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Resenha do livro ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso em Análise: Sujeito, Sentido, Ideologia. Campinas, SP, Pontes, 2012. 239p.

275 ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso em Análise: Sujeito, Sentido, Ideologia. Campinas, SP, Pontes, 2012. 239p. Resenhado por: Carolina Fernandes1 e Rodrigo de Oliveira Fonseca2 Em seu 38º livro sobre Análise de Discurso, Eni Orlandi convida-nos desta vez a, mais do que analisar o discurso, observá-lo em análise(s). Essa alusão à terapia metaforiza as próprias inquietações da área na tensão entre as suas bases epistemológicas e o novo campo de questões que se apresenta. Tendo se desenvolvido com base na consistência e na abrangência teórica e metodológica, a Análise de Discurso praticada no Brasil pode, assim, reivindicar um “alargamento da exploração de seus princípios básicos”, caracterizando o avesso do que se coloca na França, onde a epistemologia pecheutiana encontra-se apagada. Orlandi mostra que tal tomada de posição implica novos desafios e responsabilidades. Discurso em Análise vem reforçar as bases da Análise de Discurso herdada de Michel Pêcheux (doravante AD), provocando o olhar em diversas direções, sem perder o foco na historicidade da própria teoria. Para manter sólida a filiação da AD brasileira, Eni Orlandi considera como conceitos articuladores o sujeito, o sentido e a ideologia, a partir do que se pode preservar a relação entre o político e o teórico, tornando consistente a interlocução entre teoria, metodologia, análise e objeto. O encadeamento entre esses elementos é o que faz com que o avanço da AD no país recupere o sentido de sua fundação na França para seguir adiante, no trabalho sem fim de uma ciência. A obra é constituída por 15 textos, resultado de conferências e reflexões sobre o desenvolvimento da AD na contemporaneidade. No primeiro, Apagamento do político na ciência: notas à história da análise de discurso-fragmentação, diluição, indistinção de sentidos e revisionismo, a autora remonta às formulações iniciais da AD na França, relacionando essa conjuntura da formulação francesa à conjuntura política do Brasil das décadas de 60 a 80, quando se vivia o período da ditadura militar, a época dos silenciamentos, da opressão, do dizer de outros modos. 1 Professora da Universidade Federal do Pampa. 2 Doutor em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Organon, Porto Alegre, no 53, julho-dezembro, 2012, p. 275-284 276 Carolina Fernandes e Rodrigo Fonseca Essa interdição do político no discurso da resistência marca a assunção do sentido nos estudos da linguagem, cujo ponto nodal se localiza na articulação entre língua e ideologia. Orlandi observa que, na conjuntura atual, afloraram diferentes práticas teóricas que se creem no âmbito do discurso, numa vasta gama de “análises de discurso” em que o objeto de estudo (o discurso) é tão plural e contraditório que é difícil estabelecer as filiações teóricas. No entanto, para a autora, essa polissemia em torno da noção de discurso, ao invés de refletir a heterogeneidade do campo das ciências da linguagem, apaga-a em nome de uma homogeneidade imposta pelo discurso da mundialização que preza pelo sentido único, consensual, esfacelando as diferenças. Essa lógica do consensual, produto da ideologia mundialista, torna rarefeita a reflexão sobre a linguagem e, principalmente, sobre o discurso enquanto materialidade ideológica. A virada da AD (seu “tournant”) é mais amplamente discutida em Análise de Discurso e Contemporaneidade Científica, onde Orlandi expõe os deslizamentos da AD e reflete sobre seus rumos, propondo questões e desmantelando seus desvirtuamentos. No panorama brasileiro da AD, novas questões são postas, novas discursividades e novos tipos de análise, termo recuperado de Michel Pêcheux, o que não implica novos objetos a serem investigados. Para a autora, “não é o objeto que é novo, é o que podemos dizer através do tipo de análise, sobre nosso objeto”. Reforça ainda que objeto da AD segue sendo o discurso como principal materialidade ideológica. Orlandi ainda alerta para a necessidade de se evitar o deslumbramento com objetos supostamente novos de análise (midiáticos, virtuais, interativos), o que pode reduzir a prática analítica do processo discursivo à mera descrição da materialidade significante, apagando a teoria. Ela ressalta a importância de se manter firme na teoria, de se colocar no lugar teórico da AD, para, assim, trabalhar no entremeio. Entremeio é uma palavra-chave na AD, que se originou entre as contradições da Linguística, do Marxismo e da Psicanálise. No entanto, Orlandi amplia esse conceito para mostrar que o entremeio é igualmente convocado no contato com outras áreas que venham a entrar no jogo discursivo através da materialidade significante em análise. Nessa perspectiva do entremeio, a AD se coloca no terreno dos estudos da linguagem na posição materialista, isto é, nem formalista, Organon, Porto Alegre, no 53, julho-dezembro, 2012, p. 275-284 Resenha: ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso em análise: sujeito, sentido, ideologia 277 nem funcionalista. Ver a linguagem pela ótica materialista, afirma Orlandi, citando Pêcheux, é ver a língua como “o real específico formando o espaço contraditório do desdobramento das discursividades”. É neste ponto do desdobramento por onde se podem abordar as diferentes materialidades significantes tão convocadas à análise no contexto atual. No capítulo seguinte, Documentário, Acontecimento discursivo, Memória e Interpretação, Orlandi analisa o documentário São Carlos/1986 de João Massarolo, 2007, que denuncia a repressão do governo militar às manifestações de operários desempregados no interior de São Paulo, apontando o político como não-restrito à prática política, mas integrante de toda relação de poder materializada na linguagem. Essa análise é um exemplo de como a AD pode abordar os novos materiais textuais, considerando inseparáveis os dispositivos teórico e analítico. Além disso, a autora salienta que a natureza do material significante a ser analisado afeta justamente este último, o dispositivo analítico, sendo neste ponto a entrada de outras áreas que ajudem a analisar as especificidades desse material. Observando a relação entre o dizer na atualidade e sua memória, Orlandi entende que São Carlos/1968 trata-se de um acontecimento discursivo e não de um “documento” da história, visto que documento visa à imobilidade do arquivo, à institucionalização do dizer, ao contrário do acontecimento que é móvel e permite outros sentidos, que não apenas os institucionalizados. O fato não é representado no documentário, mas se torna acontecimento por ser um recorte do real, uma versão que produz o efeito de passado. A tomada do texto documentário como acontecimento se materializa de diversas formas no vídeo: através de imagens, sons, movimentos, formas e mesmo técnicas de edição fílmica. Por essa complexa textualidade, Orlandi sente a necessidade de recuperar as reflexões de Jean Davallon sobre a relação entre a imagem e a memória para mostrar que essa relação intrínseca revela a imagem como uma materialidade discursiva e, assim, suscetível de significar e fazer circular a memória do dizer. As imagens do documentário tornam visíveis os sentidos silenciados pela ditadura e que agora podem se colocar como acontecimento, como parte da história, ou ainda, coloca na história o que estava silenciado: o político. Em Quando a falha fala: Materialidade, Sujeito, Sentido, a autora reflete mais profundamente sobre a questão da materialidade na Organon, Porto Alegre, no 53, julho-dezembro, 2012, p. 275-284 278 Carolina Fernandes e Rodrigo Fonseca AD conceito que tende a ser banalizado pela redução ao dito ou ao dado de qualquer natureza. O próprio conceito de materialidade em AD é construído no entremeio entre a Linguística, que faz resurgir o conceito de forma de Hjelmslev, as Ciências Sociais com o Materialismo Histórico e a Psicanálise, por fazer surgir o conceito de imaginário na sua relação com o real. Articulando essas três áreas, Eni Orlandi esforça-se por demonstrar que a noção de forma material, inspirada pela Glossemática para a qual cada linguagem apresenta sua forma própria, liga-se à perspectiva do Materialismo Histórico que tira a ideologia da esfera das ideias, fazendo do político uma prática discursiva materializada na linguagem via inconsciente. Essa ligação entre ideologia e inconsciente, frisa Orlandi com base em Pêcheux, é material. A materialidade é, portanto, para a autora, o que explica a relação entre o real e o imaginário. A incursão do real no imaginário é exposta, via forma material significante, pelos atos falhos. Pensando a relação entre a materialidade e a tecnologia, Orlandi vê surgir o dígito falho, que representaria os equívocos na digitação de textos, a troca de letras ou mesmo sua supressão ou acréscimo. Ressalta que os atos falhos não se produzem do mesmo modo em materiais significantes diferentes devido às condições de produção da escrita. No caso do dígito falho, a falha é facilitada pela emergência da escrita digital e pelo movimento dos dedos no teclado, o que significa que a relação entre matéria e língua passa pela questão do corpo. E a autora finda sua reflexão mostrando que essa falha na materialidade tecnológica confirma a tese de Pêcheux de que ideologia e inconsciente estão materialmente ligados. No texto Processos de Significação, Corpo e Sujeito, Orlandi discute a materialidade do sujeito, ou seja, a relação do sujeito com o corpo, não o empírico, mas em seu caráter discursivo, que significa. Ele é a própria materialidade do sujeito em sua ligação com o simbólico e o imaginário. Dessa forma, a autora explora mais uma vez a abertura do simbólico ao analisar o comportamento do corpo quando o sujeito silencia, ou quando expõe suas tatuagens ou piercings, ou ainda o corpo que dança, sendo esta dança feita do embalo das próprias pernas ou de cadeiras de rodas. Ela busca compreender como o sujeito, enquanto materialidade, significa e como significa-se por meio do corpo. Explica que é o imaginário que produz o efeito de transparência, de que a Organon, Porto Alegre, no 53, julho-dezembro, 2012, p. 275-284 Resenha: ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso em análise: sujeito, sentido, ideologia 279 relação entre sujeito e corpo é evidente. Pelo dispositivo da AD, Orlandi mostra que essa relação é apenas ilusoriamente transparente e convidanos a pensar a relação do corpo com a ideologia. Para isso, examina a dança como um efeito discursivo possibilitado pelo próprio conceito de discurso: efeito de sentido entre interlocutores. A análise discursiva da dança estende-se em Corpo e Sujeito: na dança, os sentidos, onde a autora principia sua reflexão examinando os processos discursivos da dança de Pina Bausch, apoiada nas reflexões de Laban e Badiou. Em suas análises, compreende a dança como uma “retenção” e uma “iminência” que faz trabalhar o silêncio na materialidade do corpo, silêncio este fundador de significação e não ausência de sentido, conforme a definição trabalhada em sua obra As formas do silêncio. Mobilizando os conceitos de tempo e espaço na dança em uma perspectiva discursiva, Orlandi conclui que a dança não é representação, mas efeito metafórico. Nos dois textos seguintes – Propaganda Política e Língua de Estado: Brasil, um país de todos e Uma tautologia ou um embuste semânticodiscursivo: país rico é país sem pobreza? – Eni Orlandi analisa o funcionamento da língua de Estado sob um slogan do governo Lula e outro do governo Dilma. Antecipando a primeira análise, retoma um texto de Michel Pêcheux sobre o russo Serguei Tchakhotin, teórico da propaganda na URSS, e os processos de contraidentificação na guerra ideológica de desmobilização das resistências populares, a partir da qual se desenvolve um intenso movimento de empréstimos, mistificações, camuflagens e provocações entre esquerda e direita. Orlandi sublinha o caráter não-instrumental e não-indiferente das armas utilizadas por cada um dos lados no confronto, o que ajuda a entender o fracasso das teorias da manipulação. No caso do enunciado Brasil, um país de todos, tomado numa constelação de dizeres edificantes do mito da cidadania, o discurso transverso no funcionamento do aposto, com sua evocação lateral, insinua-se (e não mais que isso) contra um pré-construído da imagem do Brasil enquanto sociedade desigual. Ou seja, contra uma imagem estruturante na memória da esquerda brasileira. Quanto ao slogan País rico é país sem pobreza, veiculado em propaganda do governo Dilma, Orlandi trata de demonstrar o desvio que se opera das causas da pobreza, fator este que, se inserido, abriria espaço para os lugares de litígio, de mobilização e contestação popular. Organon, Porto Alegre, no 53, julho-dezembro, 2012, p. 275-284 280 Carolina Fernandes e Rodrigo Fonseca Não falando de “pobres” nem de “povo”, mas de “pobreza”, o enunciado atua em prol da reinscrição de uma suposta natureza dos sujeitos pobres que os condena à sua situação. Numa análise do funcionamento global da propaganda (do Ministério da Educação), as estatísticas apresentadas sobre a melhoria dos índices de desenvolvimento educacional no Brasil são consideradas pela autora como uma forma de materialização do discurso do consenso sobre a educação, que trata a educação como uma espécie de ação pragmática no campo da capacitação para o trabalho e para o aumento da produtividade. O programa/problema de Eni Orlandi para a educação é outro: “a educação poderia, se praticada como formadora do indivíduo na sua relação com o social e o trabalho, dar condições para que este sujeito ‘soubesse’ do efeito de sua intervenção nas formas sociais” (p. 141). Em Os recursos do futuro, sobre o discurso da educação ambiental, a autora consegue trazer à tona o confronto entre dois compromissos teórico-político-sociais e ideológicos mediante a “simples” inversão de um enunciado “O futuro dos recursos”, gesto de análise que desestabiliza certa direção pragmática e explora sua equivocidade. Nos discursos sobre o ambiente predomina uma racionalidade empresarial que toma a Terra como objeto, esvaziando o social e o político como fatores estruturantes. Quanto a estas armadilhas discursivas, Orlandi propõe enxergar o recobrimento entre ciência, tecnologia e administração, que conduz ao fato de que ao falarmos cientificamente dos recursos, do planeta, etc., já estejamos comprometidos com o político. A autora enxerga o potencial das novas tecnologias de linguagem, com seu modo de funcionamento, ao lado de novas relações entre a ciência e os governos. A contribuição ímpar dos estudos de linguagem seria justamente a de elaborar os equívocos que operam na contradição entre o natural e o social, constituindo-se enquanto um “instrumento” de conhecimento. Em Educação em direitos humanos: um discurso, Eni Orlandi opera uma quase genealogia do discurso sobre os direitos do homem, buscando investigar as redes de memória que atuam na e disputam a referenciação do tema, em especial na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948. A autora discute o imbricamento entre ética e interpretação – fazendo lembrar a escrita pós-colonialista e intervencionista da marxista indiana Gayatri Spivak em Pode o subalterno falar? – e as possibilidades da educação na abertura de Organon, Porto Alegre, no 53, julho-dezembro, 2012, p. 275-284 Resenha: ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso em análise: sujeito, sentido, ideologia 281 um espaço onde os sujeitos possam se significar politicamente, em processos de resistência e ruptura dos sentidos (e dos sujeitos). É o caso de se diferenciar direitos que são promulgados quando seus sentidos já estão incorporados à memória popular, quando já são vivenciados como fruto de conquistas históricas, caso da Revolução Francesa, e direitos que soam (sobretudo aos que fomos colonizados) como modelos importados, caso da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Nesse ponto, Eni Orlandi retoma a distinção por ela proposta entre non sens/não-sentido, de um lado, e sem-sentido, de outro. Se a “igualdade” é, para muitos, algo absolutamente sem-sentido, devese a um esgotamento de sua significância em nossa formação social. Mas a discursividade dos direitos humanos é algo que pode vir a fazer outros sentidos para sujeitos segregados de todos os direitos, passando do irrealizado na história, do non sens, aos sentidos possíveis de experimentação. Parafraseando Marx, Orlandi diz que a consciência não precede a experiência, mas, ao contrário, se constitui a partir dela, e a partir dessa consideração desenha uma perspectiva para a Educação em que os diferentes discursos possam ser ouvidos e investidos na realidade histórica e social contemporânea, abrindo campo ao irrealizado dos Direitos Humanos. Em Oralidade e interpretação: o dito, o esquecido, o disperso, o indistinto, Orlandi percorre os fundamentos da AD de modo notável. Como já fez em seu livro Análise de Discurso: princípios de Procedimentos, a autora sublinha o deslocamento operado pelos dispositivos de análise: mais do que oferecer mais uma interpretação dos textos, a AD visa produzir uma compreensão dos modos como os sentidos são aí produzidos. No que tange ao discurso oral, foco do texto, a autora trata de desfazer a identidade entre forma e funcionamento ao mostrar que um discurso da escrita pode ser oralizado (como exemplo temos o telejornal) e um discurso oral pode ser escrito (como ocorre no cinema). O fundamental aí são duas relações com a história e com a necessidade de atestar autoria: enquanto o discurso da escrita remete à inscrição no arquivo, na memória institucional, o discurso oral funciona como inscrição no interdiscurso, mexendo na filiação dos sentidos, trabalhando uma memória local e produzindo uma nova ordem de discursividade, como mostra Eni Orlandi a partir da análise do movimento dos sentidos nos rastros do enunciado Em se plantando tudo dá. Organon, Porto Alegre, no 53, julho-dezembro, 2012, p. 275-284 282 Carolina Fernandes e Rodrigo Fonseca Eni Orlandi explora, no texto Claude Lévi-Strauss, Michel Pêcheux e o estruturalismo, os pontos comuns e díspares entre estruturalismo e AD. A suspeita e a suspensão do registro do psicológico, das interpretações e das representações foram centrais na contestação das evidências do empirismo e do funcionalismo. Mas a pretensão de se constituir enquanto um discurso sem sujeito, e a falta de corte entre teoria e prática, que atua na reduplicação das interpretações prévias, levaram a uma distância anunciada da AD desde 1969. A relação analítica de compreensão dos funcionamentos discursivos implicava em ultrapassagem do estudo positivista das funções, rumo ao terreno do materialismo e à consideração da materialidade dos textos. Implicava lidar com a não-linearidade dos sentidos em razão dos pontos de deriva que oferecem lugar de interpretação e de inscrição da ideologia e da historicidade dos/nos textos. Orlandi entende que esta é a questão mais difícil de ser respondida pelas ciências humanas, o que nos dá o tom da intervenção de Michel Pêcheux no fazer científico. Em À flor da pele: indivíduo e sociedade, Orlandi discute a relação entre o espírito de corpo e o corpo do indivíduo que expressa esse pertencimento através de uma escrita e, mais profundamente, de uma escritura de si, em que se tem o desejo da constituição de outra forma-sujeito, resultando em outras formas de individua(liza)ção. No entanto, se aí há resistências ao isolamento e ao déficit de laços sociais (e de sentidos), a autora diz que este processo também comporta os transbordamentos da publicidade para o próprio corpo dos sujeitos, textualizada fora de seu lugar convencional, vindo a reproduzir sob mais uma variável da tecnologia da escrita. A diluição dos sentidos entre espaço público e privado é um dos temas de A casa e a rua: uma relação política e social. Qual a relação entre o espaço da cidade, sujeito à interpretação, e a sociedade? Eni Orlandi sublinha que a relação casa/rua faz parte da ordem capitalista, sendo regida pelo aparelho jurídico e administrada pelo Estado a partir de um sistema de diferenças e hierarquizações que, no entanto, têm se tornado mais que excludentes. Caberia falar agora em segregação, em mecanismos de expulsão social. Vivemos uma forte redução do espaço de sociabilidade, frente a nichos e corredores que se estendem pela justificativa da (falta de) segurança. Problemas comuns a todos passam cada vez mais a receber respostas individualizadas – e, acrescentamos, Organon, Porto Alegre, no 53, julho-dezembro, 2012, p. 275-284 Resenha: ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso em análise: sujeito, sentido, ideologia 283 problemas que são de poucos circulam como problemas de todos. O abismo que se levanta ainda mais entre o condomínio e a favela faz com que um muro adquira significados opostos, segurança/contenção, proteção/repressão, o que se fecha de dentro e o que se fecha de fora, cortando a cidade num gesto de profunda violência simbólica e afetando a própria noção de social. Eni Orlandi critica ainda a ação assistencialista das ONGs, derivada da mundialização e do neoliberalismo, tendo no desengajamento do Estado o seu pano de fundo, configurando o quadro de privatizações e comunitarismos. No último capítulo do livro, Por uma teoria discursiva da resistência do sujeito, Orlandi critica o voluntarismo e o automatismo mistificador que tomam o lugar do trabalho, da práxis, e da necessidade histórica da resistência. Também propõe pensarmos a materialidade histórica junto ao estatuto do socialismo como forma de ressignificar a questão da ideologia, longe de apriorismos. Condizente com a consideração do caráter paradoxal dos objetos ideológicos por Pêcheux, a autora diz que a relação entre reprodução/transformação não funciona como duas cidadelas, mas enquanto confrontos móveis que representam riscos de ruptura dos processos de dominação. A autora perpassa o conceito de alienação em Marx, numa leitura surpreendentemente lukacsiana e ontológica do ser social/subjetividade, antes de discutir o tema da humilhação, que a interessa enquanto prática social, não como sentimento ou atitude – a exemplo de Ansart e Haroche. Tal distinção se pauta, sobretudo, nos descompassos entre as teorias da humilhação e o objeto de análise da autora, o Falcão do tráfico, sujeito segregado, posto para fora da sociedade. A humilhação nessas teorias incide sobre o individualismo contemporâneo e suas determinações pelo mercado, quase esquecendo o Estado – agora numa observação genuinamente althusseriana. O universo de normas no espaço de segregação é outro, de certo modo incompreensível para os que não estamos neste espaço, cabendo também a reflexão de que a sociedade é o tempo todo atravessada por movimentos na história, movimentos que, no entanto, são barrados, deixando de significar politicamente, explodindo “em sentidos que estão do outro lado da história, na base da produção da delinquência, da marginalidade, do terrorismo, da ilegalidade etc.” (p. 225). Aí estaria a resistência, possibilidade de irrupção de sentido no interior do sem-sentido, distante do modo como é pensada no interior Organon, Porto Alegre, no 53, julho-dezembro, 2012, p. 275-284 284 Carolina Fernandes e Rodrigo Fonseca do discurso “oficial” capitalista, onde a resistência é guardada para situações idealizadas, nas quais é tingida de heroísmo. No conjunto de textos de Discurso em Análise, Eni Orlandi apresenta percursos analíticos e considerações relevantes para se pensar os discursos na contemporaneidade, o que se deve, em nosso entendimento, à sua orientação consistentemente pecheutiana, que a leva a não desvencilhar o seu fazer científico de seu fazer político. Somos assim brindados com análises e reflexões que se mostram com notável clareza, abrindo-se a retornos e prosseguimentos totais ou parciais. É o caso de retomarmos uma afirmação sua: “falta inscreverse decisivamente em valores sociais e posições políticas explícitas e significadas” (p. 147). Essa é uma falta da qual não podemos acusar os textos de Discurso em análise, obra em que Eni Orlandi enfrenta a impossibilidade de se compreender algo desde um ponto absoluto, sem outro e sem real. Recebido em: 08/11/2012. Aprovado em: 13/11/2011. Organon, Porto Alegre, no 53, julho-dezembro, 2012, p. 275-284