projetos de vida em longo prazo como premência por curtir o presente
e de uma religiosidade centrada na vida eterna por outra, mais conectada às
experiências-limite vividas no mundo” (feltran 2008: 194).
Por outro lado, “de fora para dentro”, esta figuração se confunde com a
criminalização das periferias. A repressão policial se volta a todos que se “parecem” com “bandidos”, isto é: “que têm a mesma idade e cor de pele, que usam
roupas semelhantes ou os mesmos acessórios que aqueles identificados publicamente como criminosos, ou seja, os jovens das periferias urbanas” (feltran
2008: 195).
uma série de características atribuídas ao “ladrão”, como as de adotar o
risco como estilo de vida, a busca do dinheiro fácil, do poder e do prestígio
locais, são elementos de performances corporais e de narrativas dos jovens.
Estas explicitam experiências adquiridas a partir de relações interpessoais ou
institucionalizadas, de informações acumuladas numa ampla representação de
falas e imagens veiculadas pelos meios de comunicação e constantemente ressignificadas na música e no cinema. Ser membro do “mundo do crime” é participar de formas de identificação coletiva valorizadas por muitos jovens. Além
disto, trabalhar no tráfico é estar em uma posição de destaque na economia
local. “frieza” e “cálculo” são qualidades necessárias que combinam com uma
inteligência prática, senso de oportunidade e a arte de contornar situações difíceis, comum à “viração” das classes populares brasileiras (teles e Hirata 2007).
na rua, zezinho percebe que está ali, na frente da sua casa, a possibilidade de
conseguir, em tempos de crise, R$ 700,00 em uma semana.13 A escolha por
traficar é também uma escolha econômica.
13 grande parte dos adultos moradores do bairro de zezinho ganha entre um e dois salários mínimos
ao mês. o salário mínimo no brasil, hoje (abril de 2011), é de R$ 545,00.
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zezinho passou por uma intervenção imposta a ele como algo feito para protegê-lo dele próprio e de seu contexto de “vulnerabilidades”. Complementando
a ação de repressão (a “guerra às drogas”), o modelo de intervenção socioeducativo é posto como um tratamento legítimo para o sofrimento e violações de
direitos que o adolescente sofreu por ser de um “território de vulnerabilidades”
e trabalhar no tráfico. Ao se encarregar dos adolescentes, tidos ora como vítimas ora como membros do tráfico de drogas, o sistema socioeducativo instaura
o controle e os cuidados, através de dispositivos jurídicos, psicológicos e assistenciais para o tratamento desta “população vulnerável”. A psicóloga que fazia
o acompanhamento de zezinho me disse certa vez que o seu trabalho é tornar
o adolescente consciente de suas escolhas e das consequências delas: “Se ele
quer trabalhar no tráfico de drogas, tem que estar consciente que ele provavelmente será preso e, talvez, até morto”.
o processo de individualização da responsabilidade se coaduna bem com
a noção corrente de empreendedorismo que se amplia para remotas fronteiras
da vida social; o empreendedorismo é hoje uma palavra-chave nas estratégias
pedagógicas, socioeducativas. o sistema socioeducativo tem hoje um objetivo
principal: evitar a reincidência. A “socioeducação” deve ser capaz de suprimir um nível do comportamento do indivíduo. no caso dos adolescentes que
trabalham no tráfico de drogas, o sentido da ação socioeducativa é mudar
o comportamento em seu elemento econômico, a atividade de vender drogas. os critérios psicológicos para a caracterização do adolescente continuam
recorrentes e atuantes: análise da memória pessoal, da trajetória de vida com
o ambiente familiar, da capacidade de ver a realidade, da permanência ou não
dos traços de personalidade e caráter. Essas práticas avaliam se o indivíduo
tem o juízo das “corretas” intenções, crenças e valores, assim como o raciocínio normal. Acontece que o conteúdo da normalidade psicológica esperada
implica necessariamente abandonar a venda de substâncias psicoativas ilegais,
como se este trabalho fosse em si um sintoma, um distúrbio de ordem psicológica.
o trabalho no tráfico de drogas se revela como experiência cotidiana em
que ocorre um conjunto de situações de opressão e violência. Ao dispor a linguagem e a gestualidade no “estilo bandido”, zezinho interiorizou uma posição em um campo de relações de poder e passou pelo fio da navalha, entre o
crime e o socioeducativo, inaceitável para toda sua rede de relações. Para os
operadores do sistema socioeducativo ele procurou se mostrar firme, disposto
a “pegar na pá e na enxada”, caso necessário, a empreender uma transformação
de seu contexto de vida. Para o sistema do crime, “ladrão não fica entre a cruz
e a espada”, ele tinha que se mostrar adequado à firma,14 vestir a camisa e arcar
com as consequências. zezinho não pode ter dúvidas, ele deve empreender
14 nome dado à organização do comércio de drogas em bairros do estado de São Paulo.
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a si mesmo, correndo os riscos inerentes à vida loka do trabalho no comércio
varejista de drogas. tal visão do jovem como alguém que deve explorar individualmente os riscos, as perdas e as benesses de suas escolhas constitui uma
zona de confluência entre o discurso socioeducativo e o do crime. zezinho
circulou durante os meses que eu o acompanhei por múltiplos níveis em que
ideias, projetos e técnicas o influenciaram para um alinhamento com uma
noção geral de competência pessoal, de capacidade de governar a si mesmo.
Vivendo como suspeito em seu próprio bairro, zezinho tem que escolher os
meios, os caminhos e os instrumentos para o sucesso de sua empreitada individual. Simultaneamente um aparato governamental difuso e um modelo de
gestão do comércio de drogas o acompanharam, cada qual dos sistemas com
suas próprias estratégias e esquemas de gestão da vida do adolescente.
o ato infracional é definido no ECA como “a conduta descrita como crime
ou contravenção penal” (art.º 103.º), conteúdo operativo, mecânico e vazio de
sentido. Partindo da definição padrão de crime (uma infração à lei formulada)
elaborada pelos reformadores do direito penal no final do século xViii, foucault
observa que na análise dos neoliberais a definição é a mesma, mas o ponto de
vista simplesmente muda: o crime é colocado do lado de quem comete o ato,
passa-se para o sujeito individual e, assim, a infração à lei é definida como a
ação que o indivíduo realiza que faz com que ele corra o risco de ser punido.15
o empreendedorismo de si mesmo pode ser visto como uma faceta da difusão
de uma grade de inteligibilidade neoliberal, isto é, a eleição do mercado como
princípio de inteligibilidade tanto dos comportamentos individuais quanto das
ações governamentais (foucault 2008a).16
no caso de zezinho, na forma como sua psicóloga elaborou sua intervenção, a questão é mostrar ao adolescente que a ação de traficar o faz correr
o risco de receber uma medida socioeducativa (ou de ser morto, o que também seria consequência de sua escolha individual). Embora, no brasil, tanto
a internação quanto o homicídio de adolescentes sejam formas de violência
estrutural, o discurso corrente volta à responsabilidade para o próprio autor
do ato infracional. zezinho entra nos cálculos do poder e, a partir de seu
15 Segundo foucault (1996, 2008a), a questão colocada pelos reformadores era uma questão de
economia política: “filtrando assim toda a prática penal através de um cálculo de utilidade, o que os
reformadores buscavam era precisamente um sistema penal cujo custo fosse o mais baixo possível”
[...] “a lei é a solução mais econômica para punir devidamente as pessoas e para que essa punição seja
eficaz” (foucault 2008a: 340-341).
16 Ao tratar das análises neoliberais em seu contexto geral, foucault revela que a economia passa a ter
como tarefa, não criar um mecanismo relacional entre capital, investimento e produção, mas analisar
o comportamento humano e sua racionalidade interna: “o que a análise deve tentar esclarecer é qual
cálculo que aliás pode ser despropositado, pode ser cego, que pode ser insuficiente, mas qual cálculo fez
que, dado certos recursos raros, um indivíduo ou indivíduos tenham decidido atribuí-los a este fim e
não àquele. A economia não é, portanto, a análise lógica histórica de processo, é a análise da racionalidade interna, da programação estratégica da atividade dos indivíduos” (2008a: 307).
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comportamento econômico (vendedor de substâncias psicoativas ilegais),
passa a ser governamentalizável (foucault 2008a: 345).17
o sistema socioeducativo é uma inovação do Estado brasileiro. Sua ambiguidade complexifica as relações de poder que transpassam a experiência de
um jovem como o zezinho. Ao situar os adolescentes como sujeitos de direitos,
o discurso institucional representa a possibilidade de os adolescentes mudarem
o comportamento desviante e assim se incorporarem à sociedade. desta forma,
as instituições do sistema socioeducativo fazem a sua parte, cumprem suas
funções racionais de controle da criminalidade e, ao mesmo tempo, promovem
oportunidades de construção de cidadania. o Estado constrói, assim, desde a
margem, a marca de distinção entre jovens aptos a voltarem ao convívio social
e jovens reincidentes. o sistema socioeducativo garante ao jovem o direito de
se “ressocializar”; permite que ele, por meio de sua razão individual, transponha a fronteira do “mundo do crime”. Se o jovem não a transpuser, isto indica
fraqueza individual (e da família), incapacidade de empreender um comportamento econômico que não seja um crime.
17 o índice de homicídios de adolescentes divulgado em julho de 2009 aponta o fato de que metade
das mortes de jovens brasileiros entre 12 e 18 anos é causada por homicídio. Além disto, a mesma
pesquisa estima, baseada nos números de 2006, que entre o ano citado e 2012, aproximadamente 33
mil adolescentes morrerão como vítimas de homicídio (uniCEf 2009). Simultaneamente, há, também,
o incremento expressivo de adolescentes em privação de liberdade. Em 2007, a Secretaria Especial dos
direitos Humanos (SEdH) da Presidência da República divulgou dados do “Levantamento nacional do
Atendimento a Adolescentes em Conflito com a Lei”, mostrando o aumento em 363% do número de
jovens internados entre 1997 e 2007, chegando hoje a dezenas de milhares em todo o país (documento
Referencial para o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo: SiNASE, 2005, brasília, Secretaria Especial dos direitos Humanos).
520
PAuLo ARtuR mALVASi
etnográfica
outubro de 2011
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Self-entrepreneur under suspicion: path and suffering of a teenager during socio-educational intervention Paulo Artur malvasi universidade bandeirante de São Paulo,
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[email protected].
this study examines the social and political nature of the suffering of a young person subjected to
“socio-educational measure”. from a foucaultian perspective of power, the article considers the subjective experience of the young individual in his interaction with the socio-educational system, and observes how power is manifested in the acts of some over others, in the reiterated deeds revolving around
SuSPEito EmPREEndEdoR dE Si: tRAjEto E SofRimEnto…
521
knowledge and authority that delineate the ways of action of the youngster within his own field of
action. the analysis of the subjective experience of the teenager subjected to a socio-educational measure shows how that intervention can place him at the limits of the possibility for integration, intensifying the sufferings of a life under constant suspicion. the adopted approach allows us to observe
how this young person produces meanings about the socio-educational system and how he expresses
through words, gestures and movements the contradictions of the public policy. the position of the teenager as someone who should individually explore the risks, the losses and the gains of his own choices
defines an area of confluence between the socio-educational speech and that of crime. Simultaneously,
a diffuse government apparatus and a management model of the drugs trade compete in the path of
the youngster subjected to socio-educational measure, each of the systems having its own strategies and
management schemes for his life.
KEYWoRdS:
social suffering, power and violence, socio-educational measure.
etnográfica
outubro de 2011
15 (3): 523-542
Juventudes e contemporaneidade:
entre a autonomia e a tutela
Ana Paula Serrata Malfitano
A juventude vem ganhando discussões e ações públicas mundiais em proporções ascendentes, caracterizada como um grupo social plural e emergente. Contudo, a partir de uma visão homogeneizante, os jovens são predominantemente
interpretados como um “problema político” que requer o desenvolvimento de
intervenções disciplinares e de controle. Tais intervenções debatem-se com a
constituição jurídica, cultural e social da juventude, questionando quem deve
estar em proteção, sob tutela, e quem tem a liberdade e a autonomia de decisão
sobre si. Os serviços sociais direcionados a essa população intencionam realizar
seu cuidado com vistas à promoção de sua autonomia. A partir de um trabalho
de campo de base etnográfica, realizado por quatro anos junto a instituições
sociais e a jovens que as frequentavam, apresenta-se a trajetória de vida de um
jovem no limiar de entrada para a vida adulta, compreendendo a passagem para
a maioridade como um evento crítico de sofrimento social. Enfatiza-se o acesso,
naquela história, a uma autonomia socioeconômica, mas que se apresenta como
exceção, devido ao pequeno alcance concreto das ações dos serviços sociais
junto aos jovens de grupos populares.
PALAVRAS-CHAVE:
juventude, autonomia, tutela, instituições sociais.
A TEmáTiCA dA JuVEnTudE VEm gAnHAndO O CEnáRiO PúbLiCO dE
debate por diversas vertentes.1 Perpassa a discussão acerca dos cursos de vida e
seus ritos de passagem, das mudanças na concepção de juventude como valor
sociocultural, enfatizando que, na contemporaneidade, acompanha-se uma
busca contínua pela permanência no estado juvenil, e não pela sua vivência
1
Parte das reflexões aqui apresentadas compõe a tese de doutorado A Tessitura da Rede, entre Pontos
e Espaços: Políticas e Programas Sociais de Atenção à Juventude – A Situação de Rua em Campinas, SP”, defendida na Faculdade de Saúde Pública da universidade de São Paulo, brasil, e orientada pelo prof. doutor
Rubens de Camargo Ferreira Adorno. Este trabalho contou com o apoio da Capes (Coordenadoria de
Aperfeiçoamento de Pessoal de nível Superior, brasil).
524
AnA PAuLA SERRATA mALFiTAnO
etnográfica
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15 (3): 523-542
como etapa de transição, a partir de uma configuração de dissolução da vida
adulta (Featherstone 1994; debert 2010).
no arcabouço investigatório sobre quem é o jovem na sociedade contemporânea insere-se a multiplicidade de juventudes, que pode ser tratada sob
as perspectivas social, cultural, política, econômica e outras (Abramo e León
2005). Porém, há uma demarcação fundamental sempre presente, assinalada
aqui como necessária para a discussão: a classe social a que o indivíduo pertence. A estrutura socioeconômica capitalista da sociedade ocidental define
uma importante vertente de análise que também cria diferenças nas possibilidades de vivência das juventudes. O acesso aos direitos sociais – como educação, cultura, saúde e outros –, aos bens materiais e à possibilidade de inserção
no mundo do trabalho são elementos relevantes para se refletir sobre quem é
o jovem e quais as perspectivas e possibilidades nesse estágio de liminaridade
e transição para a vida adulta. As diferenças entre as juventudes passam, também, pelas classes sociais, pela desigualdade socioeconômica, pelo acesso aos
direitos, pela diferenciação cultural de alguns grupos, dentre outros muitos
elementos. Pertencer a uma classe desfavorecida economicamente determina,
mesmo que não totalmente, as possibilidades de inserção dos jovens na sociedade.
Assim, opta-se, no presente trabalho, pelo enfoque nos jovens de grupos
populares urbanos, enfatizando a presença da relacionada discussão entre
sociabilidade, acessos, desigualdades e direitos. demarca-se o conceito de
sociabilidade enquanto construção do próprio social a partir da interação dos
sujeitos, definindo e redefinindo simbolicamente as diferenças socioculturais
(Frúgoli Jr. 2007).
Entre os espaços de sociabilidade juvenil, discute-se aqui o papel das instituições sociais e sua intervenção sobre os jovens, na sua proposição de promoção de ações para o cuidado e a tutela dessa população, visando sua autonomia
para a entrada na vida adulta. Partindo da compreensão da entrada na vida
adulta dos jovens de grupos populares como um evento crítico de sofrimento
social, conforme os conceitos de Kleinman, das e Lock (1997), problematizam-se os alcances institucionais para a autonomia de tais jovens.
Para tanto, parte-se de um trabalho de base etnográfica, para o qual lançamos mão de análises de quatro anos de terreno em serviços sociais direcionados a adolescentes em situação de rua, em um município brasileiro de grande
porte. Tendo como base nossa convivência com os jovens e com os profissionais da rede de serviços socais, assim como os registros formais das instituições, apresentamos parte da trajetória de Lucas, que alcançou sua autonomia
financeira após completar 18 anos, a partir da intervenção das instituições
sociais. Porém, sua trajetória pode ser interpretada como uma exceção, dado o
pouco alcance das ações efetivas promovidas pelas instituições sociais para a
autonomia dessa população, permanecendo, “apenas”, no escopo da tutela.
JuVEnTudES E COnTEmPORAnEidAdE: EnTRE A AuTOnOmiA E A TuTELA
525
JuVEnTudE E “PRObLEmA POLíTiCO”
Os grupos juvenis têm sido caracterizados como plurais e emergentes nas diferentes definições e concepções teóricas que os cercam (Abramo e León 2005;
iARd 2001). Entretanto, em contraposição ao discurso apresentado, observa-se
uma uniformização da ideia de juventude, considerando-a indistintamente
como um grupo único, para o qual se lança o olhar como “problema político”
necessitando de intervenção e de “controle”. Percebe-se tal fato pela crescente
preocupação e investimento internacionais verificados nos últimos quinze
anos, os quais buscam ofertar resposta às demandas sociais expressas sob a
forma da necessidade de intervenções assistenciais junto a essa população, seja
para a promoção de seu cuidado e proteção, seja para a tentativa de controle
da transgressão e da infração.
A construção do imaginário acerca das necessidades juvenis e sua inserção
na agenda política internacional, com ações implementadas pelos Estados e
por organizações não governamentais de âmbitos nacionais e internacional,
perpassa a “crise” contemporânea, acarretada pelas transformações no mundo
do trabalho, pelas novas formas de pobreza e de marginalidade (Attias-donfut
1996), assim como pela associação superficial entre violência e juventude.
Contudo, as discussões acerca das dimensões político-econômica e social que
calcam a demanda juvenil contemporânea ganham pouca visibilidade, prevalecendo o argumento da intervenção para o “controle” da violência. Este fato
é influenciado pela expressiva veiculação pela mídia de notícias relacionadas a
comportamentos violentos por parte de adolescentes e jovens (Sposito 2007) –
por exemplo, os episódios de manifestação popular com expressiva participação
da população juvenil ocorridos na periferia (banlieu) francesa, pela discussão da
situação social da nova geração de imigrantes, notadamente na Europa.
no caso francês, os jovens são, a partir dos anos de 1970, compreendidos
como as principais vítimas do desemprego europeu, sendo que as mobilizações
e manifestações são resultados sociais que demonstram a necessidade de intervenção em tal questão (dubet 1987). Entretanto, anos depois aparece a ênfase
da discussão pública das mobilizações nos episódios de violência e nas questões urbanas, articulados aos bairros de moradia de imigrantes, esvaziando o
discurso político acerca das manifestações e do desemprego, e restando o imaginário e a associação entre a violência e a população jovem (Loncle 2003).
bourdieu (1986) considera que o “problema da juventude” se instala quando
há a crise no mundo do trabalho e novas desigualdades estabelecidas. Assim,
constrói-se a visão uniforme e globalizada da juventude como “problema político”, instalado na esfera pública e que interfere na dinâmica social (Abad 2003).
Porém, é preciso assinalar que se trata de uma visão direcionada aos jovens de
grupos populares, na invisibilidade de sua multiplicidade sociocultural e na
compreensão pasteurizada da necessidade de seu controle para a ordem.
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AnA PAuLA SERRATA mALFiTAnO
etnográfica
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Portanto, um marco para a discussão da juventude centra-se na crise da
sociedade salarial, descrita por Castel (1998). O autor define-a pela diminuição gradativa de postos de trabalho assalariados levando a dificuldades, que
perpassam as classes sociais, na entrada e manutenção na esfera do trabalho
para todos, mas, em especial, para os jovens. Com isso, há uma tendência
transversal de prolongamento da juventude para que esses indivíduos tendam
a retardar sua entrada no mercado. Esse processo é percebido, de maneira mais
evidente, nas classes média e alta, nas quais os jovens têm passado por um
processo de escolarização formal aumentado, ampliando, também, o tempo de
dependência econômica de seus pais (iARd 2001). nos segmentos populares, a
necessidade e o imaginário em torno do trabalho permanecem e fortalecem-se
apesar desses elementos, culminando em uma maior contradição para os jovens
na dificuldade de acesso ao trabalho:
“Por um lado, muitos jovens de classes populares gozam de abundante
tempo livre, embora se trate de um tempo de espera, vazio, em virtude da
falta de trabalho, de estudo e de alternativas de um ócio criativo e vitalmente enriquecedor. [...] o tempo da angústia e da impotência, o tempo da
estigmatização social, um tempo que empurra na direção da marginalidade
e da exclusão, o tempo do ficar ‘marcando bobeira’ numa esquina, exposto
aos agentes de limpeza social. [...] por outro lado, nos jovens de classes
sociais com possibilidade de uma postergação legitimada das responsabilidades adultas, o período de formação tende cada vez mais a alongar-se, seja
pela complexidade dos conhecimentos exigidos para uma inserção profissional de acordo com as expectativas da classe, seja pela falta de um destino
econômico assegurado pela educação” (Abad 2003: 26).
Todavia, partindo desse cenário, no qual a intervenção política é demandada
para criar respostas, observa-se que tais ações podem reproduzir a ideologia
dominante ou, em contraposição, “contemplar configurações inovadoras que
compõem o campo de forças e de disputas que constituem o jovem como categoria social no interior dos espaços públicos da sociedade” (Sposito 2007: 6).
Para a compreensão das disputas e dinâmicas estabelecidas, que também
passam pelas instituições sociais e suas práticas implementadas, faz-se necessário lançar um olhar às múltiplas juventudes e suas formas de apreensão,
abordagem e intervenção. Abramo e León (2005) propõem um olhar acerca
das gerações e classes de idade, dos estilos de vida juvenil, dos ritos de passagem infanto / adolescente / juvenil, assim como das trajetórias de vida e novas
condições juvenis.
do ponto de vista cultural, Featherstone (1994: 62) aborda as “invenções” de fases e delimitações nos cursos da vida, destacando que nas sociedades modernas – “com base nos processos de industrialização, urbanização e
JuVEnTudES E COnTEmPORAnEidAdE: EnTRE A AuTOnOmiA E A TuTELA
527
administração pública das populações [...] – uma série de idades compulsórias
foram instituídas para começar a deixar a escola, assim como para ingressar
no trabalho, casar, votar, se aposentar, etc.”, resultando em “uma maior padronização e ordenação do curso da vida”. Acrescentam-se aos aspectos econômicos as mudanças culturais e sua retroalimentação, trazendo, atualmente, o
debate sobre as modificações, diferenciações, prolongamentos e novas demandas em torno da juventude. Tais fatores ganham complexidade em um contexto sociocultural contemporâneo de constantes e rápidas mudanças em que
a sociabilidade, valores e modos de vida enquadram-se e diversificam-se em
uma sociedade moderna, liberal, pós-contemporânea ou reflexiva, conforme as
nomenclaturas aplicadas nesse campo por alguns teóricos.
Circunscrevemos nossa vertente de análise nas trajetórias de vida e novas
condições juvenis, as quais são constituídas de forma não linear, criando percursos diversos que podem ser nomeados, segundo Pais (2005), de trajetórias
“ioiô”, na medida em que não têm previsibilidade e criam ciclos de idas e vindas entre as possibilidades de criação de vida pelos meninos e meninas.
buscamos, no relato etnográfico sobre a trajetória pessoal, possibilidades de
compreensão do cenário macrossocial da juventude e das ações a ela direcionadas, com destaque para o sofrimento social vivenciado.
Enfocamos a questão na passagem para a vida adulta, por meio da trajetória
de vida de Lucas, tendo como ponto de análise as ações institucionais direcionadas a ele e as possibilidades de ascensão à autonomia, que envolvem aspectos socioculturais e também desdobramentos nas especificações normativas,
como, por exemplo, no escopo jurídico.
PRinCíPiO JuRídiCO: O APARATO PARA CRiAnçAS E AdOLESCEnTES
nA SOCiEdAdE bRASiLEiRA
A constituição do aparato jurídico brasileiro contemporâneo de atenção às
crianças e aos adolescentes efetivou-se por ações políticas realizadas pelos
movimentos sociais pelos direitos da infância e da adolescência, aliados aos
movimentos pela democratização do brasil, na década de 1980, que estavam
juntos na luta pelo fim da ditadura no país. Como uma das consequências
desse momento histórico, a Constituição brasileira (brasil 1988) declara a
criança e o adolescente como “absoluta prioridade” (art.º 227.º), inaugurando
o reconhecimento do princípio jurídico brasileiro na atenção a essa população,
que se apresenta consoante com declarações internacionais, como a declaração de genebra sobre os direitos da Criança (1924) e a declaração universal
dos direitos da Criança (1959), revista e ampliada na Convenção da Organização das nações unidas sobre os direitos da Criança (1989).
Em continuidade com esse movimento, em 1990 há a promulgação do
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o qual busca uma universalidade
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AnA PAuLA SERRATA mALFiTAnO
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15 (3): 523-542
para os direitos e intervenções com todas as crianças e adolescentes brasileiros. O ECA (brasil 1990) estabelece os direitos básicos para todos, “proteção
integral à criança e ao adolescente” (art.º 1.º), definindo criança como a pessoa com “até 12 anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre 12 e
18 anos de idade” (art.º 2.º). A partir deste, delega: “É dever da família, da
comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta
prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação,
à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao
respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária” (art.º 4.º), reconhecendo uma “condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas
em desenvolvimento” (art.º 6.º).
A Constituição brasileira e o ECA determinam, no plano formal, a priorização desse grupo etário no âmbito da política social nacional, devendo ser
garantido orçamento para a realização de uma série de serviços pela lei estabelecidos, que visem à promoção do acesso aos direitos básicos, elencados para
todos, assim como uma estrutura de suporte para aqueles que não tenham
acesso a alguns direitos por meio da família ou da sociedade – como casos de
ausência da família – e, ainda, um sistema de reeducação para aqueles que
entram em conflito com a lei, por causa de delitos. Em outras palavras, o aparato legislativo brasileiro reconhece a infância e a adolescência como temática
prioritária de investimento pelas políticas sociais, sob uma perspectiva universalista, e estabelece a necessidade de criação de serviços, a serem efetuados
pelo Estado e pela sociedade (brasil 1990), que assegurem a autonomia desses
sujeitos para a vivência da idade adulta, compreendida, juridicamente, a partir
dos 18 anos.
A junção de aspectos econômicos, políticos e culturais consolidou, no plano
teórico, “altos ideais para uma sociedade ideal” (Fonseca e Cardarello 1999:
84), como aqueles estabelecidos nos princípios jurídicos brasileiros para a
atenção à infância e à adolescência que, todavia, manifestam um grande distanciamento da realidade vivenciada, considerando que é necessário admitir
“que os direitos humanos em sua forma abstrata e descontextualizada pouco
significam” (1999: 85).
Vale destacar que os avanços teóricos formais jurídicos, acima apresentados,
concernem ao universo de crianças e adolescentes, mas não alcançam a juventude. Embora haja referências a esse grupo e também exista uma fase de idade
congruente entre adolescência e juventude, segundo algumas divisões etárias,
trata-se de categorias diferentes, com problemáticas e demandas diferenciadas,
e que, portanto, requerem ações públicas diversas. O ECA caracteriza a criança
e o adolescente segundo a faixa etária, porém não aborda a juventude. Existe,
portanto, um legado de proteção instituído para a infância no brasil, alguns
apontamentos para a adolescência, porém nenhum aprofundamento jurídico
sobre a juventude. Essa mistura de termos estabelecida cria uma confusão de
JuVEnTudES E COnTEmPORAnEidAdE: EnTRE A AuTOnOmiA E A TuTELA
529
interpretações e compreensões, além da invisibilidade da ausência de ações
realizadas com a juventude. Pode-se dizer que, “se tomadas exclusivamente
pela idade cronológica e pelos limites da maioridade legal, parte das políticas
acaba por excluir um amplo conjunto de indivíduos que atinge a maioridade,
mas permanecem no campo possível de ações, pois ainda vivem efetivamente
a condição juvenil” (Sposito e Carrano 2003: 19).
nesse debate, em 2004, foi criada pelo governo federal brasileiro uma comissão interministerial, no poder executivo, que apresentou à Câmara dos deputados um projeto de lei que cria o Plano nacional de Juventude, que aguarda
aprovação, o Estatuto dos direitos da Juventude e a Proposta de Emenda
Constitucional, que incluiu o termo “juventude” na Constituição brasileira,
integrando o texto já existente sobre proteção às crianças e aos adolescentes.
Em 2005 foram criados também a Secretaria nacional da Juventude e o Conselho nacional da Juventude (novaes et al. 2006). Em 2010 foi acrescida ao
art.º 227.º da Constituição brasileira a priorização das ações com jovens, além
das crianças e adolescentes, já referidos no texto original. Reconhece-se uma
nova categoria jurídica em debate com a realidade sociocultural (Paula 2010).
Todavia, permanece a definição jurídica de entrada na vida adulta aos 18
anos, e é ela que conjuga o debate sociocultural sobre a (im)possibilidade de
muitas juventudes alcançarem a autonomia para o exercício de sua vida, tanto
na perspectiva econômica quanto subjetiva. Portanto, apesar da precisa definição legislativa, permanece o relevante debate entre a autonomia e a tutela
e, especificamente, sobre as possibilidades e impossibilidades de os serviços
sociais realizarem ações que promovam a tutela com a finalidade de facilitar a
autonomia aos 18 anos.
JuVEnTudE: O dEbATE EnTRE A AuTOnOmiA E A TuTELA
As ações sociais destinadas a crianças e adolescentes têm, no brasil, um escopo
de proteção e tutela, de acordo com os pressupostos jurídicos acima apresentados. A juventude inaugura-se então neste cenário, assumindo o lugar daquele
que também precisa ser protegido e ter garantido o acesso a seus direitos.
Entretanto, traz consigo o debate sobre a autonomia e as possibilidades das
ações sociais junto a essa população.
Essa polêmica perpassa a compreensão sobre quem deve estar em proteção,
sob tutela, e quem tem a liberdade e a autonomia de decisão sobre si. Os serviços sociais são direcionados para uma parte da população compreendida
como estando em situação especial de desenvolvimento, e a partir dos 18 anos
haveria, supostamente, outros recursos internos e externos para a autonomia,
para a vida.
Historicamente viveu-se, primordialmente, o modelo compulsório nas ações
públicas voltadas para as crianças e adolescentes populares, pelas quais essa
530
AnA PAuLA SERRATA mALFiTAnO
etnográfica
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população seria educada moralmente, de acordo com o projeto de nação da
elite brasileira (Rizzini 2008). Em contraponto, quando se criam intervenções
pautadas na desinstitucionalização, na autonomia e na liberdade de escolha,
modifica-se um legado instaurado e diversificam-se as possibilidades de intervenção com esse público.
nessa discussão sobre a maioridade e as vivências sociais dos cursos da vida,
as categorias infância, adolescência e juventude misturam-se e ora se distinguem
totalmente, ora representam o mesmo grupo. Contudo, é necessário demarcar
a diferenciação entre infância e adolescência, assim como as diferentes etapas
no interior da adolescência, pois a homogeneização de “crianças e adolescentes” retira a ênfase da necessária proteção das condições infantis. Quando se
trata de adolescentes, é preciso distinguir as características de um adolescente
de 12 e outro de 17 anos na prática de seus atos, na liberdade sobre si mesmo
e na autonomia e responsabilização pelas suas escolhas. As questões sociais
contemporâneas interpõem novos modos de vida que criam modificações no
que é compreendido e exercido como autonomia no contexto social.
Essas questões não têm um posicionamento único, pela diversidade de
vivências de infância, adolescência e juventude que são socialmente constituídas.
Adorno, Alvarenga e Vasconcellos (2005: 17-18) defendem que o conceito
de adolescência foi introduzido no universo médico para referir um período de
transição, “desprovido de identidade e de vida própria, mas considerado como
fase de latência, a exemplo dos processos biológicos de maturação”. Argumentam acerca da crítica às ações normativas dirigidas a essa população e conceituam:
“Opondo-se ao conceito de adolescência, a Sociologia trabalha com o
conceito de juventude como representativo do caráter que as novas gerações
trazem à sociedade, não a encarando, assim, como uma fase de transição
para uma idade ou identidade adulta, mas justamente como um campo de
inovação, de geração de novas identidades, de discussão de papéis e questionamento do caráter conservador das instituições, dos valores e das normas
sociais” (2005: 18).
A indistinção entre adolescência e juventude, ou ainda a substituição do
termo “adolescente” por “jovem”, não contribui para o debate sobre as diferenciações entre esses cursos e suas necessidades e características singulares que,
em alguns momentos, são congruentes; mas, de maneira geral, eles representam grupos distintos com compreensões e definições diversas.
no entanto, nenhuma das práticas estremadas, das mais conservadoras às
mais progressistas, enfrentou realmente a questão da autonomia e da proteção.
Permanece a difícil tarefa de mediação e debate em torno desse tema.
JuVEnTudES E COnTEmPORAnEidAdE: EnTRE A AuTOnOmiA E A TuTELA
531
Afinal, a que se refere a minoridade? na esfera pública brasileira, segundo
o referencial jurídico, a minoridade se encerra aos 17 anos e 11 meses, ou seja,
o jovem que completa 18 anos é considerado adulto e exposto às normas condizentes com esta faixa etária.
Especificamente com relação aos serviços sociais, como aqueles das áreas da
saúde e da assistência social, o atendimento, na maior parte dos casos, refere-se
à população adolescente, até os 18 anos, ou adulta, após os 18 anos, havendo
nessa fase, portanto, uma necessária ruptura de referenciais para aqueles que
estão nos equipamentos sociais.
Os meninos e meninas de grupos populares dialogam sobre essa passagem
de fases, sendo um assunto comum entre os jovens em torno dos 18 anos,
abordando a entrada na vida adulta pela impossibilidade de continuarem como
usuários de determinados serviços sociais que frequentavam, assim como pelo
temor do sistema judiciário “comum”.2
Acompanhamos um jovem que completou 18 anos e havia sido usuário de
um serviço de saúde por três anos. Após seu aniversário, não ultrapassava mais
a porta do local ao qual se dirigia diariamente até então, mesmo que fosse até o
serviço constantemente e ficasse do lado de fora solicitando, a partir da porta,
para falar com pessoas que conhecia. não havia nenhuma restrição para a sua
entrada, formal ou informalmente estabelecida, e havia mesmo o convite para
que ingressasse no local; contudo, sabia da sua perda de condição de usuário
daquele local e delimitava suas possibilidades de tutela por aquele universo
institucional por meio da porta de entrada, não mais cruzada após sua passagem à vida adulta.
O outro marco de passagem para a vida adulta dava-se pela possibilidade
efetiva de encaminhamento aos presídios, “novo serviço” que acessariam caso
fossem apreendidos pela prática de atos infracionais. Esse “temor” relacionado à prisão confirmava-se por algumas trajetórias, relatadas por jovens que,
com 18 anos recém-completos, eram encaminhados para presídios, quando
apreendidos em flagrante, na maioria dos casos por furtos, uso ou tráfico de
drogas.
Vemos, nesses casos, a explicitação da influência do fator externo à vida
cotidiana daqueles meninos, no caso a legislação da área da infância e da adolescência, como elemento causador de sofrimento social na passagem para a
maioridade, marcada pela posição de classe socioeconômica dessa população.
Passar a fronteira dos 18 anos implica, pelas questões legislativas componentes
do nível macroestrutural, a perda de acessos a serviços sociais que eram até
2
Para a justiça brasileira, os adolescentes, se apreendidos cometendo uma infração, são encaminhados para um serviço jurídico especial voltado ao atendimento de crianças e adolescentes. Após os 18
anos são encaminhados à justiça “comum”. Esse fato é do conhecimento dos jovens e entendido como
uma mudança concreta que testemunha a passagem para a vida adulta.
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então referências em suas vidas, bem como o medo de entrada na prisão, espaço
desconhecido e causador de sofrimento pela possibilidade de aproximação e
entrada. Trata-se, conforme descrito por Kleinman, das e Lock (1997), de um
evento crítico fortemente influente no nível local, na vida daqueles meninos e
meninas que passam a ser adultos, na medida em que ressignifica o cotidiano
de determinado grupo populacional a partir de sua existência jurídica e, com
isso, causando sofrimento social em determinadas histórias de vida.
Exemplo do quadro descrito ocorreu com uma jovem que, quando nas ruas,
levantava a suspeita de apresentar um rebaixamento intelectual, além de fazer
uso intensivo de substâncias psicoativas. Ela foi apreendida, com 18 anos,
participando de um furto e encaminhada para um presídio feminino na região
onde morava. Quando duas técnicas de um serviço que ela frequentava, ainda
adolescente, souberam da ocorrência, foram visitá-la e encontraram-na extremamente medicada. Os funcionários do presídio informaram que ela havia
sofrido uma “crise nervosa”, com muita agitação, e que fora encaminhada para
o serviço de psiquiatria que atende os internos, recebendo essa conduta médica.
Observa-se, conforme apontado por biehl (2008), uma “farmaceutização” das
questões de saúde mental da população de baixa renda, nesse caso, especificamente, no contexto prisional. As profissionais, embora não tivessem responsabilidade técnica “pelo caso”, procuraram a Justiça e solicitaram, formalmente,
a liberação da jovem, que ainda não havia sido reclamada por ninguém de sua
família. Quando discutiram junto à promotoria a possibilidade de atestarem
seu rebaixamento intelectual e a inadequação da intervenção medicamentosa
recebida no presídio, foram aconselhadas a não tomarem essa conduta, que
abriria a discussão do encaminhamento da jovem para o serviço de saúde mental judiciário e, assim, a possibilidade de sua liberação seria muito menor, uma
vez que dependeria da avaliação médica e, nas condições em que se encontrava
de ré primária e acusada de crime de baixa periculosidade, a liberação para
responder ao processo em liberdade era quase certa. O aconselhamento formal jurídico recebido demonstrava o lugar dessa população, também na condição de adultos, e o uso da “loucura”, e das doenças que a tangenciam, como
penalidade. Pela solicitação apresentada, a jovem foi liberada para responder
ao processo em liberdade. não se soube para onde foi nem com que meios.
Outros jovens relataram, tempos depois, que haviam se encontrado com ela
novamente nas ruas e sob o uso de drogas.
Wacquant discute a política dos presídios como um recurso de controle
dos pobres, chamando-os de “prisões da miséria”, argumentando que para as
classes trabalhadoras não há atualmente proposição efetiva de acesso a bens
sociais, mas sim ações denominadas de políticas sociais que se caracterizam
por um caráter cada vez mais rígido e legalista, enquadrando-se mais em um
perfil de controle e de não distribuição de bens e recursos sociais: “Trabalho
social e trabalho policial obedecem assim a uma mesma lógica de controle e
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reeducação das condutas dos membros fracos ou incompetentes da classe trabalhadora” (2001: 47).
de acordo com os princípios arrolados por Wacquant (2001), a autonomia
juvenil e a sua transição para a vida adulta, vivenciadas por aqueles provenientes de grupos populares urbanos, fechavam-se na perda da assistência até então
recebida, assim como na aproximação com o universo judiciário dos presídios,
reafirmando sua origem de vida e perspectivas possíveis para a vivência da vida
adulta, ou seja, de sua autonomia.
Esses elementos configuram-se como sendo de extrema relevância, e com
impactos significativos no sofrimento social vivenciado, assinalando a vida
daqueles meninos e meninas e perpassando a discussão acerca da delimitação
sociocultural e contemporânea sobre a passagem para a vida adulta e a vivência
autônoma de projetos de vida. A delimitação sobre a autonomia sobre si e os
caminhos possíveis de trilhar são elementos de difícil debate acerca das juventudes, especialmente daquelas em situações socioeconômicas desfavoráveis.
numa arena híbrida, influenciada por fatores de diferentes ordens, o papel
das ações sociais desempenhadas junto a essa população pode reforçar ou combater os aspectos da autonomia ou da tutela, na dimensão de acesso aos direitos sociais, implicando em consequências que traçam cursos diversos de vida.
LuCAS: EnTRE A TuTELA diFEREnCiAdA
E A PROmOçãO dA AuTOnOmiA POSSíVEL
Para ilustrar este debate sobre o acesso aos direitos sociais, o papel das políticas, dos serviços e da sua intermediação entre a tutela e a construção da
autonomia da população atendida, relataremos o caso de Lucas, a partir da
ótica dos serviços que o acompanharam, juntamente com alguns relatos seus,
buscando dar luz às contradições criadas no processo e na dinâmica vivenciados, e ao sofrimento social produzido.3
A história de vida de Lucas era pouco conhecida pelos técnicos da rede de
serviços, quanto à sua vinculação familiar, ao momento e motivos para a sua
saída para as ruas. Ele não falava muito sobre esse tema, dizia: “O meu passado
é uma coisa que eu não gosto muito de mexer, porque é uma coisa que, para
mim, dói, por tudo que eu passei”. Havia algumas informações em seus prontuários, provenientes dos serviços que tinha frequentado em seu bairro.
Lucas se iniciou na rede de instituições sociais com quase 17 anos, tendo
sido encaminhado por uma instituição para participação em um grupo de
3
Assinala-se que o relato apresentado tem a finalidade de discutir as ações implementadas para a
intervenção social, sob o questionamento da produção de autonomia e de tutela. Assim, pouco se lança
mão de relatos específicos do jovem, priorizando sua trajetória pelos serviços sociais.
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narcóticos Anônimos (nA).4 desde então, essa experiência o acompanhou em
sua trajetória institucional e também em seu discurso verbal sobre a vida nas
ruas e o uso de drogas, sempre enfatizando em seus relatos a opção consciente
de cada um para o uso e a necessidade de um desejo individual para a saída
dele, conforme os preceitos ensinados pelos nA. Após três meses internado na
comunidade terapêutica, foi encaminhado para um abrigo e transferido, posteriormente, para outras instituições.
nessas passagens pelos serviços de moradia, foi levado à unidade de saúde
para ser inserido nas atividades locais, com uma queixa, por parte dos técnicos, de um perfil “de crises de violência”, momentos nos quais diziam que ele
não controlava seus atos e colocava em risco a si mesmo e a outros, pela força
física de que dispunha, oriunda de sua estrutura corpórea. Por causa desses
argumentos, o serviço de saúde administrou medicação psiquiátrica, por um
período de quatro meses, para o auxílio na contenção desses “sintomas”.
A necessidade de um local para viver era fortemente manifestada na história de Lucas em todo o período de sua passagem pela rede de serviços sociais.
Argumentava enfaticamente sobre a impossibilidade de retorno para a casa de
sua família. Esse fato, vinculado à sua idade, próxima aos 18 anos, acarretava
o questionamento sobre qual seria a possibilidade de sua inserção social, sua
manutenção financeira independente e o espaço físico concreto que ele poderia ocupar para “morar”.
Os abrigos são opções provisórias de moradia, que não respondem à questão sobre a continuidade de um local para viver, para aqueles que não têm a
possibilidade de retorno para as suas famílias. Explicita-se uma situação eminente e concreta: como solicitar a vivência da autonomia da fase adulta sem
poder contar com um espaço físico de moradia?
Coloca-se a discussão em torno da proteção, proporcionada pela tutela, da
liberdade e da autonomia de decisão sobre si. Conforme apresentado, a ideia
de tutela das crianças e dos adolescentes, no âmbito da sociedade brasileira,
associa-se à proteção a ser oferecida pelo Estado, pela sociedade e pela família. Trata-se da busca de acesso aos bens sociais, visando aos direitos constitucionais. Entretanto, olhando para os cenários reais da vida cotidiana, tais
direitos são pouco acessíveis, na medida em que o padrão de desigualdade
econômica está estabelecido, esvaziando os sentidos teóricos para a proteção
e a tutela.
daí o debate diversifica-se em torno da questão de quem tem e pode
ter autonomia de decisão sobre si. O conceito de autonomia, classicamente
4
Os narcóticos Anônimos caracterizam-se como um grupo de autoajuda para enfrentamento do
uso de drogas, com base na doutrinação religiosa, abstinência e auxílio dos pares. Para uma discussão
aprofundada, a partir de uma abordagem antropológica sobre grupos de autoajuda, ver Fainzang
(2007).
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apresentado por Kant (1960), descreve a capacidade da vontade humana para
se autodeterminar, segundo a moral estabelecida e pelo sujeito aceita, efetivada num processo reflexivo. Portanto, a autonomia não se dá numa produção
“natural”, mas sim na elaboração sociocultural individual e coletiva dos sujeitos. nessa direção, Sennett (2004), a partir de Winnicott, aponta como necessária, para a construção da autonomia, a aceitação no outro daquilo que não
compreendemos, e destaca que conferir autonomia ao outro significa supor sua
participação nas condições de sua própria vida.
Assim, fica a questão de qual é a autonomia que pode ser estabelecida na
realidade dos jovens pobres e qual a tutela que se faz necessária para que consigam, efetivamente, construir, com liberdade, suas vidas. A temática é pouco
explorada e requer que seja ultrapassado o imaginário social existente sobre o
jovem pobre, para que sejam verdadeiramente discutidas as necessidades de
proteção e as possibilidades de autonomia.
na realidade que estudamos, fazer 18 anos, ou seja, passar a fronteira da
maioridade, significava perder algum nível de proteção e negociação e ser
totalmente responsável por si. Como consequência, era comum, nos relatos
dos profissionais, a percepção da maior adesão dos jovens, nessa fase, aos
serviços. A baixa adesão dos jovens às proposições institucionais é um tema
recorrente no discurso dos atores institucionais, nos apontamentos acerca
do acúmulo de uma maioria de não adesão. Assim, aqueles que “aderem”
às proposições e aos encaminhamentos, incorporando-se aos códigos locais,
acessam ganhos secundários (goffman 1974) no universo institucional, ou
seja, para eles são ofertados alguns benefícios diferenciados, que não chegam
para “todos”, e, assim, podem desfrutar de circulação, acesso e oportunidades distintos. Esse era o caso de Lucas, que, desde sua entrada na rede de
serviços, foi progressivamente realizando as atividades e encaminhamentos,
conforme lhe eram propostos, e assim acessava outras atividades e outros
lugares sociais ofertados pelos profissionais de diferentes equipamentos que
frequentava.
Lucas permanecia de forma contínua nos serviços, com alguns comportamentos considerados inadequados, comumente brigas e agressões físicas.
Aderiu, também, aos acompanhamentos médico-psiquiátrico e psicológico
propostos pelo serviço de saúde, havendo uma diminuição de suas “crises de
violência”, características de sua chegada à rede. Pôde, posteriormente, interromper o uso da medicação. Ele demonstrava também interesse pela realização de cursos de informática e, por isso, foi convidado a monitorar a sala de
computadores de uma das instituições, ficando nas máquinas por um tempo
superior aos demais usuários, que só poderiam acessá-las acompanhados de
funcionários e por um período limitado. São estes exemplos de situações nas
quais ele ocupava lugares diferenciados e ganhava a confiança dos profissionais, fato que ele percebia e claramente mencionava:
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“Todo mundo me conhece, como eu era no começo, que eu não tava nem
aí pra nada, não queria saber de nada, e depois eu fui mudando de comportamento, fui evoluindo. Comecei a fazer a oficina de informática aqui dentro
e depois eu peguei uma confiança que nem eu pensei que ia pegar, com o
pessoal aqui, que é uma coisa que dura até hoje. me chamam para fazer as
coisas, para ter participação nas coisas importantes e isso me deixa muito
feliz, porque essa confiança era uma coisa que há muito tempo eu não tinha.
As pessoas confiam de eu poder entrar numa sala sozinho sem ninguém
estar vigiando, a bolsa do pessoal poder ficar nos lugares, sem ninguém desconfiar que eu vou pegar. Então é isso!” [Lucas]
Lucas enfatizou, em seu discurso, um elemento relevante e perceptível na
vivência desses meninos: a falta de confiança neles como sujeitos. Sua menção e
percepção sobre “entrar nos locais sem ser vigiado” e “as pessoas confiarem que
não corriam riscos com a sua presença” demonstra, claramente, o lugar social
ocupado pelos jovens de grupos populares. Essa juventude, no imaginário social,
transita entre uma invisibilidade e uma visibilidade pela periculosidade, sendo
submetida, cotidianamente, a processos objetivos e subjetivos de humilhação
social (Soares, mV bill e Athayde 2005) que causam sofrimentos sociais.
dentro do universo institucional dessa rede de serviços, Lucas superou essa
posição e passou a ser um ombro de apoio para o funcionamento local, uma
via de acesso ao mundo da rua, uma figura positiva para a apresentação do trabalho desempenhado pelos equipamentos sociais. Estabeleceu-se, então, uma
“troca” na qual foi ofertada uma posição diferenciada para Lucas, como usuário
da rede de serviços, com acessos e posicionamento especiais, nos campos objetivos e subjetivos; e foi solicitada sua representação e relato, para o contexto
externo, do trabalho desenvolvido pelos mesmos serviços. Lucas passou a ser
convidado para participar dos fóruns coletivos da cidade como representante
dos usuários dos serviços para meninos e meninas em situação de rua e, assim,
foi inscrito e, efetivamente, participou de conferências, seminários, debates e
eventos sobre a infância e juventude, naqueles em que estava previsto assento
para os usuários. Com essa prática, ganhou um linguajar próprio desse meio,
apreendeu situações e processos de decisão, e incluiu, na sua fala, a temática
dos direitos e do protagonismo.5
“É importante participar, porque um adolescente entrando numa palestra é protagonista, montando o que ele tem para falar, ele acaba adquirindo
5
O termo “protagonista” foi difundido e divulgado no final da década de 1990 relacionado à educação não formal e às ações realizadas por jovens, podendo ser, ou não, mediada por adultos. Refere-se
à horizontalidade das ações e à assunção de ações e projetos sociais desenvolvidos no âmbito escolar
e / ou comunitário pelos próprios jovens (borba 2007). Acumula, também, muita crítica frente ao uso
indistinto do termo e a uma perspectiva “salvacionista” das ações da juventude.
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mais responsabilidade, acaba conhecendo coisas novas, pessoas, outros tipos
de pessoas, aprende a conviver com a sociedade. Porque um seminário é
mais ou menos a sociedade, tem o prefeito, aparece o prefeito, aparece assistente social, aparece pedagoga, enfim, aparece todo tipo de pessoa. E eu
acho, também, que o adolescente ser protagonista é uma coisa muito importante, porque é difícil para o adolescente poder expor suas ideias. isso é uma
coisa que antigamente não acontecia, de adolescente ir em seminários, fazer
apresentação e realmente falar o que ele pensa e as pessoas ouvindo, entrar
para uma mesa de debate. Eu acho que é, nossa, superinteressante! Principalmente pra mim, pra mim é interessante porque é uma coisa que eu gosto
de fazer. Que é conhecer os direitos e estar cobrando aquilo que por direito
é meu. Eu, então, gosto muito de mexer com isso, de dar palestra, de ouvir
os caras falando, de poder discordar ou concordar” [Lucas].
Lucas também se inseriu na rede formal de ensino. Frequentou-a pelo período de um ano. dispunha de um histórico no ambiente escolar mais longo do
que o da maioria dos adolescentes de sua idade e condição social e, embora
tivesse sido expulso da escola de seu bairro, ao contrário da realidade presente
do universo onde estava inserido, tinha um grau de conhecimento escolar diferenciado. Com essa avaliação, foi matriculado diretamente no ensino médio.
Teve problemas “de comportamento” na escola em que estava, o qual, segundo
seu relato, era resultado de suas atitudes críticas e contestadoras da metodologia pedagógica empregada pela professora local. Foi, então, transferido para
outra escola a fim de dar continuidade aos estudos.
Lucas vislumbrava a escolarização como possibilidade de mudança de seu
lugar social e abertura de horizontes para alcançar outro patamar, que poderia
ser acessível a partir de uma formação universitária. Por essa trajetória, via a
possibilidade de tecer sonhos e outros trajetos.
“minha vida daqui pra a frente é continuar, eu já tô quase para completar
18 anos, né? Eu acho que é pegar firme nos estudos, fazer os cursos profissionalizantes na área de informática, que é o que eu gosto, e se pá, fazer
assistência social, que é uma coisa que eu curto bastante também. Fazer
uma faculdade de direito, não sei, porque eu tenho várias coisas em mente,
de faculdade para eu fazer, e eu acho que, daqui para frente, também, continuar os projetos que eu tô começando agora, por exemplo, dar aula de
informática no CRAiSA, que é uma coisa nova, nunca pensei que eu ia dar
aula. E acho que é isso. E continuar correndo atrás do que eu quero, atrás
dos meus sonhos” [Lucas].6
6
CRAiSA: nome do serviço de saúde frequentado por Lucas.
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Para Lucas, a entrada na rede de serviços, e sua adesão a ela, foi a possibilidade de trilhar seu percurso, aproveitar benefícios que passou a acessar e criar
novos posicionamentos e funções sociais advindos desse processo. Com isso, o
futuro, e sua visualização, alcançou o discurso, os planos, os sonhos.
Após completar 18 anos, pelo seu “bom” comportamento, Lucas começou
a trabalhar em dois projetos sociais, passando, em um deles, da condição de
usuário para educador. Compôs a equipe, em uma organização não governamental, de ações com meninos e meninas em situação de rua. no outro local,
estava ligado a um projeto de democratização do acesso à informática, com
financiamento público, no qual ministrava aulas de computação.
Com isso, foi possível o pagamento próprio de sua moradia. morava com
um outro colega, com quem dividia as despesas de uma casa simples. Persistia
desenvolvendo o papel de representação política, por meio da participação
ativa nos eventos na área da infância e da juventude.
Sua autonomia foi viabilizada pela sua inserção no trabalho, por meio dos
serviços de que participou na condição de usuário, onde recebeu importantes
pontos de suporte pessoal e social, traduzindo-se em um amplo fortalecimento
de sua sociabilidade primária e potencialidades perante a vida.
É evidente o significado do trabalho remunerado na vida de Lucas e, a
partir dele, a possibilidade de ascender a um novo papel social, com sua
maioridade e inserção do outro lado da rede, na condição de trabalhador.
Juntamente com isso, continuou a contar com seu lugar “diferenciado”, entre
muitos técnicos, e apoios contínuos que certamente embasaram e favoreceram seu percurso.
no entanto, essa realidade não é oferecida para a maioria dos jovens ex-usuários dos serviços para crianças e adolescentes; para muitos, a “corda bamba”
da sobrevivência e as condições de pobreza permaneceram como elementos
centrais de sua trajetória e são “passadas” de geração para geração, impressas
nas histórias de pais, filhos e, talvez, dos filhos desses jovens.
Lucas seguiu as proposições a ele sugeridas, tendo deflagrado poucos
momentos de tensão e contestação. Pelos agenciamentos próprios que realizou, conquistou entre os técnicos uma permissividade e ganhos efetivos que
modificaram sua trajetória. Assim se compõem os momentos de “não adesões”,
pelo seu histórico, desde sua entrada na rede, junto aos de cooperação e de
enquadramento nos diversos encaminhamentos dos serviços. Com isso, seguiu
para um lugar diferenciado nesse contexto e verbalizava seus ganhos diretos
e secundários conquistados, a partir de sua adaptação à rede, às instituições e
aos trabalhadores.
Os ganhos obtidos por ele são nítidos e exemplificam uma mudança do
lugar social ocupado como usuário da rede de serviços, expressa diretamente
na oferta da participação e representação em seminários, conferências e
outros coletivos, para os quais os usuários dos serviços normalmente não são
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convidados, assim como na possibilidade de utilização de recursos locais, de
difícil acesso e interesse dos meninos. Obteve também ganhos indiretos, exemplificados quando relatou a autorização recebida para circulação por “espaços
exclusivos dos funcionários” no ambiente institucional e a não mudança de
comportamento por parte dos técnicos locais com a sua presença.
Esses benefícios possibilitaram sonhos de futuro para Lucas e a mobilização
dos agentes institucionais para viabilizá-los. O fato é de extrema relevância
e importância para o processo de trabalho de todos os serviços da rede. não
obstante, consideramos que não haveria espaço para todos, nesse mesmo grau
de atenção e proteção, caso houvesse maior disponibilidade para essa “adesão”
por parte dos jovens, ou para agenciamentos próprios que visualizassem esse
caminho. Essa história representa uma concretização da possibilidade efetiva
de ganhos diretos e secundários, mas eles são conquistados mais pela lacuna
existente dos poucos que aderem aos serviços, do que pela oferta universal
para aquele público. Os fatores que levaram Lucas a ocupar esse lugar, diferenciando-o na aceitação das proposições que lhe foram dirigidas, podem ser
de diversa natureza, pessoal e institucional; contudo, sua situação e trajetória,
influenciadas pelos serviços e profissionais que com ele trabalharam, parecem
ser possíveis apenas na atual estrutura de escassas adesões contínuas por parte
dos usuários.
COnSidERAçõES FinAiS
A trajetória de Lucas demonstra sua inserção autônoma na vida como um
jovem adulto, alguém que pôde viabilizar economicamente um lugar para
morar e reunir recursos para a sobrevivência por meio do trabalho, com sonhos
que apontam em seu horizonte como possibilidades para a sua vida.
Entretanto, a positividade de sua passagem pelos 18 anos apresentou-se, em
nossa experiência de terreno, como uma exceção, na medida em que a maior
parte daqueles meninos e meninas vivia a entrada na vida adulta como uma
amplificação de seu sofrimento social, o agravamento das condições efetivas de
vida e o ingresso maciço no universo prisional do mundo adulto.
Assim, optamos pelo relato dessa história para, na contemplação dos
ganhos efetivos naquela trajetória, apresentar a fragilidade de acolhimento do
sofrimento social, mesmo num contexto jurídico de valorização da infância
e da juventude, como no brasil, junto ao elogiado referencial do Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA).
É preciso ampliar a discussão acerca das efetivas possibilidades dos serviços sociais voltados aos jovens e analisar o que tem se produzido por meio da
tutela dessa população, bem como quais os resultados alcançados para a promoção de sua autonomia e exercício reflexivo para sua autodeterminação, nos
percursos criativos pessoais de cada jovem.
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não obstante, faz-se necessário afirmar que é ainda por meio das ações
sociais que se garante algum nível de proteção e horizonte de acesso aos direitos
para as crianças, adolescentes e jovens brasileiros. Colocar o foco em elementos
como aqueles trazidos pela história de Lucas objetiva as dinâmicas em curso,
tendo em vista o conhecimento e a reflexão aprofundados sobre elas, o aprimoramento da ação voltada para suas potencialidades, para a criação de espaços
que culminem em intervenções que venham a facilitar o acesso aos direitos
por parte daquela população, afastando-se de discursos que não se viabilizam
enquanto proposição, na medida em que envolvem uma gama de questões para
além daquelas superficialmente estabelecidas.
Portanto, discutir as ações institucionais de promoção da tutela com vistas
à autonomia de grupos juvenis requer a consideração conjunta de aspectos
econômicos, de criação de trabalho e emprego, a par dos limites colocados
pelas desigualdades sociais vivenciadas, numa perspectiva que suplanta a visão
homogênea da juventude como “problema político”.
Para que as ações públicas ajam na sua potencialidade é preciso que abandonem o paradigma do jovem como “problema”, referindo-se especificamente
àqueles advindos de segmentos populares, e instituam esforços para a ressignificação dos objetivos institucionais em uma perspectiva direcionada à vertente
emancipatória e autônoma.
nossa demarcação nos grupos populares visa ao aprofundamento e à compreensão dos tipos de respostas que vêm sendo produzidas no cotidiano das
políticas sociais, que são de natureza focal. Voltar-se a esse recorte da população tem o intuito de dar visibilidade àqueles que menos ocupam o lugar de
protagonistas e de debater processos e ações que realizem, ou possam vir a realizar, a promoção de direitos e de condições menos injustas e mais solidárias de
vida, em resposta ao sofrimento social vivenciado em função da condição em
que se encontram. Assim, trabalhamos pela circulação de projetos e ideias que
assumam o desafio da tentativa de promover a igualdade de oportunidades, em
uma estrutura previamente desigual e de precariedades.
Portanto, é preciso pautar o debate sobre a vivência do sofrimento social por
jovens de grupos populares, a especificidade da passagem para a vida adulta,
e o evento crítico aí estabelecido, para, então, se discutir as possibilidades e
limites das ações institucionais em torno da autonomia dessa população.
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Contemporaneity and youth: between autonomy and protection Ana Paula Serrata
malfitano departamento de Terapia Ocupacional, Programa de Pós-graduação em Terapia Ocupacional, universidade Federal de São Carlos, brasil
[email protected]
Youth, characterized as a plural and emerging social group, has been increasingly present in public
debates and actions globally. However, young people from popular classes are predominantly being
regarded though a homogenising perspective as a “political problem”, leading to the development of
disciplinary intervention and control. Such interventions struggle with the legal, cultural and social
constitution of youth, questioning who should be the youngsters under protection and guardianship,
and which ones should have the freedom and autonomy to decide about their lives. Social services
targeted to this population do intend to promote their autonomy. based on ethnographic work, done
for four years with social institutions and young people who attended them, the article presents the life
story of a young man on the threshold to adult life, understanding the passage to adulthood as a critical event of social suffering. We emphasize the access gained, in his itinerary, to social and economic
autonomy, but this case is presented as an exception, given the actual narrow effects of the actions of
social services regarding young people of lower-class groups.
KEYWORdS:
youth, autonomy, guardianship, social institutions.
etnográfica
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Atenção à saúde, direitos
e o diagnóstico como ameaça:
políticas públicas e as populações
em situação de rua
Rubens de Camargo Ferreira Adorno
Nesse texto discutimos questões de interface entre a política pública e a atenção à saúde para população em situação de rua, a partir de uma pesquisa realizada com essa população, que tratava de avaliar a sua relação com o controle da
tuberculose. A pesquisa utilizou a contribuição etnográfica juntamente com a
coleta de outros dados de caráter epidemiológico. Através de fragmentos de narrativas etnográficas, discute-se a questão das “margens sociais” a partir de uma
dualidade entre a ação técnica sanitária e os mecanismos de evitação social.
Tratar do tema da tuberculose significa evocar aspectos da sociabilidade desse
grupo social, de sua relação com as instituições, e permite explicitar mais um
aspecto do sofrimento social.
PALAVRAS-CHAVE:
populações em situação de rua, políticas públicas, intervenção
sanitária, sofrimento social.
NESSE TExTo PRETENdEmoS, A PARTiR dE umA PESquiSA REALizAdA
com as que vêm sendo chamadas no Brasil de “populações em situação de
rua”, apresentar fragmentos da trajetória de um grupo estigmatizado, excluído
e marcado por um intenso sofrimento social, que vem buscando ser visibilizado e “incluído” a partir do reconhecimento de suas “vulnerabilidades”, que
possibilitariam o canal de acesso às políticas públicas.1
1
Consideramos que as assim chamadas “populações em situação de rua” no Brasil, “sans domicile
fixe” na França, ou “homeless” nos países anglo-saxônicos, compõem um fenômeno social, presente nas
ruas das cidades mais ricas e emergentes da atualidade, e que passam a ocupar as margens e viver do
descarte que essas mesmas sociedades criam. Também vêm construindo o reconhecimento de sua identidade a partir da reivindicação de seus direitos, como a habitação, saúde e trabalho.
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RuBENS dE CAmARgo FERREiRA AdoRNo
etnográfica
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Vale lembrar que, na esfera governamental brasileira, as políticas de saúde
têm-se utilizado do reconhecimento das diferenças, das vulnerabilidades e da
participação, com uma intensa produção discursiva em torno da “inclusão” na
chamada atenção integral à saúde.
os dados que servem de base ao texto fazem parte de uma pesquisa realizada
entre 2006 e 2008 na cidade de São Paulo, Brasil, com financiamento do
departamento de Ciência e Tecnologia do ministério da Saúde brasileiro.
Na pesquisa que realizamos foi utilizada, além de uma abordagem de base estatística e quantitativa de interesse epidemiológico, a contribuição etnográfica.
Foram desenvolvidas quatro etapas de investigação de campo: um mapeamento, com a divisão da área central da cidade em dez setores que denominamos como “circuitos”, nos quais ocorria maior movimentação de moradores de
rua; a realização de entrevistas a partir de um formulário, ao qual responderam
862 pessoas em situação de rua; a aplicação do chamado método de “contagem e recontagem” para realizar uma estimativa do número de pessoas de rua
que frequentavam os circuitos selecionados; o registro etnográfico de situações
e acompanhamento de moradores de rua que contatamos durante um período
de seis a doze meses.
o uso da etnografia fez parte de nossa trajetória de pesquisa no espaço
da academia e na formação de pós-graduados no campo da saúde pública.
Em uma área na qual predominantemente os “sujeitos” aparecem diluídos nas
tabelas numéricas e associações estatísticas, a perspectiva da imersão no campo
traz para a pesquisa um aspecto fundamental, o da leitura das condições e dos
modos de vida a partir dos sujeitos, e, além disso, aponta que as questões de
saúde-doença, alvo da epidemiologia e da saúde pública, adquirem um caráter
mais complexo do que simplesmente o de resolver o problema do acesso a um
tratamento específico.
destacamos que o campo da saúde pública, no qual a epidemiologia tem
tido um papel central, com seu desenvolvimento facilitado pela aplicação dos
modelos matemáticos a partir da informática, tem levado a cabo o aspecto
realçado por Hannah Arendt, qual seja o de reservar para uma ciência abstrata
– a matemática – a baliza de verdade para o conhecimento técnico, esvaziando
a esfera reflexiva, e mais, restringindo a atividade científica ao trabalho com
bancos de dados, na maior parte das vezes sem dialogar com os contextos nos
quais esses dados foram gerados (Adorno et al. 2011).
A introdução das ciências sociais e, mais recentemente, da etnografia no campo
sanitário, se compreendida a partir da ótica das políticas e serviços de saúde, responde a uma lógica etnocêntrica, que atribui às ciências sociais um papel “técnico”
ou de ferramenta para trazer os grupos de difícil acesso para os serviços de saúde.2
2
No Brasil temos referência da incorporação das ciências sociais em estudos de saúde pública a partir
da década de 40 do século xx; o uso da etnografia de forma mais autônoma vai aparecer nos anos 90.
ATENção À SAúdE, diREiToS E o diAgNóSTiCo Como AmEAçA…
545
Expressões como “populações ocultas”, “populações de difícil acesso” ou “populações vulneráveis” fazem parte do repertório da saúde pública contemporânea,
notadamente após a epidemia do ViH-AidS.
Registramos ainda que a incorporação de estudos etnográficos no campo da
saúde pública também acompanha um momento de mudanças dentro do próprio debate que ocorreu na antropologia, como refere Epele (2010). Tal debate
envolveu o questionamento do fundamento da autoridade etnográfica em função da inserção da etnografia em territórios de intenso conflito, sofrimento,
urgências que desafiavam os próprios vínculos e dinâmicas sociais, nos quais
modos de sentir, viver e morrer extrapolavam os próprios limites institucionais,
sociais, políticos e econômicos da sobrevivência cotidiana.
Perante situações de extrema urgência, sofrimento e violência, atinge-se um
limite da capacidade de representar, pois na representação se acaba por construir uma visão metafórica ou normalizada do que sejam os seres humanos.
Assim, em situações de vida e de atos extremos, o campo passa a ser um lugar
em que se testemunham experiências, experiências que são compartilhadas
com o pesquisador presente, e que portanto passam a ser atestadas na construção da narrativa etnográfica (das 1999; Fassin 2006). Nessa perspectiva
consideramos que o trabalho etnográfico e a antropologia podem contribuir
para realizar um testemunho a partir das interfaces entre as ações públicas
e o espaço de sofrimento de grupos como as populações em situação de rua,
lugar também em que se colocam situações de uso crônico e marginal de drogas, populações indígenas, jovens em conflito com a lei, pessoas que tiveram
diagnósticos de doenças crônicas e que a partir deles sofreram processos de
exclusão e estigmatização.
Pesquisas que venham a iluminar o cotidiano através de narrativas dos
sujeitos vêm colocar problemas, no sentido em que relativizam o imperativo e
a autoeficácia da intervenção sanitária, questionando o lugar da “saúde” como
um dos campos que ainda vem afirmando uma certa filiação à modernidade, e
sua crença na ciência e na técnica como redentoras da doença e do sofrimento.
A identificação desses limites das ações sanitárias e das políticas empreendidas
para as “populações vulneráveis” apela ao recurso a novas sensibilidades para
apreender o cotidiano de vida na sociedade (Adorno e Castro 1994).
No caso brasileiro, essa relação com as políticas públicas, especificamente as
de saúde pública, necessita ser referida em uma história relativamente recente,
qual seja a do contexto de redemocratização e da chamada “reforma sanitária”
que ocorreu no Brasil desde finais dos anos 70, e do processo de incorporação
de demandas sociais através das políticas de Estado, tendo como plano também as relações entre sociedade civil e Estado no Brasil em relação aos grupos
“excluídos”.
Nossa hipótese é que, a despeito dos movimentos sociais e das tentativas de
organização das populações em situação de rua, da inscrição de suas demandas
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e reivindicações em documentos políticos, a lógica da relação com o serviço
não rompe com o assistencialismo, por um lado, e por outro chega a construir
algumas redes de solidariedade entre alguns profissionais no atendimento à
população em situação de rua.
A tensão também passa a existir entre uma lógica compreensiva presente na
prática da etnografia e nas ciências humanas e uma interpretação “técnica” e
“sistêmica” por parte dos agentes de saúde.
A TuBERCuLoSE, doENçA NEgLigENCiAdA E doENçA dE PoPuLAçõES
NEgLigENCiAdAS: iNoVAção TECNoLógiCA E TECNoLogiAS SoCiAiS
A questão da tuberculose enquanto “problema de saúde pública” insere-se hoje
numa lógica sanitária “global”, a partir do momento em que essa endemia passou novamente a ser considerada de maior “risco” na conjuntura do que chamaríamos do “pós-epidemia de AidS (sida)”;3 o risco nesse caso torna-se uma
categoria estatística, ou seja, o número de casos em determinado local e em
determinado tempo ultrapassa os “diagramas de controle” que são construídos
a partir do número de casos da doença notificados pelos chamados sistemas
de vigilância epidemiológica como parte das ações de saúde pública em um
determinado território.
Em termos de saúde pública, a tuberculose é também conhecida como participante do “elenco” das “doenças negligenciadas”, ou seja, aquelas que não
mereceram investimento no tocante aos programas de atenção e tratamento e
muito menos em relação à pesquisa de novos fármacos, que poderiam ter sido
desenvolvidos no sentido de oferecerem menores efeitos colaterais e maior eficiência no tratamento para as pessoas diagnosticadas com a doença.
A categoria “doenças negligenciadas” foi colocada no lugar de “doenças tropicais”, que destacava o critério geográfico como determinante na prevalência
de algumas doenças, refletindo ainda uma visão “colonialista” por parte da
organização mundial da Saúde (morel 2006). Coincidentemente, essas doenças – malária, tuberculose, hanseníase, etc. – foram negligenciadas no tocante
3
A referência ao “pós-epidemia de AidS” pretende marcar a distinção entre o momento histórico
do surgimento dessa epidemia moderna, que se tornou visível a partir dos casos ocorridos com as
comunidades gays e passou a mobilizar participantes dessa comunidade em diversos países (no caso
do Brasil, apresentou-se como um movimento de organização de oNg que passaram a ter um papel
decisivo na montagem dos programas, na mobilização da solidariedade e da prevenção, decisivos para
o “sucesso” de programas como aquele em que a distribuição dos anti-retrovirais é feita a partir do sistema público de saúde), e um momento seguinte em que ocorre a “pauperização” da AidS, e a expansão
da epidemia para mulheres das camadas mais empobrecidas da população, bem como sua expansão em
países da África e da Ásia. A tuberculose torna-se uma endemia que vai associar-se a essa disseminação
do HiV-AidS, vitimizando principalmente as populações em situação de pobreza, “exclusão”, ou o que
passou a ser construído como os grupos ou populações “vulneráveis”.
ATENção À SAúdE, diREiToS E o diAgNóSTiCo Como AmEAçA…
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à “inovação tecnológica”, categoria hoje presente no jargão da saúde pública
para referir o desenvolvimento de novos fármacos ou novas descobertas para o
controle dos agentes etiológicos das doenças.
É interessante mencionar que as chamadas “doenças negligenciadas” são
as que afetam principalmente o que chamaríamos de “populações negligenciadas”, como grande parte de populações do continente africano, e aquelas
que fazem parte das “margens” das cidades globais dos diversos países: populações de rua, populações encarceradas, usuários de drogas, trabalhadores
do mercado sexual, etc. – no caso de países europeus, também consideradas
“imigrantes” –, populações estas que coincidem com o que referimos anteriormente como as consideradas “populações de difícil acesso” para as ações de
saúde pública.
Verificamos que, nas últimas duas décadas, dois aspectos foram focalizados
em relação ao tema da tuberculose nos artigos publicados em periódicos de
saúde pública: o surgimento dos bacilos multirresistentes e a chamada estratégia
de “tratamento diretamente supervisionado” (Farmer e Kim 1998; Haddad et
al. 2005; Slory et al. 2007; Terra e Bertolozzi 2008); trata-se de duas questões
que se vinculam ao sucesso ou não do tratamento, sempre pensado no contexto
das “populações de difícil acesso”. o problema é colocado da seguinte maneira:
como os grupos vulneráveis tendem a interromper o tratamento – que exige
a tomada de fármacos durante um período mínimo de seis meses, fármacos
esses que em geral causam problemas gástricos ou outros incômodos –, e como
essa interrupção pode levar ao surgimento de bacilos resistentes à medicação,
deve-se “supervisionar” diretamente o tratamento para se ter certeza que os
medicamentos estão sendo ingeridos durante o tempo prescrito.
o tratamento diretamente supervisionado, representado pela sigla doTS,
implica no desenvolvimento de estratégias de aproximação ou “sensibilização”
desses grupos, de modo a que técnicos ou auxiliares dos serviços de saúde
possam ter a comprovação de que os indivíduos tomaram os medicamentos
exatamente como determina a prescrição médica. Essa questão passa, em geral,
para o domínio da enfermagem e, no que observamos no caso da cidade de
São Paulo, envolve tanto iniciativas que procuram negociar com a comunidade
e o grupo alvo das ações de controle formas de levar a cabo essa “supervisão”
do tratamento, como práticas daqueles que permanecem refratários ao poder
corporativo e determinam que os “pacientes” apareçam diante de si para realizarem a ingestão do medicamento.
Há ainda o que chamaríamos, no mínimo, de vestígio do modelo asilar, ou
da internação compulsória da população. Assim, em se tratando de “população
de rua”, o tratamento de tuberculose, que se reduz à tomada diária dos medicamentos, deve ser feito em regime de internação sob vigilância.
Nesse sentido, o tratamento de tuberculose passou a envolver o uso de “tecnologias sociais” que transitam da busca de compreensão e trocas intersubjetivas
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para a remoção para um hospital fora da cidade, onde os pacientes vão permanecer supervisionados e fora do convívio com os “sãos”. A perspectiva dos
epidemiologistas contemporâneos, porém, é a de que a “inovação tecnológica”
venha a “resolver” o problema da adesão ao tratamento, com o desenvolvimento de drogas que causem menor incômodo e possam ser administradas em
menor espaço de tempo.
destacamos que, em meio ao pragmatismo e ao pensamento de caráter sistêmico que predomina no campo da saúde pública, essas questões de acesso
são sempre secundárias relativamente às técnicas ou à “evolução” tecnológica. Essa questão, aliás, envolve hoje a própria complexidade das biopolíticas, entendidas como a gestão dos corpos e da vida no campo do poder do
Estado.
PoPuLAçõES dE RuA, ENTRE A iNSEguRANçA
E A CidAdANiA “FRATuRAdA”
A história recente tem mostrado maior visibilidade pública e organização das
populações em situação de rua na cidade de São Paulo, a partir de fóruns,
movimentos e manifestações públicas. Como registra de Lucca (2007), na trajetória desse movimento social ocorreu um deslocamento de lugar e do plano
discursivo, na relação e no sentido das reivindicações dirigidas ao Estado e à
sociedade.
Em um primeiro momento, os moradores de rua eram identificados com a
imagem de “sofredores de rua”, portadores de dor, agonia e sofrimento, traduzindo uma identidade construída a partir da influência dos chamados movimentos de organização de base da igreja Católica, por sua vez influenciada
pela “teologia da libertação”, presente também em outros segmentos de luta
na sociedade brasileira desde a década de 1970.
A partir da década de 1990, as questões problematizadas passam a centrar-se em um modelo de construção das “vulnerabilidades” e da exposição
aos riscos e à insegurança, o que leva a reivindicar do Estado a existência de
políticas e serviços dispostos à proteção das “populações de rua” enquanto um
direito social e de cidadania. A questão central da reivindicação também se
irá deslocar, da criação de locais de trabalho ou na denúncia da condição de
desemprego para a conquista do direito ao abrigo e à moradia.
A trajetória do tema das populações de rua na cidade de São Paulo e a
história em algumas cidades brasileiras situam a “construção” de sua visibilidade, também ligada à história política local a partir das administrações que
se posicionaram como politicamente de esquerda ou como “administrações
populares”.
Assim, vamos encontrar registros da edição de coletâneas e publicação de
atas de seminários sobre o tema apoiadas pela administração municipal, como
ATENção À SAúdE, diREiToS E o diAgNóSTiCo Como AmEAçA…
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por exemplo os livros População de Rua: Quem É, como Vive, como É Vista (Vieira
1992) e População de Rua: Brasil e Canadá (Rosa 1995), editados durante a gestão da prefeita Luiza Erundina.4 Essas publicações trazem a público experiências de projetos e trabalhos com essas populações, problematizando modelos
de assistência, abrigo e incorporação ao trabalho.
Não se pretende descrever a trajetória do movimento e da visibilidade política aqui nesse espaço; apenas cabe mencionar que, a partir da esfera local e do
apoio de administrações municipais, hoje esse movimento social se organiza
nacionalmente juntamente com outros atores da sociedade civil, denominando-se movimento Nacional da População em Situação de Rua e tendo conquistado, em dezembro de 2009, o decreto-lei sobre a Política Nacional para a
População em Situação de Rua, com o objetivo de promover a inclusão através
de ações e políticas setoriais a partir das áreas de governo: direitos humanos; segurança pública e justiça; trabalho e emprego; desenvolvimento urbano
e habitação; assistência social; educação; segurança alimentar e nutricional;
saúde; cultura; esporte e lazer (Rede Rua 2009).
A Política Nacional para a População em Situação de Rua, como premissa
da administração federal, apresenta objetivos bastante ambiciosos de articulação entre os diversos setores ministeriais, na intenção de propiciar uma rede
de proteção, promoção e assistência às populações de rua. Registramos esse
caráter ambicioso em duplo sentido: primeiro, pela articulação, na política
pública, de setores que operam corporativamente dentro do Estado, com um
histórico e processo próprios, tais como a segurança pública, que ainda se
vincula a um aparato policial ligado a modelos de organização militar, ou a
assistência social, que tem grande influência de um modelo assistencialista;
segundo, esse documento político agrega a presença de ministérios criados
mais recentemente, como o ministério das Cidades e o ministério da Cultura, e outras secretarias ministeriais, como as dos direitos Humanos e da
Segurança Alimentar, com um perfil de relação com a sociedade e gestão mais
democrática, mas com uma menor estrutura e poder de alcance. Tudo isto nos
remete ao segundo problema, o dos limites de implementação de uma política
pública federal em um país de dimensão continental como o Brasil, com mais
de duas dezenas de estados e milhares de municípios governados por diferentes clivagens políticas.
4
Luiza Erundina de Souza foi eleita prefeita da cidade de São Paulo em 1992, sendo a sua eleição
um marco da história democrática do país, pois seu perfil contradizia os padrões hegemônicos da elite
paulista e brasileira. Era uma mulher independente, migrante nordestina, assistente social, militante
das lutas por saúde e habitação, integrante dos movimentos populares. Foi uma das fundadoras do PT
– Partido dos Trabalhadores, e atualmente exerce o cargo de deputada federal pelo Partido Socialista do
Brasil.
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destacamos também que, a partir do ideário neoliberal, se amplificou a influência do ideário político norte-americano e as teorias que lhe deram suporte
foram se tornando comuns, generalizando a ideia de que a condição dos sujeitos pode ser explicada e julgada a partir de uma perspectiva moral e individual,
passando a ser assim condenados pela sua própria condição; trata-se do blaim
the victim que tem influenciado o enfoque e servido como justificativa para as
políticas públicas, intensificando a discriminação de grupos sociais como a
população em situação de rua.
Podemos registrar que a sociedade brasileira, a partir da agenda dos anos
1980, que colocava em cena os “movimentos sociais”, desde as fábricas até ao
bairro, acompanhou lenta e gradualmente a transição do regime político com o
fim da ditadura militar. A partir de então, grande parte do debate e da produção teórica das ciências sociais se debruça sobre o que se designaria um campo
de investigação sobre as questões da “fragilização” da cidadania, abarcando
desde a precarização dos serviços coletivos às questões da cidadania civil, o
que envolve a ideia da exposição à violência como uma violação de direitos
(Kowarick 2009).
Contrastando com a situação francesa e norte-americana, ocorre na sociedade brasileira um discurso institucional e político centrado na abrangência
dos direitos e na responsabilização do Estado; contudo, no plano da sociedade civil, ele se vê por sua vez fraturado por uma condição de “subcidadania
urbana” (Kowarick 2009), caracterizada por um Estado que estenderia lentamente os serviços básicos à população pobre, mas que exerceria um intenso
controle social e repressivo, através da polícia, a grupos que vivem na periferia das grandes cidades – jovens, jovens negros, etc. –, deixando por sua vez
precários também os serviços de segurança nessas áreas, que corroboram um
“imaginário social” que associa a essas populações os atributos da vadiagem e
da criminalidade.
Cabe ainda destacar o que ocorre por conta do espaço que a mídia televisiva tem na sociedade brasileira, especificamente por ação de um setor dessa
mídia que, segundo Caldeira (2000), tem origens no regime militar e produz
um tipo de jornalismo que, ao tratar de matérias sobre a violência, amplifica
sua ameaça e a própria sensação de insegurança civil. Essa militância ativa e
cotidiana dos meios de comunicação de massa, inclusive os mais populares,
associa sempre a imagem do “bandido” ou do “drogado” aos pobres, marginais
e moradores de áreas como as favelas, áreas deterioradas do centro das cidades,
de forma tal que essas pessoas passam a ser vistas como pessoas que não têm
direito a ter direitos.
No imaginário social ocorre o reforço da associação entre violência e
pobreza, o que talvez direcione a questão da culpabilização para além do
espectro individualista americano, mas para uma questão mais difusa de culpabilização de um conjunto social, situação que acaba por corroborar uma
ATENção À SAúdE, diREiToS E o diAgNóSTiCo Como AmEAçA…
551
“mentalidade exterminatória” (oliveira 1997). isso leva a que uma parcela
da opinião pública aprove eventos críticos marcantes, como o massacre do
Carandiru5 e o extermínio de moradores de rua.6
Para além dessa polêmica entre o Estado garantidor de um bem-estar social
e o livre mercado, e seguindo o desdobramento dessa questão como no caso do
contexto francês, vamos encontrar o caso brasileiro. Na sua história, o Brasil
passou a reconhecer direitos de forma segmentada, limitados a setores da
classe média e das classes trabalhadoras urbanas e, lentamente, foi estendendo
a atenção a outros grupos sociais, como os trabalhadores rurais, trabalhadores informais, etc.; a partir da Constituição de 1988, professa uma doutrina
universalista de promoção dos direitos à saúde, à moradia, ao emprego, ao
bem-estar social para todos os cidadãos, mas essa doutrina encontra limites na
própria ação política do Estado, no contexto de um país de dimensão continental e com um saldo histórico de grande desigualdade social. o que se identifica
hoje no plano político é a generalização do discurso que remete o tempo todo
à necessidade de resolver os problemas da pobreza e outras questões sociais,
juntamente com a implementação de políticas focais.
Atualmente, na mídia política, todos os partidos falam sobre a questão
social e os direitos; a diferença entre eles se coloca no estilo – obviamente, nos
gastos públicos e no sentido moral da maior austeridade e segurança, no tom
de compaixão religiosa com os “desfavorecidos”, na ideia de um governo voltado para combater a pobreza. o Estado, que sempre gerou diferenças ao segmentar a cidadania e distribuir privilégios segundo a inserção no mercado e no
aparato estatal, assume hoje uma política que tem como prioridade o combate
à pobreza, que por sua vez não remete à ideia de desigualdade, mas de inclusão
dos cidadãos mais pobres no mercado, ou seja, uma política focalizadora.
o sistema de atenção à saúde no Brasil é constituído pelo Sistema único de
Saúde (SuS); tem hoje uma cobertura universal e garante o acesso a atenção à
5
o episódio conhecido como “massacre do Carandiru” começou com uma briga de presos no Pavilhão 9, da Casa de detenção, conhecida como Carandiru, localizada em São Paulo e então considerada
a maior unidade prisional da América Latina. A polícia militar invadiu o presídio com a justificativa de
acalmar a rebelião e acabou realizando uma chacina no local. Foram afinal contabilizados 111 mortos,
com a polícia atirando naqueles que haviam já se rendido ou estavam dentro de suas próprias celas.
Não houve nenhum policial morto. o coronel da Polícia militar que comandou o massacre teve uma
primeira condenação, em 2001, a 632 anos de prisão. No ano seguinte foi eleito deputado estadual,
e como a sentença não fora executada, houve um novo julgamento feito pelos desembargadores mais
antigos do Tribunal de São Paulo, que o absolveram em 2006. o que acabou levando a protestos e
indignação de organizações de direitos humanos e da sociedade civil. No mesmo ano o coronel foi
morto sem aparente ligação com o fato. No muro do presídio, que depois foi demolido, apareceu uma
pichação com a inscrição: “aqui se faz, aqui se paga”.
6
Em 2004 sete moradores de rua foram agredidos a pauladas enquanto dormiam durante a madrugada. Foram socorridos a hospitais onde vieram a falecer; a partir de então ocorrem manifestações todo
ano na data em que ocorreram as agressões.
552
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saúde em todo o território nacional, segundo os princípios de universalidade,
integralidade, equidade e participação. dentro desse sistema, nos últimos anos,
a principal preocupação tem sido a produção de políticas de “inclusão” visando
à integralidade, a partir da focalização de grupos sociopopulacionais e suas
“vulnerabilidades”.
um dos modelos que tiveram êxito nos programas de atenção foi a construção do Programa das dST / AidS, paralelamente ao programa de atenção integral
à saúde da mulher, articulado juntamente com as organizações feministas e de
mulheres. Nos últimos anos foram focalizados os recortes da questão étnica –
a discussão de políticas de atenção diferenciada e intercultural às populações
indígenas, as demandas das populações afro-descendentes, de grupos nômades como os ciganos, ou ainda da população LgBTT (lésbicas, gays, bissexuais,
transexuais e transgêneros) e, mais recentemente, das populações em situação
de rua. Todos esses grupos vêm tendo o apoio institucional do ministério da
Saúde para que seus representantes participem na formulação de políticas e
planos de ação.
Essa focalização das demandas tem tido muito pouca interferência na prática cotidiana dos serviços, na qual outras lógicas entram na formulação dos
atendimentos.
Além disso, devemos frisar que as problematizações acerca de especificidades e identidades que tiveram impacto nas discussões das ciências sociais nas
últimas décadas, quando passam a ser assimiladas no campo da saúde, ganham
uma interpretação “técnica” ou “sistêmica”, ou seja, a que determina “protocolos” segundo o “risco” presumível em cada grupo social “vulnerável”.
dessa forma, classificações sociomorais acabam determinando o tipo de
intervenção sanitária, permanecendo viva a ideia da internação compulsória
daqueles que não saberiam se cuidar. Essa tendência é hoje amplificada pelo
fenômeno midiático que ocorre em relação ao que se tornou o grande problema
sociopolítico do momento: a presença dos usuários de crack na cena pública,
que apesar de ocorrer há mais de uma década tem hoje repercutido como uma
“epidemia” em expansão.
ViVER NAS RuAS: ENTRE oS LugARES, oS SERViçoS
E A gESTão PúBLiCA doS ESPAçoS dA CidAdE
No cerne da sociabilidade das pessoas que tomam o espaço das ruas para
firmar sua sobrevivência encontra-se a instituição da “maloca”.7 o termo
7
“maloca”, segundo o Dicionário Aurélio, seria um termo emblemático no contexto latino-americano: originário do idioma nativo araucano, significava “fazer hostilidade” depois da “pacificação dos
pampas”; no espanhol “platino” passa a designar a “aldeia de índios”, enquanto que no Brasil também
é entendido como a “casa dos índios”, para, finalmente, designar uma casa urbana que [continua]
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“maloqueiro” tem um sentido pejorativo, mas é usado como categoria nativa
entre os moradores de rua para referir-se àqueles que compõem as malocas, ou
seja, “lugares” encontrados nos espaços da cidade que possibilitam arranjos
para formar uma “casa” na qual um grupo passa a coabitar, ali dormindo, cozinhando e sobrevivendo como um grupo. A maloca pode ser chamada também
de “mocó”. As malocas costumam ser constituídas e dissolvidas dependendo
de conflitos ou da mobilidade dos que a formam. Como nota magni (1995), o
nomadismo também compõe uma das características dessa população. Há os
que têm maior mobilidade e que migram inclusive entre cidades, em busca de
trabalhos temporários e subalternos, que são chamados de “trecheiros”, que por
sua vez chamam de “pardais” os que vivem mais fixamente nas ruas, da coleta
de coisas que são trocadas ou arranjadas para uso ou consumo (Vieira 1999).
um fator importante de sobrevivência nas ruas é a atividade dos “catadores”, que passam o dia buscando latinhas usadas de cerveja e refrigerantes e
toda a sorte de material reciclável. Nessa trilha há tanto os que buscam alguma
coisa para obter algum dinheiro, como aqueles que desenvolvem essa rotina
como uma atividade constante e acabam por se filiar a cooperativas de recicladores, e como tal passam a se reconhecer como trabalhadores da “reciclagem”
de material, o que possibilita muitas vezes a saída da rua e a obtenção de uma
habitação popular através de programas públicos.
um hábito comum e que expressa as sociabilidades da maloca ou do
mocó diz respeito ao ritual do “intera” para a formação das “rodas de pinga”
(aguardente). Cada um dos participantes contribui com aquilo de que dispõe
para comprar a garrafa de aguardente que é bebida em conjunto pelo grupo.
A maloca é também, como descrito na etimologia do termo, uma estratégia de
defesa, pois possibilita uma resistência em relação às tentativas de desalojar o
grupo daquele lugar, e uma defesa de agressões externas ou ataques noturnos
que possam acontecer.
É interessante notar, como destaca Walty (2005) utilizando-se do conceito
de de Certeau (1994), que a população de rua utiliza “táticas” para sobreviver
ou enfrentar o cotidiano. A tática seria a ação possível, na ausência de poder,
para a proteção de um lugar na cidade. Também as diversas formas de angariar
alimentos, roupas e alguns utensílios, assim como alguns benefícios, destacam
aquilo que gregori (2000) chamou de “viração”, que compreende as táticas
utilizadas em relação às instituições públicas ou terceirizadas ou às ações de
grupos que distribuem alimentos e roupas aos moradores de rua.
É através dessas táticas que, no dia a dia da perambulação da cidade, são
conseguidos “lugares” no espaço urbano para servir de abrigo ou lugar de
passa a ser habitada por várias famílias, chamada também de “cortiço”. No Brasil, portanto, o termo
passa a ter, de palavra nativa, um sentido pejorativo para discriminar outros “nativos” que moram nas
habitações pobres, designando também “gente que não inspira confiança”, “bandidos”, “salteadores”.
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descanso. Para desempenhar essa tática conta-se basicamente com o corpo,
que deve estar em condições de movimento, e essa é uma questão que se coloca
na percepção do que seja estar doente – a doença é algo que incapacita para
o exercício das táticas no cotidiano e, nesse sentido, é sempre uma situação
limite.
No plano institucional, a estratégia que vem sendo utilizada em relação às
populações de rua tem sido a prática da remoção das “malocas”, ou dos utensílios – colchões, caixas de papelão, cobertores, etc… – que propiciem ocupar
algum lugar nos espaços da cidade, como forma de “educar” a população a
buscar os serviços que a municipalidade oferece a ela: casas de convivência,
tendas, albergues.
No tocante à instituição saúde, o enquadre institucional tem cada vez mais
intensificado a categorização dessa população como “desviante”, justificando
assim sua filiação aos enquadres da “saúde mental”; nesse sentido, o uso do
álcool e de drogas tem servido de insígnia para classificá-la na categoria de
“usuária de álcool e drogas” que necessita atendimento especializado. Notamos que esse enquadre passa a ser muitas vezes internalizado pela população
de rua, em um sentido tanto culpabilizante como tático quando se trata de
obter algum recurso. No caso específico das mulheres em situação de rua, atuar
de forma agressiva como “portadora de distúrbio mental” surge como uma
tática de defesa (Varanda e Adorno 2004).
dessa maneira, é importante destacar que, perante a existência de uma
constante ação intimidadora e repressiva de fixação da população de rua em
espaços da cidade, a sua relação com esses espaços e serviços se dá a partir de
diferentes táticas utilizadas e de maneiras de “se virar” no dia a dia.
Apesar da mobilização e da sensibilidade de setores governamentais na
esfera federal para estabelecer uma política pública, o lugar social das pessoas
em situação de rua explicita-se no cenário urbano pela inserção de obstáculos
de cimento nos locais em que provavelmente se alojariam ou pela retirada de
bancos nas praças para impedir que ali permaneçam. Nos locais em que logram
pernoitar são acordados pelo jato da água de caminhões-pipa que, ao lavarem
as calçadas, também atuam removendo os corpos que se encontrem ali.
Existem locais onde se aglomeram muitas pessoas para dormir: o aglomerado
é uma forma de ocupar e, por isso, marcar resistência nesse lugar é uma forma
de se proteger, além de ser uma forma de poder testemunhar os fatos, ainda que
sejam fatais, pois “quem morre abandonado é pagão”. Nesse aspecto reside uma
ambivalência que passaria a ser reforçada pela ideia de que a tuberculose podia
estar depositada entre essa aglomeração, ambivalência dada pelo fato de que seu
aparecimento, dadas as condições de vida, seria uma sentença de morte.
Por outro lado, preside o pânico de morrer sem ser visto, sem ser testemunhado. Assim, o sofrimento mais intenso, para quem já está apartado, é
apartar-se totalmente. desse modo, as investidas dos agentes de saúde para
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“detecção da doença”, ao lembrar da existência de uma doença para eles considerada mortal, passam a significar a ameaça de se amanhecer sem ser percebido, da mesma forma que sofrer uma ameaça externa, de algum agressor que
venha ali praticar uma violência, significa ser exterminado.
A procura de serviços por essa população pode ocorrer para realizar cuidados com o corpo, como os banhos, ou para buscar abrigo noturno, quando se
sente o corpo mais doente: ou seja, corresponde a “táticas” acionadas de acordo
com as necessidades de momento ou as urgências. os centros de assistência,
identificados como “núcleos de serviços”, “casas de convivência”, ou “comunidades”, oferecem o banho, mas costumam ter critérios para conter a demanda,
como mostra essa narrativa de uma situação que presenciamos, relativa à
negociação para entrar em um centro de convivência feita com um agente
social: “olha, a gente ’tá querendo tomar um banho, tem jeito?”; o agente responde: “Só com ordem do Cape […]; entra 20 pessoas com encaminhamento
do Cape…”8 Ao perguntarmos se ele entraria se tivesse levado uma guia de
encaminhamento, ele respondeu: “Não, porque já tinha encerrado as vagas, ’tá
entrando pouca gente”. A pessoa em causa ainda tinha a alternativa de procurar outro núcleo de serviços, a aproximadamente meia hora de caminhada.
Apesar da repressão às malocas ser justificada pelo poder público como uma
ação coercitiva para que a população de rua procure os equipamentos, a lógica
do serviço impõe barreiras burocráticas à entrada nos centros de atendimento
e nos albergues. Essas barreiras parecem responder a uma lógica da relação do
Estado com essa população. Pensamos que o fato de o Estado não atuar, ou
atuar de forma precária ou dificultar o acesso a quem se encontra nas margens,
não significa necessariamente que esteja fraco ali, mas, pelo contrário, colocar
entraves significa exercitar sua força nas margens para se reconstruir ou atualizar sua posição (das e Poole 2008). Podemos observar como a atribuição pelo
Estado de um “passaporte” para determinados grupos que se situam em suas
margens serve para disciplinar o comportamento de todo o tecido social.
oS ALBERguES: CoNFLiToS ENTRE PRoTEção E iNSEguRANçA,
A EduCAção PELA FAmíLiA, o CoRPo FAmiLiAR Em PRimEiRo LugAR
A lógica da barreira burocrática, assim como outras lógicas locais, é aplicada
também nos albergues. Pernoitar em um albergue significa abrir mão dessa
sociabilidade da rua, da maloca, que tem um caráter muitas vezes fluido,
mas de alguma forma escolhido. ir para um albergue é aventurar-se ao desconhecido, e assim a procura dessa forma de abrigo se intensifica nos meses
de inverno, em função da pressão cada vez mais intensa por parte da polícia
8
Cape designa a Central de Atendimento para população em situação de rua instituída pela Prefeitura municipal.
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municipal, que passa a interpelar as pessoas que encontra deitadas na rua.
A legislação municipal obriga a que durante o inverno, nas noites em que as
temperaturas fiquem abaixo dos 10º C, todas as pessoas sejam recolhidas em
abrigos de emergência. Essa lei “de proteção” teve o impacto de reforçar a
ideia da desproteção do corpo ao frio, relacionando-se também com o risco das
doenças respiratórias, a pneumonia e, por extensão, a tuberculose, assimilada
então como um eminente risco.
As pessoas podem ir ao final do dia para a porta dos albergues para tentar
conseguir uma vaga de pernoite, ou serem abordadas pelas vans9 da prefeitura,
que circulam no centro da cidade em período noturno recolhendo pessoas para
distribuir entre os albergues. Essas vans muitas vezes circulam entre dezenas
de albergues e não conseguem vagas para as pessoas que recolhem. Nos meses
de inverno são erguidos abrigos provisórios em terrenos da municipalidade.
quando realizávamos pesquisa noturna durante um mês de inverno, vivemos uma situação angustiante e tensa quando nos aproximávamos com uma
van, que era confundida com a viatura da prefeitura que passava para levar as
pessoas ao abrigo. Havia brigas para se colocar na frente, pois não se saberia
quando chegaria outra viatura, um grande aglomerado se formava e as pessoas
reagiam com raiva, xingamentos e revolta. A relação com os serviços e os seus
agentes envolve momentos de tensão e conflito; quando, especificamente, se
forma uma aglomeração, são insuficientes as táticas individuais de negociação
para a “entrada” na via institucional e há, por outro lado, uma exposição das
mazelas dos corpos, e alguns intercedem por outros apontando para doenças
e deficiências.10
A equipe de pesquisa fazia coleta de exames de escarro em período noturno
para diagnosticar a tuberculose; logo após a prefeitura começaria também sua
“campanha” de diagnóstico dessa doença. Consideramos que nossa intervenção trazia mais um agravante à situação, pois apontava para um nome que ali
talvez não devesse ser dito. durante o inverno, algumas pessoas chegavam a
morrer durante a madrugada ao dormir na rua expostas ao frio; a referência à
tuberculose era também a referência a uma ameaça, à morte. dormir na rua,
ao relento, passava a ter o significado de tornar o corpo mais fraco e por isso
de correr o risco de contrair a doença e amanhecer morto. o albergue aparecia
como uma proteção, mas representava também a ameaça do desconhecido, de
contrair a tuberculose do outro, que quando desconhecido não é o mesmo que
compartilha o espaço da maloca; na maloca, os que se agrupam estão sempre
a testemunhar o que acontece com o que está do lado, seja para proteger, seja
para pedir socorro.
9
Vans: carrinhas.
10 um relato acerca do serviço de emergência para transportar pessoas para o albergue é realizado por
daniel de Lucca Reis, que apresenta um quadro descritivo dessas tensões (de Lucca 2009).
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os albergues são gerenciados através de convênios de repasse de verbas
públicas da municipalidade para as chamadas “organizações sociais”, que estabelecem critérios para a admissão dos albergados, entre eles: não ter ingerido
álcool, obedecer às regras de convivência internas e, em alguns casos, mostrar
documentos de identidade. deve-se considerar também que as vagas de pernoite ofertadas não cobrem a totalidade da população de rua do município de
São Paulo. No último censo da população de rua realizado pelo município contou-se cerca de 10.000 moradores de ruas, numa cidade de cerca de 10 milhões
de habitantes, e onde a rede de albergues oferecia cerca de 6000 vagas.
A disponibilidade do usuário para participar em programas internos da instituição é uma moeda de troca que pode inclusive facilitar seu acesso a uma
vaga fixa. quando se adquire o direito a uma vaga fixa pode-se ficar até seis
meses pernoitando no mesmo albergue, tendo como condição o enquadramento nas estritas regras de disciplina da instituição. os que não adquirem
esse direito são chamados de “usuários de pernoites”, que estabelecem um
vínculo menor com a instituição de abrigo.
Sobre os albergues escutamos ainda a narrativa do que consideramos um
ritual de humilhação: todos os dias às 5 horas da manhã tocam sirenes e as
luzes são acesas para que todos acordem – para sair bem cedo para as ruas.
independentemente do tempo, de estar ou não podendo caminhar, todos são
obrigados a sair muito cedo para perambular pelas ruas. Referimos a narrativa
que escutamos de um dos componentes de um grupo de pessoas que foram
despejadas de um imóvel desocupado, onde haviam instalado sua maloca, e
fora então transferido para um dos maiores albergues da cidade, onde, segundo
ele, “tem que se sujeitar a conviver com todo tipo de pessoas”, e onde “as
pessoas ficam expostas ao contágio de doenças”.11 A instituição havia sido
associada a situações estressantes, insalubres e perigosas: “ficavam todos juntos” – se referindo a pessoas com problemas de saúde principalmente –, “tinha
roubo […]; teve rebelião lá dentro, quebraram parte das coisas […], a polícia
veio e usou spray de pimenta […], tinha gente com câncer de laringe, homens
com tosse, brigas”.
um fato a ser destacado é o da associação entre o ajuntamento do albergue
e o seu significado de perigo, o que nos faz pensar na questão clássica de mary
douglas (1976): ali o perigo consiste em juntar-se a desconhecidos, e portanto
conviver com corpos poluídos por doenças, além da possibilidade de transtornos morais (roubo, rebeliões, etc.).
os albergues, constituídos pela assistência social como um espaço de
alojamento, seguem uma lógica que não considera os princípios que se
11 o centro da cidade de São Paulo possui dezenas de grandes edifícios desocupados; o movimento
pela moradia estima que a utilização social desses imóveis responderia à demanda por moradia dos
“sem-teto”.
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estabeleceriam por normas de saúde pública; dessa maneira, não separam espaços para os que referem estar doentes ou têm sintomas respiratórios. A separação entre sintomáticos respiratórios e não sintomáticos seria, sem dúvida,
uma medida técnica recomendada em termos de saúde pública. Para tal, os
equipamentos necessitariam de reformas e modernização, assim como de um
maior espaçamento entre as camas e da diminuição do número de pessoas em
cada cômodo de alojamento.
A lógica de terceirização dos serviços implementada pela municipalidade
trabalha em função da organização que se disponha a oferecer o serviço por um
menor custo. Em algumas administrações municipais, politicamente mais sensíveis, alguns protocolos técnicos foram definidos com uma atenção mínima
à existência, por exemplo, de roupa de cama limpa, exigência de limpeza das
dependências, etc.
Assumir um problema sanitário implicaria em aumento de custos; além
disso, haveria a questão das competências corporativas no interior da administração pública: os padrões de exigência da assistência social não têm a mesma
direção que as exigências do ordenamento sanitário, onde a governabilidade
possível atende desde as questões da pressão do mercado na distribuição do
orçamento público até as questões corporativas.
os fóruns do movimento da população em situação de rua na direção de
buscar o atendimento às vulnerabilidades vêm dando destaque às reivindicações no campo da saúde. Ao assistir a uma reunião voltada ao tema da saúde, na
qual expusemos a pesquisa que realizamos apoiada pelo ministério da Saúde,
observamos que a denúncia do não reconhecimento das questões de saúde
por parte da rede de albergues dava destaque ao tema da alimentação servida
por essas instituições. mencionava-se que as refeições servidas eram muito
salgadas e acompanhadas de sumos muito doces, o que seria nocivo para os
hipertensos e os diabéticos. Pensamos então em como as prescrições sanitárias
especializavam as reivindicações que tomavam um modelo contemporâneo da
saúde pública – o da gestão do corpo em função das doenças crônico-metabólicas para evitar complicações futuras e, obviamente, gastos com a internação
por motivos de saúde.
A prevenção da diabetes e do sintoma da hipertensão segue um roteiro que
hoje vem sendo criticado por voltar-se para um padrão que atende principalmente às necessidades do mercado: se as pessoas não cuidarem de si, ficarão
doentes na idade madura e no envelhecimento e se tornarão um ônus para
o sistema de saúde bancado pelo Estado (a mesma argumentação que têm
revelado as lógicas das leis antifumo). Estaria esse modelo portador de uma
governabilidade dos corpos sintonizado com as condições de vida e saúde da
população em situação de rua?
o que pudemos refletir é que, de algum modo, falar em prevenção, ou falar
de uma vida saudável através da alimentação, é de certa forma apontar para
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um constructo futuro, e como tal assumir a continuidade da vida. Prevenir
uma doença como a tuberculose – que faz parte da memória e do imaginário
do estigma e da morte precoce – significa acionar um tema que se traduz em
maior ameaça.
outra característica que foi possível apreender do modelo de proteção explicitado pela política dos albergues foi o fato de priorizarem e disponibilizarem
melhores instalações para aqueles que não sejam homens ou mulheres sozinhos, que em geral são suspeitos e merecedores de estigma do imaginário de
que, não sendo uma família, passam a vida ingerindo drogas e / ou álcool, ou
apresentam problemas mentais. Há de certa forma a “promoção” do abrigo e
proteção aos que se apresentem como uma família. o termo “família” é sempre
mais bem assimilado e, claro, entendido dentro de padrões e modelos normativos que entendem como tal a família nuclear heterossexual. Há albergues
para alojamento de famílias, e nesse caso se admite a privacidade. Também
esses são os “casos” que, considerados como de “bom comportamento”, podem
candidatar-se a entrar na lista para receberem uma moradia nas habitações
construídas pelo Estado.
André, que “aderiu ao tratamento de tuberculose” e se mostrou disciplinado
e constante em retornar a uma unidade de saúde, conseguiu a vaga a partir da
intervenção da assistente social; saía cedo com a mulher e os filhos pequenos,
que vão para uma creche, enquanto o casal trabalha numa cooperativa de catadores de materiais recicláveis. Ao fim do dia, a mulher pegava as crianças na
creche e eles voltavam juntos para o albergue, a tempo de jantarem na instituição. No último contato que tivemos com ele, havia sido sinalizado com a possibilidade de conseguir um emprego na instituição que mantinha o albergue.
A contratação por instituições sociais e instituições conveniadas com o
sistema público é mencionada como uma alternativa de emprego, nesse caso
priorizando os grupos familiares. galvani (2008), que recolheu histórias das
trajetórias de inclusão experimentadas por pessoas em situação de rua, verificou que, além do emprego em instituições sociais e do trabalho com material
reciclável, podem existir outras perspectivas, como, por exemplo, a participação
como militante no movimento social, a conversão religiosa pela filiação a igrejas evangélicas, e as “artes e artesanato”. Nessas outras trajetórias incluíam-se
também e principalmente as pessoas sozinhas, mas as famílias permanecem,
no entanto, no centro da ação da assistência social.
A ATENção À SAúdE: oS AgENTES dE RuA
Como parte das estratégias do Sistema único de Saúde, um modelo racionalizador da atenção, o ministério da Saúde criou a Estratégia de Saúde da Família,
enquanto programa de controle da saúde com bases territoriais. Na perspectiva
da atenção a grupos especiais e vulneráveis, foram criados programas específicos
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em algumas cidades brasileiras, por exemplo o Programa de Atenção à Saúde
dos Sem domicílio, em Porto Alegre, ou o programa “A gente na Rua”, em São
Paulo. Através deste programa, a Secretaria da Saúde repassa recursos a uma
organização social para a contratação de “agentes comunitários de saúde”,
recrutados entre os moradores de rua para realizarem a tarefa de fazer encaminhamentos para as unidades municipais de saúde. o programa é duplamente
valorizado, por manter vagas de trabalho remunerado para a massa de desempregados da população de rua e por proporcionar a esta população um atendimento exclusivo instituído a partir de sua especificidade. A ideia básica era a
de possibilitar que o agente encaminhasse as pessoas que encontrasse na rua
para o atendimento e dessa forma evitasse que os serviços só fossem procurados quando a saúde das pessoas estivesse bastante comprometida.
Em uma ida a campo observamos o agente Francisco na orientação a usuários de albergues e instituições de atendimento diurno sobre cuidados e tratamentos de diabetes, hipertensão, AidS e outros casos, intermediando o contato
com as unidades municipais. Verificamos que também aqui preside nessa
atenção uma racionalidade sanitária típica das ações da chamada “nova saúde
pública” (Petersen e Lupton 2000), voltadas à prevenção de algumas doenças
crônicas, que certamente afetam a população em situação de rua. Verificamos
também que no próprio decreto federal que promove a inclusão da população
em situação de rua está inscrita uma lógica sanitária da “gestão saudável do
corpo”, para prevenir as doenças degenerativas como a diabetes e a hipertensão. de certa forma, essa ação tem ressonância no próprio movimento social,
como apontamos acima, nas reivindicações encaminhadas em relação ao cardápio alimentar dos albergues.
No entanto, recolhemos narrativas que problematizam a eficácia desse
programa no atendimento a situações recorrentes vividas na rua, em especial
novamente em relação a uma doença como a tuberculose. Assim nos contou
Benedito: o agente marcou uma consulta para confirmação e tratamento de
tuberculose, mas passados seis meses o doente não tinha conseguido ser atendido pelo médico. o encaminhamento de Regis, pelo mesmo agente comunitário, resultou no diagnóstico da tuberculose, mas ainda faltava esclarecê-lo
sobre o tratamento, pois este ainda temia ser internado e perder o ponto de
trabalho como catador e a vaga no albergue.
A comunicação e apresentação ao médico tornam-se extremamente complicadas por motivos de agendamento, apresentação de documentos, ou falta do
profissional no dia agendado para consulta. Por sua vez, o poder hierárquico
das corporações, dentro das normas de funcionamento das unidades de saúde,
não dá autonomia ao agente para gerir ele próprio o atendimento e tratamento
de seus pares.
Cerca de dois anos depois da realização dessa pesquisa realizamos visita aos
novos equipamentos que a municipalidade havia criado para as populações
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em situação de rua na cidade de São Paulo. As “tendas de rua” se constituíam
em equipamentos para serem construídos próximos a locais de circulação da
“população de rua”, onde encontrariam sanitários, locais para tomar banho e
espaços para convivência.
Na visita feita a um desses equipamentos recentemente inaugurado (em
junho de 2010), em uma praça localizada em uma zona mais popular do centro, observamos uma área ampla e repleta de árvores e cercada para “convivência” da “população de rua”: abaixo de uma tenda uma televisão ligada durante
todo o dia e pessoas deitadas no chão, sentadas em mesas em torno da TV,
algumas jogando nas mesas. Havia um fluxo grande de entrada e saída para ir
aos banheiros, bastante apertados e insuficientes, mas que ofereciam a possibilidade de se tomar banhos. Esse equipamento estava sob a gestão terceirizada
de uma organização social que, por sua vez, relacionava-se com o movimento
social da população de rua. um conflito se estabeleceu na altura da visita de
uma supervisora da prefeitura, que exigiu imediatamente que as pessoas deitadas se levantassem, justificando representar o poder público e não admitir
“modos” impróprios em sua presença.
Na esfera dos fóruns, do movimento social e das agências estatais – especificamente no âmbito da política federal –, muitas reuniões e documentos
detalham a especifidade das populações de rua e sua inserção em todos os segmentos assistenciais a partir da assistência social à educação, à política urbana
e, de maneira acentuada, à política de saúde (saúde da mulher e do idoso,
ViH-AidS, tuberculose, resgate, etc.), instituindo uma racionalidade técnica de
atenção de acordo com um modelo construído de “vulnerabilidades” de saúde.
Ao mesmo tempo, as relações entre esses usuários especiais e as instituições
continuam a ser regradas pelas práticas cotidianas carregadas de poder e discriminação, segundo os modelos de governabilidade que se baseiam na disciplina
e no escrutínio moral. Assim, a postura e o pertencimento são indicadores
usados para a inclusão: comportar-se como um assistido que reverencia quem
presta assistência e pertencer a uma família passam a fazer diferença.
ilustrativo ainda dos desencontros das políticas públicas é o fato empírico
de que, sendo essa população exposta cotidianamente a acidentes, entre eles
o atropelamento, quando eles ocorrem as pessoas são resgatadas e levadas a
atendimento de emergência e, caso tenham sofrido politraumatismos, acabam
sendo internadas e passam meses em cirurgias e intervenções hospitalares;
recebem depois a alta hospitalar e voltam imediatamente para a circulação
das ruas, sem acompanhamento fisioterápico, reabilitação e recuperação dos
movimentos, embora com o corpo cheio de “pinos” e “próteses”, como um
cyborg colocado novamente em circulação. Trata-se nesse caso de ser alvo de
uma política urbana de gestão do trânsito e da circulação na cidade, na qual o
atropelamento é categorizado como uma violência urbana, nesse caso alvo do
Programa de Redução das Violências empreendido pelo ministério da Saúde.
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Há certo paralelismo entre as ações da remoção dos descartes urbanos e dos
corpos em via pública. Entretanto, não se tratando de um acidente de trânsito,
quando alguém telefona para o serviço de resgate e, ao ser inquirido sobre a
morada do paciente, responde que se trata de uma pessoa que possivelmente
mora na rua, é comum ouvir a resposta de que o serviço de remoção médica
domiciliar (SAmu) não atende “moradores de rua”. Sobre esse fato discutimos
um dia com enfermeiros e médicos que trabalhavam no Sistema único de
Saúde, que objetaram existir uma “norma” para urgências. o acidente seria
uma urgência, como também se alguém é alvo de violência, ou apresenta sintomas graves e reside em uma casa. Em outra ocasião presenciamos uma reunião técnica no próprio ministério, com a participação de representantes da
“população de rua”, na qual discutia-se da implementação da política dirigida
a esses segmentos; o que foi considerado era a necessidade de um prazo para
que representantes do sistema de remoção domiciliar de cada Estado fossem
convocados para um novo treinamento e “sensibilização” para a situação das
populações em situação de rua.
mais contrastante ainda é o fato de que estas pessoas, ao sofrerem atentados violentos como as práticas de extermínio – que acabam, como dissemos,
tendo o apoio de parte da opinião pública, por se tratar, no imaginário social,
de “pobres” ou “possíveis bandidos” –, são recolhidas para unidades de recuperação intensiva em estado de “coma”, até falecerem dentro dos hospitais. Por
outro lado, as ações de identificação dos agressores exigidas pela justiça esbarram nas delegacias, que acabam por não identificar os agentes. As testemunhas
“desaparecem”, como ocorria durante o regime militar.12
TRAmAS SANiTÁRiAS ASSiSTENCiAiS, iNSTiTuição
E PRÁTiCAS dE moBiLizAção SoCiAL E ViSiBiLidAdE
NA gESTão dA VidA NAS mARgENS
Existe, portanto, uma hierarquia técnico-política de gestão da cidade que, ao
focar a população em situação de rua, estabelece tramas que vão da racionalidade técnica sanitária à gestão moral da assistência social.
A invisibilidade ou visibilidade de uma doença como a tuberculose parece
causar um desarranjo em diversas situações e assim nos remete a uma discussão sobre a contemporaneidade e a presença das doenças infecciosas, como se
fossem elas a ameaça de outra época que paira sobre uma organização da vida
que separou os que se incluem no sistema para viver e os que podem morrer
com uma morte silenciada.
12 Referências sobre um massacre estão disponíveis em <www.reporterbrasil.com.br / exibe.php?id
=387> (acesso em 21 / 04 / 2010).
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um fato que adquire positividade no campo da atenção à saúde é quando se
identifica nela uma dimensão intersubjetiva; algumas unidades de saúde concentram profissionais que tomam a “causa” das populações em situação de rua
e, a partir daí, subvertem os processos institucionais, viabilizando uma atenção
para além dos dispositivos de adaptação dos sujeitos a modelos de disciplina e
de adesão a “procedimentos técnicos”.
Fassin (2004, 2006), analisando a realidade francesa, chama atenção para a
questão trazida para as instituições sociais a partir de uma semântica que vai
das políticas de albergamento, emprego e imigração para uma perspectiva de
mobilização da ação social a partir da solidariedade, assistência, religiosidade
e espiritualidade. o que podemos sublinhar é que essas iniciativas convivem
com práticas reprodutoras de humilhação e desqualificação.
Biehl (2001) destaca a encruzilhada entre a tecnologia e a gestão das margens sociais, realçando o esvaziamento do campo intersubjetivo perante a ação
técnica, e a existência de lugares que se tornam depositários dos corpos que ali
se deixam morrer. outras etnografias, como a de Pereira (2007), focalizam a
formação de espaços que separam aqueles que, usuários de drogas, portadores
de AidS / ViH, sem vínculos afetivos formais ou visíveis, acabam sendo depositados em comunidades gestadas pela assistência e caridade, e ali se condenam
a deixar morrer.
o que pudemos verificar no caso da cidade de São Paulo é a existência de
uma tensão no dispositivo que pode ser enunciado como a gestão das populações em situação de rua, que estabelece uma lógica que nem se subordina
totalmente a um critério epidemiológico, tal como estabelecido por um padrão
global de gestão de uma doença negligenciada, nem a um padrão de assistencialismo cabal, ao qual se oferecem resistências cotidianas e ações públicas de
denúncia e reivindicações.
No caso da gestão da tuberculose, uma política de supervisão de tratamento
e o combate ao surgimento de um bacilo multirresistente implicaria um reforço
do cordão sanitário para separar uma população na qual a prevalência da tuberculose é, segundo cálculos de nossa pesquisa, 60 vezes maior do que na população em geral. o que se verifica é que a ação de controle depende muito mais
da vontade ou do engajamento de determinadas “figuras urbanas” de saúde
pública, ou de profissionais que estabelecem vínculos políticos e prioridades de
ação social com determinados grupos da população.
Assim, no caso do tratamento da tuberculose, como salientamos na introdução do texto, existe um protocolo que tem sido utilizado internacionalmente,
o da administração assistida do medicamento. As populações consideradas
vulneráveis devem ser acompanhadas cotidianamente na administração dos
remédios por técnicos. Esse protocolo é, por sua vez, interpretado de acordo
com questões corporativas do campo da saúde; assim, por exemplo, a enfermagem “convoca” as pessoas para que tomem o comprimido às suas vistas.
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Encontramos entre os profissionais aqueles que se tornaram mais próximos das
redes locais em que se integravam os moradores de rua, procurando distribuir
o medicamento para outras pessoas que se lembrassem da administração do
remédio ao portador de tuberculose, e havia instituições e pessoas que entravam em contato diário com o circuito dessa população e que às vezes também
ficavam com o medicamento para fornecê-lo quando encontrassem com aquela
pessoa no seu percurso cotidiano.
do ponto de vista das instituições assistenciais e das políticas públicas, o que
a pesquisa mostrou, ao se propor seguir o tratamento de casos de tuberculose
detectados durante o campo, foi que aqueles que buscavam formas de se integrar
aos serviços oferecidos, especificamente ao crivo estabelecido pela assistência
social para atendimento especial a “famílias”, foram suficientemente apoiados
para o término do tratamento. mas não foram os únicos, outra parte se tornou
“sadia” por fazer parte de organizações como as cooperativas de catadores,
participar dos fóruns e movimentos da população em situação de rua, ou se
incluir na rede de serviços gerida pelos profissionais sensíveis ou de alguma
forma engajados na saúde pública como um movimento social. Nesse último
caso pode-se dialogar com o que Fassin (1998) chama de redes formadas pelas
“figuras urbanas de saúde pública”, que articulam militâncias em torno de
questões sanitárias.
de uma forma ou de outra, essas questões derrubam a premissa da construção de “tecnologias sociais” de tratamento, entendidas como aquelas que
utilizam o “social” como ferramenta para uma ação técnica sanitária, como
descrevemos no início do texto.
Ainda como questão emergente no trabalho etnográfico cabe a própria apreensão da questão ética ao lidar com temas como o da saúde, quando ela aparece como ameaça diária, identificada pelos corpos que não acordam no dia
seguinte, como é constante nas narrativas cotidianas do viver nas ruas.
Além disso, pudemos destacar a vida da população em situação de rua como
tensionada por duas “ordens” na gestão da cidade. Em primeiro lugar, há uma
“arquitetura da evitação” ou do cimento, do concreto armado que aliás se
confunde com a estética da própria cidade de São Paulo (de uma arquitetura
cinza). Nesse ordenamento são retirados bancos de praças públicas, colocados
obstáculos de concreto nos baixos dos viadutos e pontes, cercas de ferro e
outros instrumentos para evitar a ocupação, da mesma forma que as lojas e os
estabelecimentos privados colocam cercas ou ferros pontiagudos nos limites
de sua entrada para evitar que pessoas durmam ali durante a noite. ou seja,
são ações que em nome de uma evitação afetam a qualidade do espaço público
para o conjunto de seus habitantes. um segundo aspecto deriva do fato de essa
ordem se vincular à circulação sistemática do chamado “rapa”: caminhões da
prefeitura que circulam todo o dia, apoiados por viaturas da polícia civil metropolitana (polícia da cidade), retirando os pertences dos moradores – cobertores,
ATENção À SAúdE, diREiToS E o diAgNóSTiCo Como AmEAçA…
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papelões, pequenos colchões, sacolas, etc. Esse material é juntado pelos moradores, que em sua circulação recolhem o que encontram pelas ruas da cidade, e
são objetos úteis a seu “conforto” ou com os quais estabelecem alguma relação
de posse, de “identidade”, ou objetos que têm um valor de troca (aguardente,
alguma droga, ou aquilo que convier). São mecanismos para estabelecer “reciprocidades”, ou seja, para infundirem sobre o cerne de sua vida na cidade a
solidariedade existente na instituição da maloca ou dos mocós, em que se realiza uma economia das emoções.
Estabelecer um canal de reivindicação para políticas públicas compreende
sem dúvida a “promoção” da visibilidade da vida, o que entretanto pode tomar
um sentido contrário ao das sociabilidades estabelecidas no cerne dos agrupamentos que se formam na rua.
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Health care and diagnosis as a threat: public policies and homeless people Rubens de
Camargo Ferreira Adorno Programa de Pós-graduação em Saúde Pública da universidade de São
Paulo, Laboratório interdisciplinar de Pesquisa Social em Saúde Pública, Brasil
[email protected]
in this text we discuss issues of the interface between public policy and health care provided to the
homeless population, from a survey of this population intended to assess its relationship with tuberculosis control. The contribution of ethnographic research has been used along with other data collection
of epidemiological character. Through fragments of ethnographic narratives, we aim to discuss the
issue of “social margins” taking as the starting point a duality between sanitary and technical action,
and mechanisms of social avoidance. Addressing the issue of tuberculosis control among the homeless
means to evoke aspects of the sociability of this social group, its relationship with the institutions, and
allows for the clarification of yet a different aspect of social suffering.
KEYWoRdS:
homeless, public policies, health intervention, social suffering.
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Tornar-se “noia”: trajetória
e sofrimento social nos “usos
de crack” no centro de São Paulo
Bruno Ramos Gomes e Rubens de Camargo
Ferreira Adorno
Este texto reflete sobre as trajetórias de sujeitos, das mais diversas idades, que
passaram a ocupar regiões específicas do centro histórico da cidade de São
Paulo, no Brasil, em torno do uso do crack. A partir da observação etnográfica
feita nos últimos cinco anos na “Cracolândia” e dos relatos de algumas destas
pessoas em situação de rua que fazem intenso uso de crack, buscamos compreender as trajetórias dos usuários até “tornar-se noia” e os agenciamentos que
utilizam para a manutenção e sobrevivência cotidiana nos espaços de uso e para
lidar com o sofrimento social decorrente dessa condição.
PALAVRAS-CHAVE:
territórios, crack, trajetória, sofrimento social, redução de
danos.
O PRESEnTE TRABALHO TEm ORigEm nA ExPERiênCiA dE um dOS
autores, Bruno Ramos gomes, que, na condição de ator social de uma Ong,
conviveu nos últimos cinco anos com usuários de crack na região conhecida
como “Cracolândia”, parte do bairro da Luz, no centro de São Paulo, e decidiu
aprofundar o estudo do tema em programa de mestrado em Saúde Pública
da universidade de São Paulo (uSP), propondo-se exercitar um olhar etnográfico.
O estudo dessa região e dos usuários de crack da região central da cidade de
São Paulo tem sido alvo de pesquisas realizadas no âmbito do Liesp (Laboratório interdisciplinar de Pesquisa Social em Saúde) na instituição referida. Esse
texto foi produzido a partir de uma experiência de inserção no campo com a
contribuição de um olhar etnográfico. Buscou-se a sistematização da experiência de campo que os autores possuíam de visita e abordagem a esse território, no
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qual se produziram dissertações e teses que utilizaram a etnografia no campo
da saúde pública, como se encontra apresentado também em outro artigo desse
dossiê, que trata do tema das populações em situação de rua.
A partir dessa experiência inicial, os autores fizeram uma revisita ao campo,
motivados por recentes investidas policiais que se assemelharam a mobilizações de guerra, com presença de cavalarias, carros blindados e inspeção policial
constante durante vários dias. Tais operações não têm conseguido remover os
usuários dessa área. A movimentação policial e o esforço de outras áreas do
governo municipal – como agentes da assistência social, da saúde e fiscais da
vigilância sanitária, funcionários das companhias de energia elétrica, de gás e
saneamento – têm exercido pouca influência no controle ou encaminhamento
dos “noias” (categoria nativa usada para identificar esses usuários) para tratamento; o que vem ocorrendo é um deslocamento dos usuários dentro da mesma
área da cidade, como uma tática de avanço e recuo. Quando estabelecimentos
são fechados em uma rua, deslocam-se para algumas quadras adiante, permanecendo na região os estabelecimentos por eles frequentados, como pequenos
hoteis, pensões, bares e casas de garotas de programa.
importante destacar que a relação com as pessoas neste local aconteceu através de idas a campo junto com agentes de redução de danos de uma organização
não governamental chamada Centro de Convivência É de Lei.1 Este serviço
mantém um tipo de relação de proximidade com os usuários que não se insere
no projeto governamental de requalificação da área, em que participam os outros
agentes da prefeitura. O distanciamento do aparato oficial possibilita à Ong um
acesso diferenciado aos usuários de crack. Este tipo de acesso e o tipo de diálogo
que permite estabelecer com eles serão discutidos mais adiante no texto.
A CRACOLândiA nA REgiãO CEnTRAL dE SãO PAuLO
de acordo com Silva, historicamente se percebe que a região hoje conhecida como Cracolândia é desde o começo do século xx “um espaço de passagem, de possibilidade de acesso a locais mais desejados” (1999: 35). A área
da Cracolândia encontra-se entre duas estações de trem e a antiga estação
rodoviária da cidade de São Paulo, tendo em suas redondezas um fluxo grande
de pessoas que tomam trens suburbanos, além de hoteis e pensões de baixíssimo custo. O espaço, delimitado por alguns quarteirões perto das estações,
se aproxima bastante do que fernandes e Pinto (2006) chamam de território
psicotrópico.
1
O Centro de Convivência É de Lei surgiu no final da década de 1990 com o objetivo de desenvolver estratégias de redução de danos sociais e à saúde relacionados ao uso de drogas. Caracteriza-se como
um espaço de sociabilidade e acolhimento para pessoas que usam drogas e por ações nas regiões de uso
de drogas na cidade de São Paulo.
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Estes são os lugares em que a vida corre em torno das drogas ilícitas: no caso
da pesquisa de fernandes e Pinto (2006), a heroína e a cocaína e sua vida nas
ruas de bairros periféricos da cidade do Porto; neste caso, a cocaína nesta composição particular que possibilita que seja fumada e rapidamente absorvida – o
crack. de acordo com esses autores, um território psicotrópico é reconhecido
pela função que desempenha, sendo também sedutor para os indivíduos que
têm interesses em torno das drogas, sejam eles consumidores ou traficantes,
e apresenta regras informais que regem estes estilos de vida, além de comportamentos de defesa frente a estranhos por parte dos que ocupam este espaço.
Constitui-se como interstício espacial e ponto final do longo processo de produção e distribuição das drogas.
nestes bairros periféricos há uma mescla do público e do privado na organização do espaço que é constituído no interstício entre estas duas áreas que
ao mesmo tempo se interpenetram: o espaço público é utilizado de forma
privada para o consumo de drogas e sua venda, ao mesmo tempo em que o
espaço privado das residências se torna público pela constante entrada e saída
de usuários para compra e consumo da droga.
Alguns aspectos aproximam o bairro da Luz e a forma como a região é ocupada pelas atividades em torno do crack desta noção de território psicotrópico,
enquanto outros os distanciam. A região de nosso estudo, apesar de estar no
centro da cidade e de ter sua existência constantemente combatida pelo poder
público, também se constitui como um local com regras informais diferentes
do resto da cidade em relação ao uso de drogas. Perto de pólos comerciais
especializados em diferentes setores, como a rua Santa ifigênia (pólo comercial de eletro-eletrônicos) ou a rua guaianazes (pólo de oficinas e venda de
peças de motos), a região delimitada pelas ruas Cleveland, mauá, nothman,
guaianazes e a avenida duque de Caxias se constitui como referência importante da venda e consumo de crack, e não só para quem ali habita. Pode-se ali
encontrar usuários de drogas das mais diversas classes sociais, originários de
diferentes bairros da região metropolitana de São Paulo e nas mais diversas
situações: pessoas arrumadas com terno ou roupas de trabalho que passam ali
apenas para comprar a droga ou para fumá-la em algum intervalo do trabalho;
jovens de classe média ou alta; crianças em situação de rua; catadores de material reciclável.
É interessante também observar que este território se move para as regiões
adjacentes, de acordo com as ações de repressão que vai sofrendo: antes das primeiras ações da prefeitura o território chamado de Cracolândia situava-se apenas algumas quadras ao lado. Esse espaço, através dos pequenos hoteis, pensões
e bares e do consumo e venda de crack na rua, se constitui como espaço público
quase que em toda sua extensão, excetuando-se os quartos de hotel. grande
parte das pessoas que habitam ali passa todo o seu tempo na rua, realizando
todas as suas atividades exposta à população em geral, carregando a identidade
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de usuário nesta exposição. não existe intimidade, todos estão homogeneizados sob esta identidade. junto com esta dinâmica peculiar no espaço público
se instauram regras de convivência diferentes do resto da cidade.
desde o início da década de 1990, época também em que começou a incorporação do uso de crack como mais uma atividade no uso do espaço cotidiano
da rua ali existente, se tem um movimento de associações comerciais em conjunto com o governo para transformar a região central em local atraente para
empreendimentos imobiliários e para a circulação das pessoas de nível socioeconômico elevado. Com a implantação de uma sala de concertos de música
clássica, um ateliê, um museu, além da sede da companhia de dança do estado,
esse movimento se intensificou desde 2005, como uma das bandeiras da atual
gestão política. A partir das atividades em campo neste período e dos relatos colhidos pode-se perceber o sentido que tem estar ali para as pessoas que
por motivos diversos se estabeleceram, mesmo que temporariamente, neste
espaço.
Apesar de extremamente instável e de constituir-se mais como espaço de
trânsito, já que muito geralmente estes usuários não têm uma residência no
local e ficam em situação de rua sem uma fonte fixa e formal de renda, pode-se
perceber entre eles uma constância na ocupação da região.
Essa persistência em ficar na região, mesmo com as frequentes ações policiais, é conformada por diversas questões sociais e se dá através de ações táticas que lidam com os instrumentos de poder e com os lugares de cada um ali
no local. A constante exposição pública e as investidas de todas as instituições
para gerir o espaço, a ponto de organizarem verdadeiras intervenções militares,
com uso de cavalaria, grandes equipes integradas de áreas tão distintas como
a saúde, a assistência social e a companhia de eletricidade, armamento pesado
e cobertura midiática criam uma constante tensão no local. no entanto, de
alguma forma o grupo de usuários resiste, expondo seus corpos “marcados”,
em uma forma de estar no espaço público que os identifica como usuários de
crack, ou “noias”, vivendo um cotidiano de precariedade e sofrimento.
A partir do lugar social conferido pelo trabalho na redução de danos, buscou-se interpretar as falas como parte da expressão dessa situação, o usuário
exposto e vestido como tal em um lugar público. Busca-se entender aqui esta
situação de extrema precariedade e sofrimento levando-se em conta o contexto
em que está inserido, compreendendo-a como sofrimento social. Entende-se o
sofrimento social como algo resultante de danos infligidos pelas forças sociais na
experiência humana (Kleinman, das e Lock 1996). dessa forma o sofrimento,
numa perspectiva antropológica, seria o efeito da violência que as ordens sociais
levam as pessoas a carregar (Kleinman 2000). isso não supõe uma relação de
causa-efeito entre o social e o indivíduo, mas sim que as restrições de possibilidades dadas pelo social conformam as experiências cotidianas das pessoas e que
este sofrimento e esta violência são vividos no corpo, na fala e nas relações.
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O modo como as forças sociais estão presentes no cotidiano dessas pessoas acaba por restringir as possibilidades de formas de viver as situações de
grande sofrimento, constituindo formas de subjetividade. Assim, consideramos a maneira de se apresentarem no espaço público (roupas sujas e rasgadas,
corpo sujo e descuidado, o modo de caminhar) como a expressão e o lugar do
corpo dos usuários.
Estar na região na figura do agente redutor de danos possibilita uma via de
acesso a essas pessoas. no entanto, ao mesmo tempo em que este lugar propicia um diálogo com o usuário, neste contato ele revela apenas uma de suas
facetas. Como o redutor é visto pelo usuário na região? A partir disso, de que
forma ele se revela?
O redutor de danos da Ong costuma estabelecer uma relação de proximidade com os usuários, tentando evitar conflitos e estimular o autocuidado. Pela
sua distribuição de materiais preventivos, como preservativos, piteira para os
cachimbos de crack e manteiga de cacau, os usuários sentem-se à vontade para
falar sobre seu uso de drogas. A região tem vivido nos últimos anos intensas
ações repressivas sobre as pessoas ligadas ao uso de crack, usuários e pequenos
traficantes. Assim, os usuários costumam ver os diferentes grupos que trabalham na região de forma polarizada: existem aqueles que estão “do lado deles”,
e os que estão “contra eles”, do lado da polícia. O trabalho do redutor não é bem
visto pelos policiais, e muitas vezes os redutores sofrem revistas policiais junto
aos usuários. Estes geralmente veem os redutores como pessoas que estão do
seu lado no conflito. isso fica aparente nas conversas, que geralmente se iniciam
com comentários sobre a tensão do lugar, a intensidade das ações policiais e a
dificuldade de se ficar no local. O redutor é percebido também como alguém que
está ali para interferir na existência deles, surgindo assim a ideia de cuidado.
Outros serviços, como os dos agentes comunitários de saúde e agentes da
assistência social, conseguem uma aceitação diferente por parte dos usuários,
que acabam recorrendo a eles para questões pontuais e concretas, como ajuda
para ir ao hospital, por exemplo. Estes agentes são vistos como agentes da
municipalidade que, na verdade, oferecem pouca acolhida, e muitas vezes passam a ser vistos como mais uma força que intervém para retirá-los do espaço.
São vistos como aliados da polícia e em oposição aos usuários. Observa-se um
movimento dos agentes de saúde buscando se distanciar das ações policiais
para mudar isso, porém a constante pressão da atual gestão municipal para
que retirem os usuários dali rapidamente dificulta o acolhimento e aproxima
os agentes da polícia, no ponto de vista dos usuários.
Pode-se perceber assim que o contato com as pessoas que ficam na região
e que fazem uso de crack se dá de forma particular com a figura do redutor de danos, quando comparada com os outros agentes que frequentam a
região. Percebendo o redutor como alguém que está ali para oferecer cuidado
e incentivar o autocuidado e que também sofre com as ações repressivas, os
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usuários costumam sentir-se livres para colocar algumas questões e acionar
discursos que não têm com os outros para falar de suas vidas e da situação
em que se encontram. Assim, buscou-se reproduzir as falas para os redutores e
interpretá-las a partir deste lugar.
O QuE SE fALA COm OS REduTORES
Ao mesmo tempo em que a posição do redutor de danos se mostra como um
lugar específico para ter acesso a essas pessoas e seu cotidiano, esse acesso é
limitado pelas mesmas questões que o possibilitam. Ao se aproximar oferecendo cuidado, algo “bom”, os assuntos costumam geralmente girar em torno
da saúde e da situação de vida. Como forma de falar de saúde e das razões
por que não está se cuidando, o usuário em alguns momentos se coloca como
vítima da situação, expressando a partir desta relação o que imagina que a
população em geral espera de seu sofrimento. fala de seu cotidiano como se
não fosse necessário que agisse para manter esta forma de viver frente a todos
os acontecimentos e as necessidades do dia a dia, como comer, dormir ou
conseguir dinheiro para fumar, por exemplo. junto a isso, dá para perceber em
alguns momentos o desconforto de alguns ao falar de coisas menos “corretas”,
como fazer sexo em troca de dinheiro ou roubar.
Apesar destes limites colocados pelo próprio lugar do pesquisador em
campo, este se mostra como um dos que possibilita maior proximidade com o
cotidiano dos usuários. Outras possibilidades seriam poder conviver de forma
a ser considerado “um deles” ou a inserção no cotidiano dos que comercializam a droga. Ao mesmo tempo, as persistentes ações policiais exigem do grupo
que comercializa a droga que esteja em constante mobilidade, dificultando
uma inserção neste grupo do tráfico também.
Contrariamente a outras regiões e cidades em que o comércio da droga
acontece em um ponto de venda específico, aqui o tráfico fica pulverizado
entre as diversas pensões e os diversos quartos de pequenos hotéis da região, e
ganha a rua através do pequeno comércio entre os usuários, tornando nebulosa
a fronteira que distingue o usuário do traficante. O primeiro relato deste artigo
traz alguém que não faz uso de crack, apenas vende-o. mas o caso de Vejota não
é o mais comum: via-se constantemente nas permanentes idas a campo pessoas
identificadas como “noias”, muitas vezes sujas e com seu cachimbo, com uma
ou duas dezenas de pedras na mão oferecendo-as a possíveis compradores em
meio à multidão de usuários. Estes normalmente são vistos, enquanto fumam,
em amontoados de mais de cem pessoas nas calçadas da região.
A partir de como os usuários aparecem nas reportagens jornalísticas sobre a
região, tem-se a impressão de que todos permanecem ali por estarem reféns do
crack, submissos à droga. A noção psiquiátrica de dependência, forma como os
especialistas costumam compreender o tipo considerado mais “problemático”
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de uso de crack, não é suficiente para entender o modo de vida ali, e pode-se
perguntar mesmo se seria útil neste caso. no dSm-iV-TR, última versão do catálogo de psicopatologias da Associação Americana de Psiquiatria (APA 2000),
são alguns os critérios para que a pessoa seja considerada dependente de
alguma substância: continuar o uso apesar de significativos problemas ligados
a este; aumento da tolerância, sintomas de abstinência e um comportamento
compulsivo de consumo. Por tolerância entende-se a necessidade do aumento
da quantidade usada para se obter o efeito desejado. Os sintomas de abstinência consistiriam de mudanças mal-adaptativas no comportamento quando se
reduz ou pára o uso, tendo-se muitas vezes que voltar a fazer uso para aliviar
estes sintomas. Ao comportamento compulsivo de consumo estão ligados, por
sua vez, um uso maior do que o desejado, tentativas frustradas de reduzir ou
parar o uso, a utilização de muito tempo para se conseguir a substância, usá-la
e recuperar de seus efeitos, o abandono ou a redução de atividades sociais e de
trabalho, e a continuidade do uso apesar de o sujeito admitir algum prejuízo
relacionado a este.
de forma geral, grande parte dos usuários se encaixa em alguns destes critérios, senão em todos. Porém, esta classificação de dependente não é suficiente
para explicar esta forma de uso e a vida em torno dele. Por quê ser um dependente ali, com a intensa repressão policial e a violência que atravessa o cotidiano de diversos ângulos? Porque não fumar o crack a apenas algumas quadras
para algum dos lados e assim não sofrer as constantes, tensas e violentas ações
policiais? Ao se estabelecer contato com os usuários dessa forma, é possível perceber algumas coisas que podem nos ajudar a entender que há agenciamentos
por parte dos usuários e que a trama de sentidos ali é mais complexa do que o
efeito de uma substância química sobre um sujeito e seus aspectos psicodinâmicos. Em seus relatos, pode-se perceber a importância da sociabilidade naquele
local para as pessoas que, por diversos caminhos, passaram a viver com possibilidades bastante restritas de fazerem escolhas em diversas partes de sua vida
social. foram selecionadas, a partir dos registros das idas a campo com a instituição, três narrativas que expressam formas diferentes de habitar a região.
O primeiro relato é de um vendedor de pedras de crack com um longo histórico de vivência de situações de rua e marginalidade, que não vê tanto sentido
em estar ali entre os usuários, mas que se mistura entre eles para poder se proteger da polícia e retirar seu sustento. O segundo é de Oseias, usuário de crack
que se porta como “noia”, estando nesta situação há alguns meses, desde que
saiu da cadeia.2 E o terceiro é o de Shirley, usuária de crack que faz programas
para sustentar seu dia a dia, tendo o grupo de “noias” como o seu grupo de
pertencimento e sociabilidade, na ausência de outras possibilidades.
2
Todos os nomes usados aqui são fictícios, para proteger as identidades dos visados.
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VEndER O CRACk: TERiA OuTRA fORmA dE SE gAnHAR A VidA?
uma das histórias interessantes de se observar é a de Vejota, por envolver uma
trajetória de vida que nos mostra a restrição de possibilidades como um fator
importante para sua permanência ali. Quando “criança de rua” foi cuidado por
juca, que atualmente é agente redutor de danos da instituição, por isso se sente
bastante à vontade para falar de si.
Quando o encontramos está muito bem arrumado, destoando de todos ao
redor, já que em sua maioria os usuários estão com poucas roupas, rasgadas e
bem sujas. Com um pequeno brinco brilhante, correntes e pulseiras de prata
no pescoço e nos pulsos, um grande relógio e roupas novas, realmente se destaca dos outros. Conta que quer participar da equipe de futebol que está sendo
montada pela Ong e que teria outros amigos que jogam bem para participar
também. Apesar de ter me conhecido naquele dia, Vejota se sente à vontade
com o outro agente redutor e passamos a conversar sobre a situação de rua ali
da região, e ele aproveita para contar bastante de si.
durante a conversa ele explica como ainda está no “movimento”3 de venda
de drogas ali, mas frisa que só porque não tem outra opção. Pessoas que
conhece dali até ofereceram a ele empregos, como o de técnico de som, mas
não sabia se aceitava por na verdade não conhecer nada dos equipamentos que
teria que manejar. Relata que sabe como a vida ali no movimento da droga
é arriscada, mas que não sobra outra opção para ganhar dinheiro suficiente
para se sustentar. já foi preso duas vezes, ficando ao todo quatro anos na
cadeia. Lá aprendeu a desenhar, e afirma que queria encontrar um trabalho
de desenhista industrial, pois faz isso muito bem. Conta como fazia desenhos
tão detalhados na cadeia que fazia somente três por mês. uma vez conseguiu
vendê-los, mas depois o comprador descobriu que ele tinha acabado de sair da
cadeia e não comprou mais. Sabe que, se continuar no movimento ali, pode
acabar preso novamente, e não quer isso. Conta, então, de sua trajetória de
vida e das possibilidades que tem de inserção na sociedade a partir dela.
Com certo orgulho, fala que já está na vida de rua há 19 anos, tendo atualmente 30. já fez de tudo na rua, e antes de ficar preso “era um noia” como
os outros que compram suas pedras de crack. durante as duas vezes em que
ficou dentro da cadeia aprendeu muita coisa ruim, mas lá também aprendeu a
desenhar e percebeu que não queria ficar naquela situação pra sempre. Apesar
de já ter ficado na rua em uma situação completamente deteriorada e de nesta
época fazer um uso intenso de crack, além de provar as diferentes drogas que
lhe ofereciam, como remédios, cocaína injetável ou inalantes, afirma não querer mais isso para si. Hoje em dia diz “só usar maconha” (termo brasileiro para
a canábis) e ter aprendido que “os químicos fazem mal”. Esta é uma categoria
3
Categoria nativa para quem está trabalhando na distribuição e comércio de drogas ilícitas.
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do senso comum no Brasil, em que se diferencia entre drogas menos danosas e
mais danosas, sendo as primeiras de origem mais “natural”, como a maconha
e o tabaco, por exemplo, e as segundas a cocaína e o crack, entre outras, que
seriam mais perigosas e danosas por serem “químicas”, sendo assim mais fortes
e difíceis de controlar.
AS TáTiCAS COTidiAnAS fREnTE à POLíCiA
Tendo um histórico de “ex-noia” que decidiu, a partir de sua experiência na
cadeia, agenciar de outra forma sua relação com a droga, passando ao estatuto
de traficante, vemos no seguinte relato como Vejota toma uma postura ativa
no momento da revista policial, passando-se por usuário, uma categoria menos
procurada na região do que o traficante. Em conversas com policiais da região,
eles relatam como não interessa a busca de usuários, por ser ineficaz na retirada deles do local.4 Ao mesmo tempo em que a constante exposição dos usuários infunde sofrimento pela anulação de sua intimidade, este lugar protege
de outras violências.
michel de Certeau (2001 [1980]), ao falar sobre o cotidiano, distingue duas
“maneiras de fazer” as coisas no dia a dia (caminhar, produzir, falar, cozinhar,
etc.): a estratégia e a tática. Os dois termos derivam do contexto militar e se
distinguem na forma como aquele que age se relaciona com o meio e com os
outros ao redor. Considera-se como estratégia a ação de um sujeito, uma instância de querer e poder, que lhe permitirá isolar e controlar características do
ambiente buscando transformá-lo em algo idealizado. Este tipo de gesto cabe
muitas vezes a instâncias como uma empresa, o governo, o exército, a prefeitura de uma cidade. já a tática se caracteriza pela ausência da possibilidade
deste isolamento e controle de características do ambiente. A ação acontece no
espaço controlado pelo outro, e se aproveita, dessa forma, de momentos especiais, “ocasiões” favoráveis, utilizando as falhas que as conjunturas particulares
abrem na vigilância de quem detém o poder no espaço. Segundo de Certeau,
“a tática é determinada pela ausência de poder assim como a estratégia é organizada pelo postulado de um poder” (2001 [1980]: 101).
Podemos perceber como Vejota age de forma tática ao comercializar o crack
ali na região, lidando com instâncias de poder como a polícia e as ações governamentais. Pode-se entender mesmo a sua escolha de ser traficante de crack
4
Em 2006 houve uma mudança na lei brasileira sobre drogas. A partir de então, quando a pessoa
que porta a substância ilegal é enquadrada na categoria de usuário, não é mais passível de prisão, tendo
apenas que prestar serviços à comunidade ou fazer alguma doação de cestas de alimentos. no entanto,
se aumentou a pena para os que são enquadrados na categoria dos traficantes. É interessante perceber
que, ao contrário do que acontece na lei, ao ir a campo fica difícil perceber uma distinção clara entre o
traficante e o usuário: muitos do que estão ali fumando acabam também participando do movimento
de venda da droga.
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na região como uma tática de sobrevivência por não poder encontrar outras
perspectivas de ganhar a vida. Ele age na ausência de outras possibilidades e
sabe-se um “peixe pequeno”, quer dizer, alguém sem poder dentro do poder
paralelo de atividades ilícitas.
Empolgado, comenta sobre as dificuldades de se vender o crack ali. fala
que tanto a polícia quanto os usuários estão resistindo ali na região (esta ação
começou de forma intensiva, com grande quantidade de policiais nas ruas por
tempo indeterminado), mas acha que os policiais estão demonstrando sinais de
cansaço. mas, mesmo assim, considera a rua ali bem tensa, sendo muito difícil
vender o crack e não ser abordado pela polícia. Horas antes foi parado pelos
policiais da cavalaria da polícia militar, e nos relata, com detalhes, como agilmente conseguiu se livrar, mesmo com quatro pedras de crack na mão. Estava
na Praça Coração de jesus, a um quarteirão dali e bem no meio do movimento
de venda e consumo de crack, com sete pedras de crack e fumando um “baseado” (cigarro de maconha). Vendeu três pedras para um menino em situação
de rua, e logo viu que três policiais em cima dos cavalos notaram o movimento
e vieram atrás dele. de certa forma vangloriando-se de sua agilidade, explicou
como, enquanto passava em frente a um telefone público, colocou as pedras
dentro da boca e apagou o baseado. A polícia o parou e parou também o
menino. foi revistado e os policiais acharam apenas o baseado em sua mão.
Os policiais ficaram perguntando a ele o que havia vendido ao menino. inventou que na verdade tinha vindo até ali para comprar um baseado, e que havia
comprado aquele baseado do garoto. Os policiais ficaram querendo saber se
não estava vendendo pedras. Explicou a eles que trabalhava roubando no farol
e que vinha até a região da Cracolândia sem “flagrante” (nada que o incriminasse), só com o dinheiro para comprar o que queria. Rindo, fala como os
policiais acreditaram nele e ficaram apenas rindo com a cara dele. Considera
que os usuários não têm opção, e que por isso os policiais não vão conseguir
tirá-los de lá. no entanto não quer ficar mais muito tempo neste movimento
de venda de droga. Sabe que é “peixe pequeno”, não tem muito envolvimento
e quer mudar de vida. já acumulou alguns bens, como televisão, dVd, celular
e mP4, e agora poderia ficar ganhando menos dinheiro. Considera-se jovem
ainda e quer aos 60 anos ter alguns filhos e ter dado boas condições a eles.
no entanto, lamenta mais uma vez que por enquanto tenha que ficar se arriscando neste trabalho ali na região.
O interessante é que, ao mesmo tempo em que dessa forma tática ele arranja
meios para se sustentar, as táticas desviacionistas não obedecem às leis oficiais e
colaboram para estratificar e criar um funcionamento diferente na região, com
suas regras e normas paralelas às oficiais. Estas são conhecidas por um público
muito específico: os comerciantes da droga e seus clientes, os usuários.
Além disso, vemos que na sua trajetória Vejota passou por diversas situações de marginalidade, como se estivesse no papel de mais alto status dentre
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os que já teve: mesmo sendo este ainda um tanto arriscado, o traficante é bem
visto e respeitado pelas pessoas à sua volta, além de ter dinheiro para consumir
e se sustentar. Tendo sido criado desde criança por instituições que cuidam da
população que ocupa as ruas (os “menores abandonados”, o “povo da rua”, os
“dependentes de drogas” ou os “moradores de rua”), pode-se perceber que na
sua trajetória ele viveu as diversas possibilidades que se apresentam para as
pessoas dentro destas instituições.
O redutor de danos que cuidou dele quando criança, juca, comentou no
dia seguinte que nos abrigos e na unidade de internação Vejota sempre se
mostrou um garoto esperto e de bom contato pessoal com os educadores.
Porém, por ser negro, nunca era escolhido para ser adotado ou “apadrinhado”5
por alguém que chegava à instituição, e acabou tendo apenas as possibilidades
de inserção nas escolas e no mercado de trabalho que em geral se tem a partir
dali.
no caso de Vejota é possível perceber a incidência de diversas questões
sociais que ajudam a conformar seu lugar como proporcionando poucas possibilidades de ação e de inserção: criança com contatos rompidos com a família;
negro; vivência de rua; problemas com drogas; passagens pelo sistema carcerário; pouca escolaridade.
no relato a seguir apresentado vemos também como Oseias, saído há pouco
tempo da cadeia e sem família, vive com uma grande restrição de possibilidades, e enquanto isso permanece ali fazendo uso de outras ações táticas para
não ser pego pela polícia.
dA CAdEiA PARA A CRACOLândiA
Encontramos Oseias na Praça julio Prestes (a uma quadra do encontro com
Vejota), deitado. Enquanto coloca em seu cachimbo a piteira que lhe demos,
ele reclama do intenso movimento dos policiais pelas ruas. Explica-nos então
que está ali, naquele lugar, para poder fumar em paz: mantém o corpo todo
coberto e só deixa uma abertura para acender o cachimbo no lado oposto
àquele de onde vêm os carros. Assim, quando os carros de polícia estão se aproximando acham que ele está apenas dormindo e não param ali. Além disso,
nos mostra um elástico que deixa preso ao corpo na altura do ombro, por baixo
da camiseta esfarrapada que usa, onde prende o cachimbo para escondê-lo de
uma eventual revista policial. São táticas utilizadas por ele para poder permanecer ali, de forma a não sofrer com as estratégias utilizadas pela polícia para
afastar os usuários do lugar, que consistem normalmente em coerções violentas
ou retenção, levando os usuários até a delegacia.
5
O agente contou que muitas vezes chegavam nestas instituições empresários ou políticos que se
comprometiam a pagar cursos ou roupas para algumas crianças, algo que não aconteceu com Vejota.
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Está na região da Cracolândia há seis meses, desde fevereiro. Passou alguns
anos na cadeia e nos mostra suas tatuagens distribuídas por boa parte do corpo,
e principalmente uma grande nas costas, com muitas caveiras. Sabe que se a
polícia vir estas tatuagens vai saber que saiu da cadeia e vai ficar achando que
ele matou policiais, e por isso tem medo do que podem fazer com ele, já que
algumas das tatuagens que carrega são características de quem comete este
tipo de crime. no entanto, fala que só mata um tipo de gente: estupradores.
Apenas este tipo de gente merece morrer, pelo imenso sofrimento que traz às
mulheres e sua família. fazem sofrer muito as mulheres que são filhas, mulheres e até mães das pessoas. Além disso, fazem sofrer muito os pais das vítimas.
Por conta de tudo isso, diz que eles que merecem morrer e que não perdoa este
tipo de gente.
mostra-nos uma tatuagem no braço esquerdo com o nome de todos de sua
família: pai, mãe, uma irmã e um irmão. fala que saiu da cadeia, mas que todos
de sua família já morreram e realmente não tem para onde ir. Está desde então
ali na região, mas em algum momento quer sair dali; considera, porém, que
“seis meses é pouco tempo para conseguir construir alguma coisa quando se sai
da cadeia”. É interessante perceber como sempre fala do sofrimento do outro,
colocando-se como cuidador ou provedor e não entrando em contato com o
sofrimento da sua situação.
Ao reclamar da polícia, nos mostra também um pouco do que poderíamos
chamar de linha crucial para que alguém seja considerado um “noia”, um usuário descontrolado dependente do crack: a transgressão de alguns valores éticos
para se conseguir a droga.
Comenta que a polícia está muito violenta, e reclama que “eles acham que
todos que estão ali são noias”, enquanto na verdade “existem pessoas de vários
tipos que passam ali para fumar”. diz que é como gato e rato, os usuários passam o dia inteiro fugindo da polícia e tentando fumar nos momentos em que
conseguem se distanciar deles. Pergunto sobre a diferença entre estes tipos de
usuários. Ele me conta que pessoas que são mais organizadas e têm dinheiro
passam ali para fumar. O “noia”, no entanto, segundo ele, é aquele que fuma
descontroladamente, a qualquer custo, fazendo qualquer coisa para conseguir
a droga, mas nem todos os usuários dali estão nesta condição.
Conta-nos que sustenta sua forma de viver ali praticando roubo à mão
armada nos faróis ou na rua. Pergunto onde consegue a arma, se costuma
alugá-la para praticar suas ações. neste momento tira do bolso um estilete sem
lâmina e nos mostra como com aquilo ali finge estar com uma arma na mão.
Segundo ele, o que na verdade faz as pessoas passarem seus bens é o pânico
que gera sua aproximação agitada e colocando pressão para que as pessoas
deem logo o que pediu. fala isso rindo um pouco. Relata então uma vez em
que quase machucou uma mulher ao roubar, mas que ficou aliviado ao perceber que tinha se machucado a si mesmo, e não à sua vítima.
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Oseias se coloca como “noia” e está vestido e em um estado que levaria
qualquer um olhando de longe a considerá-lo dessa forma. no entanto, busca
na sua narrativa se diferenciar dos “noias”, tentando mostrar uma ética em
suas ações cotidianas, ao mesmo tempo em que faz uso da figura pública do
“noia” enquanto alguém temido pela população em geral para conseguir manter seu cotidiano.
Este relato é rico por nos mostrar a extrema restrição de inserção que este
sujeito vive no cotidiano. E um ex-presidiário, com marcas corporais que o
identificam como alguém odiado pela principal instância de poder com quem
se confronta, a polícia. Segundo ele, fez a tatuagem porque esta era bem vista
dentro da cadeia pelos outros, por ser também uma forma de confrontar os carcereiros e policiais. no entanto, ao sair de lá estas marcas têm o efeito contrário,
colocando-o sob o risco constante de sofrer violências por parte da polícia. Sem
ter família a quem recorrer, acaba por ficar limitado à sociabilidade dos outros
usuários. Apesar de ter uma vida restrita a este convívio, tenta se diferenciar do
que considera ser um usuário sem controle, no sentido em que mantém alguns
parâmetros éticos. Pode-se perceber assim que há uma construção de uma hierarquia dentro do próprio grupo que usa crack nas mesmas condições e forma
de estar na rua. O “noia” é aquele que está no nível mais baixo, carregando um
grande estigma de alguém sem controle e sem limites em sua busca de uso do
crack, não sendo confiável nem para os outros usuários. A categoria de “noia”,
extremamente estigmatizada, em muitas situações leva o usuário a um exílio,
impedindo-o de retornar à sua região de pertencimento, por conta de problemas ali. Quando passam a ser vistos como “noias”, em algum momento são
levados a buscar outro espaço.
frente à vida com possibilidades restritas conformada pelas trajetórias dos
que vivem ali, parece que não é apenas o crack que mantém as pessoas na
região, ganhando até em alguns momentos um peso secundário nisso. Como
diz Phillipe Bourgois, quando as outras relações, como as com a família, por
exemplo, estão enfraquecidas ou foram rompidas, a sociabilidade de rua parece
mais atraente (Bourgois 1998). Também a narrativa de Oseias mostra como
o dispositivo de controle social sobre suas vidas os coloca entre a rua e instituições criminais, o que acaba cronificando esta situação, ao reduzir cada vez
mais as possibilidades de inserção na sociedade.
Percebe-se neste relato e no anterior que tanto a figura do “noia” como a do
traficante precisam lidar constantemente com as ações policiais. A atividade
policial ali na região não visa apenas a repressão de crimes, mas é feita constantemente no intuito de organizar e normatizar a população da região. Os policiais passam dando ordens para que os usuários não fiquem ali. As contínuas
batidas policiais e as passagens também constantes das viaturas acontecem
para instabilizar a atividade dos usuários, na tentativa de criar um movimento
de saída daqueles que não são considerados integrantes normais da sociedade,
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os usuários de crack em situação de rua. Ao mesmo tempo em que a segurança
pública age de forma mais intensa e constante, em seu entorno existem outras
forças estatais que têm também o objetivo de retirar e tratar esta população,
envolvendo agentes da saúde e da assistência social. no entanto, estes serviços
são ao mesmo tempo mal estruturados, com poucos recursos e ineficazes, ou
muitas vezes inexistentes.
“nO fERVO COm A gALERA”: SOCiABiLidAdE EnTRE OS “nOiAS”
E A RESTRiçãO dE POSSiBiLidAdES
neste mesmo dia encontramos Shirley, uma usuária conhecida pelos agentes
redutores de danos, que frequenta de vez em quando o centro de convivência
da instituição. depois de cumprimentá-la, ela nos conta que está muito mal.
Está com infecção pulmonar e com febre já há vários dias, não conseguindo
nem fumar. Passou os últimos três dias inteiros dormindo na rua mesmo e
acabou de acordar. Está com roupas de frio um pouco sujas e com um cobertor
na mão. diz que junto a tudo isso “sua depressão atacou novamente” e que
não tem conseguido ir atrás de se cuidar e também de fazer o que precisa ser
feito para conseguir dinheiro para fumar e comer. Pergunto o que ela costuma
fazer para ter dinheiro. fica um pouco desconfortável, mas logo conta que faz
programas na região. O redutor oferece camisinhas, mas ela diz que está muito
mal, e que realmente não está conseguindo fazer programas ou fumar. diz que
se dá um trago passa minutos tossindo, então nem tem tentado mais.
Lembramos como seria importante tentar não dormir na rua e ir ao hospital para que tratasse a infecção do pulmão. Sabe que seria importante, mas
não vê possibilidade de dormir em albergues, por serem longe, lotados, e por
ter que sair de lá logo cedo. Além disso, diz que já foi ao hospital ali perto e
não deram remédios a ela, dando alta algumas horas depois, decidindo então
não tentar novamente. Além disso, conta que o médico deu-lhe um sermão,
falando que é mesmo com problemas de saúde como estes que fica quem fuma
crack. O redutor se oferece para acompanhá-la novamente, caso queira. Ela
diz então que não consegue no momento ir atrás do que precisa por conta de
sua “depressão”, e lamentamos com ela sua situação. despede-se de nós e fala
que, enquanto não consegue fazer nada, vai se juntar aos outros, ficar ali “no
fervo com a galera”.6 Perguntamos se seria para fumar, e ela diz que não, que
estava indo mesmo só para ficar com as pessoas, pois realmente não estava
conseguindo fumar.
fica clara neste relato a situação precária de saúde que Shirley está vivendo.
Está gravemente incapacitada, não conseguindo dar conta de suas atividades
6
Termo utilizado por ela, que significa ficar junto com o grupo, apenas participando dos acontecimentos, sem grandes objetivos.
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diárias para sobreviver e sustentar seu uso de crack e sua rotina. no entanto,
fica claro também como as instituições disponibilizadas pelo Estado para lidar
com as questões que está vivendo, como o hospital e o albergue, não são vistas
por ela como possibilidades concretas. Por conta das ações da prefeitura para a
requalificação da região, os albergues estão sendo realocados em bairros distantes do centro da cidade. Além disso, os que ali dormem são obrigados a sair dali
logo cedo, ficando em um bairro distante com poucas possibilidades de conseguir dinheiro. isso significa para ela ter que andar de onde está o albergue até
o centro, local onde boa parte da população de rua vive e que é também onde
se consegue ganhar dinheiro dos transeuntes mais facilmente. Esses detalhes
inviabilizam a ida dela ao serviço de saúde.
Em relação ao serviço de saúde, são constantes os relatos dos usuários de
como, quando são identificados como usuários de crack, normalmente não
são atendidos, por conta do estigma que carregam. foi isso que aconteceu a
Shirley, e dessa forma acaba tendo que suportar o sofrimento de sua doença ali
na rua. Com as possibilidades restritas pela precariedade das políticas públicas
voltadas à população em situação de rua e pelo estigma que carrega ao ser
identificada como usuária de crack, resta-lhe então ficar junto aos outros na
movimentação em torno da venda e do consumo do crack, apesar de não conseguir fumar.
Ao se compreender a aceitação de sua situação e seu estado de saúde, que
convive com a precariedade de existência, percebemos que esta condição não é
simplesmente o resultado da ação de uma substância sobre um organismo, mas
depende também de elementos que dizem do lugar ocupado na sociedade.
O LugAR COmO SímBOLO dE CLASSifiCAçãO E idEnTidAdE
E A PROduçãO dOS inTRATáVEiS
A despeito do intenso movimento do governo para que os usuários de crack não
mais fiquem na região, os agentes de saúde, da assistência social e os policiais
enfrentam essa resistência no dia a dia. Porém, essa resistência não se dá de
forma calculada e organizada. Como diz Carvalho, ao comentar um livro da
antropóloga Veena das, não quer dizer “que há alguém que resiste no cotidiano,
pois não há, necessariamente e sempre, este agente da resistência: ao menos
não se deve falar de uma resistência calculada; mas de uma existência possível”
(2008: 13)
Apesar de ser tida como uma droga da qual, diferentemente da maconha, se
faz uso sozinho e que é disruptiva socialmente, percebemos que o crack funciona
como elemento importante na sociabilidade destas pessoas, que buscam fumá-la
cada um com seu cachimbo, mas identificando-se entre si como “noias”. A falta
de perspectiva de inserção em outros contextos fortalece este contexto de sociabilidade como importante para elas. Esta situação, juntamente com as ações
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governamentais, tem tido como resultado a cronificação destas pessoas neste
circuito e lugar. Entende-se que estas pessoas vivem em uma condição de restrição de possibilidades de inserção na sociedade, e pode-se perceber que as ações
que teriam como objetivo tirá-los dessa condição acabam por reforçar o estigma
ligado ao “noia” e restringir ainda mais as possibilidades de vida destas pessoas.
O “noia”, percebido como aquele que desrespeita as normas sociais e os
parâmetros éticos em busca da pedra de crack, é visto com desconfiança e não
consegue estabelecer relações de outra forma com as pessoas. Ao mesmo tempo,
percebe-se que, frente a essa grande restrição de possibilidades, os usuários
identificam-se com o lugar de “noia”, portando-se dessa forma no espaço
público e mantendo relações cotidianas com pessoas assim caracterizadas.
As “racionalidades” de especialistas e da lei, separando usuários e traficantes,
não dão conta desta realidade.
numa das últimas investidas a campo, no verão de 2010, um especialista
apontava, por exemplo, que o papel da polícia seria o de reprimir o tráfico, para
acabar com a oferta de crack na região, ao mesmo tempo em que comentava a
falta de ações de saúde pública. O que se mostra na prática é a repressão policial aos usuários e também aos agentes de saúde que, na verdade, atuam no
mesmo sentido de combater a permanência dos usuários ali, dada a inexistência de estruturas de acolhimento.
É essa forma possível de existência que percebemos nas respostas que dão
Shirley e Vejota para agenciar ou simplesmente resolver suas questões para
viver seu cotidiano. O relato de Oseias, o segundo usuário com quem conversamos, mostra isso também. marcado em seu corpo por tatuagens que o
definem como alguém saído da cadeia, não consegue vislumbrar outra perspectiva desde que saiu de lá, seis meses antes. Símbolos inscritos no corpo para
ganhar um lugar dentro da cadeia, as marcas de ex-detento restringem o seu
circuito de sociabilidade ao ganhar a liberdade e a rua. Segundo ele, seis meses
é pouco para poder se inserir em outro lugar ou outra ocupação. não tem mais
familiar ou outra rede a que possa recorrer nem para onde ir desde que saiu da
cadeia, e fica então na região convivendo com os outros usuários e fumando
crack. no entanto, não considera que está no nível mais baixo na hierarquia de
uso, mostrando que fuma de forma organizada, protegendo-se da maneira que
pode da violência ao redor e não querendo desrespeitar sua própria ética para
conseguir sustentar sua forma de vida.
O que seria afinal uma hierarquia de uso, senão uma classificação externa
desligada de lugares e contextos? no espaço da Cracolândia fica expressa uma
relação entre o lugar social, ou o lugar por onde passaram as trajetórias dos
sujeitos apresentados, e o uso de uma droga. Predomina no cenário mais conservador da sociedade a perspectiva da retirada e do internamento compulsório desses usuários. Essa ação busca enquadrá-los como os intratáveis que
devem ser submetidos à força ao tratamento psiquiátrico, o que contraria o
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movimento da reforma psiquiátrica ocorrido no Brasil. Por outro lado, a ação
de redução de danos, que é apoiada pelo ministério da Saúde, necessita de um
maior fortalecimento e de maior articulação institucional para poder se legitimar como uma ação de atenção e de garantia de direitos.
O que podemos concluir de nossa inserção na Cracolândia é que, na abordagem de campo, tanto na etnografia como no trabalho da redução de danos,
exercemos a intersubjetividade através de uma escuta e do respeito das falas dos
“noias”, que por sua vez têm respondido a essas trocas; não seria então o fortalecimento dessas estratégias a condição para retirá-los do lugar de intratáveis?
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[email protected] Rubens de Camargo ferreira
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15 (3): 569-586
Adorno Programa de Pós-graduação em Saúde Pública da universidade de São Paulo, Laboratório
interdisciplinar de Pesquisa Social em Saúde Pública, Brasil
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This text reflects on the trajectories of subjects of different ages who have come to occupy specific
areas of the historic city center of São Paulo, in Brazil, around the use of crack. from the ethnographic
observation made in the last five years in “Cracolândia” and from reports of some of these homeless
people who make heavy use of crack, we intend to understand the trajectories of users in the process of
“becoming noia” and the agency devices they use in their daily life seeking preservation and survival in
the places where drug use occurs, and dealing with the social suffering resulting from this condition.
KEYWORdS:
territories, crack, trajectory, social suffering, harm reduction.