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Arteterapia espiritual a partir do Canto Gregoriano

Neste ensaio, partindo do que meditei em outros ensaios sobre a experiência estética e a vida espiritual baseando-me em São Tomás e outros místicos e filósofos cristãos, dedico-me a pensar no significado dos modos gregorianos. Procuro estabelecer possíveis relações implícitas na cultura que gerou o canto gregoriano comparando o significado estético dos modos com o significado teológico dos dons do Espírito Santo. Também busco uma compreensão de possíveis influxos psicológicos dos modos gregorianos numa analogia com os temperamentos clássicos teorizados por Hipócrates e os que nisto o seguiram e também pensando em analogias entre os modos e as estruturas da alma (segundo o pensamento escolástico). Tento compreender se num contexto específico cultural seria possível utilizar os modos para uma terapia que busque a prática e o desenvolvimento das quatro virtudes cardeais.

Arteterapia espiritual a partir do Canto Gregoriano Lincoln Haas Hein, pós-gradua do e arteterapia, autor do blog i spirado ogregoria o , e professor de canto e música litúrgica. Três tipos melódicos gregos, ethos, ethos do gregoriano, dos temperamentos e os dons do Espírito Santo. Arteterapia espiritual a partir do gregoriano. Medito a seguir alguns aspectos dos ethos e da composição na música antiga da Grécia e suas relações com o canto gregoriano. E então a partir disto os significados profundos dos modos gregorianos na sua relação com as características psicológicas do ser humano e na sua relação com a elevação dessas características pela vida sobrenatural da graça e do dom do Espírito Santo. Nesse sentido verifico as possibilidades arteterapêuticas do canto gregoriano, sobretudo num sentido espiritual teológico de desenvolvimento das virtudes e de abertura à influência curativa do Espírito Santo para a salvação. O autor antigo Cleônides descreve a composição do "melos" (palavra que origina a nossa "melodia") como "o emprego dos materiais sujeitos à prática harmônica com devida consideração às exigências de cada um dos elementos em consideração" ["Harmonic Introduction", translated by Oliver Strunk. In Source Readings in Music History, vol. 1 (Antiquity and the Middle Ages), edited by Oliver Strunk, 35–46. New York: W. W. Norton.] Esses elementos incluem o ritmo determinado, sobretudo pela poesia e também as várias maneiras de utilizar as frequências sonoras em escalas e tipos melódicos ("tonus", "harmoniai", traduzidos posteriormente por "modo") mas há também o elemento do tipo de destino e de uso da música. Há três tipos básicos de composição do "melos" na música grega antiga segundo alguns autores (Cleônides, Quintiliano): -Diastáltico: expansão, diástole abertura, excitante, exaltante, magnificente, heróico, elevação viril, associado à tragédia. -Sistáltico: recolhimento, sístole, fechamento, depressivo, associado à humildade, aos sentimentos amorosos, ao feminino, ao erotismo, à cantos fúnebres e lamentações. -Hesicástico: suavizante, hesíquia, pacífico, moderado, associado aos hinos, eulogias, oráculos (cantos sacros) Há na teoria musical da Grécia antiga três tipos de tetracordes diatônicos conforme semitom que move variando entre tons: Dórico: mi fa sol la: semitom no inicio Frigio: re mi fa sol: semitom no meio Lidio: dó re mi fá: semitom no fim O Dórico era considerado o mais importante e origem dos outros. As espécies de oitava surgem da justaposição de dois tetracordes iguais com um tom no meio exceto no "modo" mixolídio que tem o trítono e assim um meio tom entre os tetracordes e tetracordes diferentes. Cada "modo" tinha um som dominante e um fundamental, a diferença entre o modo plagal e o autêntico era que a escala plagal terminava e começava com o fundamental e o autêntico começava com o dominante e terminava com o dominante. Cada espécie de oitava também é relacionada a um ethos, a uma disposição da natureza, a uma disposição ou moção da alma ou do caráter: - Dórico mi - mi associado à coragem, virilidade, valente domínio de si - Frigio ré - ré associado à nobreza mas também a certa variação melancólica ou sanguínea e excitação extática - Lidio dó - dó associado à quietude, ao relaxamento - Mixolidio si - si associado à ansiedade, angústia e à tristeza (é o modo que tem o trítono entre fundamental e dominante) Relação com modos gregorianos : Em termos de espécie de oitava Protus corresponde ao Frígio grego, mas foi chamado dórico nas confusões teóricas medievais e renascentistas. O modo primitivo pentatônico era uma entoação com um intervalo equivalente à terça menor seguido de uma segunda maior (lá dó ré). Um fechamento melódico, portanto, com um intervalo amplo seguido de um intervalo mais curto. No modo protus posterior temos uma final em ré com uma terça cadencial que partindo do ré tem primeiro um tom depois um semitom. Se pensarmos em termos de ethos o protus gregoriano corresponde seja à melancolia do frígio grego seja ao melos sistáltico porém o protus autêntico com suas muitas modulações para o tritus plagal tem algo do melos hesicástico e da tranquilidade do lídio grego e nesse sentido também um caráter amoroso do melos sistáltico. Em termos de espécie de oitava o Deuterus gregoriano corresponde ao dórico grego mas nas confusões teóricas medievais e renascentistas foi chamado de frígio. O modo primitivo pentatônico era uma entoação com dois intervalos seguidos de segunda maior (dó re mi) o que dá um caráter de movimento e de impulso à linha melódica pela dupla de intervalos curtos. No modo deuterus posterior temos uma final em mi com uma terça menor cadencial que partindo do mi tem primeiro um semitom e depois um tom. Se pensarmos em termos de ethos o deuterus gregoriano corresponde seja à virilidade e força (algo de um temperamento colérico) do dórico grego, seja ao melos diastáltico. Em termos de espécie de oitava o tritus gregoriano corresponde ao lídio grego (apenas inverte autêntico e plagal nas confusões teóricas medievais e renascentistas). O modo pentatônico primitivo era uma entoação com um intervalo de segunda maior seguido de um intervalo de terça menor (sol lá dó ou transposto dó ré fá), portanto, uma abertura no movimento melódico no sentido oposto ao do protus, com um intervalo curto seguido de um amplo. No tritus posterior temos uma final em fá com uma terça cadencial maior com dois tons. Se pensarmos em termos de ethos o tritus gregoriano corresponde à tranquilidade do lídio grego porém tem segundo os medievais e renascentistas um caráter alegre o que o torna uma síntese entre o melos diastáltico e o hesicástico. Em termos de espécie de oitava o tetrardus gregoriano corresponde ao hipofrígio grego mas nas confusões teóricas medievais e renascentistas foi chamado de mixolídio. Nos modos primitivos pentatônicos é equivalente ora ao protus primitivo ora ao tritus primitivo dependendo do arranjo dos intervalos de terça e de segunda (protus: ré fá sol, tritus: ré mi sol). No modo tetrardus posterior temos uma final em sol com uma terça cadencial maior com dois tons e o modo se diferencia do tritus pela nota abaixo da final em um intervalo de segunda maior (fá abaixo do sol) ao invés de menor (mi abaixo do fá). Se pensarmos em termos de ethos o tetrardus gregoriano participa do recolhimento melancólico do frígio grego e do melos sistáltico (até por sua derivação por transposição de quarta justa a partir do protus) e ao mesmo tempo tem alegria como o tritus e movimento diastáltico quando acentua cadências intermediárias em mi e si; neste sentido o tetrardus autêntico é uma síntese difícil entre diastáltico e sistáltico dando um caráter de excitação, exaltação e êxtase enquanto que o plagal tem o caráter hesicástico e tranquilo do lídio grego mesclando e assim é uma síntese de melos sistáltico com hesicástico. Em todos os modos gregorianos os graus fortes do tritus tem forte presença estrutural e assim o ethos tranquilo do lídio traz um melos hesicástico a todos os modos gregorianos em muitas das cadências. Isso é explicável pela busca da paz na alma procurada pela oração cantada no gregoriano e pelo caráter sacro. Ao mesmo tempo a utilização do si móvel traz movimento diastáltico em todos os modos, em alguns esse caráter diastáltico de impulso aparece mais, pela influência dos intervalos de segunda menor em si e mi (principalmente nos dois deuterus e no tetrardus autêntico). O caráter sistáltico aparece mais em alguns modos, mais nos protus autêntico e protus plagal, seguido do tritus plagal e por fim no tetrardus plagal - modos que tem muitas cadências em ré, mas também aparece nos outros pela ênfase decorativa do ré abaixo do mi nas cadências do deuterus e pela importância do ré como nota de recitação no tetrardus autêntico. Essas considerações mostram o equilíbrio do repertório gregoriano nas três maneiras de pensar o movimento rítmico-melódico e o movimento da alma: tensão, distensão e repouso. Mas, ao mesmo tempo, mostram que nos três modos primitivos temos um mais tensionante no deuterus primitivo, um mais distensionante no protus primitivo e um mais repousante no tritus primitivo. E, quando eles evoluem para a quaternidade, temos: mais distensão no protus, mais tensão no deuterus, um repouso alegre com mais tensão no tritus, um repouso alegre com mais distensão no tetrardus plagal. O tetrardus autêntico é paradoxal com fortes tensões e distensões se alternando mas ao mesmo tempo mantendo a alegria do tritus e do tetrardus o que o torna propício a expressar o arrebatamento extático e o repouso instável de uma alma elevada acima de condições naturais (é chamado angélico por autores medievais). O deuterus autêntico é mais tenso que o plagal com forte ethos indicando veemência enquanto o plagal tem muita participação de tritus transposto nas cadências em dó grave e protus transposto nas cadências em sol e em lá e dessas cadências ganha seu ethos harmônico de apaziguar ira ao mesmo tempo em que fortalece e dá impulso. Considerando que: 1- Segundo teóricos gregos o tetracorde diatônico dórico em mi é o mais importante (assim como seu correspondente harmoniai) e dá origem aos outros tetracordes. 2- a escala cigana e a escala espanhola chamada também judaica é uma variação do frígio moderno (dórico grego) que pode ser entendida a partir de uma escala pentatônica (lá dó ré mi) com notas extras que movem para o mi e para o mi transposto uma quarta justa em lá (um fá acima do mi e um sol sustenido abaixo do lá). 3- Muitas e muitas peças do repertório mais antigo gregoriano tem forte presença do modo primitivo deuterus em mi. 4 - há as peças do modo deuterus transposto em lá que oscilam bastante entre protus e deuterus graças à variação do si entre natural e bemol. 5 - as peças do ordinário pascal luz et origo estão num modo deuterus em mi. Considerando estas coisas postulo uma hipótese a ser testada e confirmada em pesquisas musicológicas: a partir da salmodia judaica e da influência do dórico grego as primeiras cantilações cristãs foram predominantemente com o mi como corda de recitação e final e a partir do mi eram feitas modulações para o protus primitivo e para o tritus primitivo com uma crescente valorização deste último em graus pentatônicos. Uma adaptação da salmodia judaica para o mundo ocidental da época seguida de uma busca crescente pelo recolhimento na oração foi fazendo com que mais e mais o protus tomasse preponderância a partir da instabilidade do deuterus e a busca pela paz característica do tritus levou ao surgimento sintético do tetrardus quando a cantilação se ampliou em arcos melódicos mais amplos. Assim, a partir do impulso da piedade que caracteriza o deuterus e é símbolo da oração insistente de súplica foi se ampliando um movimento de recolhimento meditativo e compungido característico do protus e nas modulações de um para outro a alegria pacífica do tritus vai trazendo estabilidade até que no movimento cantado mais amplo surge o tetrardus plagal como síntese do recolhimento com a paz e a alegria e surge o tetrardus autêntico como o máximo movimento da alma antes da paz plena pelo arrebatamento extático que traz em si o paradoxo da alegria e da dor, da tensão máxima com a distensão máxima. Com essa ideia temos uma possível sequência melódica do tetracorde das finais gregorianas ré mi fá sol (tetracorde que deu a primeira base teórica para a prática do canto gregoriano) indicando com seu ethos uma progressão espiritual da oração que começa pelo recolhimento humilde passa pela súplica veemente, chega à alegria e ao êxtase e termina na plenitude da paz. Como o primeiro modo gregoriano, o protus autêntico, modula bastante aproveitando todas essas nuances de affectus orante é possível compreender que ele simboliza o dom incriado do Espírito Santo com todos os seus dons e não por mero acaso é o modo utilizado na sequência de pentecostes e o modo mais utilizado no repertório. Os autores medievais e renascentistas atribuem a esse modo tanto a seriedade quanto a alegria, também a expressão de todos os afetos e a capacidade de moderar e dirigir todas as paixões da sensibilidade. Com a ênfase cristã na humildade e na força divina que ela atrai os medievais associaram as características de força e virilidade do dórico grego à espécie de oitava similar ao frígio grego e assim chamaram de dórico o modo gregoriano que a partir da estabilidade da humildade modula para todos os movimentos orantes. O segundo modo mais utilizado no repertório que é o oitavo, tetrardus plagal, é relacionado pelos medievais e renascentistas ao conhecimento e à sabedoria, portanto ao dom maior entre os sete e que está associado à bem-aventurança dos pacíficos; não à toa, é o modo do Veni Creator e o do introito da festa de pentecostes Spiritus Dómini. Partindo do segundo modo protus plagal até o oitavo é possivel pensar na sequência dos sete dons em ordem ascendente e, por outro lado, como a escada de Jacó com os anjos subindo e descendo mostra que a subida é a descida da humildade e os livros sapienciais apontam o temor como princípio e fim da sabedoria, é possível também associar no sentido inverso com o oitavo associado ao temor e o segundo à sabedoria. Pensando também nas tríades de dons intelectuais e afetivos correspondentes e relacionados (ciência-temor, entendimento-piedade, conselho-fortaleza, sabedoria-sabedoria) é possível associar os modos correspondentes de tal maneira que: -o segundo modo correspondente ao temor (ao princípio da conversão pelo arrependimento e pelo temor reverencial à Deus que é justo juiz) está ligado também à ciência secundariamente e secundariamente à sabedoria (a ciência dá o conhecimento das criaturas na sua causa que é Deus e assim suscita o temor reverencial diante do poder de Deus e a sabedoria julga tudo a partir do sabor de Deus como causa primeira e última de tudo); - o terceiro modo está relacionado com a piedade por sua veemência mística e orante e a piedade é o dom do movimento principal da alma em oração enquanto faz a alma exclamar "Abba" Pai, é o dom do ímpeto da devoção, o dom dos "gemidos" do Espírito Santo mencionados por São Paulo, está relacionado com o dom do entendimento que é o que faz mergulharmos na compreensão das escrituras e no sentido do mistério de sermos filhos adotivos em Cristo e também por sua veemência está associado à fortaleza naquilo que esta tem de impulso violento contra o mal. Entende-se que o sétimo modo seja assim relacionado ao terceiro tendo o sentido de um êxtase que arrebata a alma no movimento orante levando-a a uma contemplação elevada. O dom de entendimento (que pode ser muito associado ao sétimo modo) é dito pelos teólogos realizar a máxima purificação do coração por uma luz intensa que causa dor à alma ainda não purificada no momento em que a luz divina incide sobre as trevas da alma. - o quarto modo associado à ciência está também ligado secundariamente ao temor e secundariamente ao conselho e também à fortaleza dirigida pelo conselho (é o ethos da harmonia e do equilíbrio que refreia os excessos da ira e dos movimentos interiores veementes mas tem algo do mistério e do espanto característicos da ciência e do temor quando a alma contempla maravilhas nas obras divinas, pelo conselho e pela ciência este modo modera a veemência do terceiro e a alegria do quinto); nas muitas cadências em sol este modo tem algo também da sabedoria do oitavo modo e pela sequência pentatônica ré-mi-sol, um tritus primitivo transposto, tem algo da alegria e serenidade do quinto modo. Percebe-se que este modo é complexo e como o primeiro tem todas as nuances porém ao invés de acentuar o recolhimento do temor acentua o movimento impulsivo do desejo piedoso. Sua ambiguidade e multiplicidade tem relação com a ambiguidade do dom de ciência que olha a multiplicidade das criaturas e nelas ao mesmo tempo o tudo divino do qual participam e o nada do qual foram criadas; também tem relação com a multiplicidade do conselho que decide o que é melhor em cada momento e por isso depende das diversidades e ambiguidades das situações; pode se considerar a partir disso este modo como o modo da surpresa e assombro diante das novidades divinas em cada manifestar-se de Deus nas criaturas e na obra da redenção e com frequência esse modo surpreende com modulações inusitadas e irregulares. - o quinto modo está associado à fortaleza pela alegria que permanece mesmo e principalmente nas tribulações e pela estabilidade da paz que torna a alma inabalável, também está associado ao conselho que dirige a fortaleza para as obras de misericórdia e para o serviço divino apontando o dever do momento presente e está associado à piedade pela alegria que a alma recebe na oração ao reconhecer-se como filha de Deus mas mais ainda à piedade na sua relação com os irmãos vistos como filhos do mesmo Pai celeste: é o modo da festa em família, da alegria compartilhada do amor na vida em comunidade. É sempre importante ver como essas características do quinto aparecem em outros modos pelas modulações e pela importância estrutural (em todos os modos) da escala pentatônica maior feita a partir do fá, do lá, e do dó. - o sexto modo está associado ao conselho pelo seu impulso devoto que mescla com temperança a alegria das cadências em tritus com o temor e reflexão das cadências em protus. É um modo que modera a alegria do quinto direcionando a alma para uma piedade ancorada na graça atual e no respeito pelo dom de Deus e por sua relação com o quinto está ligado à fortaleza e à piedade. Está relacionado à ciência através das cadências em protus (tanto em ré quanto em sol, quanto em algumas modulações em lá) que apontam para o afeto do temor; também está relacionado à ciência pelas cadências em deuterus transposto em lá (com o auxílio do si bemol). Esta ciência traz o conhecimento necessário para que o conselho possa atuar dando a decisão adequada. - do sétimo comentei ao relacionar com o terceiro, apenas acrescento que além da veemência extática tem a alegria jubilosa que brilha fulgurante nos contrastes de tensão deste modo, entre aspectos mais próximos do deuterus e aspectos mais próximos do tritus. Tem algo da paz do oitavo mas a veemência e a alegria celeste e angelical ofuscam e tornam esse modo um tanto quanto embriagante. - o oitavo está associado à sabedoria pela paz que transmite junto com suave alegria. As cadências abundantes em tritus garantem a alegria, a paz e a fortaleza, as cadências em protus trazem reverência mas neste modo sem a preocupação do temor, cadências em deuterus completam o quadro com um movimento que neste modo é tranquilo porém firme. É um modo que pela eminência da sabedoria ao mesmo tempo afetiva e intelectual abrange os outros modos e todos os sete dons porém com mais deleite e suavidade de amor comparado ao primeiro com sua ênfase no temor reverencial. Pela compreensão dos modos percebe -se aquilo que se chama conexão dos dons mostrando que todos são inseparáveis na sua ação ainda que uns se relacionem mais com uns do que com outros e ainda que em cada momento a alma seja guiada predominantemente por um dom ou outro. É importante também, para bem compreender o ethos dos modos gregorianos, saber que os padres e doutores da Igreja fazem associações simbólicas entre os dons do Espírito Santo, as bem-aventuranças (como obras perfeitas inspiradas pelos dons e que nos configuram com Cristo, o Verbo encarnado) e os pedidos da oração do Pai-nosso dirigidos ao Pai como fonte de todas as bênçãos. Assim como são oito os modos gregorianos é possível pensar em oito dons: o próprio Espírito Santo como dom e as sete maneiras mais elevadas da alma seguir seu impulso como outros dons, são oito as bem-aventuranças com a última sendo a síntese da união com Cristo (pela cruz suportada graças ao amor da verdade), são sete os pedidos do Pai-nosso porém antecedidos por uma invocação geral que estabelece a relação da oração ("Pai nosso que estais nos céus") totalizando oito invocações. Sete simboliza o caminho, a escada até o paraíso como vemos nas sete moradas de Santa Teresa d’Ávila (que podem ser estudadas em relação com os outros septenários) e o um do oito que se acrescenta aos sete simboliza a nova criação, a plenitude da transformação e ressurreição que acontece na eternidade e no fim dos tempos mas que em Cristo já se realizou plenamente. Percebe-se que em cada modo predomina um de quatro afetos ou movimentos principais: 1-impulso passivo em direção ao recolhimento-distensão-sistáltico, 2- impulso ativo-tensão-diastáltico, 3- repouso ativo-hesicástico/diastáltico, 4-repouso passivo-hesicástico/sistáltico. Porém, todos modulam de tal forma que em cada música composta num determinado modo aparece algo de todos os outros e muitas vezes esses outros aparecem em diverso grau. O movimento seja ele qual for pode ser predominantemente sistáltico ou diastáltico ou uma síntese com ambos movimentos equilibrados sem predomínio de um ou outro, pode ser um movimento mais forte e talvez até desordenado ou um movimento suave que busca o equilíbrio e ordem do repouso. Explicam-se os quatro movimentos principais pela ênfase sistáltica ou diastáltica de um lado e de outro pela possibilidade da hesíquia, do repouso, apresentar-se junto com uma ênfase sistáltica ou diastáltica (não há repouso absoluto nos seres criados, tudo que há e que não é Deus encontra repouso no movimento ordenado e este pode ser mais fraco ou mais intenso). Sístole e diástole aparecem de modo paradigmático no movimento do coração de carne, símbolo do coração espiritual, e o coração tem sua hesíquia, seu repouso, quando o conjunto de seus movimentos sistálticos e diastálticos está bem ordenado. É possível perceber analogicamente e simbolicamente essas quatro direções de movimento nos movimentos relacionados da terra, da lua e do sol: são quatro as estações do ano relacionadas com o sol e quatro as fases da lua. Os três aspectos do movimento que geram as quatro direções (sístole, diástole e hesíquia) podem ser associados ao sol que com o calor gera impulso ativo diastáltico, à lua que gera com suas fases possibilidades de atuação gravitacional diversificada e assim movimentos interiores (movimentos sistálticos) nos seres vivos (permitindo aos agricultores por exemplo escolher a melhor época de plantio desta ou daquela planta), e à terra que no repouso de um movimento ordenado recebe as influências do sol e da lua. Os quatro ethos que aparecem nesses tipos de movimento são também os quatro ethos dos quatro temperamentos que aparecem na sensibilidade humana. Cada ser humano tem uma mistura em si destes quatro ethos com um deles predominando nos movimentos coordenados de seus apetites: apetite concupiscível (de desejo do bem, busca de recolhimento no objeto amado, mais sistáltico) e de seu apetite irascível (de combate ao mal e de busca possessiva do objeto amado, mais diastáltico). O temperamento melancólico é predominantemente sistáltico repleto de movimentos interiores exagerados, como a terra com vulcões esperando para despertar, nele predomina o apetite irascível com fraca porém duradoura impressão interior; o colérico é diastáltico, repleto de atividade exterior como um fogo impetuoso que se alastra e demora a apagar, nele predomina o apetite irascível com forte e duradoura impressão interior; o sanguíneo é hesicástico num movimento (ênfase diastáltica) suave e variante como o vento, nele concupiscível predomina pouco com forte porém passageira impressão interior; o fleumático é hesicástico numa postura mais apática e parada (ênfase sistáltica) num movimento suave e rítmico como as ondas de um mar calmo, nele predomina pouco o concupiscível com fraca e passageira impressão interior. Pelo que compreendi do Szondi e pelo que compreendi da teoria clássica dos humores eu poderia interpretar os impulsos de forças femininas e masculinas no sentido de que o humor melancólico é mais feminino e passivo enquanto o sanguíneo seu oposto é mais feminino e ativo, já o fleumático é mais masculino e passivo enquanto o colérico seu oposto é mais masculino e ativo. Homens que nascem com temperamento sanguíneo ou melancólico tem uma tendência mais delicada e precisam se esforçar mais para se virilizar e atingir a plenitude da virtude, homens que nascem com temperamento mais fleumático ou colérico precisam se esforçar para desenvolver uma sensibilidade mais maleável para atingir a plenitude da virtude num sentido de cuidado com o outro. Os temperamentos sanguíneo e colérico sendo ativos tem relação tal que quem nasce primariamente sanguíneo nasce com impulsos secundários coléricos e vice-versa (sendo assim possível, por exemplo, aproveitar os elementos secundários coléricos para virilizar um homem sanguíneo ou aproveitar os secundários sanguíneos para feminilizar uma mulher colérica ou amansar um homem muito colérico). Os temperamentos fleumático e melancólico sendo passivos tem relação tal que quem nasce primariamente fleumático nasce com impulsos secundários melancólicos e viceversa (sendo assim possível aproveitar os elementos secundários fleumáticos para virilizar um homem melancólico ou aproveitar os elementos secundários melancólicos para feminilizar uma mulher muito apática/fleumática ou quebrar a insensibilidade de um homem muito fleumático). É possível que haja uma combinação de dois temperamentos não opostos e não similares como dominantes mas um preponderando e assim a pessoa pode nascer melancólicocolérica ou colérico-melancólica ou então fleumático-sanguínea ou sanguíneo-fleumática; há entre esses pares a seguinte similaridade: sanguíneos e fleumáticos tendem a gravar pouco as impressões na sensibilidade e melancólicos e coléricos tendem a gravar muito as impressões. Um temperamento primário misto de opostos segundo os autores que tratam da teoria clássica dos humores ou é inexistente ou raríssimo. É preciso averiguar aparentes temperamentos mistos se a mistura não é resultado do processo formativo mais que da genética e desenvolvimento embrionário. Parece-me que a tendência na educação infantil é que a família, a sociedade e o próprio indivíduo reprimam excessivamente ou os impulsos do temperamento primário ou do secundário desenvolvendo uma máscara de temperamento oposto, é também possível que haja uma repressão tanto do temperamento primário quanto de seu similar secundário porém um temperamento predomina na máscara. Parece-me que em um processo de amadurecimento normal: na medida em que a pessoa amadurece na adolescência e juventude ela recupera as positividades do temperamento primário ou secundário reprimidos e tem então que desenvolver na vida adulta e velhice o último temperamento menos desenvolvido ou os dois menos desenvolvidos quando houve dupla repressão excessiva. Quanto aos modos gregorianos e os temperamentos: É possível associar o protus ao melancólico, o deuterus ao colérico, o tritus ao sanguíneo, o tetrardus ao fleumático. Porém, o protus autêntico se aproxima muito do fleumático e o tetrardus autêntico muito do melancólico. O deuterus plagal tem um bom tanto de sanguíneo em comparação com o autêntico e o tritus plagal tem um bom tanto de colérico em comparação com o autêntico, porém nestes modos não aparece o temperamento similar com tanta ênfase. É possível associar ao temperamento melancólico e ao protus a virtude cardeal da prudência predominantemente e secundariamente a da temperança; ao temperamento colérico e ao deuterus predominantemente a virtude cardeal da fortaleza e secundariamente a da justiça; ao temperamento sanguíneo e ao tritus predominantemente a virtude cardeal da justiça e secundariamente a da fortaleza; ao temperamento fleumático e ao tetrardus predominantemente a virtude da temperança e secundariamente a da prudência. Há maior inclinação natural para prática destas virtudes porém a virtude recebe sua força da ordem da razão e da vontade e sem a conexão das outras virtudes torna-se falsa virtude, por exemplo: o melancólico reflete muito como um prudente mas sem a fortaleza nunca toma a decisão e assim sua prudência é medo desordenado, o colérico tem o ímpeto da fortaleza mas sem a prudência destrói o bem ao invés do mal que devia combater; o sanguíneo tem o impulso da harmonia nas relações sociais mas pela falta de prudência e temperança tende para um egoísmo injusto que deseja o outro para seu benefício; o fleumático tem a ausência de excessos da paixão mas por falta das outras virtudes cai na apatia, na falta de aptidão para saborear os temperos que a vida proporciona. As faltas a que os temperamentos tendem são corrigidas pela razão iluminada pelos dons intelectivos (na ordem: ciência, conselho, entendimento, sabedoria) e pela vontade fortalecida pelos dons afetivos (na ordem: temor, piedade, fortaleza, sabedoria) e assim os modos gregorianos bem empregados podem servir de terapia espiritual que fomenta as virtudes. A prudência tem sua plenitude no dom de conselho, a fortaleza no dom de fortaleza, a justiça no dom de piedade e a temperança no dom do temor e no de sabedoria. Além dos movimentos da sensibilidade expressos nos temperamentos é importante considerar interações dos modos com as potências (capacidades) espirituais da alma. É possível pensar cada modo primitivo e os três aspectos do movimento (sístole, hesíquia, diástole ) numa relação com os três tempos da memória: passado, presente e futuro. Também com as três potências espirituais e as virtudes teologais que as aperfeiçoam: memória e esperança, intelecto e fé, vontade e caridade: - o protus e a sístole e o passado se relacionam com a memória e a esperança na medida em que temor e ciência estão relacionados com a lembrança das obras de Deus e a meditação daquilo que ele realizou. Protus e a sístole e o presente se relacionam com o intelecto e a fé na medida em que a ciência dá ao intelecto a compreensão atual da criatura e dos bens em relação à Deus e na medida em que o temor traz a humildade como base do conhecimento. Protus e sístole e futuro estão relacionados com a vontade e a caridade na medida em que o temor leva o querer a respeitar os desígnios divinos e escolher o que é bom. - Deuterus e diástole e passado se relacionam com a memória e a esperança na medida em que a piedade e a fortaleza estabelecem a alma na lembrança da eternidade com a memória preenchida pela esperança dos bens futuros. Deuterus e diástole e presente se relacionam com o intelecto e a fé na medida em que a fortaleza sustenta a alma na fé inabalável de modo a enfrentar com inteligência todas as dificuldades e na medida em que a piedade e o entendimento nos conduzem ao presente eterno do filho que louva amando o Pai como expressão clara e inteligível de sua majestade (luz da luz). Deuterus e diástole e futuro se relacionam com a vontade e a caridade na medida em que o impulso da piedade e da fortaleza nos levam a desejar a Deus nosso fim último. - Tritus e hesíquia e passado se relacionam com a memória e a esperança na medida em que a tranquilidade interior com suave alegria dados pela sabedoria, pela fortaleza e piedade dão estabilidade para que a alma refletindo sobre o que passou possa ser tocada pelo dom do conselho e agir para participar dos dons prometidos por Deus. Tritus e hesíquia e presente estão relacionados com o intelecto e a fé na medida em que a luz do alto firma a inteligência na contemplação jubilosa e pacífica da verdade. Tritus e hesíquia e futuro estão relacionados com a vontade e a caridade na medida em que Deus nos dá a alegria do amor e a sua presença antecipada no desejo da plena união. - A memória está relacionada com o tempo passado, com o tempo do presente, com o tempo do futuro e com os três modos primitivos na medida em que contém em si a lembrança do passado, a consciência de si no presente e a expectativa do futuro. - O intelecto está relacionado com o tempo passado, com o tempo presente, com o tempo futuro e com os três modos primitivos na medida em que a inteligência raciocina a partir das experiências passadas numa situação atual tendo em vista uma apreensão da verdade como fim futuro e na medida em que pode contemplar e meditar trazendo à alma a compreensão do fluxo do tempo tendo em vista a eternidade. - A vontade está relacionada com o tempo passado, o tempo presente, o tempo futuro e os três modos primitivos na medida em que os hábitos passados delimitam seu poder de ação, na medida em que está voltada para o fim desejado e na medida em que decide no presente. As três potências espirituais através das três virtudes teologais têm relação especial com cada um dos três efeitos mistagógicos da graça: a memória está ligada especialmente à purificação, o intelecto especialmente à iluminação e a vontade especialmente à união. Considerando as relações das potências com os modos primitivos é possível pensá-los relacionando-os com estes três efeitos da graça. Considerações sobre o uso terapêutico espiritual dos modos gregorianos: Um aspecto importante a se considerar quando pensamos na utilização terapêutica do canto gregoriano para a promoção das virtudes é compreender que mais importante que o temperamento da sensibilidade é o caráter forjado pelas escolhas do espírito. Cada alma tem mais afinidade espiritual com uma das três potências e isso interfere nas escolhas que cada pessoa faz. Outra consideração importante é dada por São Francisco de Sales em seu tratado do amor de Deus quando ele mostra de que modos Deus cura os maus movimentos da alma: por um movimento semelhante mais elevado ou pelo movimento oposto. Num exemplo, São Francisco de Sales cita quando Jesus repreende os discípulos que se alegravam por expulsarem demônios e lhes exorta para alegrarem-se ao invés por seus nomes estarem escritos no céu (Lucas 10, 17-20) após afirmar ter visto a queda do demônio por seu orgulho: se Jesus na ocasião fosse usar os modos como terapia usaria o tritus autêntico para elevar os discípulos à consideração da alegria celeste e talvez em conjunto os modos tetrardus para que a alegria esteja fundada na paz e nas verdades mais elevadas e o terceiro modo para dar-lhes impulso afetivo; assim ele usaria um movimento semelhante alegre para curar uma alegria ruim. Ele poderia ao invés ter enfatizado a necessidade da conversão pela penitência e oração humildes e nesse caso teria recorrido aos protus e aos deuterus, uma situação usada de exemplo por São Francisco de Sales em que nosso Senhor usa este expediente do movimento contrário em relação à uma alegria torpe é quando diz: desgraçados os que riem porque haverão de chorar (Lucas 10, 20), nesse caso os modos correspondentes seriam o primeiro, o segundo, o quarto e o sexto que modula o caráter alegre para o temor, a ciência e a reverência moderando afetos do quinto. Para bem compreender essas possibilidades de ethos moderando movimentos é interessante observar que em cada um dos quatro pares de modos há um que se relaciona mais com certos impulsos de um temperamento e outro que modera mais com as modulações, assim: o segundo modo tem um caráter mais melancólico que pode ser moderado pelo primeiro modo (que modula mais do que o segundo para aspectos sanguíneos, fleumáticos e coléricos); o terceiro modo tem um caráter colérico que pode ser moderado pelo quarto (que modula mais do que o terceiro para aspectos fleumáticos, melancólicos e sanguíneos); o quinto modo tem um caráter mais sanguíneo que pode ser moderado pelo sexto modo (que modula mais do que o quinto para aspectos melancólicos, fleumáticos e coléricos); o oitavo modo tem um caráter mais fleumático que pode ser moderado pelo sétimo modo (que modula mais que o oitavo para aspectos coléricos e melancólicos). Quanto ao protus e tetrardus é importante perceber que o protus plagal tem muito do melancólico no seu aspecto recolhido mas o tetrardus autêntico tem muito do melancólico em seu aspecto de exaltação e excitação interior, e, por outro lado, o tetrardus plagal tem muito do fleumático na sua tranquilidade mas o protus autêntico tem muito do fleumático na sua capacidade de domínio sobre as paixões. Esses pares todos permitem uma ação mais controlada através de ethos semelhantes tanto no sentido de: 1- moderar o semelhante pelo semelhante (um dos modos do par moderando outro do par, por exemplo: usar o primeiro modo para curar uma tristeza desordenada que é mais próxima ao ethos do segundo modo e usar o oitavo modo para controlar a ansiedade com frequência associada à tristeza); quanto no sentido de: 2- moderar através de um contrário mais semelhante ao invés de diretamente usar algo contrário mais extremo (por exemplo: para curar um medo e tristeza exagerados e desordenados usar num primeiro momento o modo tritus plagal ao invés do tritus autêntico - que é mais diretamente oposto à tristeza - e só posteriormente usar o mais oposto). Me parece que a ordem mais terapêutica seria começar com o semelhante, ir para um oposto que tem algo de semelhante, ir para o oposto e então ir para o modo mais próximo do movimento desordenado, provocando catarse (exemplo: contra a má tristeza e ansiedade melancólicas, primeiro I e VIII, depois VI e IV, depois V e III e depois II e VII). Ao utilizar os modos para terapia espiritual é importante sempre lembrar que as pessoas não são estáticas e os temperamentos e inclinações variam segundo a formação, segundo fatores genéticos, biológicos e fatores sócio-culturais e segundo circunstâncias que podem afetá-los como por exemplo traumas, alimentação e uso de remédios. Na dúvida sobre quais modos tem efeito terapêutico é bom lembrar que: 1- de todas as paixões a tristeza é a mais nociva (segundo São Francisco de Sales há só dois tipos de tristeza boa e segundo a caridade) 2- segundo os antigos o temperamento melancólico é o mais sujeito às enfermidades da alma 3- traumas e dificuldades podem causar melancolia mesmo em quem não tem predisposição grande para o temperamento melancólico 4- os modos que por semelhança moderam a melancolia são o primeiro e o oitavo 5- esses modos são justamente os mais relacionados à totalidade dos dons do Espírito Santo. Pensando nisso e no fato de que os modos mais usados no repertório são o primeiro e o oitavo então é sempre recomendável utilizar muito estes modos para fomentar a virtude já que são intimamente relacionados com a virtude da humildade que é a base e com a caridade que é a perfeição da virtude, juntos estes dois modos tem especial ação contra o amor próprio desordenado egoísta que é a fonte de todos os males. Acrescenta-se a eles o quinto modo que é o terceiro mais usado no repertório (e pelas modulações tem importância estrutural em todos): além de máxima oposição à tristeza o quinto modo é especialmente relacionado à caridade fraterna. O aspecto mais interessante do canto gregoriano é sua capacidade para expressar seja movimentos que afetam a sensibilidade seja o espírito. Os três aspectos e possibilidades de ritmo (diastáltico, sistáltico, hesicástico) podem ser compreendidos seja como expressão do movimento do coração de carne e de sua ligação com os sentimentos e emoções da sensibilidade seja como expressão do coração espiritual (que na tradição mística está especialmente relacionado à memória como centro da alma e capacidade para Deus) e a ligação desse coração espiritual com os afetos do querer livre (a vontade que é espiritual). Mas essa ação sobre o duplo coração, a capacidade sensível e a capacidade espiritual do homem, depende da manifestação da beleza, depende da capacidade dos seres de irradiar bondade e mostrar verdade e da capacidade humana de perceber essa irradiação e reagir a ela. A beleza alegra no mostrar-se, causa alegria na doação de bem e de luz e isso tem profunda relação com as características do canto gregoriano em relação à hesíquia, à paz do coração. O canto gregoriano está intimamente relacionado à oração do coração, à tradição de oração profunda que herdamos dos padres do deserto e dos padres da Igreja. "A alegria do coração é a vida da alma e um inesgotável tesouro de santidade" (Eclesiástico): nada como a música para expressar essa alegria do amor no coração e entre todas as formas de música o canto sacro e litúrgico que herdamos dos padres da Igreja sobressai na sua capacidade para levar o coração à plena felicidade da união com Deus. O coração como memória está profundamente ligado à música visto que essa só pode tomar forma propriamente e existir em sua totalidade na memória que liga o som passado ao som presente e à expectativa do som futuro. Epílogo: sobre a espécie de escala grega que foi abandonada no canto gregoriano, e sobre os três tipos de composição e o desenvolvimento da música tonal a partir do gregoriano. É interessante notar como o modo maior pode ser compreendido como derivado sobretudo do tritus gregoriano e o modo menor derivado sobretudo do protus gregoriano a partir de uso mais abundante do si bemol (resultando no protus numa escala de ré menor e o tritus numa escala de fá maior). O aspecto mas sistáltico predomina no menor enquanto que no maior a ênfase é num movimento diastáltico que resolve na hesíquia. O aspecto mais diastáltico do deuterus primitivo aparece no modo maior nas cadências sobre a mediante e sobre a sensível e no menor nas cadências sobre a dominante. Mas há algo muito interessante a se observar na música tonal: a recuperação da dissonância do trítono para enfatizar a resolução do movimento na hesíquia e repouso na tônica. No canto gregoriano o tetracorde grego com o trítono que aparecia no mixolídio grego e era associado à angústia aos poucos desapareceu por completo. Mas na música tonal e mais ainda na póstonal essa angústia passa a ser valorizada seja para enfatizar e realçar uma passagem de tensão para distensão e repouso, seja em si mesma como expressão de uma situação humana. Essa angústia do trítono está muito relacionada aos aspectos mais problemáticos do humor melancólico quando desordenado e assim é possivel pensar que talvez (hipótese a ser verificada numa pesquisa musicológica mais profunda) na Grécia o dórico em mi fosse associado ao colérico, o frígio em ré ao sanguíneo (especialmente num sentido de feminino e de variedade de movimentos) , o lídio em dó ao fleumático e o mixolídio em si ao melancólico. No canto gregoriano é interessante observar que o si como nota de solfejo era inexistente, tanto o si natural ("b duro" "b quadrado") quanto o si bemol ("b mole") faziam parte de hexacordes que eram transpostos em várias alturas (ut ré mi fá sol lá: duas sequências das finais dos modos primitivos transpostas com protus em ré e sol, tritus em ut e fá e deuterus em mi e lá). Dois hexacordes tinham a nota que chamamos si (B) o hexacorde F G A Bb C D com o "B mole" e o hexacorde G A B C D E com o "B duro" e em ambos os casos um medieval treinado no sistema criado pelo Guido D'Arezzo cantaria ut ré mi fá sol lá. O tetrardus gregoriano no seu aspecto jubiloso e pacífico permanece na música tonal em cadências da escala maior sobre a dominante desde que essas apareçam sem o recurso angustiante e tensional do trítono. No canto gregoriano a excitação do trítono quase aparece nas modulações do tetrardus autêntico (sétimo modo) que às vezes parte do ré, desce ao si e evolui num arco melódico que tem o fá no topo ornamentando um mi. Mas nesse modo a passagem das modulações impede uma impressão de trítono - que não acontece nunca diretamente num salto de intervalo único (si - fá). É interessante observar que este modo é o único na evolução modal final que tem uma tenor que não faz parte da tríade maior formada sobre o fá hesicástico do tritus (fá, lá, dó, são as tenores dos outros modos nas composições mais elaboradas do próprio de missa). Uma música sacra moderna e contemporânea que queira utilizar os recursos angustiantes e tensionantes do trítono e outras dissonâncias deve levar em consideração a necessidade de busca da paz e alegria serena que devem triunfar no resultado final da composição e expressar por estes recursos mais a catarse e a vitória sobre o mal do que a miséria presente na vida humana após a queda do pecado.