Academia.eduAcademia.edu

Direitos Culturais e o Utilitarismo Liberal de John Stuart Mill

This dissertation deals with the problem of cultural rights from the viewpoint of the liberal utilitarianism of John Stuart Mill. It intends to include the author‘s political philosophy in the debates that have been held in recent decades between liberals and communitarians starting from the approach of the philosophical problem of identity. To this end, we try to undo common misconceptions and provide an integrated reading of Mill's philosophy based on careful analysis of his writings, aided by his most eminent interpreters. We attempt to demonstrate that it is based on a previous fundamental adhesion to utilitarianism, as well as from a particular position regarding the access to the truth, that arise the liberal convictions and the centrality of autonomy in his doctrine. Given these premises, we could find that the Millian state, exempting the assumption on the neutrality of public sphere derived from the liberal contractarian doctrine usually professed, reveals itself theoretically compatible with the task of guaranteeing cultural rights. Whilst Mill‘s broad view regarding goods that contribute to happiness is capable of dragging culture into the hedonistic calculus, which affects the measurement of utility over general happiness, his defense of autonomy and diversity seems to justify a special attention to social context which maximize the expression of individuality.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL FERNANDO GAVRONSKI GUIMARÃES DIREITOS CULTURAIS E O UTILITARISMO LIBERAL DE JOHN STUART MILL. Porto Alegre 2011 FERNANDO GAVRONSKI GUIMARÃES DIREITOS CULTURAIS E O UTILITARISMO LIBERAL DE JOHN STUART MILL. Dissertação apresentada ao Curso de Pósgraduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre. Orientador: Prof. Dr. José Alcebíades de Oliveira Junior Porto Alegre 2011 RESUMO A presente dissertação trata do problema dos direitos culturais sob a ótica do utilitarismo liberal de John Stuart Mill. Objetiva-se a inserção da filosofia política do autor nas discussões que vêm sendo travadas nas últimas décadas por liberais e comunitaristas a partir da colocação do problema filosófico da identidade. Para tanto, busca-se desfazer frequentes equívocos e apresentar uma leitura integrada da filosofia de Mill com base na análise criteriosa de seus escritos, auxiliada por seus mais eminentes intérpretes. Pretende-se demonstrar que é de uma fundamental e prévia compreensão utilitarista, bem como de uma particular posição acerca do modo de acesso à verdade, que decorrem as convicções liberais e a centralidade da autonomia individual em seu pensamento. Estabelecidas essas premissas, verifica-se que o estado milliano, ao dispensar a convicção na neutralidade da esfera pública que decorre do pensamento liberal contratualista usualmente professado, mostra-se compatível em tese com a tarefa de garantir direitos culturais. Ao mesmo tempo em que sua visão ampla acerca dos bens que contribuem para a felicidade é capaz de posicionar a cultura no cálculo hedonístico individual, com reflexos na quantificação da utilidade em vista da felicidade geral, a defesa de Mill da autonomia e da diversidade parece poder justificar uma especial atenção ao contexto social que sirva para a expressão máxima da individualidade. Descritores: Direitos culturais. Cultura. Multiculturalismo. Identidade. Diversidade. John Stuart Mill. Hedonismo. Liberalismo. Utilitarismo. Autonomia. ABSTRACT This dissertation deals with the problem of cultural rights from the viewpoint of the liberal utilitarianism of John Stuart Mill. It intends to include the author‘s political philosophy in the debates that have been held in recent decades between liberals and communitarians starting from the approach of the philosophical problem of identity. To this end, we try to undo common misconceptions and provide an integrated reading of Mill's philosophy based on careful analysis of his writings, aided by his most eminent interpreters. We attempt to demonstrate that it is based on a previous fundamental adhesion to utilitarianism, as well as from a particular position regarding the access to the truth, that arise the liberal convictions and the centrality of autonomy in his doctrine. Given these premises, we could find that the Millian state, exempting the assumption on the neutrality of public sphere derived from the liberal contractarian doctrine usually professed, reveals itself theoretically compatible with the task of guaranteeing cultural rights. Whilst Mill‘s broad view regarding goods that contribute to happiness is capable of dragging culture into the hedonistic calculus, which affects the measurement of utility over general happiness, his defense of autonomy and diversity seems to justify a special attention to social context which maximize the expression of individuality. Key words: Cultural rights. Culture. Multiculturalism. Identity. Diversity. John Stuart Mill. Hedonism. Liberalism. Utilitarianism. Autonomy. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................................. 8 1 O PROBLEMA DOS DIREITOS CULTURAIS ...................................................................... 12 1.1 Os direitos culturais e a dogmática jurídica. ............................................................................ 14 1.1.1 A cultura como bem social homogêneo. ......................................................................... 15 1.1.2 Direitos culturais na perspectiva multicultural. ................................................................ 18 1.2 O problema filosófico da identidade. ..................................................................................... 24 1.2.1 Identidade e comunidade. ............................................................................................ 25 1.2.2 Identidade e demandas por reconhecimento. ................................................................... 31 1.3 A abordagem liberal. .......................................................................................................... 36 1.3.1 1.3.2 1.3.3 2 .............................................................. 38 A filosofia liberal de Rawls e os direitos culturais. ........................................................... 43 As duas espécies de liberalismo. ................................................................................... 45 A proposta liberal anti-perfeccionista de Rawls. O UTILITARISMO LIBERAL DE JOHN STUART MILL ...................................................... 50 2.1 Do hedonismo ao utilitarismo. .............................................................................................. 51 2.1.1 Antecedentes. ........................................................................................................... 53 2.1.2 Pressupostos utilitaristas em Bentham e Mill. .................................................................. 77 2.2 A medida da utilidade. ........................................................................................................ 95 .................................................................................... 95 2.2.2 Da felicidade individual à felicidade geral. ................................................................... 116 2.3 O liberalismo de Mill........................................................................................................ 127 2.3.1 A formulação do princípio do dano e sua relação com o princípio da utilidade. .................... 128 2.3.2 Os meios de acesso à verdade. .................................................................................... 137 2.2.1 3 O cálculo hedonista individual. DIREITOS CULTURAIS E O LIBERALISMO UTILITARISTA DE J. S. MILL ..................... 148 3.1 O estado liberal segundo Mill............................................................................................. 148 3.1.1 A proteção dos bens homogêneos................................................................................ 149 3.1.2 A centralidade da autonomia individual. ....................................................................... 154 3.1.3 Heterogeneidade e diversidade. .................................................................................. 159 3.2 Cultura e princípio da utilidade. .......................................................................................... 162 3.2.1 A cultura como bem. ................................................................................................ 163 3.2.2 A cultura como matriz social e a escolha de bens. .......................................................... 167 CONCLUSÃO ........................................................................................................................... 173 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................................... 177 8 INTRODUÇÃO Há pelo menos um par de décadas têm se desenvolvido de modo proeminente debates acerca do multiculturalismo e de demandas identitárias. A discussão travada reflete uma realidade cultural objetivamente identificável: internamente, verifica-se o abandono de uma existência cultural com alto índice de homogeneidade de valores e o proporcional florescimento da diversidade cultural no interior das sociedades; externamente, pode ser observada a maior interação entre nações e o surgimento de fenômenos de identificação cultural transnacionais. No plano estritamente cultural, é perceptível o progressivo enfraquecimento de valores e instituições tradicionais e, por influência movimentos sócioculturais do pós-guerra, libertários, feministas e raciais, o declínio de determinados arquétipos que foram outrora fonte de opressão. Estes fatores, aliados com o (não independente) afrouxamento da unidade cultural de diversas nações, permitiram novas associações identitárias e o florescimento de culturas baseadas em valores cuja homogeneidade há pouco fora descoberta1. No plano político, o surgimento de um ambiente de maior liberdade individual no ocidente e o fim da União Soviética, que unira artificialmente povos de etnias distintas (com valores e ambições heterogêneas), evidenciaram diferenças culturais historicamente ignoradas. No plano econômico-geográfico, os movimentos migratórios da Europa oriental, da América Latina e da África para a Europa ocidental e para os Estados Unidos da América, por reiteradas crises econômicas nos países de origem e escassez de força de trabalho nos de destino, o comércio internacional crescente e a maior abertura dos mercados e, paralelamente, no plano tecnológico, o desenvolvimento dos meios de comunicação, acelerado pelo advento da internet, justapuseram distintas culturas antes isoladas na mesma medida em que facilitaram a formação de novos grupos culturais2. O fato é que, independentemente dos motivos aparentes, uma nova realidade social se pôs e ainda permanece: as sociedades são hoje internamente, em maior ou menos grau, multiculturais. É certo que há níveis mais severos de heterogeneidade cultural, especialmente em nações em que convivem lado a lado, porém em isolamento, etnias tradicionalmente distintas. O problema da multiculturalidade, não obstante, é de alguma forma comum a toda sociedade 1 Muitos autores tratam esses fenômenos descritos como produtos da pós-modernidade; preferimos, por ora, abstermo-nos dessa discussão. 2 Mais fácil seria talvez falarmos em globalização. Cremos, contudo, que neste caso, dado o alto grau de ideologização que muitas vezes impregna o termo, estaríamos sob o risco de comprometedores mal entendidos, desviando a atenção do ponto que pretendemos expor. 9 contemporânea em que haja um mínimo de liberdade para que a diversidade possa se expressar. Duas propostas filosóficas antagônicas se candidatam para lidar com o tema dado. Um dos caminhos consiste em, a partir da constatação da pluralidade, abstrair os conjuntos de identificação e interação mais apertados, relegando-os ao plano privado, e tomar em conta precipuamente o conjunto maior, a perspectiva universal, que considera cada pessoa como criatura ao mesmo tempo única e igual, dotada de características comuns; desconsiderando-se as diferenças, o ser humano é concebido com base naqueles aspectos em que todos se assemelham. A partir dessa perspectiva, chega-se à conclusão de que a preocupação estatal está adstrita a tais caracteres e seu papel consiste em assegurar uma cesta de direitos básicos neles fundada, não parecendo haver espaço para a tutela jurídica de demandas originárias de bens não compartilhados. Contraditoriamente a esta primeira proposta, uma segunda sustenta a proeminência dos campos de interação transindividuais que identificam seus partícipes e ao mesmo tempo diferenciam as pessoas que deles não compartilhem. Concebe a identidade do ser como produto das redes de interlocução estabelecidas essencialmente em contextos de grupos culturais, o que é capaz de justificar (em certos autores, demandar) a implementação de direitos culturais. A primeira é reputada como sendo a proposta liberal, a segunda, é identificada com a corrente comunitarista, sendo seus expoentes maiores John Rawls e Charles Taylor, respectivamente3. Procuramos no pensamento de John Stuart Mill uma alternativa liberal capaz de superar esta dicotomia. O problema com o qual nos defrontamos, então, é o de se a partir da filosofia de Mill, bem compreendida, decorre a adesão obrigatória à neutralidade da esfera pública, sendo seu pensamento (à semelhança do liberalismo usualmente professado) desde logo incapaz de lidar com aspectos culturais nesse âmbito ou se, por outro lado, redunda em uma convicção que possa reconhecer demandas identitárias, vislumbrando ademais um tipo de estado apto à consagração de direitos culturais e à adoção de políticas públicas relacionadas à identidade cultural. Objetivamos, assim, inserir a filosofia de liberal-utilitarista de John Stuart Mill nos debates acerca do problema do multiculturalismo em geral e dos direitos culturais e demandas identitárias em particular. Partimos da hipótese de que a filosofia de Mill, uma vez desfeitos frequentes equívocos em torno de seus pressupostos, 3 Sem dúvida há outras correntes filosóficas a lidar com o tema (v.g., o libertarianismo e a proposta de Habermas). No entanto, o que queremos destacar aqui é a polarização em torno dessas duas, por sua clara oposição. 10 pudesse servir de base filosófica à consagração de direitos culturais, supondo que o conceito de autonomia fosse um elemento chave para sua perfeita compreensão. Para atingirmos esta meta, iniciamos nosso empreendimento descrevendo progressivamente o problema dos direitos culturais. Desde logo, buscamos apresentar o contexto em que estão inseridos, traçando, embora de forma breve, o panorama jurídico da questão numa perspectiva evolutiva. A seguir, voltamo-nos ao problema filosófico da identidade do modo como o vê Charles Taylor – o que serve de usual fonte de justificação dos direitos culturais – para então encerrar nosso primeiro capítulo com a abordagem liberalcontratualista do tema, com destaque para a versão de John Rawls. No capítulo segundo, embora omitindo deliberadamente muitos pontos de uma filosofia tão rica quanto controversa, nosso propósito foi o de delinear os contornos do pensamento de John Stuart Mill, de certo modo numa tentativa de unir as pontas de sua fragmentária obra em torno de alguns conceitos que permeiam toda sua extensão, valendo-nos dos ensinamentos de eminentes autores como Roger Crisp, Wendy Donner, David Lyons e John Gray. No capítulo terceiro, com o auxílio das obras de Kwame Anthony Appiah e Joseph Raz, procuramos expor o tipo de estado em que o pensamento de Mill redunda, sugerindo então a possibilidade de uma leitura liberal, distinta da de Will Kymlicka em seus fundamentos, porém análoga nas conclusões, que reconheça o alto valor do contexto cultural para a felicidade humana e propondo, finalmente, uma alternativa de conciliar individualidade e sociabilidade, ambos elementos da autonomia. Sucessor de Bentham no utilitarismo e precursor de muitos filósofos liberais, John Stuart Mill foi um autor muito influente na filosofia anglo-saxã. Seus escritos perpassam uma ampla gama de áreas do conhecimento humano. Mesmo no campo da filosofia política – a que aqui nos restringimos – Mill se debruça sobre um extenso conjunto de temas, apresentando ideias que, à primeira vista, podem parecer contraditórias. De fato, leituras parciais de sua obra dão ensejo a uma série de enganos. Mill é por vezes tido como um expoente do liberalismo econômico a justificar um estado mínimo ao passo que seu liberalismo político é não raro confundido com libertarianismo. Por outro lado, sua defesa do utilitarismo, quando simplificada como reprodução do pensamento de Bentham, pode supor equivocadamente a defesa de um estado totalitário. Buscamos a reinterpretação da filosofia política de Mill com base em algumas de suas características peculiares, seguindo um caminho que vem sendo trilhado por interpretes do filósofo desde o pós-guerra. Baseando-nos sobretudo nos escritos On liberty, Utilitarianism e Principles of political economy e ainda num par de artigos em que Mill tematiza a filosofia de Bentham, tentamos desfazer essas confusões, sustentando que 11 suas convicções liberais decorrem de uma prévia concepção utilitarista. Na passagem do hedonismo ao utilitarismo e do utilitarismo ao liberalismo cremos poderem ser dissipadas as controvérsias que obnubilam a interpretação de sua obra. Acreditamos que a exata compreensão de sua particular forma de hedonismo, centrado no conceito de juízes competentes, seja capaz de trazer para o foco sua defesa da autonomia como garantia da liberdade de escolhas, ponto em que o estado pode ser chamado a participar. No utilitarismo de regras, ademais, pensamos estar a resposta para a harmonização de utilitarismo e liberalismo. Contrapondo o hedonismo de Mill e seu método de cálculo utilitário às compreensões de Bentham expressas em Principles of law and legislation havemos procurado firmar as bases essenciais do utilitarismo de Mill. Ao compararmos os preceitos liberais que Mill sustenta por decorrência do princípio da utilidade ao liberalismo contratualista de Rawls, presente sobretudo em Political liberalism, tencionamos expor o real significado do liberalismo milliano. Almejamos com isso fazer justiça ao pensamento de Mill. Embora não de forma evidente, cremos ser com ele que o liberalismo tem sua maior expressão. Uma série de conflitos recentes relacionados ao multiculturalismo e às políticas de reconhecimento põe o tema dos direitos culturais na ordem do dia. Temos verificado, contudo, que muitos dos que, no Brasil dos dias de hoje, se preocupam em abordar problemas concretos do multiculturalismo por vezes tomam explícita ou implicitamente os direitos culturais como armas das culturas não hegemônicas no campo de batalha da política, o que pensamos não seja a forma mais apropriada de tratar as questões culturais. Essa ameaça de ideologização da defesa dos direitos culturais despertou-nos para a necessidade de repensarmos os fundamentos filosóficos que justificam sua proteção, discussão que de nenhuma forma é superada pelo fato desses direitos terem adquirido conformação jurídica. Embora a Constituição da República consagre direitos culturais, desafios quanto à interpretação e a forma de implementação desses direitos subsistem. Polêmicas em torno de cotas raciais, reservas indígenas e direitos de homossexuais são somente alguns exemplos de que os temas não são pouco controversos. Pretendemos que a filosofia de Mill, sendo base para uma compreensão liberal da esfera política em que direitos culturais estejam incluídos, possa servir de norte para que esses e muitos outros problemas análogos que emergem do ceio das sociedades multiculturais possam ser pensados. 12 1 O PROBLEMA DOS DIREITOS CULTURAIS A ideia do Estado-nação clássico se sustentava sobre certos elementos essenciais que o definiam, a saber: um povo, um território e frequentemente uma língua comuns 4. Como característica do Estado-nação se punha ainda a existência de um alto grau de homogeneidade das preferências dos indivíduos – reflexo da verificação, em regra geral, de unidade cultural 5, ainda que essa unidade, por vezes, se mantivesse por imposição social ou jurídica. Etnias distintas ocupando um mesmo território – frequentemente lutando por este território –, assim como minorias culturais, e sobretudo religiosas, não são, por certo, fenômenos novos. Mesmo o fato de ainda hoje haver sociedades substancialmente homogêneas em termos culturais não é algo que possa ser desprezado. Em regra geral, contudo, o grau de unidade cultural havido outrora é espetacularmente superior ao que se verifica nos dias de hoje. A comunidade cultural, dentro da qual os indivíduos compartilham uma cultura, uma linguagem e uma história, podia ser, em grande medida, identificada com a comunidade política, dentro da qual os cidadãos exerciam seus direitos e suportavam suas obrigações 6. Se por um lado havia menos diferença, por outro, o diferente era convidado a se adequar à cultura majoritária pela sanção da opinião pública, da moralidade prevalente e de um sistema jurídico moldado para os interesses da cultura dominante (o que pode ter sido ou não utilizado como instrumento de dominação). Sob o influxo dos fenômenos migratórios, dos avanços nas telecomunicações (os grupos não precisam estar ligados fisicamente), do desenvolvimento da tolerância étnica (os diferentes convivem em relativa paz em boa parte do mundo) – herança da segunda guerra, dos avanços democráticos (o diferente tem voz, elegendo representantes), da mudança do padrão rígido do Estado-nação com o surgimento dos blocos econômicos e políticos (os vínculos de nacionalidade, que traçam uma igualdade, se afrouxam), do triunfo da economia de mercado (os cidadãos, iguais, são, antes, consumidores)7 e, sobretudo, do enfraquecimento A doutrina tradicional assim conceituava: ―[…] povo é o grupo humano integrado numa ordem estatal […]; nação é uma sociedade de indivíduos que se sentem unidos pela origem comum, pelos interesses comuns e, principalmente, por ideias e aspirações comuns, compondo uma entidade moral‖ (AZAMBUJA, 1945, p.22) 5 ―Para a existência da nação, devem comparecer motivos de ordem social, moral e histórica, por via dos quais os indivíduos humanos, devidamente agrupados, apresentam aquilo que se convencionou chamar parentesco espiritual. De fato, no seio da nação, os elos aproximativos são tão fortes, evidentes e poderosos, que acabam por determinar a unidade grupal.‖ (MENEZES, 1999, p. 136) 6 A distinção entre comunidade cultural e comunidade política é de Will Kymlicka (KYMLICKA, 1991, p.135) 7 Tal fenômeno é descrito por Alain Tourraine nestes termos: ―Éramos antes de mais nada cidadãos; tornamo-nos antes de mais nada produtores e consumidores e ao mesmo tempo a nossa identidade funda-se cada vez menos 4 13 da ordem social e política (são atenuadas as normas de comportamento social padronizantes)8, pudemos testemunhar, a partir da segunda metade do século XX, uma progressiva e eminente transformação do panorama cultural. As sociedades unidas politicamente se apresentam ora como um amálgama de grupos culturais com vínculos de origens diversas (da religião, da opção sexual, do gênero, do lugar de procedência, da etnia etc.), cujos interesses não são isomórficos entre cada um deles. A esse fenômeno costuma-se chamar de multiculturalismo ou pluralismo cultural9. Nas sociedades multiculturais contemporâneas observamos a justaposição de indivíduos com preferências heterogêneas, identificados cada com um ou vários grupos, no interior dos quais se verifica homogeneidade. Entenda-se bem, não estamos aqui a tratar de quaisquer grupos que congreguem indivíduos com interesses homogêneos: relevantes para o problema ora apresentado não são os grupos cuja adesão se dá voluntariamente em virtude da existência de interesses comuns, como clubes, sociedades ou associações de todos os tipos, que geram vínculos assaz fracos; referimo-nos aos grupos culturais, involuntários, cuja identificação justamente influi nas preferências individuais10. A existência desses grupos culturais dá azo a um sem-número de conflitos, que se estabelecem no interior da sociedade multicultural. Fábio Portela Lopes de Almeida nos mostra que ―[…] o século XX ampliou consideravelmente o leque de conflitos culturais. Não é apenas a religião que gera o desacordo moral: os cidadãos das contemporâneas sociedades pluralistas divergem entre si acerca de praticamente tudo […]‖11. O autor bem aponta que o sobre o que fazemos e cada vez mais sobre o que somos, sobre nossas necessidades que encontram expressão no consumo de mercadorias, mas também, e mais ainda, na relação com nós mesmos, nas relações interpessoais, nos grupos eletivos ou nas comunidades de pertencimento, para distinguir os quatro domínios mais importantes.‖ (TOURRAINE, 1998, pp. 57-58) 8 Touraine nos mostra que esse enfraquecimento da ordem social e política se dá em proveito, de um lado, de redes de relações, de troca de informações, de capitais e de bens, e de outro, de identificações culturais, individuais e coletivas (TOURRAINE, 1998, p.58). 9 Utilizamos o termo multiculturalismo aqui como sinônimo de pluralismo cultural, o que serve para descrever um panorama social verificado – e não como por vezes é empregado, i.e., como um modo de abordagem do problema, para o que também é utilizado o conceito de interculturalidade. Nessa perspectiva propositiva, o multiculturalismo propugnaria a convivência, num mesmo espaço social, de culturas diferentes sob o princípio da tolerância e do respeito à diferença, a interculturalidade, ao pressupor como inevitável a interação entre essas culturas, proporia um projeto político que permita estabelecer um diálogo entre elas, como forma de garantir uma real convivência pacífica (LOPES, 2008, p.32). Como dito, a abordagem do problema que pretendemos apresentar é a liberal, recorrendo especificamente à perspectiva liberal-utilitarista de Mill – o que talvez, contudo, não se aparte significativamente das referidas visões. 10 Kymlicka estabelece, para fins análogos aos nossos, aquilo que é fruto de escolhas dos indivíduos, daquelas circunstâncias para as quais estes nada contribuíram. (Cf. KYMLICKA, 1991, p.186). 11 ALMEIDA, 2007, p.92. 14 ―[…] multiculturalismo não é uma postura teórica, mas o reconhecimento de um fato sociológico abordado por diferentes perspectivas teórico-constitucionais‖12. Pois bem, a sociedade multicultural contemporânea é o pano de fundo sobre o qual vão surgir no âmbito jurídico os direitos culturais, e também assim as discussões acerca do papel do estado frente a perspectivas éticas distintas, por vezes conflitantes, debate polarizado entre comunitaristas e liberais. A relevância dos direitos culturais é explicada pelo fato de ser em cada um dos distintos quadros culturais que os indivíduos escolhem os bens e perseguem sua felicidade13 – o problema da identidade tenta explicar este fenômeno. Assim, de um lado é trazida a importância da comunidade para a construção da identidade (que analisaremos no tópico 1.2), de outro surge a proposta liberal de neutralidade ética do estado (tópico 1.3.1). Buscaremos mostrar que a ideia de identidade redunda em demandas por reconhecimento e, assim, em direitos culturais, a seguir introduzindo a visão liberal amplamente difundida, centrada no pensamento de John Rawls. Somente a partir da apresentação destas duas propostas é que poderemos introduzir, no ponto 2, a visão do tema própria da filosofia política de J. S. Mill. Antes de mais nada, porém, cumpre-nos apresentar o modo pelo qual os direitos culturais se colocam hoje no panorama jurídico, com o fito de especificarmos a que afinal estamos nos referindo, ainda que sem tratarmos por ora da fonte de suas respectivas demandas. 1.1 Os direitos culturais e a dogmática jurídica. Ainda que de alguma forma subsista o conceito de nação, é no contexto multicultural que se apresentam hoje no mundo jurídico os direitos culturais. Abordemos brevemente ora o desenvolvimento destes direitos no plano nacional e internacional. Uma série de documentos internacionais tratam da questão dos direitos culturais; restringir-no-emos, contudo, àqueles de maior relevância, com especial destaque aos tratados internacionais sobre a matéria14. Tanto no panorama nacional como internacional, podemos observar dois movimentos no que 12 ALMEIDA, 2007, p.92. ―Todo fenômeno jurídico, tecnológico e econômico deve se realizar dentro de um quadro cultural‖ (SOUZA, 1996, p.572). 14 Para um panorama completo dos direitos culturais no âmbito do direito internacional, vide ANDRAU, 2011. E ainda: TRINDADE, 1995. 13 15 diz respeito aos pressupostos dos direitos culturais. Tratemos ora da evolução assim descrita por Ana Maria D‘Ávila Lopes: Os direitos culturais, incluídos na segunda geração dos direitos fundamentais, surgiram no início do século XX, com o intuito de defender e promover basicamente o direito à educação, visto que, à época, a expressão direito cultural estava associada à idéia de instrução. Com o passa dos anos, e graças ao processo mundial de globalização e aos aportes teóricos do multiculturalismo, ampliou-se o conteúdo do termo cultura, sendo hoje entendido como toda manifestação criativa e própria do sentir e pensar de um grupo social.15 1.1.1 A cultura como bem social homogêneo. Originalmente a expressão direitos culturais era lida como sinônima de direito à cultura, significando precipuamente direito à educação. Tal é reflexo de uma compreensão, difundida outrora na comunidade jurídica, de cultura como produto do progresso, um crescimento histórico, resultante da evolução da humanidade, algo que vai se aperfeiçoando como uma tecnologia16. Direito à cultura, assim, representaria o direito subjetivo de ser instruído de acordo com esses conhecimentos assim como, por vezes, também de gozar do acervo histórico-cultural da nação. Não se fala em culturas; a cultura é concebida ainda como algo uno dentro de uma mesma sociedade. Uma referência a direitos culturais já constava da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Seu artigo 28 estabeleceu: ―I) Todo o homem tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de fruir de seus benefícios.‖17 Já em 1966, foi celebrado o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU. Seu Artigo 15 assim previu: 1. Os Estados Signatários do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a: Participar na vida cultural; Gozar dos benefícios do progresso científico e de suas aplicações; 15 LOPES, 2008, pp.33-34 MOREIRA, 2008, p.469. 17 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2011a. A propósito vide PIOVESAN, 2004. 16 16 c) Beneficiar-se da proteção dos interesses morais e materiais que lhe corresponda em virtude das produções científicas, literárias ou artísticas de que seja autora. 2. Entre as medidas que os Estados Signatários do presente Pacto deverão adotar para assegurar o pleno exercício deste direito, figuraram as necessárias para a conservação, o desenvolvimento e a difusão da ciência e da cultura. 3. Os Estados Signatários do presente Pacto se comprometem a respeitar a liberdade indispensável à investigação cientifica e à atividade criadora. 4. Os Estados Signatários do presente Pacto reconhecem os benefícios que derivam do fomento e desenvolvimento da cooperação técnica e das relações internacionais em questões cientificas e culturais.18 Podemos notar que a concepção de cultura que permeia estes dois primeiros tratados é aquela à qual nos referíamos, i.e., como um bem social fixo, de conteúdo relativamente incontroverso, cuja fruição a norma jurídica buscava garantir ao cidadão. Não se põem em questão as possíveis diversas culturas com as quais pode haver identificação por parte do indivíduo. A participação na vida cultural desde logo era vista como essencial ao ser humano, embora aparentemente a profunda relação entre o contexto cultural e a perseguição individual de bens estivesse ainda longe de tomar contornos. Jayme Benvenuto Lima Jr., em comentário ao referido Pacto, assevera: ―[a] ideia de proteção a essa categoria de direitos envolve a crença de que o bem-estar individual resulta, em parte, de condições econômicas, sociais e culturais, bem como da visão de que o governo tem a obrigação de garantir adequadamente tais condições para todos os indivíduos.‖ 19. Foi, sem embargo, somente com a Declaração de Viena de 1993, adotada pela Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos, que se tornou mais firme a compreensão de que todos os direitos fundamentais têm a mesma hierarquia, sendo todos ―indivisíveis interdependentes e inter-relacionados‖20, nos termos de seu artigo 5. Nas constituições brasileiras que antecederam a ora vigente se punham dispositivos garantindo ao cidadão acesso à cultura, vista justamente como fruto do desenvolvimento histórico e científico. No direito português, ainda hoje os autores a tratarem de direitos culturais querem significar sobretudo direito à cultura como formação cultural21 – o que pode 18 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2011b. LIMA JÚNIOR, 2001, p.30. 20 CONFERÊNCIA MUNDIAL SOBRE OS DIREITOS HUMANOS, 2011. 21 Assim Canotilho, referindo-se à Constituição portuguesa: ―[…] quando se fala de prestações existenciais para ‗assegurar uma existência humana digna‘ pretende-se também aludir à indissociabilidade da ‗existência digna‘ de uma expressão cultural e, ao mesmo tempo, à inseparabilidade da ‗democracia cultural‘ de um Daseinsvorsorge material. Acresce que as instituições democráticas do ensino incentivam e asseguram o acesso 19 17 ser explicado talvez pelo fato de Portugal apresentar um grau de homogeneidade cultural superior ao de alhures. No direito constitucional brasileiro, geralmente vistos como direitos fundamentais de segunda geração22, os direitos culturais se apresentavam primitivamente como algo quase indissociável dos direitos sociais e econômicos 23. E, desse modo, desde logo os direitos culturais apresentavam o problema de seu modo de concretização 24, comum aos direitos econômicos e sociais, para os quais se impõe a necessidade de uma prestação estatal25. de todos os cidadãos à fruição e criação cultural (art. 73.72 e 3), ao direito ao ensino e à igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolar (art. 74.71), ao ensino básico universal, obrigatório e gratuito (art. 74.73a), ao acesso de todos os cidadãos aos graus mais elevados de ensino e à investigação e criação artística segundo as suas capacidades (art. 74.73-í/). A criação dos pressupostos concretos do direito à cultura e ensino (pressupostos materiais da igualdade de oportunidades) é condição ineliminável de uma real liberdade de formação (desenvolvimento da personalidade, cfr. art. 73.72) e instrumento indispensável da própria emancipação (progresso social e participação democrática, arts. 73.72 e 74.72). Igualdade de oportunidades, participação, individualização e emancipação, são componentes do direito à educação e à cultura, e dimensões concretas implícitas no princípio da democracia cultural. Por último, as instituições democráticas do ensino e da cultura transformam-se, no quadro constitucional, em ‗mecanismos de direcção’, conformadores de novas estruturas sociais: progresso social e participação democrática (art. 73.72), superação de desigualdades económicas, sociais e culturais (art. 74.72), ligação do ensino com as actividades económicas, sociais e culturais (art. 74.73-/))‖ (CANOTILHO, 1993. p.p.478-479). 22 A teoria das gerações de direitos, atualmente tão amplamente difundida que chega a fazer parte do vocabulário básico dos direitos humanos, foi formulada originalmente pelo jurista tcheco Karel Vasak e depois desenvolvida por Norberto Bobbio. Mamelstein nos mostra que ―[a]o formular a sua teoria, inspirado pelo lema da Revolução Francesa, Vasak disse mais ou menos assim: a) a primeira geração dos direitos seria a dos direitos civis e políticos, fundamentados na liberdade (liberté), que tiveram origem com as revoluções burguesas; b) a segunda geração, por sua vez, seria a dos direitos econômicos, sociais e culturais, baseados na igualdade (égalité), impulsionada pela Revolução Industrial e pelos problemas sociais por ela causados; c) por fim, a última geração seria a dos direitos de solidariedade, em especial o direito ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, coroando a tríade com a fraternidade (fraternité), que ganhou força após a Segunda Guerra Mundial, especialmente após a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948.‖ (MARMELSTEIN, 2009, p.40). 23 Dissociação para a qual a doutrina brasileira muito pouco ou quase nada contribui. Podemos perceber que, ao tratar de direitos culturais, a doutrina tradicional se restringia a reproduzir os dispositivos constitucionais ou dos tratados internacionais – panorama que, desalentadoramente, mesmo nos últimos anos não apresenta grande evolução. Marmelstein assim apresenta uma visão integrada dos direitos sociais, econômicos e culturais como direitos de segunda geração: ―[…] o Estado do bem-estar social também se compromete a garantir os chamados diretos econômicos, sociais e culturais, que são aqueles ligados às necessidades básicas dos indivíduos […]. O reconhecimento desses direitos parte da ideia de que, sem as condições básicas de vida, a liberdade é uma fórmula vazia. Afinal, liberdade não é só a ausência de constrangimentos externos à ação do agente, mas também a possibilidade real de agir, de fazer escolhas e de viver de acordo com elas […] os direitos de segunda geração […] impõem diretrizes, deveres e tarefas a serem realizadas pelo Estado, no intuito de possibilitar aos seres humanos melhor qualidade de vida e um nível razoável de dignidade como pressuposto do próprio exercício da liberdade. Nessa acepção, os direitos fundamentais de segunda geração funcionam como uma alavanca ou uma catapulta capaz de proporcionar o desenvolvimento do ser humano, fornecendo-lhe as condições básicas para gozar, de forma efetiva, a tão necessária liberdade.‖ (MARMELSTEIN, 2009, pp.49-52.) 24 Ensina Cançado Trindade: ―Em termos de sua real implementação internacional, os direitos econômicos, sociais e culturais foram infelizmente os mais negligenciados no passado, sob o falso pretexto de sua ‗realização progressiva‘, sempre postergada. Dentre estes direitos, os direitos culturais têm sido talvez os quase esquecidos.‖ (TRINDADE, 1996, p.714) 25 J. J. Gomes Canotilho nos mostra que ―[…] o direito a prestações reduz-se ou reconduz-se ao seguinte: O direito de qualquer cidadão a um acto positivo (facere) dos poderes públicos (Estado) Trata-se de um conceito amplo, pois o direito a um acto positivo do Estado tanto pode consistir: 1) no direito de o cidadão exigir do Estado protecção perante outros cidadãos (exemplo, através de normas penais); 2) no direito a que o Estado atribua aos cidadãos uma posição organizatória e procedimentalmente relevante para a defesa ou exercício de 18 1.1.2 Direitos culturais na perspectiva multicultural. Desde meados dos anos 80 o tema das diferenças culturais vêm sendo objeto de preocupação por parte da comunidade jurídica, momento em que os direitos culturais passam a ser percebidos sob uma nova ótica. No plano internacional, tratados multilaterais têm servido para apontar a importância da tutela especial das minorias; no Brasil, a partir da Constituição da República de 1988, os direitos culturais sob esta perspectiva pluralista se afirmam, fenômeno que se manifesta contemporaneamente em diversos sistemas jurídicosconstitucionais americanos26. outros direitos exemplo, participação em órgãos colegiais, participação no procedimento administrativo); 3) no direito a prestações fácticas (subvenções, lugares na Universidade, postos de trabalho, serviços de saúde), falando-se aqui de direito a prestações em sentido estrito (Leistungsrechten im engeren Sinne).‖ (CANOTILHO, 2004. p.50.) 26 Moreira faz um apanhado das reformas constitucionais americanas: ―La Constitución de México de 2001 en el art. 4 dice: ‗la nación mexicana tiene una composición pluricultural sustentada originalmente en sus pueblos indígenas que son aquellos que descienden de poblaciones que habitaban en el territorio actual del país al iniciarse la colonización y que conserva sus propias instituciones sociales, económicas, culturales y políticas o parte de ellas…El derecho de los pueblos indígenas a la libre determinación se ejercerá en un marco constitucional de autonomía que asegure la unidad nacional…‘. La de Bolivia de 2004 indica: ‗art. 1 Bolivia, libre, independiente, soberana, multiétnica y pluricultural…‘. La de Brasil 1988-2002 le dedica un capítulo a la cultura donde señala: ‗El estado protegerá las manifestaciones de las culturas populares, indígenas y afrobrasileras, y de otros grupos participantes del proceso civilizatorio nacional‘. La de Canadá de 1982 consagra lo siguiente en la sección 27: ‗Esta carta será interpretada de una manera consistente con la idea de preservación de la herencia multicultural de los canadienses…‘ La de Colombia de 1991-2001 indica en su art. 7 ‗El estado reconoce y protege la diversidad étnica y cultural de la nación colombiana‘. Y luego en su art. 68 ‗Los integrantes de los grupos étnicos tendrán derecho a una formación que respete y desarrolle su identidad cultural‘. La de Ecuador de 1998 en su art. 1 declara: ‗El Ecuador es un estado social de derecho, soberano, unitario, independiente, democrático, pluricultural y multiétnico‘. Luego en sección VI dedicada a la cultura completa en el art. 62 ‗La cultura es patrimonio del pueblo y constituye elemento esencial de su identidad. El estado promoverá y estimulará la cultura… así como del conjunto de valores y manifestaciones diversas que configuran la identidad nacional, pluricultural y multiétnica‘. Guatemala 1985/1993 en la sección II dedicada a la cultura proclama en el art. 58: ‗Se reconoce el derecho de las personas y de las comunidades a su identidad cultural de acuerdo a sus valores, su lengua y sus costumbres‘. Honduras de 1982/1999, ordena en su art. 173 ‗El estado preservará y estimulará las culturas nativas, así como las genuinas expresiones del folclore nacional, el arte popular y las artesanías‘. Nicaragua en la reforma de 1995, en su art. 91 declara: ‗El estado tiene la obligación de dictar leyes destinadas a promover acciones que aseguren que ningún nicaragüense sea objeto de discriminación por razón de su lengua, cultura y origen‘. La de Panamá de 1994 en el capítulo IV, en el art. 83: ‗El estado reconoce que las tradiciones folclóricas constituyen parte medular de la cultura nacional y por tanto promoverá su estudio, conservación y divulgación, estableciendo su primacía sobre manifestaciones o tendencias que la adulteren‘. La de Paraguay de 1992 establece en el art. 62: ‗Esta Constitución reconoce la existencia de los pueblos indígenas, definidos como grupos de cultura anteriores a la formación y organización del estado paraguayo…‘ En el art. 140 señala: ‗El Paraguay es un país pluricultural y bilingüe‘. La Constitución de Perú de 1993 consagra en su art. 2 que ‗Toda persona tiene derecho a su identidad étnica y cultural. El estado reconoce y protege la pluralidad étnica y cultural de la nación…‘. En la de Venezuela de 1999 en el capítulo VI que titula De los derechos culturales y educativos enuncia en su art. 100 ‗Las culturas populares constitutivas de la venezonalidad gozan de atención especial, reconociéndose y respetándose la interculturalidad bajo el principio de igualdad de las culturas‘. Como se puede advertir en una década se desata en América una avalancha de nuevos derechos anunciando un ambio de paradigmas: la pluriculturalidad, la diversidad, y los derechos 19 A partir da percepção de que a sociedade contemporânea é, de fato, multicultural – sem dúvida para o que contribuíram enormemente, além das lutas conflagradas por minorias, também um novo panorama apresentado pelas ciências sociais – os direitos culturais passam a ser concebidos como algo distinto dos direitos de segunda geração, pois se fundariam sobre bases diversas daquelas dos direitos econômicos e sociais. Enquanto os direitos econômicos e sociais visariam o restabelecimento de uma anterior situação ideal de igualdade27, o fundamento dos direitos culturais partiria justamente da constatação da diferença, que passa a ser reconhecida juridicamente28. Muitos autores, pois, passam a classificá-los como direitos de terceira geração. Os direitos culturais são justificados, assim, pela necessidade de promover algo que distingue um indivíduo ou grupo de indivíduos de outro, até mesmo em aparente contradição com a assunção de igualdade de consideração. Neste sentido, João Arriscado Nunes pondera que ―[a] reivindicação de igualdade, que marcou a luta pelos direitos de segunda geração, surge, com freqüência, em tensão com os direitos de terceira geração que se referem à identidade e à diferença‖29. Mas a existência de uma oposição e até mesmo um conflito entre os fundamentos de uns e de outros direitos está longe de ser uma questão incontroversa. Em todo caso, notemos que os direitos culturais, sob a perspectiva atual, frequentemente se apresentam sob a forma de direitos de minorias, o que pode ser atribuído ao fato de serem reputados como instrumentos jurídicos corretivos. Sob a premissa de que privar um indivíduo de seu contexto cultural significa retirar-lhe algo essencial para o seu bem estar, problema com o qual, por diversas razões, minorias costumam se defrontar, a Declaração Sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas através da Resolução nº 47/135 de 18 de dezembro de 1992, veio para, no plano internacional, atribuir especial proteção às culturas minoritárias. Estatui seu artigo 1º: ―Os Estados protegerão a existência e a identidade nacional ou étnica, lingüísticos. Bajo el paraguas de La igualdad son derechos que modifican el imaginario legal, rompen el molde colonial y sacuden definitivamente la idea rígida del evolucionismo enquistado en el Derecho.‖ (MOREIRA, 2008, pp. 474-476). 27 Os direitos de segunda geração, nas palavras de Paulo Bonavides, ―[n]asceram abraçados ao princípio da igualdade, do qual não se podem separar, pois fazê-lo equivaleria a desmembrá-los da razão de ser que os ampara e estimula‖. (BONAVIDES, 1997, p.518) 28 ―De um lado temos os direitos que são próprios de uma condição humana comum. De outro, direitos que se dirigem ao reconhecimento da diversidade dessa condição humana. A afirmação de identidades baseadas no sexo, na raça, na etnia, na orientação sexual, entre outras, vem ampliar o universo dos direitos que são reconhecidos como direitos humanos.‖ (NUNES, 2004, p.24.) 29 NUNES, 2004, p.25. 20 cultural, religiosa e linguística das minorias dentro de seus respectivos territórios e fomentarão condições para a promoção de identidade.‖30 O direito brasileiro apresenta um paralelismo com a evolução conceitual experimentada pelo direito internacional. Assim Ana Maria D‘Ávila Lopes: […] os direitos fundamentais culturais que, na sua origem referiam-se apenas ao direito à educação, mudaram hoje de conteúdo. Assim, enquanto o direito à educação passou hoje a ser identificado como instrução e compreendido como um direito fundamental social, conforme o previsto no art. 6.º, da CF/1988, os direitos culturais passaram a se referir a todas as manifestações materiais e imateriais dos diversos grupos humanos. Foi dessa forma como o constituinte brasileiro concebeu esses direitos, prevendo-os nos artigos 215 e 216, da CF/1988.31 A Constituição de 1988 assume o aspecto multicultural da cultura brasileira, tratando em pé de igualdade as diversas manifestações culturais nacionais, além de impor a tarefa de proteger determinados grupos culturais historicamente desprestigiados, não estabelecendo, todavia, uma agenda de políticas públicas identitárias. A Seção II do Capítulo III do Título VIII da Constituição da República é dedicada à cultura. Os dispositivos constitucionais têm como escopo fomentar as diversas culturas que contribuíram e contribuem para a formação cultural brasileira. Jayme Benvenuto Lima Jr. nos mostra que [o]s arts. 215 e 216 procuram atender à concepção pela qual a universalização dos direitos humanos deve ser compatível, na medida do possível, com o respeito às culturas e manifestações culturais dos povos e regiões dos países e entre os países. Pelos referidos artigos, o Estado brasileiro se compromete a garantir o pleno exercício dos direitos culturais, por meio da proteção das manifestações culturais populares, indígenas e afro-brasileiras, assim como de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional, na tentativa de garantir respeito ao patrimônio cultural do país, provavelmente em reparo às injustiças cometidas no passado, notadamente em relação aos povos indígenas e negros.32 O artigo 215 da Constituição da República assim dispõe: Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. 30 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2010. LOPES, 2008, p.35. 32 LIMA JÚNIOR, 2001. p.64 31 21 § 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. § 2º - A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais. § 3º - A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à: (EC nº 48/05) I - defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; (EC nº 48/05) II - produção, promoção e difusão de bens culturais; (EC nº 48/05) III - formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões; (EC nº 48/05) IV - democratização do acesso aos bens de cultura; (EC nº 48/05) V - valorização da diversidade étnica e regional. (EC nº 48/05)33 O art. 216, por outro lado, centra-se na garantia ao patrimônio cultural, estando presente, contudo, também a preocupação com o aspecto multicultural da cultura brasileira, v.g., na proteção especial concedida pelo §5º aos quilombos34. Quanto ao modo de concretização desses direitos, adicionalmente à previsão contida no §3º do artigo 215, relativo ao Plano Nacional da Cultura, também o §6º do art. 216 prevê o estabelecimento de fundos para o custeio das políticas culturais, sendo que ambos os dispositivos foram introduzidos na Constituição por força da Emenda nº 42 de 2003, o que serviu para reforçar a posição dos 33 BRASIL, 2011a. Vejamos: ―Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. § 1º - O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação. § 2º - Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem. § 3º - A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais. § 4º - Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei. § 5º - Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos. § 6 º É facultado aos Estados e ao Distrito Federal vincular a fundo estadual de fomento à cultura até cinco décimos por cento de sua receita tributária líquida, para o financiamento de programas e projetos culturais, vedada a aplicação desses recursos no pagamento de: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003) I - despesas com pessoal e encargos sociais; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003) II - serviço da dívida; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003) III - qualquer outra despesa corrente não vinculada diretamente aos investimentos ou ações apoiados. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)‖ (BRASIL, 2011a) 34 22 direitos culturais no panorama jurídico brasileiro, através da inclusão de instrumentos para sua efetiva implementação35. Em relação à proteção de culturas minoritárias, a Constituição traz ainda o Capítulo VIII do Título VIII, dedicado aos indígenas, dando-lhes especial tratamento36. Aliás, 35 A propósito, apreciemos a seguinte passagem do Voto da Relatora contido no Parecer da Câmara de Deputados quanto à Proposta de Emenda à Constituição nº 306-A, de 2000 (que deu origem à referida Emenda nº 42/2003): ―A cultura é o substrato de toda sociedade humana. Não se pode pensar na humanidade sem pensar na cultura. De fato, o homem é um animal de múltiplas dimensões, que se fundem em duas grandes vertentes interdependentes: a biológica e a cultural. No que tange à vertente cultural há que se considerar dois aspectos: o material (tangível) e o imaterial (não-tangível). Daí termos nas sociedade humanas, sejam elas tribais ou nãotribais, uma cultura material, feita de artefatos (objetos, obras, construções etc.) e uma cultura imaterial, feita de sinais e símbolos (língua, conhecimento, rituais etc.). Na estrutura e na dinâmica social as culturas material e imaterial se interpenetram continuamente. Essas considerações antropológicas são essenciais para entendermos por que o legislador constituinte brasileiro, ao tratar da cultura na Constituição Federal de 1988 (arts. 215 e 216), afirmou, sabiamente, que o patrimônio cultural brasileiro compreende ‗os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira‘. E nesses bens, estabelece a nossa Carta Magna, estão incluídos: as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artísticoculturais; e os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. Nosso Patrimônio Cultural, portanto, compõe-se de bens tangíveis (por exemplo, obras de arte, documentos e edificações) e de bens intangíveis (como a língua e outras formas de expressão). Além dessa correta amplitude dada à noção de Patrimônio Cultural, a Constituição Federal de 1988 inovou ao reconhecer o princípio da cidadania cultural - a garantia estatal de que todos gozem do pleno exercício dos direitos culturais e do acesso às fontes da cultura nacional, o que exige, em contrapartida, que o Estado fomente, proteja e defenda as manifestações culturais e o patrimônio daí resultante. Apesar desses avanços inscritos na nossa Carta Magna, - como afirmam os ilustres autores na Justificação da Proposta de Emenda à Constituição em apreço -, a seção constitucional que trata da cultura deixou de fazer menção a um Plano Nacional de Cultura, diferentemente do que ocorreu na seção equivalente, sobre a educação (art. 214). Reparar essa omissão constante da nossa Lei Maior é o objetivo precípuo da presente Proposta de Emenda à Constituição. Nas palavras dos nobres autores da PEC n° 306-A, ‗A necessidade premente da elaboração de um Plano Nacional de Cultura para o País deve-se ao fato de que a cultura ainda não se constituiu em aspecto importante no rol das políticas públicas, atestado pelos ínfimos recursos que a ela são dedicados no contexto do Orçamento da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal.‘ Além disso, - como muito bem afirmou o Ministro Francisco Corrêa Weffort, da Cultura, na Audiência Pública que a Comissão Especial realizou nesta Casa em 20 de março último -, estamos maduros, como nação, para inserir na nossa Carta Magna provisão constitucional que crie o imperativo de elaborar e colocar em prática um Plano Nacional de Cultura, nos termos propostos na PEC sob exame. Nesse sentido, é digno de nota que a PEC N° 306-A, de 2000, subscrita pelos eminentes Deputados, Gilmar Machado e Marisa Serrano, conta ainda com o apoio de 177 assinaturas confirmadas e 3 não confirmadas de Parlamentares da Casa. Todos entendem ser necessária a Emenda Constitucional proposta. […] Além disso, a PEC n° 306-A, de 2000, está redigida de modo a garantir que o Plano Nacional de Cultura, a ser elaborado após a inserção de sua exigência na Carta Magna, tenha caráter geral e atenda a todas as formas de manifestação cultural.‖ (BRASIL, 2011b) 36 Estatui o art. 231: ―Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcálas, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. § 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. § 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. § 3º - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei. § 4º - As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis. § 5º - É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum" do 23 recentemente controvérsia envolvendo questão relativa à preservação de minoria indígena foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal37. A visão dos direitos culturais neste panorama multicultural parece estar consolidada no direito brasileiro. É neste espírito que são hoje idealizadas as políticas públicas de promoção dos direitos fundamentais e, dentre eles, os direitos culturais. O Eixo Orientador III do Programa Nacional de Direitos Humanos - PNDH-3, aprovado pelo Decreto nº 7.037/200938, denomina-se ―Universalizar direitos em um contexto de desigualdades‖. Suas diretrizes 9 (―Combate às desigualdades estruturais‖) e 10 (―Garantia da igualdade na diversidade‖), apresentam uma série de objetivos que se coadunam com a forma puralista de conceber os direitos culturais. Um conjunto de objetivos estratégicos relativos aos direitos culturais é fixado em atenção a essas diretrizes, com a previsão de uma série de ações programáticas pertinentes, como é o caso, v.g., do Objetivo estratégico I da Diretriz 9: ―Igualdade e proteção dos direitos das populações negras, historicamente afetadas pela discriminação e outras formas de intolerância‖, que tem como uma de suas ações ―fomentar programas de valorização do patrimônio cultural das populações negras‖, havendo ainda uma série de disposições análogas em relação aos direitos de grupos como os indígenas (Objetivo estratégico II da Diretriz 9), mulheres (Objetivo estratégico III da Diretriz 9), idosos (Objetivo estratégico III da Diretriz 10), deficientes físicos (Objetivo estratégico IV da Diretriz 10) e homossexuais (Objetivo estratégico V da Diretriz 10). Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco. § 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé. § 7º - Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.‖ (BRASIL, 2011a). 37 A lide dizia respeito à forma de demarcação das terras indígenas localizadas na reserva Raposa Serra do Sol, no estado de Roraima. Destaquemos a seguinte passagem da ementa do julgado: "[…] Os arts. 231 e 232 da CF são de finalidade nitidamente fraternal ou solidária, própria de uma quadra constitucional que se volta para a efetivação de um novo tipo de igualdade: a igualdade civil-moral de minorias, tendo em vista o protovalor da integração comunitária. Era constitucional compensatória de desvantagens historicamente acumuladas, a se viabilizar por mecanismos oficiais de ações afirmativas. No caso, os índios a desfrutar de um espaço fundiário que lhes assegure meios dignos de subsistência econômica para mais eficazmente poderem preservar sua identidade somática, linguística e cultural. Processo de uma aculturação que não se dilui no convívio com os não índios, pois a aculturação de que trata a Constituição não é perda de identidade étnica, mas somatório de mundividências. Uma soma, e não uma subtração. Ganho, e não perda. Relações interétnicas de mútuo proveito, a caracterizar ganhos culturais incessantemente cumulativos. Concretização constitucional do valor da inclusão comunitária pela via da identidade étnica." (BRASIL, 2010). 38 Cf. BRASIL, 2009. Diversos pontos do PNDH-3 geraram e têm gerado muitas discussões, v.g., quanto à mitigação de certas garantias ao direito de propriedade, ao controle estatal da imprensa e à legalização do aborto, o que redundou, inclusive, na posterior alteração do Plano pelo Decreto nº 7.177/2010 , com a supressão ou alteração de uma série de ações programáticas. No que diz respeito aos direitos culturais, contudo, parece não terem se estabelecido grandes controvérsias. 24 No plano internacional, tivemos ainda, em 2002, a edição da Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural da UNESCO, que parece haver reproduzido o estado da arte quanto à concepção pluralista dos direitos culturais ora em voga. Analisemos seus artigos inaugurais: IDENTIDADE, DIVERSIDADE E PLURALISMO Artigo 1 – A diversidade cultural, patrimônio comum da humanidade A cultura adquire formas diversas através do tempo e do espaço. Essa diversidade se manifesta na originalidade e na pluralidade de identidades que caracterizam os grupos e as sociedades que compõem a humanidade. Fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade, a diversidade cultural é, para o gênero humano, tão necessária como a diversidade biológica para a natureza. Nesse sentido, constitui o patrimônio comum da humanidade e deve ser reconhecida e consolidada em beneficio das gerações presentes e futuras. Artigo 2 – Da diversidade cultural ao pluralismo cultural Em nossas sociedades cada vez mais diversificadas, torna-se indispensável garantir uma interação harmoniosa entre pessoas e grupos com identidades culturais a um só tempo plurais, variadas e dinâmicas, assim como sua vontade de conviver. As políticas que favoreçam a inclusão e a participação de todos os cidadãos garantem a coesão social, a vitalidade da sociedade civil e a paz. Definido desta maneira, o pluralismo cultural constitui a resposta política à realidade da diversidade cultural. Inseparável de um contexto democrático, o pluralismo cultural é propício aos intercâmbios culturais e ao desenvolvimento das capacidades criadoras que alimentam a vida pública. Artigo 3 – A diversidade cultural, fator de desenvolvimento A diversidade cultural amplia as possibilidades de escolha que se oferecem a todos; é uma das fontes do desenvolvimento, entendido não somente em termos de crescimento econômico, mas também como meio de acesso a uma existência intelectual, afetiva, moral e espiritual satisfatória.39 1.2 O problema filosófico da identidade. Apresentado este panorama inicial, importa agora que voltemo-nos à fonte das demandas por direitos culturais através da abordagem do problema filosófico da identidade, para que possamos estabelecer futuramente a posição em termos de importância desses direitos no interior da compreensão utilitarista. De onde advém, no campo filosófico, a demanda individual por estes direitos, a importância do contexto cultural para o 39 Cf. UNESCO, 2011. 25 desenvolvimento de qualquer indivíduo, o que poderá vir a fundá-los, assim como as consequências dessa filosofia para fins de se estabelecer o papel do estado frente à noção de bem individual são os tópicos relacionados ao tema que nos proporemos a tratar doravante. Em Sources of the Self, Charles Taylor se propõe a definir a identidade moderna, descrevendo sua gênese. Baseando sua análise no pensamento dos mais eminentes filósofos modernos, busca abstrair ideias e conceitos que, segundo sua visão, formariam as bases epistemológicas do modo de pensar da modernidade. Por cerca de 400 páginas (das Partes II a V de sua obra), Taylor não se furta da tarefa de demonstrar que o pensamento moderno se basearia em certas ideias básicas, que seriam as principais facetas dessa identidade: a interioridade moderna – significando a percepção de nós mesmos como seres com profundidade interior, a afirmação da vida comum e a noção da natureza como uma fonte moral interna, desenvolvendo extensamente estes três pontos, analisando os desdobramentos dessas ideias e sua influência no modo moderno de conceber a esfera moral. Antes, porém, Taylor investiga o problema filosófico da identidade – tema que nos convém tratar. Na Parte I, busca estabelecer a necessária conexão entre identidade e o bem. Critica a abordagem restrita dispensada à moralidade pelos filósofos morais contemporâneos, os quais, segundo seu entendimento, tenderiam a focar-se em o que é correto fazer, ao invés de debruçarem-se sobre a questão de o que é bom ser, definindo desde logo o conteúdo da obrigação, ao invés de definir a natureza da boa vida40. Credita este modo – segundo sua visão, errôneo – de conceber a moralidade a uma série de paradigmas modernos. 1.2.1 Identidade e comunidade. Taylor sugere que o pensamento moral envolve três eixos: nosso senso de respeito e dever em relação às pessoas, nossa compreensão daquilo que torna a vida valiosa e nosso senso de dignidade, os quais são reproduzidos em qualquer sociedade humana, embora sejam concebidos de modo diferente em cada uma delas41. Neste contexto é que se põem as questões do sentido da vida e da busca pela boa vida, sempre dependentes de um quadro ao qual todo e qualquer indivíduo estaria vinculado, condicionando sua concepção de agir moral. 40 41 Cf. TAYLOR, 1989, p. 3. Cf. TAYLOR, 1989, p.p. 15-16. 26 1.2.1.1 Quadros identitários A tratar deste ponto, o primeiro conceito proposto por Taylor é, pois, o de quadros, planos de fundo que definem e orientam o agir moral de cada sujeito, dando sentido a seus atos e apontando o norte na trilha em direção à boa vida. A propósito: Quadros fornecem o plano de fundo, explícito ou implícito, para nossos julgamentos morais, intuições ou reações em qualquer uma das três dimensões. Articular um quadro significa explicar o que faz sentido em nossas respostas morais. Ou seja, sempre que tentamos exteriorizar aquilo que pressupomos quando julgamos que uma determinada forma de vida é realmente valiosa, ou identificarmos nossa dignidade a uma determinada realização ou status, ou definirmos nossas obrigações morais de uma certa forma, no vemos articulando dentre outras coisa o que temos chamado aqui de ―quadros‖. […] Quero defender a tese fundamental de que agir na ausência de quadros é absolutamente impossível para nós; posta de outra maneira, de que os horizontes dentro dos quais vivemos nossas vidas e que dão sentido a elas têm de incluir relevantes discriminações qualitativas. Aliás, isso não deve ser entendido como um fato psicológico contingente a respeito de seres humanos, o qual pode acontecer de um dia não se aplicar a um novo tipo ou a um tipo excepcional de indivíduo, algum super-homem de objectificação desprendida. Antes, a afirmação é de que viver através de tais horizontes fundamentalmente qualificados é algo constitutivo do agir humano […].42 Destes quadros definidos, exsurge a questão da identidade. A identidade do indivíduo, sua auto-definição, dependente da relação entabulada com a comunidade em que está inserido e de seus vínculos culturais, fornece-lhe os quadros que irão pautar suas compreensões de vida e, por conseguinte, suas ações. Diz Taylor que a resposta para a pergunta ―quem eu sou?‖ está relacionada à compreensão daquilo que é importante para nós, desenvolvendo-a nestes termos: Tradução nossa. No original: ―Frameworks provide the background, explicit or implicit, for our moral judgements, intuitions, or reactions in any of the three dimensions. To articulate a framework is to explicate what makes sense of our moral responses. That is, when we try to spell out what it is that we presuppose when we judge that a certain form of life is truly worthwhile, or place our dignity in a certain achievement or status, or define our moral obligations in a certain manner, we find ourselves articulating inter alia what I have been calling here ‗frameworks‘. […] I want to defend the strong thesis that doing without frameworks is utterly impossible for us; otherwise put, that the horizons within which we live our lives and which make sense of them have to include these strong qualitative discriminations. Moreover, this is not meant just as a contingently psychological fact about human beings, which could perhaps turn out one day not to hold for some exceptional individual or new type, some superman of disengaged objectification. Rather, the claim is that living within such strongly qualified horizons is constitutive of human agency […]‖ (TAYLOR, 1989, p.p. 26-27) 42 27 Minha identidade é definida pelos compromissos e identificações que fornecem o quadro ou horizonte dentro do qual posso determinar, em cada caso, o que é bom, ou valioso, ou o que deveria fazer, ou o que eu aprovo e a que me oponho. Em outras palavras, é o horizonte por meio do qual sou capaz de tomar uma posição. As pessoas podem conceber sua identidade como parcialmente definida por algum compromisso moral ou espiritual, por exemplo, como um católico, ou um anarquista. Ou podem defini-la em parte pela nação ou tradição a que pertençam, digamos, como um armênio, ou um québecois. O que elas estão dizendo com isso não é somente que estão fortemente ligadas a essa visão ou plano de fundo espiritual; antes, é isso o que fornece o quadro dentro do qual podem determinar sua posição em questões do que é bom, estimável, admirável, ou valioso. […] Todos nós somos enquadrados por aquilo que vemos como compromissos universalmente válidos (ser um católico ou um anarquista, em meu exemplo anterior) e também pelo que entendemos como identificações particulares (ser um armênio ou um québecois). Frequentemente declaramos nossa identidade definida por um só destes, porque tal é o que se sobressai em nossas vidas, ou o que é posto em questão. Mas de fato nossa identidade é mais profunda e mais multifacetada do que qualquer possível versão articulada dela.43. Taylor apresenta-nos a noção de que são estes quadros identitários que nos orientam no espaço moral, fornecendo-nos os parâmetros sobre os quais invariavelmente iremos nos basear quando fizermos escolhas, quaisquer que sejam, em nossa busca pela boa vida, de modo que uma pessoa sem quadros não saberia onde se situar em assuntos de fundamental importância, ficando de fora do espaço de interlocução. Vejamos: Nossa identidade é o que nos permite definir o que é importante para nós e o que não é. Torna possível essas discriminações, incluindo aquelas que geram avaliações importantes. A noção de uma identidade definida meramente por Tradução nossa. No original: ―My identity is defined by the commitments and identifications which provide the frame or horizon within which I can try to determine from case to case what is good, or valuable, or what ought to be done, or what I endorse or oppose. In other words, it is the horizon within which I am capable of taking a stand. People may see their identity as defined partly by some moral or spiritual commitment, say as a Catholic, or an anarchist. Or they may define it in part by the nation or tradition they belong to, as an Armenian, say, or a Québecois. What they are saying by this is not just that they are strongly attached to this spiritual view or background; rather it is that this provides the frame within which they can determine where they stand on questions of what is good, or worthwhile, or admirable, or of value.[…] We are all framed by what we see as universally valid commitments (being a Catholic or an anarchist, in my example above) and also by what we understand as particular identifications (being an Armenian or a Québecois). We often declare our identity as defined by only one of these, because this is what is salient in our lives, or what is put in question. But in fact our identity is deeper and more many-sided than any of our possible articulations of it. […]‖ (TAYLOR, 1989, p.p. 27-29) 43 28 preferências de fato, e não por preferências solidamente valoradas, se mostra incoerente.44 Adiante, Taylor nos traz ainda o conceito de narrativa. Diz: ―[…] outra condição básica para o sentido de nós mesmos [é] que introduzamos nossas vidas em uma narrativa‖45 e, assim, ―[…] determinamos o que somos pelo que nos tornamos, através da história de como chegamos até lá.‖46, o que está intimamente ligado à ideia de orientação no espaço moral, desenvolvida pelo autor. A vida, nestes termos, é vista como uma jornada que envolve escolhas. Outra passagem da obra que nos importa destacar é aquela em que o filósofo desenvolve a relação entre o ser (self) e sua noção de bem: Perguntar o que uma pessoa é, abstraindo suas auto-interpretações, significa aduzir uma questão fundamentalmente equivocada […]. Não somos seres no sentido que somos organismos, ou não temos ser no sentido de que temos corações e fígados. Somos seres vivos com esses órgãos totalmente independentes de nossas auto-compreensões e interpretações […]. O ser é parcialmente constituído por suas auto-interpretações […]. Mas suas interpretações nunca serão totalmente explícitas. A total articulação é impossível. 47 1.2.1.2 O ser e a comunidade. Mas Taylor lembra que somos seres somente em meio a outros seres, destacando a influência da comunidade em que estamos inseridos em nosso agir moral. Acredita que ―[…] eu só posso aprender o que é raiva, amor, ansiedade, a aspiração à completude, etc., sendo a Tradução nossa. No original: ―Our identity is what allows us to define what is important to us and what is not. It is what makes possible these discriminations, including those which turn on strong evaluations. The notion of an identity defined by some mere de facto, not strongly valued preference is incoherent.‖ (TAYLOR, 1989, p.30) 45 Tradução nossa. No original: ―[…] another basic condition of making sense of ourselves [is] that we grasp our lives in a narrative.‖ (TAYLOR, 1989, p.47) 46 Tradução nossa. No original: ―[…] we determine what we are by what we have become, by the story of how we got there.‖ (TAYLOR, 1989, p.48) 47 Tradução nossa. No original: ―To ask what a person is, in abstraction from his or her self-interpretations, is to ask a fundamentally misguided question […]. We are not selves in the way that we are organisms, or we don‘t have selves in the way we have hearts and livers. We are living beings with these organs quite independently of our self-understandings or –interpretations […] The self is partly constituted by its self-interpretations […]. But the self‘s interpretations can never be fully explicit. Full articulacy is an impossibility.‖ (TAYLOR, 1989, p.34) 44 29 experiência destes, para mim e para os outros, objetos para nós, em algum espaço comum‖48. A identidade do indivíduo envolveria, além dos horizontes definidos, também o que chama de ―redes de interlocução‖, sustentando que ―[a] definição completa da identidade […] geralmente envolve não só sua posição sobre assuntos morais e espirituais, mas também uma referência a uma comunidade definida‖49. Este justamente vem a ser um dos pontos chaves que congregam os autores a quem se atribui em geral o rótulo de comunitaristas – e esta constatação frequentemente está ligada a uma crítica dirigida à cultura e à filosofia modernas, em particular ao pensamento individualista-liberal, que conceberia o indivíduo destacado desses vínculos comunitários50, vendo as reações morais fora de qualquer contexto de sentido e, com base na figura desse indivíduo desapegado, desenvolveria seu pensamento político51. Sustentaremos que o direcionamento desta crítica muito bem pode se conformar ao pensamento expressado por John Rawl em A theory of justice (embora o próprio autor, em Political Liberalism conteste a tese), mas o pensamento liberal em geral, e especialmente o liberalismo utilitarista de Mill – como veremos adiante, não nos parece que forneça os mesmos elementos para sustentar similar acusação. 1.2.1.3 Hierarquia de bens e os hiperbens. Buscando explicar a relação entre as distinções qualitativas e o âmbito ético, Taylor trata, ainda, do problema dos valores e da hierarquia de bens. Afirma que ―[a] maioria de nós não só vive com uma série de bens, como também dá-se conta de que temos de ordená-los, e em certos casos, este ordenamento faz com que um desses bens adquira importância suprema Tradução nossa. No original: ―[…] I can only learn what anger, love, anxiety, the aspiration to wholeness, etc., are through my and others‘ experience of these being objects for us, in some common space‖. (TAYLOR, 1989, p.35) 49 Tradução nossa. No original: ―[…] an answer to the question of who I am through a definition of where I am speaking from and to whom. The full definition of someone‘s identity thus usually involves not only his stand on moral and spiritual matters but also some reference to a defining community.‖ (TAYLOR, 1989, p.36) 50 Viz.: ―The mode of thought which surfaces in contemporary sociobiology wants us to think of our moral reactions outside os any sense-making context, as on all fours with visceral reactions like nausea.‖ (TAYLOR, 1989, p.36) 51 Assim, Taylor: ―[…]not only the philosophico-sientific tradition but also a powerful modern aspiration to freedom and individuality have conspired to produce an identity which seems to be a negation of this.‖ (TAYLOR, 1989, p.35) 48 30 sobre os demais‖52, havendo, assim, frequentemente um grande contraste entre bens, sendo comum que algumas pessoas ―[…] reconheçam o valor da auto-expressão, da justiça, da vida familiar, da idolatria a Deus, do decoro comum, da sensitividade e uma série de outros; mas considerem um dentre esses – talvez sua relação com Deus, ou talvez a justiça – como de importância preponderante.‖53. São bens valiosíssimos, incomparáveis com outros, que estabelecem uma espécie de descontinuidade em relação aos demais. Taylor chama os ―[…] bens supremos desta espécie de ‗hiperbens‘, i.e., bens que são não só incomparavelmente mais importantes do que os demais, mas que também fornecem o ponto de vista a partir do qual estes devem ser pesados, julgados, escolhidos.‖54 Neste ponto, contrapõe o que denomina teorias segregacionistas, que apresentam um critério fixo, predefinido, para o agir moral, como a teoria kantiana e seus consectários, à concepção aristotélica, com base na qual Uma boa vida deve ser compreendida como algo que, de alguma forma, combine no mais alto grau todos os bens que perseguimos. Estes não são, para ser exato, todos de mesmo valor; e Aristóteles reconhece que alguns precedem a outros – e.g., a contemplação (thewria) e o tipo de deliberação comum que desenvolve ao máximo a phronēsis. […] Podemos dizer que aquilo que exerce o papel de um ‗hiperbem‘ na teoria aristotélica é o ‗bem supremo‘ (teleion agathon) em si; mas isso é a boa vida inteira, i.e., todos os bens juntos em suas proporções adequadas55. A determinação destes bens valiosíssimos – e esta é o ponto fundamental da discordância de Taylor – se daria, na filosofia moderna, com base em critérios previamente determinados, sendo o valor superior de certos bens estabelecidos in abstracto, independente dos laços sociais e culturais do indivíduo em questão. Taylor aponta uma série de problemas relacionados a esta questão dos hiperbens, principalmente a dificuldade de racionalização e de articulação de disputas de perspectivas distintas quanto a esses bens. Tradução nossa. No original: ―Most of us not only live with many goods but find that we have to rank them, and in some cases, this ranking makes one of them of supreme importance relative to others.‖ (TAYLOR, 1989, p.62) 53 Tradução nossa. No original: ―[…] recognize the value of self-expression, of justice, of family life, or the worship of God, of ordinary decency, of sensitivity, and a host of others; but they consider one of these – perhaps their relation to God, or perhaps justice – as of overriding importance.‖ (TAYLOR, 1989, p.62) 54 Tradução nossa. No original: ―Let me call higher-order goods of this kind ‗hypergoods‘, i.e., goods which not only are incomparably more important than others but provide the standpoint from which these must be weighed, judged, decided about.‖ (TAYLOR, 1989, p.63) 55 Tradução nossa. No original: ―A good life must thus be understood as one which somehow combines to the greatest possible degree all the goods we seek. These are not, to be sure, of equal value; and Aristotle recognizes that some are of higher rank than others – e.g., contemplation (thewria), and the kind of common deliberation which maximally develops phronēsis. […] We could say that what plays the role of a ‗hypergood‘ in Aristotle‘s theory is the ‗supreme good‘ (teleion agathon) itself; but this is the whole good life, i.e., all the goods together in theis proper proportions.‖ (TAYLOR, 1989, p.66) 52 31 Neste momento, dirige uma ulterior crítica à filosofia moderna, tema que virá a ser central em sua obra, consistindo na recriminação de uma formulação que chama de prioridade do correto sobre o bom, em que a ―[m]oralidade é concebida puramente como um guia para a ação. […] preocupada somente com o que é certo fazer, ao invés de com o que é bom ser.‖56. Assim explica tal faceta, segundo o autor, característica do pensamento moderno: “Em outras palavras, a moral se preocupa com o que devemos fazer; o que exclui tanto o que é bom fazer, ainda que não sejamos obrigados […] e também o que é bom (ou até mesmo obrigatório ser ou amar, como sendo algo irrelevante para a ética.‖57. A consequência desta forma de compreender o problema moral, i.e., como sendo o de saber o que é certo fazer e não o que é bom ou valioso em si, é que frequentemente se busca um critério ou um procedimento para determinar aquelas coisas a que estamos obrigados 58, tendendo a unificar o domínio da moral em torno de uma única consideração ou de uma razão fundamental59. Neste sentido, Taylor cita tanto o princípio utilitarista da maior felicidade como o imperativo categórico kantiano fazendo referência, ainda, à justiça como equidade de Rawls. Não havendo distinções qualitativas entre bens, o que restaria a orientar a moralidade, nestes casos, seria o estabelecimento de critérios de correção. Em teorias morais procedimentais, como é o caso das teorias do contrato social, não haveria qualquer atribuição prévia de valor aos bens sociais. O ponto de vista do contrato social é moralmente neutro em relação às diversas concepções conflitantes de bem. A posição original, representação dos indivíduos contratantes, sob o véu da ignorância a despojar-lhes de seus vínculos sociais é o que, na teoria de Rawls, garante esta neutralidade. Voltaremos a este ponto oportunamente. 1.2.2 Identidade e demandas por reconhecimento. Em The Politics of Recognition, Taylor retorna ao problema da identidade. Mas, neste momento, seu principal intuito é o de enfrentar o debate relacionado às políticas de Tradução nossa. No original: ―Morality is conceived purely as a guide to action. It is thought to be concerned. […] concerned purely with what it is right to do rather than with what it is good to be.‖ (TAYLOR, 1989, p.79) 57 Tradução nossa. No original: ―In other words, morals concern what we ought to do; this excludes both what it is good to do, even though we aren‘t obliged […] and also what it may be good (or even obligatory) to be or love, as irrelevant to ethics.‖ (TAYLOR, 1989, p.79) 58 Vejamos: ―Moral philosophies so understood are philosophies of obligatory action. The central task of moral philosophy is to account for what generates the obligation that hold for us. A satisfactory moral theory is generally thought to be one that defines some criterion or procedure which will allow us to derive all and only the things we are obliged to do.‖ (TAYLOR, 1989, p.79) 59 Cf. TAYLOR, 1989, p.89 56 32 reconhecimento, bem compreendidos o papel da identidade na esfera moral e a importância reconhecimento desta identidade. O autor se propõe a abordar a afirmação de que ―[a] falta de reconhecimento ou o reconhecimento errôneo podem causar danos a alguém, como uma forma de opressão, aprisionando-a a um modo de ser falso, distorcido e reduzido‖60. Espera desvelar o sentido da tese de que ―[o] devido reconhecimento não é apenas uma cortesia que prestamos às pessoas. Trata-se de uma necessidade humana vital‖61 à luz das ideias que permeiam sua concepção de identidade. 1.2.2.1 O caráter dialógico da identidade. Sustenta, no mesmo caminho que trilhara em Sources of the Self, que o que as pessoas reconhecem como importante para si é em grande medida determinado por seu lugar na sociedade, por seus papeis e atividades relacionados a esta posição62. Destaca o que chama de caráter dialógico da vida humana, dizendo que definimos nossa identidade por nossos modos de expressão, incluindo linguagens artísticas, de comportamento e de amor, os quais vêm a ser aprendidos pela troca com outras pessoas. Crê que nossa identidade é sempre definida em um diálogo travado fundamentalmente com aqueles que denomina outros significativos, pessoas com as quais nos relacionamos cujas opiniões são relevantes para nós. Vejamos: […] a descoberta de minha própria identidade não significa que eu lide com isso em situação de isolamento, mas que eu a negocie através de um diálogo, parcialmente aberto, parcialmente interno, com outros. Minha própria identidade depende de modo crucial de minha relação dialógica com outros.63 Entende o autor que, dado o desenvolvimento da noção de identidade nesta perspectiva dialógica, ―[a] importância do reconhecimento é hoje universalmente admitida de uma forma ou de outra; intimamente, estamos todos a par de como a identidade pode ser Tradução nossa. No original: ―Nonrecognition or misrecognition can inflict harm, can be a form of oppression, imprisoning someone in a false, distorted, and reduced mode of being.‖ (TAYLOR, 1994, p.25.) 61 Tradução nossa. No original: ―Due recognition is not just a courtesy we owe people. It is a vital human need.‖ (TAYLOR, 1994, p.26.) 62 Cf. TAYLOR, 1994, p.31. 63 Tradução nossa. No original: ―[…] my discovering my own identity doesn‘t mean that I work it out in isolation, but that I negotiate it through dialogue, partly overt, partly internal, with others. […] My own identity crucially depends on my dialogical relations with others.‖ (TAYLOR, 1994, p.34.) 60 33 formada ou mal formada através de nosso contato com os outros significativos‖ 64. Destaca, ainda, a importância dada ao tema do reconhecimento no plano social, assim externalizando sua posição acerca dos efeitos deletérios na hipótese de faltar o devido reconhecimento da identidade: Igualdade de reconhecimento não é somente o modo apropriado para uma sociedade democrática saudável. Sua recusa é capaz de infligir danos àqueles a quem é negado, de acordo com a difundida visão moderna, como já havia referido no início. A projeção de uma imagem inferior ou depreciativa sobre alguém realmente pode distorcer e oprimir, na medida em que esta imagem seja internalizada.65 José Alcebíades de Oliveira Junior, ao interpretar de forma muito precisa o pensamento de Taylor, vai ainda mais longe em suas ilações acerca da identidade e nos mostra que […] a construção da identidade, no mundo moderno, depende, ao mesmo tempo, de uma dimensão objetiva e social e de uma dimensão subjetiva e individual. A construção da identidade, portanto, resultante de um encontro entre um ‗eu‘ e um ‗outro‘, e entre o ‗eu‘ e o ‗nós‘, pode ser traduzida como o produto daquilo que eu penso a respeito de mim mesmo e, ao mesmo tempo, daquilo que os outros pensam a meu respeito.66 Amy Gutman explicita o raciocínio que, a partir da constatação desta natureza dialógica da identidade, conduz à defesa da implementação de políticas de reconhecimento, nos seguintes termos: Se a identidade humana é criada e constituída dialogicamente, então o reconhecimento público de nossa identidade requer uma política que nos deixe espaço para deliberar publicamente sobre estes aspectos de nossas identidades que compartilhamos, ou que potencialmente compartilhamos, com os outros cidadãos. Uma sociedade que reconheça a identidade individual será uma sociedade deliberativa, democrática, pois a identidade individual é parcialmente constituída por diálogos coletivos.67 Tradução nossa. No original: ―The importance of recognition is now universally acknowledged in one form or another; on an intimate plane, we are all aware of how identity can be formed or malformed through the course of our contact with significant others.‖ (TAYLOR, 1994, p.36). 65 Tradução nossa. No original: ―Equal recognition is not just the appropriate mode for a healthy democratic society. Its refusal can inflict damage on those who are denied it, according to a widespread modern view, as I indicated at the outset. The projection of an inferior or demeaning image on another can actually distort and oppress, to the extent that the image is internalized.‖ (TAYLOR, 1994, p.36.). 66 OLIVEIRA JUNIOR, 2006, p. 166. 67 Tradução nossa. No original: ―If human identity is dialogically created and constituted, then public recognition of our identity requires a politics that leaves room for us to deliberate publicly about those aspects of our identities that we share, or potentially share, with other citizens. A society that recognizes individual identity will 64 34 1.2.2.2 Políticas de igual dignidade e políticas de diferença. Enquanto ideal universalista de dignidade humana, baseada no pressuposto de que todos os seres humanos merecem igual respeito, justificaria políticas de igual dignidade; para atender à demanda por reconhecimento, forte na premissa de que todos devem ser reconhecidos por sua identidade única, faz-se necessária, segundo Taylor, a implementação de políticas de diferença68. Políticas de igual dignidade representariam o estabelecimento de uma igual cesta de direitos e garantias. O fundamento filosófico destas demandas pode ser encontrado em Kant, na concepção de dignidade e de respeito mútuo entre os indivíduos, derivada de seu status de agentes racionais, autônomos. Tais políticas nascem a partir da constatação de algo que todo o ser humano compartilha, que iguala todo indivíduo. Ao revés, políticas de diferença significariam o reconhecimento de particularidades culturais, algo que obviamente não é universalmente compartilhado por todos. O que se demanda é o reconhecimento de identidades únicas de indivíduos ou grupos que os distinguem de todos os outros. Tais políticas devem se voltar, particularmente, a bens culturais que de outra forma não seriam assegurados, como é o caso (citado por Taylor) de políticas que visam a garantir a ―sobrevivência‖ da língua francesa no Quebec. Como visto, o argumento filosófico que sustenta a necessidade destas políticas consiste na afirmação dos laços culturais na formação e manutenção da identidade de alguém e na importância desta identidade, como bem e como matriz para a escolha de bens. Amy Gutman assim explica o intuito desta segunda classe de políticas: O reconhecimento público integral de cidadãos como iguais pode requerer duas formas de respeito: (1) respeito pelas identidades únicas de cada indivíduo, independentemente de sexo, raça, ou grupo étnico, e (2) respeito por aquelas atividades, práticas, e modos de ver o mundo, valorizadas particularmente por, ou associados com, membros de grupos desfavorecidos […].69 be a deliberative, democratic society because individual identity is partly constituted by collective dialogues.‖ (GUTMANN, 1994, p. 7). 68 Cf. TAYLOR, 1994, p.38. 69 Tradução nossa. No original: ―Full public recognition as equal citizens may require two forms of respect: (1) respect for the unique identities of each individual, regardless of gender, race, or ethnicity, and (2) respect for those activities, practices, and ways of viewing the world that are particularly valued by, or associated with, members of disadvantaged groups‖ (GUTMANN, 1994, p. 8) 35 Taylor defende que não haveria contradição lógica entre as duas classes de políticas públicas. À imagem das políticas de redistribuição de renda, que buscam compensar desigualdades econômicas, evitando que haja cidadãos de segunda categoria, políticas de diferença frequentemente redefiniriam o ideal de não discriminação (em que se baseiam as políticas de igual dignidade) de modo que estas diferenças servissem de base para um tratamento diferenciado entre indivíduos, a justificar até mesmo medidas de discriminação reversa70. Acredita, ademais, que a própria demanda de igual respeito e tratamento digno poderia sustentar a garantia de um potencial universal do ser humano através de políticas de diferença. Entretanto, destaca que não raro as demandas por reconhecimento vão além dessas potencialidades, abrangendo culturas efetivamente existentes, o que traz à tona um conflito real entre as duas citadas classes de demandas. Vejamos: No caso das políticas de diferença, podemos dizer também que um potencial universal está em sua base, a saber, o potencial que cada um tem de formar e definir sua própria identidade, como um indivíduo, e também como uma cultura. Esta potencialidade deve ser respeitada igualmente em cada um. […] [Mas] a demanda por igual reconhecimento se estende além da admissão de igual valor a todas as potencialidades humanas, e passa a incluir a consideração de igual valor de tudo aquilo que se produziu a partir daquelas potencialidades. Isso cria um sério problema, como veremos adiante. Estes dois modelos de políticas, então, ambos baseados na noção de igual respeito, entram em conflito. Para um, o princípio de igual respeito requer que tratemos as pessoas de modo a que estejamos cegos para suas diferenças. A intuição fundamental a orientar tal respeito se foca naquilo que é igual em todos. Para a outra, devemos reconhecer e mesmo promover particularidades. A censura que o primeiro faz ao segundo é justamente que este nega identidade ao forçar as pessoas a um molde homogêneo inverídico para elas.71 70 Cf. TAYLOR, 1994, p.39. Tradução nossa. No original: ―In the case of the politics of difference, we might also say that a universal potential is at its basis, namely, the potential for forming and defining one‘s own identity, as an individual, and also as a culture. This potentiality must be respected equally in everyone.[…] [But] the demand for equal recognition extends beyond an acknowledgment of the equal value of all humans potentially, and comes to include the equal value of what they have made of this potential in fact. This creates a serious problem, as we shall see below. These two modes of politics, then, both based on the notion of equal respect, come into conflict. For one, the principle of equal respect requires that we treat people in a difference-blind fashion. The fundamental intuition that humans command this respect focuses on what is the same in all. For the other, we have to recognize and even foster particularity. The reproach the first makes to the second is just that it violates the principle of nondiscrimination. The reproach the second makes to the first is that it negates identity by forcing people into a homogeneous mold that is untrue to them.‖ (TAYLOR, 1994, p.42.) 71 36 A tensão entre políticas de igual dignidade e políticas de reconhecimento seria recorrente. De um lado, argúi-se que as distinções entre cidadãos estabelecidas pelas políticas de diferença violariam o ideal de igualdade – consagrador das políticas de igual dignidade, sobretudo, de direitos individuais – , baseado na compreensão de que o estado deve considerar todos os cidadãos como iguais, ignorando tudo aquilo que os diferencia. De outro, a crítica é no sentido de que, sob o pretexto de neutralidade em relação às diferenças culturais, estabelece-se uma gama de princípios que seria, em verdade, um reflexo da cultura hegemônica. A acusação aponta no sentido de que uma sociedade que abraçasse este ideal de neutralidade estaria sendo de fato discriminatória, seria particularista, embora disfarçada de universalista. 1.3 A abordagem liberal. A interpretação de Taylor, muito além de meramente justificar os direitos culturais, impõe sua efetiva adoção. Tal posição advém de uma profunda análise do problema filosófico da identidade, o qual temos buscado até aqui descrever. Tratando a identidade como algo essencial ao sujeito, Taylor vê daí surgirem demandas por reconhecimento que reclamam tutela jurídica. Contraditória a esta tese, porém, apresenta-se a usual abordagem liberal do tema multiculturalismo, que, defendendo um ambiente político e juridicamente neutro, parece repudiar a ideia de se conceder algum tipo de tratamento diferenciado a determinado grupo cultural72. Como vimos, Taylor descreve como uma espécie de consenso liberal a crença de que o estado deve ser neutro em relação às diversas concepções de boa vida, limitando-se a assegurar tratamento igualitário entre os cidadãos73. Paradigmático desta abordagem é o pensamento de John Rawls, que muito bem pode servir para representar a vertente liberal amplamente professada, em relação ao qual nos incumbiremos de apresentar um panorama geral. A seguir, investigaremos a possibilidade de compatibilizar o reconhecimento da importância da identidade com uma filosofia política liberal. Veremos adiante, não obstante, Vejamos, a propósito, o que diz Appiah: ―For a long time—since the Enlightenment, we might say—the great liberal struggle was to get the state to treat its members as individuals only, without favoring or disfavoring particular ethnic or religious or gender identities. And many people continue to argue that state acknowledgment of such identities is intrinsically illiberal: precisely because the shaping of my life is up to me, the government should seek to constrain my acts independent of my identities. Otherwise the state will be in the business of advantaging and disadvantaging particular identities in ways that encroach upon the individual‘s freedom to shape his or her own life.‖ (APPIAH, 2007, p.70) 73 Cf. TAYLOR, 1994, p.57. 72 37 que Taylor aceita a possibilidade de uma sociedade liberal que faça deferência às diferenças culturais em contraposição à sociedade liberal em que impera a neutralidade ética, ao passo que buscaremos demonstrar que alguns pressupostos sobre os quais se baseiam a teoria política de Rawls impedem que seu liberalismo possa dar conta adequada do problema dos direitos culturais. José Alcebíades de Oliveira Junior nos mostra que […] podemos falar de multiculturalismo a partir de pelo menos quatro correntes: 1- os libertários, como Robert Nozick e Friedrich Hayek; 2- os liberais contratualistas, como John Rawls e Ronald Dworkin; 3- os comunitaristas, como Michael Walzer, Charles Taylor, Michael Sandel e Alasdair MacIntyre; 4- os crítico-deliberativos, como Jürgen Habermas e outros, formados na tradição hegeliano-marxista.74 Nosso fim precípuo seria o de propor uma alternativa liberal ao problema do multiculturalismo, que, porém, é distinta daquela usualmente adotada. A partir da filosofia utilitarista-liberal de John Stuart Mill cremos poder ser dada uma resposta liberal satisfatória ao desafio que se revela, o que bem poderia ser arrolado como uma quinta forma de abordagem do fenômeno multicultural, com reflexos muito evidentes em especial sobre a questão dos direitos culturais. Entretanto, antes de penetrarmos no pensamento do filósofo utilitarista e perquirirmos acerca da possibilidade de sua filosofia lidar com o tema, consideramos indispensável entender por que razão o liberalismo é tido como incompatível com direitos culturais. A Teoria da Justiça de Rawls dará ensejo a uma série de críticas (à base da suposta incoerência da defesa da neutralidade estatal, da concepção errônea de indivíduo dissociado de laços comunitários, e, principalmente, à precedência absoluta dos direitos individuais sobre outros fins coletivos) presentes nas obras de MacIntyre e Sandel, autores que, ao fazerem coro com Taylor, são habitualmente rotulados de comunitaristas75. A resposta de Rawls vem na forma de seu Liberalismo Político. Abordaremos adiante sucintamente suas ideias centrais (ponto 1.3.1) com o intuito de verificarmos por que seu liberalismo é reputado como incapaz 74 75 OLIVEIRA JUNIOR, 2006, p.p. 164-165. Para uma visão abrangente do debate entre liberais e comunitaristas vide MULHALL; SWIFT, 1996. 38 de justificar direitos culturais (ponto 1.3.2) assim como para servir de subsídio para, já ao final, demonstrarmos como a concepção de estado liberal se diferencia daquela de Mill – pelo que, as objeções habitualmente apresentadas não se podem aplicar ao seu pensamento. 1.3.1 A proposta liberal anti-perfeccionista de Rawls. John Rawls talvez possa ser considerado o filósofo político de maior destaque da segunda metade do século XX. Seus escritos fomentaram uma série de debates, polarizados sobretudo entre comunitaristas e liberais. De um lado, põem-se autores como Michael Walzer, Michael Sandel, Alasdair MacIntyre e Charles Taylor; enquanto, de outro, afora Robert Nozick com seu libertarianismo, Dworkin e Rawls aparecem lado-a-lado como arautos liberais. Elegemos este último para representar a corrente liberal. A filosofia de Rawls apresenta-se sob duas formas que marcam, cada uma, estágios distintos de seu pensamento (o que leva alguns estudiosos mesmo a falar no primeiro e no segundo Rawls). Em Uma teoria da justiça, Rawls traça todo o panorama de sua filosofia política, que após anos de qualificadas críticas dos mais insignes autores sofre aprimoramentos e alterações redundando em seu Liberalismo político. Essas suas duas obras fundamentais servirão doravante de base para provermos um panorama, ainda que superficial, do pensamento de Rawls, com o que pretendemos simplesmente pontuar algumas diferenças em relação ao pensamento de John Stuart Mill e sustentar que muitas das críticas voltadas ao ideal de neutralidade estatal de nenhuma maneira aplicam-se ao pensamento deste último autor. 1.3.1.1 A justiça como equidade. Em Uma teoria da justiça, Rawls desenvolve a teoria que chama de justiça como equidade, discute as instituições decorrentes de sua concepção e, após, imiscui-se em alguns problemas concretos, o que faz à luz de sua teoria. Ao longo da obra, Rawls explicitamente propõe-se a generalizar e conduzir a um grau mais elevado de abstração a teoria tradicional do contrato social, representada por Locke, Rousseau e Kant e sustenta que tal teoria ofereceria 39 uma alternativa superior ao utilitarismo dominante76 (embora seu modelo seja o pensamento de Sidgwick), ao intuicionismo e a diversas formas de perfeccionismo. Parte das premissas de que (1) a justiça é a primeira virtude das instituições sociais, de modo que leis e instituições, por mais eficientes e bem organizadas que sejam, devem ser abolidas se forem injustas; (2) cada indivíduo possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o bem estar da sociedade como um todo pode restringir77. Rawls, desse modo, apresenta sua teoria da justiça como uma evolução da teoria do contrato social até então professada, buscando, além disso, justificar seus pressupostos. Concebe a sociedade como uma associação mais ou menos auto-suficiente de pessoas que reconhecem certas regras de conduta como obrigatórias. Essas regras constituem um sistema de cooperação desenhado para atingir o bem daqueles que a compõem. É um empreendimento cooperativo para mútua vantagem. A cooperação social torna possível para todos uma vida melhor do que qualquer um teria se vivesse só por seu próprios esforços78. Para que isso seja possível, diz Rawls, ―[e]xige-se um conjunto de princípios para escolher entre as várias formas de ordenação social que determinam essa divisão de vantagens e para selar um acordo sobre as partes distributivas adequadas‖79, aos quais chama de princípios da justiça social. Constata que, ainda que as pessoas sustentem diferentes concepções de justiça e assim possam discordar quanto aos termos básicos de sua associação, elas podem ―concordar que as instituições são justas quando não fazem distinções arbitrárias entre as pessoas na atribuição de direitos e deveres básicos e quando as regras determinam um equilíbrio adequado entre reivindicações concorrentes das vantagens da vida social‖80. O primeiro objeto da justiça, segundo Rawls, seria, assim, determinar a estrutura básica da sociedade, i.e., a forma como as instituições básicas distribuem direitos fundamentais e deveres e determinam a divisão das vantagens da cooperação social81. A tese principal professada por Rawls é que os princípios da justiça para a estrutura básica da sociedade são aqueles que ―[…] pessoas livres e racionais, preocupadas em promover seus próprios interesses, aceitariam numa posição inicial de igualdade como definidores dos termos fundamentais de sua associação‖82. Tais princípios devem regular 76 RAWLS, 2000, p.xxii. RAWLS, 2000, p.p. 3-4. 78 RAWLS, 2000, p. 4. 79 RAWLS, 2000, p. 5. 80 RAWLS, 2000, p. 6. 81 RAWLS, 2000, p.p. 7-8. 82 RAWLS, 2000, p.12. 77 40 todos os acordos posteriores. Esta forma de tratar os princípios da justiça Rawls chama de justiça como equidade. Por seu turno, a condição ideal em que os indivíduos estabelecem os princípios básicos da justiça a conformar a estrutura básica da sociedade Rawls convenciona chamar de posição original. Tal consiste numa situação hipotética em que: (1) ninguém sabe que posição ocupará na sociedade, sobre seus dons naturais e habilidades, força ou inteligência, ou mesmo a sua própria concepção de bem (estão todos sob um véu de ignorância); (2) ninguém tem como estabelecer princípios a seu favor, uma vez que não conhece suas particularidades; e (3) há uma simetria dos indivíduos entre si, sendo uma situação equitativa por sua condição de seres morais dotados de razão e fins próprios. Parte da premissa de que da hipótese da posição original só pode resultar um acordo justo. O problema, então, passa a ser determinar que princípios de justiça seriam escolhidos na posição original. Rawls estabelece seus dois princípios da justiça (os quais imagina seriam escolhidos pelas pessoas na posição original), o princípio da liberdade (primeiro) e o princípio da diferença (segundo), cuja formulação é a seguinte: Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras. Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos.83 A ideia é de que o princípio da liberdade deva garantir a igualdade de direitos entre todos, enquanto o propósito do princípio da diferença é que o aumento inicial das expectativas dos mais favorecidos é justo se funcionar como parte de um esquema que maximize as expectativas a longo prazo dos menos favorecidos. O segundo princípio afastaria a concepção meritocrática, por levar em consideração a distribuição ao acaso de dons (a loteria natural). Corresponderiam aos ideais de liberdade (primeiro princípio), igualdade (ambos) e fraternidade (segundo princípio). Rawls propugna a prioridade absoluta do primeiro princípio sobre o segundo, de modo que não pode haver trocas entre liberdades básicas e benefícios econômicos e sociais. Quando os dois princípios são satisfeitos – sustenta – a liberdade de cada indivíduo é assegurada e há uma percepção de que pelo princípio da diferença todos são 83 RAWLS, 2000, p.64. 41 beneficiados pela cooperação social. Rawls supõe, ademais, que após as partes terem adotado os princípios da justiça na posição original irão estabelecer uma convenção constitucional. 1.3.1.2 O liberalismo político. Depois de décadas desde a primeira edição de Uma teoria da justiça, como produto de suas respostas a tão numerosas quanto relevantes críticas dirigidas à sua obra, o pensamento de John Rawls adquire novos contornos. Em Liberalismo político, constatando algumas incongruências em sua teoria, sofisticando uma série de seus argumentos e conceitos, Rawls apresenta uma versão mais madura e, assim, ainda mais consistente de sua filosofia política. Rawls afirma que a justiça como equidade teria utilizado como modelo uma irreal sociedade bem ordenada, em que todos os cidadãos compartilhariam uma mesma doutrina abrangente 84; não sendo a teoria concebida de modo a enfrentar o problema do pluralismo de doutrinas abrangentes incompatíveis, ainda que razoáveis (i.e., que não rejeitam a essência de um regime democrático), identificadas no ceio das sociedades modernas democráticas. No mesmo passo, segundo o autor, um dos pressupostos do liberalismo político é justamente o de que esse fenômeno seria o resultado natural do exercício da razão humana no contexto de instituições livres de um regime democrático constitucional85. Rawls pontua que a diversidade de doutrinas abrangentes religiosas filosóficas e morais (o fenômeno multicultural, diríamos), observadas na sociedade contemporânea não é uma mera contingencia, uma condição histórica passageira. O pluralismo passa a ser concebido pelo filósofo como uma característica permanente das sociedades democráticas86, uma vez que a unidade de visões filosóficas, religiosas e morais somente poderia ser mantida ao longo do tempo pelo uso opressivo do poder estatal87. Rawls objetiva estabelecer então de que modo a sociedade bem ordenada da justiça como equidade deve ser entendida uma vez ajustada para abarcar a circunstância fática do pluralismo razoável88. O problema para o qual o liberalismo político buscaria uma resposta seria, assim, o de ―[c]omo é possível existir através do tempo uma sociedade livre e justa de cidadãos livres e 84 Cf. RAWLS, 2005, p.xl. Cf. RAWLS, 2005, p.xvi, p.4. 86 Cf. RAWLS, 2005, p.36. 87 Cf. RAWLS, 2005, p.37. 88 Cf. RAWLS, 2005, pp.xxxv-xxxvi. 85 42 iguais profundamente divididos acerca de suas – razoáveis, porém incompatíveis – doutrinas religiosas, filosóficas e morais?‖89. A tarefa do liberalismo político, portanto, seria simplesmente a de estabelecer os justos termos de cooperação social entre cidadãos livres e iguais através do tempo. Traz Rawls o conceito de consenso sobreposto. Reformando seu véu de ignorância para também encobrir, na posição original, as doutrinas abrangentes assumidas pelos indivíduos, Rawls crê poder obter um acordo político fundamental como base pública de justificação de uma sociedade marcada pelo pluralismo razoável90. Rawls alega que, em uma sociedade plural, uma doutrina abrangente razoável não seria capaz de assegurar a base da unidade social91. O consenso sobreposto representa na filosofia do autor um ideal compartilhado pelas doutrinas abrangentes razoáveis – é o elemento razoável dessas doutrinas – que permite a convivência política estável em uma sociedade. Em Rawls, ―[c]entral à ideia de razão pública é que esta não critique nem ataque nenhuma doutrina abrangente, religiosa ou não religiosa, exceto se esta doutrina for incompatível com a essência de razão pública e de uma política democrática.‖92 O bem para o liberalismo político é o bem político: sobretudo a garantia do ambiente democrático dentro do qual essa multiplicidade de perspectivas razoáveis, que pautam a concepção de bem de cada grupo de indivíduos, possa existir. Rawls traz, desse modo, uma concepção política de justiça, baseada na razão pública imparcial, não comprometida com nenhuma doutrina abrangente93, o que possibilitaria a coexistência de cosmovisões em uma sociedade pluralista94. Diz Rawls: Uma vez que não há qualquer doutrina religiosa, filosófica ou moral razoável que seja afirmada por todos os cidadãos, a concepção de justiça afirmada em uma sociedade democrática ordenada deve ser uma concepção limitada ao que eu chamo de ―domínio do político‖ e seus valores.95 Tradução nossa. No original: ―How is it possible that there may exist over time a stable and just society of free and equal citizens profoundly divided by reasonable though incompatible religious, philosophical, and moral doctrines?‖ (RAWLS, 2005, p.xviii). 90 Cf. RAWLS, 2005, p.p.24-25. 91 Cf. RAWLS, 2005, p.134. 92 Tradução nossa. No original: ―Central to the idea of public reason is that it neither criticizes nor attack s any comprehensive doctrine, religious or nonreligious, except insofar as that doctrine is incompatible with the essentials of public reason and a democratic polity‖. (RAWLS, 2005, p.441). 93 Porém, a afirmação de Rawls de que uma concepção política (no caso o liberalismo político) não está vinculada a nenhuma doutrina abrangentes expõe-se a importantes objeções. Pode-se dizer, v.g., que tal desconsidera que a cultura pública democrática, como produto da experiência histórica, com suas instituições e preceitos liberais foi forjada no ambiente filosófico de uma doutrina abrangente, o liberalismo abrangente. 94 Cf. RAWLS, 2005, p.13. 95 Tradução nossa. No original: ―Since there is no reasonable religious, philosophical, or moral doctrine affirmed by all citizens, the conception of justice affirmed in a well-ordered democratic society must be a conception limited to what I shall call ‗the domain of the political‘ and its values.‖ (RAWLS, 2005, p.38). 89 43 O liberalismo político não se confundiria com o liberalismo abrangente como doutrina filosófica96, que se imiscui na busca pela boa vida, tomando partido em relação à concepção de bem dos indivíduos97. Uma visão liberal provavelmente venha a caracterizar algumas das doutrinas abrangentes dentro de uma sociedade, mas, para Rawls, nem todas as doutrinas abrangentes razoáveis são doutrinas abrangentes liberais98. Estas são, em termos rudimentares, as ideias básicas do liberalismo político de Rawls. Rawls, é verdade, longamente sofistica cada um destes pontos que nos propusemos a apresentar muito resumidamente, além de buscar justificá-los para ainda descrever em detalhes o que seria o conteúdo do consenso sobreposto, o que não nos importa aqui reproduzir. O que queremos ora destacar são os efeitos da adoção da filosofia liberal de Rawls em relação aos direitos culturais. 1.3.2 A filosofia liberal de Rawls e os direitos culturais. Uma objeção que frequentemente é lançada quanto à filosofia política de Rawls diz com a sua suposta incapacidade de lidar com os direitos culturais, concebidos como demandas decorrentes da profunda relação entre o ser e sua identidade. Como dito, o debate liberalcomunitarista travado ao longo das últimas décadas tem como um dos pontos primordiais a questão da neutralidade estatal. A esse respeito, Fábio Portela Lopes de Almeida: Um tema comum à literatura comunitarista é a crítica à filosofia antiperfeccionista dos autores liberais, que defendem um ideal de neutralidade. O perfeccionismo ético é o princípio segundo o qual a ação moral é aquela que maximiza a perfeição das realizações humanas na arte, na ciência e na cultura. O liberalismo contemporâneo, de modo geral, propõe que a razão pública deve se fundar em princípios razoáveis e aceitos (ou aceitáveis) por todos os cidadãos, independentemente da concepção de bem aceita e vivenciada por cada um. Assim, as questões públicas devem ser resolvidas a partir de uma concepção neutra perante as diversas culturas, religiões e concepções morais.99 96 Rawls utiliza em muitas passagens a filosofia de Mill justamente como exemplo de liberalismo abrangente. Tal distinção – admite o autor – não estava presente em Uma teoria da justiça (Cf. RAWLS, 2005, p.xli). 98 Cf. RAWLS, 2005, p.xxxvii. 99 ALMEIDA, 2007, p. 96. 97 44 Uma das principais críticas dirigidas a Rawls diz com o conceito de véu de ignorância que, em sua teoria contratualista, impediria os sujeitos na posição original de saberem de suas circunstâncias concretas e mesmo de suas próprias concepções de bem, de como devem conduzir suas vidas e do que as fazem valiosas, abstraindo a cultura em que o indivíduo está inserido das considerações lícitas na estrutura básica da sociedade. É corolário implícito do pensamento de Rawls que os contratos não realizados sob o véu de ignorância seriam iníquos, uma vez que os sujeitos se veriam inclinados a aceitar as posições que mais os favorecessem. Pois bem, a consequência disso é, segundo a crítica comunitarista, que se afasta um trato em que a hierarquia de bens do sujeito, forjada em seu contexto cultural, se apresente. Inquire-se: ora, se são justamente as circunstâncias concretas do indivíduo, que orbitam em torno de seu contexto cultural, que estabelecem o que é (mais) valioso para alguém, qual o sentido então de despersonalizar o indivíduo, privando-o justamente dos laços que estabelecem suas preferências e influem de modo determinante em seus julgamentos? Quem é esse indivíduo despersonalizado e qual a serventia da opinião desse fantasma? Sob o véu da ignorância permanecem inobserváveis os laços culturais e nos bens primários lexicamente precedentes, a que se chega a partir do justo trato entabulado na posição original, não se incluem as demandas não homogêneas, porém essenciais, que advêm da identidade própria do ser. Mesmo com o desenvolvimento de seu liberalismo político, insistindo na neutralidade da esfera pública, Rawls continua deixando de considerar fundamentais os vínculos culturais. Rawls parece, assim, pretender tomas as divergências filosóficas e morais existentes em uma sociedade como se questões religiosas fossem, como se a verdade de seu conteúdo fosse inverificável e, portanto, inoponível sobre aqueles que não compartilham da convicção. Os bens primários em Rawls são aqueles que decorrem de características comuns do sujeito na posição original, onde a doutrina abrangente por si professada, abrangendo sua concepção particular de bem, é propositalmente ignorada. O liberalismo rawlsiano, muito embora seja capaz de aceitar o aspecto social da identidade, extirpa-o da esfera pública. Não deixa de reconhecer a importância dos vínculos culturais, mas os relega a segundo plano, toma-os como uma questão privada. Ser membro de uma sociedade, e não de uma comunidade qualquer, é o que estabelece sua identidade primária. O indivíduo é, antes de mais nada, o cidadão. Segundo Rawls ―[n]ão temos qualquer identidade prévia antes de estarmos em 45 sociedade: não é como se viéssemos de algum lugar; mas, ao contrário, achamo-nos crescendo nesta sociedade nesta posição social […]‖100 1.3.3 As duas espécies de liberalismo. Taylor, após traçar as considerações acerca da identidade e das políticas de conhecimento que buscamos relatar, descreve duas espécies de sociedades liberais. Uma, baseada preponderantemente no ideal de igual dignidade, neutra em relação às concepções de boa vida existentes em uma sociedade, livre de distinções entre cidadãos, proibida de promover particulares formas de vida; e outra, em que políticas de igualdade são compatibilizadas com políticas de diferença, sem a perda de seu âmago liberal. Logo apresenta a imagem da sociedade do primeiro tipo, que, informada pela concepção kantiana de autonomia, importando na capacidade de cada indivíduo de determinar seu próprio bem, mantém a convicção política central de que ―[u]ma sociedade liberal deve permanecer neutra no que diz respeito à boa vida, restringindo-se a assegurar que, qualquer que seja sua visão das coisas, os cidadãos lidem de forma leal uns com os outros e que o estado trate a todos igualmente‖101. Esta espécie de liberalismo seria inóspita a políticas de diferença. Sem dúvidas, uma sociedade deste tipo se identifica substancialmente com aquela conduzida de acordo com o liberalismo político de Rawls. O autor, não obstante, defende a possibilidade de um segundo tipo de sociedade liberal, a organizar-se em torno de uma definição de boa vida, sem que abra mão de tradicionais garantias aos direitos individuais fundamentais. Analisemos a seguinte passagem: Uma sociedade com relevantes objetivos coletivos pode ser liberal, sob esta perspectiva, desde que seja também capaz de respeitar a diversidade, especialmente quando lidar com aqueles que não compartilhem estes objetivos coletivos; e desde que possa oferecer garantias adequadas para os direitos fundamentais. Haverá, indubitavelmente, tensões e dificuldades em perseguir estes objetivos conjuntamente, mas tal não se mostra impossível, e os problemas não são a princípio maiores do que aqueles encontrados em Tradução nossa. No original: ―We have no prior identity before being in society: it is not as if we came from somewhere but rather we find ourselves growing up in this society in this social position […]‖ (RAWLS, 2005, p.41). 101 Tradução nossa. No original: ―A liberal society must remain neutral on the good life, and restrict itself to ensuring that however they see things, citizens deal fairly with each other and the state deals equally with all.‖ (TAYLOR, 1994, p.57.) 100 46 qualquer sociedade liberal que tenha de combinar, por exemplo, liberdade e igualdade, ou prosperidade e justiça102. Michael Walzer dá contornos ainda mais claros a estes dois possíveis modelos de liberalismo de que tratara Taylor, enfatizando as características de cada um, nos seguintes termos: (1) O primeiro tipo de liberalismo (‗Liberalismo 1‘) é comprometido, da maneira mais forte possível, com direitos individuais, e, quase que como uma dedução disso, com um estado rigorosamente neutro, ou seja, um estado sem projetos culturais ou religiosos, de fato sem qualquer tipo de objetivos coletivos além da liberdade pessoal e da incolumidade física, bem-estar e segurança de seus cidadãos. (2) O segundo tipo de liberalismo (‗Liberalismo 2‘) permite que o estado seja comprometido com a sobrevivência e prosperidade de uma nação, cultura ou religião em particular, ou a uma (limitada) gama de nações, culturas e religiões – contanto que os direitos básicos dos cidadãos que tenham compromissos distintos, ou que não tenham quaisquer compromissos, sejam garantidos103. Steven C. Rockefeller, contudo, impõe uma severa ressalva a esta segunda concepção liberal, no sentido de que, ainda que o estado liberal se proponha legitimamente a respeitar e até mesmo encorajar diferentes tradições culturais de modo a que possam desenvolver plenamente potencial, ―[…] do ponto de vista da democracia liberal, uma pessoa tem direito a reivindicar igual reconhecimento, antes e sobretudo, baseado em seu potencial e em sua identidade humana universal, não primordialmente baseado em sua identidade étnica‖ 104. Isso porque, ―[d]esde uma perspectiva democrática, a identidade étnica de alguém não é sua identidade primária […]‖, de modo que o liberalismo democrático, segundo o autor, antes de mais nada se fundará no reconhecimento de que ―[t]odos os seres humanos, possuidores de Tradução nossa. No original: ―A society with strong collective goals can be liberal, on this view, provided it is also capable of respecting diversity, especially when dealing with those who do not share its common goals; and provided it can offer adequate safeguards for fundamental rights. There will undoubtedly be tensions and difficulties in pursuing these objectives together, but such a pursuit is not impossible, and the problems are not in principle greater than those encountered by any liberal society that has to combine, for example, liberty and equality, or prosperity and justice.‖ (TAYLOR, 1994, pp.59-60.) 103 Tradução nossa. No original: ―(1) The first kind of liberalism (―Liberalism 1‖) is committed in the strongest possible way to individual rights and, almost as a deduction from this, to a rigorously neutral state, that is, a state without cultural or religious projects or, indeed, any sort of collective goals beyond the personal freedom and the physical security, welfare, and safety of its citizens. (2) The second kind of liberalism (―Liberalism 2‖) allows for a state committed to the survival and flourishing of a particular nation, culture, or religion, or of a (limited) set of nations, cultures, and religions—so long as the basic rights of citizens who have different commitments or no such commitments at all are protected.‖ (WALZER, p.99 ) 104 Tradução nossa. No original: ―[…]from the liberal democratic point of view a person has a right to claim equal recognition first and foremost on the basis of his or her universal human identity and potential, not primarily on the basis of an ethnic identity.‖ (ROCKEFELLER, p.88 ) 102 47 uma natureza humana universal – como pessoas – têm igual valor […] e […] merecem igual respeito e iguais oportunidades de auto-realização.‖105 Jürgen Habermas, por seu turno, parece suspeitar da possibilidade aventada por Taylor de uma sociedade fundada nos preceitos liberais lidar com lutas por reconhecimento como bens da mesma natureza que os direitos individuais. Afirma que ―[…] a leitura feita por Taylor […] ataca os próprios princípios [liberais] e […] põe em questão o cerne individualista da compreensão moderna de liberdade‖106. O autor assim retrata a proposta liberal de Taylor, opondo-a à perspectiva liberal mais usual: Liberais da grandeza de Rawls ou Dworkin propugnam por uma ordem jurídica eticamente neutra que deve assegurar chances iguais a todos, de modo que cada um possa orientar-se por uma concepção própria do que seja bom. Em face disso, comunitaristas como Taylor e Walzer contestam que haja neutralidade ética no direito e permitem-se, portanto, esperar também do Estado de direito a fomentação ativa de determinadas concepções do bem viver, caso isso se faça necessário. […] Taylor sugere um modelo alternativo que sob determinadas condições admite haver garantias de status restritivas aos direitos fundamentais, quando isso se dá em favor da sobrevivência de formas de vida culturais […].107 Habermas propõe, antes de mais nada, uma interpretação jurídico-constitucional do problema do multiculturalismo. Esclarece que ―[…] uma teoria dos direitos, se entendida de forma correta, jamais fecha os olhos para diferenças culturais.‖108 e reconhece que ―[p]essoas, inclusive pessoas do direito, só são individualizadas por meio da coletivização em sociedade.‖109 Entretanto, afirma que ―[p]ara isso não é preciso um modelo oposto que corrija o viés individualista do sistema de direitos sob outros pontos de vista normativos; é preciso apenas que ocorra a realização coerente desse viés.‖110. Mas, o que se pode notar é que esta proposta de Habermas não difere significativamente do referido Liberalismo 1. Embora sob fundamento diverso daquele a que a crítica de Taylor se dirigira e, não obstante reconheça a importância da cultura na formação da identidade e a inexistência de sistemas jurídicos eticamente neutros, destacando o compromisso do estado de direito com princípios Tradução nossa. No original: ―From the democratic point of view, a person‘s ethnic identity is not his or her primary identity, and important as respect for diversity is in multicultural democratic societies, ethnic identity is not the foundation of recognition of equal value and the related idea of equal rights. All human beings as the bearers of a universal human nature—as persons—are of equal value from the democratic perspective, and all people as persons deserve equal respect and equal opportunity for self-realization.‖ (ROCKEFELLER, p.88 ) 106 HABERMAS, p.231. 107 HABERMAS, p.233. 108 HABERMAS, p.234. 109 HABERMAS, p.235. 110 HABERMAS, p.235. 105 48 democráticos e com determinados direitos fundamentais, Habermas não abandona a premissa de que o estado multicultural não deve se imiscuir em questões que digam com concepções conflitantes do bem viver, não compartilhadas por uma comunidade política. Não ignora a constatação de que ―[…] toda ordem jurídica é também expressão de uma forma de vida em particular, e não apenas o espelhamento de direitos fundamentais.‖111 e até mesmo afirma que ―[…] questões ético-políticas são um componente inevitável da política […]‖, sendo ―[…] inevitável a impregnação ética de cada comunidade jurídica e de cada processo democrático de efetivação de direitos fundamentais‖112. Por outro lado, não parece deixar de defender a neutralidade do direito quando se trata da dispensa de tratamento privilegiado a determinados grupos em sociedades plurais. Afirma que […] a teoria dos direitos não proíbe de maneira alguma que os cidadãos do Estado democrático de direito, no âmbito de sua ordem estatal conjunta, validem uma concepção do que seja bom, advenha ela da própria origem cultural, ou de um consenso alcançado em discursos de natureza política; entretanto, essa mesma teoria proíbe sim, no interior do Estado, que se privilegie uma forma de vida em detrimento de outra.113 Assim, em síntese, embora Habermas admita que ―[…] ordens jurídicas são ‗eticamente impregnadas‘ na mesma medida em que nelas se refletem a vontade política e a forma de vida de uma comunidade jurídica concreta.‖, ressalta que ―[…] o teor ético de uma integração política que unifique todos os cidadãos precisa ser ‗neutro‘ em face das diferenças que haja no interior do Estado entre comunidades ético-culturais que se integram cada qual em torno de uma respectiva concepção própria do que seja o bem‖114. Vejamos que Kymlicka acredita que direitos culturais poderiam ser compatibilizados mesmo com o liberalismo de Rawls, tarefa que empreende em sua obra Liberalism, comunity and culture. A justificação para os direitos culturais apresentada por Kymlicka se baseia na ideia de igualdade. O autor assume que o fato de ser membro de um grupo cultural e gozar de uma estrutura cultural segura é algo valioso para qualquer indivíduo; mas, tal é um bem que não está distribuído equitativamente entre todos. Sustenta que assim como o Estado liberal, por considerações de igualdade, protege o economicamente desfavorecido, pelas mesmas razões estaria autorizado a proteger a comunidade cultural vulnerável (e, desse modo, seus 111 HABERMAS, p.245. HABERMAS, p.246. 113 HABERMAS, p.248. 114 HABERMAS, p.256-257. 112 49 membros). Parte da ideia de que uma parcela da população se vê privada de bens culturais, os quais são naturalmente gozados por outra. Os bens em si são distintos para uns e para outros, mas o significado deles na formação da identidade de ambos é o mesmo. Sob esta perspectiva, o estabelecimento de direitos culturais, à semelhança dos direitos sociais, objetivaria compensar uma posição desprivilegiada e, assim, garantir a igualdade115. Neste Capítulo 1 abordamos o problema dos direitos culturais: apresentamos sua conformação e evolução estritamente no âmbito jurídico, para, a seguir, voltarmo-nos à questão filosófica de fundo, que justifica sua implementação e, afinal, introduzirmos a visão liberal amplamente professada. Taylor acende uma luz sobre a possibilidade do reconhecimento de diferenças no interior de uma sociedade liberal, o que não deixa de ser objeto de eminentes críticas, enquanto Kymlicka formula uma justificação para os direitos culturais, sem pretender contradizer o raciocínio liberal contratualista. Nossa tarefa nesse momento é análoga, porém não a mesma: uma vez posto o problema, o que objetivamos ora é traçar um retrato fiel da filosofia liberal-utilitarista de John Stuart Mill, na esperança de que seu pensamento possa servir para lidar com o problema posto. A seguinte passagem bem ilustra o pensamento do autor: ―[…] rather than subsidizing or privileging their choices, the special measures demanded by aboriginal people serve to correct an advantage that non-aboriginal people have before anyone makes their choices.‖ (KYMLICKA, 1991, p.189.) 115 50 2 O UTILITARISMO LIBERAL DE JOHN STUART MILL A relação entre o liberalismo de Mill expresso em On Liberty, de um lado, e seu comprometimento inarredável com o utilitarismo, defendido em Utilitarianism, de outro – seus textos mais célebres – não está entre os temas mais fáceis de serem abordados, tampouco sendo dos menos controversos. Os primeiros intérpretes de Mill chegavam a ver certa esquizofrenia no pensamento do autor116, que parecia ser, em muitos pontos, contraditório: seu liberalismo não se sustentaria ao ser confrontado com seu utilitarismo117. Em um momento propunha o aclamado princípio do dano (ou princípio da liberdade) como critério para o bem agir em questões envolvendo restrição da liberdade de terceiros, inclusive – e principalmente – pelo estado, ao passo que, em outro, apresentava o princípio da utilidade como primeiro princípio, critério definitivo do agir moral, base comum a todas as obrigações. Este panorama primitivo se modificou, especialmente no período do pós-guerra118 e, atualmente, já se têm uma gama ampla de artigos e capítulos de livros cujo objeto é A chamada tese dos ―Dois Mill‖, cuja idéia é expressa por John Gray: ―Some exponents of this traditional view have gone so far as to claim to discern in Mill's writings an intellectual schizophrenia: the lineaments of ‗two Mills‘, each with a distinctive expression and a coherent message. There is, unfortunately, little agreement in identifying and describing these ‗two Mills‘, so that the vast secondary literature on the younger Mill contains a bewildering variety of pictures of him as at once a radical libertarian and a cautious, conservative, Whig trimmer; a moral totalitarian and a questing, open-minded skeptic; an unreconstructed empiricist and a freewheeling epistemological pluralist. Whether they detect two (or more) Mills in John Mill's writings, or deny the presence of any integrated personality in his work, advocates of the received view all share the assumption that the promise of unity was not, and perhaps could never have been fulfilled in Mill's philosophy. A distinguished statement of the received view is that of John Plamenatz when he says of Mill's Utilitarianism, (1861, 1863), his Liberty (1859), and his Considerations on Representative Government (1861) that ‗These three essays written by a sick man in his premature old age, exhibit all his defects as a thinker, his lack of clarity, his inconsistency, and his inability either to accept whole-heartedly or to reject the principles inherited from his father and from Bentham.‘ (J. P. Plamenatz, The English Utilitarians, p. 123)[…] It must be admitted at once that there is much in Mill's work and in his life that supports the standard interpretation. Mill's notorious ambivalence to the utilitarian intellectual tradition he inherited from his father and Jeremy Bentham; his receptive response to some aspects of a German Idealist conception of the mind which the conservative Coleridge transmitted to the English world; his many shifts of position and emphasis on the great issues of socialism, democracy, and private property; together with the still intensely controversial question of how important for the development of his thought was his relationship with Harriet Taylor—all these vacillations conspire to suggest the image of a man inwardly divided.‖ (GRAY, 1979, p.7) 117 A propósito, veja-se também REES, 1977, texto que fornece um amplo panorama sobre os autores que defendiam a tal tese. 118 Vejamos: ―In recent years, however, a wave of revisionist scholarship and interpretation has emerged, whose theme is that the judgment of J. S. Mill as a hopelessly muddled thinker may yet be ill-founded and certainly remains premature. This post-war revisionism argues that our assessment of Mill is distorted by an earlier generation of intellectual historians who caricatured the aims and doctrines of nineteenth-century English utilitarianism. Furthermore, our view of Mill has been badly obscured by the hasty and presumptuous judgment of Mill's substantive argument by the philosophers and social theorists of the late nineteenth and early twentieth centuries. If the revisionist scholars are on the right track, the work of the younger Mill may be a natural development of his utilitarian predecessors' achievements. Mill's writings may contain a subtle and complex body of doctrine which may not be internally inconsistent.‖ (GRAY, 1979, p.7) 116 51 justamente a relação entre o princípio do dano e o princípio da utilidade 119, em que os autores – livres das simplificações que tomam algumas passagens como enganos do autor ou atribuem aos caráteres distintos de cada obra120 – levam a sério a tarefa de reconciliar seu pensamento. Neste capítulo, circunscreveremo-nos àqueles cuja interpretação parece ser a mais adequada para o propósito buscado nesta dissertação e que, não por conveniência, parece-nos a mais razoável; ao revés, a própria interpretação que doravante será esposada é que despertou nossas mais profundas convicções acerca do papel do estado na questão da promoção de direitos culturais. Acreditamos que a resposta passa por um entendimento do conteúdo preciso do princípio da liberdade, com base em que se almeja revelar a verdadeira noção de utilitarismo liberal, que cremos ser, senão o maior, um dos grandes achados de Mill em termos de filosofia moral e política. 2.1 Do hedonismo ao utilitarismo. O utilitarismo é, em linhas gerais, a doutrina segundo a qual as ações corretas são aquelas que tornam a comunidade melhor; incorretas aquelas que a tornam pior. Em outros termos, corretas são as ações úteis para a promoção da máxima felicidade geral, sendo incorretas aquelas que produzem o contrário disso. É comum que o hedonismo acompanhe a doutrina utilitarista. A expressão hedonismo provém do grego ἡδονή (hēdonē), que significa prazer ou deleite. O hedonista vê o sumo bem no prazer e o sumo mal na dor, de modo que a vida mais feliz é aquela em que há o máximo de prazer e o mínimo de dor, enquanto a mais infeliz, aquela em que justamente o contrário se verifica. Não se deve confundir hedonismo em geral com sensualismo (embora o sensualismo possa eventualmente ser considerado uma espécie de hedonismo); hedonistas frequentemente dão valor a prazeres distintos daqueles derivados da afetação dos sentidos, tomando em alta conta prazeres relacionados com a atividade intelectual. O hedonismo é geralmente apresentado como elemento do próprio utilitarismo, como se dele fosse inseparável – não obstante, a rigor, não o seja. Muito embora 119 Destaques para: Crisp, 1997; Donner, 1991, 1998; Lyons, 1994; Brown, 1972; Ryan, 1998. Muito embora Utilitarianism tenha sido publicado inicialmente como uma série de artigos na Fraser’s Magazine e não apresente o rigor científico que se percebe em seu System of Logic, é uma obra cuja preocupação é desenvolver uma teoria moral abrangente, enquanto a linguagem utilizada em On Liberty tem certo viés retórico, até mesmo panfletário. A propósito da publicação de Utilitarianism: ―Mill‘s Utilitarianism was not written as a scholarly treatise but as a series of essays for a popular audience. It was first published in three instalments in Fraser’s Magazine in 1861 and appeared in book form in 1863. Fraser’s Magazine was a magazine with a general audience and the essay was written with this readership in view.‖ (DONNER, 1998, p.255) 120 52 se possa sustentar haver formas de utilitarismo não hedonísticas 121, sendo mesmo controversa a questão de se o próprio Mill seria de todo um hedonista – questão que abordaremos mais tarde –, o fato é que os utilitaristas em geral costumam empregar o hedonismo como forma de aferição da felicidade individual e, por conseguinte, da felicidade geral. Para o utilitarismo hedonista a ação correta é aquela que maximiza o prazer e minimiza a dor para todo o conjunto de pessoas que compõem a comunidade, assim promovendo a máxima felicidade geral. Por outro lado, a própria concepção hedonista, que se preocupa a princípio somente com a identificação do bem para o indivíduo no estabelecimento da felicidade, parece mesmo conduzir seus adeptos a alguma forma de utilitarismo. Tal se dá a partir da generalização de sua idéia de felicidade, que passa a ser aplicada à coletividade de indivíduos. Assim, se nem todo utilitarismo é hedonismo, todo hedonismo, quando confrontado com a questão da felicidade geral, aparentemente tende a uma forma de utilitarismo. O utilitarismo primitivo, como expressão do hedonismo, remontaria o pensamento grego. O hedonismo já estivera presente no diálogo platônico Protágoras122, mas, segundo Mill, Epicuro teria sido o primeiro utilitarista123. O seria em razão das consequências que extraí da concepção de que o sumo bem consiste no prazer. Sem embargo, a rigor, a transposição desta filosofia moral para o âmbito da filosofia política é algo que pode ser atribuído inicialmente a Bentham124, sucedendo-lhe John Stuart Mill, a quem coube desenvolver e aprimorar seu pensamento. O método de adaptação de Bentham dessa filosofia para o âmbito da política e do direito é distinto do adotado por Mill – veremos isso adiante. É importante que inicialmente compreendamos em que consiste o 121 J.J.C. Smart entende haver três formas básicas de utilitarismo, o utilitarismo hedonista, de Bentham, o utilitarismo idealista, de G. E. Moore e uma posição intermediária, quase-idealista, a qual identifica à figura de Mill. No original: ―Bentham, who thought that quantity of pleasure being equal, the experience of playing pushpin was as good as that of reading poetry, could be classified as a hedonistic act-utilitarian. Moore, who believed that some states of mind, such as those acquiring knowledge, had intrinsic value quite independent of their pleasantness, can be called an ideal utilitarian. Mill seemed to occupy an intermediate position. He held that there are higher and lower pleasures. This seems to imply that pleasure is a necessary condition for goodness but that goodness but that goodness depends on other qualities of experience than pleasantness and unpleasentness. I propose to call Mill quasi-ideal utilitarian.‖ (SMART, 1973, p.13) 122 Cf. PLATÃO, 2002b. 123 ―Those who know anything about the matter are aware that every writer, from Epicurus to Bentham, who maintained the theory of utility, meant by it, not something to be contradistinguished from pleasure, but pleasure itself, together with exemption from pain; and instead of opposing the useful to the agreeable or the ornamental, have always declared that the useful means these, among other things.‖ (MILL, 1985c, p. 262) 124 Não obstante, autores como Häyry entendem que algumas formas de utilitarismo podem ser identificados na tradição inglesa que precedeu Bentham, na qual este último estaria inserido. Häyry ncluí aí pensadores como Francis Hutcheson, David Hume, John Locke, entre outros, como fonte de uma série de pressupostos depois reunidos por Bentham. (Cf. HÄYRY, 1994, p.p.8-42) 53 hedonismo, quais as causas que conduzem a esta compreensão e as consequências do pensamento hedonista. Analisaremos, pois, antes de mais nada, o pensamento de Platão, Aristóteles e Epicuro acerca dos prazeres e a sua relação com o bem e a felicidade 125, o que, pensamos, muito contribuirá para a posterior investigação do utilitarismo de Bentham e Mill. 2.1.1 Antecedentes. Para que possamos interpretar adequadamente o hedonismo de Mill faz-se necessário que apresentemos algumas das compreensões que lhe antecederam, formuladas ainda na Antiguidade, acerca da posição do prazer e da dor na vida do ser humano e a relação destas sensações com o bem e com a vida feliz – muito do que Mill, por certo, tinha em mente ao formar e professar seu próprio entendimento. Veremos, em suma, (i) que a relação entre o prazer e o sumo bem, a importância do discernimento e da sabedoria na escolha dos prazeres e a distinção entre prazeres corporais e intelectuais, assim como a possibilidade de estados ilusórios que influenciem na percepção dos prazeres já estavam presentes na obra de Platão, ainda, (ii) que, em Aristóteles, o império da virtude aparta o prazer consigo desconforme do bem, o que (a despeito de opiniões divergentes) não traduz a compreensão hedonista de Mill e, por fim, (iii) que o Epicurismo, embora forneça os contornos básicos da fórmula hedonista, que assume o prazer como sumo bem, não se identifica precisamente com o pensamento de Mill. 2.1.1.1 Protágoras: a formulação do hedonismo. No diálogo platônico Protágoras, Sócrates investiga a afirmação de Protágoras, defendendo seu mister como sofista126, de que a virtude pode ser ensinada, inquirindo-lhe a 125 Para uma análise mais abrangente dos antecedentes do utilitarismo, vide SCARRE, 1996. pp.27-72. Sofistas eram, em linhas gerais, professores que cobravam de seus alunos por suas lições. Sócrates mostravase avesso a esse procedimento, elegendo os sofistas, principalmente os professores de retórica, como alvo de suas críticas em diálogos como Górgias e no próprio Protágoras. Nas palavras de Bernard Williams: ―Protágoras é um ‗sofista‘, alguém que recebe dinheiro para ensinar, em particular para ensinar os jovens a serem bem-sucedidos e felizes. Platão repetidas vezes ataca essas pessoas e é a ele, principalmente, que elas devem a sua má reputação, mas ele claramente tem um genuíno respeito por Protágoras.‖ (WILLIAMS, 2000. p.21). A propósito dos Sofistas, veja-se ainda GUTHRIE, 1971. 126 54 respeito do que seja a virtude e outros conceitos como justiça, santidade, sensatez, beleza et cetera, desenvolvendo um longo e minucioso raciocínio sobre a relação entre esses. Os contendores chegam a várias conclusões parciais. Uma das perguntas mais relevantes posta é se as coisas boas são as que são úteis ao homem127. Por um momento, após dada discordância entre os interlocutores sobre o procedimento a ser seguido, a questão é posta de lado ficando sem resposta definitiva. Protágoras, tentando comprovar sua tese original, passa então a inquirir Sócrates acerca da interpretação de um poema de Simônides que diz ser difícil tornarse um homem virtuoso, o que vem a se mostrar infrutífero. Sócrates retoma, adiante, sua investigação do ―argumento interrompido‖128 quando volta a interrogar Protágoras, partindo da premissa deste último de que a sabedoria, a temperança, a coragem e a santidade, embora sendo coisas diferentes, eram todas partes da virtude. A partir daí tratam do conceito de coragem para, a seguir, passarem a perquirir especificamente a questão do bem e do mal. Conduzido por Sócrates, Protágoras admite que vive bem o homem que vive agradavelmente e que considera-se agradável o que é causa de prazer, embora não esteja convencido de que seja o agradável (ou prazeroso) idêntico ao bom129; neste momento, Protágoras parece crer que o prazer é um mero elemento da boa vida, mas não seu fim último. Seguindo, Sócrates propõe o aprofundamento da investigação através da análise do conceito de conhecimento e sua relação com a ação com a sobre o tema do conhecimento 130, momento em que indaga qual a natureza dessa condição denominada ―ser vencido pelos prazeres‖131. Neste ponto, Sócrates conduz o debate por um caminho que faz crer que, ao buscar identificar o bem com o prazer, tenha adotado o hedonismo. Vejamos: 127 PLATÃO, 2002b, p.82. PLATÃO, 2002b, p.102. 129 Veja-se a seguinte passagem: ― – Admites, Protágoras, lhe perguntei, que alguns homens vivem bem, e outros mal? Respondeu que sim. – E no caso de viver agradavelmente até morrer, não te parece que teve uma boa vida? – Sem dúvida, respondeu. – Então, viver agradavelmente é bom, e viver por maneira desagradável é mau? – No caso, disse ele, de conciliar-se a vida agradável com a honestidade. […] – Não sei, Sócrates, respondeu, se deva responder no mesmo teor simplista com que apresentas a pergunta, que tudo o que é agadável é bom, e tudo o que é desagradável é mau. […] – Dás o nome de agradável, perguntei, ao que está ligado ao prazer ou é causa de prazer? – Perfeitamente, respondeu.‖ (PLATÃO, 2002b, p.p.106-107) 130 Tal é a passagem: ― – […] Que opinião fazes do conhecimento? […] A grande maioria dos homens pensa do conhecimento mais ou menos o seguinte: […] muitas vezes, embora seja o homem dotado de conhecimento, não é governando por ele, mas por qualquer outra coisa, ora pela cólera, ora pelos prazeres, ora pela dor, algumas vezes pelo amor, e muito frequentemente pelo medo, e consideram o conhecimento mais ou menos um escravo que se deixa arrastar por tudo. […] – […] a maioria dos homens […] afirmam ter muita gente o conhecimento perfeito do que é melhor, sem nunca pô-lo em execução, embora o pudessem […] a causa de fazerem o que fazem é ficarem dominadas pelos prazeres, ou pela dor, ou por qualquer das paixões a que há pouco me referi.‖ (PLATÃO, 2002b, pp.108-109). 131 PLATÃO, 2002b, p.109. 128 55 – E no caso, lhe disse, de voltarem a perguntar-nos: Que entendeis pelo que na nossa maneira de falar denominamos ―Ser vencido pelos prazeres‖? […] como nos casos tão freqüentes em que vos deixais dominar pelos prazeres da comida, da bebida ou do amor, conscientes de que são práticas nocivas, e, apesar disso, vos entregais a elas? […] Por que dizeis que essas coisas são nocivas? Por proporcionarem prazer no momento que passa e serem agradáveis de per si, ou por causarem ulteriormente pobreza, ou doença, ou outros males do mesmo gênero? […] Não devemos admitir, Protágoras, que eles não nos responderiam senão que não são nocivas por causa dos prazeres imediatos que ocasionam, mas por causa das doenças e outros males que lhes vêm no rastro? – Penso, disse Protágoras, que o vulgo responderia desse modo. […] – Não sois de parecer, amigos, como eu e Protágoras sustentamos, que essas coisas não são más senão por terminarem em dor e nos privarem de outros prazeres? Não concordariam conosco? – Estamos de acordo. – E se lhes apresentássemos o problema pela outra face e lhes disséssemos: Amigos, quando afirmais que certas coisas boas são dolorosas, não tendes em mente as do tipo dos exercícios físicos, das expedições militares e dos tratamentos médicos por cauterização, amputação, ingestão de mezinhas e dietas prolongadas, que são boas em si mesmas, porém dolorosas? Não concordariam conosco? Foi de parecer que sim. – Dais-lhes, porventura, o nome de boas por ocasionarem imediatamente sofrimento e dores excruciante, ou porque, de preferência, são causa ulterior de saúde e de bem-estar físico, da salvação da cidade, de domínio sobre os outros, e de riqueza? Acho que eles responderiam que sim. Concordou. – E serão boas essas coisas por outro motivo que não seja por terminarem em prazer, acabarem com a dor, ou por nos preservarem dela? Ou tendes em mira algum outro ponto de referência, além do prazer e da dor, para considerá-las boas? Estou certo de que responderiam que não têm. – É também o que eu penso, disse Protágoras. – Logo, empenhai-vos em alcançar o prazer como um bem, e fugis da dor, como de uma mal? Concordou comigo. – Sendo assim, considerais que a dor é um mal, e o prazer, um bem, porque ao próprio prazer dais o nome de mal, quando vos priva de maiores gozos do que nele se contém, ou quando ocasiona maiores sofrimentos do que seus gozos peculiares.132 132 PLATÃO, 2002b, p.p. 110-111 56 O que se pode denotar da passagem é que Sócrates tenta reduzir o bem a prazeres e o mal a dores, afinando-se com a doutrina hedonista. Defende que as ações humanas são sempre motivadas pelas consequências que tendam, afinal, a aumentar os prazeres do sujeito e diminuir suas dores, ainda que a consequência imediata pareça ser o reverso disso. Assim, quando parece que o sujeito opta por uma experiência dolorosa ou deixa de escolher a mais prazerosa, é porque, no primeiro caso, a expectativa de consequências mediatas prazerosas compensa a dor inicial e, no segundo, porque aquele prazer aparente tenderá a gerar dores futuras em maior escala. Chegada a essa conclusão parcial, Sócrates passa a perquirir a razão pela qual alguém que, sabendo que o mal é mal, não se abstém de praticá-lo ou deixa de praticar o bem (tomado como atividade prazerosa). Explica que, na hipótese, o sujeito deixa de observar o prazer (ou bem) futuro e é vencido pelo prazer (ou bem) presente, que ilusoriamente parece maior. Retornemos ao texto para termos esse ponto bem claro: – […] as mesmas coisas não se vos afiguram maiores, quando mais próximas, e menores, quando mais afastadas? Ou não? Concordariam. […] Ora, se nosso bem-estar consistisse em fazer escolher o que é grande, e evitar e não fazer o que é pequeno, qual seria o princípio salvador da vida humana? A arte de medir ou a força da aparência? Não nos ilude esta última, levando-nos muitas vezes a inverter as relações das coisas, a modificar nossos propósitos e a nos arrependermos da resolução tomada, não só com referência a nossos atos, como com a escolha das coisas grandes e das pequenas? A arte da medida, pelo contrário, não neutralizaria essa ilusão, com resolver a verdadeira relação das coisas, e não asseguraria à alma a tranqüilidade fundada sobre a verdade, salvando, assim, nossa vida? Não concordariam todos em que esse resultado seria obtido pela arte da medida? ou apontariam outra? – A arte da medida, concedeu Protágoras. […] - Muito bem, amigos! Já que a salvação da nossa vida se nos revelou como consistindo na escolha acertada de prazeres e de sofrimentos, conforme sejam mais ou menos numerosos, maiores ou menores, ou se encontrem mais afastados ou mais perto, não é evidente que o que se faz mister é do conhecimento das medidas para estudar o excesso, a falta ou a igualdade de uns com relação aos outros? Necessariamente. Sendo que o conhecimento das medidas, forçosamente será ciência e arte. […] quem erra na escolha dos prazeres e dos sofrimentos, isto é, dos bens e dos males, erra por falta de conhecimento […]. Toda ação errada por falta de conhecimento, como bem o sabeis, decorre da ignorância, de forma que ser vencido pelo prazer é a maior ignorância. É justamente essa ignorância que Protágoras, aqui presente, se propõe a curar como médico, juntamente com Pródico e Hípias. […]133 133 PLATÃO, 2002b, pp.114-116. 57 A conclusão a que chega Sócrates não é outra senão a de que o sujeito, se bem informado, i.e., não estando na ignorância, será sempre o melhor juiz de sua conduta visando os maiores prazeres e as menores dores, destacando, pois, o papel do discernimento na escolha entre prazeres diversos134, restando estabelecido a partir da contenda que, de fato, a virtude pode perfeitamente ser ensinada135. 2.1.1.2 A República, Filebo e Fedão: as diversas espécies de prazer. Nos diálogos Filebo e A República, Platão aborda a relação entre os prazeres e a boa vida de modo bastante diverso do que fizera em Protágoras136. Naqueles diálogos não é todo prazer que é identificado com o bem; antes, a busca imoderada de prazeres é atribuída aos tiranos na República, enquanto em Filebo é estabelecido que há diferentes espécies de prazer e que o sumo bem consiste num misto de prazer e sabedoria. Ademais, algumas passagens de Fedão trazem também visões distintas daquelas que haviam antes sido esposadas acerca dos diversos tipos de prazeres. O Livro IX da República de Platão presta-se declaradamente ao exame do homem tirânico ―como ele nasce do homem democrático, o que ele é, uma vez formado, e como é sua vida, infeliz ou feliz‖137. É, pois, precisamente o caráter do tirano, com destaque para a Vejamos: ―– […] se o que é agradável é bom, não há ninguém que, sabendo ou presumindo que há coisas melhores do que ele faz ou pode fazer, decida-se por aquelas, quando depende exclusivamente dele realizar o melhor. Ser inferior a si mesmo não é mais do que ignorância, como é sabedoria saber alguém dominar-se. Todos concordaram.‖ (PLATÃO, 2002b, p.117). 135 PLATÃO, 2002b, p.122. 136 É sabido que Sócrates não deixou nenhuma obra escrita. Tudo o que se sabe sobre ele provém precipuamente de quatro fontes: de referências contidas nos escritos de Xenofonte e de Aristóteles, das peças cômicas de Aristófanes e dos inúmeros diálogos de Platão, em que Sócrates é o personagem principal de sua quase totalidade. Assim surge a questão de saber se a quem deve ser atribuída a filosofia lá expressa. Não há consenso acerca do tema. Segundo a tese Burnet-Taylor, tudo o quanto seja dito por Sócrates nos diálogos platônicos deve ser reputado como sendo o que Sócrates disse em vida, o que significaria que a contribuição de Platão à filosofia não seria realmente sua, mas a reprodução das palavras de seu mestre. Isso retiraria sua autoria, por exemplo, da famosa Teoria das Formas, expressa pela boca de Sócrates na República e em Fedão. O mais aceito hoje, porém, é que Platão tenha desenvolvido sua filosofia tomando como base as convicções fundamentais de Sócrates, mas, a partir daí, a tenha alterado e criado toda a sua filosofia. Em todo caso, imagina-se que alguns diálogos expressem de modo mais puro o pensamento do Sócrates-histórico, enquanto em outros, poucos resquícios dele haja, sendo o pensamento de Platão expresso pelo mero Sócrates-personagem. Uma extensa discussão sobre este assunto pode ser encontrada em GUTHRIE, 1971a, p.p. 5-39. 137 PLATÃO, 1965, p.182. 134 58 maneira como ele se relaciona com os prazeres que é objeto de análise de Sócrates e seus interlocutores. Sócrates inicia esta parte do diálogo identificando os ―prazeres e desejos não necessários‖, os quais […] são provavelmente inatos em cada um de nós, mas reprimidos pelas leis e pelos desejos melhores, com a ajuda da razão, podem, em alguns, ser totalmente extirpados ou só remanescer em pequeno número e enfraquecidos, enquanto, em outros, subsistem mais fortes e mais numerosos.138 Segue afirmando que ―[…] há em cada um de nós, mesmo nos que parecem totalmente regrados, uma espécie de desejos terríveis, selvagens, sem lei‖139. Descreve o homem tirânico como aquele que se entrega a estes desejos, de modo que ―[…] nada falta a um homem para ser tirânico, quando a natureza, suas práticas, ou os dois em conjunto, o fizeram bêbado, apaixonado e louco‖140. A descrição opõe-se a do homem democrático, que ―[…] é formado desde a infância por um pai parcimonioso, que honra apenas os desejos interessados e despreza os desejos supérfluos que só têm por objeto o divertimento e o luxo‖141. A partir da busca incessante por estes prazeres torpes142, o homem tirânico teria de recorrer aos ―empréstimos e [a]os adiantamentos sobre o capital, pois logo suas rendas seriam consumidas‖143 e ―[…] quando nada mais restar, […] constituirá para ele uma necessidade pilhar por todos os lados ou aguentar grandes sofrimentos e grandes penas‖144 e, assim, ―[…] não se absterá de nenhum crime, de nenhum alimento proibido, de nenhuma perversidade‖145. Note-se, portanto, que aqui Platão dá a ideia de que este tipo de prazer, a longo prazo, será prejudicial ao indivíduo (no caso, ao tirano), gerando, suas consequências mediatas, maior sofrimento. Diz Sócrates que, neste caso, a alma do indivíduo tem suas partes mais nobres ―reduzidas à escravidão‖146 por furiosos desejos, apresentando-se, ainda, ―cheia de 138 PLATÃO, 1965, p.182. PLATÃO, 1965, p.184. 140 PLATÃO, 1965, p.185. 141 PLATÃO, 1965, p.184. 142 ―Imagino que daí por diante não há senão festas, festins, cortesãs e prazeres de toda sorte em casa daquele que permitiu ao tirano Eros instalar-se-lhe na alma e governar-lhe todos os movimentos‖. (PLATÃO, 1965, p. 186). 143 PLATÃO, 1965, p. 186. 144 PLATÃO, 1965, p. 186. 145 PLATÃO, 1965, p. 188. 146 PLATÃO, 1965, p. 192. Vejamos, ainda, a seguinte passagem a propósito: ―[…] o verdadeiro tirano é um verdadeiro escravo, condenado a baixeza e servidão extremas e é adulador dos homens mais perversos; não podendo, de alguma forma, satisfazer os seus desejos, surge desprovido de uma porção de coisas, e pobre, na 139 59 perturbação e remorso‖, de modo que a alma tirânica seria sempre ―pobre e insaciada‖ 147. O tirano não seria livre para escolher entre prazeres, haveria uma compulsão por estes prazeres torpes que o tornaria dependente deles. Conclui disso que o indivíduo tirânico ―[…] é de longe o mais infeliz de todos os homens‖148. A partir de então se começa a tratar mais especificamente das diversas espécies de prazeres. Afirma Sócrates que a alma de cada indivíduo se divide em três elementos: o que conhece, o que se irrita e o concupiscível. Com cada um deles, diz haver prazeres identificados e, do mesmo modo, haver três classes principais de homens: o filósofo, o ambicioso e o interesseiro. Na seguinte passagem, assim questiona qual deles é melhor juiz entre os diversos prazeres, optando pelo filósofo em razão da maior experiência que tem desses prazeres: - […] Qual dos três homens tem mais experiência de todos os prazeres que acabamos de mencionar? Crês que o homem interesseiro, se ele se aplicasse a conhecer o que é a verdade em si, teria mais experiência do prazer da ciência que o filósofo do prazer do ganho? - Longe disso – respondeu; - pois, no fim das contas, para o filósofo, é uma necessidade provar desde a infância dos outros prazeres, ao passo que para o homem interesseiro, caso se aplique a conhecer a natureza das essências, não é uma necessidade que prove toda doçura deste prazer e adquira a experiência deste; ainda mais; mesmo que tomasse a coisa a peito, não lhe seria nada fácil. - Assim, o filósofo prevalece de longe sobre o homem interesseiro pela experiência que tem destas duas espécies de prazeres. - De longe. - E o que dizer do ambicioso? Terá o filósofo menos experiência do prazer ligado às honras do que o ambicioso do prazer que acompanha a sabedoria? - A honra – respondeu ele – cabe a cada um deles, se atinge o fim que se propõe, pois o rico, o bravo e o sábio são honrados pela multidão, de sorte que todos eles conhecem, por experiência, a natureza do prazer ligado às honras. Mas, o prazer que a contemplação do ser proporciona, ninguém mais exceto o filósofo pode saborear. - Por conseguinte – prossegui – pelo que diz respeito à experiência, é ele quem melhor julga entre os três. 149 verdade, para quem saiba ver o fundo de sua alma; passa a vida em contínuo terror, presa de convulsões e dores‖ (PLATÃO, 1965, p. 195). 147 PLATÃO, 1965, p. 192. 148 PLATÃO, 1965, p. 193. 149 PLATÃO, 1965, p.182. 60 A seguir, nega que a ausência de dor seja um prazer e a ausência de prazer uma dor. Sustenta que ao lado da dor e do prazer, que seriam uma espécie de movimento, se oporia um terceiro estado, intermediário entre os dois, caracterizado como um tipo de repouso. Pretende, com isso, mostrar que os supostos prazeres mais comuns nada mais são do que cessações de dores. São estados de vazio, como a fome, a sede ou a ignorância, os quais são preenchidos com o alimento, a bebida ou o conhecimento. Notemos que os dois primeiros estados de vazio são penosos, ao contrário do terceiro. Sócrates, neste momento, diferencia a primeira classe de bens, relacionados à saciedade das necessidades biológicas, tais como ―[…] o pão, a bebida, a carne e a comida em geral‖ de uma segunda classe, de bens intelectuais, como é o caso ―[…] da opinião verdadeira, da ciência, da inteligência‖150, identificando estes com o imortal e imutável e aqueles com o mortal e mutável, pelo que estas coisas ―[…] que servem de sustento da alma‖, constituiriam os verdadeiros prazeres, enquanto os prazeres corporais, ―prazeres mesclados de penas‖ (i.e., decorrentes de seu anterior vazio), seriam nada mais do que ―[…] sombras e esboços do verdadeiro prazer, que tomam cor apenas de sua proximidade‖151. Platão estabelece, assim, uma diferenciação entre prazeres baixos e elevados152. Voltamos a destacar que, em oposição a estes bens corporais, baixos, estariam os bens intelectuais, mais elevados. Produto do momento em que ―[…] a alma inteira segue o elemento filósofo‖, seriam a fonte dos ―melhores e mais verdadeiros‖ prazeres que a alma pode desfrutar153. Nenhuma relação com a dor têm estes prazeres, não são fruto de um anterior estado de sofrimento gerado pelo vazio; pelo contrário, o prazer que deles advém é puro. Sócrates, neste ponto, retoma a linha do argumento central do Livro IX, afirmando ter demonstrado que o tirano é o mais infeliz dos homens, dizendo: ―[…] o mais distante do 150 PLATÃO, 1965, p.206. PLATÃO, 1965, p.207. 152 A seguinte passagem do diálogo bem ilustra este entendimento: ―- Assim, os que não têm experiência alguma da sabedoria e da virtude, que se encontram sempre nos festins e nos prazeres semelhantes, são levados, parece, à região baixa, depois novamente à média, e erram destarte durante a vida inteira; nunca sobem mais alto; jamais viram as verdadeiras alturas, jamais foram realmente preenchidos pelo ser e desfrutaram de sólido e puro prazer. À maneira dos animais, com os olhos sempre voltados para baixo, a cabeça pendida para a terra e para a mesa, pastam na engorda e acasalam-se; e, com o fito de obter a maior porção desses gozos, escoiceiam, batem-se a cornadas e golpes de ferraduras, e se matam uns aos outros no furor de seu insaciável apetite, porque não encheram de coisas reais a parte real e estanque de si mesmos. - É como perfeito oráculo, Sócrates, que pintas a vida da maioria dos homens!‖ (PLATÃO, 1965, p.207). 153 PLATÃO, 1965, p.209. 151 61 prazer verdadeiro e próprio ao homem será, penso, o tirano, e o menos distante, o rei.‖154. A seguir, indaga quanto a vida do tirano é menos agradável do que a do rei. A resposta para essa pergunta faz de Platão o precursor longínquo dos filósofos modernos que cogitaram o cálculo hedonístico155. Eis: — A partir do homem oligárquico, o tirano está no terceiro grau, pois entre eles se encontra o homem democrático. — Sim. — Ora, não coabita ele com uma sombra de prazer, que será a terceira a partir da do oligarca, se o que declaramos anteriormente for verdadeiro? — De fato. — Mas o oligarca é igualmente o terceiro a partir do rei, se contarmos como um só o homem real e o homem aristocrático. ― O terceiro, com efeito. — Por conseguinte, o tirano está afastado três vezes três graus do verdadeiro prazer. ― Aparentemente. — Logo, a sombra de prazer do tirano, a considerá-la segundo o seu comprimento, pode ser expressa por um número plano. — Sim. — E, elevando-se este número ao quadrado, e depois ao cubo, vê-se claramente que distância o separa do rei. — Sim, isso é claro para um calculador. — E se, reciprocamente, quisermos exprimir a distância que separa o rei do tirano, quanto à realidade do prazer, verificar-se-á, feita a multiplicação, que o rei é setecentos e vinte e nove vezes mais feliz do que o tirano, e que este é mais infeliz na mesma proporção. — Que extraordinário cálculo nos fazes aí da diferença entre estes dois homens, o justo e o injusto, no que diz respeito ao prazer e à dor! — Entretanto a cifra é exata e aplica-se à vida deles, se levarmos em conta os dias, as noites, os meses e os anos. — Mas nós os levamos em conta. — Ora pois, se o homem bom e justo prevalece de tal modo em prazer sobre o homem mau e injusto, não prevalecerá infinitamente mais em decência, beleza e virtude? 154 155 PLATÃO, 1965, p.209. A observação é de Robert Baccou em nota à passagem. (PLATÃO, 1965, p.210). 62 — Infinitamente mais, por Zeus! — anuiu ele.156 Um último ponto que importa destacarmos do diálogo é a noção de que o cometimento de ―[…] uma ação injusta, licenciosa ou vergonhosa‖, ainda que traga benefícios imediatos ao sujeito que a pratica, jamais poderá ser considerada vantajosa. Tal se dá não só porque a vileza da conduta trará consequências deletérias no que diz respeito à reprovação social, mas principalmente porque as dores internas, da consciência, serão grandes. Sócrates afirma, inclusive, que, passando despercebida a conduta, o mal para o agente será ainda maior, pois ―[…] naquele que é descoberto e punido, o elemento bestial se acalma e se abranda, o elemento pacífico se vê libertado‖157. Em Fedão Platão reproduziria o diálogo travado entre Sócrates encarcerado, na espera da execução da pena capital a que fora condenado, e alguns de seus discípulos que foram ter com o mestre em suas últimas horas de vida. O diálogo é assaz rico. Extenso, tem como tema central a imortalidade da alma e o enaltecimento da vida dedicada à filosofia, mas trata de uma série de assuntos correlatos. Interessa-nos, mais uma vez, o que Platão tem a dizer acerca dos prazeres, o que neste diálogo parece se restringir aos prazeres do corpo. Sócrates aqui sustenta que a alma ―[…] se encontra como que ligada e aglutinada ao corpo, por intermédio do qual é forçada a ver a realidade como que através de das grades de um cárcere, em lugar de o fazer sozinha e por si mesma‖158, sendo os prazeres algo que sujeita a alma da pessoa ao corpo, devendo o filósofo buscar a libertação deste jugo159. Em Filebo, a contenda versa justamente sobre se ―[…] o bem consiste no prazer e no deleite‖160. Há muitos pontos em comum entre este diálogo e o pensamento esposado por Platão na República; parece, todavia, haver aqui um desenvolvimento ulterior do tema. Por 156 PLATÃO, 1965, p.p. 210-211. PLATÃO, 1965, p.215. 158 PLATÃO, 2002a, p. 288. 159 Observemos a seguinte passagem: ―Convencida de que não deve opor-se a semelhante libertação, a alma do verdadeiro filósofo abstém dos prazeres, das paixões e dos temores, tanto quanto possível, certa de que sempre que alguém se alegra em extremo, ou teme, ou deseja, ou sofre, o mal daí resultante não é o que se poderia imaginar, como seria o caso, por exemplo, de adoecer ou vir a arruinar-se por causa das paixões: o maior e o pior dos males é o que não se deixa perceber. Qual é, Sócrates? perguntou Cebes. É que toda alma humana, nos casos de prazer ou de sofrimento intensos, é forçosamente levada a crer que o objeto causador de semelhante emoção é o que há de mais claro e verdadeiro, quando, de fato, não é assim. De regra, trata-se de coisas visíveis, não é isso mesmo? Perfeitamente. E não é quando passa por tudo isso que a alma se encontra mais intimamente presa ao corpo? Como assim? Porque os prazeres e os sofrimentos são como que dotados de um cravo com o qual transfixam a alma e a prendem ao corpo, deixando-a corpórea e levando-o a acreditar que tudo o que o corpo diz é verdadeiro.‖ (PLATÃO, 2002a, p.p.288-289). 160 PLATÃO, 2010, p.1. 157 63 seu estilo e conteúdo, crêem os estudiosos da filosofia platônica que Filebo teria sido um dos um dos diálogos platônicos mais tardios161, sendo também reputado como estando entre os mais complexos. Convém que analisemos ora seu texto de maneira breve para destacar alguns pontos fundamentais. Desde o princípio, Sócrates estabelece que cada um dos contendores se ―[…] esforçará por demonstrar qual é o estado e a disposição da alma capaz de proporcionar vida feliz aos homens‖162, cabendo a Protarco demonstrar que é o prazer e a Sócrates que é a sabedoria. Sócrates traça algumas considerações iniciais sobre o tema e, a partir daí, conduz um longo debate dialético-metafísico acerca de conceitos como o múltiplo e o uno, o finito e o infinito. Embora alguns autores atribuam grande importância este prefácio, achamos por bem nos abstermos de sua análise, uma vez que não se pretende abordar em grande profundidade os pormenores do diálogo163; buscamos propor uma visão geral do pensamento platônico acerca do prazer, pelo que, nos contentaremos em expor alguns poucos pontos ilustrativos com relação direta com o hedonismo. Sócrates, em certo momento, resolve propor uma solução conciliatória à questão da boa vida. Sustenta que tanto prazer quanto sabedoria seriam seus ingredientes essenciais, uma vez que a vida inteira passada no gozo dos maiores prazeres não seria a melhor se faltasse inteligência, memória, conhecimento e opinião verdadeira, pois tal pessoa, assim como uma criatura inferior, sequer teria condições de saber se desfruta ou não de algum prazer 164. Inversamente, Sócrates questiona ―[…] se algum de nós aceitaria viver com sabedoria e inteligência e conhecimento de todas as coisas e a memória de tudo o que acontecera, porém sem participar, nem muito nem pouco, do prazer ou da dor, ou seja, inteiramente insensível a 161 A propósito, veja-se GUTHRIE, 1978. p.197. PLATÃO, 2010, p.1. 163 Para uma análise mais acurada do diálogo, veja-se FREDE, 2006. Também: RUSSEL, 2005 e BENOIT, 2007. 164 Observemos a passagem: ―Sócrates – Mas, para começar, sem inteligência nem memória nem conhecimento nem opinião verdadeira, forçosamente não poderias saber se desfruta ou não de algum prazer, já que serias inteiramente falto de discernimento. Protarco – Sem dúvida. Sócrates – Da mesma forma, desprovido de memória, é claro que não apenas não poderias recordar-te de que havias tido algum prazer, como também passaria sem deixar rastro algum o prazer do momento presente. Outrossim, carecente de opinião verdadeira, nunca poderias dizer que sentias prazer no instante em que o sentisses, e como és carecente de reflexão, não poderias calcular os prazeres que o futuro te ensejasse. Não seria vida de gente, mas de algum pulmão marinho, ou desses animais do mar provido de conchas. Será assim mesmo, ou precisamos fazer do caso idéia diferente?‖ (PLATÃO, 2010, p.9). 162 64 tudo isso.‖165, indicando que a boa vida seria senão ―um misto de prazer com inteligência e discernimento‖166. Passa então Sócrates a relacionar as categorias ontológicas sobre as quais discorrera anteriormente com a dor e o prazer, a inteligência, a sabedoria e o conhecimento. Desenvolve, a seguir, uma classificação de prazeres muito semelhante àquela contida na República: enquanto lá referia-se explicitamente a um vazio doloroso que é preenchido e gera prazer, aqui diz inicialmente que ―[…] quando a harmonia se dissolve em nós outros, seres animados, produz-se ao mesmo tempo dissolução da natureza e geração da dor. […] E que quando se restabelece a harmonia e volta ao seu estado natural, devemos dizer que nasce o prazer‖, estabelecendo, assim, ―a primeira espécie de prazer e dor‖167. Explica: ―A sede, por sua vez, é destruição e dor, e o inverso: é prazer a atuação do úmido no ato de encher o que secou. Do mesmo modo, a desagregação e a dissolução contra a natureza, causadas em nós pelo calor, é sofrimento, como é prazer a volta ao estado natural e ao frescor.‖168. Platão retoma mais tarde, porém, a idéia de que os prazeres da primeira espécie são gerados pelo preenchimento de um anterior vazio. Avança, aduzindo que é possível que o sujeito sofra pelo fato de estar vazio ao mesmo tempo em que se alegra pela esperança de vir a encher-se ou que, sem a esperança de chegar à repleção, sofra então duplamente. Estes prazeres são os mais acessíveis – diz, e quanto mais depravada for a pessoa, mais se entrega a esse tipo de prazer169. Uma segunda espécie de prazer e dor seria ―[…] oriunda da expectativa da alma, sem participação do corpo‖170, em que ―os dois sentimentos surgem puros, […] sem mistura‖171. Mais tarde, porém, diz que mesmo na alma pode ocorrer uma mistura singular de dor e prazer, sendo o caso da ―[…] cólera, temor, desejo, tristezas, amor, emulação, inveja e tudo o mais do mesmo gênero‖172 e também das ―[…] representações trágicas, em que os espectadores choram no maior deleite‖173 e assim ―[…] em mil coisas mais, os prazeres e as dores andam sempre associados.‖174 Assim, os prazeres puros seriam aqueles proporcionados pela beleza das formas: a linha reta, o círculo, e as figuras planas e sólidas, a beleza das cores, da música 165 PLATÃO, 2010, p.9. PLATÃO, 2010, p.9. 167 PLATÃO, 2010, p.19. 168 PLATÃO, 2010, p.19. 169 PLATÃO, 2010, p.37. 170 PLATÃO, 2010, p.20. 171 PLATÃO, 2010, p.20. 172 PLATÃO, 2010, p.37. 173 PLATÃO, 2010, p.37. 174 PLATÃO, 2010, p.40. 166 65 e dos odores e também os prazeres do conhecimento. Distingue, portanto, prazeres decorrentes do suprimento de necessidades, cuja falta enseja dor (os quais denomina prazeres impuros ou mistos), não importando sejam prazeres do corpo ou da alma, de prazeres propiciados por coisas que não estão relacionadas a nenhum sofrimento, sendo prazerosas em si (prazeres puros) e chega à importante conclusão de que ―[…] todo prazer estreme de dor, por menor e mais raro que seja, é mais agradável, belo e verdadeiro do que os frequentes e grandes‖175. Este ponto é fundamental seja enfatizado: Platão estipulará mais tarde que estes prazeres puros são menos intensos, não sendo, portanto, os maiores prazeres, o que não significa que as atividades que os geram sejam menos prazerosas; pelo contrário, haverá sempre mais prazer no gozo dessas atividades, prazeres isentos de dor, que podem tanto decorrer das sensações como do conhecimento. Platão observa que os prazeres mais intensos geralmente decorrem de ―[…] um certo estado de depravação da alma e do corpo‖ e não podem servir de critério para avaliar se alguém tem mais ou menos prazer176. Coloca-se a questão de se há prazeres e dores falsos. O raciocínio de Sócrates se inicia com a afirmação de que a memória ―[…] é como se escrevesse, por assim dizer, discursos na alma‖177 e, após, pintasse ―[…] na alma as imagens das coisas descritas‖178, referindo-se aí ao processo de representação mental das sensações, dizendo que podem ser geradas imagens verdadeiras e falsa, o que é também aplicável à representação dos prazeres, pelo que conclui que ―[…] na alma do homem há prazeres falsos, ridículas imitações dos verdadeiros, o mesmo acontecendo com as dores‖179, sendo possível 175 PLATÃO, 2010, p.42. A seguinte passagem apresenta o raciocínio: ―Sócrates – E então? Os maiores prazeres não são os que decorrem dos mais violentos desejos? Protarco – Isso também é verdade. Sócrates – Mas os doentes de febre ou de incômodos semelhantes não sentem com mais intensidade a sede e o frio e tudo o que os atinge por intermédio do corpo, passando maiores necessidades e, consequentemente, experimentando maior prazer quando conseguem satisfazê-las? Ou diremos que isso não seja verdade? Protarco – Depois de tua exposição, é mais do que evidente. Sócrates – E agora: não será certo dizer-se que se alguém quiser conhecer os prazeres mais intensos não deverá lançar as vistas para a saúde, mas para a doença? Aliás, não irás imaginar que com semelhante pergunta eu defenda a tese de que os doentes graves sentem mais prazer do que as pessoas sãs. O que precisarás entender é que minha pesquisa diz respeito à intensidade do prazer e à sede em que se manifesta em cada um de nós. Importa-nos conhecer sua natureza e decidir o que querem significar os que negam a existência do prazer. Protarco – Acompanho muito bem tua exposição. Sócrates – É o que irás demonstrar, Protarco, agora mesmo. Responde ao seguinte: acaso percebes maiores prazeres – não me refiro ao seu número, mas à vivacidade e à intensidade – no desregramento do que na temperança? Reflete antes de responder. Protarco – Percebo aonde queres chegar e noto que há grande diferença. Os indivíduos moderados a todo instante são contidos pelo aforismo Nada em excesso, a que obedecem integralmente, enquanto os insensatos e os arrogantes se entregam aos prazeres até à loucura e a mais abjeta desmoralização. Sócrates – Ótimo. Mas, se for assim, é mais do que claro que é num certo estado de depravação da alma e do corpo, não na virtude, que vamos encontrar os maiores prazeres e as maiores dores.‖ (PLATÃO, 2010, p.35). 177 PLATÃO, 2010, p.28. 178 PLATÃO, 2010, p.28. 179 PLATÃO, 2010, p.29. 176 66 ―[…] sentir prazer embora fútil, quem se alegra de qualquer modo, mas, por vezes, também a respeito de coisas que não existem que nem nunca existiram‖180. O diálogo retoma a conclusão de que o prazer depende da sabedoria e de que é dessa mistura que resulta a boa vida, desfecho que pode ser representado por esta bela passagem: ―Como escanções, teremos duas fontes a nosso lado: com a doçura do mel pode ser comparada a fonte de prazeres, enquanto a da sabedoria, sóbria e nada inebriante, nos fornece uma água de gosto acre, porém saudável.‖181 Encerra-se, entretanto, com uma ulterior discussão sobre a proporção dos prazeres na mistura e com uma recapitulação final de todos os argumentos apresentados. 2.1.1.3 Aristóteles: a felicidade como excelência. Um contraponto importante ao hedonismo que muito contribui para o entendimento do tema pode ser observado na obra de Aristóteles. Já no Livro I da Ética a Nicômacos, o Filósofo identifica o bem supremo, final, aquilo a que todas as coisas visam, com a felicidade. Diz que ―[…] a escolhemos sempre por si mesma, e nunca por algo a mais‖, sendo assim auto-suficiente182. Começa, a seguir, a investigar o que seja a felicidade. Apresenta as teses mais comuns a propósito: como sinônimo de excelência, de discernimento, de sabedoria, de prazeres ou de riqueza. Toma como correta a primeira hipótese, mas não sem ulterior elaboração: reputa ser ―[…] a felicidade, então, uma certa atividade da alma conforme à excelência perfeita‖183, uma excelência da alma – acrescenta a seguir, passando a investigar a natureza dessa excelência. Identifica duas espécies de excelência: a intelectual e a moral, discorrendo nos livros seguintes sobre ambas. No Livro VII trata das disposições a morais reprováveis, que devem ser evitadas, debatendo sobretudo a incontinência184 e a lassidão185, opondo-as à continência e à 180 PLATÃO, 2010, p.30. PLATÃO, 2010, p.35. 182 ARISTÓTELES, 2001, p. 23 183 ARISTÓTELES, 2001, p. 32. 184 ―[…] a pessoa incontinente, sabendo que age mal, age em decorrência de suas emoções, enquanto a pessoa dotada de continência, se sabe que seus desejos são maus, recusa-se a segui-los graças à razão.‖ (ARISTÓTELES, 2001, p. 130) 185 ―[…] evitar deliberadamente o sofrimento é uma espécie de lassidão […] as pessoas deficientes quanto à resistência às coisas às quais a maioria das pessoas resiste com sucesso são lassas e efeminadas, pois ser 181 67 resistência, disposições morais boas e louváveis. Aborda a concupiscência como forma análoga à incontinência, dizendo que ―[a] pessoa concupiscente cede aos seus desejos por escolha, considerando acertado perseguir sempre o prazer presente‖186. Tendo estabelecido que ―[…] a excelência moral e a deficiência moral se relacionam com o sofrimento e com o prazer‖187, Aristóteles envereda-se na seara destas duas condições do sujeito, ponto mais caro para nossa investigação. Apresenta uma primeira distinção (semelhantemente a Platão) entre prazeres necessários e prazeres dignos de escolha em si : Algumas das coisas que produzem prazer são necessárias, enquanto outras são dignas de escolha em si mesmas, porém admitem excessos; os prazeres do corpo são necessários (entendo por ―prazeres do corpo‖ os inerentes à nutrição e às relações sexuais, ou seja, às funções fisiológicas que definimos como a esfera em que se manifestam a concupiscência e a moderação), enquanto as outras coisas não são necessárias mas são dignas de escolha em si (por exemplo, a vitória, as honrarias, a riqueza e as coisas boas e agradáveis deste gênero).188 A seguir, relacionado ao tema da continência, Aristóteles censura a busca imoderada de prazeres pelas pessoas que perseguem os extremos do prazer. Diz que, independentemente de sua classe, é o próprio excesso que constitui um mal189. Neste sentido, descreve como ―[…] concupiscentes as pessoas que perseguem os extremos das coisas agradáveis, ou perseguem os extremos das coisas necessárias, e o fazem por sua própria escolha.‖190 Sustentará, na sequência do Livro, que ―[…] os processos que restabelecem o nosso estado natural somente por acidente são agradáveis‖191, referindo-se àqueles que anteriormente denominara prazeres necessários, em oposição a ―[…] alguns prazeres que não envolvem sofrimento ou desejo de espécie alguma (por exemplo, os prazeres da contemplação), sendo fruídos sem que haja ocorrido qualquer deficiência em nosso estado natural.‖192, explicando efeminado é também uma espécie de lassidão; tais pessoas deixam seu manto arrastar no chão para evitar a fadiga de levantá-lo, e se comportam como inválidas sem se julgarem infelizes, embora as pessoas que elas imitam sejam infelizes.‖ (ARISTÓTELES, 2001, p. 141). 186 ARISTÓTELES, 2001, p. 132. 187 ARISTÓTELES, 2001, p. 146. 188 ARISTÓTELES, 2001, p. 135. 189 Vejamos: ―Alguns desejos e prazeres pertencem à classe das coisas nobilitantes e boas de um modo geral (algumas coisas agradáveis são dignas de escolha por natureza, enquanto outras são contrárias a estas e outras são neutras, de conformidade com nossa classificação anterior, como por exemplo a riqueza, o proveito, a vitória e as honrarias. Com referência a todos os objetos, tanto desta espécie quanto da neutra, as pessoas não são censuráveis por se deixarem atrair por eles, por desejá-los e amá-los, e sim por os desejarem e amarem de certa maneira, ou seja, excessivamente […].‖ (ARISTÓTELES, 2001, p. 136). 190 ARISTÓTELES, 2001, p. 140. 191 ARISTÓTELES, 2001, p. 147. 192 ARISTÓTELES, 2001, p. 147. 68 então que o ―[…] caráter acidental dos outros prazeres é demonstrado pelo fato de não apreciarmos as mesmas coisas agradáveis, quando nosso estado natural se encontra em sua plenitude […]‖193. Aristóteles identifica esses prazeres necessários, ou ―coisas acidentalmente agradáveis‖ especialmente com os prazeres do corpo. Diz que os prazeres do corpo parecem mais desejáveis justamente porque afastam o sofrimento, produzindo sensações intensas194. Aristóteles, não obstante, vê mesmo os prazeres necessários, decorrentes de atividades que são somente acidentalmente prazerosas, como elemento necessário à vida feliz; em sua falta, a pessoa não será capaz de atingir a excelência, pois tal obstará sua atividade 195. Ressalva, entretanto, que ―a própria boa sorte, quando excessiva, é um óbice à nossa atividade, e talvez já não deva ser chamada de boa sorte, porquanto a boa sorte só pode ser definida em relação à felicidade.‖196 Destaca, assim, mais uma vez ser precisamente o excesso destas atividades prazerosas um mal; e não a fruição delas em si. 197 Por outro lado, o Filósofo parece dar muito valor ao que chama de ―prazeres nobilitantes‖198 – os quais seriam uma espécie do gênero dos prazeres naturais, dignos de escolha em si – destacando aqueles oriundos da contemplação e do estudo199. No Livro X, o último da Ética, o qual serve de transição para a Política, Aristóteles analisa ainda mais a fundo o prazer e o sofrimento, "[…] estas coisas [que] nos acompanham durante todo o curso de nossa vida e [que] têm um grande peso e força em relação à excelência moral e à vida feliz, já que as pessoas desejam o que é agradável e evitam o que traz sofrimento."200, buscando refutar a tese segundo a qual o prazer é o sumo bem, justamente o argumento do hedonismo. Aristóteles aponta Êudoxos, filósofo da escola 193 ARISTÓTELES, 2001, p. 147. ―[…] devemos também explicar por que os prazeres do corpo parecem mais desejáveis. Primeiro, é porque eles afastam o sofrimento (o excesso de sofrimento induz as pessoas a procurarem o excesso de prazer) e de um modo geral os prazeres do corpo são um remédio para o sofrimento. Ora: os agentes curativos produzem sensações intensas - esta é a razão de os buscarmos - porque eles se manifestam em contraste com o sofrimento oposto.‖ (ARISTÓTELES, 2001, p. 150). 195 ―[…] nenhuma atividade é perfeita quando se lhe antepõem obstáculos, e a felicidade é algo perfeito. Esta é a razão de as pessoas felizes necessitarem dos bens do corpo e dos bens exteriores, ou seja, dos bens que a boa sorte nos dá, para que sua atividade não seja obstada pela falta de tais bens. Quem diz que a vítima num aparelho de tortura, ou uma pessoa que se debate em meio aos maiores infortúnios é feliz se for boa, intencionalmente ou não está falando um disparate.‖ (ARISTÓTELES, 2001, p. 149). 196 ARISTÓTELES, 2001, p. 149. 197 A passagem em questão é a seguinte: ―Mas pode haver excesso em relação aos bens do corpo; é a busca deste excesso que torna as pessoas más, e não a busca dos prazeres necessários, pois todos nós gostamos até certo ponto de deleitar-nos com iguarias finas, vinho e prazeres do sexo, embora nem todos nos deleitemos como devíamos.‖ (ARISTÓTELES, 2001, p. 150). 198 ARISTÓTELES, 2001, p. 150. 199 ARISTÓTELES, 2001, p. 148. 200 ARISTÓTELES, 2001, p. 191. 194 69 pitagórica que viveu entre 390 e 340 a.C., como principal defensor a sua época da teoria segundo a qual o prazer é o bem supremo201, apresentando os pilares sobre os quais se apóia tal filosofia, passando a contrapor-lhes alguns argumentos importantes. Sua conclusão de que a felicidade não reside na mera fruição de prazeres202, mas na excelência, já pode ser antevista, mas parece-nos bastante valioso, não obstante, pontuar alguns aspectos que se destacam no raciocínio apresentado pelo Filósofo. Aristóteles volta inicialmente à distinção entre prazeres relacionados à satisfação de carências, que geram sofrimentos, e prazeres que não envolvem sofrimentos203. Defende que o prazer não tem natureza de movimento, opondo-se a Platão neste particular, "[…] pois cada movimento (o de construir, por exemplo), consome tempo e é feito com vistas a um objetivo, e se torna perfeito [somente] quando atinge o seu objetivo."204, enquanto o prazer se mostra desde logo bem acabado, "[…] pois ele não necessita de qualquer coisa superveniente que torne perfeita sua forma."205 Embora associe todo prazer a uma atividade, afirmando que ―[…] a vida e o prazer parecem indissoluvelmente unidos e não admitem separação, já que não há prazer sem atividade e o prazer torna a atividade perfeita.‖206 , deixa transparecer que prazer e atividade não são as mesmas coisas, tratando da sensação e do pensamento relacionados com o prazer como coisas distintas do prazer207. ―Êudoxos pensava que o prazer é o Bem, porque ele via todos os seres, racionais ou irracionais, à sua procura, e porque em todas as coisas aquilo que é desejado é bom, e o que é mais desejado é o melhor; então o fato de todos os seres se moverem em direção ao mesmo objetivo indicaria que este objetivo seria para todos os seres o bem maior (cada ser, dizia ele, descobre seu próprio bem, da mesma forma que descobre seu próprio alimento); e aquilo que é bom para todos os seres, e para que todos os seres tendem, é o Bem.‖ (ARISTÓTELES, 2001, p. 192). 202 ―A felicidade, então, não está no entretenimento; seria realmente estranho se o objetivo final da vida fosse o entretenimento, e se devêssemos esforçar-nos e enfrentar dificuldades durante toda a vida com a finalidade de divertir-nos. […] Pensa-se que a vida feliz é conforme à excelência; então a vida conforme à excelência requer diligência e não consiste em entretenimentos.‖ (ARISTÓTELES, 2001, p. 201). 203 ―[…] quando as pessoas passam por uma carência de alimentos e sofrem antes por isto, elas ficam felizes quando a carência é satisfeita. Mas isto não ocorre com todos os prazeres; o prazer de adquirir conhecimentos e, entre os prazeres dos sentidos, os do olfato, e também muitos prazeres relacionados com a audição e com a visão, e recordações e esperanças, não envolvem sofrimento.‖ (ARISTÓTELES, 2001, p. 194). 204 ARISTÓTELES, 2001, p. 195. 205 ARISTÓTELES, 2001, p. 195. 206 ARISTÓTELES, 2001, p. 197. 207 ―Mas os prazeres relacionados com as atividades lhes são mais inerentes que os desejos, pois os últimos são separados das atividades tanto no tempo quanto por sua natureza, enquanto os primeiros lhes são intimamente ligados, e tão difíceis de distinguir das mesmas que se chega a perguntar se a atividade não é a mesma coisa que o prazer. O prazer, todavia, não parece ser pensamento ou sensação - isto seria estranho; mas como não os encontramos separados, a certas pessoas eles parecem a mesma coisa. Então, da mesma forma que as atividades são diferentes os prazeres inerentes a elas também o são.‖ (ARISTÓTELES, 2001, p. 199). 201 70 A seguir, hierarquiza os prazeres de acordo com a superioridade atribuída à atividade a que cada prazer é inerente208, fazendo sobressaírem-se os prazeres intelectuais209. Vejamos a seguinte passagem a propósito da superioridade da atividade intelectual: […] supomos que a felicidade deve conter um elemento de prazer, e que a atividade conforme à sabedoria filosófica é reconhecidamente a mais agradável das atividades conformes à excelência; seja como for, considera-se que a busca da sabedoria filosófica oferece prazeres de maravilhosa pureza e perenidade, e é de esperar que as pessoas que já conhecem a sabedoria filosófica passem o seu tempo mais agradavelmente que aquelas que ainda se esforçam por alcançá-la.210 Após haver, em síntese, já condenado o excesso e pregado a moderação nos prazeres (quaisquer que sejam), e estabelecido duas classes de prazeres: aqueles decorrentes da cessação de uma dor (principalmente os prazeres do corpo) e aqueles puros, que são consequência de coisas desejáveis em si, Aristóteles aponta o julgamento da ―pessoa boa‖ (moral e intelectualmente excelente) como parâmetro da escala de prazeres, revelador das coisas realmente agradáveis. Não é, portanto, o julgamento das pessoas em geral que determinará se alguma atividade é verdadeiramente prazerosa; só o julgamento da pessoa boa poderá dizê-lo. Seria o virtuoso o verdadeiro juiz dos prazeres. Haveria, assim, para Aristóteles, falsos prazeres, dentre eles os prazeres degradantes, experimentados pelas pessoas más (à semelhança do tirano da República de Platão), em oposição aos prazeres nobilitantes. Vejamos: […] as mesmas coisas não parecem doces a uma pessoa com febre e a outra saudável, nem quentes a uma pessoa fraca e a outra em boas condições de saúde. Ocorre o mesmo em outros casos, mas em todos estes casos considera-se que as coisas são realmente como parecem a uma pessoa boa. Se este raciocínio é correto, como aparenta ser, e a excelência moral e as pessoas boas enquanto boas são a medida de todas as coisas, as coisas que lhes parecem constituir prazeres são prazeres, e as que elas apreciam são agradáveis. Se as coisas que elas consideram desagradáveis parecem agradáveis a outras pessoas, nada há de surpreendente neste fato, pois as pessoas podem corromper-se e deteriorar-se de muitas maneiras; tais coisas não são realmente agradáveis, mas agradáveis somente a pessoas nestas condições. Não se deve obviamente dizer que as coisas manifestamente ―A visão é superior ao tato em pureza, e a audição e o olfato são superiores ao paladar; os respectivos prazeres, portanto, são igualmente superiores, e os prazeres intelectuais são superiores aos dos sentidos, e dentro de cada uma das duas classes os prazeres diferem uns dos outros.‖ (ARISTÓTELES, 2001, p. 199). 209 Tal redundará na afirmação por Aristóteles da superioridade (em termos de felicidade) da vida contemplativa. Diz que ―[…] a atividade dos deuses, que supera todas as outras em bem-aventurança, deve ser contemplativa; conseqüentemente, entre as atividades humanas a que tiver mais afinidades com a atividade de Deus será a que proporciona a maior felicidade.‖ (ARISTÓTELES, 2001, p. 205). 210 ARISTÓTELES, 2001, p. 202. 208 71 aviltantes são prazeres, a não ser para um gosto pervertido; […] e se estas pessoas, que nunca provaram os prazeres puros e convenientes a homens livres, entregam-se aos prazeres do corpo, tais prazeres não devem por esta razão ser considerados desejáveis; com efeito, as crianças também pensam que as coisas que elas consideram mais preciosas para si mesmas são as melhores. […] Portanto, como já dissemos repetidamente, são preciosas e agradáveis as coisas que assim parecem às pessoas boas; e para cada pessoa a atividade conforme à sua própria disposição é mais desejável, e conseqüentemente é mais desejável para as pessoas boas aquilo que é conforme à excelência moral.211 Como consectário ao mesmo tempo da constatação de que as pessoas julgam mal acerca dos prazeres, sendo o julgamento da pessoa boa o único critério confiável para a avaliação do caráter agradável ou desagradável de uma atividade e de que a Cidade e as leis devem se preocupar com a virtude, adiantando já o tema da Política, Aristóteles aponta a necessidade de conformar os cidadãos à boa vida para que sejam bons juízes de suas atividades.212 2.1.1.4 Epicurismo: enfim o prazer como sumo bem. Epicuro é de um período posterior ao dos mais eminentes filósofos gregos. Embora as datas sejam um pouco incertas, Epicuro teria nascido em 341 a.C e falecido em 270 a.C 213, enquanto Platão teria vivido entre 427 e 347 a.C.214 e Aristóteles, entre 384 e 322 a.C.215. Em todo caso, não parece que sua filosofia tenha sido diretamente influenciada por esses pensadores216. Epicuro lecionou em Atenas, onde fundou uma escola que ficaria mais tarde 211 ARISTÓTELES, 2001, p.p. 199-201. A seguinte passagem ilustra este ponto: ―[…] a alma de quem aprende deve primeiro ser cultivada por meio de hábitos que induzam quem aprende a gostar e a desgostar acertadamente, […] de fato, viver moderada e resolutamente não é agradável para a maioria das pessoas, especialmente quando se trata de jovens. Por essa razão sua educação e suas ocupações devem ser reguladas por lei, pois elas não serão penosas se se tiverem tornado habituais. Mas certamente não é bastante que desde jovens as criaturas humanas recebam a educação e os cuidados certos; já que, mesmo quando se tornarem adultas, elas terão de pôr em prática as lições recebidas e de estar habituadas a tais lições, necessitaremos também de leis para disciplinar os adultos e, falando de um modo geral, para cobrir toda a duração da vida, pois as pessoas em sua maioria obedecem mais à compulsão do que às palavras, e mais às punições do que ao sentimento daquilo que é nobilitante.‖ (ARISTÓTELES, 2001, p. 207). 213 Cf. JOYAU, 1985. 214 WILLIAMS, 2000, p. 7. 215 KURY, 2001, p. 7. 216 Diz Laércio que, em toda obra de Epicuro, composta por cerca de trezentos volumes (que não chegaram até nós), não haveria uma citação sequer de outros autores. (LAERTIUS, 1925, p.555) 212 72 conhecida como Jardim de Epicuro217. Muito pouco da obra de Epicuro chegou até nós; limita-se a um pequeno número de textos curtos e não sistemáticos, com destaque para um conjunto de máximas e sua Carta a Meneceu218. O epicurismo, contudo, veio a desenvolverse em um período ainda posterior da Antiguidade, constituindo uma filosofia bastante popular da cultura helenística, ao lado do estoicismo, do ceticismo pirrônico e da escola peripatética (aristotélica)219. Não é, pois, por acaso que as principais fontes que temos dos pontos de vista do epicurismo sejam desta época, como Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres de Diógenes Laércio220, o longo poema Da natureza de Lucrécio221 e Do sumo bem e do sumo mal de Marco Túlio Cícero222. Se não podemos ter uma descrição muito precisa, contentemo-nos com uma visão geral do epicurismo, a qual passaremos a expor brevemente doravante. De acordo com Epicuro, o sumo bem seria o prazer, ―princípio e fim da vida feliz‖223, para que todas as ações tendem. Diz ser ―[…] o primeiro bem, o bem inato, e que dele derivamos toda a escolha ou recusa e chegamos a ele valorizando todo bem com critério do efeito que nos produz.‖224. Segundo o filósofo, haveria dois estados produzidos pelos objetos e apreendidos pelas sensações: o prazer e a dor, sendo um o oposto do outro. Excluí, pois, qualquer outro terceiro estado, tal como o estado neutro entre prazer e dor – que Platão descrevera como uma espécie de repouso. Na verdade, para Epicuro é a ausência de dor que representa um estado de repouso. Este, entretanto, vem a ser também um estado de prazer225. Nas palavras de Epicuro ―A ausência de perturbação e de dor são prazeres estáveis; por seu turno, o gozo e a alegria são prazeres de movimento, pela sua vivacidade.‖226 Não obstante, 217 Vide PESSANHA, 1985, p. 10. Veja-se, a respeito, o Appendix C - The Hedonism of Epicurus em FELDMAN, 2004, p.p.91-107. 219 Diz-se que justamente em razão do domínio das cidades-estado gregas pelo império macedônico é que a ética e o bem viver teve posição central na filosofia da época, sendo a política relegada a segundo plano. 220 Cf. LAERTIUS, 1925. 221 Cf. LUCRÉCIO, 1985. 222 Nesta obra, Cícero trata das principais filosofias do período helenístico, discorrendo em discursos que se contrapõem sobre a questão de qual seria o sumo bem segundo o ponto de vista de epicuristas, estóicos e peripatéticos, introduzindo, ademais, seu parecer eclético a propósito do tema. No Livro Primeiro, o personagem Lúcio Torquato faz uma longa apresentação e defesa da filosofia epicurista. As referências da obra de Cícero que faremos a seguir são próprias desta parte. Cf. CÍCERO, 2005. 223 EPICURO, 1985, p.56. 224 EPICURO, 1985, p.56. 225 É esclarecedora a seguinte passagem de Cícero: ―[…] a própria privação da dor e do desgosto é já um deleite e deve chamar-se assim, da mesma maneira que chamamos dor a tudo o que nos ofende. Quando a fome e a sede desaparecem com a comida e a bebida, a mesma cessação do sofrimento é já um princípio de deleite […]. Por isso não admitiu Epicuro que houvesse meio-termo entre a dor e o deleite. O que a alguns parece meio-termo, ou seja, o carecer de toda e qualquer dor, não só é já deleite, mas deleite sumo. […] Epicuro julga que na privação de toda e qualquer dor reside a suma felicidade, a qual depois pode variar e distinguir-se, mas não aumentar nem ampliar-se.‖ (CÍCERO, 2005, p.17) 226 EPICURO, 1985, p.57 218 73 Epicuro admite que outros prazeres sejam uma espécie de movimento 227. O prazer seria favorável e a dor, contrariamente, hostil ao indivíduo, sendo sua conduta, todas as suas escolhas e todas as aversões, determinada por estes dois estados228. É importante que observemos que a melhor vida na visão do filósofo seria aquela em que a dor está ausente. Epicuro toma, portanto, em alta conta a ausência de dor: será mais importante não padecer do que desfrutar de quaisquer outros prazeres; a vida mais prazerosa é justamente a isenta de sofrimentos229. Vejamos as seguintes máximas de Epicuro: Nem a posse das riquezas nem a abundância das coisas nem a obtenção de cargos ou o poder produzem a felicidade e a bem-aventurança; produzem-na a ausência de dores, a moderação nos afetos e a disposição de espírito que se mantenha nos limites impostos pela natureza.230 A imediata desaparição de uma grande dor é o que produz insuperável alegria: esta é a essência do bem, se o entendemos direito, e depois nos mantemos firmes e não giramos em vão falando do bem.231 Precisa é, também, a descrição do epicurismo feita por Cícero. Observemos: Perguntamos, pois, qual é o bem sumo e mais excelente, o qual, segundo o parecer de todos os filósofos, há de ser tal, que a ele tudo se refira e ele não possa referir-se a nenhuma outra coisa. Epicuro faz consistir o sumo bem no deleite, e o sumo mal na dor, e tenta prová-lo assim: todo e qualquer animal, assim que nasce, apetece o deleite, desfrutando-o como ao bem sumo, e quanto possível afasta de si a dor; e o faz quando não está ainda depravado ou corrompido, sendo a sua própria natureza quem julga íntegra e incorruptamente. E nega por isso Epicuro que seja obra da razão e da inteligência buscar o deleite e fugir da dor. Crê, em verdade, que nada disto propriamente se julga, mas antes se sente, como se sente o calor do fogo, a brancura da neve, a doçura do mel, coisas que jamais se hão de confirmar com razões admiráveis, bastando antes simplesmente enunciá-las.232 É um erro comum ver o epicurismo como uma filosofia que prega a busca imoderada de prazeres – principalmente de prazeres do corpo, como sinônimo de glutonia, embriaguez e 227 Vide LAERTIUS, 1925, p.661. Vide LAERTIUS, 1925, p.565. 229 José Américo Pessanha, em comentários aos textos de Epicuro, assim resume sua filosofia: ―Para Epicuro, o prazer que deve nortear a conduta humana — o prazer com dimensão ética e não apenas natural — é o ‗prazer do repouso‘, constituído pela ataraxia (ausência de perturbação) e pela aponia (ausência de dor). Ambas podem ser alcançadas na medida em que o homem, através do autodomínio, busque a auto-suficiência que o torne um ser que tem em si mesmo sua própria lei, um ser autárquico, capaz de ser feliz e sereno independentemente das circunstâncias.‖ (PESSANHA, 1985, p. 15). 230 EPICURO, 1985, p.p.56-57 231 EPICURO, 1985, p.57. 232 CÍCERO, 2005, p.14. 228 74 lascívia. Nada disso condiz com o que é pregado por Epicuro e seus seguidores233; esta visão teria sido em boa parte plantada por seus adversários234. Epicuro, em verdade, não dá muita atenção aos prazeres físicos, embora valorize a ausência de dores desta natureza. Percebe que na esteira de uma vida luxuriosa, cheia de prazeres, virão maiores sofrimentos e por isso diz: ―Encontro-me cheio de prazer corpóreo quando vivo a pão e água e cuspo sobre os prazeres da luxúria, não por si próprios, mas pelos inconvenientes que os acompanham. […] A quem não basta pouco, nada basta.‖235 A liberdade de sofrimentos do corpo e de perturbações da alma é o que melhor descreve o ideal epicurista da vida comedida236. Laércio relata a opinião de Epicuro a respeito do homem sábio: mesmo na ruína seria feliz; viveria de maneira comedida, não puniria seus servos, não se envolveria na política, não sofreria de paixões, tampouco se casaria ou constituiria família237. É importante notar, contudo, que não se pode dizer que Epicuro sustente haver precedência léxica da ausência de dores sobre outros prazeres; esta preferência pela ausência de dores advém de uma conta em que são sopesados os benefícios hedonísticos envolvidos. Podemos perceber, pois, que o cálculo hedonístico já se encontra presente no pensamento epicurista. Na seguinte passagem, Epicuro diz que […] preferimos muitas dores aos prazeres quando, depois de longamente havermos suportado as dores, gozamos de prazeres maiores. […] cada dor é um mal, mas nem sempre se deve evitá-las. Convém, então, valorizar todas as coisas de acordo com a medida e o critério dos benefícios e dos prejuízos, pois que, segundo as ocasiões, o bem nos produz o mal e, em troca, o mal, o bem.238 E é precisamente por julgar as condutas de acordo com o prazer proporcionado ao fim e ao cabo (i.e., mesmo que a custa de certos sofrimentos), é que o epicurista compreende que prazeres imediatos podem gerar dores futuras, e assim também que há casos em que uma pequena dor presente pode evitar uma maior no futuro ou, de qualquer modo, propiciar então mais prazer. A propósito, Cícero: 233 Sobre as falsas interpretações do epicurismo veja-se QUEVEDO, 1986. LAÉRCIO narra que Diotimus, o estóico, teria atribuído falsamente a Epicuro cinquenta cartas escandalosas. (LAERTIUS, 1925, p.531) 235 EPICURO, 1985, p.59. 236 Vejamos: ―Quando dizemos, então, que o prazer é fim, não queremos referir-nos aos prazeres dos intemperantes ou aos produzidos pela sensualidade, como crêem certos ignorantes, que se encontram em desacordo conosco ou não nos compreendem, mas ao prazer de nos acharmos livres de sofrimentos do corpo e de perturbações da alma.‖ (EPICURO, 1985, p.57). 237 LAERTIUS, 1925, p.645 238 EPICURO, 1985, p.57. 234 75 Ninguém despreza, odeia ou evita o deleite porque seja deleite, mas sim pelas grandes dores que advêm aos que buscam irracionalmente o deleite. Tampouco há ninguém que ame, siga ou queira alcançar a dor pela dor, mas sim porque, às vezes, a poder de trabalho e de dor, se alcança grande deleite. E, falando de coisas menores, quem dentre nós jamais empreendeu algum exercício laborioso do corpo sem esperar obter dele algum benefício? Quem poderá censurar aquele que busque um deleite que não esteja mesclado com nenhum sofrimento, ou aquele que fuja daquela espécie de dor que não engendra nenhum deleite? Nós censuramos e temos por muito dignos de desprezo aqueles que, corrompidos pelo afago do deleite presente e cegos pela cobiça, não vêem as dores e as perturbações que vão padecer - e em tal falta incorrem os que abandonam o seu dever por frouxidão de ânimo, fugindo aos trabalhos e dores. […] Em algumas ocasiões, farão os nossos deveres, ou a necessidade das coisas, com que rejeitemos os deleites e não os sofrimentos. Mas sempre terá o sábio esta regra: se abandona os deleites, será para conseguir outros, maiores; se sofre as dores, será para livrar-se de outras, mais duras. […] Crês que aqueles homens se lançaram a enfrentar inimigos fortemente armados, ou que foram tão cruéis com os filhos, sem pensar nem minimamente na utilidade ou no deleite que lhes podia resultar disso? […] Se tirou o colar do inimigo, foi porque, tendo a possibilidade de vencê-lo, e vencendo-o de fato, se livraria de perecer. […] Esta razão se aplica a todos os casos semelhantes. […] os deleites não se abandonam senão por outro deleite maior; e as dores não se suportam senão pela esperança de livrar-se de outras, também maiores.239 Voltando-nos brevemente para a gnosiologia epicurista, verificamos a partir dos escritos de Laércio que, para Epicuro, nossas sensações e pré-concepções e nossos sentimentos são os critérios da verdade, não havendo nada que possa refutar as sensações ou apontar erros nelas: nem outra sensação – pois o objeto experimentado sempre será outro, tampouco a razão – porque toda razão é totalmente dependente da sensação 240. Mesmo os objetos apreendidos por loucos ou experimentados em sonhos seriam reais, uma vez que eles produziriam sempre efeitos, tais como o movimento da mente. As pré-concepções seriam noções ou ideias universais presentes na mente a partir da reminiscência de um objeto frequentemente apreendido241. Ora, se esta descrição da filosofia epicurista está correta e a sensação é o critério de verdade para Epicuro, a rigor, ele teria de aceitar (ao contrário de Platão e Aristóteles), que não dispomos de parâmetros confiáveis (se não o é a razão) para a crítica das escolhas entre atividades prazerosas (ou bens) feitas por um indivíduo. Não se poderia, assim, falar em falsos 239 CÍCERO, 2005, p.p.15-16. Cf. LAERTIUS, 1925, p.561. 241 Cf. LAERTIUS, 1925, p.563. 240 76 e verdadeiros prazeres. Desse modo, salvo melhor juízo, parece-nos que o esboço de hierarquia de bens apresentado por Epicuro (v.g., mais valer passar sem dores do que uma vida luxuriosa) pode significar senão uma visão particular: seu próprio cálculo hedonístico, tomando em conta os valores relativos que atribuí a cada bem com base em suas próprias impressões. No que diz respeito às virtudes, Epicuro pensava que as escolhemos não por si mesmas, mas em razão do prazer que proporcionam. A virtude fora descrita por Epicuro, ainda, como condição sine qua non do prazer242. Convém notarmos, finalmente, que na seguinte passagem Epicuro parece esboçar a ideia de utilidade como critério da justiça, generalizando seu hedonismo e avaliando a serventia das normas com referência à felicidade geral: ―Das normas prescritas como justas, o que é considerado útil nas necessidades da convivência recíproca tem o caráter do justo, embora no fim não seja igual para todos os casos.‖243 Embora haja uma série de referências à utilidade nas fontes que temos de Epicuro, o fato é que não se pode dizer que se possa identificar no seu pensamento mais do que um embrião do utilitarismo, visto que a preocupação central de sua filosofia aponta para a esfera individual, para o bem viver; e não para o melhor arranjo político ou às melhores leis. No âmbito do indivíduo, a justiça tem o mesmo tratamento dispensado às demais virtudes: ao agir justamente, evitam-se dores244. Por fim, é curiosa uma máxima de Epicuro que parece retratar algo semelhante ao que mais tarde – veremos adiante – viria a ser defendido por Mill, i.e., que, em um estágio avançado da Cf. LAERTIUS, 1925, p.663. Vejamos a seguinte passagem da defesa do epicurismo em Cícero: ―Os que fazem consistir o sumo bem na virtude, […] livrar-se-iam de um grande erro se quisessem escutar Epicuro. Se as vossas ilustres e excelentes virtudes não produzissem o deleite, quem as teria por louváveis ou apetecíveis? Sim, porque, assim como amamos a arte dos médicos não por causa desta própria arte, mas pela saúde; e a arte do piloto não por causa desta arte mesma, mas pela sua utilidade para a navegação; assim a sabedoria, que é uma arte de viver, não seria apetecida se nada produzisse, mas o é, com efeito, porque serve de meio para alcançar o deleite.‖ (CÍCERO, 2005, p.19). Idêntica é a relação entre prazer e temperança: ―Muitos que não podem manterse fiéis ao que se determinaram, vencidos que estão e debilitados por uma sombra de deleite, se entregam ao domínio da lascívia e não prevêem o futuro; e assim, por causa de um deleite pequeno e não necessário, […] são tomados por doenças graves, ou se tornam vítimas de danos e desonras, ou ficam sujeitos às penas do julgamento e das leis. […] Daí se infere que não se deve fugir da intemperança em si mesma, nem se deve apetecer a temperança porque foge do deleite, mas sim porque proporciona outro deleite, maior.‖ (CÍCERO, 2005, p.21) 243 EPICURO, 1985, p.60. 244 Mais uma vez nos servimos do discurso em favor do epicurismo estabelecido por Cícero: ―Assim como a temeridade, a lascívia e a covardia atormentam sempre o espírito, mantendo-o turbulento e apreensivo, assim também a injustiça, se algo maquina ainda que seja ocultamente, não espera que o seu crime permaneça sempre oculto. […] Que deleite pode compensar tantas amarguras como as que a maldade causa à vida, quando contribuir para aumentá-las, primeiro, a própria consciência e, depois, a pena das leis e o ódio dos concidadãos? […] A verdadeira razão, portanto, convida as mentes sãs à justiça, à eqüidade e à boa-fé; e ao homem, fraco e impotente como é, não lhe aproveita a injustiça […] Os desejos que procedem da natureza satisfazem-se facilmente sem injúria a ninguém; e com os desejos que são vãos não se deve condescender, porque nada verdadeiramente apetecível desejam, e porque há mais perda na mesma injustiça que ganho nas coisas que com injustiça se adquirem. E assim ninguém dirá, para falar com propriedade, que a justiça é coisa apetecível em si mesma, mas sim porque causa o deleite de ser amado e querido e,ademais, porque torna a vida mais segura e o deleite mais completo.‖ (CÍCERO, 2005, p.p.22-23) 242 77 civilização, o indivíduo identificaria o seu bem com o bem da coletividade. Eis a passagem: ―O homem que tenha alcançado o fim da espécie humana será honesto mesmo que ninguém se encontre presente.‖245. Infelizmente, contudo, não dispomos de maiores fontes da filosofia epicurista a corroborar esta hipótese. Em conclusão ao ponto, podemos citar trecho da defesa de Epicuro na obra de Cícero que parece resumir o frequente equívoco de que o epicurismo se vê diante, apresentando uma noção mais precisa do que pregam os seguidores da escola: ―Epicuro, de quem dizeis vós que foi tão dado aos deleites clama que não se pode viver agradavelmente se não se vive conforme à sabedoria, honradez e justiça, mas que, vivendo assim, não se pode senão ser feliz.‖246, o que – não nos custa destacar – deve ser tomado à luz do valor que Epicuro dá à vida livre de dores e à utilidade proporcionada pelas virtudes descritas na consecução de seu ideal de vida feliz. 2.1.2 Pressupostos utilitaristas em Bentham e Mill. A obra de Jeremy Bentham é declaradamente o ponto de partida de John Stuart Mill. Isso pode ser constatado inclusive pelas circunstâncias particulares de sua vida247. Já foi sugerida a identificação de outros eminentes filósofos modernos com alguma forma de utilitarismo. Assim se deu com Hume, embora a questão de se seu pensamento pode ser considerado utilitarista seja imensamente controversa248. Mesmo a lei fundamental da razão prática de Kant249 é, por vezes, tida como expressão do utilitarismo250, inclusive pelo próprio Mill251. Autores como Henry Sidgwick e, posteriormente, R. M. Hare e Peter Singer de modo confesso seguiram a escola utilitarista, desenvolvendo o pensamento de Bentham e Mill. Em todo o caso, nem os autores supostamente utilitaristas anteriores a Bentham (cuja adesão ao 245 EPICURO, 1985, p.61. CÍCERO, 2005, p.25. 247 John Stuart Mill teria sido educado por seu pai, James Mill, de forma orientada a seguir os passos de Jeremy Bentham, quem fora seu amigo próximo. (Cf. MILL, 1981) 248 Veja-se, a propósito GLOSSOP, 1976. Também, para uma visão mais ampla da filosofia moral de Hume, TAYLOR, 2009. 249 Diz o imperativo: ―Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa sempre valer ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal‖ (KANT, 2008, p.51). Kant desenvolve as bases de sua filosofia moral ainda na obra Fundamentação da metafísica dos costumes. (KANT, 1964). 250 R. M. Hare propõe-se à tarefa de conciliar utilitarismo com pensamento kantiano (HARE, 1981). Similar é o projeto de T. H. Green (Cf. WEINSTEIN, 2007). Veja-se também DALL‘AGNOL, 2001. 251 MILL, 1985c, p.261. 246 78 utilitarismo é, todavia, duvidosa), nem aqueles posteriores a Mill explicitamente adeptos da tese serão aqui objeto de análise. Tendo já traçado os antecedentes hedonistas do utilitarismo que nos servirão de base para a compreensão do assunto, tomaremos doravante em conta o pensamento de Bentham em cotejo com a versão do utilitarismo de Mill. Circunscreveremos-nos, inicialmente, à apresentação dos fundamentos utilitaristas comuns às obras de Bentham e Mill, cuja correta compreensão é indispensável ao entendimento do pensamento de Mill como um todo para, para, a seguir, analisarmos as diferenças entre o pensamento de um de outro, demonstrando as particularidades do utilitarismo de Mill. Embora Mill compartilhe com Bentham pressupostos como o princípio da utilidade, o hedonismo e a apreciação individual de bens, sua visão menos obtusa da natureza humana no que diz respeito aos bens a serem perseguidos e suas noções de pluralismo e autonomia conduzem a um conceito muitíssimo mais amplo de prazeres. Sem desprezarmos a importância da herança benthamista, podemos afirmar sem receios que são as discordâncias de Mill em relação a Bentham que tornam tão rico seu pensamento (especialmente para nosso propósito). A ramificação do utilitarismo própria de Mill se inicia numa questão que é afeta ainda ao hedonismo: já na valoração dos prazeres para fins de medida individual da felicidade; a introdução do conceito de juízes competentes e de diferenças qualitativas de prazeres será a marca distintiva de sua filosofia utilitarista. A partir desta abordagem proposta – cremos – é que se pode extrair o real significado do utilitarismo liberal de Mill. 2.1.2.1 Bases utilitárias comuns. O que forma o amálgama utilitarista básico é o princípio da utilidade. Podemos vislumbrar, ainda, uma compreensão (senão de todo, pelo menos parcialmente) hedonista da felicidade individual, juntamente com a forma como se levam em consideração os bens perseguidos pelos indivíduos. A descrição do primeiro conceito, o princípio da utilidade, é, afora questões semânticas, precisamente o mesmo para Bentham e Mill; quanto aos demais, por certo há algumas diferenças, as quais não constituem, todavia, o ponto nevrálgico de cisão de seus pensamentos, o qual só virá a se apresentar quando a medida da felicidade – individual e coletiva – for posta como problema. Vejamos. 79 2.1.2.1.1 O princípio da utilidade. Em primeiro lugar, cumpre-nos especificar o que entendem por princípio da utilidade os filósofos cujo pensamento é ora analisado. Segundo o Princípio da Utilidade (ou Princípio da Maior Felicidade), diz Mill, ―[…] ações são corretas na proporção em que elas tendem a promover felicidade; erradas na medida em que tendem a promover o contrário de felicidade.‖252 Não há diferença significativa em relação à definição elaborada por Bentham. Videre licet: Por princípio da utilidade quer-se significar aquele princípio que aprova ou desaprova uma ação de acordo com a tendência que ela pareça ter de aumentar ou diminuir a felicidade da parte cujo interesse está em questão […] não só cada ação de um indivíduo em particular, mas qualquer medida governamental253. O princípio da utilidade, pois, serve como critério da correção ou incorreção das ações, melhor dizendo: como critério da moral. A felicidade é o fim a que todos os indivíduos almejam. Nas palavras de Mill, para a doutrina utilitarista ―[…] a única coisa desejável como fim é a felicidade; todas as demais coisas [v.g., virtude, ausência de vícios] são desejáveis somente enquanto meios para esse fim.‖254 Sintetizando, portanto, os pressupostos da concepção utilitarista, temos que: (1) a felicidade é tudo o que há de ser buscado como fim; (2) o princípio da utilidade é o critério último e único da correção das condutas; e (3) para que esteja de acordo com o princípio, a conduta avaliada deve promover a felicidade. Estas assertivas dão conta do que há de não controverso sobre o tema; não faltam discussões, entre os autores utilitaristas e mesmo entre seus interpretes, v.g., acerca de como se dá a promoção desta felicidade e se a medida de correção é absoluta ou se se admite uma graduação dela. Pertinentemente à compreensão de Tradução nossa. No original: ―[…] Utility, or the Greatest Happiness Principle, holds that actions are right in proportion as they tend to promote happiness, wrong as they tend to produce the reverse of happiness.‖ (MILL, 1985c, p. 262) 253 Tradução nossa. No original: ―By the principle of utility is meant that principle which approves or disapproves of every action whatsoever, according to the tendency it appears to have to augment or diminish the happiness of the party whose interest is in question: not only of every action of a private individual, but of every measure of government‖ (BENTHAM, 1988, p.2) 254 Tradução nossa. No original: ―[…] happiness is desirable, and the only thing desirable, as an end; all other things being only desirable as means to that end.‖ (MILL, 1985c, p.282) 252 80 Mill do princípio da utilidade, não pretendemos deixar estas questões irresolutas nos tópicos que se sucederão. 2.1.2.1.2 A demonstração empírica do princípio. Sustenta Mill que ―[a] única evidência que é possível produzir de que algo é desejável é que as pessoas a desejam de fato.‖255 Na medida em que cada pessoa deseja sua própria felicidade, a felicidade é um bem para ela, sendo a felicidade geral, portanto, um bem para o conjunto de todas as pessoas256. Dale Miller muito propriamente aponta uma passagem do ensaio denominado Bentham em que Mill afirma que a moralidade deve estar relacionada à promoção de algum tipo de fim, do contrário torna-se impossível o uso de argumentos racionais (seria o caso, v.g., das teorias intuitivistas)257. Mill vê, a partir da experiência dos indivíduos tomados separadamente, a felicidade geral como o bem a ser perseguido no agir moral. Mill diz, em suma, (i) que as pessoas geralmente desejam a felicidade; (ii) tomando isso como um fato empírico que evidenciaria258 que a felicidade é o bem supremo para qualquer sujeito individualmente considerado; (iii) concluindo que, para o conjunto de indivíduos, a felicidade geral seria o fim que deve ser perseguido. Semelhantemente, o argumento apresentado por Bentham é o seguinte: […] a comunidade é um corpo fictício, composto por indivíduos que são considerados como se seus membros [literalmente] fossem. O interesse da Tradução nossa. No original: ―The only proof capable of being given that an object is visible, is that people actually see it. The only proof that a sound is audible, is that people hear it: and so of the other sources of our experience. In like manner, I apprehend, the sole evidence it is possible to produce that anything is desirable, is that people do actually desire it.‖ (MILL, 1985c, p.282) 256 Tradução nossa. No original: ―No reason can be given why the general happiness is desirable, except that each person, so far as he believes it to be attainable, desires his own happiness. This, however, being a fact, we have not only all the proof which the case admits of, but all which it is possible to require, that happiness is a good: that each person‘s happiness is a good to that person, and the general happiness, therefore, a good to the aggregate of all persons.‖ (MILL, 1985c, p.282) 257 Cf. MILLER, 2002, p.344. 258 Mas não provaria cabalmente. Miller nos lembra que Mill, já no capítulo primeiro do Utilitarianism, adverte que o princípio da utilidade, a rigor, não pode ser provado – o que não significa, pensamos nós, que não se possa especular acerca de sua correção com base nos dados empíricos disponíveis (MILLER, 2002). 255 81 comunidade, então, o que é? – a soma dos interesses dos diversos membros que a compõem259. Muito já se escreveu sobre a esta tão controversa questão da prova do princípio da utilidade apresentada por Mill. O argumento, já foi alvo de inúmeras críticas260, mas tem também seus defensores261. Nosso propósito precípuo aqui não é o de defender com todo o rigor a doutrina moral utilitarista, mas, antes, de analisar certas consequências (especialmente para fins de justificação de direitos culturais) do utilitarismo de Mill, quando bem compreendido. Por tal razão, não entendemos que seja necessário aprofundarmo-nos em um ponto específico sobre o fundamento do princípio da utilidade. Neste momento, cremos que basta que se tenha em mente que o princípio da utilidade é o primeiro axioma do pensamento moral tanto de Bentham quanto de Mill. 2.1.2.1.3 A adoção do hedonismo. Importa sabermos ora, não obstante, o que é exatamente a felicidade para os autores utilitaristas. A resposta dada parece muito simples: nada mais do que a presença de prazer e a ausência de dor. Tanto Mill quanto Bentham, pois, poderiam ser considerados, prima facie, Tradução nossa. No original: ―The community is a fictitious body, composed of the individual persons who are considered as constituting as it were its members. The interest of the community then is, what is it?—the sum of the interests of the several members who compose it.‖(BENTHAM, 1988, p.3) 260 A mais notória delas, a de G.E. Moore em Principia Ethica, em que o autor acusa tanto Bentham (p. 69 et seq.) quanto Mill (p. 116 et seq.) de incidirem na falácia naturalista. É dizer: do fato de que alguém deseja algo não se seguiria que isso é o que se deve desejar, ou seja, que é desejável nesse sentido, mas somente que é capaz de ser desejado. Uma conclusão normativa ou prescritiva sobre o que deve ser o caso não pode ser extraída da premissa factual ou descritiva do que é o caso, simplesmente porque as coisa não são sempre como deveriam ser. (Cf. MOORE, 2000). Veja-se, a propósito, também MILLER, 2002, p.344. Além disso, alega-se que estaria incorrendo na falácia da composição ao afirmar que dado que a felicidade de cada um é um bem para cada pessoa, a felicidade geral é um bem para o agregado de todas as pessoas (a humanidade), eis que do fato de que todo componente tem uma determinada propriedade (v.g., seja pequeno) não se segue que o objeto como um todo tenha esta mesma propriedade. 261 Veja-se, a propósito, SAYRE-MCCORD, 2001. Também: WEST, 2006. 259 82 adeptos do hedonismo262. Assim Mill: ―Por felicidade quer-se dizer prazer e a ausência de dor; por infelicidade, dor e a privação de prazer.‖263 Bentham fornece, já no primeiro parágrafo de Introduction to the principles of morals and legislation, o panorama completo de sua compreensão da relação entre prazer e dor e ação humana: A natureza pôs a humanidade sob o governo de dois mestres soberanos: dor e prazer. Cabe somente a eles indicar o que deveríamos fazer, assim como determinar o que faremos. De um lado, critérios de certo e errado, de outro, a cadeia de causas e efeitos estão presos a seus tronos. Eles nos governam em tudo o que fazemos, em tudo o que dizemos, em tudo o que pensamos […].264 Adiante, apresenta um conceito de prazer como equivalente a felicidade: Por utilidade quer-se dizer aquela propriedade presente em qualquer objeto por meio do qual esse tenda a produzir benefício, vantagem, prazer, bem ou felicidade (todos esses, no presente caso, vindo a ser a mesma coisa) ou (o que também é a mesma coisa) evitar a ocorrência de dano, dor, mal ou infelicidade para a parte cujos interesses está sendo considerado: se a parte é a comunidade em geral, então a felicidade da comunidade; se um indivíduo em particular, então a felicidade desse indivíduo.265 Observamos, assim, que tanto Bentham quanto Mill identificam felicidade com a vida prazerosa, sendo a dor a fonte de toda a infelicidade. Entretanto, a partir deste ponto os dois autores deixam de convergir; dão, então, respostas diferentes para a pergunta de como se medem os prazeres e as dores para fins do cálculo utilitário. Como será visto, no cálculo individual, para Bentham todos os prazeres têm, a princípio, o mesmo valor, variando sua estima somente com base em circunstâncias acidentais, tais como tempo de duração e intensidade; em Mill, os prazeres diferem qualitativamente, o valor de um é sempre apreciado relativamente ao de outro, sendo propriamente capaz de aferi-los o indivíduo que haja 262 Muitos autores veem Mill não como um hedonista, mas como um perfeccionista (Martha Nussbaum, v.g.); a maioria da doutrina, porém, o toma simplesmente como um hedonista qualitativo. A questão será abordada em pormenor a seguir. 263 Tradução nossa. No original: “By happiness is intended pleasure, and the absence of pain; by unhappiness, pain, and the privation of pleasure.‖ (MILL, 1985c, p.262) 264 Tradução nossa. No original: ―Nature has placed mankind under the governance of two sovereign masters, pain and pleasure. It is for them alone to point out what we ought to do, as well as to determine what we shall do. On the one hand the standard of right and wrong, on the other the chain of causes and effects, are fastened to their throne. They govern us in all we do, in all we say, in all we think: […]‖(BENTHAM, 1988, p. 1) 265 Tradução nossa. No original: ―By utility is meant that property in any object, whereby it tends to produce benefit, advantage, pleasure, good, or happiness, (all this in the present case comes to the same thing) or (what comes again to the same thing) to prevent the happening of mischief, pain, evil, or unhappiness to the party whose interest is considered: if that party be the community in general, then the happiness of the community: if a particular individual, then the happiness of that individual.‖ (BENTHAM, 1988, p. 2) 83 experimentado ambos. Do mesmo modo, para a questão do cálculo coletivo, i.e., para o cálculo da felicidade geral, critério da correção moral para a filosofia utilitarista, Bentham apresenta uma fórmula muito simples: grosso modo, algo como somar os prazeres, subtrair as dores e multiplicar pelo número de pessoas envolvidas, enquanto Mill não fornece, desde logo, uma resposta clara para a questão, razão pela qual investigaremos a fundo na busca de uma resposta satisfatória, que imaginamos esteja ligada a seu utilitarismo de regras. Vejamos, a seguir, onde o hedonismo de Mill e de Bentham se tocam e em que momento se apartam. 2.1.2.1.4 A apreciação subjetiva de bens. Embora Mill não desenvolva explicitamente uma concepção metafísica abrangente do ser humano, são perceptíveis os traços individualistas que permeiam inúmeros raciocínios desenvolvidos em sua obra no que tange a deveres, liberdade, direitos, utilidade et cetera. Pretendemos aclarar especificamente o ponto relativo a tal perspectiva individualista aplicada à ideia de preferências, o que entrará mais tarde na conta de seu utilitarismo liberal. O mesmo se pode dizer de Bentham (e em seu pensamento esta questão parece ficar ainda mais evidente): a unidade básica a quem a felicidade está dirigida, e que servirá como critério para a aferição da utilidade, é o indivíduo. Todo o prazer ou dor considerados no cálculo hedonístico benthamista se dirigem tão somente ao indivíduo; a coletividade entra em questão somente como soma de indivíduos capazes de apreciar prazeres e sofrer dores. Entenda-se bem, o individualismo que estamos a tratar não está de nenhuma maneira relacionado à ideia de egoísmo, sobretudo em Mill; muito pelo contrário: Mill vê a felicidade do indivíduo vinculado à ideia de bem da comunidade. Sob influência de Auguste Comte, entende Mill que ―[a] condição social é ao mesmo tempo tão natural, tão necessária e tão habitual para o homem, que, a não ser por um exercício de abstração, não se pode concebê-lo exceto como membro de um corpo maior.‖266, de modo que, em um estágio avançado da Tradução nossa. No original: ―The social state is at once so natural, so necessary, and so habitual to man, that, except in some unusual circumstances or by an effort of voluntary abstraction, he never conceives himself otherwise than as a member of a body; and this association is riveted more and more, as mankind are further removed from the state of savage independence. Any condition, therefore, which is essential to a state of society, becomes more and more an inseparable part of every person‘s conception of the state of things which he is born into, and which is the destiny of a human being.‖ (MILL, 1985c, p.265.) 266 84 civilização, a tendência seria a de que o indivíduo se identificasse com todos os demais e percebesse que o bem da comunidade é um bem para si próprio267. É importante que analisemos, desde logo, esta forma de conceber os bens para que possamos compreender corretamente como se dará, mais tarde, no pensar dos autores, o cálculo hedonístico, cujo propósito é a identificação da vida mais agradável – e, portanto, mais feliz. O ponto de vista utilitário-individualista concebe subjetivamente bens e direitos, voltando-se, em um primeiro momento, à satisfação dos interesses do indivíduo na busca da felicidade, sendo o bem da comunidade meramente acidental nesta medida. Interesses sociais somente são concebidos se individualmente considerados, entrando em questão na medida em que reflitam interesses individuais. Será, entretanto, ao final, o atendimento dos interesses da soma de todos os indivíduos, no maior grau possível, o critério da moralidade. Segundo tal concepção, tudo o que há de valioso, como meio para o fim último (a felicidade), é assim porque é apreciado por um indivíduo. E esses bens nada mais são do que as atividades ou objetos que gerem prazer ou evitem dor. Não se pode, portanto, conceber um bem sem que haja um indivíduo para apreciá-lo. Como dito, por bens quer-se referir a tudo aquilo que tem valor para o indivíduo, havendo, ainda, de um lado oposto, os bens negativos: tudo aquilo que traz desvalor ao indivíduo e, assim, lhe é considerado um mal. Com efeito, devemos ter em mente, em primeiro lugar, que, na construção de um sistema utilitarista, a ideia de bem se dirige ao indivíduo e só a ele. Esta perspectiva subjetiva da apreciação de bens, em Mill, tem relação ainda com a compreensão de que são as preferências de cada indivíduo, tomadas com conhecimento de causa, que determinam o valor de cada bem, tendo influência, portanto, no proveito final derivado da conduta. Em Bentham, por outro lado, a questão das preferências individuais não parece ter qualquer relevância, uma vez que, a todo prazer, Bentham atribuí um mesmo valor padronizado. Bentham assume que a apreciação referida será igual qualquer que seja o indivíduo; o valor de uma atividade será, em si, sempre o mesmo, qualquer que seja a fonte do prazer ou seu destinatário. Mill, entretanto, critica a assunção de Bentham de que ―[…] a humanidade é idêntica em qualquer tempo e lugar, que todos querem as mesmas coisas e ―In an improving state of the human mind, the influences are constantly on the increase, which tend to generate in each individual a feeling of unity with all the rest; which feeling, if perfect, would make him never think of, or desire, any beneficial condition for himself, in the benefits of which they are not included.‖ (MILL, 1985c, p.p.266-267). 267 85 estão expostas aos mesmos males […].‖268 Em Mill, os bens terão valores diferentes, cabendo normalmente ao indivíduo avaliá-los. Em regra geral, quem atribui valor a cada um dos bens é o próprio indivíduo quando os aprecia: são suas preferências que determinarão os valores precisos a serem considerados. Veremos, contudo, que há casos em que, por não conhecer os bens avaliados, o indivíduo não poderá estabelecer um correto juízo acerca deles. Portanto, embora parta dessa perspectiva individualista do homem como juiz de seu próprio bem, Mill entende que é o homem que conhece o bem avaliado é que é capaz de julgar propriamente, determinando seu exato valor. 2.1.2.2 A crítica de Mill à doutrina benthamista. Até certo ponto de sua vida, por influência de seu pai, James Mill, John Stuart Mill fora um profundo admirador de Bentham e adepto do movimento político do ―radicalismo filosófico‖, tendo inclusive fundado a Sociedade Utilitária com o objetivo de estudar e discutir os escritos benthamistas. Mill assim descreveu em sua Autobiografia sua pretérita disposição quanto à filosofia utilitarista de Bentham: O ―princípio da utilidade‖, entendido como Bentham o entendia, e aplicado da maneira como ele aplicara em seus três volumes, servia exatamente em seu local como a pedra de toque que mantém juntas as partes destacadas e fragmentárias de meus conhecimentos e crenças. Ele deu unidade às minhas concepções. Eu agora tinha opiniões; um credo, uma doutrina, uma filosofia: em um dentre os melhores sentidos da palavra, uma religião; a inculcação e difusão da qual poderia ser o principal propósito visível de uma vida.269 Embora Mill jamais tenha abandonado o utilitarismo, após um período que descreveu em sua Autobiografia como crise mental – quando, ainda muito jovem, viu-se em um estado de profunda depressão – desenvolveu uma visão muito mais abrangente do que a de Bentham acerca dos bens, como corolário de sua melhor compreensão da natureza humana. Com a Tradução nossa. No original: ―[…] that mankind are alike in all times and all places, that they have the same wants and are exposed to the same evils […]‖(MILL, 1985b, p.121) 269 Tradução nossa. No original: ―The ‗principle of utility‘ understood as Bentham understood it, and applied in the manner in which he applied it through these three volumes, fell exactly into its place as the keystone which held together the detached and fragmentary component parts of my knowledge and beliefs. It gave unity to my conceptions of things. I now had opinions; a creed, a doctrine, a philosophy: in one among the best senses of the word, a religion; the inculcation and diffusion of which could be made the principal outward purpose of a life.‖ (MILL, 1981, p.69) 268 86 crise, passou a questionar muitos dos fundamentos da então doutrina utilitarista. Sob influência do romantismo alemão, do san-simonismo e do pensamento de Auguste Comte, além da poesia principalmente de Coleridge270 e Wordsworth, mergulhou mais fundo nos anseios, desejos e possibilidades do homem e desenvolveu toda uma nova compreensão das coisas que lhe geram prazer271. Assim relata: As experiências desse período tiveram dois efeitos marcantes em minhas opiniões e no meu caráter. Em primeiro lugar, elas me levaram a adotar uma nova teoria da vida, muito distinta daquela que tivera […]. A outra importante mudança pela qual minhas opiniões passaram à época foi que eu, pela primeira vez, dei lugar apropriado, dentre as primeiras necessidades do bem-estar humano, para a cultura interna do indivíduo. […] A manutenção de um equilíbrio adequado entre as faculdades, agora parecia ser de fundamental importância para mim. O cultivo dos sentimentos tornou-se um dos pontos cardeais de minhas convicções éticas e filosóficas. E meus pensamentos e inclinações se voltaram cada vez mais para tudo o que poderia servir de instrumento para atingir este objetivo. Eu agora começava a ver sentido em coisas que eu lera e ouvira a propósito da importância da poesia e das artes como instrumentos do desenvolvimento humano.272 Ressalta Mill que esta nova compreensão, não limita sua percepção da realidade; pelo contrário: descreve de forma mais precisa a complexidade do mundo. Diz: ―[o]s sentimentos mais intensos da beleza de uma nuvem iluminada pelo sol poente não é obstáculo para meu conhecimento de que a nuvem é vapor de água, sujeita a todas as leis dos vapores em estado de suspensão […]‖273. A partir desta mudança de paradigmas, adveio uma profunda transformação na maneira com que o utilitarismo passou a ser concebido. A propósito, diz Gerald Postema: A visão de Bentham de uma utopia humana repentinamente pareceu-lhe vazia e sem vida, uma condição pouco humana. Isso lhe inspirou uma espécie de repugnância. A ―crise‖ de Mill por certo teve complexas causas psicológicas, mas ele a experimentou como uma profunda crise de fé, a 270 A respeito da influência de Coleridge, vide WILSON, 2010. Cf. MILL, 1981, p.p.137-192. 272 Tradução nossa. No original: ―The experiences of this period had two very marked effects on my opinions and character. In the first place, they led me to adopt a theory of life, very unlike that on which I had before acted, […]The other important change which my opinions at this time underwent, was that I, for the first time, gave its proper place, among the prime necessities of human well-being, to the internal culture of the individual. […]The maintenance of a due balance among the faculties, now seemed to me of primary importance. The cultivation of the feelings became one of the cardinal points in my ethical and philosophical creed. And my thoughts and inclinations turned in an increasing degree towards whatever seemed capable of being instrumental to that object. I now began to find meaning in the things which I had read or heard about the importance of poetry and art as instruments of human culture.‖ (MILL, 1981, p.p.145-147) 273 Tradução nossa. No original: ―The intensest feeling of the beauty of a cloud lighted by the setting sun, is no hindrance to my knowing that the cloud is vapour of water, subject to all the laws of vapours in a state of suspension‖ (MILL, 1981, p.157) 271 87 perda dos próprios arrimos que haviam dado estrutura e propósito a sua vida. Afinal, Mill emergiu de sua depressão com seu compromisso com o projeto utilitarista intacto, mas sua compreensão desse projeto havia sido súbita, porém substancialmente, alterada. Mill não foi um mero discípulo de Bentham. A bandeira utilitarista que ele carregou através da segunda metade do século dezenove não foi uma estritamente benthamista […]274 Wendy Donner, outrossim, destaca o desenvolvimento do utilitarismo próprio de Mill, dizendo que: ―[e]mbora John Stuart Mill tenha sido cuidadosamente educado e preparado por seu pai para transmitir e portar a tocha do utilitarismo benthamista, ele, ao invés disso, transformou-o radicalmente.‖275 Vejamos como se deu esta transformação. 2.1.2.2.1 A visão restrita de Bentham quanto ao valor dos bens. Mill, já no artigo denominado Remarks on Bentham’s Philosophy, criticava o emprego por Bentham da expressão interesse como motivo da ação, sustentando, de sua parte, que ―[s]eria mais correto dizer que a conduta é por vezes determinada por um interesse, ou seja, por um objetivo consciente e deliberado; outras vezes, por um impulso, isto é, por um sentimento […]‖276, embora Mill não deixe de supor que, em ambos os casos, o que esteja por trás desse impulso ou interesse seja um prazer, imediato ou antevisto. Assim, o indivíduo escolheria não só por interesses (prazeres futuros), mas também por impulsos (prazeres contemporâneos). Com efeito, ao passo que, como já dissemos, Mill considera ―[…] que prazer e ausência de dor são as únicas coisas desejáveis como fins […]‖, sendo que ―[…] todas as Tradução nossa. No original: ―Bentham‘s vision of a human utopia suddenly appeared to him empty and lifeless, a condition barely human. It inspired nothing but a kind of loathing. Mill‘s ‗crisis‘ surely had complex psychological causes, but he experienced it as a deep crisis of faith, the loosening of the very moorings that had given his life structure and purpose. Eventually Mill emerged from this depression with his commitment to the utilitarian project intact, but his understanding of it had subtly yet substantially changed. Mill was no mere disciple of Bentham. The utilitarian banner he carried into the second half of the nineteenth century was not a strictly Benthamite one […]‖ (POSTEMA, 2006, p. 27) 275 Tradução nossa. No original: ―Although John Stuart Mill was carefully educated and prepared by his father to be the transmitter and the torch bearer of Benthamite utilitarianism, he instead radically transformed it.‖ (DONNER, 1998, p. 255) 276 Tradução nossa. No original: ―It would be more correct to say that conduct is sometimes determined by an interest, that is, by a deliberate and conscious aim; and sometimes by an impulse, that is, by a feeling […]‖ (MILL, 1985b, p.118.) 274 88 coisas desejáveis (as quais são tão numerosas no modelo utilitário quanto em qualquer outro) assim o são ou pelo prazer inerente nelas mesmas ou como meios para a promoção do prazer e prevenção da dor.‖277, ao mesmo tempo, adota uma visão bastante ampla daquilo que causa prazer ao indivíduo, cuja perseguição é causa imediata da ação. Mill crê que a gama de motivos imediatos de uma conduta é muito mais ampla do que a pensada por Bentham. Assim diz: Na sua lista de motivos, embora inclua simpatia, ele omite a consciência e o sentimento de dever: com base nele [Bentham], ninguém poderia afirmar que qualquer ser humano tenha praticado uma ação simplesmente porque a considerara correta, ou tenha se omitido pois a reputara errada278. Em nenhum momento Mill ataca o caráter hedonista de Bentham, com o que de todo concorda; insurge-se contra o que abrangem os prazeres – os motivos dos atos. Vê o ser humano como ser complexo: sendo os motivos equivalentes aos prazeres, são muito distintos os prazeres que conduzem os homens à conduta. Pensa que Bentham adota uma visão por demais obtusa da natureza humana, o que atribui a uma deficiência no seu desenvolvimento pessoal. Eis a crítica que Mill lhe dirige no ensaio denominado Bentham: Sua segunda [desqualificação como filósofo], foi a incompletude de sua mente enquanto representante da natureza humana universal. Por muitos dos mais naturais e intensos sentimentos da natureza humana ele não teve qualquer simpatia; esteve completamente alheio a muitas das mais importantes experiências dela; e a faculdade pela qual a mente de alguém compreende a mente do outro foi-lhe negada por sua falta de imaginação279. Mill vê nesta deficiência referida, a causa da limitação do elenco de motivos da ação expressado por Bentham em seu Table of Springs of Action (Catálogo das Fontes da Ação), criticando-a nestes termos: Tradução nossa. No original: ―[…] that pleasure, and freedom from pain, are the only things desirable as ends; and that all desirable things (which are as numerous in the utilitarian as in any other scheme) are desirable either for the pleasure inherent in themselves, or as means to the promotion of pleasure and the prevention of pain.‖ (MILL, 1985c, p.262.) 278 Tradução nossa. No original: ―In his list of motives, though he includes sympathy, he omits conscience, or the feeling of duty: one would never imagine from reading him that any human being ever did an act merely because it is right, or abstained from it merely because it is wrong.‖ (MILL, 1985b, p.118.) 279 Tradução nossa. No original: ―His second, was the incompleteness of his own mind as a representative of universal human nature. In many of the most natural and strongest feelings of human nature he had no sympathy; from many of its graver experiences he was altogether cut off; and the faculty by which one mind understands a mind different from itself, and throws itself into the feelings of that other mind, was denied him by his deficiency of Imagination.‖ (MILL, 1985a, p.175) 277 89 O homem nunca é por ele reconhecido como um ser capaz de perseguir perfeição espiritual como fim; de desejar, por si mesmo, a conformidade de seu caráter a seus padrões de excelência, independentemente de sua expectativa de bem ou temor de mal, decorrente de outra fonte que não seja sua consciência interior. Mesmo na forma mais limitada da Consciência, este grande fato da natureza humana lhe escapa. […] O senso de honra e de dignidade pessoal – este sentimento de exaltação e degradação pessoal que age independentemente da opinião de outras pessoas e que até mesmo as desafiam; o amor à beleza, a paixão do artista; o amor à ordem, à congruência, à coerência em todas as coisas, e a conformidade à sua finalidade; o amor ao poder, não no sentido restrito de poder sobre outros seres humanos, mas poder em abstrato, um poder de tornar efetivas nossas vontades; o amor à ação, a sede de movimento e de atividade, um princípio raramente menos influente do que seu oposto, o amor ao repouso: a nenhum desses poderosos elementos da natureza humana mereceram um lugar dentre as ―Fontes da Ação‖. […] O homem, o mais complexo dos seres, é a mais simples das criaturas sob seus olhos.280 Os conceitos de prazer e dor adotados por Mill são bastante amplos, não se referem exclusivamente àquelas sensações imediatas. Não só o suprimento dos desejos mais básicos, o engajamento em atividades lúdicas, a gastronomia, a música, mas também bens menos concretos como a ideia de viver de acordo com seus preceitos morais e de atingir suas potencialidades podem ser (e geralmente são), para o indivíduo, fonte de prazer. Não é à toa que alguém se diz feliz ao ver que constituiu com sucesso uma família e criou seus filhos, por ter ajudado um amigo ou por ter escrito uma tese importante. Não se pode dizer que tal não lhe gere prazer, ainda que por associação (conceito que abordaremos adiante). É provável que a pessoa em questão tenha aberto mão de uma série de outros prazeres menores para concretizar estes feitos, mas tal certamente se deu, ao fim e ao cabo, senão pelo prazer que esperava gozar com o atingimento dessas metas, pela dor que evitava ao não descumprir as obrigações a que se reputava vinculado. Tradução nossa. No original: ―Man is never recognised by him as a being capable of pursuing spiritual perfection as an end; of desiring, for its own sake, the conformity of his own character to his standard of excellence, without hope of good or fear of evil from other source than his own inward consciousness. Even in the more limited form of Conscience, this great fact in human nature escapes him. […] The sense of honour, and personal dignity—that feeling of personal exaltation and degradation which acts independently of other people‘s opinion, or even in defiance of it; the love of beauty, the passion of the artist; the love of order, of congruity, of consistency in all things, and conformity to their end; the love of power, not in the limited form of power over other human beings, but abstract power, the power of making our volitions effectual; the love of action, the thirst for movement and activity, a principle scarcely of less influence in human life than its opposite, the love of ease:—None of these powerful constituents of human nature are thought worthy of a place among the ‗Springs of Action‘; […]. Man, that most complex being, is a very simple one in his eyes.‖ (MILL, 1985a, p.178.) 280 90 2.1.2.2.2 O homo economicus de Bentham . Mill acusa Bentham, ainda, de limitar sua teoria dos prazeres a bens mensuráveis em termos financeiros. Afirma que ―[e]le cometeu o erro de supor que a parte econômica das relações humanas era o todo; tudo a que o legislador e o filósofo moral têm de se ater.‖281 Parece-nos que essa acepção limitativa dos bens humanos implicaria na redução da esfera da moral e do direito, transformando-os em uma forma de economia política. Mill nitidamente despreza esta possibilidade: como visto, a gama de interesses, ou melhor, de bens envolvidos na felicidade humana, é muitíssimo mais ampla do que aqueles com os quais se preocupam os economistas. Em sua obra Princípios de economia política, a par de analisar os institutos envolvidos, Mill ensaia a aplicação de seu utilitarismo à esfera econômica, elaborando então sua teoria do valor. Não obstante, adverte que está a tratar especificamente da riqueza, de bens que possuem valor de troca, financeiramente mensuráveis, e não de tudo aquilo que é valioso para o indivíduo em sua busca da felicidade. Vejamos: Não há perigo algum de se confundirem as pesquisas relativas a ela [a riqueza] com as referentes a qualquer outro dos grandes interesses humanos. Todos sabem que uma coisa é ser rico, outra é ser esclarecido, valente ou humano; todos sabem que as questões sobre como uma nação se torna rica, ou como se torna livre, ou valorosa, ou virtuosa, ou eminente na literatura, nas belas artes, nas armas ou na política são objeto de investigações totalmente diferentes.282 […] Assim, a riqueza pode ser definida como sendo todas as coisas úteis ou agradáveis que possuem valor de troca; […].283 Eis porque, parece-nos, foi o pensamento de Bentham – e não o utilitarismo em geral, tampouco o utilitarismo-liberal de Mill – que veio mais tarde a influenciar a contemporânea análise econômica do direito. Ao contrário do que se poderia supor, seria um erro concluir que tal perspectiva decorreria de um desenvolvimento do utilitarismo de Mill. Mill dá à expressão utilidade um sentido bastante distinto daquele em que é empregado em economia e que viria a Tradução nossa. No original: ―He committed the mistake of supposing that the business part of human affairs was the whole of them; all at least that the legislator and the moralist had to do with.‖ (MILL, 1985a, p.178.) 282 MILL, 1996, p.57. 283 MILL, 1996, p.64. 281 91 servir à análise econômica284. Mesmo no artigo seminal desta escola, The problem of social cost, Ronald Coase de alguma forma já apontava a limitação da abordagem econômica: Neste artigo, a análise foi confinada, como é comum nesta parte da economia, à comparação do valor de produção, medido pelo mercado. Mas, por óbvio, seria desejável que a escolha entre diferentes arranjos sociais para a solução de problemas econômicos fosse conduzida em termos mais amplos e que o efeito total desses arranjos em todas as esferas da vida fossem levados em conta285 O utilitarismo de Mill, portanto, sem desconsiderar os aspectos mensuráveis relacionados à felicidade, leva em conta a complexidade do ser humano, suas necessidades e desejos na busca do bem supremo. É pelo fato de Mill ter uma concepção ampla da natureza humana, em oposição à visão restrita de Bentham, reconhecendo que há uma série de bens imateriais que são de extrema importância para o indivíduo, que podemos falar em bens culturais, os quais deveriam entrar no cálculo utilitário. Voltaremos a este assunto mais tarde. Antes, devemos nos ater às demais características que apartam Mill e Bentham. 2.1.2.2.3 Egoísmo, altruísmo e auto-interesse. Uma terceira divergência de Mill em relação ao pensamento de Bentham – decorrente, sem dúvida, da primeira, i.e., de sua visão limitada da natureza humana – diz respeito à premissa benthamista do indivíduo egoísta racional. Mill aponta que no uso comum da linguagem "interesses" geralmente são considerados interesses próprios, egoísticos; no entanto, nega que o homem, na busca de seus interesses, necessariamente se comporte dessa forma. Diz que ―[h]á, e já houve, muitos seres humanos para os quais patriotismo ou benevolência têm sido firmes princípios da ação, superiores […] a quaisquer possíveis tentações de interesses pessoais.‖286. O interesse (fundado mediatamente na busca do prazer e 284 Para a ideia de utilidade, concebida para fins da análise econômica, vide POSNER, 2000, p.p.19-25. Tradução nossa. No original: ―In this article, the analysis has been confined, as is usual in this part of economics, to comparisons of the value of production, as measured by the market. But it is, of course, desirable that the choice between different social arrangements for the solution of economic problems should be carried out in broader terms than this and that the total effect of these arrangements in all spheres of life should be taken into account.‖ (COASE, 1960, p.43) 286 Tradução nossa. No original: ―There are, there have been, many human beings, in whom the motives of patriotism or of benevolence have been permanent steady principles of action, superior […] to any possible, temptations of personal interest.‖ (MILL, 1985b, p.120) 285 92 no desvio da dor) que conduz o indivíduo à ação não seria, pois, segundo Mill, auto-interesse como sinônimo de interesse egoístico, eis que a própria disposição altruística poderia se identificar com o interesse individual. Mill vê, assim, como maior erro de Bentham acerca da natureza humana, sua suposição de que ―[…] os seres humanos são movidos por apenas uma parte dos incentivos que realmente os estimulam; mas mesmo em relação a essa parte, imagina que eles sejam muito mais frios e calculistas do que eles realmente são.‖287 2.1.2.2.4 O prazer como estado mental complexo. Uma ulterior divergência de Mill em relação ao pensamento de Bentham diz respeito ao próprio conceito de prazer. Se para Bentham todo e qualquer prazer tem igual valor, para Mill as faculdades mais elevadas do indivíduo lhe proporcionam prazeres incomparavelmente maiores do que aqueles derivados das sensações, isso porque ele concebe os prazeres intelectuais como estados mentais complexos, diferença esta que, como vimos, já estava presente na República de Platão. Wendy Donner assim representa o pensamento de Bentham: No sistema de Bentham […] prazeres e dores são entidades psicológicas reais, enquanto utilidade e felicidade são ficções. Prazeres e dores, os elementos básicos de sua teoria, são básicos para nossa experiência fenomênica e são experimentados de forma igual por todos. São distintas e separadas unidades mentais e não propriedades de outros estados mentais. Bentham, em diversos lugares, sustenta que prazeres e dores são entidades psicológicas básicas.288 James Bailey nos mostra que esta perspectiva se distingue da de Mill: ―Enquanto supostamente mantém uma ligação entre prazer e utilidade, Mill vê o bem individual como Tradução nossa. No original: ―The prevailing error of Mr. Bentham‘s views of human nature appears to me to be this—he supposes mankind to be swayed by only a part of the inducements which really actuate them; but of that part he imagines them to be much cooler and more thoughtful calculators than they really are.‖ (MILL, 1985b, p.121) 288 Tradução nossa. No original: ―In Bentham‘s system […] pleasures and pains are real psychological entities whereas utility and happiness are fictions. Pleasures and pains, the ground-level elements of the theory, are basic to our phenomenal experience and are commonly experienced by everyone. They are separate and distinct mental units and not properties of other mental states. Bentham makes the claim in several places that pleasures and pains are basic psychological entities.‖ (DONNER, 1991, p.13). 287 93 sendo mais complexo do que o fenômeno psicológico aparentemente simples que Bentham vislumbrara.‖289 Mill afasta, assim, de todo a identificação necessária do prazer humano com a sensação mais simplória. Vê o homem como detentor de ―faculdades mais elevadas do que os apetites animais‖, sendo os ―[…] prazeres do intelecto, dos sentimentos, da imaginação e dos sentimentos morais, mais valiosos como prazeres do que aqueles da mera sensação.‖290 Aduz, ainda, que ―[…] os prazeres bestiais não satisfazem as concepções de felicidade de um ser humano‖291. Diz que a acusação geralmente dirigida aos epicuristas de que o hedonismo seria uma doutrina valiosa somente para porcos, ―[…] pressupõe [erroneamente] que os seres humanos não sejam capazes de fruir de outros prazeres a não ser daqueles de que são capazes os porcos‖292. Constata, finalmente, que os autores utilitaristas (Bentham, inclusive) embora, por vezes, sustentem a superioridade de prazeres mentais sobre os corpóreos, o fazem pela sua maior permanência, segurança, gratuidade, quando, em verdade, deveriam considerar sua natureza intrínseca. Donner demonstra que, para ambos os autores, o ―[b]em reside em estados mentais internos de prazer ou felicidade. Mas, enquanto para Bentham estes estados mentais são sensações de prazer, para Mill, eles são estados muito mais complexos de experiência.‖293 A autora entende esta ideia de estado mental complexo está ligado à psicologia associacionista, preconizada por Mill. De acordo com o associacionismo, aquilo que era meio para um prazer, a partir de experiências reiteradas (hábito), começa a ser (psicologicamente) associado com um prazer em si, de modo que a só posse daquele bem instrumental passa a ser desejada como uma parte da felicidade. A rigor, só a felicidade em si seria desejada como fim, todas as outras coisas seriam desejadas apenas como meios; mas, em decorrência das associações mentais, estes próprios meios passam a ser desejados como fins. Sustenta Mill que assim, i.e., pela associação formada, surgem, por exemplo, os desejos ligados à virtude e ao dinheiro. Ou seja, ―[a]quilo que outrora fora desejado como um instrumento para a obtenção da felicidade, passa Tradução nossa. No original: ―While supposedly maintaining a link between pleasure and utility, Mill sees personal good as being more complex than the apparently simple psychological phenomenon that Bentham had envisioned.‖ (BAILEY, 1997, p.6) 290 Tradução nossa. No original: ―[…] the pleasures of the intellect, of the feelings and imagination, and of the moral sentiments, a much higher value as pleasures than to those of mere sensation.‖ (MILL, 1985c, p.263.) 291 Tradução nossa. No original: ―[…] beast‘s pleasures do not satisfy a human being‘s conceptions of happiness.‖ (MILL, 1985c, p.263.) 292 Tradução nossa. No original: ―[…] supposes human beings to be capable of no pleasures except those of which swine are capable.‖ (MILL, 1985c, p.263.) 293 DONNER, 1991, p.257. 289 94 a ser desejado por si mesmo‖294. A questão é assim colocada por Mill ainda em seu System of Logic: Quando se diz que a vontade é determinada por motivos, motivo não significa sempre, ou somente, a antecipação de um prazer ou de uma dor. […] devido à influência da associação, chegamos gradualmente a desejar os meios sem pensar no fim: a própria ação se torna um objeto de desejo e é realizada sem referência a qualquer outro motivo além dela mesma295. Se de acordo com a filosofia epicurista preferimos a virtude como um meio, simplesmente em vista prazer que poderá advir da ação virtuosa, em Mill a relação entre virtude e prazer é muito mais sofisticada, desempenhando as associações mentais um importante papel na questão: são capazes de tornar a própria ação virtuosa fonte de prazer em si. Dale Miller, ao explica como se daria, no pensamento de Mill, a associação da virtude à felicidade, diz que ―[…] se formamos uma associação mental suficientemente forte entre um caráter virtuoso de um lado, e prazer e ausência de dor de outro, então o reconhecimento de que possuímos um caráter virtuoso pode, por si mesmo, dar-nos prazer‖296. Desse modo, segundo Donner, enquanto para Bentham prazeres e dores são sensações conhecidas por todos e o tipo de coisas com que as pessoas obtêm prazer não tem relevância para a medição do valor dos prazeres, para Mill as propriedades causais e intencionais dos prazeres são relevantes para a avaliação da experiência prazerosa, de modo que importa bastante para Mill que tipos de coisas as pessoas apreciam297. Voltando a seu conceito de estado mental complexo, a autora assim exemplifica como se daria o surgimento de um prazer associado à atividade de leitura: […] a causa de meu prazer é o livro, e o objeto fenomênico é a experiência de lê-lo. Mas, com o passar do tempo, se as experiências de leitura e o prazer se ligam frequente ou intensamente, novas associações são criadas entre estes dois elementos, transformando o que fora originalmente um estado mental simples em uma unidade mais complexa, com a agregação dessas novas dimensões.298 Tradução nossa. No original: ―What was once desired as an instrument for the attainment of happiness, has come to be desired for its own sake.‖ (MILL, 1985c, p.283) 295 MILL, 1999, p.39. 296 Tradução nossa. No original: ―[…] if we form a sufficiently strong mental association between a virtuous character on the one hand and pleasure and avoidance of pain on the other, then the recognition that we have a virtuous character may itself give us pleasure […]‖ (MILLER, 2002, p. 349) 297 Cf. DONNER, 1991, p.p. 14-15. 298 Tradução nossa. No original: ―[…] the causal source of my pleasure is the book, and the phenomenal object is my experience of reading it. But over time, if the experiences of reading and the pleasure are linked often or intensely, new associations are created between these two elements, transforming what was originally a relatively simple mental state into a more complex unity with this added dimensions.‖ (DONNER, 1991, p.16) 294 95 2.2 A medida da utilidade. Observadas as semelhanças entre as filosofias de Bentham e de Mill, que as fazem igualmente utilitaristas e põem seu hedonismo em patamares próximos, assim como as diferenças acerca da gama de prazeres que um e outro toma em consideração, resta que abordemos o método que cada um dos filósofos entende deva ser utilizado para a aferição da quantidade de felicidade resultante da ação. Significa perquirir o modo pelo qual um e outro acreditam poder afirmar, primeiro, que um dado prazer terá este ou aquele valor intrínseco; segundo, que determinada ação resultará em uma quantidade de felicidade ―x‖ ou ―y‖ para alguém e; terceiro, qual será o total de felicidade, para toda a coletividade, decorrente desta mesma ação. O primeiro problema importa o estabelecimento de um método de avaliação do valor de cada atividade em vista do prazer por ela proporcionado; o segundo, uma forma de concatenar esses prazeres e estabelecer denominadores comuns entre eles de modo a que possam operar aritmeticamente e; o terceiro, um modo de trazer à consideração deste cálculo toda a coletividade envolvida de modo a aferir a felicidade geral e, assim, a compatibilidade da ação com o princípio da utilidade. O valor hedonístico da ação, portanto, se desdobra em dois planos: em relação ao sujeito individualmente considerado e em relação à coletividade de indivíduos, tomados em conjunto. Abordaremos, inicialmente, o cálculo hedonístico individual como pensado por cada um dos filósofos utilitaristas (abrangendo o primeiro e o segundo problema) para, a seguir, perquirirmos como a medida da utilidade será obtida na esfera coletiva, i.e., como instrumento da busca da felicidade geral (o terceiro problema). Veremos que o grau de objetividade alçado por Bentham (provavelmente por conta de uma simplificação desmedida) será muito maior do que o atingido por Mill. Mill não será capaz de apresentar-nos uma conta que resulte um valor preciso, mas fornecerá, contudo, um modelo com base em que se chega a uma conclusão de que tal é mais ou menos útil em relação a qual, isso em ambos os planos. 2.2.1 O cálculo hedonista individual. 96 Definir o método do primeiro desses planos (o individual) significa estabelecer a forma pela qual é possível asseverar o valor de uma conduta à vista da felicidade de um indivíduo em particular. É estabelecer quanto vale, para ele, o prazer ou a dor resultante de determinado ato. Para se considerar que uma ação, um objeto ou uma regra seja mais útil para a felicidade individual do que outra é preciso que disponhamos de um método de cálculo. Como Bentham e Mill o fazem é o que veremos doravante. 2.2.1.1 O felicific calculus de Bentham. Estabelecer o valor de cada prazer em si, em Bentham, não é um problema: todos os prazeres tem igual valor e, todas as dores, o seu oposto desvalor. Resta, todavia, a determinação da utilidade total resultante do ato, através do balanço dos diversos prazeres e dores envolvidos, tomados em conta, ainda, fatores acessórios que influam na sua quantificação. Wendy Donner diz que ―[p]ara que a teoria de Bentham possa alcançar padrões de objetividade, deve ser capaz de medir objetivamente a utilidade geral de diferentes atos e descobrir qual ação de um dado grupo tem a maior utilidade.‖299 Bentham chega a isso através de seu famoso felicific calculus, através do qual mede a quantidade total de prazer e dor decorrente de uma ação. 2.2.1.1.1 Fatores a influir na quantificação dos prazeres e dores. Assim apresenta Bentham o modo de valorar prazeres e dores: II. Para uma pessoa considerada individualmente, o valor próprio de um prazer ou de uma dor será maior ou menor de acordo com as seguintes circunstâncias: 1. Sua intensidade. 2. Sua duração. Tradução nossa. No original: ―If Bentham‘s theory is to meet his own standards of objectivity, he needs to be able to measure objectively the overall utility of different actions and to discover which actions of a group under consideration has the most utility.‖ (DONNER, 1991, p.23) 299 97 3. Sua certeza ou incerteza. 4. Sua propinquidade ou distância. III. Estas são as circunstâncias que devem ser consideradas na estimativa de um prazer ou de uma dor, cada qual considerado isoladamente. Entretanto, quando o valor de qualquer prazer ou dor for tomado em consideração para a estimativa da tendência de um ato pelo qual é produzido, há outras duas circunstâncias a serem levadas em conta; são elas, 5. Sua fecundidade, ou seja, a chance que tem de ser seguida por uma sensação do mesmo tipo: isto é, prazeres, se for um prazer; dores, se for uma dor. 6. Sua pureza, ou a chance que tem de não ser seguida de uma sensação oposta; isto é, dores, se for um prazer; prazeres se for uma dor. Estes dois últimos, porém, a rigor não devem ser considerados propriedades do prazer ou da dor; portanto, estritamente falando, não devem ser levados em conta no valor deste prazer ou desta dor. A rigor, devem ser considerados propriedades somente do ato, ou evento, pelos quais tal prazer ou dor foi produzido; e, desse modo, somente devem tomados na conta da tendência desse ato ou evento. 300 Em seguida, Bentham expõe seu cálculo da felicidade, i.e., o modo de avaliar um ato em vista dos prazeres e dores envolvidos: Some todos os valores dos prazeres de um lado, e os valores de todas as dores de outro. O balanço, se estiver do lado do prazer, dará a boa tendência de um ato sobre o todo, a respeito dos interesses daquele indivíduo; se do lado da dor, a má tendência sobre o todo.301 Notemos que esta conta apresentada diz respeito à avaliação da conduta em termos de mais ou menos prazer. A conta de Bentham, pois, considera somente ―a boa tendência‖ e ―a Tradução nossa. No original: ―II. To a person considered by himself, the value of a pleasure or pain considered by itself, will be greater or less, according to the four following circumstances: 1. Its intensity. 2. Its duration. 3. Its certainty or uncertainty. 4. Its propinquity or remoteness. III. These are the circumstances which are to be considered in estimating a pleasure or a pain considered each of them by itself. But when the value of any pleasure or pain is considered for the purpose of estimating the tendency of any act by which it is produced, there are two other circumstances to be taken into the account; these are, 5. Its fecundity, or the chance it has of being followed by sensations of the same kind: that is, pleasures, if it be a pleasure: pains, if it be a pain. 6. Its purity, or the chance it has of not being followed by sensations of the opposite kind: that is, pains, if it be a pleasure: pleasures, if it be a pain. These two last, however, are in strictness scarcely to be deemed properties of the pleasure or the pain itself; they are not, therefore, in strictness to be taken into the account of the value of that pleasure or that pain. They are in strictness to be deemed properties only of the act, or other event, by which such pleasure or pain has been produced; and accordingly are only to be taken into the account of the tendency of such act or such event.” (BENTHAM,1988, p.p. 29-30) 301 Tradução nossa. No original: ―Sum up all the values of all the pleasures on the one side, and those of all the pains on the other. The balance, if it be on the side of pleasure, will give the good tendency of the act upon the whole, with respect to the interests of that individual person; if on the side of pain, the bad tendency of it upon the whole.‖ (BENTHAM,1988, p. 31). 300 98 má tendência‖ de um dado ato para cada indivíduo a partir do sopesamento de prazeres e dores envolvidos. Sem embargo, para a avaliação dos prazeres e dores em si, primeiro movimento do cálculo, a rigor os únicos fatores que se mostram de fato relevantes – e a doutrina é pacífica a este respeito – são sua intensidade e duração, o que Donner chama de magnitude302. As demais circunstâncias seriam acidentais e não diriam respeito diretamente ao prazer ou dor em si. Roger Crisp nos mostra que Bentham utiliza uma espécie de escala cardinal (embora a expressão não esteja presente na obra do autor)303. 2.2.1.1.2 Homogeneidade do valor dos prazeres e dores. Portanto, na conta de Bentham, uma atividade somente pode ser prazerosa ou dolorosa, unidades básicas opostas, a que, em um segundo movimento, serão aplicados os citados multiplicadores. A todo prazer, a princípio, é atribuído o mesmo valor e a toda dor o seu oposto. A teoria de Bentham pressupõe uma homogeneidade do valor dessas unidades básicas prazer (+1) e dor (-1); é somente pelo fato de serem mais intensas ou duradouras estas sensações é que terão seus valores modificados. O seguinte exemplo de Crisp ajuda a compreender como se daria a comparação entre dois prazeres com base no método benthamista: Consideremos o prazer de beber um whisky Bell‘s blended por um minuto. De acordo com Bentham, o valor de cada prazer há de ser determinado por sua duração e intensidade (Bentham: 1789: 4.2). Então façamos desse prazer – levando um minuto na sua intensidade usual – nossa unidade padrão de valor de bem-estar, de modo que beber por dois minutos representará duas unidades, por três minutos, três unidades e assim por diante (até que o prazer se torne desinteressante e demore mais de um minuto para atingir uma unidade) [i.e., tenha menor intensidade]. Agora, assumamos que a intensidade do prazer de beber um excelente whisky puro malte tal como um Lagavulin seja duas vezes a de beber um Bell‘s. Tendo apontado esses prazeres em uma escala, você pode começar a fazer julgamentos sobre seu bem-estar. Feita uma escolha entre whiskies, se o tempo disponível para bebê-los for o mesmo, seu bem-estar aumentará pelo fato de optar pelo puro malte, ao invés do blended. 302 Cf. DONNER, 1991, p.25. Assim explica: ―A cardinal scale of measurement is a scale with a zero point and units, Weight, for example, can be measured in grams, is equal to any other unit, one gram, is equal to any other, and the different weights plotted on a cardinal scale.‖ (CRISP, 1997, p.22.) 303 99 Agora consideremos as dores. Estipulemos que um minuto de um embaraço social padrão valha menos uma unidade. Comprar uma unidade de bem-estar ao custo de uma unidade de dano deixará as coisas como estão. Agora imagine que lhe é oferecida a chance de beber um Lagavulin por três minutos (3 x 2 = 6 unidades) ou um Bell‘s pelo mesmo tempo (3 x 1 = 3 unidades). Se você escolher o Lagavulin, porém, demonstrará ganância frente a seu anfitrião, o que lhe trará constrangimento, em uma intensidade padrão, por quatro minutos (4 x -1 = -4). Nesta conta, portanto, seu bemestar será maximizado se você escolher o Bell‘s ao invés do Lagavulin, uma vez que o Lagavulin, de maneira geral, lhe proporcionará somente duas unidades de bem-estar ao invés de três.304 Bentham, pois, não obstante trate de diferentes tipos de prazeres e dores, com referência a sua fonte, não os reputa em si mais ou menos valiosos. São todas sensações simples: agradável ou desagradável, que podem ser mais ou menos duradouras ou intensas e só em razão disso é que terão mais ou menos valor em seu cálculo 305. Mill, no ensaio Bentham306, faz referência à afirmação de Bentham de que o push-pin, um simplório jogo infantil, popular no século XVIII, seria tão valioso quanto a poesia307, para demonstrar essa homogeneidade do valor dos prazeres em sua escala quantitativa. 2.2.1.2 O hedonismo qualitativo de Mill Tradução nossa. No original: ―Consider the pleasure of drinking Bell's blended whisky for one minute. According to Bentham, the value of any pleasure is to bedetermined by its duration and intensity (Bentham 1789: 4.2). So let us make this pleasure - lasting one minute at its usual intensity - our standard unit of welfare value, so that two minutes of drinking will be worth two units, three minutes three units and so on (until the pleasure is dulled and it will take more than one minute's drinking to achieve one unit). Now let us assume that the intensity of the pleasure of drinking an excellent single malt whisky such as Lagavulin is twice that of drinkingBell's. Having plotted these pleasures on a scale, you can begin to make judgements about yourwelfare. Given a choice between whiskies, if the time available for drinking each is the same, your welfare will be increased by choosing the single malt over the blend. Now consider pains. Let us stipulate that one minute of standard social embarrassment is worth minus one unit. Purchasing one unit of welfare at the cost of one unit of harm will leave things where they were. Now imagine that you are offered the choice of three minutes drinking Lagavulin ( 3 x 2 = 6 units) or three minutes drinking Bell's ( 3 x 1 = 3 units). If you choose the Lagavulin, however, your greed in front of your host will embarrass you, at the standard intensity, for four minutes (4 x -1 = -4). On this account, then, your welfare will be maximized if you choose the Bell's rather than the Lagavulin, since the Lagavulin overall would give you only two units of welfare as opposed to three.‖ (CRISP, 1997, p.p.22-23.) 305 Philip Kitcher vê problemas até mesmo na relação a ser estabelecida entre intensidade e duração para fins de quantificação. Assim: ―Bentham had insisted that pleasure and pain are to be measured with respect to two factors: intensity and duration. Even at this stage, there‘s a technical difficulty, since it‘s not evident how one is to collapse the two dimensions into a single measure of happiness. When exactly is a shorter, but more acute, pleasure preferable to a longer, less acute, one?‖ (KITCHER, 2010, p.636). 306 Cf. MILL, 1985a, p.191. 307 Trata-se da seguinte passagem: ―Prejudice apart, the game of push-pin is of equal value with the arts and sciences of music and poetry. If the game of push-pin furnish more pleasure, it is more valuable than either. Everybody can play at pushpin : poetry and music are relished only by a few. The game of push-pin is always innocent: it were well could the same be always asserted of poetry.‖ (BENTHAM, 1830, p.206). 304 100 Por conta das discordâncias em relação a Bentham, i.e., a partir da rejeição de sua visão míope da natureza humana, da presunção do agir egoístico e, sobretudo, da negação de que prazer e dor são sensações simples, em todo caso homogêneas, é que Mill desenvolve uma forma diversa de calcular a felicidade individual. Inicia distinguindo o valor das atividades, sustentando haver diferentes tipos de prazeres; diferenças que não advêm somente de suas fontes, tampouco de sua maior intensidade ou duração, mas da qualidade inerente da experiência prazerosa. A conta utilitária de Mill assenta-se sobre as seguintes premissas fundamentais: primeiro, de que há diferença de qualidade entre os prazeres; segundo, de que o verdadeiro valor de cada um dos prazeres se afere de modo relacional: é a comparação entre os prazeres que faz seus valores emergirem; terceiro, será competente para estabelecer preferência entre um prazer e outro, e assim formar um juízo acerca de seus valores, aquele que aja experimentado ambos. 2.2.1.2.1 Prazeres de diferentes qualidades intrínsecas. Mill sustenta a existência de diferença de qualidade entre os prazeres. Diz ser ―[…] inteiramente compatível com o princípio da utilidade reconhecer o fato de que alguns tipos de prazer são mais desejáveis e mais valiosos do que outros‖308. Ao falar em tipos, não se refere aqui à fonte do prazer, mas à sua qualidade. Embora não faça referência expressa neste ponto, está claro que sua crítica é direcionada ao cálculo de Bentham. Wendy Donner destaca que ―[a] inclusão da qualidade na estimativa do valor da experiência prazerosa feita por Mill é o ponto crucial de sua cisma com a ortodoxia do hedonismo quantitativo benthamista.‖309 Mill segue assim seu raciocínio dizendo que ―[…] seria absurdo que, enquanto na estimativa de todas as outras coisas, qualidade seja levada em conta assim como a quantidade, na estimativa Tradução nossa. No original: ―It is quite compatible with the principle of utility to recognise the fact, that some kinds of pleasure are more desirable and more valuable than others.‖ (MILL, 1985c, p.263.) 309 Tradução nossa. No original: ―Mill‘s inclusion of quality in the measurement of value of pleasurable experience is the crux of his break with the orthodoxy of Benthamite quantitative hedonism‖. (DONNER, 1991, p.37) 308 101 de prazeres devesse depender somente da quantidade.‖310 Rechaça, desse modo, a ideia de que prazer e dor sejam sensações simples que podem ser agradáveis (+1) ou desagradáveis (-1), variando o valor da atividade simplesmente pela quantidade de prazer ou de dor proporcionada, a depender exclusivamente da verificação dos elementos como intensidade e duração. Assim explica o que entende por diferença qualitativa de prazeres, pontuando o procedimento de avaliação de sua escala hedonista: Se me perguntarem o que quero dizer com diferença de qualidade entre os prazeres, ou o que faz um prazer mais valioso do que outro, pelo próprio prazer, e não pelo fato de ser em maior quantidade, só há uma resposta possível. De dois prazeres, aquele que por todos ou pela maioria das pessoas que o hajam experimentado for preferido, independentemente de qualquer sentimento de obrigação moral, este será o prazer mais desejado. Se aqueles que estão devidamente familiarizados com ambos, colocarem um deles tão acima do outro que o preferirão, ainda que saibam que lhe acompanhará uma maior quantidade de descontentamento, e dele não abdicarão por qualquer quantidade do outro prazer de que sua natureza seja capaz, justificamos a atribuição de superioridade em termos qualitativos ao deleite que for preferido, superando a quantidade de tal modo que esta se tornou de pouca importância.311 Em Mill, portanto, alguns prazeres são tão distintos de outros, tendo um valor tão maior que, ao comparar um com o outro, nenhuma quantidade daquele de menor valor será capaz de superar o de maior. Isso estabelece a diferença de qualidade entre ambos. É, em linhas gerais, o que diz Mill. Alguns autores interpretam a passagem como se houvesse descontinuidade entre prazeres de diferentes qualidades, i.e., como se fossem incomparáveis. Essa é a posição esposada por Roger Crisp312. Assim, ao contrário do que ocorrera em Bentham, não seria possível, segundo Crisp, falarmos em uma escala cardinal de graduação Tradução nossa. No original: ―It would be absurd that while, in estimating all other things, quality is considered as well as quantity, the estimation of pleasures should be supposed to depend on quantity alone.‖ (MILL, 1985c, p.263.) 311 Tradução nossa. No original: ―If I am asked, what I mean by difference of quality in pleasures, or what makes one pleasure more valuable than another, merely as a pleasure, except its being greater in amount, there is but one possible answer. Of two pleasures, if there be one to which all or almost all who have experience of both give a decided preference, irrespective of any feeling of moral obligation to prefer it, that is the more desirable pleasure. If one of the two is, by those who are competently acquainted with both, placed so far above the other that they prefer it, even though knowing it to be attended with a greater amount of discontent, and would not resign it for any quantity of the other pleasure which their nature is capable of, we are justified in ascribing to the preferred enjoyment a superiority in quality, so far outweighing quantity as to render it, in comparison, of small account.‖ (MILL, 1985c, p.263.) 312 ―Pleasures so understood functions like weight. If you place an extremely heavy weight on one side of the scale, and begin placing a number of much smaller weights on the other side, there must be a moment when the sum of the smaller weights outbalances the other weight. Mill denies this for pleasures. According to him, there are discontinuities in value between pleasures, such that no amount of certain (lower) pleasures can ever be more valuable for the person who experiences them than some finite amount of certain (higher) pleasures‖ (CRISP, 1997, p.p. 30-31.) 310 102 dos prazeres em Mill, mas somente de uma escala ordinal. Haveria precedência léxica entre prazeres de diferentes qualidades, os quais uma vez justapostos formariam uma escala própria, ao passo que intensidade e duração, propriedades relacionadas à quantidade, somente viriam a campo quando se tratasse de comparar o mesmo tipo de prazer ou dois prazeres de qualidades equivalentes. Outros autores, por oposição, defendem que toda qualidade de um prazer seria redutível a uma quantidade. Mill não teria, desse modo, feito qualquer avanço em relação a Bentham. Entendem que do contrário, i.e., fossem quantidade e qualidade grandezas incomensuráveis, então Mill não poderia ser considerado de todo um hedonista. De uma maneira geral, essas são as duas posições essenciais, não obstante haja uma série de diferentes nuances dados à questão pelos diversos autores que a enfrentam 313. Contentamo-nos, contudo, em estabelecer esta divisão básica que representa os dois pontos de vista fundamentais existentes, para, a seguir, tentarmos traçar a interpretação que parece-nos mais acertada. 2.2.1.2.2 Comensurabilidade entre prazeres de diferentes qualidades Percebamos que se a afirmação de que nenhum prazer de qualidade inferior, não importa sua quantidade (duração e intensidade), jamais poderá suplantar um prazer de qualidade superior for tomada em tese, e sustentando-se que esta afirmação deve ser válida quaisquer que sejam as condições fáticas, evidentemente a conclusão a que se chegará é que a de que são grandezas incomparáveis. Notemos que, neste caso, estar-se ia presumindo que a quantidade de um prazer pode ser infinitamente aumentada. Esta presunção, porém, desconsidera a limitação relativa ao ser senciente, que não detém a capacidade de apreciar um prazer por um tempo e numa intensidade indefinidos. Acreditamos que isso se deva ao fato de que prazer é muitas vezes erroneamente tomado como sinônimo de atividade prazerosa. De fato, Mill utiliza em algumas passagens os dois termos como sinônimos. Entretanto, esta imprecisão não deve ser generalizada314. 313 Para uma visão completa da discussão, com as posições dos autores em seus pormenores, vide DONNER, 1991, pp. 37-60. Também Roger Crisp chega a explorar algumas posições intermediárias (Cf. CRISP, 1997, p.p.31-35.) 314 Este ponto precisaria ser explorado em maior profundidade, o que não poderemos fazer nesta oportunidade sob pena de desviarmo-nos de nosso propósito que, neste momento, se circunscreve à apresentação das linhas gerais do utilitarismo de Mill. 103 Mill diz, em suma, que nenhuma quantidade de um baixo prazer seria trocada por um alto prazer. Tal não significa que não se tratem de duas grandezas incomparáveis. O que sustentamos é que certas atividades menos prazerosas poderiam, em tese, por sua maior intensidade e duração, superar qualquer atividade mais prazerosa. Mas o que ocorre é que, por haver uma grande diferença de valor entre as duas atividades, em termos práticos, a de menor valor teria de ter uma duração e/ou uma intensidade muito maior do que a de maior valor, o que acaba geralmente por não se verificar315. Cremos que não pode haver descontinuidade total (ou precedência léxica) entre qualidade e quantidade, do contrário não se pode comparar as duas grandezas, de modo que o cálculo da felicidade geral se torna impossível. Portanto, deve haver de modo que a qualidade possa ser, em tese, reduzida à quantidade. O que Mill diz é que um prazer pode ser considerado de qualidade diferente de outro, no sentido de que não são só a intensidade e a duração de um prazer os fatores que podem estabelecer uma comparação entre dois prazeres. O que explica a aparente precedência léxica defendida por Mill dessas atividades mais valiosas (ou altos prazeres) sobre as atividades menos valiosas (baixos prazeres) seria sua utilidade marginal. Observemos que a mesma atividade prazerosa tem um limite de tempo e de intensidade que pode ser desfrutada antes que a quantidade de prazer diminua ou até se torne uma dor. A apreciação de atividades prazerosas não é homogênea no tempo e na intensidade. Dê um livro para alguém para que o leia num dia, agora, dê dez livros para que leia no mesmo dia, e perceba que o prazer não será dez vezes maior. Ou ainda, dê um cálice de vinho a alguém; agora dê dez cálices de vinho para essa mesma pessoa: o prazer sentido não será homogêneo durante toda a atividade. Em certo momento, o prazer aumentará, depois diminuirá até eventualmente transformar-se em dor – presente, do mal-estar gerado, e futura, decorrente das consequências da embriaguez do dia anterior. O ponto é que há algo como saturação, que influi na apreensão do prazer. Isso decorre não só à circunscrição do homem ao quadro temporal, mas também à própria limitação de apreciação de bens, da capacidade de cada indivíduo de ser estimulado e extrair prazer de uma dada atividade. Certas atividades podem ser prazerosas, mas só quando apreciadas por pouco tempo, depois tornam-se cada vez menos prazerosas a ponto de um sujeito abandoná-la e trocá-la por outra316. Talvez a partir daí que se explique a razão pela 315 Nesse sentido vide RAWLS, 2007, pp.260-262. Parece oportuno tratarmos, já nesse momento que falamos de saturação, também da heterovalia de um bem decorrente de sua escassez. Certos bens têm um valor padrão determinado para o indivíduo em situações normais, mas, na sua falta, seu valor pode aumentar quase indefinidamente. O clássico exemplo do valor da água no deserto ilustra bem o valor dado a um bem. Neste caso, o indivíduo sedento busca evitar terríveis dores decorrentes da desidratação e, quem sabe, até da morte dela decorrente (sendo que a própria possibilidade da 316 104 qual se costume valorizar uma vida com moderação e variedade de prazeres. A diversidade de prazeres, o prazer do desconhecido é algo que não pode ser ignorado. É valioso para o homem conhecer uma série de atividades prazerosas distintas, na medida em que isso, além de lhe propiciar o prazer decorrente da própria atividade experimentada ainda o torna apto a fazer o balanço dos prazeres para fins de sua avaliação. Mas qual a relevância dessas constatações? A partir dessa compreensão é que podemos interpretar corretamente a afirmação de Mill de que nenhum prazer de baixa qualidade seria preferível a outro de alta qualidade, independentemente de sua quantidade. Percebamos que Mill diz que aqueles que hajam experimentado um prazer de maior qualidade dele não abdicarão por qualquer quantidade do outro prazer de que sua natureza seja capaz317, em passagem já citada. Ora, parece ser evidência mais do que suficiente de que prazeres de qualidades distintas não são em tese incomparáveis; é uma circunstância fática que faz com que o sejam. Entendamos bem: suponhamos que o prazer decorrente de uma atividade é muitíssimo mais valioso do que outro, de modo que, enquanto um valeria, por hipótese, ―x‖, o outro, ―1000x‖. Suponhamos que esses sejam os valores referentes à experimentação de ambos os prazeres por uma hora, na intensidade padrão. Se imaginarmos que a primeira atividade possa ser experimentada por três horas antes que haja saturação, o valor máximo do prazer será ―3x‖, ao passo que sendo a segunda atividade experimentada por meros três minutos, o valor do prazer obtido ainda será de ―50x‖. O mesmo raciocínio poderia ser aplicado à intensidade. Desse modo, cremos estarem certos aqueles que defendem que quantidade e qualidade seriam comparáveis. Advirtamos que isso não significa, entretanto, que qualidade seja redutível a intensidade e duração. Essa interpretação, portanto, não minimiza o avanço de Mill em relação a Bentham. Para Mill, o maior valor de um prazer não diz respeito somente a sua maior intensidade ou duração318, mas a algo inerente ao próprio prazer, um deleite mais sublime (decorrente de um estado mental complexo), mas que, em todo caso, pode ser comparado com aquele mais simplório. É a natureza intrínseca de um prazer que o fará morte antevista já lhe traz enormes desconfortos). Um mesmo copo de água, da mesma fonte e na mesma quantidade, para o mesmo sujeito, tem um valor determinado no deserto, muitíssimo maior do que aquele tomado na cozinha de sua casa. Quanto mais básico seja o bem, ou seja, quanto mais ele tenha relação, estabelecida naturalmente, com a sobrevivência do indivíduo, sendo necessário para evitar a maior das dores, maior será seu valor em hipótese de escassez. 317 Cf. MILL, 1985c, p.263. 318 Como vimos, Platão já constatara em Filebo que os prazeres mais intensos, os ditos ―maiores prazeres‖, não são os mais agradáveis, belos e verdadeiros. 105 qualitativamente melhor e, portanto, muito mais valioso do que outro. Só assim podemos falar em cálculo hedonístico em Mill, pois para que se possa medir a felicidade é necessário que haja comparação entre prazeres experimentados. 2.2.1.2.3 Prazeres elevados e prazeres baixos. Nestas circunstâncias, cabe indagar a que exatamente Mill quer se referir quando trata de prazeres de qualidade superior e quais são os prazeres de qualidade inferior. Fred Feldman assim explica o que seriam os prazeres elevados e os prazeres baixos: Mill faz alusão à distinção entre ―elevados‖ e ―baixos‖ prazeres. Os prazeres elevados evidentemente são aqueles que envolvem nossas ―faculdades elevadas‖ – presumivelmente são os prazeres do intelecto. Podemos sentir esses prazeres lendo boa literatura, apreciando excelente música ou estudando filosofia. Os baixos prazeres são evidentemente aqueles que envolvem nossas faculdades mais ―baixas‖ – presumivelmente os prazeres do corpo. Ele os chama de ―indulgências sensuais‖ e também de ―prazeres corporais‖. Está claro que estes são os prazeres associados às funções corporais, como comer, beber, receber uma massagem e fazer o que for necessário para reproduzir-se. O ponto de Mill é claro. Ele quer dizer que os prazeres elevados são mais valiosos que os prazeres baixos mesmo em casos em que os prazeres sejam iguais em intensidade e duração. Isso lhe possibilitará dizer que, de acordo com sua forma particular de hedonismo, uma vida de incontidos prazeres sensuais não é nem de perto tão boa quanto uma cheia de prazeres intelectuais, estéticos e morais, mesmo que não sejam muito intensos.319 Contudo, a avaliação de quais são os prazeres elevados e quais são os prazeres baixos, a rigor, dependerá do juízo final daqueles que tenham experimentado de ambos, questão que Tradução nossa. No original: ―[…]Mill alludes to a distinction between ‗higher‘ and ‗lower‘ pleasures. The higher pleasures are evidently ones that involve our ‗higher faculties‘—presumably these are the pleasures of the intellect. Such things as the pleasures you get from reading great literature, enjoying excellent music, or studying philosophy. The lower pleasures are evidently ones that involve our ‗lower‘ faculties—presumably these are the pleasures of the body. He calls these ‗sensual indulgences‘, ‗bodily pleasures‘. It is pretty clear that these are the pleasures associated with such bodily functions as eating, drinking, getting a massage, and doing what you need to do in order to reproduce. Mill's point in the passage is clear. He wants to say that higher pleasures are more valuable than lower pleasures even in cases in which the pleasures are equal in intensity and duration. This will enable him to say that, according to his own form of hedonism, the life of unbridled sensual pleasure is not nearly as good as a life filled with intellectual, aesthetic, and moral pleasures, even if those pleasures are not very intense.‖ (FELDMAN, 2004, p.71) 319 106 abordaremos mais tarde em pormenor. Mill não deixa de esboçar uma resposta para a questão, presumindo que os juízes competentes escolherão aqueles prazeres dependentes de suas faculdades mais elevadas, o que se distingue fundamentalmente da interpretação apresentada por Platão em Fedão, em que vê os prazeres corporais como algo pernicioso, e também daquela presente na República e em Filebo, em que concebe os prazeres corpóreos como inferiores por uma característica que lhes é comum, qual seja, sua impureza, o fato de o deleite físico decorrer em geral da cessação de uma dor. Mill, por seu turno, não estabelece uma hierarquia prévia dos prazeres por sua pureza ou impureza, corporalidade ou intelectualidade; defende que as pessoas que conheçam dois tipos de prazeres sob avaliação e que igualmente sejam capazes de apreciá-los, em geral, preferirão uma existência que empregue suas faculdades mais elevadas, sustentando que poucos seres humanos concordariam em ser transformados em animais inferiores na promessa de irrestritos prazeres bestiais. Constata que, muito embora um ser provido de faculdades elevadas precise de mais para ser feliz e até mesmo seja capaz de maiores sofrimento, ele jamais admitiria ter um nível inferior de existência320. Mill enfrenta a objeção acerca da preferência por prazeres baixos. Diz que, de fato, muitos dos que são capazes de prazeres elevados os adiam em razão de prazeres baixos. Por falta de firmeza de caráter, frequentemente elegem o bem mais próximo, ainda que saibam ser esse menos valioso. Por exemplo, quando se perseguem prazeres dos sentidos em prejuízo da saúde (vg., o hábito de fumar ou beber), ainda que se saiba que a saúde é um bem maior. A questão já fora posta por Platão na República, onde defendeu que a compulsão do homem tirânico por prazeres inferiores traz-lhe inúmeros males e escraviza sua alma. Já aparecera ainda em Protágoras a tese de que alguém pode ser vencido por prazeres imediatos em detrimento de maiores prazeres futuros em razão de um estado de ignorância. Em Mill, o vício por prazeres inferiores não se dá porque a pessoa os prefere deliberadamente, mas sim, porque são os únicos a que se tem acesso, ou porque são os únicos que se tem a capacidade de apreciar. A capacidade para os sentimentos nobres, diz Mill, é como uma planta muito frágil, morre facilmente se a ocupação da pessoa e a sociedade em que se vive não forem favoráveis a se manter essa capacidade em exercício321. 320 Cf. MILL, 1985c, p.264 ―It may be objected, that many who are capable of the higher pleasures, occasionally, under the influence of temptation, postpone them to the lower. But this is quite compatible with a full appreciation of the intrinsic superiority of the higher. Men often, from infirmity of character, make their election for the nearer good, though they know it to be the less valuable; and this no less when the choice is between two bodily pleasures, than when 321 107 Mill defende que essa escolha usual pelos prazeres elevados pode ser atribuída essencialmente a um sentimento de dignidade, o qual todo ser humano possui de uma forma ou de outra, embora diga que para a preferência também contribuam outros sentimentos como orgulho, independência pessoal, amor pela liberdade e pelo poder. Tal sentimento de dignidade seria, assim, essencial à felicidade daquelas pessoas em que ele se manifesta fortemente, de modo que nada que estivesse em conflito com esse sentimento de dignidade seria desejado por elas. Finalmente, diz que quem supõe que esta preferência (pela dignidade) se dá em prejuízo da felicidade confunde felicidade e contentamento (satisfação), dois conceitos distintos322. 2.2.1.3 O papel dos juízes competentes no utilitarismo de Mill. A partir daí surge a questão de como se aferir o valor de cada prazer. Sabemos que há prazeres de diferentes qualidades e que as pessoas tendem a escolher prazeres mais complexos do que aqueles decorrentes das meras sensações, mas como dizer categoricamente que um dado prazer é superior a outro? Bentham não precisara enfrentar a questão: seus prazeres tinham todos o mesmo valor. Embora não esteja claro como se mediria a intensidade de um prazer, o mesmo não se poderia dizer quanto à duração, grandeza objetivamente aferível. Em todo caso, a questão de estabelecer a quantidade de prazer para fins de determinar a boa ou má tendência de uma conduta, não se apresentava como um problema para Bentham. Mill, por outro lado, precisou buscar um critério para medir o valor de cada prazer. Recorreu à figura de seus juízes competentes. Vejamos: it is between bodily and mental. They pursue sensual indulgences to the injury of health, though perfectly aware that health is the greater good. It may be further objected, that many who begin with youthful enthusiasm for everything noble, as they advance in years sink into indolence and selfishness. But I do not believe that those who undergo this very common change, voluntarily choose the lower description of pleasures in preference to the higher. I believe that before they devote themselves exclusively to the one, they have already become incapable of the other. Capacity for the nobler feelings is in most natures a very tender plant, easily killed, not only by hostile influences, but by mere want of sustenance; and in the majority of young persons it speedily dies away if the occupations to which their position in life has devoted them, and the society into which it has thrown them, are not favourable to keeping that higher capacity in exercise. Men lose their high aspirations as they lose their intellectual tastes, because they have not time or opportunity for indulging them; and they addict themselves to inferior pleasures, not because they deliberately prefer them, but because they are either the only ones to which they have access, or the only ones which they are any longer capable of enjoying.‖ (MILL, 1985c, p.p.264-265) 322 Cf. MILL, 1985c, p.264 108 Desse veredicto dos juízes competentes entendo que não pode haver qualquer apelo. Quando se quer saber qual, dentre dois prazeres, é o mais valioso, ou qual o modo de existência mais agradável, independentemente dos seus atributos morais e de suas consequências, o julgamento daqueles que são qualificados pelo conhecimento de ambos (ou, se discordarem, o da maioria deles) deve ser tido como definitivo. E não deve haver hesitação em aceitar este julgamento no que diz respeito à qualidade dos prazeres, eis que não há qualquer outro tribunal a que se possa recorrer, mesmo na questão da quantidade. Que meios há para se dizer qual a mais aguda dentre duas dores ou a mais intensa de duas sensações prazerosas senão o sufrágio universal daqueles que estão familiarizados com ambas? Nem dores nem prazeres são homogêneos entre si, e a dor sempre é heterogênea em relação ao prazer. O que pode dizer se um prazer particular vale o custo de uma dor, senão os sentimentos e o julgamento de alguém que os haja experimentado?323 Podemos perceber que ideia semelhante já estava presente na República, quando Platão, como vimos, comparava a vida do filósofo, do ambicioso e do interesseiro e reputava ser o filósofo o mais apto a proferir julgamentos acerca das diversas espécies de prazer, exatamente em razão de que seria o único a ter a experiência de todos eles. No contexto da discussão acerca das qualidades distintas de diversos prazeres e das suposições acerca das escolhas dos juízes competentes é que Mill estatui sua célebre sentença: ―É melhor ser um ser humano insatisfeito do que um porco satisfeito; antes ser Sócrates insatisfeito do que um tolo satisfeito.‖324 Tal frase, associada com o que Mill antes dissera acerca de prazeres baixos e prazeres elevados, faz muitos autores se questionarem sobre se Mill seria efetivamente um hedonista, ou se haveria um elemento perfeccionista em seu ideal de vida. Está claro que para Mill nem todo prazer (significando atividade prazerosa) tem o mesmo valor para fins do cálculo da felicidade. A questão é se algumas atividades prazerosas são per se mais valiosas, devendo ser buscadas pelo homem para sua felicidade – ainda que proporcionem o mesmo ou menor prazer do que outras – ou se essas atividades são mais valiosas justamente porque geram, ao fim e ao cabo, mais prazer – ainda que este prazer decorra de uma complexa associação mental. Tradução nossa. No original: ―From this verdict of the only competent judges, I apprehend there can be no appeal. On a question which is the best worth having of two pleasures, or which of two modes of existence is the most grateful to the feelings, apart from its moral attributes and from its consequences, the judgment of those who are qualified by knowledge of both, or, if they differ, that of the majority among them, must be admitted as final. And there needs be the less hesitation to accept this judgment respecting the quality of pleasures, since there is no other tribunal to be referred to even on the question of quantity. What means are there of determining which is the acutest of two pains, or the intensest of two pleasurable sensations, except the general suffrage of those who are familiar with both? Neither pains nor pleasures are homogeneous, and pain is always heterogeneous with pleasure. What is there to decide whether a particular pleasure is worth purchasing at the cost of a particular pain, except the feelings and judgment of the experienced?‖ (Cf. MILL, 1985c, p.265.) 324 Tradução nossa. No original: ―It is better to be a human being dissatisfied than a pig satisfied; better to be Socrates dissatisfied than a fool satisfied.‖ (MILL, 1985c, p.264) 323 109 2.2.1.3.1 A tentativa de mitigação do hedonismo. A primeira posição, defendida dentre outros por Martha Nussbaum 325, sustenta que atividades prazerosas decorrentes de estados mentais complexos, geralmente intelectuais, são mais valiosas do que sensações simples, muito embora não necessariamente proporcionem mais prazer. Além do prazer que proporciona, haveria outros aspectos relacionados ao valor de um bem. Um prazer seria qualitativamente superior a outro porque apontaria de forma mais precisa a trilha da felicidade. Podemos perceber que esta interpretação implica uma rigorosa mitigação do hedonismo. A releitura do pensamento de Mill, sob este enfoque, significaria dizer que: ter prazer é importante – indispensável, inclusive – para a felicidade, mas o tipo de atividade que gera aquele prazer conta, independentemente do prazer gerado, de uma maneira diferente para a consecução da felicidade, em aproximação à compreensão aristotélica da relação entre virtude e prazer. Para a felicidade de um indivíduo os prazeres superiores contribuiriam de maneira mais importante do que os prazeres inferiores mesmo que não houvesse diferença quanto a seu bem-estar. O indivíduo buscaria sempre seu bem, sua felicidade, para o que o bem-estar seria indispensável, mas não seria tudo o quanto importa. Nussbaum entende que o pensamento de Mill ocuparia, assim, uma posição intermediária entre Bentham e Aristóteles326. Ao mesmo tempo em que Mill buscaria a maximização de prazeres nos moldes de Bentham, teria uma visão mais complexa e profunda do ser humano que o instaria a identificar modos de existência mais valiosos em si, assim como Aristóteles fizera em Ética a Nicômacos quando pregara a superioridade da vida virtuosa. A felicidade estaria relacionada com um plano de vida que teria de considerar certas 325 Cf. NUSSBAUM, 2004, 2005. ―John Stuart Mill knew both the Benthamite and the Aristotelian/Wordsworthian conceptions of happiness and was torn between them. Despite his many criticisms of Bentham, he never stopped representing himself as a defender of Bentham's general line. Meanwhile, he was a lover of the Greeks and a lover of Wordsworth, the poet whom he credited with curing his depression. Mill seems never to have fully realized the extent of the tension between the two conceptions; thus he never described the conflict between them, nor argued for the importance of the pieces he appropriated from each one. The unkind way of characterizing the result would be to say that Mill was deeply confused and had no coherent conception of happiness. The kinder and, I believe, more accurate thing to say is that, despite Mill's unfortunate lack of clarity about how he combined the two conceptions, he really did have a more or less coherent idea of how to integrate them--giving richness of life and complexity of activity a place they do not have in Bentham, and giving pleasure and the absence of pain and of depression a role that Aristotle never sufficiently mapped out.‖ (NUSSBAUM, 2004, p. 61). 326 110 formas de excelência. Conjugando a ideia de modos de vida mais valiosos com o conceito de juízes competentes, teríamos que aquilo que o indivíduo escolhe com conhecimento de causa (ou autonomamente) seria o melhor para si, embora não necessariamente o mais prazeroso. Esta primeira hipótese se coaduna perfeitamente com a compreensão (já apresentada) de que, em Mill, haveria precedência léxica de certos prazeres (elevados) sobre outros (inferiores). Mill, neste caso, poderia ser considerado um perfeccionista, na medida em que sua filosofia tenderia a promover certo tipo de ideal de vida – o gozo de prazeres elevados – como modo de atingir a felicidade. É certo que, como vimos, no sistema utilitarista de Mill, prazer não é sinônimo de satisfação de interesses egoísticos. Em crítica dirigida a Bentham, Mill acresce o desejo de perfeição como um dos principais motivos da conduta humana327. Mas esse desejo de perfeição do sujeito, que poderá pautar sua conduta, não acarreta que o sistema moral deva conduzir os indivíduos, em todos os seus aspectos, a um patamar de perfeição decorrente de uma avaliação objetiva. Por outro lado, é também ponto fundamental da crítica de Mill a Bentham o fato de este último não se preocupar, em seu cálculo utilitário, com a alteração do caráter dos indivíduos, mas somente com as consequências externas dos seus atos. O problema da interpretação de Mill como perfeccionista é que, em primeiro lugar, ela afronta uma premissa expressa literalmente por Mill de que ―[…] prazer e ausência de dor são as únicas coisas desejáveis como fins; e que todas as coisas desejáveis […] assim o são ou pelo prazer inerente nelas mesmas ou como meios para a promoção do prazer e prevenção da dor‖328, como já vimos. Além disso, cremos que Mill jamais teve a intenção de estabelecer uma hierarquia teórica de prazeres, dizendo que prazeres elevados são necessariamente mais valiosos do que prazeres baixos. Se assim fosse não haveria qualquer sentido de se falar em juízes competentes. Certos prazeres (os intelectuais, sobretudo) seriam em si mais valiosos e por isso deveriam ser perseguidos pelos indivíduos. Uma axiologia objetiva dessa natureza tornaria dispensável a figura dos juízes competentes. De fato, Mill diz que é natural que os juízes competentes optem por prazeres elevados, i.e., aqueles que empregam suas faculdades mais elevadas, mas não que qualquer atividade intelectual será sempre preferida por um juiz competente em detrimento de uma atividade que gere um prazer meramente físico. Christoph Schmidt-Petri argumenta que o conhecido parágrafo do Utilitarianism que trata do papel dos 327 Cf. MILL, 1985a, p.178. Tradução nossa. No original: ―[…] that pleasure, and freedom from pain, are the only things desirable as ends; and that all desirable things […] are desirable either for the pleasure inherent in themselves, or as means to the promotion of pleasure and the prevention of pain.‖ (MILL, 1985c, p.262.) 328 111 juízes competentes tem sido comumente mal interpretado. Sustenta que é justamente a escolha dos juízes competentes que determina que um prazer é de qualidade superior a outro; e não que um prazer cuja qualidade já se sabe de antemão ser superior será o escolhido. O critério para considerar um prazer de superior qualidade seria a escolha, não um juízo prévio acerca da complexidade ou intelectualidade do prazer329. Uma segunda posição aduz então que as preferências dos juízes competentes refletem seus maiores prazeres; não uma percepção dos juízes competentes de que são mais valiosos: são considerados mais valiosos porque lhes trazem mais prazer e menos dor. Há uma única medida, relacionada ao prazer que determina o valor de cada bem. Estados mentais complexos (prazeres elevados) geralmente são mais prazerosos do que estados simples (prazeres baixos), ainda que tal se dê por associação. Por associação, a própria atividade que fora instrumento pode se tornar fim. Aquela atividade que, v.g., contribuirá para uma grande quantidade de prazer futuro gerará, por associação psicológica, prazer imediato por si mesma. As atividades podem ser consideradas, ainda, mais valiosas porque geram mais prazer – não de forma imediata, mas ao fim e ao cabo, considerados todos os inconvenientes em contraposição aos benefícios indiretos decorrentes. São esses, sucintamente, os argumentos para considerar Mill um hedonista. Achamos a posição satisfatória, porém ainda incompleta. Isso porque ainda resta em aberto a questão de se, em Mill, haveria algum bem em especial a ser reputado como valioso em si. Não nos referimos aqui, contudo, a nenhum tipo de prazer elevado, mas à própria condição de apreciação dos prazeres. 2.2.1.3.2 329 Cf. SCHMIDT-PETRI, 2003, p.p. 102-104. A capacidade deliberativa como bem valioso em si em Mill. 112 Cremos que uma adequada interpretação da passagem que lança mão da figura de Sócrates insatisfeito pode iluminar a questão. A propósito, diz Átila Brilhante: A comparação entre a insatisfação de Sócrates e a satisfação de um porco é crucial para a compreensão da teoria ética de Mill. […] Sua insatisfação deve ser entendida como uma consequência de sua busca pela verdade sobre si mesmo, a qual não apresenta necessariamente respostas imediatas para os problemas enfrentados. Entretanto, Sócrates sabia que os prazeres do corpo eram efêmeros, enquanto os intelectuais eram duráveis. […] Mill acreditava que as pessoas prefeririam a insatisfação de Sócrates ao contentamento do porco, pois a insatisfação de Sócrates seria um meio pra atingir níveis mais elevados de felicidade, enquanto o contentamento do porco implicaria acomodação aos prazeres baixos e a repressão das capacidades. A insatisfação não seria preferida por si mesma, mas somente porque proporcionaria meios potenciais para uma maior felicidade. A preferência de Mill pela insatisfação de Sócrates não seria necessariamente uma afirmação anti-hedonística.330 A justificativa para a preferência por Sócrates insatisfeito em detrimento do porco satisfeito, portanto, dar-se-ia em razão da possibilidade daquele de fruir de maiores prazeres em razão da sua capacidade de julgar acerca de todos eles e autonomamente poder optar pelo mais valioso. O que se estaria a comparar seria (1) a vida de um porco que, embora gozasse de prazer momentâneo, sofreria uma enorme limitação quanto à fruição de outros prazeres, com (2) a vida de Sócrates, que embora momentaneamente insatisfeito, seguiria apto a fruir de uma infinidade de prazeres futuros potenciais. Não se trata de comparar, portanto, simplesmente o momento de satisfação do porco com o momento de insatisfação de Sócrates. Esta interpretação se coaduna perfeitamente ao expressado por Mill logo após a sentença que estamos ora a discutir: ―E se o porco ou o tolo discordam [de que é melhor ser Sócrates insatisfeito], é somente porque só conhecem seu próprio lado da questão. O outro [Sócrates], em comparação, conhece ambos os lados‖331. Se o porco só é capaz de fruir de prazeres decorrentes de capacidades simples, como comer ou fornicar, Sócrates pode experimentar prazeres decorrentes tanto de capacidades simples como de capacidades elevadas. Tradução nossa. No original: ―The comparison between the dissatisfaction of Socrates and the satisfaction of the pig is crucial for an understanding of Mill‘s ethical theory.[…] His dissatisfaction should be understood as a consequence of his search for the truth about himself, which does not necessarily afford immediate answers to the problems addressed. Nonetheless, Socrates knew that bodily pleasures were ephemeral, while the intellectual were durable. […] Mill thought that people should prefer Socrates‘ dissatisfaction to the contentment of the pig, because Socrates‘ dissatisfaction was a means of achieving higher levels of happiness, while the contentment of the pig implied accommodation to lower pleasures and the stifling of capacities. The dissatisfaction was not preferred in itself, but only because it provided a potential means to greater happiness. Mill‘s preference for Socrates‘ dissatisfaction was not necessarily an anti-hedonistic claim.‖ (BRILHANTE, 2007, fl. 263). 331 Tradução nossa. No original: ―And if the fool, or the pig, is of a different opinion, it is because they only know their own side of the question. The other party to the comparison knows both sides.‖(MILL, 1985c, p.264) 330 113 Fica claro que a figura de Sócrates, assim, nada mais seria do que uma representação do juiz competente, que tendo experimentado (e apreciado)332 vários prazeres, está apto a corretamente julgar quais os menores e quais os maiores prazeres a partir das preferência que identifica e, a partir daí, estabelecer sua hierarquia de bens. Isso significa que haveria algo de valioso no modo de ser de Sócrates, o que vem a ser precisamente sua capacidade deliberativa. Como vimos, além de enaltecer o modo de vida do filósofo na República, em razão de seu juízo mais preciso (com conhecimento de causa) acerca dos prazeres, em Filebo, Platão analogamente identificara a boa vida não só à fruição de prazeres, mas essencialmente à sabedoria, pois – arguira – sem inteligência, memória, conhecimento e opinião verdadeira, assim como ―algum pulmão marinho‖, sequer poderíamos dizer estar sentido prazer ou, com base na reflexão, calcular futuros prazeres. Mill, em On Liberty, toma como fundamental para indivíduo sua autonomia, a liberdade de perseguir seu próprio bem do modo que reputar mais apropriado, contanto que isso não prive outros de perseguirem seus próprios bens. Sustenta que cada indivíduo é o guardião de sua própria saúde, seja física, seja mental ou espiritual333. À luz do que expusera em Utilitarianism, podemos dizer, sem receios, que esta autonomia, nada mais é do que a capacidade de escolha livre entre os mais diversos bens, o que faz do indivíduo um juiz competente. Os conceitos de juízes competentes e autonomia estão, pois, intrinsecamente ligados. Um sujeito somente terá prazer com um vinho, uma obra literária ou com uma peça musical mais complexos se para a apreciação dessas atividades estiver apto. Mas se apto estiver, o prazer gerado pela atividade de degustar, ler ou escutar esses objetos complexos será muito superior àquele gerado por seus similares mais simplórios, o que só pode ser atingido pelo cultivo das habilidades referentes à apreciação destas atividades. O exercício do que Brink chama justamente de capacidades deliberativas, destacando a importância de o indivíduo formar, revisar, acessar, escolher e implementar seu próprio conjunto de planos e projetos, pois, mostra-se como verdadeiro elemento fundamental da teoria de Mill334. ―[…] it is not sufficient that one have experienced both; one must have enjoyed them‖ (CRISP, 1997, p.37). ―The only freedom which deserves the name, is that of pursuing our own good in our own way, so long as we do not attempt to deprive others of theirs, or impede their efforts to obtain it. Each is the proper guardian of his own health, whether bodily, or mental and spiritual‖ (MILL, 1977b, p.238). 334 ―The most important exercise of deliberative capacities, Mill thinks, is in the reflective choice and implementation of structured plans. It is important that one form, revise, assess, choose, and implement one's own set of plans and projects and not simply that these plans and projects have certain kinds of content.‖ (BRINK, 1992, p.79). 332 333 114 O valor da autonomia em Mill, representada por essas capacidades deliberativas, seria, ademais, corolário do próprio princípio da liberdade, já apresentado. Defende Mill: […] o princípio [da liberdade] requer liberdade de gostos e de metas; de podermos estabelecer nosso projeto de vida adequado a nosso próprio caráter; de agirmos como queiramos e de sujeitarmo-nos às consequências de nossos atos, tudo sem que haja qualquer entrave por parte de nossos semelhantes, contanto que não lhes causemos dano, muito embora possam considerar nossa conduta tola, perversa ou errada. […] Nenhuma sociedade na qual essas liberdades não sejam inteiramente respeitadas é livre, qualquer que seja sua forma de governo […].335 Notemos que Mill não deixa de ser hedonista, ainda que atribua valor a essas capacidades deliberativas. Mas seu hedonismo não é simplista: quem escolherá entre os bens, com base no prazer que esses lhe propiciam é, sem dúvida, o indivíduo; não qualquer indivíduo porém, mas o indivíduo autônomo – o que é pressuposto, e não consequência de sua teoria. Certo é que a autonomia é objetivamente valiosa para Mill. A propósito, diz Átila Brilhante ―Essas capacidades deliberativas seriam uma parte objetiva da felicidade, porque não pode haver felicidade onde os seres humanos não sejam capazes de fazer escolhas que estejam de acordo com sua concepção de bem.‖336 Contudo, a autonomia, juntamente talvez a existência de algum pluralismo (questão que abordaremos adiante) é tudo o quanto Mill reputa possa merecer avaliação objetiva; tudo mais – ou seja, a avaliação de todos os outros bens passíveis de troca e apropriação, e cuja apreciação deverá gerar prazer ou dor – caberá aos juízes competentes. Brink sustenta que Mill não pode ser considerado um utilitarista de regras, tampouco uma utilitarista de atos (conceitos sobre os quais nos debruçaremos adiante); chama o utilitarismo do autor simplesmente de deliberativo, dizendo, portanto, que o que defende Mill não é um puro hedonismo. Diz que, segundo Mill, a felicidade consiste em grande parte no exercício das capacidades intelectuais mais elevadas que distinguem o de outros animais 337. Tradução nossa. No original: ―[…]the principle requires liberty of tastes and pursuits; of framing the plan of our life to suit our own character; of doing as we like, subject to such consequences as may follow: without impediment from our fellow-creatures, so long as what we do does not harm them, even though they should think our conduct foolish, perverse, or wrong.[…] No society in which these liberties are not, on the whole, respected, is free, whatever may be its form of government […]‖ (MILL, 1977b, p.238) 336 Tradução nossa. No original: ―These deliberative capacities were an objective part of happiness because there could be no happiness where human beings were not able to make choices that were in accordance with their conception of the good‖ (BRILHANTE, 2007, fl.261) 337 Vejamos: ―Happiness consists in large part in the exercise of those higher capacities that distinguish us from other animals. Our higher capacities include our rational capacities, especially our capacities for practical deliberation. Call this a deliberative conception of happiness or welfare. 335 115 Acreditamos, não obstante, que Brink em certo o ponto perde o viés fundamental da idéia de juízes competentes exposta por Mill. Como visto, o juiz competente é aquele que conhece os dois tipos de prazeres, i.e., os elevados e os baixos, e que pode, dentre eles, livremente escolher, atribuindo-lhes o valor ―x‖ ou ―y‖. Mill, todavia, não diz que o juiz competente escolherá os prazeres elevados; ele deve, sim, estar apto a escolher entre um e outro. O que Brink não percebe é que os bens não têm, para Mill, valores estáticos; o que há é uma frequente homogeneidade de valores atribuídos a determinados bens em circunstâncias similares. Na verdade, essas capacidades são pré-requisitos para uma maior satisfação (compreensão que seria capaz de reconciliar essa ideia de destaque do valor da autonomia com a corrente hedonista pura). As faculdades racionais, quando bem desenvolvidas e treinadas, dão ao indivíduo a verdadeira liberdade de escolha, transformando-o em juiz competente. Voltaremos a esse ponto mais tarde. Por ora, basta que estabeleçamos as atividades prazerosas, em Mill, não têm valores fixos. Aparte da discussão acerca da autonomia (e eventualmente sobre o pluralismo), não há bens objetivamente mais valiosos do que outros. Determinar o valor é de competência daqueles que conhecem os dois tipos de prazeres envolvidos. A hierarquia de prazeres é dada pelo indivíduo que seja capaz de inteiramente apreciar os bens que estão em julgamento; não há um esquema prévio que possa determinar o valor inerente de cada prazer. É da comparação entre duas atividades prazerosas que o juiz competente afere o valor de cada uma delas. E são as preferências dos indivíduos experientes que determinam o que é melhor para a consecução de sua felicidade. Pois bem, vimos que em dois pontos a medida da utilidade de Bentham se diferencia daquela proposta por Mill: (i) enquanto em Bentham todos os prazeres têm valores fixos iguais (valem todos, por hipótese, +1), sua apreciação só variando em termos quantitativos (intensidade, duração, certeza, proximidade no tempo, fecundidade, pureza e extensão, sendo que os prazeres em si, variam somente de acordo com as duas primeiras), Mill distingue os prazeres também em termos qualitativos, entre prazeres baixos e prazeres elevados; (ii) em Bentham, todo indivíduo é competente para julgar acerca do valor do prazer (+1) ou dor (-1), enquanto em Mill o valor do prazer será sempre relacional e o indivíduo que faz o julgamento deve ser capaz de apreciar ambos os prazeres postos em disputa. Cabe-nos agora, inquirir o A deliberative conception is also reflected in claims Mill makes elsewhere. In Considerations on Representative Government Mill claims that a principal aim of government is the improvement of its citizens and that this improvement consists in the development of their intellectual, deliberative, and moral capacities (CRG, esp. chaps. II-III).‖ (BRINK, 1992, p.79). 116 modo pelo qual Bentham e Mill, de maneiras distintas, conduzem sua visão hedonista de bem para o indivíduo para a compreensão utilitarista a pautar o bem da coletividade. 2.2.2 Da felicidade individual à felicidade geral. Restou estabelecido no ponto precedente que tanto em Mill quanto em Bentham, mesmo que de forma bastante dessemelhante, a felicidade individual se identificava com a presença de prazeres e a ausência de dores. Notemos ora que é a partir de seus conceitos de felicidade individual que um e outro formularão a ideia de felicidade geral. Contudo, se em Bentham esta transição é bastante singela, constituindo o cálculo da felicidade individual uma mera etapa do cálculo da felicidade geral, o que se encontra explícito em sua obra, em Mill, por seu turno, o tema ganha muito mais sofisticação, além de controvérsia na mesma proporção. Abordaremos inicialmente o cálculo da felicidade geral de Bentham, que instrumentaliza o princípio da utilidade, para então penetrar na complexa questão do cálculo de Mill, quando analisaremos a natureza particular de seu utilitarismo de regras. 2.2.2.1 O cálculo utilitário de Bentham. Bentham formula seu cálculo utilitário partindo da premissa de que os indivíduos que formam a sociedade seriam como membros do corpo fictício que é a comunidade. O interesse da comunidade, portanto, seria a soma de interesses dos diversos indivíduos que a compõem. Crê, pois, que seria despropositado falar dos interesses da comunidade sem compreender os interesses do indivíduo.338 Vimos que Bentham expusera o modo de aferir a utilidade de uma conduta para um sujeito individualmente considerado, fazendo-a depender de um balanço de todos os prazeres e dores envolvidos (considerados sua intensidade, duração, certeza, propinquidade, fecundidade e pureza), podendo, então, determinar sua boa ou má tendência. Vejamos agora Observemos a seguinte passagem: ―The community is a fictitious body, composed of the individual persons who are considered as constituting as it were its members. The interest of the community then is, what is it?—the sum of the interests of the several members who compose it. V. It is in vain to talk of the interest of the community, without understanding what is the interest of the individual‖ (BENTHAM,1988, p.3). 338 117 como o filósofo transforma esse cálculo individual no critério da utilidade geral de uma conduta, simplesmente acrescentando mais um elemento à conta: IV. Para um conjunto de pessoas, com referencia a cada uma das quais o valor de um prazer ou de uma dor é considerado, este será maior ou menor de acordo com sete circunstâncias: a saber, as seis precedentes; viz., 1. Sua intensidade. 2. Sua duração. 3. Sua certeza ou incerteza. 4. Sua propinquidade ou distância. 5. Sua fecundidade. 6. Sua pureza. E mais uma; a saber: 7. Sua extensão; ou seja, o número de pessoas para as quais se estende; ou (em outras palavras) que são afetadas. V. Para se ter então uma medida exata da tendência geral de qualquer ato, pelo qual os interesses de uma comunidade são afetados, deve-se proceder da seguinte maneira. Comece com qualquer pessoa cujos interesses parecem ser mais imediatamente afetados: e leve em conta, 1. O valor de cada prazer discernível, que pareça ser produzido em primeiro lugar. 2. O valor de cada dor que pareça ser produzida em primeiro lugar. 3. O valor de cada prazer que pareça ser produzido secundariamente. Isso constitui a fecundidade do primeiro prazer e a impureza da primeira dor. 4. O valor de cada dor que pareça ser produzida secundariamente. Isso constitui a fecundidade da primeira dor e a impureza do primeiro prazer. 5. Some todos os valores dos prazeres de um lado, e os valores de todas as dores de outro. O balanço, se estiver do lado do prazer, dará a boa tendência de um ato sobre o todo, a respeito dos interesses daquele indivíduo; se do lado da dor, a má tendência sobre o todo. 6. Leve em conta o número de pessoas cujos interesses parecem estar em jogo; e repita o processo acima de acordo com cada uma delas. Some os números que expressem os graus de boa tendência do ato, em relação a cada indivíduo para quem a tendência do ato seja boa sobre o todo: faça isso novamente em relação a cada indivíduo para quem a tendência do ato seja boa sobre o todo: faça isso novamente em relação a cada indivíduo para quem a tendência do ato seja má sobre o todo. Se a balança pender para o lado do prazer, indicará a boa tendência geral do ato em relação ao total ou à 118 comunidade de indivíduos afetados; se para o lado da dor, indicará a má tendência geral em relação a essa mesma comunidade.339 2.2.2.1.1 O juízo de certeza baseado na mensurabilidade imediata dos bens. Reparemos que, em Bentham, a tarefa de medir a utilidade de um ato, embora árdua (pois há uma série de fatores a serem considerados), não apresenta incertezas. Isso porque, como vimos, Bentham adota um valor igual padronizado para todos os prazeres e seu equivalente negativo para todas as dores. Notemos que não se pode saber, todavia, como todas as circunstâncias que afetam a quantidade de prazer e dor se conjugam, i.e., como os fatores multiplicadores se relacionam entre si para a aferição do montante final de prazer ou dor (v.g., se o dobro de intensidade de um prazer é compensado pela metade de sua duração, ou se a relação entre estes dois fatores é mais complexa do que isso). Bentham, em todo caso, não enfrenta o problema. Certo é que, para Bentham, todos os dados necessários para o cálculo utilitário de qualquer ato estão disponíveis para quem pretenda coletá-los e contabilizá-los para fins de determinar a boa ou a má tendência decorrentes; não lhe parece que a questão envolva grande Tradução nossa. No original: ―IV. To a number of persons, with reference to each of whom to the value of a pleasure or a pain is considered, it will be greater or less, according to seven circumstances: to wit, the six preceding ones; viz., 1. Its intensity. 2. Its duration. 3. Its certainty or uncertainty. 4. Its propinquity or remoteness. 5. Its fecundity. 6. Its purity. And one other; to wit: 7. Its extent; that is, the number of persons to whom it extends; or (in other words) who are affected by it. V. To take an exact account then of the general tendency of any act, by which the interests of a community are affected, proceed as follows. Begin with any one person of those whose interests seem most immediately to be affected by it: and take an account, 1. Of the value of each distinguishable pleasure which appears to be produced by it in the first instance. 2. Of the value of each pain which appears to be produced by it in the first instance. 3. Of the value of each pleasure which appears to be produced by it after the first. This constitutes the fecundity of the first pleasure and the impurity of the first pain. 4. Of the value of each pain which appears to be produced by it after the first. This constitutes the fecundity of the first pain, and the impurity of the first pleasure. 5. Sum up all the values of all the pleasures on the one side, and those of all the pains on the other. The balance, if it be on the side of pleasure, will give the good tendency of the act upon the whole, with respect to the interests of that individual person; if on the side of pain, the bad tendency of it upon the whole. 6. Take an account of the number of persons whose interests appear to be concerned; and repeat the above process with respect to each. Sum up the numbers expressive of the degrees of good tendency, which the act has, with respect to each individual, in regard to whom the tendency of it is good upon the whole: do this again with respect to each individual, in regard to whom the tendency of it is good upon the whole: do this again with respect to each individual, in regard to whom the tendency of it is bad upon the whole. Take the balance which if on the side of pleasure, will give the general good tendency of the act, with respect to the total number or community of individuals concerned; if on the side of pain, the general evil tendency, with respect to the same community.‖ (BENTHAM,1988, p.p. 30-31) 339 119 subjetividade. Acreditamos que tal circunstância esteja diretamente relacionada com um aspecto que já destacamos anteriormente, qual seja, que, para Bentham, relevantes para o indivíduo são os bens imediatamente aferíveis e quantificáveis, razão pela qual os bens econômicos ocupam posição de destaque. 2.2.2.1.2 A supressão de bens fundamentais do cálculo utilitário. Bens não mensuráveis, embora de importância fundamental para o ser humano – já advertira Mill – na filosofia Bentham são ignorados. Desse modo, a limitação de seu cálculo utilitário seria reflexo de uma visão obtusa da natureza humana, o que determinaria a singeleza de um consequente cálculo hedonista individual. Mill, já em prematuro ensaio, identificara esse problema quando inquirira: ―Se a teoria da vida de Bentham pode fazer tão pouco pelo indivíduo, o que pode fazer pela sociedade?‖340 Reconhece-se hoje que o direito inglês muito se beneficiou da racionalidade na avaliação e elaboração das leis por influência do pensamento de Bentham e do Radicalismo Filosófico. A crítica às leis e instituições através do consequencialismo por si preconizado e o modo de ver as leis como elementos práticos foram essenciais em dado momento histórico para a reforma de um sistema jurídico arcaico, repleto de leis contraditórias ou ineficientes para atingir os fins pretendidos e que muitas vezes ainda garantiam uma série de privilégios feudais injustificáveis341. Inovou trazendo ideias como a de sistematização das leis, a introdução da necessidade de códigos, além de apresentar uma visão prática acerca dos procedimentos judiciais com o fito de eliminar atrasos absolutamente desnecessários nas demandas judiciais342. O utilitarismo, ademais, trouxe um critério objetivo, racional, para a avaliação da correção das leis em oposição a critérios vagos então usuais 343. Por outro lado, imaginamos que, dada sua incorreta representação da natureza humana e menosprezo de aspectos fundamentais para a felicidade humana, o utilitarismo de Bentham, aplicado em toda a sua extensão e levado às últimas consequências, poderia conduzir senão a uma sociedade Tradução nossa. No original: ―If Bentham‘s theory of life can do so little for the individual, what can it do for society?‖ (MILL, 1985a, p.181.) 341 A propósito, vide HART, 1982. 342 Cf. MILL, 1985b, p.p.116-117. 343 Cf. MILL, 1985a, p.p.168-174. 340 120 altamente regulada, talvez como uma Oceania de Orwell em 1984 ou uma Alphaville idealizada por Godard, porém sem espaço para coisas tão fundamentais como a poesia e o amor. 2.2.2.2 A quantificação da utilidade em Mill Observamos anteriormente que uma das diferenças fundamentais entre Mill e Bentham se dá na valoração individual de bens. Bentham supõe que haja para cada bem um valor padrão. Entende Mill que esta interpretação baseia-se na experiência de quem experimentou muito pouco; centra-se naqueles bens cujo valor é mais claramente aferível, relegando a um segundo plano ou mesmo esquecendo-se de bens cuja valoração é mais etérea. Mill reconhece, em maior medida, a riqueza da vida, a complexidade humana. Percebe os valores da poesia, das emoções, principalmente do amor. O ponto fundamental do hedonismo de Mill é a não identificação do prazer com a sensação física e a consequente dissociação da felicidade da mera satisfação. Na conta dos prazeres elevados entram não só as atividades instrumentais da felicidade, mas estados mentais complexos que são, em si, fontes de prazeres mais valiosos. São, não só atividades intelectuais racionais, mas, sobretudo, a expressão dos sentimentos humanos. Contudo, Mill não estabelece nem toma como estabelecida uma prévia hierarquia de bens. Um único bem instrumental é tomado como valioso em si: a autonomia como sinônimo de capacidade deliberativa do sujeito. Significa, na aferição dos prazeres, a própria possibilidade de se obter prazer com uma atividade. Para tanto, é necessário um treinamento, uma familiaridade, sem o que não se pode apreciar certas atividades prazerosas. Além disso, ao contrário de Bentham, para Mill os bens têm valores relativos. A propósito, vejamos o que diz James Bailey: O conceito mais plausível de bem pessoal para fins de uma teoria moral seria aquele que reconhecesse múltiplas dimensões possíveis de satisfação humana. Bentham pensava haver uma única dimensão de satisfação hedonista ou (alegadamente) duas dimensões de prazer e dor. Mill pensava haver várias dimensões psicológicas distintas e, além disso, que essas dimensões poderiam variar de pessoa para pessoa.344 Tradução nossa. No original: ―The most plausible concept of personal good for purposes of a moral theory would be one that recognizes multiple dimensions of possible human satisfaction. Bentham thought that there 344 121 Vimos que para Bentham todo prazer é identificado diretamente com a sensação simples e todo prazer tem o mesmo valor, Mill diferencia o prazer decorrente de uma sensação simples daquele decorrente de um estado mental complexo, tomando este último em maior consideração. A preocupação de Mill quando trata da diferença de qualidade é afastarse do sensualismo; não atribuir, de antemão, um valor estático a determinada atividade, uma vez que a tarefa de valorar prazeres é reservada aos juízes competentes, e mesmo a avaliação destes pode variar. Diz que geralmente estados mentais mais complexos tenderão a gerar mais prazer; não que necessariamente são mais prazerosos. É sobre essas generalizações dos valores dos bens é que o sistema utilitário de Mill começa a ser construído. O utilitarismo de Mill, entretanto, não se distingue do de Bentham somente pela escala de bens e o modo de hierarquizá-los; há um ponto ulterior (embora diretamente relacionado ao primeiro) que cinge o pensamento dos dois autores: o método de cálculo utilitário. Em Mill, a questão não se resume a um balanço das dores e prazeres individuais, considerado o número de pessoas envolvidas; para ele, a passagem do cálculo individual para o coletivo se mostra como uma questão muito mais complexa. Mill, ao contrário de Bentham, não explicita o método de medir a utilidade geral de uma conduta, até mesmo porque, talvez não creia que tal possa ser reduzido a uma fórmula fixa, mas veja a questão como um fenômeno social e político. Mas então como efetivamente aferir a conformidade de um ato dado com o princípio da utilidade? Há uma irresoluta discussão doutrinária sobre se a utilidade em Mill se dirige imediatamente aos atos e suas consequências ou às normas. Cremos que há indícios suficientes de que a segunda hipótese está correta. 2.2.2.2.1 A generalização do valor dos bens. A primeira questão com que o utilitarismo de Mill se defronta está relacionada com a já referida falta de um valor homogêneo atribuído aos bens. Neste contexto, o uso das generalizações dos bens se apresenta como modo de direcionamento das condutas à was either a single dimension of aggregate hedonic satisfaction or (arguably) two dimensions of pleasure and pain. Mill thought that there were several different psychological dimensions and, further, that these dimensions might vary across persons.‖ (BAILEY, 1997, p.6) 122 maximização desses bens. A generalização que se faz, então, dá-se por razões de ordem prática. Ocorre a partir da passagem do agir do indivíduo para atender a seus interesses para o agir para atender aos interesses da comunidade composta por esse e por outros indivíduos. Constatado que a concepção utilitarista de bens em Mill não admite, a princípio, uma medida universal e objetiva, externa ao sujeito, para a aferição do valor de bens, parece-nos que o que pode haver são generalizações ou objetivações baseadas na homogeneidade de valores atribuídos pelos indivíduos. Isso serviria a fins práticos como é o caso da formulação de normas morais e jurídicas345. O que costumamos considerar como um bem independentemente de, de fato, qualquer valor lhe seja atribuído por um dado indivíduo, é nada mais do que uma generalização de uma série atribuições individuais, mais ou menos homogêneas, de valores. O que temos como bem em (ditos) termos objetivos é uma aproximação: se a quase totalidade das pessoas considera que determinados tipos de experiência são valiosas, então atividades que dão ensejo a estas experiências são considerados bens por generalização de preferências homogêneas. Há bens cuja homogeneidade de apreciação decorre de um fato natural, como é o caso das necessidades biológicas primárias do ser humano, como alimentar-se, repousar, manter-se saudável; outros, de circunstâncias também naturais, mas afetadas por contingências culturais e sociais, é o caso, v.g., das relações sexuais e afetivas, dentre inúmeros outros. Notemos, contudo, que mesmo esses bens mais primários comportam uma enorme variedade de modos de satisfação: uns preferem este e outros aquele alimento; uns necessitam de mais horas de sono do que outros; uns exercitam-se frequentemente para prevenir doenças, outros consomem remédios com maior frequência para tratar seus males; uns mantêm o mesmo parceiro a vida toda, outros mal chegam a saber mais do que o nome dos seus. Em todo caso, há incontáveis graus de homogeneidade de bens e estes graus são variáveis de acordo com as circunstâncias sociais e culturais. Mesmo os bens cuja homogeneidade se dá em maior grau podem dar ensejo a uma objeção contrafactual. Muito embora os sujeitos formulem conceitos padronizados de bens (generalizações de suas próprias preferências, universais individuais) o que deve contar como verdadeiro objeto de valor é a experiência particular, de modo que, v.g., um determinado tipo de alimento pode não significar um bem a um enfermo. Parte-se, portanto, sempre da (i) experiência individual particular (este alimento é valioso) para a (ii) generalização individual (alimentos são valioso e, pois, bens para mim) e, em seguida, para a 345 De modo a evitar a formação de compreensões equivocadas sobre a questão, adiantemos, desde logo, que tal tarefa de generalização não é atribuída a mentes especialmente iluminadas, mas, antes, é estabelecida pelo debate e pelo processo social histórico. 123 generalização coletiva (alimentos são bens para os seres humanos). Essa interpretação do problema da heterogeneidade de bens – ainda que referida de maneira somente passageira na obra de Mill, justamente em trecho já citado, em que o autor trata da possível discordância dos juízes competentes quanto ao valor de determinado prazer, não estando de toda forma explícita nos pormenores em que foram aqui apresentados – nos fornece subsídios capazes de avançarmos em nossa investigação na busca do critério para a utilidade geral. 2.2.2.2.2 O utilitarismo de regras de Mill. Resta que estabeleçamos o modo de maximizar esses bens, cujo valor advém da generalização de perspectivas individuais, para fins de promoção da máxima felicidade, o que significa apresentar o método de cálculo (utilitário) próprio de Mill. Vimos que, segundo o princípio da utilidade preconizado por Mill, ―[…] ações são corretas na proporção em que elas tendem a promover felicidade; erradas na medida em que tendem a promover o contrário de felicidade.‖346 É usual que o utilitarismo de Mill seja interpretado como se propusesse uma relação direta entre ato e o benefício imediato dele aferível, de modo que, para a avaliação da correção de cada conduta, dever-se-ia considerar todas as consequências que, de fato, desta adviessem. A quantidade de felicidade imediatamente resultante do ato em análise serviria de critério para dizer sobre sua moralidade. Costuma-se chamar ao autor que defende o utilitarismo sob esse prisma de utilitarista de atos (act-utilitarianist)347. É essa, sem dúvida, a posição de Bentham – o que fica estabelecido no procedimento do cálculo felicífico. Cremos, porém, que o mesmo não se pode dizer quanto a Mill. J. O. Urmson sustenta, em um breve artigo que viria a se tornar paradigma sobre a questão, que da interpretação tradicionalmente dada ao utilitarismo de Mill se poderiam extrair consequências absurdas348. Refere-se justamente à interpretação que o toma como um utilitarista de atos. Na visão do autor, dizer que toda ação particular deve ser considerada correta somente se promover o último fim (i.e., a felicidade) melhor do que qualquer outra 346 MILL, 1985c,p. 262 A seguinte crítica de Taylor bem retrata os equívocos a que se pode chegar a partir de um raciocínio elaborado com base no utilitarismo de atos: ―Thus a utilitarian will argue that I ought generally to pay my taxes, because this conduces to the general happiness. But in exceptional circumstances, where public revenues are being terribly misused, this identity fails, and I don‘t have to pay.‖ (TAYLOR, 1989, p.76) 348 Cf. URMSON, 1953. 347 124 alternativa (do contrário deverá ser considerada errada), implicaria, v.g., que um homem que escolhesse para seu entretenimento noturno, dentre duas comédias musicais, a de qualidade inferior, estaria praticando um ato moralmente incorreto349. No capítulo V do Utilitarismo Mill trata da conexão entre justiça, moral e utilidade. Urmson aponta que Mill distingue a esfera da moral daquela da conveniência (expediency), de modo que um dado ato possa ser ineficiente para atender ao fim a que se dirige, sem que seja errado ou imoral. Sustenta que, a partir de uma interpretação act-utilitarianist do pensamento de Mill, só se poderia supor não haver distinção entre ineficiência e imoralidade de um ato. Ursom propõe, então, uma interpretação distinta: para Mill, o que determina a correção ou incorreção das condutas são as normas morais, não a avaliação imediata das condutas em relação à promoção ou não da maior felicidade possível. Trata-se da primeira leitura de Mill como utilitarista de regras (rule-utilitarianist)350. A idéia fundamental é a de que uma ação é correta ou incorreta na medida em que está de acordo com uma regra moral (a que Mill se refere como princípio secundário), cujo critério de correção é a promoção do fim último. São preceitos como: ―cumpra as promessas‖, ―não minta‖ ou ―não mate‖ que maximizam a felicidade e que, portanto, devem ser o critério de avaliação das condutas; não é a produção de maior ou menor felicidade em consequência direta dessa ou daquela conduta isoladamente considerada. Essa interpretação encontra uma série de evidências textuais na obra de Mill. Diz em uma passagem do Utilitarismo que ―[…] a utilidade imporia, primeiramente, que as leis e arranjos sociais pusessem a felicidade, ou (como pode ser chamada em termos práticos) o interesse de cada indivíduo, o máximo possível em harmonia com os interesses coletivos‖ 351, enquanto, em outra, introduz a ideia de que uma ação é moralmente incorreta se as No original: ―On this view, then, Mill holds that an action, a particular action, is right if it promotes the ultimate end better than any alternative, and otherwise it is wrong. However we in fact make up our minds in moral situations, so far as justification goes no other factor enters into the matter. It is clear that on this interpretation Mill is immediately open to two shattering objections; first, it is obviously and correctly urged, if one has, for example, promised to do something it is one's duty to do it at least partly because one has promised to do it and not merely because of consequences, even if these consequences are taken to include one's example in promisebreaking. Secondly, it is correctly pointed out that on this view a man who, ceteris paribus, chooses the inferior of two musical comedies for an evening's entertainment has done a moral wrong, and this is preposterous. If this were in fact the view of Mill, he would indeed be fit for little more than the halting eristic of philosophical infants.‖ (URMSON, 1953, pp. 34-35). 350 Cremos ser desnecessário reproduzirmos aqui as diversas posições a respeito defendidas por eminentes interpretes de Mill. A propósito, vide FUCHS, 2006. 351 Tradução nossa. No original: ―[…] utility would enjoin, first, that laws and social arrangements should place the happiness, or (as speaking practically it may be called) the interest, of every individual, as nearly as possible in harmony with the interest of the whole;[…]‖ (MILL, 1985c, p.269) 349 125 consequências de sua prática generalizada forem más352 (parece-nos implícito: ainda que as consequências da ação em particular sejam boas). Mill, ademais, estabelece uma distinção entre utilidade (utility) e conveniência (expediency). Diz que o termo utilidade é erroneamente tomado em seu sentido popular, i.e., como sinônimo de conveniência. Entretanto – refere – , o conveniente se opõe ao correto quando se trata de satisfazer um objeto imediato, um propósito temporário: v.g., contar uma mentira pode ser conveniente, mas não será útil353. 2.2.2.2.3 O princípio da utilidade e os preceitos secundários A interpretação de Mill como utilitarista de regras, sem embargo, torna-se particularmente evidente na passagem em que o filósofo responde à objeção, habitualmente dirigida contra o utilitarismo, de que não haveria tempo suficiente prévio à ação para que se pudesse calcular e pesar os efeitos de qualquer tipo de conduta sobre a felicidade geral. Tratase de uma crítica notoriamente dirigida ao utilitarismo de atos. Mill apresenta, então, um panorama sobre a questão totalmente distinto de seus predecessores, nos seguintes termos: A resposta à objeção é que já houve muito tempo, desde o surgimento da espécie humana. Durante todo esse tempo, a humanidade tem aprendido com as experiências, as tendências das ações, experiência de que toda a prudência, assim como a moralidade da vida, é dependente. […] a humanidade, por essa hora, já deve ter adquirido crenças firmes sobre o efeito de algumas ações sobre sua felicidade […] [porém] ainda tem muito o que aprender sobre isso […]. Os corolários do princípio da utilidade, assim como os preceitos de qualquer arte prática, admitem melhoria indefinida; em um estado de progresso da mente humana, sua melhoria se dá perpetuamente. Mas considerar as regras da moralidade aperfeiçoáveis é uma coisa; passar totalmente por cima das generalizações intermediárias, e tentar submeter cada ação individual ao teste do primeiro princípio, é outra. É estranha a noção de que o reconhecimento do primeiro princípio seja incompatível com a admissão de princípios secundários. Informar um viajante sobre o seu destino final, não proíbe o uso de pontos de referência no caminho. A proposição de que a felicidade é o fim e meta da moralidade não significa que nenhum caminho deva ser construído para esse fim, tampouco que as pessoas que dele estejam se afastando sejam avisados para tomar uma direção ao invés de outra. […] Ninguém sustenta não estar a arte ―[…] it would be unworthy of an intelligent agent not to be consciously aware that the action is of a class which, if practised generally, would be generally injurious, and that this is the ground of the obligation to abstain from it.‖ (MILL, 1985c, p.270) 353 Cf. MILL, 1985c, p.272. 352 126 da navegação baseada na astronomia em razão de não poderem os navegadores calcular o Almanaque Náutico antes de ir ao mar. Sendo seres racionais, eles vão ao mar com isso já calculado; assim como todas as criaturas racionais vão ao mar da vida com suas mentes prontas sobre questões comuns de certo e errado […] Qualquer que seja o princípio fundamental da moralidade a ser adotado, precisamos de princípios subordinados de modo a aplicá-lo […].354 O princípio da utilidade, assim, fundaria os princípios secundários (regras morais e jurídicas). Não se submeteria cada ato ao teste de utilidade; antes, as consequências generalizadas da aplicação dos preceitos secundários é que seriam objeto de avaliação. Na aferição da correção de uma conduta com base no princípio da utilidade deve ser levado em conta, em primeiro lugar, sua adequação a estes preceitos secundários, não é cada conduta que será avaliada diretamente de acordo com o princípio da maior felicidade, o que o põe à parte da corrente que preconiza o utilitarismo de atos. Ao mesmo tempo, o princípio da utilidade seria critério de solução de conflitos entre os preceitos secundários. Vejamos como Mill concebe a função do princípio da utilidade neste sistema: Se a utilidade é a fonte definitiva das obrigações morais, pode ser invocada como critério para decidir entre essas obrigações quando suas demandas forem incompatíveis. Embora a aplicação do preceito possa ser tarefa difícil, é melhor do que se ter nenhum: em outros sistemas, todas as leis morais reclamam autoridade independente, não dispondo de um árbitro comum capaz de interferir entre eles; […] Devemos nos lembrar que somente nesses casos de conflito entre princípios secundários é que se mostra indispensável o apelo aos primeiros princípios. Não há caso de obrigação moral em que algum princípio secundário não esteja envolvido; ainda que seja um só, Tradução nossa. No original: ―The answer to the objection is, that there has been ample time, namely, the whole past duration of the human species. During all that time mankind have been learning by experience the tendencies of actions; on which experience all the prudence, as well as all the morality of life, is dependent. […] mankind must by this time have acquired positive beliefs as to the effects of some actions on their happiness; […] [but] mankind have still much to learn as to the effects of actions on the general happiness […]The corollaries from the principle of utility, like the precepts of every practical art, admit of indefinite improvement, and, in a progressive state of the human mind, their improvement is perpetually going on. But to consider the rules of morality as improvable, is one thing; to pass over the intermediate generalizations entirely, and endeavour to test each individual action directly by the first principle, is another. It is a strange notion that the acknowledgment of a first principle is inconsistent with the admission of secondary ones. To inform a traveller respecting the place of his ultimate destination, is not to forbid the use of landmarks and direction-posts on the way. The proposition that happiness is the end and aim of morality, does not mean that no road ought to be laid down to that goal, or that persons going thither should not be advised to take one direction rather than another. […]Nobody argues that the art of navigation is not founded on astronomy, because sailors cannot wait to calculate the Nautical Almanack. Being rational creatures, they go to sea with it ready calculated; and all rational creatures go out upon the sea of life with their minds made up on the common questions of right and wrong […]‖ (MILL, 1985c, p.p.273-274) 354 127 dificilmente haverá uma dúvida real sobre qual princípio seja este na mente de qualquer pessoa que o admita.355 Lyons entende que Mill não seria um utilitarista de regras, tampouco um utilitarista de atos propriamente; chama a versão sustentada por Mill de utilitarismo indireto356, em que […] direitos e obrigações são determinados por princípios úteis; a conduta é geralmente uma questão de honrar as obrigações correlativas aos direitos; e a justiça consiste em respeitar direitos, isto é, em honrar obrigações correlativas aos direitos. Em uma teoria tal, o raciocínio utilitarista aplica-se aos princípios morais diretamente, mas regula a conduta somente indiretamente.357 2.3 O liberalismo de Mill. Esboçado o quadro geral da filosofia utilitarista de John Stuart Mill, cabe-nos, agora, apresentar os princípios liberais por si defendidos, especialmente em sua obra On Liberty (Da Liberdade), além de buscar concatenar estas afirmações liberais com seus pressupostos utilitaristas, apresentando, desse modo, sua filosofia como um todo coerente – tarefa que não dispensa certa elaboração com o fito de preencher algumas lacunas, o que vem sendo feito, sobretudo nas últimas décadas, pela doutrina especializada, da qual nos servimos, não obstante não deixemos de dar alguma contribuição própria a esta assunto tão controvertido 358 quanto interessante do ponto de vista intelectual. Tradução nossa. No original: ―If utility is the ultimate source of moral obligations, utility may be invoked to decide between them when their demands are incompatible. Though the application of the standard may be difficult, it is better than none at all: while in other systems, the moral laws all claiming independent authority, there is no common umpire entitled to interfere between them; […]We must remember that only in these cases of conflict between secondary principles is it requisite that first principles should be appealed to. There is no case of moral obligation in which some secondary principle is not involved; and if only one, there can seldom be any real doubt which one it is, in the mind of any person by whom the principle itself is recognized.‖ (MILL, 1985c, p.p.274-275) 356 O que cremos não seja capaz de afetar sua ideia central ou de implicar consequências distintas quanto a correta interpretação de seu pensamento. 357 Tradução nossa. No original: ―[…] rights and obligations are determined by useful principles; right conduct is generally a matter of honoring obligations; and justice consists in respecting rights, that is, honoring obligations that correlate with rights. In that sort of theory, utilitarian reasoning applies to moral principles directly but regulates conduct only indirectly‖ (LYONS, 1994, p.17). 358 Afirma Wendy Donner: ―Mill‘s commitment to liberty and individual development is one of the most exoteric themes of his moral and political philosophy. But the linkage between his commitment to liberty and development and his conception of utility and of the good are not as commonly recognized.‖ (DONNER, 1991, p.142) 355 128 Crisp nos mostra, desde logo, que: Em Utilitarismo, […] Mill recomenda, sob fundamentos utilitaristas, a adoção de vários ―princípios secundários‖, como a proibição de matar ou roubar, o que em si não faz referência à maximização do bem-estar. Da Liberdade pode ser melhor interpretada como uma tentativa de defesa da adoção do princípio da liberdade como um princípio secundário a governar o tratamento legal e moral dispensado pela sociedade ao indivíduo. […] Mas Mill está advogando a um lugar para o princípio da liberdade por meio da ―moralidade consuetudinária‖, de modo que não surpreende que utilize argumentos que não façam referência direta ao utilitarismo, mas empreguem conceitos que ele crê merecerem um lugar em nosso pensamento moral por causa de sua utilidade359. 2.3.1 A formulação do princípio do dano e sua relação com o princípio da utilidade. On Liberty, provavelmente o texto mais amplamente conhecido de Mill, estréia declarando seu tema: ―O objeto a ser tratado neste ensaio é […] a Liberdade Civil ou Social: a natureza e os limites dentro dos quais o poder que pode ser legitimamente exercido pela sociedade sobre o indivíduo‖360. A influência do estado, representando a sociedade, na vida dos cidadãos e as espécies de coerções autorizadas no cumprimento de seu papel são corolários explícitos361 da questão posta. Mill demonstra preocupação com a possível tirania da maioria, fazendo uso do argumento exposto por Alexis de Toqueville em A democracia na América para se referir não só à coerção que se dá ensejo seja exercida pelos governos democraticamente eleitos sobre Tradução nossa. No original: ―In Utilitarianism, […] Mill recommends on utilitarian grounds the adoption of various 'secondary principles', such as those forbidding murder or theft, which do not in themselves make reference to welfare maximization. On Liberty is best seen as an attempt to argue for the adoption of the liberty principle as a secondary principle to govern society's legal and moral treatment of the individual.[…] But Mill is advocating a place for the liberty principle within 'customary morality', so it is no surprise to find him using arguments which make no direct reference to utilitarianism, but employ concepts which he clearly thought deserved a place in our moral thinking because of their utility‖. (CRISP, 1997, p.175.) 360 Tradução nossa. No original: ―The subject of this Essay is […] Civil, or Social Liberty: the nature and limits of the power which can be legitimately exercised by society over the individual.‖ (MILL, 1977b, p.231) 361 ―By liberty, was meant protection against the tyranny of the political rulers. The rulers were conceived (except in some of the popular governments of Greece) as in a necessarily antagonistic position to the people whom they ruled […] A time, however, came, in the progress of human affairs, when men ceased to think it a necessity of nature that their governors should be an independent power, opposed in interest to themselves.[…] The limitation, therefore, of the power of government over individuals loses none of its importance when the holders of power are regularly accountable to the community, that is, to the strongest party therein‖ (MILL, 1977b, p.p.231-232). 359 129 indivíduos362, mas também à intromissão de representantes da própria sociedade civil na vida privada do indivíduo363 por meio da opinião pública364, na ausência de um princípio limitador. Seu propósito, pois, é identificar os limites do exercício do poder estatal e da sociedade (civil) sobre o indivíduo. Busca um princípio com base no qual se possa dizer se dada ação estatal ou social é autorizada, definindo em todos os casos em que circunstâncias o indivíduo deve se submeter à sanção coletiva365. Desenvolve, pois, o assim chamado princípio do dano (harm principle), também conhecido como princípio da liberdade. Buscaremos, nas páginas que se seguirão, expressar o verdadeiro significado do princípio do dano, o qual frequentemente é tomado erroneamente como critério do agir moral. Não o é – veremos. O critério último do agir moral para Mill reside no princípio da utilidade, que não se lhe opõe. É justamente à luz do princípio da utilidade que o conteúdo do princípio do dano toma forma. Sustentaremos que On Liberty expressa uma visão particular da hierarquia de bens sociais. Uma visão empírica, não necessária (portanto, sujeita a todas as objeções comuns a qualquer raciocínio indutivo), que toma na mais alta conta a liberdade individual e seus corolários para fins do cálculo utilitário. Tentaremos, ademais, desfazer algumas confusões usuais. Bem compreendidas estas questões, pretendemos demonstrar que On Liberty, ao contrário do que vulgarmente se pensa, não é um monumento libertário, a servir de matriz para um estado mínimo; em verdade, a obra em seu todo traduz a premência da liberdade para o ser humano e especifica os princípios secundários que hão de pautar uma sociedade livre, constituindo-se num discurso nesse sentido. “Like other tyrannies, the tyranny of the majority was at first, and is still vulgarly, held in dread, chiefly as operating through the acts of the public authorities.‖ (MILL, 1977b, p.233). 363 ―Society can and does execute its own mandates: and if it issues wrong mandates instead of right, or any mandates at all in things with which it ought not to meddle, it practises a social tyranny more formidable than many kinds of political oppression, since, though not usually upheld by such extreme penalties, it leaves fewer means of escape, penetrating much more deeply into the details of life, and enslaving the soul itself. Protection, therefore, against the tyranny of the magistrate is not enough: there needs protection also against the tyranny of the prevailing opinion and feeling; against the tendency of society to impose, by other means than civil penalties, its own ideas and practices as rules of conduct on those who dissent from them; to fetter the development, and, if possible, prevent the formation, of any individuality not in harmony with its ways, and compel all characters to fashion themselves upon the model of its own.‖ (MILL, 1977b, p.233) 364 Opinião pública que Mill reputa ser uma forma de sanção externa ao lado coação propriamente exercida pelo estado, opondo-se à sanção interna, consubstanciada na auto-reprovação no âmbito da consciência. 365 ―The object of this Essay is to assert one very simple principle, as entitled to govern absolutely the dealings of society with the individual in the way of compulsion and control, whether the means used be physical force in the form of legal penalties, or the moral coercion of public opinion‖ (MILL, 1977b, p.236). 362 130 2.3.1.1 O princípio do dano (harm principle). O princípio do dano é assim formulado por Mill: “[…] a única razão pela qual o poder pode ser legitimamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra a sua vontade, é a prevenção de danos a terceiros‖366. É importante que destaquemos que Mill circunscreve a possibilidade de uso da força a casos de prevenção de danos a terceiros, e não para a prevenção de danos à própria pessoa afetada pela restrição à sua liberdade. Isso significa que, por hipótese, ―A‖ só poderia ter sua liberdade licitamente restringida por conta de danos que estariam sendo evitados a ―B‖; o que não poderia acontecer se o dano a que se buscasse evitar fosse ao próprio ―A‖. Defende que o indivíduo […] não pode ser legitimamente compelido a agir ou a omitir-se sob a justificativa de que isso será melhor para si, porque o fará mais feliz ou porque, na opinião de outros, agir dessa forma seria sábio, ou até mesmo correto. Há bons motivos para protestar junto a ele, dar-lhe razões, persuadilo ou suplicar-lhe, mas não para compeli-lo ou ameaçá-lo de qualquer mal caso aja de maneira contrária. […] A única parte da conduta de qualquer pessoa, pela qual responde perante à sociedade é aquela que afeta terceiros. Sobre si mesmo, sobre seu próprio corpo e mente, o indivíduo é soberano.367 O indivíduo, portanto, deve estar imune a qualquer coerção social relacionada a atos que afetem somente a si. Mill reserva, assim, um espaço para o indivíduo onde o estado e a sociedade são proibidos de agir. Diz que: […] há uma esfera de ação na qual a sociedade, ente distinto do indivíduo, tem, se algum, somente interesse indireto; compreendendo todas as partes da vida e do agir de uma pessoa que afetem somente a ela mesma, ou, se afetarem terceiros, desde que seja com seu livre, voluntário e inequívoco consentimento e participação. […] Esta, então, é a região apropriada da liberdade humana.368 Tradução nossa. No original: ―[…]the only purpose for which power can be rightfully exercised over any member of a civilized community, against his will, is to prevent harm to others.‖ (MILL, 1977b, p.236). 367 Tradução nossa. No original: ― He cannot rightfully be compelled to do or forbear because it will be better for him to do so, because it will make him happier, because, in the opinions of others, to do so would be wise, or even right. These are good reasons for remonstrating with him, or reasoning with him, or persuading him, or entreating him, but not for compelling him, or visiting him with any evil in case he do otherwise. […] The only part of the conduct of any one, for which he is amenable to society, is that which concerns others. In the part which merely concerns himself, his independence is, of right, absolute. Over himself, over his own body and mind, the individual is sovereign.‖ (MILL, 1977b, p.236). 368 Tradução nossa. No original: ―[…] there is a sphere of action in which society, as distinguished from the individual, has, if any, only an indirect interest; comprehending all that portion of a person‘s life and conduct which affects only himself, or if it also affects others, only with their free, voluntary, and undeceived consent and participation. […] This, then, is the appropriate region of human liberty.‖ (MILL, 1977b, p.p.237-238). 366 131 2.3.1.1.1 Autonomia como pressuposto do princípio. É de se notar, contudo, que é pressuposto do princípio do dano a autonomia plena do indivíduo. Para que o sujeito seja efetivamente soberano, deve ter atingido a maturidade de suas faculdades (mentais), sustenta Mill369. Excetuando o princípio do dano, apresenta casos em que a compulsão seria autorizada, mesmo que o objetivo não fosse a prevenção do dano a terceiros, mas a prevenção de danos ao próprio sujeito coagido. A princípio, portanto, a total ausência de coação sobre um indivíduo, salvo na ocorrência de danos a terceiro só seria aplicável na hipótese de que os indivíduos sejam autônomos. Após termos abordado o utilitarismo de Mill e os detalhes de seu particular hedonismo, parece ficar claro que o indivíduo autônomo, soberano sobre os atos a si concernentes, é ninguém mais do que seu juiz competente, plenamente conhecedor das opções de que dispõe para fins de fazer suas próprias escolhas e perseguir seu próprio bem. Mill claramente pretende que todo e qualquer indivíduo possa ser um juiz competente. A nosso ver, embora tal não seja expressamente declarado pelo autor, a ideia que este deixa transparecer é a de que a autonomia plena dos indivíduos expressa não necessariamente uma situação real em todos os seus aspectos, mas, em todo caso, um ideal, um fim a ser perseguido. É nesse sentido que Mill reforça a ideia, expressa em Considerations on Representative Government, de que o estado deve promover a autonomia dos cidadãos370. Joseph Raz vai ainda mais longe nesta linha de interpretação. Entende ser evidente a conexão entre autonomia e o princípio do dano, mas revela um ulterior aspecto desta ligação: ―O respeito pela autonomia dos outros consiste em grande parte em assegurar-lhes opções adequadas, i.e., oportunidades e a capacidade para usá-las. Privar uma pessoa de oportunidades ou da capacidade de usá-las é uma forma de causar-lhe dano.‖371 ―It is, perhaps, hardly necessary to say that this doctrine is meant to apply only to human beings in the maturity of their faculties. We are not speaking of children, or of young persons below the age which the law may fix as that of manhood or womanhood. Those who are still in a state to require being taken care of by others, must be protected against their own actions as well as against external injury.‖ (MILL, 1977b, p. 236). 370 Cf. MILL, 1977a. 371 Tradução nossa. No original: ―Respect for the autonomy of others largely consists in securing for them adequate options, i.e. opportunities and the ability to use them. Depriving a person of opportunities or of the ability to use them is a way of causing him harm.‖ (RAZ, 1986, p. 413). 369 132 2.3.1.1.2 Tipos de ação que importam restrição. Um segundo aspecto do princípio do dano diz com o tipo de ato que importa restrição da liberdade em função da prevenção de dano a terceiros. Mill diz que alguém pode causar um mal a outras pessoas tanto por suas ações quanto por suas omissões, e que, portanto, sua liberdade pode ser restringida tanto no sentido de que seja obrigada a abster-se de certo ato, quanto de que seja compelida a praticar outro (o que não faria espontaneamente). Observemos a seguinte passagem: Se alguém pratica um ato danoso a outra pessoa, há, prima facie, uma razão para puni-la, através do direito ou, quando cominações legais não forem aplicáveis com segurança, pela desaprovação geral. Há também muitos atos positivos que beneficiam terceiros os quais alguém pode ser corretamente compelido a praticar, tais como, apresentar uma prova em juízo, suportar seu quinhão na defesa comum ou envolver-se em qualquer empreendimento coletivo no interesse da sociedade, da qual ele se beneficia da proteção que ela proporciona, bem como a praticar atos que beneficiem um indivíduo em particular, tais como salvar a vida de um semelhante ou proteger indefesos contra maus tratos, atos cuja prática são obviamente deveres de um homem, podendo ele ser considerado responsável perante a sociedade por não praticá-los. Uma pessoa pode fazer mal a outras não só por suas ações, mas também por suas omissões e, em ambos os casos, ser responsabilizado pelo prejuízo. Essas últimas, de fato, exigem um exercício muito mais cuidadoso das coações a serem aplicadas do que as primeiras. Fazer alguém responder por fazer mal a outros é a regra; fazê-lo responder por não prevenir males é, em termos comparativos, a exceção.372 Desse modo, o princípio do dano serviria para não só limitar os atos que um indivíduo possa praticar, mas também para obrigá-lo a comportar-se de modo a evitar danos a terceiros. Crisp nos mostra ainda que outra questão controvertida a respeito é ―[…] se a ação do indivíduo sobre a qual se justifica a interferência tem de efetivamente estar causando dano a Tradução nossa. No original: ―If any one does an act hurtful to others, there is a primâ facie case for punishing him, by law, or, where legal penalties are not safely applicable, by general disapprobation. There are also many positive acts for the benefit of others, which he may rightfully be compelled to perform; such as, to give evidence in a court of justice; to bear his fair share in the common defence, or in any other joint work necessary to the interest of the society of which he enjoys the protection; and to perform certain acts of individual beneficence, such as saving a fellow-creature‘s life, or interposing to protect the defenceless against illusage, things which whenever it is obviously a man‘s duty to do, he may rightfully be made responsible to society for not doing. A person may cause evil to others not only by his actions but by his inaction, and in either case he is justly accountable to them for the injury. The latter case, it is true, requires a much more cautious exercise of compulsion than the former. To make any one answerable for doing evil to others, is the rule; to make him answerable for not preventing evil, is, comparatively speaking, the exception.‖ (MILL, 1977b, p.237). 372 133 outro ou se a interferência é permitida mesmo como forma de repelir um dano potencial.‖373 Diversos autores, dentre eles o próprio Crisp, sustentam que a ideia de dano por inação deveria ser lida em um sentido amplo374, o que, como corolário, deixaria um espaço muito restrito para as ações que afetem somente o indivíduo e mais ninguém. Assim, qualquer dano a terceiro, ainda que indireto e potencial, poderia justificar uma coação social, mesmo que o critério para essa ação fosse o princípio da utilidade375. 2.3.1.2 Princípio do dano e utilidade. Necessário se faz estabelecer a relação entre o princípio do dano e o princípio da utilidade, questão que dá margem a muitas interpretações errôneas 376. Como se não bastassem aquelas que veem os escritos utilitários e os escritos liberais de Mill como sistemas coerentes internamente, mas incompatíveis entre si, põe-se ainda leituras que aplicam cada princípio a esferas distintas ou até mesmo subordinam o princípio da utilidade ao princípio do dano quando o correto – pensamos – seria justamente o contrário. 2.3.1.2.1 Princípio do dano como corolário do princípio da utilidade. Defendemos que Mill vê o princípio do dano como corolário do princípio da utilidade. Como visto, o princípio da utilidade estabelece, em sua fórmula geral, que as ações são (moralmente) corretas na medida em que tendam a promover felicidade; erradas enquanto tendam a produzir o contrário da felicidade. Por felicidade os utilitaristas querem dizer Tradução nossa. No original: ―[…] whether the action of the individual justifiably interfered with must actually be causing harm to another, or whether interference is permissible in order to ward off potential harm.‖ (CRISP, 1997, p.179.) 374 Cf. LYONS, 1994, p.p.119 et seq. 375 Uma discussão abrangente do assunto pode ser encontrada em DONNER, 1991, p.p. 188-197. 376 Roger Crisp assim ilustra a aparente contradição entre ambos os princípios: ―Now consider those laws in various countries which require that anyone travelling in a car wear a seat-belt. On the face of it, this legislation is paternalistic. […] The verdict of the liberty principle is that such laws, if they rest on paternalism, are unjustifiable. When one considers the great overall gains in welfare they are likely to produce, however, the principle of utility would seem not only to allow but to recommend or even require them. For this reason, many have taken Mill‘s view in Utilitarianism and On Liberty to be irreconcilable.‖ (CRISP, 1997, p.174.) 373 134 existência de prazer e ausência de dor; por infelicidade, dor e privação do prazer. Trata-se de uma formulação compartilhada pelos autores utilitaristas como pressuposto, muito embora muitas características os distingam. Voltemos a referir que Mill adota um conceito muito amplo de prazer e dor, estabelece diferenças não só quantitativas como também qualitativas entre os prazeres, vê o princípio da utilidade instrumentalizado por princípios morais e jurídicos (princípios secundários). Já a seguinte passagem de On Liberty indica a existência de uma relação umbilical entre liberdade e utilidade, sendo a defesa daquela nada mais do que um reflexo da observância desta: Considero a utilidade como o último apelo no que diz respeito a todas as questões éticas; mas deve-se tomar a utilidade em seu sentido mais amplo possível, fundada nos interesses permanentes do homem enquanto ser progressivo. Estes interesses, eu sustento, autorizam a sujeição da espontaneidade individual a controle externo somente em relação às ações de cada um que afetem interesses de outra pessoas.377 Isto significa que, ao contrário do que se possa pensar, o utilitarismo de Mill não implica uma opção coletivista em que a felicidade geral se sobrepõe à felicidade individual; em verdade, no pensamento de Mill, o primeiro é corolário do último. Liberdade e autonomia têm posição de destaque no seu pensamento, sendo considerados não só pressupostos do cálculo utilitário, mas também como interesses sociais tomados na mais alta conta. A interpretação de Roger Crisp que dá conta da subordinação do princípio do dano ao princípio da utilidade é elucidativa: Lembremos que em Utilitarismo Mill já havia explicado como as regras de moralidade consuetudinárias, se bem fundadas, promoveriam o interesse geral. Essas regras, então, desde logo nos forneceriam um guia sobre quando estaríamos autorizados a interferir. O que Mill quer ressaltar em Da liberdade é que a moralidade consuetudinária baseada no utilitarismo não permitirá a interferência social no que diz respeito a como as pessoas vivem suas vidas, a menos que elas estejam colidindo diretamente com os interesses de outros.378 Tradução nossa. No original: ―I regard utility as the ultimate appeal on all ethical questions: but it must be utility in the largest sense, grounded on the permanent interests of man as a progressive being. Those interests, I contend, authorize the subjection of individual spontaneity to external control, only in respect to those actions of each, which concern the interest of other people.‖ (MILL, 1977b, p. 237). 378 Tradução nossa. No original: ―Recall that in Utilitarianism Mill has already explained how the rules of customary morality, if well grounded, will advance the general interest. These rules, then, already provide us with guidance on when we are entitled to interfere. What Mill wishes to stress in On Liberty is that a customary morality grounded on utilitarianism will not permit societal interference with how people live their own lives, unless they are impinging seriously on the interests of others.‖ (CRISP, 1997, p.181) 377 135 Segundo Lyons, ―Mill acredita que a felicidade será mais bem servida a longo prazo se restringirmos nossas deliberações referentes a interferências sociais coercivas, de modo que sejam fundadas somente na prevenção de danos a pessoas outras que não o agente cuja liberdade esteja sendo limitada‖379. Mas o autor vai ainda mais longe e sustenta que somente estão a justificar a coação estatal a tutela daqueles interesses permanentes do indivíduo, bens primários cuja privação sabe-se claramente que irá causa-lhe dano. Acompanhemos seu raciocínio: Mill é capaz de distinguir entre nosso conhecimento daquilo que causa dano a outras pessoas e o conhecimento de seus outros interesses. […] suas doutrinas da liberdade e da justiça claramente assumem que temos conhecimento dos interesses vitais dos seres humanos e dos maiores danos que alguém pode sofrer […] Mill acredita que determinadas condições devem ser satisfeitas para que alguém possa ter uma chance razoável de viver bem como ser humano. Ele acredita, por exemplo, que todos nós necessitamos de condições biológicas, tais como nutrição física; segurança em nossos compromissos pessoais e nos compromissos de outras pessoas conosco; liberdade de interferências externas e de costumes opressivos; e até mesmo de uma variedade de experiências e oportunidades de autodesenvolvimento. Pode-se supor que é à falta ou privação de tais coisas que principalmente Mill se refere quando fala em ―dano‖. O tipo de visão que Mill sugere é que os seres humanos têm certos interesses fundamentais em comum; afora esses, eles se diferem em grande medida. Pelo fato de serem diferentes, eles têm um especial interesse em serem deixados sozinhos o máximo possível para encontrarem seus próprios caminhos, para desenvolverem seus próprios julgamentos, para terem experiências com suas próprias vidas. Mais importante, o engajamento nessas atividades é uma parte essencial do que, na visão de Mill, significa viver bem para um ser humano e ser, pois, ―feliz‖. […]380 Tradução nossa. No original: ―Mill believes that happiness will best be served in the long run if we restrict our deliberations concerning coercive social interference so that they are predicated solely upon the prevention of harm to people other than the agent whose freedom may be limited.‖ (LYONS, 1994, p. 64) 380 Tradução nossa. No original: ―Mill can distinguish between our knowledge of what harms persons and other knowledge of their interests. […] his doctrines of liberty and justice both plainly assume that we have knowledge of the vital interests of human beings and of the major harms that one can suffer […] Mill believes that certain conditions must be satisfied if one is to have a reasonable chance of living well as a human being. He believes, for example, that we all require certain biological conditions, such as physical nutriment; security in our persons and in others' undertakings to us; freedom from others' interference and from oppressive customs; and even a variety of experiences and of opportunities for self-development. One might suppose that it is the lack or deprivation of such things that Mill chiefly refers to as ‗harm‘. The sort of view Mill suggests is that human beings have certain fundamental interests in common; beyond this, they vary a great deal. Because they vary, they have a special interest in being left alone as much as possible, to find their own ways, to develop their own judgment, to experiment with their own lives. Most important, engaging in such activities is an essential part of what it is, in Mill's view, for a human being to live well and thus be ‗happy.‘‖ (LYONS, 1994, p.p. 134-135.) 379 136 2.3.1.2.2 A proporção da coação ao dano. As compreensões esposadas por Lyons e Crisp, que indicam que a própria aplicação do princípio do dano deve ser submetida ao princípio da utilidade, corroboram, ademais, para a correção de certos equívocos na interpretação de Mill. O tratamento tradicionalmente dispensado pela doutrina especializada acerca do tema poderia conduzir à conclusão equivocada de que qualquer interesse de terceiro ferido autorizaria a prática de qualquer coação estatal. Isto significa que bastaria que um ato causasse um dano a terceiro, ou mesmo fosse potencialmente capaz de fazê-lo, para que sua prática por parte de um indivíduo pudesse ser legitimamente restringida. A este respeito, adverte Crisp que ―[…] Mill não está sugerindo que causar dano a outros, ou lesar seus interesses, é suficiente para justificar interferência. É, antes, uma mera condição necessária de justificação […]. Então o dano a outros justifica interferência quando é de interesse geral que haja interferência.‖381 No espírito do pensamento utilitarista de Mill e baseando-nos na premissa de que a ―[a]desão ao princípio da liberdade é justificada pelo utilitarismo, o que faz o princípio da liberdade permanentemente subordinado às contingências das fontes do bem-estar‖382, pretendemos ir mais adiante e sustentar que a coação autorizada é diretamente proporcional ao dano aferível, sendo que na medida do dano deve ser levado em conta também a probabilidade ou o grau de certeza quanto à sua ocorrência e quanto aos malefícios potenciais. A coação a ser aplicada, assim, teria de ser proporcional ao dano aferível. Para danos menores, menores coações; para danos maiores, maiores coações. A questão de modo algum afronta o senso comum: ninguém discordaria, v.g., que para crimes mais graves devem ser aplicadas penas mais severas, sendo verdadeira, ademais, a recíproca. Notemos que muitas das nossas leis e mesmo nossas convicções morais (todos igualmente princípios secundários, na teoria de Mill) se baseiam justamente nessa proporcionalidade, o que seria fruto da experiência histórica coletiva na esfera moral e jurídica. A restrição da liberdade somente seria, pois, admitida se o dano mensurável, i.e., uma quantificação do valor do dano, o que, Tradução nossa. No original: ―[…] Mill is not suggesting that causing harm to others, or damaging their interests, is sufficient to justify interference. Rather it is merely a necessary condition of justification […] So harm to others justifies interference when it is in the general interest to interfere.‖ (CRISP, 1997, pp.180-181). 382 Tradução nossa. No original: ―Adherence to the liberty principle is justified by utilitarianism, and this makes the liberty principle permanently subject to the contingencies of the sources of welfare.‖ (CRISP, 1997, pp.185). 381 137 v.g., no caso de um dano financeiro já ocorrido, será de todo óbvio, mas em relação a bens cujo valor seja mais etéreo e se trate de expectativa (e não certeza) de sua ocorrência (na hipótese de prevenção), a questão possa ser mais complexa. Neste último caso, cremos, teria de ser tomada em conta a probabilidade de sua ocorrência, bem como grau de certeza sobre possibilidade de aquilo causar efetivamente um dano para o indivíduo afetado (quanto mais homogêneo a preferência pelo bem ameaçado, maior será este grau, como é o caso dos bens primários). A relevância da mensuração do dano a ser evitado, pois, diz com a comparação a ser feita ulteriormente com o dano a ser infligido ao indivíduo por conta da restrição de sua liberdade. Podemos verificar que uma interpretação tal encontra guarida em On Liberty. Analisemos a seguinte passagem: Em todas as coisas que dizem respeito às relações externas do indivíduo, ele responde de jure perante aqueles cujos interesses estejam em questão, e se necessário, perante a sociedade, que lhes protege. Há frequentes boas razões para não responsabilizá-lo; mas estas razões devem emergir de especiais conveniências do caso: seja um caso em que é inteiramente provável que ele haja melhor quando deixado a seu próprio arbítrio do que quando controlado por qualquer meio de que a sociedade disponha; ou mesmo porque a tentativa de exercer controle será capaz de produzir outros males, maiores do que aqueles a que visa evitar.383 2.3.2 Os meios de acesso à verdade. Havendo constatado que, de acordo com a filosofia de Mill, de um lado, a importância da individualidade estabelece a centralidade do sujeito, como ser racional capaz (em tese) de perseguir seu próprio bem ao formular juízos consistentes e, de outro, que a utilidade da ação é aferida por meio dos princípios secundários, resta sabermos como se dá o acesso à verdade (e assim também sobretudo ao princípio da utilidade) nesta perspectiva dúplice. Tradução nossa. No original: ―There are often good reasons for not holding him to the responsibility; but these reasons must arise from the special expediencies of the case: either because it is a kind of case in which he is on the whole likely to act better, when left to his own discretion, than when controlled in any way in which society have it in their power to control him; or because the attempt to exercise control would produce other evils, greater than those which it would prevent.‖ (MILL, 1977b, p.237). 383 138 2.3.2.1 A perspectiva individual. Como havíamos visto na abordagem dos pressupostos utilitaristas comuns a Bentham e Mill, Mill adota uma perspectiva subjetiva de apreciação de bens, uma das facetas de sua afirmação individualista. Antes de mais nada, há de ficar claro quanto ao aspecto gnosiológico que a perspectiva individualista assumida por Mill não redunda em subjetivismo. Mill não limita o conhecimento humano às percepções sensoriais, não acredita que tudo o que há são preferências pessoais arbitrárias; constrói algo muitíssimo mais complexo do que isso. O que defende é a impossibilidade de ter-se certeza acerca da verdade, e refere-se especialmente à verdade das opiniões. Mill não pode ser considerado um cético. Explicando em termos rudimentares: o cético ou não admite a existência de uma realidade objetiva ou crê que ainda que tal exista, não há meio de acesso a esta realidade, de modo que tudo o que há são preferências pessoais arbitrárias. Exclui, pois, a perspectiva objetiva e somente dá conta de uma multiplicidade de subjetividades. Mill, por seu turno, reconhece a existência de uma verdade objetiva e mesmo a correlativa possibilidade de erro numa ação ou opinião de um indivíduo. O problema que ele coloca é sobre o acesso à verdade. São os indivíduos, por indução – i.e., por experiência e reflexão acerca dos fatos sensíveis – , quem têm acesso a essa realidade. A dificuldade surge quando se percebe que todos os indivíduos, em tese, têm a mesma capacidade de atingir esse limitadíssimo conhecimento do universo, conquanto gozem de autonomia (ou capacidades deliberativas – é importante destacar). Este é um ponto chave de sua filosofia, o qual tem de ser levado em conta para que possa haver um avanço na compreensão do tipo de utilitarismo defendido. A questão parece ficar clara no famoso argumento da falibilidade humana aduzido por Mill no Capítulo II para explicar a importância da liberdade de pensamento e de expressão. 2.3.2.1.1 Falibilidade Imagine-se uma situação hipotética em que ―A‖ tem uma opinião ―x‖ e ―B‖ tem uma opinião ―y‖ e que essas duas opiniões são contraditórias entre si, pois uma terceira hipótese está excluída, i.e., são opiniões do tipo que a verdade de uma implica a falsidade da outra e vice-versa. Trata-se da hipótese se “x” é, “y” não é; se “y” é, “x” não é, que geralmente é expressa em termos lógicos como x y; y x. Nesse caso, um cético poderia (i) negar a própria colocação do problema, dizendo que tanto ―x‖ quanto ―y‖ estão certas, ou (ii) que não 139 há resposta certa para a questão, que podem ambas estar certas ou ambas erradas, ou, por outro lado, poderia mesmo supor (iii) que, em todo o caso, é irrelevante a correção de ―x‖ ou de ―y‖ visto que não há critério objetivo para julgar a questão; diz: se ―x‖ está certo e ―y‖ errado ou vice-versa, jamais saberemos. As duas primeiras possibilidades negam a existência da verdade, a terceira, presume que ainda que exista a verdade, ela é inobservável. Mill, por outro lado, admitiria a hipótese de que ou ―x‖ ou ―y‖ estão corretos, mas não os dois, ou seja, aceitaria o problema, mas diria que ―A‖ pelo simples fato de ter a opinião ―x‖ não pode excluir a opinião ―y‖, pois ―A‖ é falível. O que não significa que ―A‖ não possa convencer ―B‖ de sua opinião ou que as opiniões não devam ser postas em confronto na busca da verdade, o que somente pode-se dar em um ambiente em que haja liberdade de opinião. Defende Mill haver uma grande diferença entre (i) presumir que uma opinião é verdadeira porque em todas as oportunidades em que foi contestada não se conseguiu refutá-la e (ii) assumi-la como verdadeira com o propósito de não permitir que seja refutada. Sustenta que a total liberdade de contraditar e negar nossa opinião é o que justifica que possamos assumir a verdade de nossa convicção para o propósito de ação; não havendo qualquer outra forma de um ser racional poder ter certeza de estar correto384. O homem é capaz de corrigir seus erros através da experiência e da discussão; não da experiência pura: deve haver discussão para mostrar como a experiência deve ser interpretada385. Afirma que em todos os assuntos sobre os quais opiniões divergentes são possíveis (tomando a matemática como exemplo de exceção à regra), a verdade depende de um equilíbrio a ser alcançado entre os dois conjuntos de razões conflitantes386. Mill apresenta uma série de exemplos no Capítulo II de On Liberty que buscam ilustrar seu ponto. Mill, ademais, assumindo o referido pressuposto da falibilidade humana, apresenta uma particular defesa do pluralismo (e das liberdades de opinião e de expressão de opinião Diz Mill, no original: ―There is the greatest difference between presuming an opinion to be true, because, with every opportunity for contesting it, it has not been refuted, and assuming its truth for the purpose of not permitting its refutation. Complete liberty of contradicting and disproving our opinion, is the very condition which justifies us in assuming its truth for purposes of action; and on no other terms can a being with human faculties have any rational assurance of being right.‖ (MILL, 1977b, p.242). 385 No original: ―He is capable of rectifying his mistakes, by discussion and experience. Not by experience alone. There must be discussion, to show how experience is to be interpreted.[…] Very few facts are able to tell their own story, without comments to bring out their meaning.‖ (MILL, 1977b, p.242). 386 No original: ―[…]on every subject on which difference of opinion is possible, the truth depends on a balance to be struck between two sets of conflicting reasons. Even in natural philosophy, there is always some other explanation possible of the same facts; some geocentric theory instead of heliocentric, some phlogiston instead of oxygen; […] But when we turn to subjects infinitely more complicated, to morals, religion, politics, social relations, and the business of life, three-fourths of the arguments for every disputed opinion consist in dispelling the appearances which favour some opinion different from it.‖ (MILL, 1977b, p.252). 384 140 como corolário prático) como condição de acesso à verdade, resumindo sua justificação a três pontos fundamentais: (i) a opinião divergente, a qual se pode pretender silenciar, pode estar correta; (ii) ainda que esta opinião divergente esteja errada, é possível que contenha pelo menos parte da verdade; e (iii) ainda que haja uma opinião correta, que contenha não só parte, mas toda a verdade, a menos que tal seja vigorosamente contestada, correrá o risco de ter seu sentido perdido e de ser privada de seu efeito vital sobre o caráter e sobre a conduta humanos, transformando-se em um dogma, só formalmente professado387. Assim aduz Mill, resumindo suas convicções em torno da importância da diversidade, como consectário da constatação da falibilidade humana: Que a humanidade não é infalível; que suas verdades, em grande parte, são somente meias verdades; que a unidade de opinião, a menos que resulte da mais completa e livre comparação e oposição de opiniões, não é desejável e; que, até que a humanidade seja muito mais capaz do que é hoje de reconhecer todos os lados da verdade, a diversidade não será um mal, mas um bem; são princípios aplicáveis às ações dos homens, não menos do que às suas opiniões. Assim como é útil que, enquanto a humanidade seja imperfeita, deve haver diferentes opiniões e diferentes experiências de vida, também o é que a liberdade de visões deve ser garantida aos variados caráteres, desde que não haja prejuízo a terceiros, e que o valor das diferentes formas de vida deve ser provado na prática, quando alguém se sinta apto a experimentá-los.388 No original: ―We have now recognised the necessity to the mental well-being of mankind (on which all their other well-being depends) of freedom of opinion, and freedom of the expression of opinion, on four distinct grounds; which we will now briefly recapitulate. First, if any opinion is compelled to silence, that opinion may, for aught we can certainly know, be true. To deny this is to assume our own infallibility. Secondly, though the silenced opinion be an error, it may, and very commonly does, contain a portion of truth; and since the general or prevailing opinion on any subject is rarely or never the whole truth, it is only by the collision of adverse opinions that the remainder of the truth has any chance of being supplied. Thirdly, even if the received opinion be not only true, but the whole truth; unless it is suffered to be, and actually is, vigorously and earnestly contested, it will, by most of those who receive it, be held in the manner of a prejudice, with little comprehension or feeling of its rational grounds. And not only this, but, fourthly, the meaning of the doctrine itself will be in danger of being lost, or enfeebled, and deprived of its vital effect on the character and conduct: the dogma becoming a mere formal profession, inefficacious for good, but cumbering the ground, and preventing the growth of any real and heartfelt conviction, from reason or personal experience.‖ (MILL, 1977b, p.263). 388 Tradução nossa. No original: ―That mankind are not infallible; that their truths, for the most part, are only half-truths; that unity of opinion, unless resulting from the fullest and freest comparison of opposite opinions, is not desirable, and diversity not an evil, but a good, until mankind are much more capable than at present of recognising all sides of the truth, are principles applicable to men‘s modes of action, not less than to their opinions. As it is useful that while mankind are imperfect there should be different opinions, so is it that there should be different experiments of living; that free scope should be given to varieties of character, short of injury to others; and that the worth of different modes of life should be proved practically, when any one thinks fit to try them.‖ (MILL, 1977b, p.265). 387 141 2.3.2.1.2 Individualidade como autonomia. No Capítulo III de On Liberty Mill apresenta uma valiosa defesa da individualidade, como um dos elementos do bem-estar (justamente como denomina o capítulo), daí decorrendo ―[…] o imperativo de que os seres humanos devem ser livres para formar opiniões e expressálas sem reservas […]‖, sendo ―[…] livres para agir de acordo com suas opiniões – pô-las em prática em suas vidas, sem a imposição de quaisquer empecilhos físicos ou morais por parte de seus semelhantes, desde que o façam por sua conta e risco.‖389. Mill expressa, ainda, a ideia fundamental de que É desejável, em suma, que no que diz respeito a questões não primariamente concernentes a terceiros, a individualidade deve afirmar-se. Onde não é o caráter do indivíduo, mas as tradições e os costumes dos outros que regulam a conduta, falta um dos principais ingredientes da felicidade humana e, em certa medida, o principal ingrediente do progresso individual e social. […] Caso se percebesse que o livre desenvolvimento da individualidade é uma das necessidades fundamentais do bem-estar; que não é um mero elemento coordenado a tudo aquilo que chamamos de civilização, instrução, educação, cultura, mas em si uma parte necessária e condição para todas essas coisas; não haveria qualquer risco de a liberdade ser subvalorizada, e o ajuste das fronteiras entre liberdade e controle social não apresentaria grandes dificuldades.390 Mill defende a individualidade como corolário do princípio da utilidade, sustentando que: ―[n]a medida do desenvolvimento de sua individualidade, cada pessoa se torna mais Tradução nossa. No original: ―[…] imperative that human beings should be free to form opinions, and to express their opinions without reserve […] that men should be free to act upon their opinions—to carry these out in their lives, without hindrance, either physical or moral, from their fellow-men, so long as it is at their own risk and peril.‖ (MILL, 1977b, p.265). 390 Tradução nossa. No original: ―It is desirable, in short, that in things which do not primarily concern others, individuality should assert itself. Where, not the person‘s own character, but the traditions or customs of other people are the rule of conduct, there is wanting one of the principal ingredients of human happiness, and quite the chief ingredient of individual and social progress. […] If it were felt that the free development of individuality is one of the leading essentials of well-being; that it is not only a coordinate element with all that is designated by the terms civilization, instruction, education, culture, but is itself a necessary part and condition of all those things; there would be no danger that liberty should be undervalued, and the adjustment of the boundaries between it and social control would present no extraordinary difficulty.‖ (MILL, 1977b, p.p.265266). 389 142 valiosa para si mesma e, portanto, capaz de ser mais valiosa para os outros.‖391 Mas precisamente o que Mill quer significar por individualidade? Crisp assim responde: O que é individualidade? […] pelo menos em parte, a individualidade envolve conduzir sua vida por si próprio, e não somente à base dos costumes sociais. Podemos chamar isso de autonomia, embora o termo não seja encontrado em Mill (ver cap. 3). Está claro que Mill está pensando em autonomia não como uma mera capacidade humana, cuja posse é capaz de agregar bem-estar, mas como o exercício desta capacidade no auto-governo (nomos é a palavra grega para ‗governo‘). […] Em On Liberty ele encoraja a sociedade a permitir aos indivíduos que façam suas próprias escolhas sobre como conduzir suas vidas, e estamos começando a ver como este encorajamento está fundado na visão de que assim o bem-estar será promovido.392 Como visto, em Bentham, todo indivíduo que escolhe entre prazeres é igual ao outro. Não faria sentido distingui-los, pois embora o indivíduo que aprecia o prazer seja indispensável, o simples fato de existir o torna sujeito a um prazer ou a uma dor. Como os prazeres têm valores invariáveis, o indivíduo é só um receptor que não requer qualquer qualificação. Em Mill, por seu turno, são os indivíduos autônomos, i.e., capazes de julgar acerca dos prazeres, que estabelecem um juízo definitivo acerca dos valores dos bens. Como diz Crisp, ―[s]em individualidade, não há qualquer vida de prazeres elevados‖.393 Brink reconhece que a teoria de Mill possibilita pluralismo de concepções de boa vida.394 Talvez não seja preciso, entretanto, dizer que tal se funda em se considerar esta autonomia (ou capacidade deliberativa) como constituinte da felicidade. Além de elemento da felicidade, a autonomia deve ser tomada como condição de acesso a ela, o que significa, de certa forma, considerá-la fator de perfeccionamento do indivíduo, interesse permanente do ser Tradução nossa. No original: ―In proportion to the development of his individuality, each person becomes more valuable to himself, and is therefore capable of being more valuable to others.‖ (MILL, 1977b, p.269). 392 Tradução nossa. No original: ―What is individuality? […] at least part of it will involve one running one's life for oneself, and not merely on the basis of social custom. We might call this autonomy, though that term is not found in Mill (see ch. 3). It is clear that Mill is thinking of autonomy not as a mere human capacity, the possession of which adds to one's welfare, but as the exercise of that capacity in self-government (nomos is the Greek word for 'government', while the prefix auto- means 'self'). […] In On Liberty, he encourages society to allow individuals to make their own decisions about how to run their lives, and we are beginning to see how this encouragement is grounded in the view that welfare will be so promoted.‖ (CRISP, 1997, pp.196-197) 393 Tradução nossa. No original: ―Whitout individuality, there is no life of higher pleasures‖. (CRISP, 1997, p.199) 394 Vejamos: ―Because Mill specifies the constituents of happiness abstractly in terms of capacities for practical deliberation, which can be exercised in multiple ways, his theory allows for a kind of pluralism about the good life.‖ (BRINK, 1992, p.p.79-80). 391 143 humano395. Caso a reputasse meramente como um bem de grande valor, digno de atenção especial no cálculo hedonista, Mill talvez deixasse de proscrever a escravidão voluntária (baseando-se no argumento do caráter perpétuo da escolha pela privação de toda e qualquer liberdade)396 e pudesse sustentar que o indivíduo com capacidade deliberativa poderia voluntariamente abrir mão de sua autonomia e com isso aumentar sua felicidade. Analisemos a seguinte passagem em que Mill expõe sua posição acerca da questão: Tendo dito que a Individualidade é o mesmo que desenvolvimento, e que é somente o cultivo da individualidade o que produz, ou é capaz de produzir, seres humanos bem desenvolvidos, eu agora gostaria aqui de encerrar o argumento: o que mais ou melhor pode ser dito de qualquer condição das relações humanas, além do fato de ela pôr os indivíduos mais próximos da melhor coisa que podem ser?397 A conclusão a que chega Brink na defesa de sua tese do utilitarismo deliberativo é similar àquela que preconizamos ao dizer que a autonomia do indivíduo é condição das escolhas individuais e que o princípio do dano somente se aplica a indivíduos autônomos, além de se alinhar com a conclusão expressa por Raz de que deixar de garantir autonomia a alguém significa infligir-lhe um dano. Resta acordado, assim, que são aceitáveis intervenções que garantam a autonomia do indivíduo. Tais intervenções caem fora da regra do princípio do dano. Brink defende que o princípio do dano não é o único fundamento legítimo para a restrição da liberdade; várias formas de legislação objetivando o bem-estar social são aceitáveis, diz.398 Afirma que alguns dos bens providos por esta legislação de bem-estar social – em particular, segurança pessoal, um padrão de vida minimamente decente e educação – são importantes precondições do exercício das faculdades do indivíduo para a boa deliberação prática399. Neste ponto questionamos se uma formação cultural autêntica a ser garantida por Nas palavras de Appiah, no original: ―It was part of Mill‘s view, in other words, that freedom mattered not just because it enabled other things—such as the discovery of truth—but also because without it people could not develop the individuality that is an essential element of human good.‖ (APPIAH, 2007, p.5) 396 Cf. MILL, 1977b, p. 297. 397 Tradução nossa. No original: ―Having said that Individuality is the same thing with development, and that it is only the cultivation of individuality which produces, or can produce, well-developed human beings, I might here close the argument: for what more or better can be said of any condition of human affairs, than that it brings human beings themselves nearer to the best thing they can be?‖ (MILL, 1977b, p.270) 398 No original: ―Paternalism is not always impermissible; weak paternalism is defensible. The harm principle is not the sole legitimate ground for restricting liberty; various forms of social welfare legislation are acceptable.‖ (BRINK, 1992, p.91). 399 ―Some of the goods provided by such social welfare legislation - in par ticular, personal security, a decent minimum standard of living, and education - are important preconditions of exercising one's capacities for practical deliberation well.‖ (BRINK, 1992, p.91). 395 144 direitos culturais não estaria dentre esses bens indispensáveis à autonomia do indivíduo. Voltaremos a este ponto oportunamente. Portanto, destacamos como primeiro modo de acesso à verdade no pensamento de Mill a experiência racional individual, colorário do exercício autônomo de suas capacidades deliberativas. É o indivíduo que, fazendo o uso de suas faculdades mentais, aprecia os fatos contingentes e pelo debate com seus pares formula concepções gerais sobre o mundo. Vejamos que, como já referido, o debate tem posição de destaque em seu pensamento, de modo que ainda que estejamos tratando de experiências individuais não queremos fazer referência a um tipo de reflexão apartada do mundo em que o isolamento do indivíduo seja condição de uma profunda reflexão; pelo contrário, no caso de Mill, as relações sociais são imprescindíveis na construção da verdade justamente pelo caráter falível do ser humano, o que ressalta a importância da diversidade. 2.3.2.2 A experiência coletiva e o utilitarismo de regras. Ao lado do acesso individual à verdade, repousa a experiência coletiva. O segundo modo de acesso à verdade professado por Mill está relacionado com o conhecimento cristalizado na cultura, nas regras morais e jurídicas, abrangendo as instituições e práticas sociais. Em On Liberty Mill apresentara um contraponto ao ideal de individualidade buscando enfatizar a perspectiva coletiva do conhecimento humano: […] seria absurdo sustentar que as pessoas devessem viver como se nada fosse conhecido no mundo antes de sua entrada nele; como se a experiência nada tivesse servido para mostrar que um modo de existência, ou de conduta, é preferível a outro. Ninguém nega que as pessoas podem ser, desse modo, ensinadas e treinadas na juventude, de modo a que conheçam e se beneficiem das descobertas da experiência humana. Mas é privilégio e condição própria dos seres humanos, alcançada na maturidade de suas faculdades, usar e interpretar a experiência à sua própria maneira.400 Tradução nossa. No original: ―[…] it would be absurd to pretend that people ought to live as if nothing whatever had been known in the world before they came into it; as if experience had as yet done nothing towards showing that one mode of existence, or of conduct, is preferable to another. Nobody denies that people should be so taught and trained in youth, as to know and benefit by the ascertained results of human experience. But it is the privilege and proper condition of a human being, arrived at the maturity of his faculties, to use and interpret experience in his own way.‖ (MILL, 1977b, p.266.) 400 145 Estas colocações se somam ao que Mill expressa em Utilitarianism quando descreve a relação existente entre os preceitos secundários e o princípio da utilidade. Se a individualidade como autonomia serve à busca da verdade na esfera individual, a experiência histórica, ao lado do debate garantido pela liberdade de expressão, exerce esse mesmo papel no que diz respeito na formação e desenvolvimento dos preceitos secundários, redundando no progresso da civilização em termos utilitários. É importante que destaquemos, contudo, que a perspectiva do utilitarismo de regras distingue-se daquela da filosofia da história401, presente tanto em Hegel402 como em Kant403. Por essa compreensão, os fatos históricos são reputados como orientados a um fim, tendentes a um thelos. Em um universo ordenado, racional, haveria um curso natural da história, um plano oculto, cuja compreensão é reveladora da verdade. Notemos, porém, que distinta é a hipótese de se considerar a experiência jurídica como fonte de conhecimento. Tal possibilidade já foi tematizada por Voltaire que, na explicação do verbete Histoire, escrito para a Encyclopédie, discorre sobre a utilidade da história. De forma bastante singela, o autor sustenta que sua utilidade está na possibilidade de comparação que um estadista ou um cidadão pode fazer das leis e dos costumes estrangeiros com aqueles de seu país404. A história, Bobbio assim a descreve a perspectiva da filosofia da história: ―O homem é um animal teleológico, que atua geralmente em função de finalidades projetadas no futuro. Somente quando leva em conta a finalidade de uma ação é que se pode compreender o seu ‗sentido‘. A perspectiva da filosofia da história representa a transposição dessa interpretação finalista da ação de cada indivíduo para a humanidade em seu conjunto, como se fosse um indivíduo ampliado, ao qual atribuímos as características do indivíduo reduzido. […] De acordo com a opinião comum dos historiadores, tanto dos que a acolheram como dos que a recusaram, fazer filosofia da história significa, diante de um evento ou de uma série de eventos, pôr o problema do ‗sentido‘, segundo uma concepção finalística (ou teleológica) da história (e isso vale não apenas para a história humana, mas também para a história natural), considerando o decurso histórico em seu conjunto, desde sua origem até sua consumação, como algo orientado para um fim, para um thelos.”‖ (BOBBIO, 2004, p.p.68-69). 402 Hegel, em sua Filosofia da História, sustenta que a história do mundo se apresenta como um processo racional necessário que tende a um objetivo final absoluto. Estatui que a Razão regulou e continua a regular o mundo e consequentemente a história mundial. Em relação a esta – independente, universal e substancial – existência da Razão, todo mais é subordinado, i.e., é meio para seu desenvolvimento (cf. HEGEL, 2004, p.14). 403 Kant, em Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, propõe uma história – entendida como narrativa das ações humanas enquanto manifestações da liberdade da vontade – determinada por leis naturais universais. Espera que a partir da observação desta história possa-se descobrir um curso regular tendente a um contínuo progresso (KANT, 2003, p.4). 404 Vejamos a passagem em que o autor sustenta tal posição, no original: ―Cet avantage consiste dans la comparaison qu‘un homme d‘état, un citoyen peut faire des loix & des mœurs étrangeres avec celles de son pays : c‘est ce qui excite les nations mordernes à enchérir les unes sur les autres dans les arts, dans le commerce, dans l‘Agriculture. Les grandes fautes passées servent beaucoup en tout genre. On ne sauroit trop remettre devant les yeux les crimes & les malheurs causés par des querelles absurdes. Il est certain qu‘à force de renouveller la mémoire de ces querelles, on les empêche de renaître. C‘est pour avoir lû les détails des batailles de Creci, de Poitiers, d‘Azincourt, de Saint-Quentin, de Gravelines, &c. que le célebre maréchal de Saxe se déterminoit à chercher, autant qu‘il pouvoit, ce qu‘il appelloit des affaires de poste. Les exemples font un grand effet sur l‘esprit d‘un prince qui lit avec attention. Il verra qu‘Henri IV. n‘entreprenoit sa grande guerre, qui devoit changer le système de l‘Europe, qu‘après s‘être assez assuré du nerf de la guerre, pour la pouvoir soutenir plusieurs années sans aucun secours de finances. Il verra que la reine Elisabeth, par les seules ressources du 401 146 desse modo, poderia servir de experiência apta a apontar futuros caminhos. A própria sociedade e os governantes aprendem com erros e acertos – do passado e de outras nações. Julgamos ser esta precisamente a perspectiva proposta por Mill. Vejamos a seguinte passagem de seu ensaio Bentham, em que Mill comenta o desenvolvimento do direito inglês: As leis que se mostraram adequadas para o primeiro desses estágios da sociedade, podem não se relacionar de nenhuma maneira com as circunstâncias de um segundo estágio; circunstâncias que poderiam nem mesmo ter existido a menos que algo tivesse sido feito para adaptar essas leis a este segundo estágio. Mas a adaptação não seria o resultado de um plano pensado; ela surge não a partir de alguma consideração abrangente acerca do novo estágio da sociedade e de suas exigências. O que foi feito é resultado de uma luta de séculos entre a velha barbárie e a nova civilização; entre a aristocracia feudal dos conquistadores, agarrando-se ao rudimentar sistema que estabeleceram, e os conquistados buscando sua emancipação.405 Em uma primeira passagem de On Liberty, por certo Mill parece se mostrar avesso a qualquer ideia de experiência histórica. Sustenta (dentro da concepção de falibilidade e acesso à verdade já apresentada) que […] eras não são mais infalíveis que indivíduos; que em toda era defendeuse opiniões que posteriormente foram tomadas não só como falsas, mas como absurdas; sendo certo que muitas opiniões, atualmente amplamente aceitas, serão rejeitadas no futuro, assim como opiniões do passado assim o são no presente.406 commerce & d‘une sage économie, résista au puissant Philippe II. & que de cent vaisseaux qu‘elle mit en mer contre la flotte invincible, les trois quarts étoient fournis par les villes commerçantes d‘Angleterre. La France non entamée sous Louis XIV. après neuf ans de la guerre la plus malheureuse, montrera évidemment l‘utilité des places frontieres qu‘il construisit. En vain l‘auteur des causes de la chûte de l‘empire romain blâme-t-il Justinien, d‘avoir eu la même politique que Louis XIV. Il ne devoit blâmer que les empereurs qui négligerent ces places frontieres, & qui ouvrirent les portes de l‘empire aux Barbares. Enfin la grande utilité de l‘histoire moderne, & l‘avantage qu‘elle a sur l‘ancienne, est d‘apprendre à tous les potentats, que depuis le xv. siecle on s‘est toujours réuni contre une puissance trop prépondérante. Ce système d‘équilibre a toujours été inconnu des anciens, & c‘est la raison des succès du peuple romain, qui ayant formé une milice supérieure à celle des autres peuples, les subjugua l‘un après l‘autre, du Tibre jusqu‘à l‘Euphrate.‖ (VOLTAIRE, 2010) 405 Tradução nossa. No original: ―The laws which were suitable to the first of these states of society, could have no manner of relation to the circumstances of the second; which could not even have come into existence unless something had been done to adapt those laws to it. But the adaptation was not the result of thought and design; it arose not from any comprehensive consideration of the new state of society and its exigencies. What was done, was done by a struggle of centuries between the old barbarism and the new civilization; between the feudal aristocracy of conquerors, holding fast to the rude system they had established, and the conquered effecting their emancipation.‖ (MILL, 1985a, p.182). 406 Tradução nossa. No original: ―[…] ages are no more infallible than individuals; every age having held many opinions which subsequent ages have deemed not only false but absurd; and it is as certain that many opinions, now general, will be rejected by future ages, as it is that many, once general, are rejected by the present.‖ (MILL, 1977b, p.241). 147 Entretanto, adiante, diz que ―[n]a medida em que a civilização evolui, há cada vez mais doutrinas que deixam de ser objeto de debate ou controvérsia, e o bem-estar da humanidade quase pode ser medido pelo número e gravidade das verdades que atingiram o patamar de incontestes.‖407, o que é precisamente expressão de seu utilitarismo normativista. Mill parece abraçar a experiência histórica como matriz epistemológica, acreditando em uma evolução dos preceitos secundários baseada nessa experiência, quando trata daquelas coisas que a lei deve impedir em detrimento da liberdade: Não se põe em questão aqui (pode-se dizer) a restrição da individualidade, ou o embaraço ao teste de novas e originais experiências de vida. A única coisa que se busca prevenir são aquelas que têm sido testadas e condenadas desde o princípio dos tempos até hoje; coisas que a experiência tenha demonstrado não serem úteis ou adequadas à individualidade das pessoas. Deve haver algum lapso de tempo e certa quantidade de experiência, após o que uma verdade moral ou prudencial possa ser tida como estabelecida: e tal é desejável na medida em que previne geração após geração de cair no mesmo precipício que se mostrou fatal a seus predecessores.408 Vimos que, em Utilitarianism, Mill concebia os preceitos secundários, normas morais e jurídicas desenvolvidas no curso da história, como orientações que prestam contas ao princípio da utilidade, sendo esta a concepção geral de seu utilitarismo de regras. Podemos perceber que o princípio da utilidade serve de critério para a avaliação da correção destas normas em referência à máxima felicidade, servindo também, pois, à crítica da história contingente. Esta dimensão crítica apresenta um panorama totalmente distinto do propósito do curso da história. Enquanto na filosofia da história a evolução histórica aponta o thelos, na perspectiva utilitarista de Mill o fim já está dado: a máxima felicidade, de onde surge o princípio da utilidade. Neste contexto, os preceitos secundários, forjados no curso da história, representam, antes de mais nada, marcos empíricos para a sociedade. A história é compreendida por Mill como experiência apta a orientar a sociedade na perseguição do bem coletivo; particularmente em Mill, porém, este bem se consubstancia na compreensão utilitarista de máxima felicidade dos indivíduos que a compõem. Tradução nossa. No original: “As mankind improve, the number of doctrines which are no longer disputed or doubted will be constantly on the increase: and the well-being of mankind may almost be measured by the number and gravity of the truths which have reached the point of being uncontested.‖ (MILL, 1977b, p.257). 408 Tradução nossa. No original: ―There is no question here (it may be said) about restricting individuality, or impeding the trial of new and original experiments in living. The only things it is sought to prevent are things which have been tried and condemned from the beginning of the world until now; things which experience has shown not to be useful or suitable to any person‘s individuality. There must be some length of time and amount of experience, after which a moral or prudential truth may be regarded as established: and it is merely desired to prevent generation after generation from falling over the same precipice which has been fatal to their predecessors.‖ (MILL, 1977b, p.282) 407 148 3 DIREITOS CULTURAIS E O LIBERALISMO UTILITARISTA DE J. S. MILL No Capítulo 1, buscamos descrever o modo pelo qual a problemática dos direitos culturais se apresenta diante da sociedade multicultural contemporânea, abordando inicialmente sua conformação jurídica. Vimos, ainda, que as demandas por reconhecimento partem do problema filosófico da identidade e que a proposta do liberalismo neutralista (que tem Rawls como seu expoente máximo) não parece dar uma resposta satisfatória à questão. No Capítulo 2, nosso intuito foi apresentar uma visão abrangente da filosofia liberal utilitarista de John Stuart Mill, tentando unir as pontas de sua fragmentária obra em torno de alguns elementos essenciais. Neste momento final, nosso desafio é formular uma resposta para a questão de se a filosofia liberal utilitarista de Mill é capaz de lidar adequadamente com o problema dos direitos culturais. Pelo que se pôde entrever nos pontos que nos conduziram até aqui, sugerimos que, como alternativa ao neutralismo liberal, a proposta liberal utilitarista de Mill possa revelar-se como doutrina consistente hábil a lidar com o problema posto (ainda que talvez não seja capaz de se desvencilhar de certos rótulos como o de liberalismo abrangente ou perfeccionista). Em um primeiro movimento, veremos como se coloca o papel do estado sob a ótica liberal de Mill, traçando seus contornos gerais. O segundo, por seu turno, importará na abordagem do tema cultura no interior de tal estado sob a égide do princípio da utilidade. 3.1 O estado liberal segundo Mill Como bem nos mostra Appiah, a visão de Mill de que o estado tem um papel a desempenhar no auto-desenvolvimento do indivíduo ―[…] o põe em conflito com algumas poderosas correntes do pensamento político moderno, as quais insistem que a esfera pública seja neutra em meio a diferentes concepções de bem.‖409. Rawls, por meio de seu liberalismo político, fixa as atribuições do poder político organizado frente a uma sociedade multicultural, estabelecendo desde logo o tamanho do Estado; em Mill, o tamanho do Estado será variável Tradução nossa. No original: ―[…] his view that the state has a role to play in such development brings him into conflict with some powerful currents of modern political thought, which insist that the public sphere be neutral among different conceptions of the good.‖ (APPIAH, 2007, p. 26). 409 149 de acordo com as necessidades dos indivíduos, concebidos como seres progressivos: o estado certamente será mínimo uma vez atingido um grau de desenvolvimento mais avançado da sociedade, em que os indivíduos – autônomos –, ainda que tenham convicções e interesses heterogêneos, cooperem uns com os outros na persecução de seus fins e não necessitem do estado na busca de sua felicidade410, mas, enquanto este estágio não chega, ainda lhe resta uma série de tarefas a desempenhar. O liberalismo de Mill choca-se com uma fundamental barreira erigida pelo liberalismo neutralista ao preconizar a neutralidade ética estatal. O faz em três pontos (embora o segundo conflito talvez seja meramente ilusório). Em primeiro lugar, Mill vê certas coisas como boas em decorrência de constatações empíricas, reveladas, inclusive (mas não só) pelo processo histórico (por meio do que se generalizam preferências homogêneas individuais) e identifica os casos em que os indivíduos, por alguma circunstância factual não são capazes de bem julgar ou por sua própria conta perseguir esses bens, atribuindo, pois, essa tarefa ao estado. Em segundo lugar, por considerar a autonomia valiosa em si, algo em todo caso desejável, pelas razões que já vimos (em suma, que os indivíduos devam ser juízes competentes de seus prazeres), não pode deixar de sustentar que o estado deva buscar incentivar essa dimensão individual. Em terceiro, aponta a diversidade como algo invariavelmente valioso para o acesso à verdade, incluindo aí a verdade acerca da utilidade das condutas em vista da felicidade coletiva. 3.1.1 A proteção dos bens homogêneos. A filosofia de Rawls pressupões que alguns bens sejam prioritários para qualquer indivíduo, eis que servem de garantia de que cada qual possa perseguir seus próprios interesses, fruto de suas livres preferências individuais411. Estes bens primários, decorrentes de um acordo preliminar hipotético concebido em torno do propósito de cooperação mútua Diz Mill em Princípios de economia política: ―[…] a necessidade de liberdade aumenta de intensidade, em vez de diminuir, à medida que a inteligência e as faculdades morais se desenvolvem mais. A perfeição, tanto das estruturas sociais como da moral prática, consistiria em assegurar a todas as pessoas independência e liberdade completa de ação, não sujeitas a nenhuma outra restrição senão a de não causar dano a outros […].‖ (MILL, 1996, p.p. 268-269) 411 Vejamos a seguinte passagem, no original: ―[…] the aim of the parties is to agree on principles of justice that enable the citizens they represent to become full persons, that is, adequately to develop and exercise fully their moral powers and to pursue the determinate conceptions of the good they come to form.‖ (RAWLS, 2005, p.77) 410 150 que fundaria qualquer sociedade humana, incluem direitos e liberdades fundamentais estabelecidos no primeiro princípio da justiça como equidade, as liberdades que protegem a igualdade de oportunidades da primeira parte do segundo princípio, renda e riqueza e as bases sociais do auto-respeito412. Rawls pressupõe que quaisquer bens que excedam esses bens primários, descobertos pelo exercício de uma abstração hipotética não serão homogêneos, i.e., seu valor não será compartilhado pelos indivíduos que constituem a coletividade. Rawls (e assim também Habermas) trata direitos fundamentais como se algo totalmente distinto fossem dos demais objetivos a serem perseguidos pela sociedade liberal democrática, vedando intercâmbios entre esses bens primários e outros que promovam fins diversos. Mill, como já pudemos notar, não é um libertário, muito pelo contrário: embora tenha sido influenciado pela economia clássica (especialmente pela obra de David Ricardo 413), como decorrência de sua compreensão utilitarista414, é identificado como um precursor da economia neoclássica ou ao menos uma figura de transição para esta, em que considerações acerca do bem estar dos indivíduos entram em jogo415. Em Princípios de economia política, enfrenta ―os fundamentos e os limites do princípio do ‗laisser-faire‘ ou da não-intervenção‖ (exatamente como denomina o Capítulo XI de sua obra), onde assevera que ―[…] o laisserfaire deve ser a prática geral; qualquer desvio dessa prática é um mal certo, a menos que isso seja exigido em função de algum bem ingente‖. Porém, Mill arrola ali uma série de tarefas a serem desempenhadas pelo estado que, a princípio, implicariam intervenção na esfera econômica. Mill aceita que […] como regra geral, as coisas na vida são mais bem-feitas quando se deixa liberdade de ação àqueles que têm um interesse imediato envolvido, sem controle por parte da lei ou da intromissão de algum funcionário público. As pessoas ou algumas das pessoas que executam o trabalho têm probabilidade de julgar melhor do que o governo, sobre a maneira ou os meios de se atingir o objetivo específico visado.416 Entende, porém que […] em se tratando de uma coisa na qual o povo é mau juiz, pode ser necessário que ela lhes seja mostrada e seja imposta à sua atenção durante muito tempo, e que se lhe mostrem as vantagens dessa coisa por meio de uma longa experiência, antes que aprenda a apreciá-la, o que poderá 412 RAWLS, 2005, p.181 Cf. MILL, 1981. 414 A propósito, vide RILEY, 1998. 415 Cf. MEDEMA, 2004. 416 MILL, 1996, p.524. 413 151 acontecer, ao final; ora, possivelmente nunca o povo teria chegado a isso, se a referida coisa não lhe tivesse sido efetivamente imposta, mas somente lhe tivesse sido recomendada em teoria.417 Coleciona, então, exceções ao princípio da não-intervenção que são justificáveis em razão de determinadas circunstâncias que fazem com que o indivíduo não seja o melhor juiz no caso concreto. Uma primeira exceção ocorre quando o indivíduo é de todo incapaz de julgar ou de agir por si mesmo, por ser ―[…] um lunático, um idiota, uma criança; ou então embora não seja totalmente incapaz, pode ser ainda jovem demais e não ter amadurecido para a faculdade de discernir.‖418 Outra, ―[…] quando um indivíduo tenta decidir hoje, em caráter irrevogável aquilo que será melhor para seus interesses em alguma data futura e remota. A presunção a favor do julgamento individual só é legítima quando o julgamento se funda na experiência pessoal efetiva […]‖419. Uma terceira, quando uma atividade necessária não puder ser executada por um indivíduo diretamente, como é o caso de serviços de pavimentação e limpeza das ruas. Uma quarta, quando ―[…] a interferência da lei é necessária, não para revogar o julgamento dos indivíduos no tocante a seu próprio interesse, mas para dar efeito a esse julgamento, já que os indivíduos não têm condições de fazê-lo, a não ser mediante ação conjunta […]‖420, sendo o caso da redução da jornada de trabalho. Ainda, em ―[…] casos em que aqueles atos dos indivíduos, nos quais o governo reclama o direito de interferir, não são executados por esses indivíduos em seu próprio interesse, mas no de outras pessoas […]‖, no que inclui a questão da caridade pública, cujo princípio de intervenção seria o mesmo de quando ―[…] os atos praticados por indivíduos […] envolvem conseqüências que se estendem indefinidamente para além deles, atingindo interesses da nação ou da prosperidade, aos quais somente a sociedade, com sua capacidade de ação conjunta, pode e deve atender‖421. E finalmente, quando ―[…] se trata de executar importantes serviços públicos, e até agora não há nenhum indivíduo particularmente interessado em prestá-los, e tampouco esses serviços assegurariam natural ou espontaneamente uma remuneração adequada‖422. Em adendo, refere também uma ―[…] função do governo que todos admitem ser indispensável, a saber, a de proibir e punir nos indivíduos aquela conduta que, no exercício de sua liberdade, for 417 MILL, 1996, p.525. MILL, 1996, p.528. 419 MILL, 1996, p.p.530-531. 420 MILL, 1996, p.534. 421 MILL, 1996, p.540. 422 MILL, 1996, p.545. 418 152 manifestamente lesiva a outras pessoas, trate-se do caso de força, fraude ou negligência.‖423 Mill conclui então seu raciocínio afirmando: Em tais casos, a maneira de o governo demonstrar com mais segurança a sinceridade com a qual tem por meta buscar o bem máximo de seus súditos consiste em fazer, sim, aquelas coisas que, devido à falta de capacidade da comunidade, é obrigado a assumir, mas de uma forma que não tenda a fazer aumentar e perpetuar esta incapacidade, mas a corrigi-la. Um bom governo dará toda a sua ajuda de uma forma capaz de encorajar e fomentar no povo quaisquer rudimentos que puder encontrar de um espírito de iniciativa individual.424 É importante que percebamos, contudo, que os exemplos citados por Mill dirigem-se sobretudo à Inglaterra da época e está condicionado às circunstâncias que se verificavam então; não são afirmações apodídicas, perenes, em todos os casos aplicáveis; Mill pensa sempre no contingente, o que é marca de sua filosofia. Aliás, neste sentido, também a compreensão liberal de Mill, embora subordinada a seu utilitarismo, é formulada em vista das circunstâncias da época. Neste particular, Laura Mattos nos mostra que […] para Mill, não haveria uma regra universal sobre qual deveria ser a forma de governo ou a atuação do Estado na esfera individual, social e econômica. Dependendo da situação específica, o regime político mais adequado poderia ser despótico ou democrático e a intervenção do Estado poderia ser bastante extensa ou diminuta. O importante para Mill seria que esses fossem tais que levassem ao aprimoramento dos homens e os preparassem para a próxima etapa no caminho do desenvolvimento.425 É certo, contudo, que em todos aqueles casos citados por Mill para interferência na esfera individual, o valor dos bens protegidos – independentemente do fato de não poderem ser perseguidos pelos indivíduos deixados às próprias forças - se revelou (pelo menos naquele momento) de alguma forma. Notemos que para justificar a intervenção nas hipóteses descritas por Mill não basta que o indivíduo não seja capaz de adequadamente perseguir aqueles objetivos, deve haver uma afirmação do valor inconteste desses objetivos (o que resta implícito naquelas passagens), o que significa a afirmação da contribuição desses bens para a máxima felicidade como reflexo de uma generalização de bens individuais. Em suma, são bens homogêneos (embora muitos dos quais usualmente sejam chamados de bens coletivos) cujo valor atribuído pelos indivíduos em sua generalidade resta firmado. A necessidade de o 423 MILL, 1996, p.548. MILL, 1996, p.548. 425 MATTOS, 2008, p. 136. 424 153 estado persegui-los se apresenta, assim, caso os indivíduos não tenham condições de fazê-lo por si próprios. A identificação desses bens como valiosos, o que os torna elegíveis para serem buscados pelo estado em nome dos indivíduos decorre senão do fato de ser uma questão sobre a qual não pairam controvérsias. A circunstância de a generalidade dos indivíduos os considerarem dignos de especial valor no dado momento ou mesmo o fato de no curso da história esses bens terem se revelado relevantes apontam para a utilidade da conduta de protegê-los em vista da felicidade geral. Eis a posição de David Lyons a respeito: Uma vez que temos conhecimento confiável acerca de certos interesses humanos vitais universais, a intervenção coerciva pode ser baseada na prevenção de danos, que se constituem na lesão a esses interesses. A partir daí, contudo, é mais provável que a intervenção coerciva se torne contraprodutiva. Isso em parte porque as pessoas variam significativamente em seus interesses ulteriores, de modo que o bem viver será diferente para pessoas diferentes. Mas viver bem também envolve achar seu próprio caminho. Um fator adicional, é claro, são os custos evidentes de ―compulsão e controle‖. Regras coercitivas são justificáveis somente quando os cacifes sejam comparativamente altos, os interesses a serem protegidos não sejam especulativos mas incontroversos e os interesses em si não militem contra a intervenção. […] Em outros termos: Mill sugere um argumento para identificar uma classe limitada de ―bens primários‖, a prestação dos quais é a única base aceitável para a intervenção social. Não é que não tenhamos outros interesses ou não possamos ser prejudicados de outras formas, mas o fato é que, apresentada uma visão geral dos interesses humanos, parece mais prudente limitar as políticas públicas a esses interesses e prejuízos.426 Para Mill, ademais, também haverá bens que maximizam a utilidade dos demais, cujo valor é assentado pela experiência histórica, o que, como vimos, é o caso também de sua visão liberal como produto do princípio da utilidade. São bens que já se mostraram valiosos ao longo do curso histórico, sendo cristalizados em preceitos liberais que fundam o estado de Tradução nossa. No original: ―Since we have reliable knowledge of certain universal, vital human interests, coercive intervention can be predicated on preventing harm, which is constituted by the undermining of these interests. Beyond this, however, coercive intervention is most likely to be counterproductive. This is partly because people vary a great deal in their further interests, so that living well will be different for different persons. But living well also involves finding one's own way. An added factor, of course, is the clear costs of ‗compulsion and control‘. Coercive rules can be justified only when the stakes are comparatively high, the interests to be protected are not speculative but uncontroversial, and the interests themselves do not militate against intervention. […] To put this another way: Mill suggests an argument for identifying a limited class of ‗primary goods‘, the service of which is the only acceptable basis for social intervention. It is not that we lack other interests or cannot be harmed in other ways, but rather that, given a full view of human interests, it appears wisest to limit public policy by reference to these interests and harms.‖ (LYONS, 1994, p.135.) 426 154 direito e cuja percepção de valor é, além disso, compartilhada pela generalidade de indivíduos. Certamente esses bens não se limitarão a direitos individuais, por outro lado, toda e qualquer intervenção em seu favor deverá ter em vista o valor da própria liberdade. Apreciemos a seguinte passagem: Ser impedido de fazer o que se tem propensão a fazer ou de agir segundo o que é desejável no julgamento da própria pessoa, não somente é sempre penoso, mas sempre tende, na mesma medida, a fazer definhar o desenvolvimento de alguma parcela das faculdades corporais ou mentais, sejam elas sensitivas ou ativas, e a menos que a consciência do indivíduo concorde livremente com as restrições legais, tal interferência partilha da degradação da escravatura, em grau baixo ou elevado. Dificilmente algum grau de utilidade, abaixo da necessidade absoluta, justificará uma norma proibitiva, a menos que se consiga que a coisa seja aceita pela consciência coletiva, a menos que pessoas normalmente dotadas de boas intenções já acreditem ou possam ser induzidas a crer que a coisa proibida é uma coisa que não devem desejar fazer.427 Mill, em todo caso, não apresenta uma distinção fundamental entre direitos (como bens primários) e bens de outras espécies, embora – enfatizemos – os tome em alta conta. Não está desde logo vedado o intercâmbio entre direitos e bens de outros tipos, mas o critério para essas trocas é o princípio da utilidade e o procedimento é primordialmente o processo histórico e democrático. Embora vistos como invariavelmente valiosos (por uma constatação empírica), tais bens não são imunes a objeções contrafactuais, tampouco deixam de ser intercambiáveis. 3.1.2 A centralidade da autonomia individual. O liberalismo de Rawls, como vimos, parte da afirmação da democracia como premissa – do valor inerente de um consenso político sobre questões fundamentais, o que está relacionado à concepção contratualista expressa em Uma teoria da justiça. Mill, por outro lado, apresenta uma compreensão prévia sobre a moralidade (anterior à compreensão democrática), baseada nos valores inerentes da autonomia e da liberdade428. Em Mill, a democracia aparece como consequência do desenvolvimento da autonomia dos indivíduos e 427 MILL, 1996, p.p.515-516 Razão pela qual para Mill é concebível que uma sociedade não seja democrática (o que é até mesmo desejável no caso de uma sociedade atrasada). A propósito, vide MATTOS, 2008. 428 155 condição para seu maior bem-estar429. A autonomia defendida por Rawls é a do cidadão (a autonomia política), enquanto para Mill tal é só mais uma de suas facetas430. Portanto, enquanto a filosofia liberal de Mill centra-se no indivíduo (livre para todos os efeitos, moralmente autônomo), a de Rawls é moldada sobre o conceito de cidadão (indivíduo politicamente livre, politicamente autônomo). A compreensão de Rawls não tem relação direta com a busca da felicidade individual, i.e., garante-se simplesmente o indivíduo poderá em tese perseguir aqueles bens que lhe parecerem mais importantes, não aqueles que serão em verdade mais valiosos para si em vista de sua felicidade. O sujeito livre para Rawls é o cidadão que pode conduzir plenamente sua vida política; enquanto para Mill livre é o indivíduo capaz de fazer escolhas qualificadas por si, o juiz competente431. A autonomia defendida por Rawls é a autonomia plena da vida política, a qual sustenta traduzir um valor político, e não ético, o que, como assevera o próprio autor, seria o caso de Mill e Kant. Analisemos a seguinte passagem: Essa autonomia plena da vida política deve ser distinguida dos valores éticos da autonomia e da individualidade, os quais devem se aplicar à vida toda, tanto social como individual, assim como se expressam nos liberalismos abrangentes de Kant e Mill. A justiça como equidade enfatiza esse contraste: afirma a autonomia política para todos, mas deixa o peso da autonomia ética para ser decidido em cada caso pelos cidadãos de acordo com suas doutrinas abrangentes.432 Em todo caso, devemos notar que o liberalismo de Mill é senão somente relativamente abrangente: não impõe a observância de preceitos liberais em todas as esferas da vida, tampouco bane do rol de doutrinas toleráveis toda e qualquer doutrina não liberal. O liberalismo de Mill, contudo, é particularmente abrangente no que diz respeito à concepção da autonomia como pressuposto ao pleno desenvolvimento do indivíduo. O importante, segundo Mill, é garantir que o indivíduo esteja devidamente informado das opções de que dispõe, podendo servir como juiz competente de suas escolhas e assim perseguir a vida mais feliz. Mill crê que a liberdade como autonomia permite às pessoas que sejam o melhor de si mesmas em sua perseguição da felicidade. O liberalismo de Mill está direcionado sobretudo A questão é muito propriamente colocada por Skorupski: ―Mill was always a democrat. But his criterion of democracy was the good of the people, not the will of the people.‖ (SKORUPSKI, 1998, p.25) 430 Cf. RAWLS, 2005, p.p.xlii-xliii. 431 Para uma visão abrangente do papel estado segundo Mill em oposição a Rawls vide RYAN, 1998. 432 Tradução nossa. No original: ―This full autonomy of political life must be distinguished from the ethical values of autonomy and individuality, which may apply to the whole of life, both social and individual, as expressed by the comprehensive liberalisms of Kant and Mill. Justice as fairness emphasizes this contrast: it affirms political autonomy for all but leaves the weight of ethical autonomy to be decided by citizens severally in light of their comprehensive doctrines.‖ (Cf. RAWLS, 2005, p.78) 429 156 para a liberdade de escolhas: pretende que os indivíduos sejam livres para perseguirem a vida que melhor lhes aprouver. Quer, não obstante, que estes indivíduos estejam bem informados, que não incorram em erro por ignorância, fazendo assim as melhores escolhas, o que – crê – determinará sua vida mais feliz. Percebamos que Mill não presume que tudo aquilo que um indivíduo escolher será definitivamente o melhor para si, mas acredita que o pode ser (não há melhor critério). Se no exercício pleno de suas faculdades mentais estiver e conhecer as alternativas que se lhe põem, o indivíduo será o juiz competente para perquirir sobre os maiores prazeres que o conduzem à felicidade. Embora as circunstâncias que afetam a valoração contingente dos bens possam influenciar a definição da boa vida e mesmo o papel do estado seja sempre cambiante em razão da capacidade do indivíduo de suprir suas necessidades, a afirmação da autonomia se põe como pressuposto imutável. O estado não deve determinar o que é melhor para o indivíduo; antes, deve garantir que ele possa fazê-lo por si. É, contudo, uma ilusão a assunção de que os indivíduos são sempre e desde já autônomos (o que é uma afirmação liberal frequente, pelo menos de forma implícita). A filosofia de Mill busca um perfeccionamento dos indivíduos433 de modo a tornálos capazes de perseguirem as diversas espécies de prazer. Neste ponto, contudo, em alguma medida a filosofia de Rawls se aproxima da de Mill: em sua concepção de liberalismo político, Rawls admite que deva preceder lexicamente a garantia igualitária de direitos e liberdades individuais (demandada em seu primeiro princípio da justiça como equidade) o atendimento das necessidades básicas do indivíduo, de modo que ele seja capaz de entender e exercer esses direitos e liberdades434, o que constitui um dos pontos da autonomia política plena. Percebamos, ademais, que um dos poderes morais do cidadãos, requerido pela filosofia de Rawls, é a capacidade para uma concepção de bem, o que exige faculdades de julgamento, pensamento e inferência435. Mas as consequências do pensamento de Mill parecem distender ainda mais o papel do estado neste particular. Segundo Appiah, ―[…] Mill insiste em que o governo promova as virtudes, interesses e excelências de seus cidadãos e que tais coisas lhes sejam asseguradas somente se os indivíduos estiverem dispostos a abraçá-las, em verdade, ativamente 433 É em todo caso discutível se a filosofia liberal de Mill pode ser considerada perfeccionista. Vejamos o que diz Alan Ryan: ―(…) Mill‘s liberalism is ‗perfectionist‘ in the sense that it proposes an ideal way of life; in the sense in which his contemporaries would have understood such terms, it was more nearly ‗anti-perfectionist‘ inasmuch as it repudiated the idea that the state or society generally has a right to make individuals conform to some existing ideal of good character.‖ (RYAN, 1998, p.502). 434 Cf. RAWLS, 2005, p.7. 435 Cf. RAWLS, 2005, p.81. 157 ‗erguerem-se‘ por elas‖436, explicando adiante que ―[…] o fato de que cada um de nós tem uma vida a construir pelo menos permite a hipótese de que terceiros, dentre eles o estado, possa nos auxiliar nesse projeto. E pelo menos algumas dessas possibilidades implicam algum tipo de envolvimento em nossa esfera ética‖.437 Um dos objetivos dessa intromissão na esfera ética individual para garantia da autonomia é senão o de assegurar que os indivíduos em breve possam prescindir do estado, que sempre correrá o risco de ser instrumento de tirania. Analisemos o que diz Mill a respeito: É, pois, de importância suprema que todas as classes da comunidade, até as mais baixas, tenham chance de fazer muito por iniciativa própria; que se exija de sua inteligência e de sua virtude tudo aquilo que são capazes de dar, sob todos os aspectos; que o governo não somente deixe, o quanto possível, que as próprias pessoas e classes, usando de suas faculdades administrem tudo aquilo que só a elas diz respeito, mas também que lhes permita, ou melhor, as estimule a administrar o máximo possível de suas tarefas conjuntas por cooperação voluntária […]. Na medida em que o povo for habituado a resolver seus problemas com sua própria iniciativa, em vez de deixar a solução a cargo do governo, os seus desejos se voltarão para a rejeição da tirania, em vez de se voltarem para a prática de tiranizar; ao contrário, na proporção em que toda a iniciativa e a direção real residirem no governo, e os indivíduos habitualmente se sentem e agem como tutelados perpétuos do governo, as instituições populares não desenvolvem neles o desejo de liberdade, mas um apetite desmedido por posição e poder — desviando a inteligência e a iniciativa do país da sua atividade primordial para uma mísera concorrência pelas recompensas egoístas e pelas mesquinhas vaidades burocráticas.438 Mas se o indivíduo deve ser autônomo e o estado deve (de modo aparentemente paradoxal) implementar medidas para que ele efetivamente o seja, surge então a questão de qual a extensão da intromissão na vida individual para garantia da autonomia. Joseph Raz atribui uma ampla gama de tarefas que vê decorrerem do papel de garantia da autonomia – e chega a esta conclusão a partir de uma interpretação bastante elástica do princípio do dano de Mill439. Para Raz, Tradução nossa. No original: ―[…] Mill insists that a government promote the virtues and interests and excellences of its citizens and that such things are secured only if the individual is disposed to endorse them, indeed, actively ‗stand up for them‘.‖ (APPIAH, 2007, p. 160). 437 Tradução nossa. No original: ―[…] the fact that each of us has a life to make can at least raise the possibility that others, the state among them, ought to act to help us in that project. And at least some of these possibilities entail some sort of involvement in our ethical selves.‖ (APPIAH, 2007, p. 163). 438 MILL, 1996, p.p.521-522. 439 Embora estejamos de acordo com algumas de suas consequências, acreditamos que Raz incorra em equívoco ao trazer suas justificativas para tanto. Raz, em sua obra, parece querer prescindir da compreensão utilitarista de Mill para justificar tal papel estatal. Toma o princípio do dano como critério de como implementar a moralidade, quando – o vimos – o correto seria a recondução ao princípio da utilidade, a que o princípio do dano está 436 158 […] um governo cuja responsabilidade é promover a autonomia de seus cidadãos está autorizado a redistribuir recursos, a prover bens públicos e a engajar-se na provisão de outros serviços de modo compulsório, desde que suas leis simplesmente reflitam e concretizem os deveres baseados na autonomia de seus cidadãos.440 Também assim Appiah: […] o que é necessário para que se escolha livremente? É usual mencionarse a ausência de coerção e a disponibilidade de opções, mas Mill (assim como os teóricos contemporâneos da autonomia) se preocupa também com as deformações da vontade: com preferências que são irrefletidamente legadas pelo costume, com o ―gostar em grupos‖. Assim a autonomia pessoal parece implicar muito mais do que simplesmente ser deixado à suas próprias forças […].441 Notemos que Mill assevera em On Liberty, que a [n]atureza humana não é uma máquina a ser construída a partir de um modelo e preparada exatamente para o trabalho a si prescrita, mas uma árvore, a qual precisa crescer e se desenvolver para todos os lados, de acordo com a tendência das forças interiores que a fazem um ser vivo.442 Como uma árvore, o indivíduo precisa de condições adequadas para crescer e desenvolver plenamente todas as suas potencialidades, necessitando muitas vezes de estímulos para tanto. É importante, contudo, que sob o pretexto de estimular a individualidade subordinado. (Cf. RAZ, 1986, p.p.415-416). Claro que se a autonomia é vista como boa em si, i.e., objetivamente valiosa, e o princípio do dano é tido como critério último da correção das condutas (inclusive estatais), qualquer falta de autonomia significará um dano para o indivíduo e justificará qualquer ação. Com o princípio da utilidade sempre presente, como vimos, entendemos que deve haver, em todo o caso, proporção da coação (que pode mesmo ser considerada um dano) infligida ao dano que se visa a evitar. Assim, sempre também o dano decorrente da intromissão deve ser sopesado com o dano que se quer evitar. Como já assentamos anteriormente, quanto mais indireto é o dano, menor deve ser a coação, o que resolve o problema da omissão que "causa" o dano e se aplica também à hipótese de implementação da autonomia. Para se prevenir um dano cuja coação tenha efeitos deletérios geralmente deve ser utilizada uma medida menos coativa, por exemplo, um incentivo. 440 Tradução nossa. No original: ―[…] a government whose responsibility is to promote the autonomy of its citizens is entitled to redistribute resources, to provide public goods and to engage in the provision of other services on a compulsory basis, provided its laws merely reflect and make concrete autonomy-based duties of its citizens.‖ (RAZ, 1986, p.417). 441 Tradução nossa. No original: ―[…] what is required to choose freely? It‘s customary to mention the absence of coercion and the availability of options, but Mill (like contemporary theorists of autonomy) also worries about deformations of the will: about preferences that are unreflectively bequeathed by custom, about ‗likings in groups‘. So personal autonomy seems to entail a lot more than just being left to your own devices [ …]. (APPIAH, 2007, p. 37) 442 Tradução nossa. No original: ―Human nature is not a machine to be built after a model, and set to do exactly the work prescribed for it, but a tree, which requires to grow and develope itself on all sides, according to the tendency of the inward forces which make it a living thing.‖ (MILL, 1977b, p. 267) 159 a intromissão estatal não sirva para moldar o sujeito em vista de outro critério de perfeccionamento que não a própria autonomia. Raz afirma que ―[…] as considerações acerca da autonomia pessoal não podem ditar que escolhas devem ser promovidas‖ 443. Voltando à analogia, significaria dizer que a rega, o adubo e a poda devem servir ao pleno crescimento e desenvolvimento da planta e não para moldá-la para fins estéticos. Esse, todavia, é sem dúvidas um ponto muito delicado, em que as fronteiras não estão sempre claras. A questão da cultura como ambiente de escolhas apresenta essa problemática, i.e., em certos níveis e em determinadas condições proporciona alternativas, em outros, aprisiona o sujeito a elas. Voltaremos em breve ao ponto. Por ora, suspendamos a discussão da autonomia para perquirir que outro fim pode ser considerado digno de atenção por parte do estado liberal de Mill. 3.1.3 Heterogeneidade e diversidade. Recordemos que buscamos demonstrar no capítulo anterior que a diversidade de opiniões adquire em Mill um importante status. É condição para que opiniões, inclusive quanto à utilidade das condutas, mais próximas o quanto possível da verdade possam ser vislumbradas. Entendemos que a diversidade de modos de vida deve ser reputada como algo inseparável da diversidade de opiniões. Uma evidência de que esta afirmação está correta encontra-se em On Liberty, onde Mill assevera: Não há razão para que toda a existência humana deva ser construída sob um mesmo ou sob um pequeno número de padrões. Se uma pessoa possui um mínimo de bom senso e experiência, seu próprio modo de arranjar sua existência é o melhor, não porque seja o melhor em si, mas porque é seu próprio modo. Seres humanos não são como ovelhas; e mesmo ovelhas não são todas iguais.444 Como bem aponta Appiah, Foi somente com Mill que a percepção da diversidade como algo que possa ser valioso entra no pensamento político anglo-americano corrente. Mill, influenciado pelo fascínio romântico pela diferença, pelo ―individualismo Tradução nossa. No original: ―[…] considerations of personal autonomy cannot dictate which options should be promoted.‖ (RAZ, 1986, p.418). 444 Tradução nossa. No original: ―There is no reason that all human existence should be constructed on some one or some small number of patterns. If a person possesses any tolerable amount of common sense and experience, his own mode of laying out his existence is the best, not because it is the best in itself, but because it is his own mode. Human beings are not like sheep; and even sheep are not undistinguishably alike.‖ (MILL, 1977b, p.272) 443 160 holístico‖ de Wilhelm Von Humboldt, celebra a diversidade tanto como condição como consequência da individualidade.445 Para Alan Ryan a rejeição da uniformidade (como de resto também toda a filosofia liberal de Mill) seria fundada no princípio da utilidade. Segundo o autor, em On Liberty, […] Mill negou que a implementação da uniformidade pudesse ser uma boa barganha em termos utilitários; o ensaio todo constituiu um argumento nesse sentido, uma vez que foi um argumento contra a sucumbência ao desejo de uniformidade de sentimentos, por si próprio ou por considerações de bemestar geral.446 Mill admite a pluralidade de concepções éticas, acerca da boa vida, e crê que isto deva ser visto como algo valioso. Toma o monismo como uma grave ameaça, principalmente no que diz respeito ao problema do acesso à verdade, dado o caráter falível do ser humano – tema que já enfrentamos. Não se busca garantir o pluralismo por tomar as divergências como se questões meramente estéticas fossem; muito pelo contrário: o que se objetiva é que, em razão da incerteza epistemológica, a busca da verdade seja possibilitada a partir da apresentação de distintos pontos de vista. Sempre haverá respostas corretas e, em se tratando da boa vida, é provável que haja uma pluralidade delas. Apreciemos a opinião de Alan Ryan sobre a questão: Estou inclinado a pensar que Mill sustentava o seguinte ponto de vista. Há uma resposta para a questão de quais modos de vida melhor se ajusta aos seres humanos; não é uma resposta unitária, porque a natureza humana varia em grande medida de uma pessoa para outra e, portanto, reclama respostas distintas – embora essas sejam respostas que tenham uma forma comum, pois serão respostas acerca daquilo que conduz a longo prazo ao bem-estar das pessoas em questão. Para alcançar essas respostas, precisamos experimentos de vida, por que a natureza humana é excessivamente malcompreendida. O que vemos são as manifestações da natureza humana tal como foi socializada em uma variedade de formas, muitas das quais são hostis ao florescimento humano.447 Tradução nossa. No original: ―It is only with Mill that a sense of diversity as something that might be of value enters into mainstream Anglo-American political thought. Mill, influenced by the romantic fascination with difference, by Wilhelm von Humboldt‘s ―holistic individualism,‖ celebrates diversity as both a condition and a consequence of individuality‖ (APPIAH, 2007, p. 142). 446 Tradução nossa. No original: ―Mill denied that enforcing uniformity would be a good bargain in utilitarian terms; the entire essay was an argument to that effect, since it was an argument against yielding to the desire for uniformity of sentiment, whether for its own sake or for the sake of the general welfare.‖ (RYAN, 1998, p. 506) 447 Tradução nossa. No original: ―I am inclined to believe that Mill held the following view. There is an answer to the question what ways of life best suit human beings; it is not a unitary answer, because human nature varies a good deal from one person to another, and therefore yields diverse answers - though these are answers that have a common form, since they will be answers about what conduces to the long-term well-being of the people 445 161 O que Mill quer evitar é o aprisionamento do indivíduo num modo único de conceber a vida e ver as coisas – o que, em sua época, estava atrelado à uniformidade da opinião pública. A homogeneidade de preferências pode vir a ser perniciosa, mas a saída para tal não nos parece estar somente na libertação individual dessas correntes da uniformidade de concepções vigente, mas também na existência de um ambiente social (não só político – ressaltemos) que não imponha ao indivíduo determinado modo de vida e garanta a manutenção de um meio plural, pois, como vimos, não poderíamos pensar em uma construção de opções e modos de vida ex nihilo. Para Mill seria indispensável que distintas formas de condução da vida estejam ao alcance do indivíduo, o que não nos parece impedir que essas formas estejam relacionadas a grupos culturais, ainda que muitos grupos culturais possam mesmo oprimir os indivíduos448. Adquire relevância, neste momento, a questão da passagem da diversidade de indivíduos (o que Mill tematizou) para a diversidade de grupos. Analisemos a sua relação: a diversidade de grupos pode ser concebida como uma faceta da diversidade de indivíduos; um grupo cultural representaria uma coletividade de indivíduos com certos valores (ou até mesmo perspectivas éticas completas) homogêneos. Evidentemente, o grupo não deve ser visto como uma mera abstração; há certa organicidade nos grupos que lhes confere existência independente de seus componentes, de modo que é não só a identificação de interesses que leva à participação no grupo, mas também a participação do grupo conduz o indivíduo a certas preferências (fornece-lhe um ambiente ético, um horizonte ou quadro, como o chama Taylor). Com a crescente heterogeneidade de preferências individuais vinculadas a grupos culturais que pode ser verificada nas sociedades multiculturais contemporâneas, deparamonos com um panorama totalmente distinto daquele com o qual se defrontava Mill a sua época. Era então necessário evitar que o costume – padronizante – tiranizasse a individualidade449, ao in question. To reach those answers, we need experiments in living because human nature is exceedingly illunderstood. What we see is the manifestations of human nature as it has been socialised in a variety of ways, of which many are inimical to human flourishing.‖ (RYAN, 1998, p. 536). 448 Abordaremos essa tensão adiante. 449 Tal passagem de On Liberty, no original, bem ilustra esse ponto: ―Whoever thinks that individuality of desires and impulses should not be encouraged to unfold itself, must maintain that society has no need of strong natures—is not the better for containing many persons who have much character—and that a high general average of energy is not desirable. In some early states of society, these forces might be, and were, too much ahead of the power which society then possessed of disciplining and controlling them. There has been a time when the element of spontaneity and individuality was in excess, and the social principle had a hard struggle with it. The difficulty then was, to induce men of strong bodies or minds to pay obedience to any rules which required them to control their impulses. To overcome this difficulty, law and discipline, like the Popes struggling against the Emperors, asserted a power over the whole man, claiming to control all his life in order to control his 162 passo que hoje, embora haja alguma preocupação com a padronização da cultura, a existência de uma série de grupos culturais com os quais há identificação de indivíduos resulta num ambiente plural, em que distintas visões (ainda que parciais, nem sempre cosmovisões) se apresentam como alternativas (ainda que não incondicionadas). A promoção da diversidade, assim, ganha novos contornos. Podemos notar que, em comunidades políticas com um alto grau de homogeneidade cultural, o contexto cultural provavelmente não requeresse qualquer tipo de atenção estatal. Hoje se mostra importante garantir não só a sobrevivência de grupos culturais ameaçados, mas também a segurança e estabilidade de distintas comunidades culturais450, demandas que se servem dos direitos culturais. 3.2 Cultura e princípio da utilidade. O melhor estado é aquele que proporcione o máximo de felicidade possível a seus membros – esta é a afirmação utilitarista fundamental; tal não significa, contudo, que o poder político organizado deva se imiscuir em todas as esferas da vida humana. Para a consecução do seu fim precípuo, o estado milliano, cujos contornos buscamos apresentar no ponto precedente, traja-se com alguns figurinos básicos. A liberdade individual na Inglaterra da época de Mill e no Brasil de hoje certamente foi e é um ingrediente essencial para a garantia dessa máxima felicidade. Por outro lado, sociedades multiculturais apresentam múltiplas concepções de boa vida e, pois, demandas fundamentais que variam de acordo com cada cultura. Como essas demandas devem ter lugar numa compreensão liberal utilitarista é uma questão que ainda deve ser melhor esclarecida. Precisamos estabelecer ainda a forma pela character—which society had not found any other sufficient means of binding. But society has now fairly got the better of individuality; and the danger which threatens human nature is not the excess, but the deficiency, of personal impulses and preferences. […] In our times, from the highest class of society down to the lowest, every one lives as under the eye of a hostile and dreaded censorship. Not only in what concerns others, but in what concerns only themselves, the individual or the family do not ask themselves—what do I prefer? or, what would suit my character and disposition? or, what would allow the best and highest in me to have fair play, and enable it to grow and thrive? They ask themselves, what is suitable to my position? what is usually done by persons of my station and pecuniary circumstances? or (worse still) what is usually done by persons of a station and circumstances superior to mine? I do not mean that they choose what is customary, in preference to what suits their own inclination. It does not occur to them to have any inclination, except for what is customary. Thus the mind itself is bowed to the yoke: even in what people do for pleasure, conformity is the first thing thought of; they like in crowds; they exercise choice only among things commonly done: peculiarity of taste, eccentricity of conduct, are shunned equally with crimes: until by dint of not following their own nature, they have no nature to follow: their human capacities are withered and starved: they become incapable of any strong wishes or native pleasures, and are generally without either opinions or feelings of home growth, or properly their own. Now is this, or is it not, the desirable condition of human nature?‖ (MILL, 1977b, p.p.268-269) 450 Cf. KIMLYCKA, 1991. 163 qual o contexto cultural se conforma com a demanda de garantir máxima autonomia individual. Proporemos doravante, pois, que a cultura se relaciona essencialmente de duas formas com o princípio da utilidade: como bem a ser considerado no cálculo utilitário, conjuntura em que os direitos culturais se apresentam como princípios secundários, mas também como matriz de escolha de bens, momento em que pode estabelecer uma tensão com a autonomia, bem valioso em si na filosofia política esposada. No ponto 3.2.1 sustentaremos que a visão abrangente de Mill a respeito dos prazeres (i.e., sua particular forma de hedonismo) é capaz de abranger bens não imediatamente quantificáveis, mas que têm papel essencial no plano individual da felicidade. Veremos como a cultura se apresenta diante deste panorama. No ponto 3.2.2, debruçar-nos-emos sob o problema de como essas demandas devem se adequar com o propósito de proteção e promoção da autonomia individual, tendo-se como pressuposto que autonomia significa a possibilidade de fazer escolhas livres e que o próprio contexto cultural influi significativamente nas preferências individuais. A partir dessas considerações cremos poder posicionar os direitos culturais no pensamento de Mill, dados os papeis que se apresentam, de modo a estabelecer definitivamente como utilidade e cultura se relacionam no contexto dos princípios liberais apresentados. 3.2.1 A cultura como bem. A cultura pode ser concebida, sob uma primeira ótica, como um bem subjetivamente apreciado. A partir dessa perspectiva, o respeito dispensado aos grupos culturais não decorre da circunstância de serem tidos como organismos autônomos (o que é uma forma usual de conceber o problema); a relevância dos grupos está fundada na importância que lhe atribui o indivíduo. Ademais, bens culturais são coletivos ou sociais somente na medida em que traduzem interesses compartilhados por uma coletividade de indivíduos. Os interesses de um grupo, por certo, não dirão respeito diretamente ao indivíduo, mas o que deve contar para fins de aferição da utilidade da conduta é o bem individual mediato dele decorrente desse bem coletivo. Como restou estabelecido, o princípio da utilidade, critério último do agir moral segundo Mill, demanda a maximização dos bens que se constituem de generalizações de 164 preferências individuais. Mill trata liberdades e direitos individuais fundamentais como demandas baseadas em necessidades comuns a todos os indivíduos. De fato, as experiências coletiva e individual evidenciaram até o presente momento o alto valor desses direitos básicos, mas não haveria qualquer óbice ao reconhecimento de outros bens com o mesmo status. Percebamos que também o reconhecimento cultural pode ser concebido – e o é cada vez mais – como um bem essencial. No Capítulo 1, vimos que os direitos culturais no ambiente multicultural das sociedades contemporâneas se desenvolveu. Lembremos que Kimlycka, buscando espaço para os direitos culturais na teoria de Rawls, reputa a membresia cultural como um bem primário451, acreditando que o suposto conflito entre direitos individuais e direitos culturais não passaria de uma miragem, pelo que serviriam também esses últimos aos fins do liberalismo individualista (muito embora o autor defenda ser a cultura sobretudo um contexto de escolhas, questão que abordaremos adiante). Em todo caso, como já referimos, em Mill, não há uma cisão entre bens primários universais, que, decorrentes de uma racionalização, são tratados como direitos fundamentais e outros, que, não obstante contribuam de forma essencial para a felicidade individual, recebem tratamento distinto; por sua compreensão hedonista-utilitarista, todos os bens são intercambiáveis e quem os hierarquiza é o indivíduo autônomo, juiz competente, que pode se valer da experiência histórica452. Os princípios liberais, subordinados ao princípio da utilidade, não formam uma barreira a outros bens. São importantes no pensamento de Mill, mas não são capazes de impedir o reconhecimento e a tutela de outros bens que a experiência histórica demonstrou serem fundamentais. A liberdade não é um trunfo; os princípios liberais professados por Mill são vistos como preceitos secundários essenciais à maximização da utilidade das condutas. A liberdade como autonomia tem valor em si, mas é indispensável que não se compreenda a autonomia como algo que se opõe logicamente ao reconhecimento da importância dos laços culturais. A visão ampla acerca dos prazeres apresentada por Mill (em contraposição à de Bentham), ademais, deve redundar senão em uma concepção de felicidade que tome em 451 Cf. KIMLYCKA, 1991. Amy Gutmann descreve a compreensão liberal tradicional que erige uma barreira entre esses bens primários e os demais interesses do ser humano, nos seguintes termos: ―On this view, our freedom and equality as citizens refer only to our common characteristics—our universal needs, regardless of our particular cultural identities, for ‗primary goods‘ such as income, health care, education, religious freedom, freedom of conscience, speech, press, and association, due process, the right to vote, and the right to hold public office. These are interests shared by almost all people regardless of our particular race, religion, ethnicity, or gender. And therefore public institutions need not—indeed should not—strive to recognize our particular cultural identities in treating us as free and equal citizens.‖ (GUTMANN, 1994, p.4). 452 165 consideração as relações culturais e a cultura do indivíduo, independentemente de seu conteúdo. Se a promoção de um dado bem se mostra indispensável à boa vida, na conta utilitária este bem deve ser considerado em grande peso. Se o indígena tem de viver em sua terra ancestral e isso tem um papel fundamental para sua vida feliz, tal deve ser levado em consideração453. A constatação da posição que a identidade cultural ocupa na vida de cada ser humano (tratada no ponto 1.2.2), conduz à conclusão de que privar alguém de sua identidade por falta de reconhecimento significa despojá-lo de um elemento essencial a seu bem estar. Além disso, pelo fato de a contribuição fundamental desses laços culturais para a felicidade individual ser algo generalizado, podemos afirmar que a existência e a firmeza de tais relações devem ser tomados em alta conta no cálculo utilitário. Neste momento, um par de objeções que diz respeito à heterogeneidade desses bens pode ser trazida. Em primeiro lugar, aduz-se que os bens culturais são distintos entre si, eis por que sua tutela estaria atrelada não à igualdade, mas à diferença. É fácil notarmos, contudo, que tal diferença diz com o bem cultural em concreto; o bem em abstrato será, de fato, o mesmo454. O ponto crucial é que a mesma necessidade individual esteja sendo suprida, embora tal possa se dar de formas distintas. Seu conteúdo certamente irá variar, mas o papel que exerce em relação a todo indivíduo é o mesmo. Em segundo, alega-se que direitos culturais não seriam aplicáveis igualmente a todos, mas principalmente a grupos minoritários, o que feriria uma máxima de igualdade. Essa é uma objeção plausível se pensarmos na igualdade em termos de direitos e não de bens (pressupostos da felicidade na compreensão hedonista). A teoria de Mill, entretanto, não é baseada prioritariamente em direitos, mas em bens que são reflexos de prazeres e ausência de dores. Os direitos são instrumentos de uma atividade estatal de promoção desses bens, forjados no curso histórico por um processo social e político, frequentemente democrático, cuja maximização, instruída pelo princípio da utilidade, pode requerer sua aplicação não isomórfica. Enquanto uns gozam naturalmente de um contexto social estável, outros (especialmente minorias culturais) reclamam tutela estatal. Notemos que tanto os direitos sociais quanto os direitos culturais aplicam-se somente àqueles indivíduos que não têm condições de por si próprios suprirem sua demanda subjacente 455. O direito, portanto, não é generalizado; a demanda pela membresia cultural e por seu correlato 453 Isso não significa que a demanda deva ser atendida, mas, ao mesmo tempo, também não pode implicar sua simples desconsideração sob a alegação que não é algo que seja compartilhado por todos. 454 Seria desnecessário dizer que assim como para garantir direito a habitação não se demanda que a mesma moradia ou moradias idênticas sejam oferecida para dois indivíduos distintos, no caso dos direitos culturais, os bens culturais protegidos não são os mesmos para membros de distintas comunidades culturais. 455 Sob este prisma, direitos culturais seriam inimagináveis em um estado avançado da civilização em que todos fossem capazes de preservar e desenvolver suas próprias culturas. 166 reconhecimento, sim. Esta demanda constitui um bem homogêneo no sentido a que nos referimos no ponto 3.1.1, autorizando que o estado possa atendê-la pela implementação de direitos culturais. Percebamos que esta interpretação desfaz a oposição entre políticas de igual dignidade e políticas de diferença, apresentando uma fundamentação filosófica única para ambas as classes (agora ilusórias) de demandas456. O utilitarismo pressupõe que sempre haverá condutas que maximizam a felicidade geral. Em Mill, contudo, não temos acesso direto a este cálculo; a verdade acerca da utilidade se revela não só a partir de nossa experiência individual, mas também pelos princípios secundários, descobertos e desenvolvidos no curso da história, inclusive pelo processo político-democrático. Sempre haverá algo que está precisamente mais adequado ao princípio da utilidade, embora não seja tarefa fácil determinar o que exatamente. A experiência demonstrou o valor da cultura para o indivíduo, o que se tornou mais evidente nas sociedades multiculturais, clamando tutela estatal. Tudo aquilo que é importante para o indivíduo, seu vínculo com a comunidade, com a nação ou com qualquer tipo de grupo de identificação deve ser contabilizado no cálculo utilitário, ainda que seu grau possa variar. Os direitos culturais, na medida em que generalizam a proteção a esses contextos culturais e implementam políticas de reconhecimento, podem ser concebidos (à semelhança dos direitos e garantias individuais) como princípios secundários que instrumentalizam o princípio da utilidade. Vejamos, de outro lado, que a identidade do grupo cultural aqui tem de ser vista como algo valioso para o indivíduo e não algo valioso em si. A compreensão individualista de que compartilha Mill impõe que seu valor decorra da participação que tem na felicidade individual. Não pode ser concebido como algo não intercambiável. Pode-se abrir mão de liberdade em prol de bens culturais e a recíproca também é verdadeira. O que parece não se poder conceber é a total renuncia à autonomia em detrimento de um dado contexto cultural. Veremos a seguir como essas duas dimensões – cultura e autonomia – se relacionam. Em suma, pensamos ter restado clara a importância generalizada da identidade cultural na vida pessoal, o que hoje não é uma questão controvertida. Tal constatação, todavia, advém do reconhecimento de uma realidade com a qual Mill não se defrontava na época 457: hoje está mais claro que, assim como determinadas garantias liberais, a identidade cultural também é 456 Cf. ponto 1.2.2.2. Pois, como referimos, Mill vivia num ambiente em que um alto grau de homogeneidade se apresentava e a comunidade política se identificava, em grande medida, com a comunidade cultural. A membresia cultural, assim, era um bem naturalmente gozado pela grande maioria das pessoas. 457 167 um bem fundamental. Esse panorama parte da evolução da moralidade consuetudinária, de constatações empíricas e das próprias normas jurídicas, todas concebidas na sociedade multicultural. 3.2.2 A cultura como matriz social e a escolha de bens. Vimos que Charles Taylor traça um panorama que nos indica que a perseguição da boa vida está intimamente relacionada com os quadros sociais com os quais os indivíduos se identificam. Estes quadros serviriam de plano de fundo e seriam determinantes para os julgamentos individuais acerca do que é bom, estimável, admirável ou valioso458. São, portanto, parâmetros que nos orientam em nossas escolhas, especificando assim o que é importante para nós, com a decorrente hierarquização pessoal de bens. É pelas redes de interlocução, no interior das comunidades culturais, que surgiria um contexto cultural em que concepções éticas são forjadas e compartilhadas. Vimos ainda que John Stuart Mill apresenta uma particular compreensão acerca da felicidade: seu hedonismo qualitativo centrado na figura dos juízes competentes. Além disso, estabelece um conjunto de convicções liberais que decorrem, em última análise, do princípio da utilidade e oferece um panorama acerca do acesso à verdade que valoriza a diversidade e os princípios secundários. Estes achados conduzem sua filosofia a reputar a autonomia como pressuposto ao pleno desenvolvimento do indivíduo, algo em todo caso valioso, cuja garantia pode demandar, ademais, prestações estatais. Se aceitarmos ambos os conjuntos de afirmações como verdadeiras, não seria descabido supormos que um indivíduo privado de seu contexto cultural – e, portanto, de seus quadros identitários – não gozaria de toda autonomia de que necessita para fazer escolhas livres e informadas. Para que o indivíduo fosse autônomo e tivesse uma concepção de bem, seria indispensável que se mostrasse inserido num contexto cultural459; sua própria concepção de bem, concebida ex nihilo, não bastaria para que fosse juiz competente acerca dos maiores prazeres que conduzem à vida feliz. Assentadas essas premissas, a melhor forma de assegurar a autonomia plena dos indivíduos em atenção ao princípio da utilidade pareceria ser pela 458 Cf. TAYLOR, 1989. Appiah, assim formula tal perspectiva: ―It might seem that human flourishing — our individual well-being — demands the flourishing of the identity groups within which the meaning of our lives takes its shape‖ (APPIAH, 2007, p.73). 459 168 implementação de políticas de reconhecimento através dos historicamente reconhecidos direitos culturais. Essa solução, entretanto, não é capaz de encerrar a questão, pois nem todas as afirmações de Taylor parecem ser rigorosamente compatíveis com a filosofia de Mill. Pensamos que Mill certamente não poderia compartilhar a ideia de que o contexto de escolhas fosse algo totalmente subordinado à comunidade cultural, como uma mera função dela. A inconformação de Mill com o ―gostar em multidões‖460 (não obstante se referisse a um contexto em que a diversidade não tinha espaço) não deixa de revelar seu apreço pela individualidade em sentido estrito; em alguma medida, uma espécie de interioridade a que Taylor denomina inwardness461. De certa forma, a individualidade neste sentido específico, i.e., como expressão sinônima de autenticidade, lhe é muito cara462. Mil concebe-a originalmente como a liberdade de amarras que transcendam a espontaneidade do indivíduo, que o impede de ser um mero imitador463; como algo que aflui do indivíduo concebido como ser único, patamar em que estabelece um nível máximo de diferença em relação a todos os demais (mas que também é fonte de identificação por sua abstração). Por outro lado, com temos sustentado464, o que Mill parecia ter em mente ao proscrever a aderência irrefletida a padrões sociais de conduta previamente estabelecidos não era a afirmação do valor absoluto dessa autenticidade transcendente. Mill, em verdade, se preocupava precipuamente com a ausência de diversidade, que conformava então um pensamento único, prejudicial ao conhecimento das opções existentes e, portanto, à liberdade de escolhas. Preconizando uma postura crítica diante do costume465, seu receio seria o de que a opinião pública se transformasse num jugo tirânico, ―[…] reduzindo todos a uma submissa uniformidade de pensamentos, sentimentos e ações‖466, o que está relacionado a seu argumento, já discutido, da falibilidade humana. Em uma sociedade altamente homogênea em 460 Cf. MILL, 1977b, p. 268 Cf. TAYLOR, 1989, p.p.111-304 462 Diz em Princípios de economia política: ―[…] quaisquer que sejam as instituições políticas em que vivermos, existe em torno de cada ser humano individual um círculo que a nenhum governo — quer se trate do governo de uma pessoa ou do governo de alguns, ou do governo da comunidade — deve ser permitido ultrapassar; há uma parte da vida de cada pessoa que já chegou ao uso da razão dentro da qual a individualidade dessa pessoa deve reinar, sem ser controlada por algum outro indivíduo nem pelo público em geral.‖ (MILL, 1996, p. 515). 463 Atentemo-nos para a seguinte passagem de On liberty, no original: ―He who lets the world, or his own portion of it, choose his plan of life for him, has no need of any other faculty than the ape-like one of imitation. He who chooses his plan for himself, employs all his faculties.‖ (MILL, 1977b, p. 267). 464 Cf. ponto 3.1.3. 465 Vejamos: ―It will probably be conceded that it is desirable people should exercise their understandings, and that an intelligent following of custom, or even occasionally an intelligent deviation from custom, is better than a blind and simply mechanical adhesion to it.‖ (MILL, 1977b, p. 267). 466 MILL, 1996, p.269. 461 169 termos culturais, oprimida pela opinião pública, Mill via a libertação desses grilhões sociais passar pela afirmação da autenticidade. Sem prejuízo, uma fonte ulterior de diversidade, que mesmo projeta a diversidade individual, poderia ser identificada nos diversos grupos que se colocam no panorama das sociedades multiculturais, o qual Mill não tinha condições de antever. Destaquemos desde logo que, partindo-se dessa premissa, embora a multiplicidade de contextos culturais possa ser celebrada, não se pode conceder espaço no interior da filosofia de Mill para comunidades culturais fechadas (o que contradiz algumas compreensões comunitaristas). Notemos que, ao mesmo tempo, o aspecto social do indivíduo se encontrava presente na obra de Mill. A interdependência entre indivíduo e sociedade, o caráter natural do vínculo social e o papel da moral consuetudinária a desenvolver preceitos secundários, hábeis a otimizar a utilidade, foram propostos pelo filósofo. Percebendo este nuance, Alan Ryan, após ter feito um apanhado das implicações das visões de Mill sobre o papel estatal (que não destoam significativamente daqueles que aqui apresentamos, embora tenhamos algumas divergências pontuais), sintetiza o resultado de seu empreendimento dizendo: Mill foi em diversos sentidos do termo um ―liberal comunitarista‖. Acreditava que a filosofia social deveria começar contemplando os seres humanos não como em um estado de natureza ou sob um véu de ignorância, mas imersos em seus contextos sociais. Ele não compartilhava a ontologia de Hobbes e Locke nem as convicções metodológicas de Rawls. Mill não tinha dúvidas de que uma importante verdade é que nós crescemos em comunidades de diversas espécies, e que formamos nossas ideias e nossos ideais no curso do aprendizado da vivência com os outros. Ele pensava que a maioria de nós acharia difícil imaginar-se fora do contexto social em que nos movemos; almejava criar uma sociedade de liberais, não uma coleção de mônadas liberais. […] Não obstante, Mill não foi um comunitarista pelo menos em dois outros sentidos […]. Pelo fato de Mill ser um empirista e um naturalista, pensava nos indivíduos somente como criaturas parcialmente socializadas.467 Desse modo, é possível que tanto a individualidade em sentido estrito quanto a sociabilidade devam exercer um papel importante na questão da autonomia individual. A Tradução nossa. No original: ―Mill was in several senses of the term a ‗communitarian liberal‘. He thought social philosophy should begin by contemplating human beings not in a state of nature or behind a veil of ignorance, but immersed in their social setting. He shared neither the ontology of Hobbes and Locke nor the methodological convictions of Rawls. Mill had no doubt that it was an important truth that we grow up in communities of different kinds, and form our ideas and ideals in the course of learning to live with others. He thought that most of us find it difficult to imagine ourselves outside the social settings in which we move; and he wanted to create a society of liberals, not a collection of liberal monads. […] Nonetheless, Mill was not a communitarian in at least two further ways […]. Because Mill was an empiricist and a naturalist, he thought of individuals as only partially socialized creatures.‖ (RYAN, 1998, p.530) 467 170 identidade individual seria assim concebida apenas como parcialmente dialógica. Parece-nos que as concepções éticas se dão tanto na relação com a comunidade quanto com o próprio ser. Cremos que ao lado da dimensão social da identidade se põe outra puramente subjetiva468, devendo a autonomia depender do binômio individualidade-socialização. O contexto cultural, assim, não é tudo, mas também não é nada: é um dos elementos da autonomia. Como nos mostra Appiah, não há oposição entre o ser que julga e a sociedade: o bem da individualidade não significa a ausência de amarras sociais469. Pelo contrário, o autor demonstra que há uma complexa interdependência entre auto-criação e sociabilidade470, e que a individualidade pressupõe sociabilidade471. Valendo-nos dessa forma de conceber o pensamento milliano, o que queremos propor então é o seguinte: o contexto cultural, uma vez que propicie ao indivíduo a faculdade de fazer escolhas, então servirá para ampliar a autonomia; no momento em que impuser as preferências como instrumento de sanção a cultura se torna tirânica. A promoção do contexto cultural, v.g., certamente poderá garantir que a vida tribal seja mantida em grande medida, mas de nenhuma forma pode garantir a prática cultural consubstanciada na liberdade dos chefes tribais de matarem crianças que apresentem algum tipo de deformidade. Entenda-se bem, estamos falando, ademais, do interior de uma sociedade que reconhece direitos fundamentais como decorrência de um desenvolvimento histórico que maximiza a utilidade social e que, da mesma forma, compreende a importância de direitos culturais. As comunidades culturais devem servir para ampliar o leque de escolhas individuais e assegurar a manutenção da diversidade de concepções éticas, não restringi-lo. A comunidade cultural pode ser prejudicial ao desenvolvimento do indivíduo, não temos dúvida disso. É permanente o risco de que o contexto cultural que garante a autonomia transforme-se em um instrumento de opressão. A cultura não deve aprisionar o indivíduo; reconhecimento não pode ser confundido com imposição472. Appiah apresenta uma usual alternativa para este problema: a possibilidade de se requerer um direito de saída da comunidade cultural473 como condição para a renúncia 468 Cf. OLIVEIRA JUNIOR, 2006, p. 166. Cf. APPIAH, 2007, p.15. 470 Cf. APPIAH, 2007, p.17. 471 Cf. APPIAH, 2007, p.20. 472 O que não deixa de gerar um novo problema, pois, como bem coloca Appiah, não há uma clara linha divisória entre reconhecimento e imposição, a diferença entre parâmetros e limites é uma questão fluida e variável. (APPIAH, 2007, p. 111) 473 Diz: ―For those who seek to reconcile group and individual autonomy—who seek to exalt the freedom of association without utterly scanting conventional autonomist considerations—the right of exit has become a 469 171 voluntária da autonomia que pode ser requerida no interior de um dado grupo cultural, por mais que tal direito de saída possa ir de encontro com a própria crença comunitária. Como já referimos, Mill desaprovara a escravidão voluntária justamente sob o argumento de sua perpetuidade; jamais poderia admitir que alguém fosse posto sob o jugo de práticas culturais que restringissem sua autonomia – ainda que tal pessoa houvesse originalmente consentido com isso – sem que fosse possível o abandono daquela comunidade. É, em termos prático, difícil e, em verdade, mesmo indesejável que a pertinência cultural não seja originalmente imposta, i.e., que a entrada não seja obrigatória; uma porta de saída, contudo, tem de estar sempre aberta. Apreciemos a proposta desde o ponto de vista das preferências, sob a luz do hedonismo milliano: se o contexto cultural tem uma importância tão grande assim para as pessoas em geral, então certamente a saída dessa comunidade cultural, uma espécie de banimento, significaria para elas um grande mal. Mas se ainda assim um dado indivíduo opta pelo banimento voluntário isso deve significar senão que os bens pelos quais está optando, ou os males os quais está deixando de padecer no interior da comunidade são muitíssimo significativos. A compreensão de Mill não desconsidera o fato de o indivíduo, ao agir, partir de um calculo de maximização da felicidade; entende, contudo, que inúmeros são os bens que entram nesse cálculo e que o indivíduo está sempre suscetível a incorrer em erro. Não admitir a saída de uma comunidade cultural significaria reconhecer um valor absoluto ao contexto cultural. O contexto cultural tem, portanto, de garantir autonomia ao indivíduo, e não suprimila, de modo que um panorama multicultural é desejável, mas a possibilidade de renúncia a uma cultura tem de estar sempre à disposição do indivíduo. As preferências decorrentes do contexto cultural têm de influenciar o indivíduo, mas a partir dele florescer como um aspecto da individualidade, de modo que ele seja agente e não objeto. O ambiente cultural deve, ademais, assegurar a diversidade e não impor a uniformidade de condutas. A autonomia certamente depende da diversidade, caráter tanto da individualidade quanto da sociabilidade. O estado de coisas mais próximo do ideal milliano talvez fosse um ambiente cosmopolita que não prescindisse de uma variedade de grupos culturais. Uma comunidade cultural monolítica, isolada, certamente não seria vista como algo valioso para o desenvolvimento do indivíduo. veritable workhorse. As long as a group permits members to leave, a great deal is permitted: if you haven‘t exercised that right, you have, in some sense, consented to whatever is likely to befall you. Exit thus promises to dissolve any number of difficulties‖ (APPIAH, 2007, p.76). 172 Surge, por fim, o problema de como lidar com os casos concretos. Pensamos que cada caso deve ser tratado com base nas contingências factuais, em vista sempre da maximização da felicidade geral, considerando-se tudo o quanto aqui expusemos até então. As respostas para esses casos, como não poderia deixar de ser, não são de nada simples ou óbvias. Cada grupo cultural a que os indivíduos que formam a sociedade estão vinculados tem suas particularidades e seus correlatos problemas, estando sempre presente ainda, em alguma medida, a relação entre diferenças culturais e desigualdades econômicas474. Há uma série de problemas relacionados aos direitos culturais, como, v.g., o das identidades irracionais e o dos grupos culturais não liberais. Não pretendemos obter uma fórmula para resolvê-los; antes, pensamos que as idéias aqui apresentadas possam fornecer certos parâmetros para que essas questões sejam refletidas e debatidas. Quisemos mostrar fundamentalmente que o reconhecimento do valor do contexto cultural não é contraditório com uma compreensão liberal como a de Mill, mas também que tal constatação não pode prescindir de uma consideração prévia acerca da autonomia para justificar um dado direito cultural, o que, em última análise, servirá de critério quanto à utilidade da conduta em vista da felicidade geral. 474 Cf. FRASER, 2004. 173 CONCLUSÃO Esperamos ter podido demonstrar que a abordagem do problema dos direitos culturais com base na filosofia de John Stuart Mill deve partir de sua particular compreensão hedonista. Mill atribui ao indivíduo o papel de julgar acerca de seus maiores prazeres e, assim, estabelecer preferências que deverão conduzir à vida feliz. Cada pessoa é um agente maximizador de sua própria felicidade; para que possa fazer as melhores escolhas, contudo, essa pessoa tem de ser capaz de conhecer e apreciar os prazeres dentre os quais escolhe. Deve estar bem informada acerca das suas opções, só assim poderá compará-las e determinar o valor para si de cada um desses prazeres, estabelecendo sua própria hierarquia de bens. Mill percebe que há diferenças qualitativas entre prazeres, nos mostrando que há prazeres que geralmente são reputados como mais valiosos, como seria o caso dos prazeres intelectuais. Não pretendia com isso, todavia, afirmar a existência de determinados bens mais valiosos em termos absolutos, o critério para atribuição de valor aos prazeres (a medida dos bens) será sempre a opinião dos juízes competentes. Ao mesmo tempo, Mill não presume que todo indivíduo bem informado escolherá da mesma forma. Aceita a diversidade de concepções de boa vida; porém, percebe que há certos bens geralmente tomados em alta consideração. Mill vê a felicidade desde uma perspectiva absolutamente subjetiva. Por outro lado, o utilitarismo por si professado possibilita a ascensão a uma perspectiva objetiva que, buscando a felicidade geral, não deixa de desconsiderar a multiplicidade de subjetividades e a diversidade de concepções acerca da boa vida. Verificamos que o reconhecimento da complexidade da vida, presente na obra de Mill, impede que a importância dos vínculos culturais na habitual hierarquia pessoal de bens seja ignorada. Os laços culturais, afirmados no curso do desenvolvimento histórico, na medida em que forem tidos como importantes para os indivíduos em geral, precisam ser considerados para fins de aferição da felicidade geral. Seus conceitos amplos de prazer e utilidade, portanto, parecem ser hábeis a justificar, pelo menos em tese, a adoção de direitos culturais. Isso não significa que qualquer medida possa ser adotada a qualquer custo, essa consideração deve se dar à luz do princípio da utilidade: sempre haverá uma medida apta a maximizar a felicidade geral, o que, contudo, não é algo que seja desde logo observável. A discussão, com o levantamento de questões envolvidas, desde distintos pontos de vista, assim como a 174 experiência histórica, a moral consuetudinária e as normas jurídicas decorrentes do processo democrático deverão indicar para que sentido aponta a bússola utilitária. Observamos, ainda, que as generalizações, à época em que Mill escrevia, pareciam ser facilitadas pelo fato de relativa uniformidade cultural no interior das sociedades poder ser percebida, refletindo um ambiente social em que um alto grau de homogeneidade quanto às preferências individuais se verificava. Este panorama se distingue totalmente daquele que hoje se nos revela: as sociedades multiculturais apresentam uma série de concepções de boa vida e a uniformidade de preferências em maior grau costuma ocorrer somente entre indivíduos unidos por laços culturais dos mais variados matizes. Na esfera da comunidade política, a tarefa de determinar como maximizar bens de indivíduos tão diversos, com preferências tão heterogêneas, ganha ainda mais complexidade. Embora haja bens básicos que são gerais – e isto vem se tornando cada vez mais firme pela experiência histórica –, em tempos de sociedades multiculturais, as generalizações tornam-se progressivamente mais difíceis. Compartilhamos muito, mas também nos diferimos em grande medida. Bens não compartilhados por todos também podem ter relação íntima com nossa felicidade. Sendo o princípio da utilidade o critério último das condutas, inclusive da conduta estatal, não há razão para haja empenho na maximização somente dos interesses comuns. A promoção de bens ligados a grupos culturais, no interior dos quais há certa uniformidade de preferências, parecenos ser uma forma ulterior de promover a máxima felicidade geral. A conclusão mais importante a que pudemos chegar, porém, é a de que o liberalismo de Mill não constitui uma barreira para a implementação de direitos culturais, desde que interpretados como fontes de garantia de autonomia (o que não deixa de constituir uma importante ressalva se comparada com a posição comunitarista). Tanto Rawls quanto Mill em certa medida compartilham com Kant uma concepção de autonomia, o que, em Mill, decorre de suas afirmações morais utilitaristas. Ao abordar-se o problema dos direitos culturais sob o prisma liberal não se pode desprezar a centralidade da autonomia; tal significaria negar um elemento essencial do pensamento liberal e admitir desde logo o fracasso do empreendimento. Mill certamente não fugiria à acusação de Taylor de que a autonomia seria um bem valiosíssimo da cultura moderna. É provável que a reconhecesse como o princípio secundário mais importante desenvolvido no curso da experiência histórica. Mas para Mill a autonomia é, antes de mais nada – sobretudo antes de uma descoberta decorrente da experiência histórica – uma condição para a escolha de bens na busca da felicidade. Autonomia, segundo Mill, significa fundamentalmente a capacidade deliberar acerca de seu próprio bem supremo, 175 julgando corretamente o valor de cada prazer para a consecução do fim último. Da análise da filosofia política de Mill podemos extrair certas tarefas estatais que parecem encerrar paradoxos, como restringir a autonomia para garanti-la e proteger a unidade de grupos para garantir a diversidade de indivíduos, os quais, todavia, não são mais do que reflexos da complexidade do tema. A partir daí se revelam os contornos do estado liberal milliano, nem mínimo, nem máximo, em que a diversidade, a autonomia do indivíduo e o atingimento dos bens por ele geralmente perseguidos têm valor central. Pensamos haver restado claro que a afirmação da autonomia não seja algo de todo incompatível com o reconhecimento de laços comunitários a pautar nossas escolhas e nosso ambiente moral. Se está correto que escolhemos dentro de quadros, estabelecidos em diálogos com a comunidade, como afirmou Taylor, então aquele indivíduo que estiver privado destes quadros jamais poderia ser considerado um juiz competente, i.e., um sujeito autônomo, capaz de perseguir seu próprio bem. Por outro lado, Mill revela uma preocupação muito grande com o risco de padronização e a possibilidade de opressão da individualidade pelo contexto cultural. Há uma tensão permanente e insuperável entre matriz cultural e individualidade. Importa que destaquemos que a afirmação da compatibilidade em tese de direitos culturais com os pressupostos da filosofia de Mill não serve para autorizar que qualquer demanda por reconhecimento seja tutelada por um direito cultural. O direito a ser implementado e a forma como tal se dará será em todos os casos submetido ao princípio da utilidade como critério último. O contexto cultural, assim como pode libertar pode aprisionar: pode servir à autonomia do sujeito ou lhe oprimir. Ao ampliar a possibilidade do exercício das preferências e garantir a diversidade, a promoção de uma dada cultura parece estar adequada ao princípio da utilidade; servindo para prender indivíduos a uma existência perpétua ligada a uma comunidade cultural a lhe subtrair escolhas, o que se passa é justamente o contrário. Portanto, uma questão que sempre estará em aberto é a de como implementar políticas culturais que não firam a autonomia. Destaquemos, por fim, que esta afirmação de compatibilidade parte da constatação de que a assunção da identidade dialógica do indivíduo como fator essencial para o exercício das capacidades deliberativas não contraria o ideal de autonomia de Mill. Para que não haja contradição, porém, temos de pressupor que esta identidade cultural, estabelecida em diálogo com a comunidade, não é tudo o constitui a identidade individual. A identidade, além de dialógica, também parece ser em certo sentido monológica. É essencial que reconheçamos que há uma multiplicidade de campos de interação que conformam o ambiente ético, inclusive 176 o mais apertado deles, que reside na singularidade, i.e., na relação do indivíduo consigo mesmo. Tanto esta individualidade em sentido estrito quanto as relação do indivíduo com a comunidade cultural (ou as comunidades culturais) devem ser considerados aspectos da identidade individual. A identidade do liberalismo contratualista repousa sobre o maior conjunto de interação, a ideia de sociedade, em que a identificação se dá a partir dos caracteres comuns a todos; o comunitarismo dá ênfase aos conjuntos menores, mas desconsidera o menor de todos: o campo exclusivo do indivíduo, como ser único, singular, diferente de todos os outros. Com base no pensamento liberal utilitarista de John Stuart Mill cremos ter podido propor uma solução conciliatória ao problema. 177 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALLEN, James et al. The virtuous life in greek ethics. New York: Cambridge University Press, 2006. ALMEIDA, Fábio Portela Lopes de. Os direitos fundamentais entre liberais e comunitaristas: um debate constitucional. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, n. 59, p. p. 86-130, abr.-jun. 2007. ANDERSON, Elizabeth S. John Stuart Mill and experiments in living. Ethics, Chicago, v. 102, n. 1, p.p. 4-26, oct. 1991. ANDRAU, René. Les droits culturels parchèvent-ils lês droits de l’homme. Paris: Observatoire du communautarisme, 2011. Disponível em: < http://www.communautarisme. net/Les-droits-culturels-parachevent-ils-ou-minent-ils-les-droits-de-l-homme_a587.html>. Acesso em 18 jan. 2011. APPIAH, Kwame Anthony. The ethics of identity. Princeton: Princeton University Press, 2007. ARAUJO, Marcelo de. Direitos individuais e direitos das minorias nacionais: uma crítica à política de ―suplementação‖ dos direitos humanos em contextos multiculturais. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, v. 55, p.p.89- , abr.-jun. 2006. ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001. AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. Porto Alegre: Globo, 1955. BALDI, César Augusto. Introdução: as múltiplas faces do sofrimento humano: os direitos humanos em perspectiva intercultural. In:______ . Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p.p.33-71. BAILEY, James Wood. Utilitarianism, institutions, and justice. New York: Oxford University Press, 1997. BENOIT, Hector (org.). Estudos sobre o diálogo Filebo de Platão: a procura da eudaimonia. Ijuí: Editora Unijuí, 2007. BENTHAM, Jeremy. The principles of morals and legislation. Amherst: Prometheus Books, 1988. ______ . The rationale of reward. Londres: Robert Heward, 1830. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 1997. 178 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em 22 fev. 2011a. BRASIL. Parecer da Câmara de Deputados à Proposta de Emenda à Constituição nº 306-A, de 2000. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/sileg/integras/24900.pdf>. Acesso em 22 fev. 2011b. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Pet nº 3.388, Plenário, Relator Ministro Ayres Britto, Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 1º jul. 2010. BRASIL. Decreto nº 7.037/2009. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 dez. 2009. BRILHANTE, Átila Amaral. The centrality of accountability in John Stuart Mill’s liberal-utilitarian conception of democracy. 2007. 313 fls. Tese (Doutorado) – University College of London, Londres, 2007. BRINK, David O. Mill's Deliberative Utilitarianism. Philosophy and Public Affairs, v. 21, n. 1, p.p. 67-103, winter 1992. BRINK, David O. Mill's moral and political philosophy. Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2007. Disponível em: <http://plato.stanford.edu/entries/mill-moral-political/>. Acesso em 18 jan. 2011. BROWN, D. G. Mill on harm to others‘ interests. Political Studies, v. 26, p.p. 395-399, set. 1978. ______ . Mill on Liberty and Morality. The Philosophical Review, v. 81, n. 2, p.p. 133-158, abr. 1972. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. Coimbra: Almedina, 1993. ______ . Estudos sobre direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2004. CÍCERO, Marco Túlio. Do sumo bem e do sumo mal (de finibus bonorum et malorum). São Paulo: Martins Fontes, 2005. CRISP, Roger. Mill on utilitarianism. New York: Routledge, 1997. COASE, Ronald H. The problem of social cost. Journal of Law and Economics, Chicago, v. 3, p.p.1-44, out/1960. CONFERÊNCIA MUNDIAL SOBRE OS DIREITOS HUMANOS. Declaração de Viena de 1993. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/viena/declaracao_viena.htm>. Acesso em 18 jan. 2011. 179 DALL‘AGNOL, Darlei. Utilitarismo kantiano. Pré-Publicações do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, n. 49, p.p. 2-20, maio 2001. DONNER, Wendy. The liberal self: John Stuart Mill’s Moral and political philosophy. Ithaca: Cornell University Press, 1991. ______ . Mill‘s utilitarianism. In: SKORUPSKI, John. The Cambridge companion to Mill. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. EPICURO. Antologia de Textos. In: PESSANHA, José Américo Motta (org.). Os Pensadores: Epicuro, Lucrécio, Cícero, Sêneca, Marco Aurélio. São Paulo: Abril Cultural, 1985. p.p. 49-63. FELDMAN, Fred. Pleasure and the good life: concerning the nature, varieties and plausibility of hedonism. Oxford: Clarendon Press, 2004. FRASER, Nancy. Repensando a questão do reconhecimento: superar a substituição e a reificação na política cultural. In: BALDI, César Augusto. Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p.p.601-621. FREDE, Dorothea. Disintegration and restoration: Pleasure and pain in Plato's Philebus. In: KRAUT, Richard. The Cambridge Companion to Plato. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. FUCHS, Alan E. Mill‘s Theory of Morally Correct Action. In: WEST, Henry R. The Blackwell guide to Mill’s Utilitarianism. Oxford: Blackwell Publishing, 2006. GALSTON, William A. Liberal pluralism: the implication of value pluralism for political theory and practice. Cambridge: Cambridge University Press, 2004. GARCÍA-AÑÓN, José. John Stuart Mill‘s liberalism on diversity and cultural conflicts. Telos. Revista Iberoamericana de Estudios Utilitaristas, Valencia, n. XIV/1, p.p. 43-55, set. 2007. GLOSSOP, Ronald J. Is Hume a ‗Classical Utilitarian‘ Hume Studies, v. 2, n. 1, p.p.1-16, abr. 1976. GOHN, Maria da Glória. Cidadania e direitos culturais. Katálysis, Florianópolis, v. 8, n. 1, p.p. 15-23, jan.-jun. 2005. GRAY, John N. John Stuart Mill: traditional and revisionist interpretations. Literature of Liberty, Arlington, v. 2, n. 2, p.p. 7-37, abr.-jun. 1979. GUTHRIE, W. K. C. A history of greek philosophy. Volume V: the later Plato and the Academy. Cambridge: Cambridge University Press, 1978. 180 ______ . Socrates. Cambridge: Cambridge University Press, 1971a. ______ . The Sophists. Cambridge: Cambridge University Press, 1971b. GUTMANN, Amy. Introduction. In: TAYLOR, Carles. Multiculturalism: examining the politics of recognition. Princeton: Princeton University Press, 1994. HAARSCHER, Guy. Filosofia dos direitos do homem. Lisboa: Piaget, 1993. HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. São Paulo: Loyola, 2002. HARE, R. M. Moral thinking: its levels, method and point. Oxford: Clarendon Press, 1981 HART, Herbert L. A. Essays on Bentham: studies in jurisprudence and political theory. Oxford: Clarendon Press, 1982. HÄYRY, Matti. Liberal utilitarianism and applied ethics. Nova Iorque: Routledge, 1994. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. The Philosophy of History. Mineola: Dover, 2004. HUME, David. The Epicurean. In: ______ . The Philosophical Works of David Hume. Including all the Essays, and exhibiting the more important Alterations and Corrections in the successive Editions by the Author. Edimburgo: Adam Black and William Tait, 1826. v. 3. pp.156-164. JACOBSON, Daniel. J. S. Mill and the diversity of utilitarianism. Philosophers’ imprint, v. 3, n. 2, jun. 2003. Disponível em: <http://www.philosophersimprint.org/003002/>. Acesso em 18 jan. 2010. JOYAU, E. Estudo introdutório. In: PESSANHA, José Américo Motta (org.). Os Pensadores: Epicuro, Lucrécio, Cícero, Sêneca, Marco Aurélio. São Paulo: Abril Cultural, 1985. p.p.28-49. KAHAN, Alan S. Aristocratic liberalism: the social and political thought of Jacob Burkhardt, John Stuart Mill, and Alexis de Tocqueville. New York: Oxford University Press, 1992. KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. São Paulo: Martins Fontes, 2008. ______ . Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Companhia Editora Nacional, 1964. ______ . Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. São Paulo: Martins Fontes, 2003. KITCHER, Philip. Mill‘s consequentialism. In: MOYAR, Dean. The Routledge Companion to Nineteenth Century Philosophy. New York: Routledge, 2010. 181 KYMLICKA, Will. Liberalism, comunity and culture. Oxford: Clarendon Press, 1991. KURY, Mario da Gama. Introdução. In: ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001. p.p. 7-15. LAMAS, Félix Adolfo. La experiencia jurídica. Buenos Aires: Instituto de Estudios Filosóficos Santo Tomas de Aquino, 1991. LAERTIUS, Diogenes. Lives of eminent philosophers. v. II, Londres: William Heinemann, 1925. LIMA JÚNIOR, Jayme Benvenuto. Os direitos humanos econômicos, sociais e culturais. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. LOPES, Ana Maria D‘Ávila. Interculturalidade e direitos fundamentais sociais. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, n. 63, p.p.30-41, abr.-jun. 2008. LYONS, David. Rights, welfare, and Mill’s moral theory. New York: Oxford University Press, 1994. LUCRÉCIO. Da natureza. In: PESSANHA, José Américo Motta (org.). Os Pensadores: Epicuro, Lucrécio, Cícero, Sêneca, Marco Aurélio. São Paulo: Abril Cultural, 1985. p.p.82-284. MACINTYRE, Alasdair. Truthfulness, lies, and moral philosophers: what can we learn from Mill and Kant? In: PETERSON, Grethe B. The Tanner Lectures on Human Values, v. 16, University of Utah Press, 1995, p.p. 307-361. MARA, Gerald. M.; DOVI, Suzanne L. Mill, Nietzsche, and the identity of postmodern liberalism. The Journal of Politics, v. 57, n. 1, p.p. 1-23, feb. 1995. MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2009. MATTOS, Laura Valladão de. A posição de J. S. Mill em relação ao Estado: os casos das sociedades ‗civilizadas‘ e das sociedades ‗atrasadas‘. Economia e Sociedade, Campinas, v. 17, n. 1, p.p. 135-155, jan.-abr. 2008. MEDEMA, Steven G. The hesitant hand: Mill, Sidgwick, and the evolution of the theory of market failure. History of Political Economy, v. 39, n. 3, p. p. 331-358, fall 2007. MENEZES, Aderson de. Teoria Geral do Estado. Rio de Janeiro: Forense, 2009. MILL, John Stuart. Autobiography. In: ______ . The Collected Works of John Stuart Mill, Volume I - Autobiography and Literary Essays. London: Routledge and Kegan Paul, 1981. p.p. 1-290. 182 ______ . Bentham. In: ______ . The Collected Works of John Stuart Mill, Volume X Essays on Ethics, Religion, and Society. London: Routledge and Kegan Paul, 1985a. p.p. 164-193. ______ . Considerations on representative government. In: ______ . The Collected Works of John Stuart Mill, Volume XIX - Essays on Politics and Society Part II. London: Routledge and Kegan Paul, 1977a. p.p. 50-210. ______ . On Liberty. In: ______ . The Collected Works of John Stuart Mill, Volume XVIII - Essays on Politics and Society Part I. London: Routledge and Kegan Paul, 1977b. p.p. 230-358. ______ . A lógica das ciências morais. São Paulo: Iluminuras, 1999. ______ . Princípios de economia política, com algumas de suas aplicações à filosofia social. São Paulo: Nova Cultural, 1996. ______ . Remarks on Bentham philosophy. In: ______ . The Collected Works of John Stuart Mill, Volume X - Essays on Ethics, Religion, and Society. London: Routledge and Kegan Paul, 1985b. p.p. 111-122. ______ . Utilitarianism. In: ______ . The Collected Works of John Stuart Mill, Volume X - Essays on Ethics, Religion, and Society. London: Routledge and Kegan Paul, 1985c. p.p. 268-302. MILLER, Dale. Notes and Commentary. In: MILL, John Stuart. The basic writings of John Stuart Mill. Nova Iorque: Modern Library, 2002. MOORE, G. E. Principia Ethica. Cambridge: Cambridge University Press, 2000. MOREIRA, Manuel Alberto Jesús. El concepto de cultura em el derecho. Civitas, Porto Alegre, n. 3, p.p. 466-481, set.-dez. 2008. MULHALL, Stephen; SWIFT, Adam. Liberals & communitarians. Malden: Blackwell, 1996. NOZICK, Robert. Anarchy, state, and utopia. Oxford: Blackwell, 1974. NUNES, João Arriscado. Apresentação: um novo cosmopolitismo? Reconfigurando os direitos humanos. In: BALDI, César Augusto. Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p.p.15-32. NUSSBAUM, Martha C. Mill between Aristotle & Bentham. Daedalus, v. 133, n. 2, p.p. 6068, mar. 2004. 183 ______ . Mill on happiness: the enduring value of a complex critique. In: SCHULTZ, Bart; VAROUXAKIS, Georgios. Utilitarianism and empire. Lanham: Lexington books, 2005. pp.107-124. OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades de (coord.). Cultura e prática dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Lumen Juris, 2010. OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades de. Faces do multiculturalismo: teoria - política direito. Santo Ângelo: EDIURI, 2007. OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades de. Multiculturalismo: o ―olho do furacão‖ no direito pós-moderno. Revista Direitos Culturais, Santo Ângelo, v. 1, n. 1, pp.161-176, dez. 2006. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/discrimina/dec92.htm>. Acesso em 30 nov. 2010. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Disponível em: <http://www2.mre.gov.br/dai/b_onu_m_12_1948.htm>. Acesso em 18 jan. 2011a. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Disponível em: < http://www2.mre.gov.br/dai/m_591_1992.htm>. Acesso em 18 jan. 2011b. PESSANHA, José Américo Motta. Vida e Obra. In: ______ . Os Pensadores: Epicuro, Lucrécio, Cícero, Sêneca, Marco Aurélio. São Paulo: Abril Cultural, 1985. p.p. 7-27. PIOVESAN, Flávia. A universalidade e a indivisibilidade dos direitos humanos: desafios e perspectivas. In: BALDI, César Augusto. Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p.p.45-71. PLATÃO. Fedão. In: ______ . Protágoras, Górgias, Fedão. Belém: Edufpa, 2002a. ______ . Filebo. Brasília: Ministério da Educação, <www.dominiopublico.gov.br>. Acesso em 20 jul. 2010. 2010. Disponível em: ______. Protágoras. In: ______ . Protágoras, Górgias, Fedão. Belém: Edufpa, 2002b. ______. A República. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1965. v. 2. POSNER, Richard. El análisis económico del derecho. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 2000. POSTEMA, Gerald J. Bentham‘s utilitarianism. In: WEST, Henry R. The Blackwell guide to Mill’s Utilitarianism. Oxford: Blackwell Publishing, 2006. 184 QUEVEDO, Francisco de. Defensa de Epicuro contra la comun opinion. Madrid: Tecnos Editorial, 1986. RAZ, Joseph. The morality of freedom. Oxford: Clarendon Press, 1986. RAWLS, John. Lectures on the history of political philosophy. Cambridge: Belknap Press, 2007. ______. Political liberalism. New York: Columbia University Press, 2005. ______. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2000. ______. A theory of justice. Cambridge: Belknap Press, 1971. REES, John. The thesis of the two Mills. Political Studies, v. 25, p.p.369-382, set. 1977. RILEY, Jonathan. Mill‘s political economy: Ricardian science and liberal utilitarian art. In: SKORUPSKI, John. The Cambridge companion to Mill. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. p.p. 293-337. ROCKEFELLER, Steven C. Comment. In: TAYLOR, Charles. Multiculturalism: examining the politics of recognition. Princeton: Princeton University Press, 1994. p.p.8798. ROSEN, Frederick. Classical utilitarianism from Hume to Mill. London: Routledge, 2003. RUSSEL, Daniel. Plato on pleasure and the good life. Oxford: Clarendon Press, 2005. RYAN, Alan. Mill in a liberal landscape. In: SKORUPSKI, John. The Cambridge companion to Mill. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. p.p. 497-540. SAYRE-MCCORD, Geoffrey. Mill‘s ―proof‖ of the principle of utility: a more than halfhearted defense. Social Philosophy & Policy, v. 18, n. 2, p.p.330-360, primavera 2001. SCARRE, Geoffrey. Utilitarianism. New York: Routledge, 1996. SCHMIDT-PETRI, Christoph. Mill on Quality and Quantity. The Philosophical Quarterly, v. 53, n. 210, pp. 102-104, jan. 2003. SKORUPSKI, John. Introduction. In:______ . The Cambridge companion to Mill. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. p.p. 1-34. SMART, J. J. C. An outline of a system of utilitarian ethics. In: ______ ; WILLIAMS, Bernard. Utilitarianism: for & against. Nova Iorque: Cambridge University Press, 1973. p.p. 3-74. SIMÕES, M. C. Rule-Utilitarianism. Ethic@, Florianópolis v. 8, n. 3, p.p. 47-61, maio 2009. 185 SOUZA, José Jerônimo Moscardo de. Direitos Culturais. In: TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A incorporação das normas internacionais de proteção dos direitos humanos no direito brasileiro. Instituto Interamericano de Direitos Humanos: San José de Costa Rica, 1996. p. p. 567-575. TAYLOR, Charles. The politics of recognition. In: __________. Multiculturalism: examining the politics of recognition. Princeton: Princeton University Press, 1994. ______ . Sources of the Self: the making of the modern identity. Cambridge: Harvard University Press, 1989. TAYLOR, Jacqueline. Hume‘s later moral philosopy. In: The Cambridge Companion to Hume. New York: Cambridge University Press, 2009. p.p.311-340. TEN, C. L. Mill and Liberty. Journal of the History of Ideas, v. 30, n. 1, p.p. 47-68, jan.mar. 1969. TOMASI, John. Kymlicka, liberalism, and respect for cultural minorities. Ethics, v. 105, n. 3, p.p. 580-603, apr. 1995. TOURAINE, Alain. Igualdade e diversidade: o sujeito democrático. Bauru: Edusc, 1998. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Resumo dos debates do Seminário de Brasília de 1993: Direitos Culturais. In:___________. A incorporação das normas internacionais de proteção dos direitos humanos no direito brasileiro. San José de Costa Rica: Instituto Interamericano de Direitos Humanos, 1996. p. 714. ______ . Do direito econômico aos direitos econômicos, sociais e culturais. In: ______ . Desenvolvimento econômico e intervenção do estado na ordem constitucional: estudos em homenagem ao Professor Washington Peluso Albino de Souza. Porto Alegre, Sérgio Fabris, 1995. p.p. 9-38. UCHII, Soshichi. Utility and preferences. In: SYMPOSIUM ON J. S. MILL, 25 out. 1998. UNESCO. Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural. Disponível em <http://unesdoc .unesco.org/images/0012/001271/127160por.pdf>. Acesso em 1º fev. 2011. URMSON, J. O. The Interpretation of the Moral Philosophy of J. S. Mill. The Philosophical Quarterly, v. 3, n. 10, p.p. 33-39, jan. 1953. VITA, Álvaro de. Liberalismo igualitário e multiculturalismo: sobre Brian Barry, Culture and Equality. Lua Nova, São Paulo, n. 55-56, p.p. 5-27, 2002. VOLTAIRE. Histoire. In: DIDEROT, Denis et al. Encyclopédie, ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers. Wikisource, 2010. Disponível em: <http://fr. wikisource.org/wiki/L%E2%80%99Encyclop%C3%A9die/Volume_8#HISTOIRE>. Acesso em: 21.02.2011. 186 VON SPERLING, Danilo. Resumo dos debates do Seminário de Brasília de 1993: Direitos Culturais. In: TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A incorporação das normas internacionais de proteção dos direitos humanos no direito brasileiro. San José de Costa Rica: Instituto Interamericano de Direitos Humanos, 1996. p. p. 713-714. WALZER, Michael. Comment. In: TAYLOR, Charles. Multiculturalism: examining the politics of recognition. Princeton: Princeton University Press, 1994. p.p.99-103. WEINSTEIN, David. Utilitarianism and the new liberalism. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. WEST, Harry. Mill‘s ―Proof ‖ of the Principle of Utility. In: WEST, Henry R. The Blackwell guide to Mill’s Utilitarianism. Oxford: Blackwell Publishing, 2006. WILLIAMS, Bernard. Platão: a invenção da filosofia. São Paulo: Unesp, 2000. WILSON, Fred. Mill: logic and metaphysics. In: MOYAR, Dean. The Routledge Companion to Nineteenth Century Philosophy. New York: Routledge, 2010. ZIVI, Karen. John Stuart Mill and the subject of rights. American Journal of Political Science, v. 50, n. 1, p.p. 49-61, jan. 2006.