A hermenêutica do si e a identidade narrativa
Introdução
Como se viu no capítulo anterior, Ricoeur se propõe desimplicar os aspectos temporais do ato da
configuração da intriga e, desse modo, mostrar o papel mediador desse tempo construído entre a
prefiguração dos aspectos temporais do campo prático e a refiguração da experiência temporal do
leitor. O ato de configuração da intriga ou mimesis II combina, em proporções variáveis, a dupla
dimensão do tempo narrativo: a episódica, que tende à sucessão linear irreversível, e a
configuradora, que modifica essa cronologia, porque os fatos ou episódios são “tomados em
conjunto”, o que torna possível a compreensão de sua seqüência a partir do fim. Essa dupla
dimensionalidade do tempo narrativo o impede de ser nivelado tanto ao tempo físico como ao
tempo fenomenológico.
Este contraponto aporético encaminha Ricoeur para a noção de identidade narrativa, que não é
fruto da dimensão meramente especulativa, na medida em que é, como confessa este filósofo,
apreendida intuitivamente. Em várias oportunidades, antes da formulação desse conceito, Ricoeur
reconhece que a narrativa de ficção contribui para a solução de paradoxos aos quais o
pensamento especulativo não consegue fazer face. Por exemplo, em vários momentos de Tempo e
narrativa I, ele se refere ao fato de a atividade mimética, em mimesis II, configurar,
poeticamente, o tempo que aparece prefigurado na pré-compreensão ou mimesis I, e de esta
atividade configurante endereçá-lo ou encaminhá-lo para o mundo do leitor – mimesis III –, onde,
refigurado, advém à linguagem, adquirindo, assim, a condição de ser narrado ao se entranhar na
experiência humana. No entanto, Ricoeur postula que, embora o tempo narrativo coloque em
suspensão as duas dimensões temporais suprarreferidas, sua apreensão dá um passo em direção à
eliminação desses parênteses. É o que declara quando afirma que “o tempo narrado é como uma
ponte lançada sobre a brecha que a especulação não cessa de abrir entre o tempo fenomenológico
e o tempo cosmológico”. (RICOEUR, 1997, p. 420)
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Portanto, permanecem numa situação aporética, porque suspensas ou ocultas, as duas dimensões
temporais – tanto a perspectiva fenomenológica como a cosmológica –, e sem elas a dimensão
existencial do homem. A solução ou superação desse impasse Ricoeur aos poucos vai-se
delineando, e o primeiro passo importante advém da intuição desse filósofo de que do
entrecruzamento dos dois diferentes tipos de atividade mimética a que dão lugar a narrativa de
ficção e a narrativa histórica, ou seja, dessa fecundação mútua nasce um frágil rebento, que é a
atribuição a um indivíduo ou a uma comunidade de uma identidade específica que podemos
chamar de identidade narrativa” (RICOEUR, 1997, p. 424). A “dialética desse entrecruzamento
seria em si mesma sinal de inadequação da poética à aporética se não surgisse essa noção, que se
trata de uma experiência fundamental na medida em que torna possível responder à pergunta
“quem realizou tal ação” ou “quem é seu agente ou seu autor”. A interrogação que Ricoeur
perseguiu em parte considerável de seu percurso, qual seja, “como é que o fio do tempo consegue
criar uma história”, é respondida pela noção de identidade narrativa, que emerge da forma acima
descrita. Ela é uma categoria prática que corrobora a intuição de Hannah Arendt quando formula
que responder à questão “quem” “é contar a história de uma vida”. A alternativa que escapa a
essa ocultação do tempo fenomenológico e físico é o terceiro tempo, de acordo com Ricoeur,
“resulta do entrecruzamento das intenções ontológicas respectivas da história e da ficção. A
dialética desse entrecruzamento seria em si mesma um sinal de inadequação da poética à
aporética, se não nascesse dessa fecundação mútua um rebento, cujo conceito introduzo aqui
e que testemunha certa unificação dos diversos efeitos de sentido da narrativa. O frágil
rebento oriundo da união da história e da ficção é a atribuição a um indivíduo ou a uma
comunidade de uma identidade específica que podemos chamar de identidade narrativa.”
(RICOEUR, 1997, p.424)
Trata-se de uma categoria que, se referindo ou a uma comunidade histórica ou a uma identidade
pessoal, responde às perguntas “quem é que realizou determinada ação?” ou “quem é o seu autor
ou agente?”. Responde-se a esta pergunta, primeiramente, nomeando-se alguém, isto é,
designando-se por um nome próprio ou “contando a história de sua vida”. A história narrada diz
o quem da ação. “A identidade do quem é, apenas, portanto, uma identidade narrativa”. Sem
este recurso, reconhece Ricoeur, a identidade é ou pura mesmidade ou pura alteridade. Só a
narração introduz a ipseidade na mesmidade, substituindo-se a identidade-idem pela identidade-
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ipse, ou seja, a identidade formal e substancial pela identidade narrativa. Isso porque a ipseidade
de uma identidade, segundo Joaquim de Sousa Teixeira,
“repousa ‘sobre uma estrutura temporal conforme o modelo de identidade dinâmica saída da
composição poética de um texto narrativo, podendo deste modo o si-mesmo dizer-se
‘refigurado pela aplicação reflexiva das configurações narrativas”.
Diversamente da
identidade abstrata do mesmo, a identidade narrativa, constitutiva da ipseidade, pode incluir a
mudança, a mutabilidade, na “coesão de uma vida” –, o que transforma o sujeito num ‘leitor’
e ‘escritor’ de sua própria existência” (TEIXEIRA, 2004, vol. II, p. 144)).
Mas essa solução poética, se por um lado explica a constituição da ipseidade, por outro
desconhece um aspecto seu importante, qual seja, a dimensão temporal tanto da narrativa como
da própria existência pessoal. Sem dúvida é esta constatação que faz Ricoeur se endereçar para
uma “hermenêutica do si-mesmo” que tome de empréstimo fragmentos da filosofia analítica, que,
como ele mesmo reconhece, consiste no “preço a ser pago por uma hermenêutica caracterizada
pelo estatuto indireto da posição de si” (RICOEUR, 1999, p. 29). Tanto estes fragmentos são
indispensáveis para a constituição do si-mesmo, como o são as regras que se convencionou
chamar de filosofia da ação – “no sentido limitado que o termo tomou principalmente na filosofia
analítica” (grifo nosso). Elas são indispensáveis porque:
“os atos do discurso são eles próprios ações e, por implicação, os locutores são também
ativos. A pergunta quem fala? e a pergunta quem age? aparecerão assim estreitamente
entrelaçadas. Aqui também o leitor será convidado a participar de uma confrontação
construtiva entre filosofia analítica e hermenêutica. Com efeito, a teoria analítica da ação é
que regerá a grande sutileza da pergunta o quê? e da pergunta por quê?, com o risco de não
poder acompanhar até o fim o movimento de repetição em direção à pergunta quem? – “quem
é o agente da ação?”Repetimos que essas longas sinuosidades da análise são características
do estilo indireto de uma hermenêutica do si, ao contrário da imediação do Cogito”
(RICOEUR, 199, P. 30).
Tanto a hermenêutica do si-mesmo como a filosofia analítica se contrapõem à filosofia do
Cogito e, nessa contraposição, ambas se enriquecem, pois do entrecruzamento dela surgem as
condições de se levar em conta que a pessoa da qual se fala, o agente do qual depende a ação, tem
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uma história, tem sua própria história, aspecto este não considerado isoladamente pela filosofia
analítica da ação. Isso porque, segundo Ricoeur, “a favor do desenvolvimento da noção de
identidade narrativa, o conceito de ação encobrira a amplitude de sentidos que podia ter o
conceito aristotélico de práxis” (...). Todavia, esses mesmo desenvolvimento contribui para que o
sujeito da ação narrada comece a se igualar ao conceito mais amplo de homem agindo e sofrendo
que o processo analítico-hermenêutico é capaz de deduzir” (RICOEUR, 1999, p.30), Ao não
contemplar a abrangência da práxis aristotélica se perdeu de vista sua dimensão temporal,
portanto, não apenas uma dimensão importante, entre outras, foi omitida, mas uma problemática
inteira, a saber, a da identidade pessoal, que só se articula na dimensão temporal da existência
humana” (p. 138). Joaquim de Souza Teixeira argumenta:
“Pouco a pouco uma tríade se vai impondo nas meditações de Ricoeur: descrever (filosofia
analítica), contar (teoria da narratividade) e prescrever (teoria jurídica, moral e ética). Cada
momento desta tríade implica uma ‘relação específica entre a constituição da ação e a
constituição de si’. A mediação, porém, entre a descrição e a prescrição pertence à teoria
narrativa, na medida em que o ‘ato de contar’ comporta estruturalmente quer o alargamento
do campo prático (próprio da descrição), quer a antecipação das considerações éticas
(específicas da prescrição). Se a filosofia analítica, fundamentalmente descritiva, se
contentava com ações ‘curtas’, a teoria narrativa tem a ver com a conexão de uma vida (a
expressão é de Dilthey) com graus mais complexos da ação; é na escala desta complexidade
que o Si procura sua identidade” (TEIXEIRA. 2004, p. 146)
As noções hermenêuticas de ipseidade, alteridade e socialidade que vão se impondo se
distanciam das terminologias próprias das filosofias do sujeito, o que é mais uma evidência de
sua ruptura com toda a tradição do Cogito. A hermenêutica do si que Ricoeur propugna se
distancia da intenção filosófica do “penso, logo existo” e de sua “ambição autofundacional”, na
medida em que formula uma hermenêutica do si pelos desvios reflexivos que as obras de
linguagem tornam possível. Contesta o grau de certeza que o “eu penso” reivindica e reconhece a
inadequação de seu estatuto com as categorias da teoria da narratividade, a saber, a de locutor, a
de agente, personagem da narração e sujeito de imputação moral. Trata-se de uma inadequação
dada à inexistência de equivalência ou correlação entre o conhecimento alcançado pelo si-mesmo
e aquele que se presume ser obtido pela evidência imediata do si pelo “eu penso” cartesiano, pois
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“as instâncias do eu, do outro e da sociedade crescem, demarcam-se e reforçam-se mutuamente,
sem que se possa outorgar a uma delas em particular o privilégio de ‘único fundamento’”.
(TEIXEIRA, 2004, vol.II. p. 158) Essa proposição de Ricoeur encontra acolhimento nas línguas
que distinguem o “si mesmo” reflexivo do “eu” indivíduo, tal como ele apresenta em O simesmo como um outro.
Ricoeur entende que a posição do sujeito cartesiano não é ocupada por qualquer ambição de
fundação, embora a pretensão de seu autor seja construir com essa categoria o a priori de toda
filosofia reflexiva. Ricoeur reconhece que o “caráter hiperbólico da dúvida” torna-a inapropriada
para a constituição de um “espaço particular de certeza” que sustente toda e qualquer construção.
A dúvida hiperbólica não possui qualquer anterioridade lógica ou pré-reflexiva que justifique sua
condição de ir avançando e abarcando os diferentes tipos e modos de conhecimento, pois o que
emerge desse avanço é tão-somente o ato de duvidar. Até mesmo o corpo é “arrastado no desastre
dos corpos”, como se verifica nas Meditações metafísicas. Argumenta Ricoeur:
“esse ‘eu’ que duvida, assim desancorado a respeito de todas as indicações espaço-temporais
solidárias do próprio corpo, quem é ele? (...) o ‘eu’ que leva à dúvida e que se reflete no
Cogito é essencialmente tão metafísico e hiperbólico quanto a própria dúvida o é em relação
a todos os seus conteúdos. Não é, para dizer a verdade, ninguém”.(RIC0EUR, 1991, p. 16)
“Exaltado” por Descartes, o Cogito é “humilhado por Nietzsche”, segundo Ricoeur. O filósofo
alemão assim procede por entender que Descartes, para formular esse construto, lançou mão de
estratégias retóricas, as quais são “‘dissimuladas, esquecidas e até hipocritamente repelidas e
negadas em nome da imediação da reflexão”’. Ricoeur entende que, em sua tentativa de
desconstruir esses artifícios, “Nietzsche não diz (...) senão isto: eu duvido melhor que Descartes.
O Cogito também é duvidoso” (RICOEUR, 1991, p.27)
Ricoeur confessa que se mantém à igual distância do Cogito exaltado por Descartes e do Cogito
proclamado decadente por Nietzsche. Ele não faz face à reivindicação da imediação do Cogito
com instrumentos que visem sua desconstrução, mas, sim, apontando para o lugar vazio de sua
fundamentação. Comentando a afirmação de Ricoeur de que ‘“À exaltação do Cogito se opõe um
Cogito ‘quebrado’ (brise) ou ‘ferido’ (blessé)”, a autora Jeanne-Marie Gagnebin argumenta que
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essa quebra é, simultaneamente, a apreensão de uma unidade bem maior, mesmo que nunca
totalizável pelo sujeito: a unidade que se estabelece em cada ação, em cada obra, entre o sujeito e
o mundo” (GAGNEBIN, 1997, p. 262).
Ricoeur reconhece que dizer eu não é dizer si e que este “está implicado a titulo reflexivo nas
operações cuja análise precede a volta para ele próprio” (RICOEUR, 1991, p. 30) Portanto, como
se viu no primeiro capáitulo, além de se opor à imediação do eu e à sua ambição de posição de
fundamento último, Ricoeur recusa também sua “simplicidade indecomponível” que se associa a
sua imediação. Reivindica uma categoria semelhante a um Cogito com uma dimensão narrativa
e, portanto, lingüística, inserido na tradição e na história, ou seja, reconhecendo-se no horizonte
epistemológico que lhe conferiu sentido em sua chegada e que ele, por sua própria história, o
ressignifica.
A tradição é transmitida pela linguagem e através dela apreende-se o que se é. Como postula a
hermenêutica de Ricoeur, só se tornando linguagem o Cogito alcança o conhecimento de si, pois
essa condição de signo faz com que transite para algo, ou seja, se encaminhe em direção a um
outro. Esta dimensão narrativa que inclui a dimensão de transitividade para a constituição do si é
exemplarmente ilustrada, como se viu, pela dialética da leitura, que transita do personagem
ficcional para a ipseidade do leitor.
A identidade pessoal
A questão da identidade pessoal, ou, como formula André Dartigues, a resposta à questão ‘Quem
é você?’ “implica a narração da vida – no mínimo o curriculum vitae –, que indica o contexto das
ações e situações a partir do qual se pode identificar a pessoa, uma vez que ela é o que fez e o que
sofreu.” (DARTIGUES, 1998, p.7). Entretanto, antes de responder à pergunta por que a narrativa
exprime exatamente a identidade pessoal, faz-se necessário abordar a problemática que essa
concepção envolve, qual seja, o confronto dos dois conceitos maiores de identidade, a identidadeidem ou mesmidade, isto é, com o sentido do mesmo, e identidade-ipse, como ipseidade, ou seja,
como “manutenção de si”. A ambigüidade semântica dos termos idem e ipse são uma herança da
língua latina: idem significa o mesmo, o idêntico, extremamente semelhante, análogo e imutável
no tempo; já o contrário seria diferente e mutável; o termo ipse, por sua vez, significa idêntico,
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um si mesmo idêntico a si-mesmo, cujo contrário seria o outro, o estranho, sem qualquer fixação
no sentido de permanência e persistência no tempo. Esclarecer estas distinções é uma das
intenções filosóficas de O si-mesmo como um outro, que se inicia com a análise dos conceitos
mesmo e idêntico, que dão lugar a uma comparação entre a identidade-idem (mesmidade) e
identidade-ipse (ipseidade).
A mesmidade pode ser considerada a face objetiva da identidade. Ela recobre duas significações
distintas. Uma delas é a identidade numérica ou unicidade, cujo contrário é a pluralidade. Esta
significação tem lugar quando, de uma coisa, se tem mais de uma ocorrência. A coisa, designada
por um nome invariável, presente nas distintas ocorrências, é uma mesma, e não duas. Esse
primeiro componente da noção de identidade corresponde à operação de identificação entendida
no sentido de reidentificação do mesmo.
Outra significação da identidade como mesmidade “é a identidade qualitativa ou máxima
semelhança”, como afirma Joaquim de Sousa Teixeira; “ela é irredutível, mas não totalmente
estranha à anterior”, o que indica uma semelhança extrema, mas compatível com a pluralidade.
(TEIXEIRA, 2004, vol.II, p. 147) ‘“Ela usa a mesma roupa’”, comenta Dartigues, “pode
significar que usa a roupa numericamente idêntica ao que já se tinha observado em uma outra
circunstância ou uma roupa semelhante em todos os aspectos” (DARTIGUES, 1998, p. 8).
Ricoeur concebe que esses dois componentes – a quantidade e a qualidade – são irredutíveis um
ao outro como o são em Kant as duas categorias que se relacionam a ambos os atributos. Por
causa do tempo, a reidentificação com o mesmo pode ser problemática, dando lugar à hesitação, à
dúvida, à contestação. Nesses casos, essas duas formas de identidade – a numérica e a qualitativa
–, embora distintas, se conjugam. Por exemplo, quando se pede para reconhecer uma pessoa
como um suspeito. Esta pessoa é semelhante a que se viu no lugar do crime ou é ela própria?
Ricoeur observa que não se tem dificuldade em reconhecer alguém que só faz entrar e sair,
aparecer e desaparecer. Mas não se pode de imediato concluir, pela semelhança, a identidade
numérica, entretanto ela pode ser invocada como critério indireto para reforçar a presunção da
última. Faz-se necessário, pois, encontrar um critério de permanência no tempo que suporte as
diferenças que ele mesmo – o tempo – introduz na semelhança. Portanto, no caso de uma grande
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distância no tempo, quando aparece a fragilidade do critério de similitude, necessário se faz
apelar para um outro critério, o qual depende da terceira componente da noção de identidade, a
saber, a continuidade ininterrupta do mesmo indivíduo entre o primeiro e o último estádio do
seu desenvolvimento, que permite comparar o indivíduo presente com as marcas materiais
consideradas o traço irrecusável de sua presença anterior. Esse critério funciona em todos os
casos em que o crescimento e o envelhecimento operam como fatores de mudança, e, por
implicação, de diversidade numérica. Afirma Ricoeur:
“A demonstração da continuidade funciona como critério anexo ou substitutivo da similitude;
a demonstração repousa na colocação em série ordenada de mudanças fracas que, tomadas
uma a uma, ameaçam a semelhança sem destruí-la; fazemos assim com nossos próprios
retratos em idades sucessivas da vida; como vemos, o tempo é aqui fator de dessemelhança,
de afastamento, de diferença”. (RICOEUR, 1991, p.142)
Essa ameaça que o tempo representa só é afastada, portanto, se na base da similitude e da
continuidade ininterrupta da mudança se colocar o princípio de permanência no tempo. Com
base na semelhança e na continuidade ininterrupta, este princípio é o último passo a exorcizar as
ameaças contra a identidade de um indivíduo como invariante relacional. De acordo com
Ricoeur, é a permanência das impressões digitais de um homem, ou da sua fórmula genética;
aquilo que, em nível psicológico, se manifesta sobre a forma de caráter O que se obtém, também,
com a estrutura de um instrumento do qual se substituíram todas as peças. “O que permanece”,
diz Ricoeur, “é a organização de um sistema combinatório; a idéia de estrutura oposta à de
acontecimento responde a esse critério de identidade (...)”. Essa idéia de estrutura confirma o
caráter relacional da identidade. Ricoeur comenta que, segundo Kant, a permanência no tempo
torna-se o transcendental da identidade numérica.
O caráter consiste no conjunto de marcas distintivas que permitem indicar o indivíduo humano
como o mesmo. Como tal, ele “acumula a identidade numérica e qualitativa, a continuidade
ininterrupta e a permanência no tempo”. Ele designa de modo emblemático a mesmidade da
pessoa e essa imutabilidade revela-se de um gênero bem particular, como disposição que se liga
ao hábito – hábito em via de ser contraído e hábito já adquirido. O hábito confere uma história ao
caráter, mas uma história em que a sedimentação tende a recobrir e, em última análise, abolir a
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inovação que a precedeu. Essa sedimentação confere ao caráter a espécie de permanência no
tempo que implica o recobrimento do ipse pelo idem. Argumenta Ricoeur:
“Mas este recobrimento não abole a diferença das problemáticas: o mesmo como segunda
natureza, meu caráter sou eu, eu mesmo, ipse; mas este ipse se anuncia como idem. Cada
hábito contraído, adquirido e tornado disposição durável constitui um traço distintivo como
que reconhecemos uma pessoa, identificamo-la novamente como a mesma, o caráter não
sendo outra coisa senão o conjunto dos traços distintivos”. (RICOEUR, 1991, p.146-7)
Segundo Joaquim de Sousa Teixeira, “é neste quadro da identidade-mesmidade que se insere a
questão ontológica da identidade pessoal. A pergunta que se coloca é esta: ‘a ipseidade do si
implicará porventura uma forma de permanência no tempo que não seja redutível à determinação
de um substrato, mesmo no sentido relacional que Kant outorgou à categoria de substância?”
(TEIXEIRA, 2004, vol. II, p.148). A resposta consiste em saber se existe ou não um tipo de
permanência no tempo que responde à questão “quem?” – quem eu sou? – como irredutível a
toda pergunta “o quê?” – que coisa sou eu?
Esta questão diz respeito à ipseidade, que é constituída pela manutenção de si, que, como afirma
Dartigues, “se define menos pela consciência psicológica da continuidade de si que pela
postulação ética desta continuidade, ou o fato de que o si é mantido por seus engajamentos e suas
promessas ao longo do tempo, e computável por seus atos” (DARTIGUES, 1998, p. 9). Mas,
antes de se examinar essa questão, é útil considerar-se as aporias da identidade pessoal cujo
pressuposto seria a idéia de substância, ou, como Dartigues se expressa, “o substrato estável
característico da pessoa”.
Voltando-se, pois, à questão da identidade pessoal, se tem dois modelos de permanência no
tempo, resumidos por Ricoeur a dois termos que ele considera, ao mesmo tempo, descritivos e
emblemáticos: o caráter e a promessa ou a palavra empenhada.
Enquanto no caráter,
identidade-idem e identidade-ipse mais ou menos se recobrem, na palavra dada na promessa,
esses dois termos são entre si irredutíveis. Esclarece Joaquim de Sousa Teixeira:
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“(...) se a permanência do caráter torna indistintas as problemáticas, a fidelidade a si próprio
na palavra mantida marca bem a diferença entre a permanência do si e a permanência do
mesmo. A hipótese de Ricoeur é esta: para efeitos da constituição conceitual da identidade da
pessoa, é a identidade narrativa que mediatiza as duas polaridades – a do caráter e a da
palavra mantida”. (TEIXEIRA, 2004, vol. II, p. 148).
A dimensão que é constituída pela manutenção da palavra dada ou manutenção de si diz
respeito à ipseidade em estado puro. “Em um e outro”, afirma Ricoeur, “nós reconhecemos
voluntariamente uma permanência que reconhecemos de nós mesmos”. Ele explicita:
“Minha hipótese é que a fidelidade a si na manutenção da palavra dada marca a separação
extrema entre a permanência do si e a do mesmo, e assim atesta plenamente a irredutibilidade
das duas problemáticas, uma pela outra. Eu me apresso em completar minha hipótese: a
polaridade que eu perscruto sugere uma intervenção da identidade narrativa na constituição
conceitual da identidade pessoal, ao modo de uma mediação específica entre o pólo do
caráter, em que o idem e o ipse tendem a coincidir, e o pólo da manutenção de si, em que a
ipseidade se liberta da mesmidade”. (RICOEUR, 1991, p.143)
A imutabilidade do caráter é de uma natureza especial, pois pode ser vista como disposição
adquirida, ou seja, “o conjunto daquelas disposições duráveis pelas quais reconhecemos uma
pessoa, deixando desse modo aparecer com clareza a sua dimensão temporal, ponto de apoio para
a narrativização da identidade”. Como disposição adquirida, o outro entra na composição do
mesmo. Mas há outra possibilidade, pois o caráter possui dois aspectos, ou seja, uma dupla
valência, pois além de adquirido, o hábito pode encontrar-se “em vias de ser ‘contraído’, o que
permite outorgar uma história ao caráter: uma história em que a sedimentação tende, no limite, a
abolir a inovação que a precedeu (por isso o hábito é uma ‘segunda natureza’)” (RICOEUR, 1991,
p. 149). Substitui-se, assim, a identidade compreendida como mesmo pela identidade
compreendida no sentido do si-mesmo.
Segundo Ricoeur, há no mecanismo compreendido como si-mesmo um elemento ético. Trata-se
da disposição que se relaciona com a alteridade, a qual entra na composição do mesmo, que
“assume um ‘fora’ que se interioriza”. Esse mecanismo corresponde à identificação com valores,
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ideais, que fazem parte da identidade de uma pessoa e de uma comunidade, que, neles, “se”
reconhecem. Joaquim de Sousa Teixeira acrescenta que, no reconhecer-“se”-em para identificar“se”-a, há um elemento ético, que, “incorporando-se ao caráter, o vai aproximando da fidelidade a
mim mesmo, o que impossibilita que se afirme até o fim o pólo idem da pessoa sem o seu pólo
ipse; mesmo recobertos, um não anula o outro, mas ambos se (re)compõem mutuamente”.
(TEIXEIRA, 2004, p. 150). As considerações a seguir de Ricoeur explicitam mais ainda esse
mecanismo de identificação:
“A identificação com figuras heróicas manifesta claramente essa alteridade assumida; mas
esta já é latente na identificação com valores que faz com que se ponha uma causa acima da
própria vida. Um elemento de lealdade, de lealismo, incorpora-se ao caráter e o faz
transformar-se em fidelidade, portanto, na manutenção de si. Aqui os dois pólos da
identidade se compõem. Isso aprova que não podemos pensar até o fim o idem a pessoa sem
o ipse, mesmo quando um recobre o outro. Desse modo integram-se aos traços do caráter os
aspectos de preferência avaliativos que definem o aspecto ético do caráter no sentido
aristotélico do termo. Isso se faz por um processo paralelo à assimilação de um hábito, a
saber, pela interiorização que anula o efeito inicial da alteridade, ou pelo menos a leva de fora
para dentro. A teoria freudiana do superego tem relação com esse fenômeno que confere à
interiorização um aspecto de sedimentação”. (RICOEUR, 1991, p. 147)
O modelo de permanência no tempo da palavra dada e mantida é singularmente distinto.
Diferentemente do que acontece com o caráter, a identidade-idem e a identidade-ipse nesse
modelo se distinguem de modo até mesmo a dissociar-se, o que faz com que a ipseidade apareça
sem o suporte da mesmidade. Esclarece Joaquim de Sousa Teixeira:
“Há, em oposição ao caráter, um outro modelo de permanência no tempo, o da palavra que,
uma vez dada, se mantém: a perseverança na fidelidade à palavra dada não é o mesmo que
preservação do caráter, assim como a constância na amizade não é o mesmo que a
continuação do caráter. Não estamos perante a permanência ‘substancial da coisa, mas, sim,
perante o ‘manter-se (maintien) de si’, segundo a bem-conhecida tese de Heidegger, o Dasein
é diferente do ente à mão, intramundano, pois o seu conteúdo (Bestand) ontológico tem a ver
não com a substancialidade da coisa, mas com o manter-se de um si (Selbst-Ständigkeit) (...)
A justificação ética da promessa basta-se a si própria, na medida em que faz derivar a
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obrigação de, pelo menos, dois ‘lugares’ – da necessidade de salvaguardar a instituição da
linguagem (não posso dar o dito por não-dito, mudando caprichosamente o sentido das
palavras) e da necessidade de (cor)responder à confiança que um outro deposita em mim”
(TEIXEIRA, 2004, vol, II, p. 151).
Um elemento da ipseidade ou da identidade compreendida como ipseidade é a fidelidade a si,
que é a dimensão do ipse em estado puro, e se define, como já se disse, mais por seus
engajamentos e suas promessas ao longo do tempo – “e pela postulação ética de sua
continuidade” – do que pela consciência psicológica da continuidade de si, como observa André
Dartigues. A manutenção da palavra dada – da promessa –, como se viu, marca o afastamento
extremo entre a permanência do si e a do mesmo, atestando a irredutibilidade de uma à outra. A
manutenção da palavra dada, a duração da promessa, parece constituir um desafio ao tempo, uma
denegação da mudança: eu manterei minha promessa apesar de mudarem meu desejo, minha
opinião, minhas inclinações. Acrescenta Dartigues:
“Assim, o caráter como constituinte subjetivo da identidade e a responsabilidade ética como
manifestação em ato dessa identidade estão em relação dialética: é em função do caráter que
o sujeito se decide e dá um valor moral às suas ações; são, por sua vez, essas últimas que se
sedimentam no caráter e o transformam segundo o processo de constituição de hábitos que
Aristóteles atribuía à virtude.” (DARTIGUES, 1998, p. 9)
Identidade narrativa e ipseidade
A ipseidade é a dimensão narrativa da constituição de si. Com efeito, a identidade narrativa
corresponde ao si-mesmo instruído pelas obras da cultura, que, comenta Villaverde,
“condicionam e ajudam a criar o próprio modo de ser do sujeito” (VILLAVERDE, 2003, p.133).
Esta identidade, como se vê, não concerne a um sujeito abstrato e indeterminado para o qual não
se coloca a alternativa da permanência e da mudança do tempo. Seu enfoque é dinâmico e
histórico; volta-se para pessoas concretas, não alcançando apenas algumas dimensões do homem,
ou seja, ou só seu aspecto emocional ou só seu aspecto cognitivo. Em virtude desta possibilidade,
uma reflexão sobre a identidade narrativa requer colocar o caráter no movimento mesmo da
narração, isto é, requer distinguir-se a dimensão imutável da pessoa – que ele chama de
mesmidade ou identidade de caráter – da dimensão que é capaz de transformar-se, de se realizar
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na história e de vivenciar processos de mudança. Em outras palavras, “pôr na balança os traços
imutáveis que a identidade narrativa deve à ancoragem da história de uma vida num caráter, e
aqueles traços que tendem dissociar a identidade do si da mesmidade do caráter”.
(VILLAVERDE, 203, p.148).
O que realmente distingue o si-mesmo é sua história, pois ela pode contar sua especificidade.
Esse recurso constitutivo da identidade narrativa é evidenciado no ato da leitura, na medida em
que leva o leitor a habitar outras configurações de mundo diferentes do seu, pondo à prova o
conhecimento que tem de si mesmo. O leitor enfrenta, desse modo, um desafio, uma vez que cada
relato revela uma estratégia narrativa nunca eticamente neutra, o que provoca repercussões ou
ressonâncias no leitor. Portanto, é em contato com a narração que a identidade pode tornar-se
plena de sentido. Esta condição é possível porque o leitor se identifica com o personagem, o que
o faz voltar-se para si-mesmo, entrar em contato com sua forma de ser, ou seja, com sua realidade
íntima, pessoal. Através da ficção, as variações imaginativas que a constituem giram em torno do
personagem, e este, pelo fato de imitar possíveis situações concretas, faz com o leitor se veja
como um agente que, como ele, personagem, pensa, sente, sofre e morre. Essas considerações de
Villaverde cooperam com a compreensão desse fenômeno:
“Todos somos leitores de nós mesmos, ainda que o relato tenha sido escrito por outro.
Percebemos, pois, que também esta nova hermenêutica do si-mesmo está de acordo com
aquilo que o filósofo francês defendeu nos seus ensaios de hermenêutica dos anos 80:
“compreender é se compreender diante do texto” (...) É graças ao texto do ‘outro’ que
construímos a nossa própria identidade, ampliando o conhecimento de nós mesmos. (...) ‘“A
refiguração pela narração’”, declara, ‘“confirma este traço de conhecimento de si que
ultrapassa amplamente o domínio do narrativo, a saber, que o si não se conhece
imediatamente, mas apenas através de todo o tipo de signos culturais, que se articulam sobre
as mediações simbólicas.’” (VILLAVERDE, 203. p.137)
À luz da teoria da narratividade formulada por Ricoeur, é do ato de narrar que emerge essa
concepção de identidade dinâmica, na medida em que ela “concilia as próprias categorias que
Locke considera contrárias uma à outra: a identidade e a diversidade”. Identidade porque a
operação narrativa que dá lugar à intriga faz surgir uma unidade, que é a história que se constrói
121
a partir da síntese dos acontecimentos diversos. Os autores ou agentes desses acontecimentos ou
ações são os personagens – uma categoria cujo papel depende da própria inteligência narrativa,
que, ao construir a história narrada, constrói a identidade do personagem, que se pode chamar de
identidade narrativa.
Em O si-mesmo como o outro, Ricoeur afirma que a verdadeira natureza da identidade
narrativamente compreendida só se revela na dialética da mesmidade e da ipseidade, e essa
dialética constitui a mais efetiva contribuição da teoria narrativa para a constituição do si
(RICOEUR, 1991, p. 168). Ricoeur fundamenta esta tese com um duplo argumento. Primeiro: “o
modelo específico de conexão entre acontecimentos que constitui a intriga permite integrar na
permanência no tempo o que parece ser o contrário sob o regime da identidade-mesmidade, a
saber, a diversidade, a variabilidade, a descontinuidade e a instabilidade”. Segundo: “a noção de
intriga, transposta da ação para os personagens da narração, gera a dialética do personagem, que é
expressamente uma dialética da mesmidade e da ipseidade”.
Igualmente em O si-mesmo como um outro Ricoeur observa que, em Tempo e Narrativa, a noção
de identidade narrativa é formulada no plano da intriga como um dinamismo que advém da
concorrência ou combinação entre uma exigência de concordância e o reconhecimento das
discordâncias que, “até a conclusão da narração, põem em risco essa identidade”. O modelo que
ele apresenta nesta última obra – e que foi referido no capítulo anterior – é o da concordânciadiscordante (que, lembrando mais uma vez aqui, é “o princípio da ordem que preside ao que
Aristóteles chama ‘agenciamento dos fatos’, e, por discordância – complementa – as reviradas
de fortuna que fazem da intriga uma transformação regulada desde uma situação inicial até uma
situação terminal” (RICOEUR, 1991, p.168). Com o termo configuração designa a articulação
entre concordância e discordância e regula esta forma instável que Aristóteles nomeia de muthos
e que traduz por “elaboração do enredo” ou “tessitura da intriga”.
O ato de configuração faz com que o evento narrativo se distinga do evento causal neutro. Ao
entrar no movimento de uma narrativa, o acontecimento perde sua neutralidade impessoal. Por
ser poiésis, produção, operação, o ato configurante faz com que o enredo não constitua uma mera
descrição impessoal.
122
“O modelo narrativo criado pelo ato configurante se distingue de qualquer outro modelo de
conexão em decorrência do estatuto do acontecimento. No modelo causal, por exemplo,
acontecimento e ocorrência se tornam indiscerníveis. Já o acontecimento narrativo é definido
pela sua relação com a própria operação de configuração, o que o leva a participar da
estrutura instável de concordância e discordância do enredo e a se constituir, tal como essa
estrutura, em uma concordância discordante, pois, ao mesmo tempo que é fonte de
discordância, faz avançar a história. Mais que isso: a inversão do efeito de contingência em
efeito de necessidade ocorre em seu próprio centro. Como simples ocorrência o
acontecimento se limita a frustrar expectativas criadas pelo curso anterior da história. Ele é
simplesmente o inesperado, o surpreendente, não fazendo parte integrante da história que
compreendeu tardiamente, na medida em que é transfigurado pela necessidade de algum
modo retrógrada que procede da totalidade temporal levada a seu termo. Mas essa
necessidade é narrativa e seu efeito de sentido procede do ato configurante como tal. E é essa
necessidade narrativa que transmuda a contingência física na contingência narrativa nela
implicada”. (RICOEUR, 1991, p. 170)
A identidade narrativa do personagem
Retomando-se a noção de intriga e levando-se em consideração a dialética do personagem, que é
seu corolário, compreende-se que a operação narrativa dá lugar, também, a um conceito de
identidade do personagem que concilia unidade com a diversidade e cujo auge ocorre quando se
passa da ação para o personagem. Ricoeur propugna: “É personagem aquele que faz a ação
narrativa. A categoria do personagem é, portanto, ela, também, uma categoria narrativa, e seu
papel na narração depende da própria inteligência narrativa, que o enreda a si mesmo”
(RICOEUR, 1991, p. 170). O personagem é aquele que, na narrativa, realiza ações e desempenha
papéis, e, como a ação, é “colocado no enredo”.
Com o intuito de esgarçar a correlação entre essas duas categorias narrativas, transcrevemos os
comentários que sobre ela André Dartigues faz:
“A função de identificação da narrativa provém de esta última estabelecer uma conexão, e,
pois, uma unidade, entre acontecimentos à primeira vista díspares; é preciso, pois, aparecer o
que Dilthey chamava de Zusammenhang des Lebens, coesão de uma vida, permitindo falar da
123
história de uma vida. Esta coesão, que Ricoeur chama de síntese do heterogêneo, descobre-se
primeiro na intriga tal como Aristóteles a analisa a propósito da tragédia. A intriga consiste
em estabelecer uma concordância entre dois acontecimentos discordantes, a fazer entrar numa
configuração única delimitada por um começo e um fim os acontecimentos que são golpes
teatrais ou inversão de situações: ‘O acontecimento narrativo .... é fonte de discordância
enquanto faz avançar a história’. A contingência do acontecimento torna-se uma necessidade
integrando-se na configuração unificante e significativa da narrativa. Mas, se a intriga
sintetiza o heterogêneo dos acontecimentos narrados, como esses acontecimentos são sempre,
quanto ao essencial, ações humanas, ela tem também como efeito identificar as personagens
que são os autores – ou como diriam os lingüistas, os ‘atuantes’ dessas ações. Há, pois, um
entrelaçamento da intriga ou da história narrada e das qualidades ou características das
personagens que agem nesta história: para a personagem, a intriga pode reportar as ações
narradas a um sujeito ao qual são imputáveis (ascripção); pela intriga a personagem inscreve
suas ações num tecido de eventos que sempre começou antes dela.
Portanto, a narrativa constrói a identidade do personagem ao entrelaçar a intriga com as
qualidades que ele possui, uma vez que ela lhe atribui determinadas ações que nele repercutem,
desde que consistentes com o principio da verossimilhança, ou seja, os atos que lhe são
imputados mantêm de alguma forma correspondência com suas qualidades ou atributos. É,
portanto, na narrativa que se constrói a identidade do personagem, conseqüentemente, a
concordância da unidade singular de uma vida, que tende a ser rompida pela discordância dos
acontecimentos fortuitos, os quais, por outro lado, são a condição para a continuidade da história.
Ricoeur argumenta: “A narrativa fazendo coincidir a iniciativa do personagem com o começo da
ação constitui a réplica poética que a noção de identidade da narrativa traz para as aporias da
ascrição”, ou seja, da imputação de uma ação a um sujeito. Esse filósofo acrescenta:
“Retomo de propósito o termo de réplica poética aplicado em Tempo e Narrativa III na
relação entre as aporias do tempo e a função narrativa. Dizia, então, que a função narrativa
não dava uma resposta especulativa a essas aporias, mas tornava-as produtivas num outro
registro de linguagem. É do mesmo modo que a dialética do personagem e da intriga torna
produtivas as aporias da ascrição e que a identidade narrativa, pode-se dizer, lhes traz uma
réplica poética” (...) Dessa correlação entre ação e personagem da narrativa resulta uma
dialética interna ao personagem, que é o exato corolário da dialética da concordância e da
124
discordância desenvolvida pela intriga da ação. A dialética consiste em que, segundo a linha
de concordância, o personagem tira sua singularidade da unidade de sua vida tida como a
própria totalidade temporal singular que o distingue de qualquer outro. Conforme a linha de
discordância, essa totalidade temporal é ameaçada pelo efeito de ruptura dos acontecimentos
imprevisíveis que a pontuam (...); a síntese concordante-discordante faz com que a
contingência do acontecimento contribua para a necessidade de algum modo retroativa da
história de uma vida, ao que se iguala a identidade do personagem”. (RICOEUR, 1991,
p.175)
Esta tese da dialética do personagem entre concordância e discordância se inscreve, segundo
Joaquim de Sousa Teixeira, “na dialética ontológica mais vasta (..) de mesmidade e da
ipseidade”, precisamente entre a mesmidade do caráter e a ipseidade da palavra mantida.
Confrontam-se entre si esses dois pólos porque, de um lado, há um parentesco da mesmidade com
o caráter, que “representa um pólo de estabilidade e de constância”, e, do outro lado, a ipseidade
se apresenta “como livre manutenção de si”, constituindo “um pólo de inovação e
imprevisibilidade”. É a narrativa que põe em relação esses dois pólos: o da estabilidade, das
disposições adquiridas, ou seja, da mesmidade, situada do lado do caráter, com o da inovação, da
identificação-com, do lado da ipseidade, pólos que se compõem de diferentes formas nos
diferentes níveis da narrativa. Dessas diferentes composições dependem as variações ou a
invariabilidade dos personagens, caracterização esta da qual dependerão os gêneros literários.
Ricoeur propugna que, se, por um lado, “na experiência cotidiana”, a mesmidade e a ipseidade
“tendem a se recobrir e a se confundir”, pois “contar com alguém é, ao mesmo tempo, apoiar-se
na estabilidade do caráter desse alguém e esperar que ele cumpra a palavra, quaisquer que sejam
as situações que possam afetar as disposições duráveis em que ele se deixa reconhecer”, por outro
lado, na literatura, “o espaço de variações aberto às relações entre essas duas modalidades de
identidade é imenso”. Há gêneros literários que privilegiam a intriga, em detrimento do
personagem, como nos contos de fada, e que insistem, portanto, na mesmidade e na estabilidade;
há também aqueles que, ao contrário, privilegiam o personagem em detrimento da intriga, como
nos romances de formação e nos ditos do fluxo da consciência, destacando, pois, a ipseidade,
uma vez que ressaltam as variações que o personagem percorre em busca de sua identidade. Há
casos-limite, nos quais Ricoeur identifica a dissolução da intriga e, conseqüentemente, do
125
personagem, como é o caso de O homem sem qualidades, de Robert Musil. Neste caso, Ricoeur
argumenta:
“A ancoragem do próprio nome torna-se derrisória a ponto de se tornar redundante. O nãoidentificável torna-se inominável. Para precisar o começo filosófico de semelhante eclipse de
identidade do personagem, convém observar que, à medida que a narrativa se aproxima do
ponto de anulação do personagem, o romance perde também suas qualidades propriamente
narrativas, mesmo interpretadas, como mais acima, de modo mais flexível e mais dialético. A
perda da identidade do personagem corresponde, assim, à perda da configuração narrativa.
Produz-se, assim, um choque em volta do personagem sobre a intriga. É um próprio cisma
(...)”. (RICOEUR, 1991, p. 177)
Estes são os motivos pelos quais “a literatura”, segundo Ricoeur, “é o grande laboratório para
estas experiências de pensamento em torno da identidade”. A literatura mostra, de acordo com
Ricoeur, ao variar continuamente a relação entre os dois significados de permanência no tempo –
de mesmidade e de ipseidade –, a diferença entre ambas:
“nas variações imaginativas da literatura podem distinguir-se mais à vontade: ‘numa
extremidade, a personagem é um caráter identificável e reidentificável com o mesmo’ (contos
de fadas, folclore...); no ‘espaço intermédio das variações’ (...) a identificação do mesmo
decresce, sem desaparecer’ (romance clássico); na outra extremidade, ‘parece inverter-se a
relação entre enredo e personagem: ao contrário do modelo aristotélico, o enredo é posto a
serviço da personagem; (romance de aprendizagem, da corrente de consciência ...)”
(RICOEUR, 1991, p. 161)
Ricoeur ressalta também a diferença entre ficções literárias e ficções tecnológicas ou técnicocientíficas. As primeiras continuam “variações imaginativas em torno de uma invariante, a
condição corporal vivida como mediação existencial entre si e o mundo. Os personagens de teatro
e de romance são tão humanos quanto nós” (RICOEUR, 1991, p. 178). O corpo é, a seu ver, uma
dimensão do si, e, conseqüentemente, as variações imaginativas, por girarem em torno do corpo
ou da condição corporal, são “variações sobre o si e sua ipseidade”. Também porque o corpo,
enquanto estrutura do Dasein – ser-no-mundo –, tem uma função mediadora, “a ipseidade da
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corporeidade se estende ao mundo corporalmente habitado”. “Através dessa hábil ‘síntese’ entre
Heidegger e a filosofia francesa do ‘corpo próprio’”, observa Joaquim de Sousa Teixeira,
“Ricoeur vê na significação existencial da Terra uma admirável convergência de filosofias tão
diversas como as de Nietzsche, Heidegger e Husserl: a Terra é mais que o Planeta de Parfit e da
Filosofia Analítica; ela é o nome mítico da nossa ancoragem corporal no mundo”.
A narrativa literária submetida ao mecanismo da configuração e, ao se tornar, portanto, mímesis
da ação, se submete a essa invariante, que é a dimensão corporal e terrestre, que é a condição
humana que subjaz ao agir e ao padecer. Diferentemente, as ficções tecnológicas ou técnicocientífica transformam essa invariável existencial numa variável de uma nova montagem que
Ricoeur sugere chamar técnica, em vez de imaginária, numa construção lingüística que simula
uma hesitação, ao acrescentar: “É a técnica, melhor: para além da técnica disponível, a técnica
concebível, enfim, o sonho tecnológico”. Os argumentos que passam a ser transcritos esclarecem
essa definição:
“É a técnica; melhor, para além da técnica disponível, a técnica concebível, ou o sonho
tecnológico. De acordo com este sonho, o cérebro é concebido como o equivalente substituto
da pessoa. É o cérebro o ponto de aplicação da alta tecnologia. Nas experiências de bissecção,
de transplantação, de reduplicação, de teletransporte, o cérebro representa o ser humano
manipulável. É desse sonho tecnológico, ilustrado pelas manipulações cerebrais, que se torna
solidário o tratamento impessoal da identidade no plano conceitual. Nesse sentido, pode-se
dizer que as variações imaginativas da ciência-ficção são variações relativas à mesmidade,
enquanto que as da ficção literária são relativas à ipseidade ou mais exatamente à ipseidade
em sua relação dialética com a mesmidade”. (RICOEUR, 1991, p. 179)
Emerge, nesse contexto, a questão sobre a possibilidade de se conceber ou não como variações
imaginativas aquelas que dão lugar a narrativas nas quais a condição corporal e terrestre se torna
uma simples variável, mais precisamente, “uma variável contingente”. Esta configuração dá lugar
a narrativas que contam a história de indivíduos que são teletransportados sem levar com eles os
“traços residuais dessa condição [corporal] sem os quais não se poderia dizer que ele age ou
sofre”. Ricoeur entende que essa perplexidade não se resolve nos planos do imaginário e da
identidade narrativa, mas, sim, no campo ético, precisamente ao se confrontar e se estabelecer
127
relações entre essas manipulações cerebrais e a capacidade de imputação. Este filósofo já neste
momento alerta:
“Mas, para que a capacidade de imputação cuja significação é puramente moral e jurídica,
não seja arbitrariamente destinada às pessoas, não é necessário que a invariante existencial da
corporeidade e da mundanidade, em torno da qual giram as narrações imaginativas da ficção
literária, seja ela mesma considerada intransponível num plano ontológico? O que as
manipulações imaginárias do cérebro violam é mais que uma regra, mais que uma lei, a
saber, a condição existencial de possibilidade para que haja regras, leis, isto é, finalmente,
preceitos endereçados à pessoa como operante e sofredora? Em outras palavras: o inviolável
não é a diferença entre o si e o mesmo a partir do plano da corporeidade?” (RICOEUR.,
1991, p. 179).
A identidade narrativa em Grande sertão: veredas
Antes de se iniciar a abordagem da dimensão ética da identidade narrativa, tratar-se-á da
correspondência entre as noções de personagem e enredo, partindo-se do pressuposto que, assim
como a da identidade narrativa, entrou na composição de ambas elementos da intuição e do
entendimento. A formulação de que a origem da identidade narrativa é o entrecruzamento das
atividades miméticas que dão lugar à ficção e à história confirma sua pertença a esses dois
domínios E a eles – intuição e entendimento – igualmente pertencem as noções de personagem e
enredo. A despeito de todo esforço de conceituá-los, a concretude do gênero ficcional as
dissolveindividualizando-as, expondo assim sua dimensão imaginária, o que favorece a
confirmação da hipótese de Ricoeur segundo a qual “a ficção explora, e à sua maneira nega,
certas dificuldades da teoria”.
A correspondência entre enredo e personagem será examinada no interior de um universo
ficcional, habitat do personagem que é seu verdadeiro artífice. Para tanto, escolheu-se
o
universo é de Grande sertão: veredas e o personagem Riobaldo, seu protagonista. Ambos são
tecidos com os mesmos fios e, portanto, neles se implicam as mesmas referências. A mais
explícita é o sertão descrito na obra com as características dos “campos gerais”: uma região
úmida e brejosa do Estado de Minas atravessada por caudalosos rios tributários do São Francisco,
que também a corta. Além deste, se delineia outro sertão durante a leitura: nem verde nem úmido,
128
mas árido, tórrido e inóspito. Desprovido de rios e com rara vegetação, esse sertão que diante do
texto se ergue é o que habita a imaginação de legiões de brasileiros: uma imensidão árida que se
estende por baixo de um sol inclemente e causticante. Trata-se de um sertão humano ou
existencial – e seus homens, os jagunços severos, leais e corajosos, em bando e a cavalo, o
atravessam em todas as direções. Este sertão que se imiscui com aquele que a obra descreve é o
sertão nordestino do polígono das secas, personagem de Os sertões, de Euclides da Cunha, de
Vidas secas, de Graciliano Ramos, e de Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha.
Retrata cenário próximo desse universo a paisagem descrita por Riobaldo na travessia do Liso do
Sussuarão, no qual ele se pôs à prova tanto fisica quanto emocionalmente. Localizado nos
fundões do sertão baiano, nesse lugar Riobaldo pôde apreender a essência da alma do jagunço,
até mesmo sua crueldade ao se defrontar com as condições adversas propiciadas por uma
natureza muito pouco pródiga.
A essas duas referências de sertão, sugeridas pelo título se associa outra essencialmente
simbólica: a de um “espaço amplo e perigoso, cheio de percalços e de armadilhas, verdadeiro
labirinto existencial, mas que admite brechas, saídas, vias de comunicação – talvez vias de
salvação” (GALVÃO, 2000, p. 31). Este espaço amplo e perigoso, onde injustiça e impunidade
predominam, corresponde, na hipótese de Willi Bolle, à realidade sócio-política brasileira, onde
vige a impunidade. Como formula esse autor no estudo grandesertão:br, a obra de Guimarães
Rosa é “um instrumento de investigação social de alta precisão artística”. Eis alguns dos
argumentos com os quais justifica esse ponto de vista:
“Temos ali os componentes da história da vida pessoal de Riobaldo – mãe e pai, os chefes, os
amores – interligados com lembranças coletivas – os meninos, os vaqueiros, os jagunços, os
representantes da ordem, as longínquas cidades –, que se fundem, no limite, com categorias a
história social, como ‘gente sertaneja’, ‘povo’, ‘nação’. Só que essas categorias coletivas,
antes de se cristalizarem em conceitos abstratos, são dissolvidas pelo narrador num conjunto
de indivíduos, cada qual com seu nome. Ou seja, em contraponto ao conhecimento
conceitual, o romancista põe em obra o poder poético de nomear, de atribuir nomes próprios.
Exemplos de como ficção – desconfiada, mítica, autônoma – atravessa o logos discursivo do
ensaio”. (BOLLE, 262-3)
129
Este comentário vem ao encontro da intuição de Ricoeur segundo a qual a ficção explora algumas
dificuldades teóricas, não porque os romancistas e cineastas sejam mais perspicazes que os
filósofos ou teóricos, mas porque “aceitam deixar-se conduzir por seus personagens, no lugar de
lhes impor um destino”. Em outras palavras: é porque orientam seu fazer a partir do que emerge
da realidade que criativamente estão construindo. É pertinente, pois, a afirmação que Marlene
Zaràder (2008) faz no ensaio “A promessa e a intriga (fenomenologia, ética, cinema)”, de que os
romancistas e os cineastas “podem encontrar e mostrar isto que os teóricos, por vezes, se limitam
a procurar”.
Busca-se examinar então a personagem Riobaldo a partir da perspectiva de identidade narrativa.
Para tanto, é útil, em primeiro lugar, aprofundar, se possível, a noção do personagem, que, “por
ser precisamente aquele que realiza ações”, de acordo com Marlene Zarader,
“ é feito de um tecido que o ultrapassa e o precede, mas que ele pode romper para
inaugurar outra coisa – e a narrativa é a história desta passagem de um a outro.Não
somente a história desta passagem, mas seu único laço possível: pois como a unidade
de uma vida poderia ser reunida se ela não fosse narrada? Assim, o personagem
mediatiza os dois pólos da permanência no tempo, apresentando uma solução
(narrativa) para a questão da identidade do pessoal”. (ZARADER, 2008, p. 86)
Por ser ele quem realiza a ação e exerce papéis, o personagem inaugura e confere consistência e
permanência ao domínio que efetivamente se torna autônomo sob o regime do “como-se”.
Agente e/ou paciente da mimesis praxeôs, o personagem constrói ou constitui a intriga que
Aristóteles nomeia de “agenciamento de fatos” e Ricoeur de “síntese do heterogêneo”: modelo de
concordância-discordante cujos principais atributos são completude, totalidade e extensão
apropriada.
Porque as ações que realizam e os papéis que exercem se assemelham com aqueles vivenciados e
experimentados pelo homem, suas ações reverberam no domínio do agir e do padecer dos leitores
ou espectadores. Chama atenção, no entanto, que os personagens assim procedem sem fornecer
130
prova que justifique ou fundamente sua condição ontológica. Sem qualquer justificativa, são
atores ou agentes do “processo ativo de imitar ou representar”.
Tal processo, como reconhece Ricoeur em Tempo e narrativa , deve ser compreendido no sentido
dinâmico de produzir a representação ou a transposição em obras representativas.
Este
entendimento leva Ricoeur a pleitear o “primado da atividade produtora de intrigas, em relação a
qualquer espécie de estruturas estáticas, de paradigmas acrônicos, de invariantes intemporais”
(RICOEUR, 1997, p. 58).
Essa ênfase na operação e no dinamismo aparece na condição do personagem ao representar
pensamentos e sentimentos de forma exuberante, o que, segundo Ricoeur, fez com que “o
romance se tornasse o instrumento privilegiado da psyché humana” (RICOEUR, 1997, p. 148 ).
O que acontece pelo fato de ele criar, no interior da intriga, a instância do discurso, ao tomar a
palavra para exprimir-se. No entanto, como evento, o discurso é fugidio, mas possui a condição
de se ultrapassar na significação. Tal possibilidade tem lugar quando a linguagem adquire a
dimensão narrativa que se compõe, pari passu, com a construção de um enredo ou de uma
história.
Os acontecimentos diversos, vários, descontínuos e instáveis com os quais o
personagem se enlaça vão-se constituindo no próprio enredo, que, pela sua aparente fixidez,
equivale a uma permanência no tempo, o que o faz inscrever-se no regime da identidademesmidade. A oposição a esse pólo estável e constante é o engajamento em direção ao outro, que
precede e funda a possibilidade mesma desse engajar-se, que implica “a obrigação que eu me
coloco a mim mesma de ser fiel a minha palavra”. Este é o pólo da ipseidade, que, como livre
manutenção de si, é inovação e imprevisibilidade. É através da narrativa que o personagem põe
em relação esses dois pólos.
Ricoeur inscreve essa dialética do personagem, que é a da concordância-discordante, a título de
mediação, no intervalo entre a mesmidade do caráter e a ipseidade da manutenção de si, que é a
dialética do homem. Ele esclarece como a identidade pessoal, considerada em sua duração, em
situações diferentes exprimem essa polaridade. Porque, se na experiência cotidiana, esses dois
significados parecem confundir-se, pois “contar com alguém é, em princípio, confiar na
estabilidade do seu caráter e na sua fidelidade à palavra dada”, na literatura ou nas variações
131
imaginativas, eles podem flutuar, indo de um pólo a outro, ou seja, de uma determinação do
enredo sobre a personagem ou vice-versa, quando “o enredo é posto ao serviço da personagem’
(romance de aprendizagem, da corrente de consciência etc)”.
Com base nesses subsídios, busca-se apreender no personagem Riobaldo essa polaridade entre a
mesmidade e ipseidade. Seu caráter se manifesta, entre outras formas, no seu profundo vínculo
com o sertão, palco de discórdias e de intrigas e onde se desenrolaram suas mais íntimas e
importantes vivências. O sertão a que ele se afeiçoa, além de ter as características dos “campos
gerais”, expõe a chaga resultante da impunidade profundamente enraizada não só no seu cantão,
mas em toda sociedade brasileira. Esta compreensão aparece, logo no início da obra, quando
Riobaldo tenta definir a realidade do sertão que também é a sua:
“Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar
dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristojesus arredado do arrocho da autoridade. O Urucúia vem dos montes oestes. Mas,
hoje, na beira dele, tudo dá – fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom
render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata , madeiras de grossura, é ainda
virgens dessas lá há. Os gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim,
cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães é questão de opiniães.... O
sertão está em toda parte.” (GUIMARÃES, 2007, p. 8)
Walnice Nogueira Galvão observa que o gado e seu modo de vida servem de metáforas para os
jagunços, pois, “coletivamente” são assimilados às boiadas, pois “só os chefes são comparados a
bois individuais. E apenas os líderes supremos, capazes de agregar vários chefes em seus bandos,
são comparados a touros”. (Galvão, 2000, p.34). A vastidão do sertão parece ultrapassar os
horizontes que o olhar alcança, como se lá eles estivessem à espreita, para coibir qualquer
tentativa de que o sofrimento humano se desenrolasse além de seus limites. Sua topografia se
associa ao caminhar das boiadas que, em sua coreografia, formam um todo homogêneo, e seu
ritmo, que sacoleja os chocalhos, se assemelha a uma dança lenta e detalhadamente ensaiada. As
várias outras porções da topografia – rios, riachos, várzeas, pastos e fazendas – apresentadas
aparecem como contraponto das cruéis batalhas, não-discordantes das especulações sobre o
132
humano que habita o âmago do sertão de Riobaldo. Essas configurações cênicas, com as ações e
lutas de que são palco se mostram ao leitor como a dimensão dilacerada de Riobaldo, que é
consistente com o do mundo que ele narra.
Como mostra a obra, a condição de ipseidade está presente nessa personalidade dividida em dois
de Riobaldo, como ele mesmo assevera, divisão que está presente e em sua origem, pois é fruto
da união de duas pessoas de classes sociais diferentes, um rico proprietário e uma mulher pobre,
Selorico Mendes e Bigri. Entretanto, se, por um lado, Riobaldo não constitui exceção em seu
intento não só de preservar como enaltecer a dimensão de mesmidade de seu caráter, narrando
casos, fatos e histórias e, mostrando, através deles, seu tirocínio e sua intuição, por outro lado,
como narrador, ele transita pelas diferentes perspectivas que uma história encerra e que a
narração deve contemplar.
Contando histórias, Riobaldo realiza configurações e encadeamentos que, embora sejam
formuladas no plano teórico, só se resolvem, como se prevê nesse plano, efetivamente no ato de
narrar ou de compor uma história. Como mera ilustração, se transcrevem comentários de Ricoeur
sobre essas questões nucleares da teoria da narrativa retiradas do capítulo “O si e a ‘identidade
narrativa’”, que integra sua obra O si-mesmo como um outro.
“Não tem sido vão lembrar de que maneira a estrutura narrativa reúne dois processos de
intriga, o da ação e o do personagem. Essa união é a verdadeira resposta às aporias da
ascrição (...) Apesar de tudo, de um ponto de vista paradigmático, as perguntas que?, quem?,
como? etc., podem designar os ermos discretos da rede conceitual da ação. Mas, de um ponto
de vista sintagmático, as respostas a essas questões formam uma cadeia que não é outra que
não o encadeamento da narrativa. Relatar é dizer quem fez o que, por que e como, mostrando
no tempo a conexão entre esses pontos de vista. Igualmente, apesar de tudo, podemos
descrever separadamente os predicados psíquicos tomados fora da atribuição a uma pessoa
(o que é a própria condição da descrição do ‘psíquico’). Mas é na narrativa que se recompõe a
atribuição. Da mesma forma, a articulação entre intriga e personagem permite encarar uma
investigação virtualmente infinita no plano da atribuição a alguém. As duas investigações
confundem-se no duplo processo de identificação da intriga e do personagem. Nem mesmo a
mais temível aporia da ascrição encontra sua réplica na dialética do personagem e da intriga.
133
Confrontada com a terceira antinomia kantiana, a ascrição parece dilacerada entre a tese, que
coloca a idéia de começo de uma série causal, e a antítese, que lhe opõe um encadeamento
sem começo nem interrupção. A narrativa resolve a seu modo a antinomia, de um lado,
conferindo ao personagem uma iniciativa, isto é, o poder de começar
uma série de
acontecimentos, sem que esse começo constitua um começo absoluto, um começo do tempo;
por outro lado, dando ao narrador como tal o poder de determinar o começo, o meio e o fim
de uma ação. Desse modo, fazendo coincidir a iniciativa do personagem e o começo da ação,
a narrativa satisfaz à tese sem violar a antítese. Ela constitui, em seus múltiplos aspectos, a
réplica poética que a noção da identidade narrativa traz às aporias da ascrição” (RICOEUR,
1991, p. 174-5).
A antológica frase que Riobaldo pronuncia no travessão inicial “–Nonada. Tiros que o senhor
ouviu foram de briga de homem, não. Deus esteja!” (GUIMARÃES,, 2007, p.7 ) – abre uma
narrativa que se estende por centenas de páginas que instauram um monólogo cuja estrutura é a
reiteração da mesmidade que o narrador faz até mesmo quando afirma: “O senhor saiba: eu toda
minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou eu mesmo. Divêrjo de todo
mundo....Eu quase nada sei. Mas desconfio de muita coisa”. A ostensiva atestação desse pólo
corresponde ao modo de ser do caráter que Ricoeur define como prevalecendo as “disposições
adquiridas”. A referência a divergir de “todo mundo”, no entanto, ameniza o absolutismo de sua
reiteração, pois reconhece a presença do outro, do diferente, da alteridade, que a divergência não
anula.
Outra manifestação de Riobaldo que aparece como reiteração de sua identidade-mesmidade é
encerrar seu interlocutor no interior de um monólogo ininterrupto, sem jamais lhe ceder a
palavra, embora, em seu início, sua fala sugira uma interlocução – é o que aparece quando
propõe: “O senhor concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre – o senhor solte em
minha frente uma idéia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém!”
(GUIMARÃES, 2007, p. 15).
Por outro lado, a apresentação do sertão, que aparece como algo que ele possui ou que lhe é
próprio, serve a Riobaldo como meio para introduzir na conversação a imensidão dos sentimentos
134
que nutre pelo amigo Diadorim. Entretanto, as afirmações de mesmidade, presentes até mesmo na
reiteração desse sentimento, se cruzam com outras que extravasam delicadezas e sutilezas e
parecem expressar recentes intuições. Isso acontece, por exemplo, quando Riobaldo diz: “Quem
me ensinou a apreciar essas belezas sem dono foi Diadorim” (GUIMARÃES, 2007, p. 26)
“Diadorim me pôs o rastro dele para sempre em todas essas quisquilhas da natureza. (...) Quase
que a gente não abria a boca; mas era um delém que me tirava para ele – o irremediável extenso
da vida”. (GUIMARÃES, 2007, p. 29). “Quisquilhas” e “delém” são achados intuitivos que
revelam novos tons desse sentimento amoroso infinita vezes nomeado.
Na narração, Riobaldo revive a perda como uma ocasião para reelaborar-se a si-mesmo, pois faz
dela a oportunidade de vivenciar aspectos de ipseidade e, ao mesmo tempo, fazer a transição
entre ela e a alteridade. Isso se dá quando transforma Diadorim na figura que o guia em suas
errâncias pelo sertão de Minas e, mais ainda, pelo seu sertão íntimo ou existencial. Ele
reinterpreta seu caráter, não na perspectiva das aquisições , mas engajando-o em direção ao outro,
ou seja, não com base na vontade de nada mudar, de “permanecer na constância de si como uma
forma rígida de ser, o que perderia de vista a outra metade do fenômeno da promessa,”observa
Ricoeur (GUIMARÃES, 2008, p. 144). Com a promessa, segundo Marlène Zarader, “dizer é
fazer”. A esta formulação ela acrescenta:
“Mais especificamente prometer é me engajar a fazer amanhã isto que eu disse hoje que eu
farei. Ora a possibilidade mesma desta ‘palavra mantida na fidelidade à palavra dada’ indica
uma permanência no tempo de um outro gênero, uma ‘“manutenção de si’” em que o ipse
aparece em sua pureza, porque, em lugar de coincidir com o idem dele se liberta. É esta
identidade de si, enquanto irredutível a do mesmo, que Ricoeur dá ao nome de ipseidade”
(ZARADER, 2008, p. 85).
Também em outros momentos de sua fala “sentenciosa” e reflexiva, Riobaldo manifesta a
ipseidade, diminuindo a hegemonia do aspecto imutável de seu caráter. Uma dessas ocasiões é
quando Riobaldo rememora a travessia que fizera, depois da passagem do Liso do Sussuarão.
Para essa nova travessia ele convidou Sesfrêdo, e não Diadorim. No entanto, declara, o motivo da
escolha era “caçar emprestada uma sombra de amor”. A presença do outro, Sêsfredo, torna
135
possível a Riobaldo metaforizar os sentimentos que nutria por Diadorim, ou “estetizar” o seu
amor ou o “amor inventado”, como diz Willi Bolle.
A passagem para o outro – que, na obra, é Diadorim – impulsiona a incorporação do novo e sua
transformação em um traço do caráter, ou, dito de outra forma, sua transformação em uma
segunda natureza. Ricoeur argumenta:
“Para uma grande parte, com efeito, a identidade de uma pessoa, de uma comunidade, é feita
dessas identificaçaões-com valores, normas, ideais, modelos, heróis, nos quais a pessoa, a
comunidade se reconhece. O reconhecer-se no contribui para o reconhecer-se com... A
identificação com pessoas heróicas manifesta claramente essa alteridade assumida; mas esta
já é latente na identificação com valores que faz com que se ponha uma “causa” acima de sua
própria vida; um elemento de lealdade, de lealismo, incorpora-se assim ao caráter e faz
transformar-se em fidelidade, portanto, à manutenção de si. Aqui os pólos de identidade se
compõem. Isso prova que não podemos pensar até o fim o idem da pessoa sem o ipse, mesmo
quando um recobre o outro. Desse modo integram-se aos traços de caráter os aspectos de
preferência avaliativos que definiam o aspecto ético do caráter, no sentido aristotélico do
termo”. (RICOEUR, 1991, p.147)
Talvez seja possível aproximar-se um pouco mais do núcleo conflituado de Riobaldo através de
seus arquétipos, que são amálgamas construídos de traços de sua personalidade com os de seus
companheiros de errância. Embora nem sempre os reconheça como adversários, Riobaldo os
“organiza” a partir dos significados que confere a cada um e que o fazem concebê-los como
princípios que os opõem tanto a ele, Riobaldo, como entre si, uns ao outros, o que torna todos
impermeáveis e irredutíveis. Estes arquétipos povoam e alimentam a mente de Riobaldo, mesmo
depois de ter abandonado a vida de aventuras que levava – em sua linguagem, tempo em que
“não possuía os prazos” – e passado a viver sem “pequenos desassossegos”, de “range-rede”, e se
“inventando neste gosto de especular idéias”. Mesmo na velhice – o momento da narração –,
esses arquétipos continuam inquirindo o personagem. Lembranças das vivências dessa divisão,
desse antagonismo, levam Riobaldo a interrogar-se a si mesmo, o que bem revela essa pergunta:
“Eu era dois, diversos?”
136
Para “organizar” essa divisão interna, Ricoeur dispõe internamente seus companheiros em pares
de oposição, sendo essa também uma forma de se manter a ele vinculados, e faz o mesmo com
alguns aspectos de sua vida. Seus companheiros de errância conformam pares de oposição –
Hermógenes versus Joca Ramiro, Zé Bebelo versus Medeiro Vaz e Diadorim versus Otacília – e
as duas fases de sua vida se contrapõem uma à outra: a vida arriscada de aventura que levava –
pois, a cada passo, tinha a morte espreitando-o de esguelha – e a vida atual de barranqueiro, em
beira de rio e com tranqüilidade, se entretendo com as rememorações e com o fugidio do tempo
que diante dele se escoa. O elo de oposição entre esses pares é o antagonismo que inoculou em si
mesmo e que bem ilustra a relação de atração e repulsão que mantém com a figura do demo: “O
diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado ou é o homem dos
avessos” (GUIMARÃES, 2007, p. 10). Esse antagonismo se manifesta também na luta que
vivencia internamente entre suas tendências masculinas e femininas, no conflito que se estabelece
em seu íntimo entre o desejo de amar segundo as convenções e contrariamente a elas, e no
enorme prazer que sente ao ferir mortalmente um inimigo, ao se valer da excelente pontaria, e, ao
mesmo tempo, em ouvir e se deixar levar pelos conselhos ponderados e cordatos do velho e
tranqüilo amigo, “compadre meu Quelemém”.
Ricoeur observa que “a dialética da ipseidade e da alteridade vai além do exemplo da promessa,
na medida em que a alteridade ‘se diz de várias maneiras’, para lembrar a tese célebre da
plurivocidade do ser”. Também o mundo misturado, segundo a análise do crítico literário Davi
Arrigucci, é matéria do enredo. Nessa análise, o autor estabelece uma correspondência entre a
forma como o livro apresenta essa mistura do mundo – em “variados aspectos e planos” – e a
mistura das formas narrativas utilizadas para apresentá-los. Essa análise evidencia que a mistura
desse universo resulta da maneira como foi constituído, com mescla de diversos elementos como
as diferentes formas de narrativa, “correspondendo, no mais fundo, a temporalidades igualmente
distintas, mas coexistindo mescladas no sertão que é o mundo misturado” (grifo do autor).
Constituem também esse mundo misturado, como igualmente mostra Arrigucci, os episódios ou
causos contados de ruindades e bondades cometidas pelos homens. Todavia outras misturas e
mesclas vêm à luz quando Riobaldo expõe sua “esquizofrenia” que é seu substrato último. Os
critérios dessa clivagem são a bondade e a maldade. O grupo que simboliza abondade inclui
Diadorim, Joca Ramiro, Medeiro Vaz, compadre Quelemém e as prostitutas (estas pelo carinho e
137
compaixão que lhes devota). Ao outro que simboliza a maldade pertencem Hermógenes,
Ricardão e jagunços como aquele que, com a ponta da faca, afia os dentes numa demonstração
evidente do refinamento de sua ferocidade. Algumas exceções existem e são aquelas em quem
prevalece um quase equilíbrio – dessa condição usufruem Zé Bebelo e Joe Bixiguento. Riobaldo
reconhece esses elementos díspares presentes na composição de seu multifacetado mundo, e a
essa evidência oferece em troca um dissabor incontido. Esses personagens “melhores, iguais e
piores”, que constituem a escala dos homens, correspondem, aos olhos de Arrigucci, aos
diferentes “níveis de representação poética” aos quais se refere Aristóteles. A esse mundo
misturado, Riobaldo contrapõe também princípios de radicalidade quase metafísica. Pontificia
que não haja mistura no mundo humano, que sejam bem-delimitados os pastos e as porções do
sertão e definitivamente demarcados os limites dos ecossistemas que nele vicejam. Eis sua
declaração de princípio: “eu careço de que o bom seja bom e o ruim ruim, que dum lado esteja o
preto e do outro o branco, que o feio fique bem afastado do bonito e a alegria longe da tristeza.!
“Quero os todos passos demarcados. Como é que posso com esse mundo? A vida é ingrata no
macio de si, mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao que esse mundo é
muito misturado?”. Entretanto, alterna essa rígida divisão com pontos de vista quase opostos
numa óbvia demonstração da consistência de sua identidade narrativa. Essa alternância se
expressa quando ele diz:. “Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as
pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre
mudando. Afinam ou desafinam.Verdade maior. É o que a vida me ensinou”. Essa mudança de
ponto de vista mostra também a profunda correspondência existente entre personagem e enredo.
A perspectiva implicada na temporalidade que participa, pela configuração, da constituição de
ambas identidades, faz destacar sua singularidade que na fala de Riobaldo é atribuída a cada
pessoa. Riobaldo percebe em si aquilo que atribui ao outro quando afirma que “as pessoas não
estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando”.
A dialética interna do personagem, exato corolário da dialética da concordância e da discordância
desenvolvida pelo enredo, e que o leva a retirar sua singularidade da totalidade temporal que
forma a unidade de sua história, a personalidade manifesta de Riobaldo evidencia. A preocupação
de Riobaldo, como reconhece Walnice Nogueira Galvão em As Formas do Falso, era reconhecer
que não tinha capacidade de fazer com que sua história permanecesse no tempo, dado que não
138
possuía habilidade, para “transformar seu passado em texto”.
Fazer com que sua história
perdurasse constitui sua redenção, porque, na dureza de sua mesmidade ou na dureza de seu
caráter, a reflexão através da narrativa e, desse modo, a constituição de sua identidade narrativa,
fez de Riobaldo o efetivo protagonista de Grande sertão:veredas, por ser aquele que realiza a
ação na narrativa. Este personagem demonstra, através de sua narração, que a ação é possível,
que ela não é inteiramente vã, que ela pode mudar algo do mundo e de si mesmo. Tal como
fizeram os gregos, como lembra Hannah Arendt em sua obra Entre o Passado e o Futuro,
Riobaldo encontra na narração a única forma de fazer com que os feitos perdurem e sejam
reconhecidos. Hannah Arendt observa que “fazer as palavras e os feitos perdurarem através das
narrativas, não somente além do fútil momento da ação, mas até mesmo da vida mortal de seu
agente”, foi a solução que os gregos encontraram para fugir do paradoxo que consistia no fato de
“ser a grandeza compreendida em termos de permanência enquanto a grandeza humana era vista
precisamente nas mais fúteis e menos duradouras atividades dos homens”. Riobaldo, apesar de
entender que navegava mal em “altas idéias” e de sinceramente declarar que “inveja minha pura é
de uns conforme o senhor, com toda leitura e suma doutoração”, transformou sua vida em uma
narrativa.
Como se disse anteriormente, a manutenção de si ou a identidade-ipseidade se dá em direção ao
outro. É o outro que, apelando o sujeito fora dele mesmo, lhe permite vir a si – “é neste sentido
preciso que a promessa encontra o destino da ipseidade”. Riobaldo fez do amigo Diadorim o
leitmotiv de sua narrativa e, assim procedendo, fez de sua memória o passaporte para uma nova
possibilidade, qual seja, “a narrativa, que é a história da passagem de um a outro”. Como afirma
Marlène Zarader: “A promessa é contemporânea de uma iniciativa que torna possível o futuro”
(ZARADER, 2008, p.86).
Riobaldo ousou transformar narrando, e o fez com maestria ímpar, “como se deixasse a chama já
tênue de sua narração ir consumindo a mecha da vida que lhe restava (...)”, como comenta
Arrriguci Jr. O desejo de Riobaldo é que sua narrativa captasse a vida que ainda pulsava em seu
íntimo, e que ele desconfiava continuar latente nos fatos narrados. Só assim ele poderia entrar em
contato com aquela poção vital que ainda subsistia no laço que o tinha aprisionado às seduções
do demo e que condensava todas as maldades de seu íntimo. Assim justificava diferentes aspectos
139
de sua personalidade: a gratuidade de seu ódio na expressão moral da pontaria, o desejo sexual
por Diadorim – que via como transgressor – disfarçado na camaradagem de jagunço, o arquétipo
da valentia confundida com virilidade, e sua sede de poder de mando. Estes foram os sentimentos
que o motivaram a ousar a perigosa aventura do pacto. Riobaldo reconhecia, ao narrar fatos e
sentimentos, que a vida ainda latejava no seu íntimo. E a narração que faz – e que se apresenta
para nós, leitores, como a voz narrativa de Grande Sertão:Veredas – levou sua vida a perdurar
além daqueles momentos em que os fatos e sentimentos ocorreram – e em que sua vida foi
efetivamente vivida – como daqueles que consome narrando sua história, intuindo, pois, sua
redenção ao reconhecer a possibilidade de ser “O si-mesmo como um outro” .
Narrativa e repercussões éticas
Pelo fato de ampliar o campo prático, a teoria da narrativa ocupa, de acordo com Ricoeur, “no
percurso completo de nossa investigação, uma posição de charneira entre a teoria da ação e a
teoria ética”, ou, em outras palavras, entre a descrição – Filosofia Analítica – e a prescrição –
Teoria Ética. Com o intuito de realizar efetivamente esse percurso, Ricoeur revê o conceito de
ação tal como proposto pela Filosofia Analítica, do qual depende a sustentação e extensão maior
do campo prático.A narrativa realiza esta articulação, na medida em que as ações descritas são
organizadas em uma seqüência narrativa no interior da qual recebem significação e valor.
Ricoeur reconhece que, embora “as práticas, nelas mesmas, não comportem cenários narrativos
perfeitamente constituídos”, sua organização, como reconheceu em Tempo e narrativa, lhes
confere uma qualidade pré-narrativa, à qual, no contexto dessa obra, deu o nome de “prefiguração
narrativa”.
André Dartigues amplia a compreensão dessa possibilidade ao afirmar que os atos elementares se
tornam significantes ao se encaixarem em unidades mais vastas, como os planos de vida (vida
profissional, familiar). MacIntyre reconhece que essas unidades tendem a se unificar naquilo que
chama de “unidade narrativa de uma vida”. Esta formulação, segundo Ricoeur, confere “uma
coloração narrativa à expressão diltheyana de Zusaammenhang des Lebens – “coesão de uma
vida’’, à qual Ricoeur dá o nome de “síntese do heterogêneo”.
A respeito da narrativa dessas unidades André Dartigues comenta:
140
“(ela) dá a uma vida a configuração de um projeto e permite qualificá-la como ‘boa’ ou ‘bemsucedida’. Hannah Arendt analisou esse papel da narrativa para a manutenção do que é digno
de memória: enquanto o trabalho é perecível, consumindo o trabalhador que produz o
consumível, e a obra é durável, persistindo como monumento no espaço, só a ação é
memorável, confiando-se precisamente à narrativa para se dar a imortalidade que ela merece
– a glória – e que por isso mesmo o tempo não lhe dá”. (DARTIGUES, 1998, p. 15).
Outros aspectos da unidade narrativa de uma vida, de acordo com o autor Joaquim de Sousa
Teixeira, podem ser abarcados pela inteligência narrativa, o que confirma o parentesco entre o
campo da ação e a hermenêutica do texto. Entre esses aspectos se encontram “o inacabamento
narrativo da vida” e “o enredamento uma nas outras das histórias da vida”. “A narrativa literária”,
segundo este autor, “é retrospectiva num sentido muito delimitado: é só aos olhos do narrador
que as coisas narradas pertencem ao passado (de narração), o quase-passado da voz narrativa”
(TEIXEIRA, 2004, vol. II. 2, p. 167).
Em relação às implicações éticas da narrativa, elas se fazem presentes nos três momentos da
atividade mimética. A fase da prefiguração ou mimesis é apresentada por Ricoeur a partir das
referências que faz à concepção apresentada pelo filósofo W. Benjamin, segundo a qual contar
histórias é trocar experiências, e que “por experiências entende não a observação científica, mas
o exercício popular da sabedoria prática. Ora, esta sabedoria não deixa de comportar apreciações,
avaliações classificadas como categorias teleológicas ou deontológicas (...)”. Por sua vez, no
plano da configuração ou mimesis II, as ressonâncias éticas aparecem, segundo Ricoeur, no
prazer estético que se experimenta ao “seguir o destino dos personagens”, o que implica
suspender “todo o julgamento moral real ao mesmo tempo em que põe em suspenso a ação
efetiva”. Por conseguinte, na circunscrição irreal da ficção, são explorados novos modos ou
“novas maneiras de avaliar ações e personagens”. Complementa Ricouer: “Transvalorizar ou
desvalorizar ficcionalmente é ainda avaliar; o juízo moral, mais que ser abolido, submete-se às
variações imaginativas próprias da ficção”. E, por último, no que se refere à refiguração ou
mimesis III, é elucidativa a declaração de Ricoeur em Tempo e narrativa III que passa a ser
transcrita:
141
“As experiências de pensamento que conduzimos no grande laboratório do imaginário são
também explorações levadas ao reino do bem e do mal. Supervalorizar, e mesmo
desvalorizar, é ainda avaliar. O julgamento moral não é abolido, ele é, antes, ele mesmo
submetido às variações imaginativas próprias da ficção”. (RICOEUR, 1991, p.194).
Como se vê, o pólo da mesmidade – “da estabilidade e da constância” – e o pólo da ipseidade –
“livre manutenção de si, inovação e imprevisibilidade” –, colocados em relação pela narrativa,
cobrem todo o campo da significação. É a identidade narrativa que, nas palavras de André
Dartigues, “se mantém no entre-dois”. Ricoeur argumenta: “Narrativizando o caráter, a narrativa
restitui-lhe o seu movimento (abolido na sedimentação das disposições adquiridas e das
identificações-com); narrativizando o intento ético da verdadeira vida – a vida boa e verdadeira –,
a narrativa empresta-lhe os traços reconhecíveis de personagens amadas e respeitadas. A
identidade narrativa mantém juntas as duas pontas da cadeia: a permanência no tempo do
caráter e da manutenção de si. (RICOEUR, 1991, p.196).
Em muitas outras narrativas, segundo Ricoeur, aparecem “noites” semelhantes àquela que ocorre
em O homem sem qualidades, na qual emerge a expressão paradoxal – Ichlosigkeit – “Eu não sou
nada!” Ricoeur propugna, no entanto, que
“esse ‘eu não sou nada’ deve conservar sua forma paradoxal: ‘nada’ já não significaria nada,
se ‘nada’ não fosse, com efeito, atribuído ao ‘eu’. Mas quem é ainda eu quando o sujeito diz
que não é nada? Um si privado do auxílio da mesmidade, dissemos e repetimos. (...) Nesses
momentos de extremo despojamento, a resposta negativa à pergunta quem sou eu? remete
não mais à nulidade, mas à nudez da própria questão” (RICOEUR, 1991, p. 197)
Joaquim de Sousa Teixeira esboça a perspectiva de que há aí “confronto entre a nudez da questão
‘quem’ e o brio da resposta ‘eis-me aqui!’”:
“Ricoeur defende, agora como sempre, a compossibilidade existencial entre ‘o caráter
problemático do ipse no plano narrativo e seu caráter assertivo no plano do empenhamento
moral’, uma tensão frutuosa ente o ‘eis-me aqui!’ e a pergunta ‘quem sou eu?’. Pelo
empenhamento ético (‘eis-me aqui!’) a pessoa põe um ponto final na errância resultante do
142
perpétuo confronto entre si mesmo e os intermináveis modelos de vida. Surge uma
discordância entre a imaginação, que diz: ‘é possível experimentar tudo’, e a voz que diz:
‘tudo é possível, mas nem tudo é benéfico [para ti e para outrem]’, discordância que o
empenhamento ético (a promessa) ‘transforma em frágil concórdia: ‘Eu posso experimentar
tudo’, é certo, mas: ‘Aqui seguro-me, agüento-me, contenho-me (je me tiens)’” (TEIXEIRA
2003, p. 167).
Prossegue Ricoeur:
“A distância entre a questão na qual se absorve a imaginação narrativa e a resposta do sujeito
tornado responsável pela expectativa do outro torna-se uma falha secreta no próprio centro do
engajamento. Essa falha secreta faz a diferença entre a modéstia da manutenção do si e o
orgulho estóico da inflexível constância a si. (...) Numa filosofia da identidade como a nossa,
devemos poder dizer: a posse não é o que importa. O que sugerem os casos-limite gerados
pela imaginação narrativa é uma dialética da posse e da espoliação, da preocupação e da
despreocupação, da afirmação de si e do desaparecimento de si. Assim, o nada imaginado do
si torna-se ‘crise’ existencial do si”. (RICOEUR, 1991, p. 198)
Manifesta-se, desse modo, o sentido e a abrangência de O si-mesmo como um outro, cuja
essência é que a narrativa enriquece o si pela referência ao outro, concebendo-se este como
constitutivo do si. “O outro”, afirma Ricoeur, “me endereça a palavra e tenho o poder de
responder”. Ele continua apresentando outras formas de alteridade: a mais dramática: “eu
sou, enquanto agente de minha própria ação, o paciente da ação que o outro exerce sobre
mim, desde as formas mais doces de ensinamento até as formas violentas da tortura”. E de
outro modo ainda: “a história de minha vida é entrecortada nas histórias de outros”. Ricoeur
propõe ainda que a alteridade se faz mais íntima, interior, na figura da consciência, que,
segundo a imaginação popular, se apresenta como “uma voz endereçada ao nosso fórum
interior”. A força simbólica dessa voz possui correspondência com os apelos éticos da
filosofia de Ricoeur: simples, comovente, ao alcance de todos, e que revelam a
autenticidade, idoneidade e vigor intelectual e moral de seu autor.
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