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DA IDENTIDADE
NARRATIVA
–
Paul Ricoeur, leitor de Santo
Agostinho
José M. da S. Rosa
2003
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Texto publicado em Cassiano R EIMÃO (Org.),
& Manuel Cândido P IMENTEL (Coord.),
in Os Longos Caminhos do Ser. Homenagem a
Manuel Barbosa da Costa Freitas,
Lisboa, Universidade Católica Editora, 2003,
pp. 557-597
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Covilhã, 2009
F ICHA T ÉCNICA
Título: DA IDENTIDADE NARRATIVA. P. Ricoeur, leitor
do livro XI de Confissões de Santo Agostinho
Autor: José M. da S. Rosa
Colecção: Artigos L USO S OFIA
Design da Capa: António Rodrigues Tomé
Composição & Paginação: José M. Silva Rosa
Universidade da Beira Interior
Covilhã, 2009
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Da Identidade Narrativa
P. Ricoeur, leitor do livro XI de
Confissões de Santo Agostinho
José M. da S. Rosa
Universidade da Beira Interior
Conteúdo
N OTA INTRODUTÓRIA
I – Entre Mesmidade e Ipseidade: a constituição da Identidade
Narrativa
1. A Aporia do Tempo, em Sto. Agostinho . . . . . . . . . .
2. O Acesso à Identidade Narrativa segundo P. Ricoeur . . .
II – O ❦❛✐rì❝ da Identificação, segundo Agostinho de Hipona
1. Enquadramento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
2. O agostiniano locus identitatis . . . . . . . . . . . . . . .
N OTA CONCLUSIVA
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9
13
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35
35
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José M. da S. Rosa
“O tempo acabara por me ensinar que não há espelho mais
transparente do que uma página escrita.
É nela que fica testemunhada para todo o sempre
a verdade irreversível do autor (...).
É aí onde os possíveis leitores de hoje e os de amanhã
o surpreendem e julgam, e ele próprio, que se procura,
acaba por encontrar uma imagem à sua semelhança (...).”
(Miguel Torga, A Criação do Mundo)
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Da Identidade Narrativa. P. Ricoeur, leitor...
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Nota Introdutória
Quem, ainda que por uma vez apenas, na sua inevitável viagem
para Tebas, não se confrontou já com a questão: Quem sou? Como
um assaltante na estrada, a pergunta brota. E quer uns se circunscrevam ao que pergunta revela acerca da dimensão interrogante daquele que a põe, ou outros avancem precipitadamente para as respostas possíveis, o certo é que a pergunta persiste e resiste às investidas de uns e de outros. E, contudo, a própria questão parece trazer
já consigo um princípio de resposta. Na pergunta “quem?” parece
estar já implicitamente pressuposto ou aceite que há um “quem”.
Todavia, este primevo índice de uma identidade é constantemente
assolado pela experiência de uma radical impermanência, já desvelada pela pergunta, impermanência que salta desse choque, como
uma faúlha.
Permanência e mudança enigmaticamente ínsitas uma na outra;
o mesmo entrelaçado no outro; a verdade da vida mais do que o
momento lógico definitório e do que o amorfismo de um devir sem
relevância: eis a encruzilhada que a cada momento parece renovar
com inusitada actualidade a máxima délfica: “❣♥✇
˜ ❥✐ sè❛✉t♦♥”1 .
E nem que todas as Jocastas nos convidem ao “melhor caminho
da ignorância” – “Ai, desventurado! Oxalá nunca chegues a saber
quem és!” –, nem aí, nos vislumbres pressentidos da tragédia, sob
1
“O eu (soi) do conhecimento de si é o fruto de uma vida examinada, segundo a palavra de Sócrates na Apologia.” P. R ICOEUR, Temps et Récit, III. Le
Temps Raconté, Paris, Seuil, 1985, p.356. O Io tomo da obra saíu em 1983, também na Seuil; o IIo , (La Figuration du Temps dans le récit de fiction), saíu em
1985, igualmente na Seuil. Referiremos a obra pela sigla TR I, II ou III.
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José M. da S. Rosa
o risco da cegueira e da morte, resistimos a por a questão decisiva:
Quem sou? Quer cometamos tal tarefa a um pastor de Citéron ou
vasculhemos em nós mesmos a memória, este é sempre o momento
de um encontro crucial.
Que alguém conte uma história, a sua própria história, e que
recupere num tempo assaz estranho – talvez trágico! – essa mesma
história; que alguém narre, invente, imite e, nesse tempo de narração, invenção, imitação, dê uma totalidade de sentido a um tempo
que o já não é, isso é um mistério deste “dom dos deuses aos mortais” – a linguagem e a memória –, que nos deveria maravilhar sempre e cada vez de novo por inteiro. Narrar é contar uma história. É
construir uma intriga, uma inovação semântica, onde “as finalidades, as causas, os acasos são reunidos sob a unidade temporal de
uma acção total e completa. (...) É uma síntese do heterogéneo”2 .
E esta síntese supõe um tempo. Mas o que permite ligar os diferentes instantes desse tempo em ordem a construir uma história?
Como ligamos eventos, ocorridos sucessiva ou coetaneamente, e
lhes damos um sentido, isto é, uma unidade significativa pela qual
eles se interligam uns com os outros e constituem uma totalidade
coerente? Como e sob que fundamento tal é possível? Como é
enigmática a narração, como o são as simples palavras da fábula:
“Era uma vez...”.
Ao nível da ciência histórica consegue-se aproximar e ligar
eventos numa totalidade significativa – os quais numa primeira
abordagem poderiam ser incomunicáveis entre si –, cruzando a
informação, elaborando uma interpretação3 . Mas bastará a his2
TR I, p.11
Quer sob o regime do Mesmo (pela identificação com o que foi, pela “reefectuação” à maneira de Collingwood, apelanado a uma “imaginação histórica”)
quer sob o regime do Outro (pelo afastar o passado do presente, por uma apologia da diferença que recusa todas as soluções “empáticas”) quer sob regime do
Análogo (que retira o seu modelo da Retórica de Aristóteles e sistematizada na
“teoria dos tropos” de Hayden Withe) é sempre de uma (re)interpretação que se
trata (Cf. TR III, pp.203-227).
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Da Identidade Narrativa. P. Ricoeur, leitor...
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toriografia, i.é, a apresentação da galeria de acontecimentos para
constituir uma identidade? O narrar uma história, contar um conto,
constituir uma trama de eventos eivada de nexos, supõe sempre a
(re)constituição de um sentido real ou possível. É um acto de trazer à luz o sentido, uma mimèsis criativa. E esta identidade criada
pela narração ao nível da constituição e modelagem dinâmica das
personagens, do encadeamento dos eventos, acaba por constituir
também o processo de identificação do próprio narrador. Por isso,
diríamos que a identidade é a história de coerências e aparentes
incoerências que, no cômputo final, tornam significativa e entretecem aquilo que, dum fôlego, podemos chamar vida. A nossa vida.
Uma vida concebida como uma obra4 .
O presente texto de homenagem nasceu do encontro entre pergunta acima formulada, a leitura de Confissões X-XI, de Agostinho
de Hipona, e a releitura que P. Ricoeur faz desse mesmo texto logo
4
Tal unidade é um requisito fundamental em termos psicológicos. Os primeiros sintomas de transtornos psíquicos parecem advir exactamente da impossibilidade de constituição de um sentido, de estabelecer temporalmente uma unidade coerente num viver. A conexão entre ipseidade e identidade narrativa confirma, refere Ricoeur, uma das suas mais antigas convicções, isto é, que o eu
(soi) do conhecimento de si não é o eu egoísta e narcísico de que as hermenêuticas da suspeita denunciaram tanto a hipocrisia como a ingenuidade, assim
como o carácter de superestrutura ideológica como o arcaísmo infantil e neurótico. É por isso que Ricoeur reitera a fecundidade nesta noção tanto aplicada ao
indivíduo, como a uma comunidade. Está no primeiro caso a experiência psicanalítica que releva o papel da componente narrativa naquilo que se convencionou
chamar “histórias de casos”; todo o processo de cura consiste em tentar substituir histórias ininteligíveis e insuportáveis por uma história coerente e aceitável,
na qual o paciente possa reconhecer a sua ipseidade. A psicanálise constitui a
este propósito um laboratório particularmente instrutivo para uma pesquisa propriamente filosófica sobre a noção de ipseidade. A segunda aplicação, a uma
comunidade, pode ser exemplificada pela própria história do Israel bíblico onde
foi pela narração dos acontecimentos fundadores (tradições patriarcais e eventos
mosaicos) que ele se tornou uma comunidade histórica. “A relação é circular: a
comunidade histórica que se chama povo judeus tirou a sua identidade da própria
recepção dos textos que ele produziu”. Cf. TR III, p.356.357.
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José M. da S. Rosa
a abrir Temps e Récit5 . É esta a trama que o constitui. Assim, e
para delimitar bem a temática, vamos atentar na interpretação que
P. Ricoeur faz desse texto, apresentar as razões que o levam para
uma poética onde a ficção ajuda a configurar as histórias reais, e
responder de novo com Agostinho, tentando mostrar que Ricoeur,
com a sua narratologia, apenas ilude o enigma, sem o resolver, até
se encontrar de novo na encruzilhada, perante a esfinge. Pelo que
a resposta de Agostinho às aporias do tempo – intensificar de tal
modo a experiência do tempo até à sua metamorfose kairológica –
pode continuar ter alguma valência.
Acusar-nos-ão, com razão, de fazer um percurso por recuos e
avanços. Partir da leitura que Ricoeur faz de Agostinho, apresentar
a posição de Ricoeur, para depois lhe responder de novo com Agostinho, poderá parecer artificioso. Tanto mais que, para o horizonte
exterior de quem possa fazer a observação, tal ordem cronológica
parece impor Ricoeur como leitor de Agostinho e não o contrário6 .
Creio, todavia, que esta posição (a do respeito pela ordem cronológica) pode ficar pelo exterior da questão levantada pela temporalidade. Se algo pertence de facto e de jure à experiência pensante
é exactamente a questão do tempo, desde o Cronos devorador dos
seus filhos, ou de Panélope fazendo e desfazendo a teia. Toda a
tradição reflexiva posterior, desde a fisiologia heraclitiana e da ló5
A questão formulou-se mais claramente com a leitura do capítulo “A imaginação no Discurso e na Acção. Para uma teoria geral da imaginação”, em Du
Texte à l’Action. Essais d’Hérméneutique II (cons. em simultâneo na edição
francesa das Éditions du Seuil, 1986, e na edição port. Do Texto à Acção. Ensaios de Hermenêutioca II, Porto, Res, adiante abreviada por TA, cuja paginação
referiremos), pp.213-235.
6
Aliás, é o que Ricoeur faz na sua leitura de Agostinho: parte das “aporias”
do tempo agostiniano e, às arrecuas, avança para a Poética de Aristóteles, em
ordem a estabelecer as bases da tripla mimèsis, a partir da tese que estabelece:
“o tempo torna-se tempo humano na medida em que é articulado sobre um modo
narrativo, e (...) o conto atinge a sua significação plena quando se torna uma
condição de existência temporal”. TR I, p.85.
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Da Identidade Narrativa. P. Ricoeur, leitor...
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gica eleática, pressentiu que, resolvida, ela é o limiar, o pórtico do
pensável, fulcro de abertura à possibilidade.
Além disso, como já foi dito, não só podemos com toda a legitimidade, mas devemos mesmo por imperativo do próprio ritmo
do seu pensar, fazer de Agostinho um leitor do nosso tempo7 . Com
efeito, na imorredoira lição parmenídea, “não importa por onde comecemos. Aqui havemos de voltar.” Convém, todavia, apresentar
algumas das linhagens do pensamento moderno e contemporâneo
que levaram P. Ricoeur a repensar o problema do tempo e a tornarse também ele um leitor de Agostinho.
I - Entre Mesmidade e Ipseidade:
a constituição da Identidade Narrativa
Paul Ricoeur é um filósofo francês. Não admira, pois, que se sinta
herdeiro de uma modernidade cuja aurora, iniciada com Descartes,
vive sob a égide do sujeito. Mas o seu projecto tem como escopo
ir além de Descartes e recuperar exactamente o que esse “carinho
para com o sujeito” ilegitimou: as mediações prévias que o possibilitam e aquelas por que ele próprio, sujeito, se realiza. Visa, ao
7
Joaquim Cerqueira G ONÇALVES, “Santo Agostinho, leitor do nosso
tempo”, in Didaskalia 19 (1989/1), pp.127-133. E esta perspectiva circular
nunca é viciosa. Já no Antigo Testamento, com o desenvolvimento das escolas rabínicas e talmúdicas, se verifica que o texto vai informando a vida, a vida
configurando texto e o texto vai-se explicando a si próprio, numa leitura que
tanto é válida do passado para o presente e o futuro, como do presente para o
passado e o futuro ou do futuro para o presente e o passado. O próprio Jesus
ao ler em Nazaré (Lc 4, 16-20) a passagem de Isaías (Is 61, 1-2: “O Espírito
do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu, ... ”), e ao dizer: “Cumpriu-se
hoje aos vossos ouvidos esta passagem da Escritura”, consagra a validade desta
circularidade criadora.
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mesmo tempo, redarguir a todas as tentativas, conscientes ou não,
de reduzir o sujeito à mesmidade.
A necessidade epistemológica de um pontum inconcussum que
levou o filósofo de La Flèche a elidir, metódica e provisoriamente,
todas as mediações exteriores e interiores, deixou-lhe um cogito
claro e evidente. Mas à custa de quê? Da perda de tudo ou quase
tudo, inclusive o tempo porque, se bem que tenha a certeza de
que existe enquanto pensa, nada sabe de si aquando não pensa.
O tempo da sucessão pensante desaparece quando o sujeito perde
essa presença de si a si e, por isso, a duração do cogito configurase como um tempo estranho, permeado de hiatos, de não-ser, a
lembrar as velhas teses dos pitagóricos e dos atomistas.
Essa dúvida radical parece ser a mácula in radice que afectou o próprio objecto da dúvida. Mau grado todas as tentativas
da modernidade para reencontrar esse “paraíso perdido”, nenhuma
delas o conseguiu. O próprio Descartes o tentara, mas o resultado
foi um mundo cinzento, feito de extensão e movimento, e Deus
uma ideia objectivamente infinita, ícone de uma pirueta que um rebate de consciência levou identificar com o Deus posto em dúvida:
“Ah!, mas há um Deus tradicional a que chamam criador, perfeito,
omnipotente.”
Kant compreende a solidão desse Ich denken quando, superior
e inferiormente limitado, se vê confinado a um plano transcendental e reconhece, com humildade, que é tudo o que conseguiu. E
todas as mediações que um tempo transcendental legitima, já sem
os hiatos de uma consciência adormecida, têm de ser remetidos
para o plano da razão prática.
A isto Hegel reage violentamente. Contra a ausência ou fraqueza de mediações, eis a mediação total. Deixa de haver sujeito
ou objecto, ou melhor tudo é espírito, sujeito e objecto, e a filosofia, o sistema, a ciência ou saber absoluto, enquanto nach denken,
(repensar todas as Darstellungen) é a mediação que recapitula a
história universal: “Mocho de Minerva que levanta vôo do anoitewww.lusosofia.net
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cer”, como diz no Prefácio aos Princípios de Filosofia do Direito e
que a Fenomenologia do Espírito referira já como “Ciência da experiência da consciência”. Pretensamente, a inteligibilidade está
dada. A partir daqui todas as mediações serão, de algum modo
re-mediações dispensáveis porque o novo esgotou-se, quaisquer figuras serão sempre refigurações. A pobreza cartesiana é saciada
pela embriaguez sem limites do espírito que se sabe a si mesmo8 .
Husserl afronta Hegel9 e tenta de novo um ponto de equilíbrio.
Pela renovação do ímpeto cartesiano, visa o tal “paraíso perdido do
Lebenswelt”. Mas o projecto da fenomenologia como ciência de rigor foi um sonho que se desfez, com ele reconhece em Die Krisis.
E mau-grado todas as boas intenções da intersubjectividade (mais
ampla que o Ich denken de Kant?), os outros, ainda quando reconhecidos como tal, não deixam de ser colocações perspectivadas
do ‘eu’. A comunicação superior das consciências é impossível,
até porque as entidades de consciência superiores (instituições, sociedade...) funcionam analogamente ao ‘eu’, e por outro lado não
existem entidades superiores à consciência. Por isso a constituição do outro, mesmo por uma analogia, é sempre o-meu-ponto-devista-do-outro, num jogo que jogo comigo mesmo.
Pela mão de Heidegger, de Marcel, de Gadamer, P. Ricoeur
afasta-se, no seu próprio percurso, deste idealismo subjectivo. De
Heidegger recolhe com satisfação a intenção de uma hermenêutica
fundamental, uma hermenêutica que escute o sentido do ser, aí, na
clareira onde ele se dá como projecto e que, por conseguinte, “não
se dirige à posse de um facto, mas à apreensão de uma possibi8
TA, p.283 : “O ‘espírito certo de si mesmo’ é, assim, constituído em instância hermenêutica, quero dizer, em critério de sentido, em medida de verdade
relativamente a todas as modalidades que o precedem”.
9
Apesar de também haver uma intersecção, como refere P. R ICOEUR, em
TA, p.286: “...a constituição husserliana, entendida no sentidode explicitação,
pode ser comparada ao espírito hegeliano, ele mesmo apreendido no elemento
da consciência. Aqui está a zona de intersecção.”
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lidade de ser”10 , e também a intenção de curto-circuitar o círculo
hermenêutico por uma ontologia que mostre a co-implicação do
explicar e compreender na estrutura pré-compreensiva. Daqui, segundo Ricoeur, Heidegger é levado para a questão da linguagem
como possibilidade de manifestação, e é aqui que o autor de Du
Texte à L’Action começa a divergir da analítica heideggeriana. Porque ao dizer que “o discurso é a articulação daquilo que é compreensão”11 e que por isso “é necessário recolocar o discurso nas
estruturas do ser, e não estas no discurso”, Heidegger subordina a
epistemologia à ontologia e, assim, “a aporia não está resolvida,
apenas foi levada para outro lado e, por isso mesmo, agravada;
ela já não está na epistemologia, entre duas modalidades do conhecer, mas está entre a ontologia e a epistemologia, tomadas em
bloco”12 . E depois da ontologia fundamental a questão epistemológica é irrecuperável.
Gadamer compreendeu muito bem a aporia da filosofia heideggeriana. A experiência hermenêutica propõe-se, exactamente,
regressar da ontologia à epistemologia pela consciência histórica,
porque “a história precede-me e antecipa a minha reflexão; eu pertenço à história antes de me pertencer”13 . Todavia, “como será
possível introduzir uma instância crítica qualquer numa consciência de pertença expressamente definida pela recusa da distanciação?”. Entre uma separação e uma não-distanciação, qual a via
intermédia?
Para a superação deste novo impasse Ricoeur valoriza as próprias indicações que Gadamer fornece. Recorre assim à noção de
fusão-de-horizontes que permite, justamente, dialectizar a distanciação e a participação, o longínquo e o próximo, o estranho e o
próprio. A condição de possibilidade dessa fusão de horizontes é a
10
11
12
13
TA, p.98.
Idem, p.100, citando o §34 de Sein un Zeit.
Idem, p.101.
Idem, p.104.
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Sprachlichkeit, “o carácter universal de linguagem da experiência
humana”14 .
Conduzido a este limiar pela reflexão sobre/dos (d)os filósofos
anteriores, acolhendo as linhas abertas por Gadamer, resta a Ricoeur levar por diante o projecto de legitimar epistemologicamente as
mediações históricas e linguísticas, isto é, a possibilidade de uma
narratologia em geral. E para isso tem de se bater em duelo com o
tempo, que é outra forma de dizer o conflito das interpretações.
Assim, em Temps e Récit, o que P. Ricoeur faz é ir atirando as
várias posições dos autores umas contra as outras, de preferência
analepticamente, de modo que elas litiguem entre si até à exaustão da aporia, e ele fique com o caminho livre para reatar com a
afirmação originária da Poética de Aristóteles com que, retrospectivamente, responde à aporia agostiniana do tempo, no livro XI das
Confissões:
Assim, e uma vez que delimitámos como nosso propósito problematizar a relação entre P. Ricoeur e S. Agostinho a propósito
da possibilidade de constituição de uma identidade narrativa, atentemos, antes de mais, na releitura que Ricoeur faz desse célebre
excerto das Confissões de Santo Agostinho, para compreendermos
se se pode, e em que medida se pode, concluir pela impossibilidade de constituição de uma identidade narrativa no pensamento
agostiniano.
1. A Aporia do Tempo, em Sto. Agostinho
P. Ricoeur começa a sua leitura do livro XI das Confissões, no capítulo 14, 17, pela celebérrima interrogação/resposta de Agostinho:
“Quid est ergo tempus? Si nemo ex me quaeret, scio; si quaerenti
explicare velim, nescio.” Contudo, este procedimento metodoló14
Idem, p.106.
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gico, ao não considerar o enquadramento da questão nos capítulos
anteriores – o das relações entre tempo e eternidade à luz da afirmação genesíaca: “No princípio criou Deus o céu e a terra...” –,
corta o nervo mesmo do ímpeto agostiniano que é, do tempo e pelo
tempo, alcançar o ponto de tangência com a eternidade, onde se
cumpre, enfim, o único propósito que o animara: “Deum et animam
scire cupio! Nihilne plus? Nihil omnino.”15 No final perceber-seá porque é que Ricoeur faz este corte. Pretende valorizar o que
chama tempo humano, a mediação histórica, categoria da imaginação e, a seu ver, postura agostiniana, ao tratar o tempo à luz
da eternidade acentua a deficiência ontológica do tempo humano,
instância de mutabilidade, de incompletude, de falha, de quebra e
de queda. Só assim, de facto, pode afirmar que separada de uma
meditatio aeternitatis “a análise agostiniana do tempo oferece um
carácter altamente interrogativo e mesmo aporético, que nenhuma
das antigas teorias do tempo, de Platão a Plotino, leva a tal grau
de acuidade.”16
Todos os argumentos que Agostinho traz a lume para garantir a realidade do tempo, segundo Ricoeur, são para ir cortando as
“cabeças sempre renascentes da hidra do cepticismo”. Todos eles
advêm dessa polémica cerrada contra o cepticismo. De facto, à
questão “Quid est tempus?” o céptico concluirá pelo não-ser do
tempo. Pois o passado foi e já não é mais; o futuro será, eventualmente, mas ainda não é; e que coisa mais fugidia que este presente
impermanente, sempre a passar, sem ser verdadeiramente? Logo,
o tempo não é, concluirá o céptico. Mas nós medimos o tempo!,
redarguirá Agostinho. E não se pode medir o que não é. Portanto,
se verdadeiramente medimos - o que a linguagem natural atesta - o
tempo é e não pode não-ser17 .
15
Soliloquia, I, 2, 7.
TR I, p.20.
17
Cf. a magnífica abordagem da questão, feita por Jean G UITTON, no primeiro capítulo (Acerca do Intemporal) da obra Justification du Temps, Paris,
PUF, 1966 (cons. na ed. port., Lisboa, União Gráfica, 1966, pp. 24-42); cf. ta16
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Da Identidade Narrativa. P. Ricoeur, leitor...
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A primeira clivagem prefigura-se, pois, entre o ser e o nãoser do tempo. Não deixa de ser sugestivo que, neste primeiro momento, contra a investida céptica, Agostinho, semi-desarmado, não
tenha mais nada à mão para entrar na liça senão o uso quotidiano da
linguagem 18 . É a confiança que tem na linguagem natural que vai
manter a sua crença na realidade do tempo de um modo que ainda
aparece nebuloso e, simultaneamente, funcionar como o leit-motiv
que, dando o testemunho a uma argumentação mais forte, obrigará
a concluir pela realidade do tempo. Ricoeur, agradado, não deixa
de referi que “é notável que seja o uso da linguagem o que mantém provisoriamente a resistência à tese do não-ser do tempo.”19
Verdadeiramente, a nossa linguagem natural mostra-nos que nós
medimos o tempo positivamente, de forma sensé. Dizemos que
foi, é e será e entendemo-nos. O problema surge quando se quer
explicar como meço o tempo. Ou seja, a clivagem surge entre o
facto ‘que meço’ e a pergunta ‘como meço?’, “Sed quo pacto longum est aut breve, quod non est?”20 Nunca se poderia medir o que
não é, reitera e abisma-se Agostinho perante tal problema.
Ora bem, o passado já-não-é, o futuro ainda-não-é. É no entanto no presente que nós falamos do passado e do futuro. É pois
pela memória que, no presente, nos referimos a um longo ou curto
passado; e pela espera que nos referimos a um longo ou curto futuro. Ou seja, a memória e a espera são modalidades de presente
que nos permitem medir o passado e o futuro nesse mesmo presente. Mas não havíamos dito que o presente também não era?! É
pois preciso inquirir e afinar a noção de presente. “Videamus ergo,
mabém Fernanda H ENRIQUES, “A presença do livro XI de Confissões em Temps
et Récit, de Paul Ricoeur”, in: Actas do Congresso Internacional As Confissões
de Santo Agostinho 1600 anos depois: Presença e Actualidade (realizado na
Universidade Católica Portuguesa – Lisboa, 13-16 de Novembro de 2000), Lisboa, Universidade Católica Editora, 2002, pp. 427-436.
18
Cf. a propósito Conf., XV,19; 16, 21.
19
TR I, p.23.24.
20
Conf., XV,18.
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José M. da S. Rosa
anima humana, utrum praesens tempus possit esse longum: datum
enim tibi est sentire moras atque metiri.”21 Analisemos, por exemplo, um período de cem anos. Poderão eles ser simultaneamente?
Claro que não. Cem anos, cinquenta, dez, talvez um? Não! Um
mês, um dia, um hora, um minuto, um segundo...? Também não!
São sempre divisíveis num antes e num depois. Então o que é que
não pode ser dividido num antes e num depois? O instante. O instante não tem espaço, por isso, não admite um antes e um depois.
Não é, assim, longo.
“É preciso pois concluir com os cépticos: Se se concebe (intelligitur) um elemento de tempo (quid... temporis) que não possa
mais ser dividido em parcelas de instantes, por mínimas que sejam, é isso que se pode chamar presente; mas o presente não tem
espaço (spatium)”22 ; contudo nós medimos (metimur), comparamos (comparamus) e sentimos (sentimus) os intervalos. Como é
que medimos que não tem espaço? Medimo-los na passagem; é no
próprio acto de passagem que os medimos.
Mas Agostinho não está de todo seguro desta tese. Ela é provisória. “Quaero, pater, non afirmo!”23 Então, em nome de quê
continuar a manter a afirmação do ser do tempo? É ainda a linguagem utilizada que nos informa que narramos coisas verdadeiras e
predizemos acontecimentos que depois acontecem tal como os havíamos predito. É a linguagem que continua a resistir ao assalto.
Mas o filho de Mónica, neste momento sabe que tem de dar
mais um passo para a resolução da questão. Realmente, predizer
é prever as coisas, e narrar é discernir pelo espírito outras coisas.
“Si enim sunt futura et praeterita, volo scire, ubi sint. Quod si
nondum valeo, scio tamen, ubicumque sunt, non ibi ea futura esse
aut praeterita, sed praesentia.” 24 Aqui Agostinho deixa de falar
21
22
23
24
Conf., XV, 19.
TR I, p.24.
Conf., XVII, 22.
Idem, XVIII, 23.
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Da Identidade Narrativa. P. Ricoeur, leitor...
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o futuro e do passado substantivamente, e passa a falar de “coisas
futuras e passadas”, dando futuro e ao passado um valor adjectival. “Este deslize quase imperceptível, na realidade, abre a via à
resolução do paradoxo inicial sobre o ser e o não-ser do tempo e,
consequentemente, ao paradoxo central sobre a medida”25 afirma
Ricoeur. E o ‘como?’ transmuta-se aqui na busca de um local, de
um espaço, para a existência de coisas futuras e coisas passadas,
enquanto narradas e preditas, porque onde estiveram aí são presentes. É pois à luz deste espaço que ganham sentido a narração e
a previsão. Narração implica memória, previsão supõe espera.
Ora, lembrar-se significa ter uma imagem na alma (resposta ao
‘onde?’), uma impressão deixada pelas coisas, acontecimentos e
que ficaram fixos na alma; prever é, do mesmo modo, ter já uma
pré-percepção que permite anunciar antes (praenuntio), referir uma
imagem que já existe antecipada, precedendo o evento que ainda
não é.
É assim que podemos falar de três tempos: “...tempora sunt
tria, praesens de praeteritis, praesens de praesentibus, praesens
de futuris”26 – presente do passado (memoria, adhuc vestigia), presente do futuro, (jam sunt, ante dicatur), e presente do presente,
(contuitus, atentio). Mas aqui Agostinho percebe que teve de abandonar o bastão que até aí o sustera contra a investida céptica: a
linguagem natural. Resolve a questão, como bom professor de retórica, com o sentido próprio e impróprio da linguagem: “Pauca
sunt enim, quae proprie loquimur, plura non proprie, sed agnoscitur quid velimus.”27
Temos assim resolvido o primeiro problema, o da questão do
ser ou não-ser do tempo. Contudo – e é aqui que Ricoeur faz
finca-pé para afirmar que a aporia não foi totalmente resolvida –
a imagem antecipante não é menos enigmática que a imagem dos
25
26
27
TR I, p.26.
Conf., XX, 26.
Ibidem.
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vestigia. “O que faz o enigma é a estrutura mesma de uma imagem que vale tanto como impressão do passado como sinal do futuro.”28 Além do mais, ficamos na dúvida se foi porque se colocou a questão em termos de ‘lugar onde?’ que se obteve uma resposta espacial (na alma, na memória) ou se não foi antes a quaseespacialidade da imagem-impressão e da imagem-sinal, inscrita na
alma, que levou a que se colocasse a questão do lugar das coisas
futuras e passadas29 .
É por isso que Agostinho não dá por concluída a sua tarefa;
ainda não suspira de alívio, como quem encontra aquilo que há
muito tempo almeja. Assim mister é descartar ainda esse resíduo
de espacialidade que ficara da questão ‘Onde estão...?’ e da resposta: ‘Na alma...’.
É preciso pois desmontar a equivocidade adveniente do facto
de, naturalmente, medirmos o tempo pelo espaço, i.e., pela regularidade dos movimentos dos astros. É preciso demonstrar a insustentabilidade da solução cosmológica e adscrever à alma, na
estrutura da tripla dimensão do tempo presente, o fundamento da
extensão e, portanto, da medida.
É certo que Plotino já tinha enveredado por esta solução. Também para ele o tempo era tempo da alma. Mas de que alma? Da
anima mundi, a alma do mundo, que dissolvia o princípio da existência de uma alma individual. Agostinho aproveita o esquema,
mas rejeita a solução plotiniana. O processo por que Agostinho vai
demonstrar que o tempo não é cosmológico mas psíquico, podese caracterizar como uma autêntica reductio ad absurdum. Se se
aceita a hipótese de que o tempo dos astros é a medida do tempo,
então teremos também de aceitar que isso pode ser dito de qualquer
outro corpo. Este hipótese supõe um corte radical com a cosmovisão grega, platónica e aristotélica. De facto, subjaz-lhe a concepção de que o movimento dos astros poderia mudar. Ou seja, os
28
29
TR I, p.29.
Ibidem.
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astros não são de natureza divina. Agostinho, como as Confissões
elucidam, critica veementemente as crendices astrológicas30 . Isto
supõe que a concepção platónica e aristotélica da divindade dos astros, por conseguinte da sua incorrupção e da inalterabilidade dos
seus movimentos, foi abandonada. Os astros passaram a ser corpos entre outros. Aqui prevalece a concepção da Sagrada Escritura
que diz serem os astros apenas luminares para marcar o tempo (não
sendo o seu movimento o tempo). É isso que permite a Agostinho
afirmar, como já dissemos, que se o movimento dos astros for o
tempo isso pode também afirmar-se de qualquer outro corpo. Por
exemplo, se os astros reduzissem a sua velocidade, ou mesmo parassem, e a roda do oleiro continuasse a rodar, também por aí se
poderia medir o tempo. Subjacente a esta afirmação está a hipótese
da velocidade variável dos corpos. Logo, se a noção de dia, por
exemplo, depende do movimento dos astros ou dos corpos, teremos o absurdo de, se o astro ou o corpo andar muito devagar, o dia
ser muito maior do que se ele andasse depressa. Assim é óbvio que
a noção de dia não é absoluta.
Só podem, pois, ser superados estes absurdos se se admitir que
o tempo não é o movimento dos astros; eles de algum modo marcam o tempo, e este é que por sua vez, é a medida dos seus próprios
movimentos. Falar, portanto de espaço de tempo, implica a ausência de qualquer referência a uma cosmologia como critério.
Ora bem, se a medida do tempo não depende do movimento
cosmológico e se para medirmos o tempo, isto é, para falarmos de
tempo longo ou curto, nos situamos sempre e somente adentro do
próprio tempo, isso exige de si que, nessa comparação entre tempo
curto e longo, tenhamos um termo fixo de comparação, o qual nem
pode ser nem um movimento corporal, nem qualquer outro espaço
de tempo, maior ou menor do que aqueles, porque então a questão
transitaria para aí.
Assim esse termo fixo parece só poder ser a alma. O tempo
30
Conf., VII, 6ss.
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é uma distentio animi, distensão31 da alma. Não deixa de ser interessante, todavia, a cautela de Agostinho. A força probatória da
argumentação parece ser retirada a contrario, ou seja, pela redução
ao absurdo da posição contrária32 .
Através da instância de uma tripla modalidade de um presente
ficou, pois, resolvido o problema do ser o não-ser do tempo, e
infirmou-se o argumento céptico; pela distentio animi resolveu-se
o problema da medida do tempo recusando os modelos cosmológicos. Resta cerzir os dois argumentos num só para lhe dar toda
a força demonstrativa. É preciso ligar a intentio que recolhe as
três modalidades de presente, com a distentio por que medimos o
tempo. É no cruzamento de ambas que os paradoxos do tempo se
dissolverão.
Após alguns exemplos que adensam ainda mais o problema,
num crescendo enigmático33 , onde o protesto de que medimos é
incontornável, só com o exemplo da recitação do verso “Deus creator omnium”, de oito sílabas, quatro breves e quatro longas alternadas, consegue o cruzamento perfeito entre intentio e distentio.
31
Já não usa extensio, mas distensio, fugindo assim àquela quaseespacialidade que referimos.
32
“Inde mihi visum est nihil esse alium tempus quam distetionem. Sed cuius
rei, nescio, et mirum, si non ipsius animi.” Conf., XI, 26.
33
“O primeiro exemplo (27, 34): um som que começa a ressoar, que ressoa ainda e deixa de ressoar. Como é que falamos dele? É importante para a
compreensão desta passagem notar que ele foi totalmente escrita no passado;
fala-se da ressonância do som apenas quando ela cessou. (...) É, pois, no passado que se fala da passagem mesma do presente. O primeiro exemplo, longe de
procurar uma resposta pacificadora do enigma, parece adensá-lo. Mas, como
sempre, a direcção da solução está tanto no enigma mesmo, quanto o enigma
está na solução.” TR I, p.35. O segundo exemplo faz variar o tempo em que o
som ressoa. Suponhamos que ressoa ‘agora’ (nunc). A questão “Quanta sit?”
coloca-se no mesmo presente. Mas como é possível medir a passagem enquanto
há um ‘ainda’? Parece se necessário que o tempo cesse, como no primeiro exemplo, para ser medido. Mas se no passado já não é, como é que o medimos? O
triplo presente, no cruzamento com a distentio animi, leva o problema ao paroxismo.
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Este exemplo recupera maravilhosamente a memoria o contuitus e
a exspectatio34 com a distentio animi, que os exemplos anteriores
não tinham conseguido enlaçar.
Há neste uma complexidade muito maior do que a continuidade
de som naqueles, que é a alternância entre sílabas breves e longas
no interior de um único verso. É preciso reter a breve a aplicála sobre a longa. Mas se a breve já deixou de ser a longa ainda
não é, como pode efectuar-se esta aplicação? É que da breve, pela
memória, ficaram vestigia na alma, e da longa, pela expectação, já
há vestigia na alma; isto permite comparar, aplicar sílabas breves
sobre as longas. Não são elas então em si mesmas que são medidas,
mas as impressões que ficaram gravadas na alma35 , sabendo nós já
que não devem nada ao movimento exterior.
Pode assim Agostinho exclamar: “In te, anime meus, tempora
metior.” É na alma que se resolve este enigma esfíngico da realidade do tempo. A memória, ventre da alma, dilata-se, recolhendo
impressões na passagem36 . Adiante-se que é uma memória onto34
Conf. XI, 20.
“Non ergo ipsas, quae iam non sunt, sed aliquid in memoria mea metior,
quod infixum manet.” Conf. XI, 27. Refere P. R ICOEUR, TR I, p.37, a este
propósito: “Encontrámos o presente do passado, herdado da análise que resolvia o primeiro enigma - e com esta expressão todos os embaraços da imagemimpressão, do vestigium. A vantagem é, todavia, imensa: sabemos agora que a
medida do tempo não deve anda à do movimento exterior. Por outro lado encontrámos, na própria alma, o elemento fixo que permite comparar os tempos
longos e os tempos breves: com a imagem-impressão, o verbo que importa não
é passar (transire), mas permanecer (manet). Neste sentido, os dois enigmas o do ser/não-ser e o da medida do que não tem extensão - são resolvidos ao
mesmo tempo”.
36
Conf., XI, 28: “Vou recitar um hino que aprendi de cor. Antes de começar,
a minha expectação estende-se a todo ele. Porém, logo que o começar, a minha
memória dilata-se, colhendo tudo o que passa de expectação para o pretérito.
A vida deste meu acto divide-se em memória, por causa do que já recitei e em
expectação, por causa do que hei-de recitar. A minha atenção está presente e
por ela passa o que era futuro para se tornar pretérito. Quanto mais o hino se
aproxima do fim, tanto mais a memória se alonga e a expectação se abrevia, até
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lógica, como à frente desenvolveremos. Não é uma mera instância mnésica, psicológica, pois que essa dimensão psicológica foi
colhida na sua insuficiência, obrigando a “transpor essa força da
natureza” para um plano transpsicológico, portanto metafísico37 .
É precisamente por isto que Ricoeur, logo em Temps et Récit I,
não aceita as conclusões agostinianas38 , explicitando melhor essa
recusa Temps et Récit III 39 . É dentro do problema mais geral da
mútua ocultação entre a perspectiva cosmológica e a perspectiva
fenomenológica do tempo que Ricoeur enquadra o que entende ser
a aporia fundamental de S. Agostinho: a este não restou outra solução senão opor às “doutrinas cosmológicas” a “distentio animi”. E
tal alma, como ficou dito, de modo nenhum poderia ser uma alma
do mundo, como Plotino pretendia, mas unicamente uma alma individual, contributo maior da experiência e reflexão cristãs. Ora, a
aporia parece manter-se insolúvel porque Agostinho afirma que o
tempo começa com as coisas criadas, tempo das criaturas. Como
pode, pois, dizer que não é pelos processos cosmológicos, mas na
alma que media o tempo?40
que esta fica totalmente consumida, quando a acção, já toda acabada, passar
inteiramente para o domínio da memória.”
37
Cf. Conf., X, 8. E. G ILSON, Introduction à l’étude de saint Augustin,
Paris, Vrin, 1949, p.256: “Há, deste modo, para além do problema psicológico
do tempo, um problema metafísico que condiciona a solução. O que é a nossa
incapacidade de perceber simultaneamente e na unidade de um acto indivisível,
é primeiramente para as coisas a incapacidade de existir simultaneamente na
unidade de uma permanência estável.”
38
Cf. TR I, pp.40-41. Aqui Ricoeur mostra porque é que a solução agostiniana é “um enigma”. Além disso, “o exemplo privilegiado da recitação de um
verso ou de um poema serve para agudizar o paradoxo, em vez de o resolver.”
TR I, p.85.
39
TR III, p.352.
40
Idem, pp.352-353. “E, todavia, a meditação sobre o começo da criação
conduz Agostinho a confessar que o tempo começou com as coisas criadas; ora
este tempo não pode ser senão o de todas as criaturas, num sentido, pois, que
não pode ser explicitado no quadro da doutrina do livro XI das Confissões, um
tempo cosmológico.”
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O salto agostiniano não agrada a Ricoeur na medida em que lhe
parece ser uma fuga ao problema. Ricoeur tem medo de ‘perder
o pé’ se se abandonarem as mediações exteriores (cosmológicas,
históricas, culturais, simbólicas...). De facto, interroga-se Ricoeur,
como seria possível medir a espera ou a lembrança sem se apoiar
sobre ‘marcas’ que delimitassem o espaço percorrido por qualquer
móvel, ou seja, sem levar em linha de conta com a mudança física
no espaço?
A “distentio animi” não soluciona assim o problema. Ou melhor, nenhuma solução especulativa pode resolver o problema. O
tempo resiste a todas as investidas do pensar. Por onde deve, então,
processar-se o acesso à identidade narrativa? É transitando para
uma poética onde se cruzem a história e a ficção, isto é, as marcas
exteriores de um tempo calendarizável e a interpretação na mimèsis
narrativa .
Este é, aliás, entende Ricoeur, o convite do próprio S. Agostinho ao afirmar que o que acontece no exemplo do cântico e em cada
uma das suas partes menores (versos, sílabas) também se aplica às
acções mais longas, à vida do homem, cujas partes são as suas acções, e em toda a história “dos filhos dos homens”, de que cada vida
é apenas uma parte41 . “Todo o poder do narrativo está aqui virtualmente manifesto: desde o simples poema, passando pela história
de toda uma vida, até à história universal.” 42 Isto é verdade, mas
com isso Agostinho apenas pretende realçar exactamente a instabilidade de todo o tempo dado aos filhos dos homens.
Se S. Agostinho não insistisse na falha ontológica que esta transiência revela e, por outro lado, valorizasse mais cada porto de
passagem, creio que Ricoeur não teria dificuldade em ver nessa
viagem, exactamente, a função narrativa pela qual se chega à identidade narrativa.
Por isso, aquilo que ele apresenta como aporia (enigma!) do
41
42
Cf. Conf., X, 28.
TR I, p.41.
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José M. da S. Rosa
pensamento de Agostinho, e donde parte para estabelecer a configuração de uma identidade narrativa, é bastante problemático. Ele
mesmo o reconhece. Afirma explicitamente que “isolada da meditação sobre a eternidade pelo artifício metodológico que eu confesso, a análise agostiniana do tempo oferece uma carácter altamente interrogativo e mesmo aporético. (...) É preciso, talvez, chegar a dizer que o que se chama a tese agostiniana sobre o tempo,
e que facilmente qualificamos de tese psicológica (...) é ela mesma
mais aporética do que Agostinho admitia.” Esta tese se é correcta
no que diz, é incorrecta no que omite, porque é exactamente pela
aporia psicológica que se é obrigado a passar para outro nível. Ricoeur acha que se devem separar a reflexão sobre a eternidade e
a reflexão sobre o tempo porque o encadeamento entre a análise
do tempo com a meditação sobre a eternidade dá à busca agostiniana um tom de gemido esperançado, que retira acuidade dramática à questão do tempo. Afastando a “meditatio aeternitatis”
resta a questão do tempo, nua e crua, configurada como narrativa
onde se cruza a história e a ficção, como acima dissemos. Ora,
não me parece que seja de aceitar sem mais esta divisão, ainda que
metodologicamente 43 , nem tão-pouco a afirmação de que não há,
verdadeiramente, em Agostinho uma “fenomenologia do tempo”44 .
E isto não só pelo corte na leitura do livro XI, que Ricoeur
opera, mas porque a leitura de Confissões XI supõe a leitura do
livro X, sem o que é incompleta. Os palácios da memória agostiniana têm muitas moradas, umas abertas para o exterior, outras
totalmente interiores, e outras “mais interiores que o próprio interior” onde está presente aquele que era “interior intimo meo et
43
Joaquim Cerqueira G ONÇALVES, art.cit., p.33: “(...) a alma das Confissões, distendendo-se na memória mergulha na transcendência, por aprofundamento de si própria”.
44
TR I, p.21. A justificação é de que em Agostinho não há descrição sem
discussão. “...é extremamente difícil - e talvez impossível - isolar um nó fenomenológico da ganga argumentativa.”
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Da Identidade Narrativa. P. Ricoeur, leitor...
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superior summo meo”45 . É esta profundidade ontológica, apesar
do inquestionável valor da sua reflexão e da sua aliciante solução,
que, em nosso entender, Ricoeur não alcança.
2. O Acesso à Identidade Narrativa
segundo P. Ricoeur
Todo o ser humano, exactamente por ser humano e sob o risco de
não chegar a ser humano, acede à sua identidade – ou, se quisermos, à sua verdade46 , “lugar procurado de fusão entre história e
ficção” –, por uma mediação fundamental que P. Ricoeur chama
“função narrativa”47 . Já M. de Unamuno, ao abrir O Sentimento
Trágico da Vida, afirmava, a propósito da ausência das biografias
dos filósofos nas Histórias da Filosofia, que sem “a íntima biografia dos filósofos” pouco se compreende, porque “é ela, essa íntima
biografia, a que mais coisas nos explica”. Vai nesta mesma linha a
hodierna revalorização epistemológica das autobiografias, das memórias, etc. Cada vez mais, nesse acto de narrar ou narrar-se,
se configura uma atitude segundo a qual o conhecimento de si é
uma interpretação. Só a biografia e não a biologia compreende a
vida. Por isso mesmo, “a identidade narrativa (individual ou histórica) é o lugar procurado da fusão entre história e ficção”. As
45
Conf., III, 6.
Esta parece ter sido um intuição temporã em Ricoeur. Já em 1951, no
artigo “Verdade e Mentira” que aparece em Histoire et Verité, Ricoeur entrelaça
intimamente a tarefa hermenêutica com a realização da verdade. Esta, ínsita
no próprio trabalho filosófico, é “‘solidária de todo um trabalho que consiste
precisamente em elaborar o facto como facto, a estruturar o real’. A ideia é
constante: a verdade é uma tarefa, uma ‘actividade’, antes de ser a qualidade
do enunciado verdadeiro.” Cf. Michel R ENAUD, “O discurso filosófico e a
unidade da verdade nas primeiras obras de P. Ricoeur, in Revista Portuguesa de
Filosofia 46 (1990/1), p.25.
47
C.f., P. R ICOEUR, “L’identité narrative”, Esprit, no 7-8, (1988), p.295.
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vidas humanas “são legíveis quando são interpretadas em função
de histórias que as pessoas contam”.
O problema, porém, no entender de P. Ricoeur, é que, historicamente, foi-se constituindo um equívoco fundamental entre a identidade como mesmidade (idem, same, gleich) e a identidade com
ipseidade (eu, ipse, soi, self, selbst). Apesar disso, a ipseidade é
radicalmente diferente da mesmidade, afirma categoricamente P.
Ricoeur. E desta promiscuidade semântica múltiplas dificuldades
brotam quando tentamos aceder ao que possa ser uma identidade
narrativa.
De que modo, pois, é que a mesmidade é identidade de molde a
poder explicar-se a equivocidade generalizada? É sobretudo, num
primeiro momento, por influência directa do discurso científico.
De facto, as leis da ciência, os princípios necessários e universais
estabelecem um quadro de referência que se opõe directamente à
pluralidade. Do singular não há ciência, segundo a lição aristotélica. É pela violência em face da diversidade que a ciência se
constitui já desde os milesianos, poderíamos dizer, porque, simplesmente, reduzem a um mesmo nome duas ou mais ocorrências
diversas, pelo recurso a uma causa ou um princípio explicativos
fundamentais. A categoria, o predicamento universal, a espécie,
as substâncias segundas são o triunfo – valioso noutra ordem de razões –, de uma lógica que só compreende a realidade congelando-a.
Por outro lado – muitas vezes por influência directa da experiência jurídica –, amiúde a semelhança passa por critério mais
ou menos difuso de identidade. Assim acontece, por exemplo, se
duas pessoas vestirem roupas de tal modo idênticas, que possam
ser confundidas entre si por quem as observa (v.g., num processo
onde uma testemunha tenha de reconhecer, por índices exteriores,
a identidade de uma pessoa). Ao limite, o caso dos gémeos monozigóticos, a destrinça pode tornar-se quase impossível.
Além disso ainda, e este é talvez o ponto fundamental e que
mais dá o flanco à confusão, também ao nível da mesmidade se
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verifica uma continuidade ininterrupta no desenvolvimento de um
ser entre o seu primeiro e último estádio metamórfico. Dizemos
que aquela árvore é a mesma de há três anos atrás porque está no
mesmo lugar; porque acompanhámos mais ou menos de perto a sua
evolução, porque assistimos à queda da sua folha no Outono e ao
desabrochar das vergônteas na Primavera, porque há uma permanência relativa da forma, etc. O mesmo se diga de um animal, ou
até no próprio desenvolvimento biológico do homem. Esta continuidade, isto é, a permanência no tempo, a que se opõe a discontinuidade, suporta que se possam narrar “as suas histórias”. Todavia, com rigor, só o homem tem história. O que acontece é que
da permanência no tempo, da mesmidade do processo, muitas vezes se transita, subrepticiamente, para a linguagem da identidade
pela projecção da trama narrativa que apenas é significativa para
quem narra. “Vejo nas intrigas que nós inventamos o meio privilegiado pelo qual reconfiguramos a nossa experiência temporal
confusa”48 . Esta é tese fundamental que Ricoeur apresenta e que
tentará provar ao longo de toda a obra Temps et Récit: ou seja, o
carácter temporal da existência só se torna tempo humano (significativo) pela função narrativa.
Ora, o problema surge porque a ipseidade recobre e é recoberta, parcialmente, pela mesmidade. De facto, seria impossível
uma identidade sem um mínimo de mesmidade. Mas como é que o
‘eu’, a ipseidade se cruza equivocamente com a mesmidade? É na
natureza da questão para qual o ‘eu’, a ipseidade, é a resposta, que
devemos procurar. E que questão é essa? É a pergunta ‘Quem?’
(‘Qui?’), que nunca deverá confundir-se com um ‘Que...?’. A resposta passa, in radice, pelo domínio da acção. É esta questão que
colocamos sempre que perguntamos pelo agente, pelo autor da acção, pelo espoletador de uma nova situação ao nível da narrativa,
etc. Perguntamos: “Quem fez isto?” e quando identificamos o
agente adscrevemos-lhe a acção. A acção é dele, não é do seu
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braço, da sua perna. É dele! Pertence-lhe propriamente. E só se
se verificar esta pertença radical é que pode haver, por exemplo,
imputação jurídica ou moral. Ao nível do conto teríamos aqui uma
obra apresentada na terceira pessoa. Contudo, pode ser uma adscrição da acção a um primeiro: posso dizer: “É minha!” E teríamos
a confissão. Isto é, uma adscrição da acção à primeira pessoa. Ou
ainda na linguagem dos preceitos bíblicos – “Não matarás!”, “Não
farás imagens!”, em que adscreve a acção à segunda pessoa. Esta
adscrição é sempre e só possibilitada pela ipseidade e nunca pela
mesmidade, porque esta não suporta a responsabilidade, a necessidade de responder pela acção. Há pois uma corte lógico, epistemológico, gramatical e ontológico que separa o idem do ipse. De
acordo com Ricoeur, em linguagem heideggeriana, poderíamos dizer: “Só o Dasein é meu; ou melhor só o Dasein é ‘eu’”. As coisas
dadas, manipuláveis, podem ser ditas mesmas no sentido de uma
identidade, de um idem, mas nunca ipseidade.
Ora, o eu está na rota das coisas, isto é, intersecta-as, não ao nível da unidade visada pela ciência, nem na semelhança, mas, fundamentalmente, intersecta-as na permanência no tempo. As coisas,
os animais, as plantas, o eu, permanecem coetâneos no tempo. Mas
então que espécie de permanência no tempo convém a um eu, a
uma ipseidade, de modo a que se possa distinguir da permanência
no tempo do idem?
Para P. Ricoeur as notas que tornam este tempo da ipseidade
diferente do da mesmidade são exactamente a possibilidade de adscrição de acções, uma certa constância no carácter, a possibilidade
e imputação jurídica e moral, e sobretudo a fidelidade na manutenção de promessas. É muito interessante esta noção de manutenção.
Etimologicamente vem de manus+tenere, isto é, o que o homem
tem na mão. O que ele tem na mão é manter a promessa. Já Nietzsche (com outro escopo, evidentemente) insistia neste ponto: o
homem é um animal de promessas. A diferença vem, pois, pela
constituição de um tempo humano, diferente do tempo do relógio
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Da Identidade Narrativa. P. Ricoeur, leitor...
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ou do dos movimentos dos astros, mas também diferente de um
tempo ontologicamente deficiente (mutabilidade, impermanência
e transiência agostinianas) e que por isso se lança logo para a eternidade.
As dificuldades no tratamento da identidade pessoal advêm exactamente da confusão destas duas dimensões, da confusão destes
dois tipos diferenciados de permanência no tempo. Sem entrarmos propriamente na descrição destas aporias que ele critica, v.g.,
na obra de Derek Parfit 49 , em primeiro lugar por viverem de um
universo por ora virtual50 e em segundo lugar porque essa identidade, assente exclusivamente num critério psicológico e corporal
de identidade, vive exactamente da confusão entre a mesmidade e
a ipseidade. Ora, o que permite superar todas estas aporias é o acto
de contar, de narrar. Este acto é a chave de conexão com a vida, é
a “unidade narrativa de uma vida”, numa expressão que P. Ricoeur pede de empréstimo a Alsdair McIntyre. É o conto, enquanto
totalidade de sentido, que constrói o carácter durável da personagem, numa intriga. A vida, a nossa vida e nossa obra, é nem mais
nem menos este conto, esta história. Aliás, a história da literatura
mostra-nos precisamente essa galeria infindável de vidas reais e
possíveis. Mesmo uma certa literatura contemporânea51 que tentou operar esta cesura pela redução do homem ao anónimo, a um
homem sem propriedades, cai ela mesma num círculo. Se ao limite
o homem, pelo seu carácter anónimo se torna inomeável, inidentificável, como em Musil, isso vem corroborar, exactamente ínsita na
narrativa – que P. Ricoeur pretende como modelo de presença da
ipseidade –, a postura que confunde a ipseidade e a mesmidade. Só
49
Reasons and Persons, Oxford, Oxford University Press, 1986, op.cit. em
“L’identité...”,p.299. Aporias falsas, de resto.
50
Seria necessária uma ciência infinitamente mais desenvolvida do que a actual para se poder falar, eventualmente, de transplante de cérebros, ou fabricação
de cérebro iguais, por clonagem, de tele-transporte, etc.
51
Ricoeur dá como exemplo Robert M USIL, em O Homem sem Qualidades
(cf. trad.port. na col. “Livros do Brasil”, 3 vols., Lisboa, s.d.)
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que, aduz Ricoeur, esse como que não-sujeito, esse quase-sujeito
negativo e inominável, mesmo na figura invertida de um sujeito,
ainda pode perguntar: “Quem sou eu? Nada, quase nada!” Mas
esta resposta à pergunta ‘Quem?’ revela ainda e sempre a irredutível presença de uma identidade narrativa. Ora, se, como Parfit
pretendia, a identidade é um “facto suplementar”, sem interesse,
porque é que a questão ‘Quem?’ permanece iniludível? E não é
possível elidir esta questão sem volatilizar concomitantemente o
próprio homem. Isto, contudo, não deve ser confundido com a
negação de um certo grau de mesmidade também àquele que é resposta à pergunta ‘Quem?’. A alternativa exclusiva entre ipse/idem
é uma falsa alternativa porque necessitamos de um mínimo de mesmidade para continuarmos a colocar a questão “Quem sou?”, como
acima se disse.
No Frei Luís de Sousa, de Garret, esta tese de Ricoeur aparece
exemplificada com uma nitidez inultrapassável e indesmentível. O
romeiro, à pergunta “Quem és tu?”, olha para o quadro pendente
na parede e responde: “Ninguém!”. Mas quem pode responder
“Ninguém!”? Só quem tiver uma história, uma vida, uma identidade constituída narrativamente, ainda que a própria trama trágica
a leve a ter que negar-se. Mas esse negar-se é então, aí, a acção
suprema, o lugar sacral, fons et origo da narração. Isto é, o eu,
não-mesmidade, mas ipseidade. Trágica e paradoxalmente, vemos
que é no próprio processo de desidentificação, de despojamento,
que se atinge o verdadeiro locus identificador.
Aquele ‘ninguém’ é como que um nó aporético que a poética
narrativa desata. É por isso que o nome por si só não é identificador. É preciso percorrer todos os momentos desse nome, narrar
a história de vida, a sua obra, o seu texto. Só a história narrada
diz o ‘quem’ da acção. Daí a necessidade de passar de um “tempo
prefigurado a um tempo refigurado pela mediação de um tempo
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configurado”52 onde a imaginação, ou uma “poética da vontade”53
assume papel de relevo. Tal papel reconfigurador da imaginação
inicia-se com a possibilidade da metáfora criadora de sentido. E
se, como refere Aristóteles, “metaforizar bem (...) é perceber o semelhante”54 , então a ficção narrativa imita, redescreve ou ‘recria’
a acção humana, como primeira forma de compreensão. Mas não
é ainda muito limitada esta primeira reconfiguração, na medida em
que é espartilhada exactamente pelo seu objecto? “Na medida em
que a ficção se exerce nos limites de uma actividade mimética, o
que ela redescreve é a acção já aí (déjà la). Redescrever é ainda
descrever. Uma poética da acção pede coisa diferente de uma reconstrução com valor descritivo”55 . Exige-se pois um poder-fazer
o novo, uma imaginação criadora, como dissemos. Ou nas palavras de Ricoeur a imaginação da inovação semântica, antecipadora
e lúdica56 .
Mas perguntemos nós a Ricoeur: isso bastará? Não será esta
identidade narrativa, de facto irredutível, ainda o grande e inultrapassável obstáculo de acesso ao novo? O subtil ídolo que verdadeiramente mais nos oculta que nos revela? Não será ela o óbice ao
advir do sentido diferenciado, na medida em que uma história, uma
52
TR I, p.87.
TA, p.213.
54
Idem, p.218.
55
Idem, p.223.
56
P. R ICOEUR, “L’identité...”,p.304: “A refiguração pela narração confirma
este traço do conhecimento de si [soi] que vai além do domínio narrativo, a saber, que o eu [soi] não se conhece imediatamente, mas somente indirectamente
pelo rodeio dos sinais culturais de todas as espécies que se articulam sobre as
mediações simbólicas que já articulam sempre a acção e, entre elas, as narrações da vida quotidiana. A mediação narrativa sublinha o notável carácter de o
conhecimento de si ser uma interpretação de si. A apropriação da identidade do
personagem fictício pelo leitor é um dos exemplos disso. O que a interpretação
narrativa traz como peculiar é, precisamente, o carácter de figura do personagem
que faz que o eu [soi], narrativamente interpretado, se encontre ser ele próprio
um eu figurado – que se representa desta maneira ou daquela.”
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narrativa, tende a aglutinar no sentido já-feito o ainda por-fazer? O
facto de as ficções serem miméticas não significa que são ‘cópias
em segunda mão’ da acção? Qual pode ser, por isso, a sua força de
verdade? Não sofreremos inelutavelmente da ilusão retrospectiva
que nos leva a projectar no futuro o sentido atribuído ao passado?
Ou, analogicamente, recorrendo a esse grande paradigma da literatura universal: não implica essa identidade o ter de regressar da
santa Ílion para Ítaca, pelo mesmo caminho de ida de Ítaca para
Tróia? Mas se assim fora – se a identidade narrativa determinasse
o porvir –, não teria o solerte Ulisses, ‘de mil artifícios’, passado
por tantas peripécias e desventuras. Para falar rigor, não teria uma
história. Se a narrativa como unidade de sentido determinasse o
novo como não ver nessa ipseidade – identidade narrativa – sempre e ainda a mesma ipseidade e, por tanto, um retorno mais subtil
da mesmidade?
Será, realmente, a permanência no tempo o nó que, desatado,
trará a solução ao problema da permixtio entre a mesmidade e a
ipseidade? Que permanência é esta que Ricoeur aduz? Por um
lado como ainda vemos em Temps et Récit III, Ricoeur afasta-se de
Agostinho porque não lhe basta o tempo psicológico e cosmológico – tal como a Agostinho não bastava –, mas também não aceita
o salto para um plano transpsicológico, metafísico, a que chegamos por algo que, agora podemos dizê-lo, será mais do que uma
simples reductio ad absurdum, porque é o lugar de tangência com
a eternidade.
Mas será que o facto tempo agostiniano ser um tempo ontologicamente deficiente e, nesse sentido, esperançado e desejoso de
eternidade, retira verdade à história e às histórias humanas? Será
que a tangência com a eternidade elide o valor do tempo humano,
elide a questão do homem? Não será só a essa luz que o tempo
pode valer exactamente o que vale? Não nos parece que nisto Ricoeur contrarie Agostinho, ou vice-versa. O que acontece, a nosso
ver, é que um diz mais do que outro. P. Ricoeur acompanha Agoswww.lusosofia.net
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tinho até ao capítulo 28, do livro XI, quando Agostinho aceita a
transferência e a aplicação do exemplo do ‘canto recitado de cor’
às acções mais curtas e mais longas, à vida do homem, à história
dos homens, à história universal57 , e aí abandona-o, apesar de referir que toda a sua obra (a dele próprio, Ricoeur) nada mais é que
o desenvolvimento desta sugestão agostiniana. Tergiversa, porém,
da orientação do autor de Confissões; pretendendo fazer mais jus
ao humano, acaba por ficar demasiado humano, quer dizer, tem
medo de perder o ‘eu’ que combate por outro lado no paradigma
reflexivo e evidente do ‘cogito’.
A imensa riqueza das reflexões de Ricoeur fica, a nosso ver,
bastante enfraquecida 58 pela limitação das aportações sociológicas, psicológicas, literárias, culturais, pelo âmbito da memória social e histórica, exclusivamente vígil e mnésica. A identidade narrativa com que nos deparámos, mesmo na sua dimensão de projecto, é uma frágil categoria prática da imaginação. A memória
agostiniana, em nosso entender, recupera tudo isto e vai muito
além. Todas as mediações culturais são aproveitadas e, no mesmo
movimento, transcendidas59 . O pensar agostiniano é ousado e prospectivo. O pensamento de Ricoeur, mau grado toda a sua riqueza
e erudição, no fundo, é um pensar pouco corajoso, vivendo da gestão integradora do acontecido, com o qual espera mimeticamente
o inesperado. A novidade é pensada em termos de uma acoplamento coerente com o passado. E talvez nisso, apesar de lealmente
57
Conf., XI, 28: “Ora, o que acontece em todo o cântico, isso mesmo sucede
em cada uma das partes, em cada uma das sílabas, em cada acção mais longa
- da qual aquele cântico faz parte - e em toda a vida do homem cujas partes
são os actos humanos. Isto mesmo sucede em toda a história ‘dos filhos dois
homens’, da qual cada uma das vidas individuais é apenas uma parte.”
58
Já não subscrevemos, hoje, sete anos volvidos, esta crítica apressada que
então fizemos ao autor.
59
O que pode ser confirmado pela pergunta feita, em Conf. X, 6, aos quatro
elementos (terra, água, ar e fogo) – uma forma simbólica de dizer que é uma pergunta feita a todas as realidades cósmicas, incluindo todas as medições culturais
–, e pela resposta negativa dos mesmos.
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pretender ser fiel ao humano, ao histórico, ao encarnado, à mediação, se acabe por trair verdadeiramente o humano. Porque o
homem tem talvez um destino mais que humano. A sua identidade
está alhures, não cruzamento da história e da ficção, mas no toque com a eternidade que jamais anula o tempo mas o transfigura
(transfiguração é a figura que falta em Ricoeur). Assim, ao atribuir à imaginação “a competência [para] preservar e identificar a
diferença entre o curso da história e o curso das coisas”60 , Ricoeur visa dar ao humano e às suas mediações o lugar central que
as múltiplas ‘machadadas’ (cosmológica, biológica, psicológica,
histórico-sociológica, axiológica) lhe tinham retirado. Nesta perspectiva, a sua reflexão recentradora e revalorizadora da história,
em face dos pós-modernos discursos sobre ‘vazio humano’, ou do
neo-hegeliano ‘fim da história’, é digna de mérito. Mas, apesar do
gemido saudoso de eternidade, e exactamente por causa dele, também o projecto de Agostinho foi de plena fidelidade ao humano. O
‘vazio’ dessa palavra gasta – homem, esse “grande profundum”61 –
impressionou tanto o filho de Mónica que todo o seu esforço foi um
intento de doação de sentido à verdadeira questão humana: “...et
animam scire cupio!”
60
61
Du texte a l’action, p.227.
Cf. Joaquim Cerqueira G ONÇALVES, art.cit., p.131.
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II - O ❦❛✐rì❝ da Identificação, segundo
Agostinho de Hipona
1. Enquadramento
A narrativa na primeira e na segunda pessoas, como se fora uma
‘autobiografia espiritual’, é o modelo interpretativo por excelência
que perpassa a obra de S. Agostinho, mormente nas Confissões.
Com 45 anos, mais ou menos, escreve esta obra, olhando para trás
e reinterpretando todo o seu percurso como uma grande viagem
marítima62 . Poderemos mesmo dizer que, do horizonte em que
se situa, S. Agostinho interpreta toda a história dos homens como
uma grande viagem – ou com a declamação de um poema que só
se cumpre com o pronunciar da última sílaba –, uma viagem que é
simultaneamente criação e busca de sentido.
De facto, Agostinho não se encerra nos limites da sua particularidade, da sua experiência subjectiva. Fala na primeira pessoa
do plural – “fecisti nos ad te et inquietum est cor nostrum...” –,
fala em nome do homem, como que erigindo a sua experiência, de
algum modo, em experiência universal.
Assim, a leitura retrospectiva que faz, o olhar que lança para
o seu passado, é um olhar reconhecedor do sentido que perpassara
cada momento que vivera, sentido esse que nessa altura lhe escapara. E agora, tendo ganho altura, vê os caminhos trilhados e neste
ver vai o próprio sentido desses passos. Nesta narração percebe-se
que é a vida toda de Agostinho que se joga. Não é uma narrativa diletante ou ficional, por mais que recorra à retórica. Torna-se nítido
62
Cf. De Utilititate credendi, VIII, 20; De Beata vita, I, 1-5; Conf., VI, 11;
Contra Academicos, I, 1, 1
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que confessar é nele a instância decisiva do sentido. A adscrição
das acções de Deus a Deus, e das suas a si e a Deus.
À luz da sua fé, podemos mesmo dizer que essa viagem começa muito antes de ele se dar conta dela. Isto é, a sua identidade
narrativa precede-o. O ‘fecisti’ exprime a noção judaico-cristã de
criação e, simultaneamente, em termos ontológicos, a superveniência do Ser que se modaliza em seres. Por isso, algo precede a
viagem. Aquele ímpeto que perpassa os seres e os leva continuamente a lançar velas, a avançar, é esse constitutivo anelo de unidade, essa nostalgia radical, essa inquietude a que nada basta até
ter aquilo que unicamente lhe basta. A vida não nos pediu licença
para sermos. Gnosiológica e cronologicamente, chegamos sempre
muito tarde, mas não tarde de mais, como queria Hegel. Ainda há
algo de novo: trazer o mundo já permeado de sentido à linguagem,
para lhe dar mais sentido.
A postura agostiniana é neste sentido originária e radicalmente
criacionista. Fomos dados, fomos lançados neste mar, expressão
que percorre as Confissões. Estamos na dimensão do já. Contudo
este já não é pleno, é inquietude e por isso somos idêntica e simultaneamente ainda-não. Já somos e ainda-não somos. Eis o
que exige enfunar velas, avançar, dar sentido, interpretar. Nesta
luz-sombra, neste cambiante vivia Leonardo Coimbra ao dizer que
a vida é uma contínua opção entre caminhos que se vão entrecruzando. E ao escolher um, segue-se por ele fora com a saudade de
todos os que se deixaram, que poderiam ter sido igualmente escolhidos e não o foram. E criar é consentir nisso. E a verdadeira saudade não fica a cismar nesses caminhos que poderia ter percorrido.
A lembrança é o mesmo ímpeto para continuar fazendo caminho,
“lançando ao céu fios de desejo e sonho”, e por isso é criadora.
Todas estas imagens percorrem o pensamento de Agostinho.
Ele é um pensador de ‘metáforas vivas’. Excesso de um pensar
que não cabe nas palavras feitas, e que por isso cria constantemente sentido, forja metáforas prenhes de experiência. É verdade
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que a metáfora dinâmica da viagem, em termos literários, estava já
disponível. E S. Agostinho, apesar de não ter sólidas bases da língua grega, conhecia bem a Odisseia de Homero e, melhor ainda, a
Eneida de Virgílio, sendo simultaneamente um exímio conhecedor
da poesia latina que amiúde cita. A viagem como modelo configurador de uma totalidade de sentido prestava-se, pois, a uma dúctil
apropriação. É óbvio que o nosso autor, excelente professor de retórica, dominava toda essa estilística. Recupera, portanto, a trama
narrativa de Ulisses e de Eneias e dá-lhe um alcance ontológico,
universal. O homem é um ser embarcado que, de porto em porto,
tende para a enseada última, para o sabath perfeito. Do Génesis
ao Apocalipse, figuração da história universal, o tempo é demanda
e tensão por mais ser. Se a experiência agostiniana é universalizável, talvez aí resida parte da sua grandeza. Porque ele também
não assume, exclusivamente, a visão do filósofo, do teólogo, do
historiador, do esteta, do professor de retórica, do homem de fé, do
cristão. É isso mais um suplemento de alma. Daí que o modelo
de identidade auto-reflexivo iniciado com Descartes e que ganha
cidadania absoluta com de Hegel não lhe sirva. Isto não significa,
de modo nenhum, que não haja auto-reflexão em Agostinho, Muito
pelo contrário. E basta passar os olhos pelas Meditações de Filosofia Primeira, de Descartes, para compreender que ali lateja Agostinho. Só que essa auto-reflexão interpretativa é em Agostinho uma
respiração vital, uma respiração da alma, toca homem todo.
De algum modo, certas linhagens da fenomenologia captaram
esse sentido eminentemente agostiniano, como aliás Ricoeur afirma63 . Por exemplo, Merleau-Ponty assevera que um sujeito apenas
adquire identidade quando é olhado como sujeito de uma história.
Ele apela exactamente para a recuperação do sujeito como actor,
sujeito de um drama que coincide com o drama do corpo próprio.
É este drama que configura a intriga narrativa, ou a trama a que
o salmista, nostalgicamente, alude: “Eu vivia a minha vida, mas
63
TR I, p.34.
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cortaram-me a trama! ” Ou seja, cortaram-lhe o sentido, a possibilidade de um sentido, interromperam-lhe a viagem.
Ao narrar a sua viagem, Agostinho deita mão a tudo. Por isso
nele a antítese, ainda que parcial, entre mesmidade/ipseidade ainda
não faz absoluto sentido, como veremos já a seguir. De facto, em
P. Ricoeur a primeira grande configuração da mesmidade, geradora de equivocidade, era a da unidade científica, a da busca de
uma universalidade conceptual lógica, oposta à pluralidade. Curiosamente, em Agostinho esta cesura também aparece na oposição
estabelecida e scientia e sapientia, sendo contudo resolvida. A primeira, a partir do plano da imutabilidade matemática, das leis dos
números e da geometria, tem como objecto o temporal, os meios,
os problemas. A segunda, a partir de um imutabilidade metafísica,
que neste porto da viagem Agostinho já identificou com um Quem,
tem como objecto o eterno, o fim último, o destino e o sentido
do homem condensados neste proposição: “Noverim me, noverim
te!”64 .
Contudo, se estas duas ordens, a da mesmidade da ciência e a da
ipseidade de um ser que busca a felicidade parecem opostas, isso é
apenas aparente. Já no De Libero Arbitrio o trânsito para chegar até
Deus, no livro II, tem como trampolim fundamental exactamente
a mesmidade das leis matemáticas; a mesmidade da verdade. Só
que esta verdade ainda não é aí concebida como realidade pessoal,
como fará nas Confissões. Aqui, recolheu-se ao coração, como ele
diz. “Entrei e, com aquela vista da minha alma, vi, acima dos meus
olhos interiores e acima do meu espírito, a Luz imutável. (...) Essa
Luz não permanecia sobre o meu espírito como o azeite em cima da
água, ou como o céu sobre a terra, mas muito mais elevada, pois
ela própria me criou e eu sou-lhe inferior, porque fui criado por
ela”65 . Isto é, aqui, aquilo que P. Ricoeur chamaria a mesmidade
64
65
Soliloquia, II, 1, 1
Conf., VII, 10.17
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da ciência é assumido por uma ipseidade, a rigor a única ipseidade,
que transfigura essa mesmidade.
Ou como afirma, E. Gilson66 “É capital para a inteligência do
agostinismo o facto de que S. Agostinho jamais tenha separado a
sabedoria, objecto da filosofia, da felicidade. O que o preocupa
é o problema do destino do homem. Chegar a conhecer-se, para
saber o que há a fazer, para ser melhor e se é possível ser feliz:
aqui reside para ele todo o problema. É verdade que S. Agostinho busca a verdade para ser feliz, mas nunca pensou que fosse
possível uma felicidade separada da verdade”.Ora, como por esta
felicidade se entende o sentido total da vida, poderemos afirmar
que aqui a mesmidade não está em litígio com a ipseidade. Só a
mesmidade da ciência moderna e suas posteridades se assumiram
em claro confronto com a ipseidade. Por isso, ainda que implicitamente, afirmar que o tempo da alma, sendo o tempo também
uma criatura, depende, de algum modo, dos processos físicos exteriores, fenda por onde entraria a equivocidade entre ipseidade e
mesmidade, é fazer uma leitura orientada de acordo com as opções
prévias que se fizeram.
O segundo óbice, em Ricoeur, à constituição de uma identidade
narrativa era o da confusão entre ipseidade e semelhança. Sem
dúvida que Ricoeur aqui concorda com Agostinho. Por vezes a
semelhança, não apenas no sentido jurídico aduzido por Ricoeur,
mas num sentido ontológico, em Agostinho, pode obstar, mas não
necessariamente, que se atinja a ipseidade. Contudo pode ser também um degrau ou uma etapa da viagem e, nesse caso, assume
sentido eminentemente positivo.
Cumpre dizer, desde já, antes de avançarmos que a semelhança
em Agostinho, sendo uma questão teológica e antropológica (o homem como imago Dei) é simultaneamente uma questão ontológica
expressa pela noção de participação dos seres no Ser. Os seres
contingentes são pelo Ser. São, de algum modo, semelhanças do
66
Op.cit., pp.1-2
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ser. E, sendo-o, pode acontecer serem queridos como se fossem
o Ser, i.é, queridos como se fossem por si. Contudo, elas têm um
certo grau de mesmidade, exactamente por serem o que são. Esta
tensão constitutiva da relação Ser-seres perpassa as Confissões: “A
mesma evidência é a voz com que o céu e a terra nos falam. Vós,
Senhor, os criastes. Porque sois belo, eles são belos; porque sois
bom, eles são bons; porque existis, eles existem. Não são tão formosos, nem tão bons, nem existem do mesmo modo que Vós, seu
Criador. Comparados convosco nem são belos nem são bons nem
existem”67 .
Ora, quando se fica pela semelhança nunca se atinge o analogado primeiro da relação. Busca-se a identificação onde ela não
está. Corresponderia a ficar aprisionado, ou na imorredoira expressão agostiniana: “Ea me tenebant longe a te, quae si in te non
essent, non essent.” 68 . Esta retenção, esta paragem na viagem
que no fundo é um retrocesso, um definhar e um morrer ? “Onde
paraste, aí morreste!” —, é o óbice maior à identificação. Corresponderia a ficar pelas coisas quando elas próprias, sem poderem ser
resposta à pergunta do homem, i.é, sem ipseidade, clamam: “Mais
acima, mais acima! Anaxímenes está enganado!”69 . Ou seja, a semelhança é intrinsecamente bivalente: se a alma se fixa nelas, por
impossibilidade de conceber uma alteridade (foi o grande problema
de Agostinho ao transitar do maniqueísmo para o platonismo e cristianismo 70 ), como que fica ofuscada pela luz que as coisas têm pelo
facto de serem, como borboletas ofuscadas pela luz artificial de um
candeeiro, então dificilmente alcançará o o lugar e o momento da
67
Conf., XI, 4. Cf. Manuel Barbosa da Costa F REITAS, “O Ser e os seres, nas
Confissões de Santo Agostinho”, in Actas do Congresso Internacional As Confissões de Santo Agostinho, 1600 anos depois: presença e actualidade, Lisboa,
13 a 16 de Novembro de 2001, Lisboa, Universidade Católica Portuguesa, 2002,
pp. 527-551.
68
Idem, X, 27
69
Idem, X, 6
70
Idem, VII, 1
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sua identificação. Se, ao invés, vê as coisas como andaimes com os
quais se constrói algo de duradouro, aí sim, estamos no caminho
da identificação, e pela narração acedemos ao sentido e, como tal,
construímo-lo para nós.
O percurso que Agostinho reconhece ter feito tem pois um sentido: do exterior para o interior e do interior para o superior; “ab
exterioribus ad interiora; ab inferioribus ad superiora.”; “noli foras ire; in teipsum redi; in interiore homine habitat veritas: et si
tuam naturam mutabilem inveneris transcende et teipsum”71 . Temos, pois, aqui figurada uma topologia anímica fundamental; é esta
a orografia da alma. A viagem, a grande viagem, é a da interioridade. Tivemos que sair inevitavelmente de Ítaca para a Santa Ílion
e, náufragos de mil mares, anelamos pelas areias maternas. Esta
é, identicamente, a estrutura fundamental da ontologia platónica
e neo-platónica: processão e retorno, sendo o sentido dado pelo
termo. Ou, se quisermos, é também ainda a visão judaico-cristã,
guardadas as diferenças fundamentais. E por isso pensadores cristãos dos primeiros séculos, como S. Justino de Roma, S. Gregório
de Nissa, S. Agostinho, acolheram tão favoravelmente a filosofia
grega.
Mas avancemos um pouco mais na busca do lugar e do momento de identificação em Agostinho. Dizia Ricoeur que o ponto
de partida para a noção de ipseidade, constituindo esta o cerne de
uma identidade narrativa, estaria numa resposta questão ‘Quem?’,
concluindo que esta resposta era o ‘eu’ (soi). Só na possibilidade
adscrição da acção a este ‘eu’ estaríamos em presença de uma ipseidade. Contudo, este eu, uma vez que tinha como característica
fundamental a permanência no tempo, cruzava-se ainda aí com a
mesmidade da coisa.
Ora bem, façamos a mesma questão a Agostinho: ‘Quem?’
Que resposta encontraremos? Se formos fiéis ao pensamento agostiniano parece que apenas temos uma resposta: Deus e a alma.
71
Enarrationes in Psalmos, 154, 5; De Vera religione, XXXIX, 72.
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Nada mais? Nada mais! Nele a ipseidade supõe uma relação fundamental e estruturante com a identidade. Sem ela, impossível falar de ipseidade. A resposta de Agostinho cumpre tudo aquilo que
Ricoeur demanda para a constituição da identidade, mas vai mais
além. Aquilo que basta a Ricoeur não basta Agostinho. Pode-se redarguir que também Ricoeur valoriza a relação comunicativa como
mediação fundamental da narratividade. Mas em Agostinho não é
apenas a relação intersubjectiva, a acção comunicativa consensual,
ou ainda qualquer teoria do a priori comunicacional que operam a
mediação entre indivíduos e instituições. Estas acções comunicativas, é certo, tornam-se possíveis adentro da permanência no tempo
comum aos diversos actantes, como num romance. Mas são sempre actos comunicativos deficitários. Daí o seu carácter efémero,
in fieri, un entretien infini... E há, além disso, outro óbice. É que
se o critério para a identidade narrativa é a possibilidade duma permanência no tempo, isso é fundamental mas não chega, em Agostinho72 . O que vemos é que o kairós da identificação agostiniana vai
além desta configuração temporal. Não é que a dimensão psicológica do tempo, da sucessão interna de estados, não esteja presente
ou seja pouco importante. É mesmo indispensável, como os livros
X, e XI das Confissões atestam. Só que, sendo condição necessária
não é condição suficiente. A resposta à questão ‘Quem?’ leva-nos
também muito além de uma identidade meramente psicológica ou
histórica ou fictícia. Daí que o processo de identificação, supondo
o tempo, de algum modo lhe escape.
Se quisermos, de um modo necessariamente esquemático e,
como tal, redutor, até ao livro X das Confissões o modelo narrativo
72
E, neste sentido, ainda que Ricoeur desconfie dos modelos auto-reflexivos,
a verdade é que esta permanência no tempo constitutiva do seu sentido de ipseidade é ainda um claro enfeudamento ao sujeito e ao tempo kantianos: “representação necessária que constitui o fundamento de todas as intuições”; ou seja,
o tempo é o sentido interno que legitima a sucessão, logo a possibilidade de um
narrar sensé. Porque é “condição subjectiva indispensável”, ou noutra expressão
“a forma do sentido interno” (Crítica da Razão Pura, A31.A34).
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Da Identidade Narrativa. P. Ricoeur, leitor...
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é fundamentalmente o da presença temporal de uma consciência
a si própria. É assim que o surpreendemos a narrar aquele tempo
do qual ainda não se pode lembrar, e ao qual chegou pela confiança no testemunho das suas amas, dos pais, dos amigos; narrativa
essa que continua pela meninice traquina, pelo iniciar dos estudos
em Tagaste, depois Madaura, depois ainda em Cartago; é assim
que ele confessa, a Deus primeiramente, e a nós em segundo lugar,
como bebeu a fé cristã no berço materno, da qual depois o retórico se afastou, para peregrinar pelo maniqueísmo, academismo,
até aportar às praias do cristianismo pela mão de Ambrósio e das
orações de Mónica, depois da descoberta neoplatónica ter, de algum modo, preparado o caminho. É ainda, grosso modo, adentro
do modelo temporal ou psicológico que ele narra o inebriamento
de Cassicíaco, a decisão de retornar para África, a morte de Mónica, e a instalação em África. Cremos que é ainda a esse nível que
podem ser entendidos outros acontecimentos narrados nas Confissões, como, por exemplo, a ressonância que teve o célebre roubo
das pêras ao nível psicológico – apesar de Agostinho, vinte e tantos
anos volvidos, ampliar retoricamente a interpretação desse acontecimento. “Sozinho não o faria, sim, absolutamente só, não era
capaz de o fazer.′′ Neste episódio vemos uma identidade narrativa
in fieri, recorrendo a uma dimensão intersubjectiva, psicológica,
para explicar o roubo de umas pêras.
Contudo, amiúde, uma outra dimensão vem cruzar, às vezes
rasgando-a até ao fundo, esta continuidade temporal. Podermos
mesmo dizer que a nostalgia de Deus com que abrem as Confissões é já um índice privilegiado dessa intrusão de algo intemporal
no tempo. Mas além desse anelo, transversal às Confissões, há momentos em que Agostinho como que bate incomodamente contra a
parede do tempo. A perda de um amigo querido 73 retalhou de tal
modo o coração de Agostinho que tudo para ele se torna estranho.
O mais quotidiano, o mais familiar tornava-se-lhe um tormento.
73
Conf. IV, 4 e ss.
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Agostinho vive esses profundos momentos, esses instantes, sob o
signo de uma peculiar estranheza. “Tudo o que com ele comunicava, sem ele convertia-se-me em enorme martírio. Os meus olhos
indagavam-no por toda a parte e não me era restituído. Tudo me
aborrecia, porque nada o continha e ninguém me avisava, ‘Ali vem
ele!’...”. E remata Agostinho: “Factus eram ipse mihi magna questio et interrogabam animam meam,...”74
A perda de um amigo tornara Agostinho para si próprio uma
grande questão. Perturbada, a sua alma sentia-se dilacerada pela
perda dessa ‘sua metade’: “eis o meu coração, ó meu Deus, ei-lo
por dentro!” 75 . Este foi, podemos dizê-lo, um momento de ❦❛✐rì❝
no percurso de Agostinho. Momento que de algum modo escapara
do tempo, porque amainada a dor, essa dor indicativa de um algo
mais, logo o tempo se instala de novo: o tempo não descansa, nem
rola ociosamente pelos sentidos: pois produz na alma efeitos admiráveis76 .
É, assim, na sucessão dessa irrupção do intemporal no temporal, que, quando chegamos aos livros X e XI das Confissões, se
depara com o enigma do tempo, e este que até aí tinha bastado
para a configuração de uma identidade narrativa mostra-se agora
insuficiente77 .
E poderíamos acrescentar outros acontecimentos, marcas de
que o tempo não é a instância da verdadeira permanência, pois
algo de intemporal o perpassa. Os vários episódios em que Mónica
sonha, a crença profunda no significado divino desses sonhos, bem
como o modo como os mesmos eram interpretados, revelavam essa
74
Ibidem.
Idem, IV, 6
76
Idem, V, 8
77
De notar que, como Ricoeur pretende para a constituição da identidade
narrativa, também em Agostinho, durante o percurso em que a permanência no
tempo é o fio condutor da narração, se cruzam a história e a ficção. Dentro
de certos limites, Agostinho também romanceia a sua viagem, reinterpreta as
marcas históricas que o constituiram.
75
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condição dúplice do homem: homo duplex. Está no tempo, mas
verdadeiramente o que ele pode ser, o acesso ao sentido, escapa ao
tempo78 . Assim podem ser entendidos a sua conversão, narrada no
livro VII, ou o relato do êxtase de Óstia. Concordamos totalmente
com Ricoeur quando ele diz que estes acontecimentos “não suprimem a condição temporal da alma.” É verdade. Mas de algum
modo orientam-na para o intemporal, aprofundando exactamente a
diferença entre o tempo e a eternidade. Permeando a biografia íntima de Agostinho há momentos oportunos, de ❦❛✐rì❝ reveladores
de outra permanência, de outro ‘locus identitatis’ que não apenas
o tempo. Mesmo que seja o tempo de uma viagem, isto é, um
tempo narrativo, um tempo que recolha numa totalidade de sentido
todos os passos dados, todos rumos seguidos. Pelo que Agostinho
compreende a insuficiência do tempo dar completamente conta da
identificação. Neste sentido ‘identidade narrativa’ é mesmo uma
contradictio in terminis, porque a narrativa diz dispersão, ainda
que não seja somente a dispersão dos processos físicos exteriores.
Mas, em face da ‘identidade’, a construção narrativa da dita “inovação semântica onde as finalidades, as causas, os acasos sejam
reunidos sob a unidade temporal de uma acção total e completa”
não colmata aquela tensão. É necessário a memória. Não uma
♠♥➔♠❤ mera sucessão ou associação de estados psicológicos, mera
narração ou interpretação sociológica e histórica, mera possibilidade de constituição fictícia de intrigas, mas uma ❶♥❼♠♥❤s✐❝, uma
memória ontológica, um lugar de familiaridade com o que é, com
o ser e, portanto, ponto de tangência kairológica com a medida do
tempo, i.é., a eternidade.
78
Martine D ULAEY, Le Rêve dans la vie et la pensée de Saint Augustin, Paris,
Études Augustiniennes, 1973.
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2. O agostiniano locus identitatis
Mas aceitemos, como hipótese, o repto de P. Ricoeur: Agostinho
diz que é a alma que mede o tempo, e continua no livro XII a dizer que no princípio criou Deus o céu e a terra, aí compreendido
o tempo, porque também é uma criatura. Ora, como é que havia
tempo se ainda não havia sido criada a medida do tempo? Se in
principio criou Deus o céu e a terra, que tempo é esse logo depois do in principio? O tempo cosmológico. Não há ainda distentio animi, porque “a alma foi criada no tempo”79 . Logo, entre o
tempo cosmológico e tempo da alma há um hiato. Aparentemente,
Agostinho trabalhou contra si mesmo...
Registemos, todavia, que quando P. Ricoeur refere esta (aparente) aporia agostiniana, a da mútua ocultação entre o tempo cosmológico e o tempo da alma tem o cuidado de salientar ele a não
recebe solução no âmbito do livro XI das Confissões. Abre pois a
porta para a possibilidade de ser solucionada noutro livro ou noutra
obra passagem.
Em primeiro lugar, reconhecendo pertinência ao problema – até
porque são estas as passagens onde Agostinho mais prisioneiro se
sente das palavras –, a referida mútua ocultação não me parece consistente. De facto, é tomar a afirmação “In te, anime meus, tempora
metior” como absoluta, como se tivesse sido a alma o padrão estável e imutável da medida. Ora, basta atender ao De Libero Arbitrio,
ao De Vera Religione, ao livro X das Confissões, etc., para ver que
não é assim. A alma mede e é, por seu turno, medida. Também
ela é mutável, se bem que entre as coisas mutáveis seja a menos
mutável. Pelo que, quando se diz que já há tempo (cosmológico)
e se diz que ainda não há alma (psicológico), e se retira daí uma
ocultação recíproca e aporética, em virtude do hiato temporal entre
o tempo cósmico e o da alma, e da prevalência daquele sobre esta,
79
De Civitate Dei, XI, 4.
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não se compreendeu que tanto um tempo como outro são medidos
por um tertium quid que os excede.
Se o “o mundo foi feito, não no tempo, mas com o tempo”80 ,
sendo este, logicamente, a condição do mundo, o tempo é também
medido por algo que não depende dos processos físicos, e que medirá, inclusive, a alma. Esta, uma vez criada, fica numa situação
intermédia entre o tempo físico que por ela é medido e, por isso
lhe é inferior, e a duração absoluta que lhe é superior e que mede
ambos.
O tempo da criatura tem um estatuto dúplice: em relação à
duração absoluta (eternidade) ele é dispersão, mas em relação à
sucessão exterior, física, biológica, psicológica, é o que de mais
estável a experiência humana recolhe. É por isso que O’Daly diz
que “chamar ‘psicológica’ à teoria agostiniana do tempo, é, assim,
não indicar a sua novidade em face da antiga tradição filosófica:
esta descrição pode ser aplicada a Aristóteles, para quem o tempo
é definido como o aspecto (potencialmente) numerável do movimento.”81 E também Aristóteles sugerira que não haveria tempo se
não houvesse alma82 . Qual é, pois, a novidade agostiniana?
É o tempo da criatura que não é o tempo dos processos celestes.
Podemos, com toda a pertinência, supor a cessação completa de todos os movimentos solares ou de todos os corpos celestes. Mesmo
neste caso, possível como experientia mentis, continuamos a poder
medir o tempo, e a falar de ausência de movimento. Por isso, a
concriação simultânea do mundo e do tempo não dá nenhum estatuto de superioridade ao tempo cosmológico, nem institui nenhum
hiato incomensurável. O tempo da criatura é também o tempo da
criatura tempo. É outro do tempo. Digladiam-se aqui dois sentidos
80
Idem, XI, 6
Gerard J. P. O’DALY, “Augustine on the Measurement of Time: some Comparisons with Aristotelian and Stoic Texts”, in: Neoplatonism & Early Christian
Thougt, London, Variorum Publ., 1981, pp.171-179
82
Física, 223a 21.
81
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no tempo: um tempo fraco, tempo dos processos cosmológicos exteriores; e o outro do tempo, que já não é tempo83 .
E é na alma – e na alma, a memória, realidade mais estável entre
tudo o que é instável –, que o outro do tempo mede o movimento
e a própria alma. O que permite a medida é a eternidade, padrão
incomutável; onde mede, é na memória, ‘ventre da alma’, o lugar
de tangência entre tempo e eternidade. É este o ‘locus identitatis’
em S. Agostinho. A ipseidade é kairológica e não cronológica. É
um Acto e, por isso, não pode ser sucessiva. É a dextra do Outro
do tempo que recolhe toda esta distensão, que é a nossa vida, na
sua unidade. Assim, só unindo-me ao Verbo criador e mediador
alcançarei “a unidade do meu ser. (...) Estarei firme e imutável em
Vós, na minha forma, na minha verdade.”84
Deste modo, a questão que desencadeara o busca – “Quid est
enim tempus?” –, transformou-se, primeiro, na identificação do
que se mede, que não é o tempo, mas a impressão deixada na
alma; segundo, na identificação do ‘locus’ onde se mede o tempo.
Compreende-se por que razão. É que, com rigor, o tempo não
é, e o que não é não se pode medir. Por isso a primeira questão
(‘Quid...?’) foi mal formulada. Agostinho compreendeu isso, e inflectiu a pesquisa. O ser do tempo é ainda-não-ser eternidade85 . É
uma noção pela negativa. É a ausência da estabilidade eterna, tal
como o nada é ausência de ser.
Platão parece ter percebido esta noção meramente negativa do
83
E. G ILSON, op.cit. p.252: “Mas este presente indivisível em si mesmo não
pára de se desvanecer para dar lugar a um outro, de tal maneira que, seja em
que proporção for, que se estenda a duração, o tempo reduz-se sempre ao impermanente, cujo ser, composto de uma sucessão de instantes indivisíveis, permanece estranho por definição à imobilidade estável da eternidade divina: tempus
autem quoniam mutabilitate transcurrit, aeternitati immutabili non potest esse
coeternum (De Civitate Dei, XX, 15).”
84
Cf. Conf., XI, 29.30
85
E isto não é uma cedência ante o cepticismo. É antes o reconhecimento do
enigma do próprio tempo.
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tempo, ao afirmar que ele é a imagem móvel da eternidade86 . O
padrão de medida é a eternidade. Mas se nele a Anima mundi era
o que melhor espelhava essa eternidade, em Agostinho a Anima
mundi desapareceu, e entre a eternidade e o homem há tangência
directa, sem nunca se confundirem.
Redarguindo, assim, à leitura de P. Ricoeur, podemos dizer: é
certo que no princípio não havia ainda “distensão da alma” para
servir de bitola ou metro à sucessão dos processos cosmológicos.
Todavia, estes não deixam de ser medidos por uma duração, a própria duração eterna de Deus que cria no Verbo. Por isso, o tempo da
criatura, entenda-se, o tempo do tempo (cosmológico), ou o tempo
da alma, é, face a todos os outros processos, o mais estável, mau
grado a sua instabilidade se compararmos com a duração do hodie
divino.
Além disso, parece-nos que Ricoeur, na aporia com que conclui
a sua hermenêutica de Agostinho, necessária para fundamentar a
sua tese, embarca na tentação que J. Guitton chamaria ‘contaminação’ da eternidade pelo tempo. O tempo da alma não é um tempo
inscrito adentro do tempo cosmológico, como o rodar da roda do
oleiro. Isto é, não começa primeiro o tempo cosmológico, e depois,
por o homem ser criado posteriormente em relação ao início desse
tipo de tempo, o vem o tempo da alma. A eternidade não é algo que
estava antes da criação do tempo e que continuará depois da corrupção dessa criatura que se chama tempo. Nada de mais erróneo,
a nosso ver que esta concepção. E contudo, só ela possibilitaria a
dita ocultação.
“Admitamos que, com efeito – propõe-nos E. Gilson –, o mundo
tenha perpetuamente existido no passado. É evidente que então o
tempo teria perpetuamente existido, mas não se seguiria daí que o
mundo fosse eterno, porque um tempo perpétuo não é uma eternidade.” 87 A eternidade é, ao contrário, o mais presente do presente.
86
87
Timeu, 38 a.
E. G ILSON, op.cit., p.252
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O seu ponto de tangência com o “cimo da alma” é o instante: eis a
epifania da eternidade! E esse instante é, de algum modo, inenarrável. É isso que Ricoeur não pode admitir.
A eternidade não é um outro tempo paralelo ao nossa sucessão
interna e externa; não é um “desde sempre até sempre” contaminado pela experiência reconfiguradora da nossa imaginação cronológica. Mas não é, em relação à mens, ‘olho da alma’, totalmente
outra pois na dimensão horizontal da sucessão da consciência pode
irromper o ❦❛✐rì❝, o momento oportuno, pleno. É o ♥˜✉♥, o nunc
stans: o instante agora. A eternidade é sempre agora. O instante é
o ponto último acessível à discursividade. Mais a razão não pode
dizer. “Quem não vê que esforço, literalmente sobre-humano nos
seria exigido possuir, para compreender a relação do tempo criado com a eternidade criadora? O homem não poderia lá chegar
senão sob a condição de subtrair o seu pensamento ao fluxo do
tempo que o penetra, e digamos, solidificar-se, coligindo num presente permanente a totalidade do que não é mais e do que ainda
não é, de passar realmente, ele mesmo, do tempo à eternidade.”88
Só aí a identipseidade do homem estará cumprida. Neste sentido
podemos dizer que a morte é o selo que atesta o cumprimento de
uma vida. Só após o seu timbre se poderá verdadeiramente falar de
‘identidade’. Até lá, somente de ‘narração’; todas as imagens que
construamos são “sombras que passam”, toda a identidade é precária. ❑rì♥♦❝ continuará, inexoravelmente, a“comer os seus próprios filhos” e a surpreender, mau grado toda a mágica segurança
que os nossos ‘contos’ nos dão. Por isso uma identidade narrativa alcançada pelo entrecruzamento da história e da ficção89 , que a
hermenêutica histórica prossegue, não resolve de todo a questão da
identidade. A construção do sentido no próprio devir histórico não
nos dá o sentido da história. Para isso exige-se um outro ‘lugar’ e
88
Idem, p.256
Cf. TR III, pp.264ss, onde desenvolve o duplo procedimento de “ficcionalização da história” e “historicização da ficção”.
89
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outro ‘momento’ cuja perspectiva nos abra o olhar a uma compreensão diferenciada do tempo que não a narratologia, porque aí não
há o outro do tempo, mas somente o mesmo do tempo.
Nota conclusiva
Começámos este texto com a délfica admonição “conhece-te a ti
próprio”. Mas, perguntará ainda alguém, o que é “conhecer-se a si
próprio”? Não deixa de ser enigmático que a divindade receba o
visitante com tal cumprimento, admitindo à partida um ‘si próprio’
no destinatário da mensagem. À luz da sapiência antiga tal máxima
assume particular relevância, na medida em que é repto à acribia,
pois uma vida não examinada não merece ser vivida. Conhecer-se,
exige, consequentemente, cuidada observação de si mesmo.
E a acção por que cumprimos tal admonição, paradoxalmente,
parece cada vez mais conduzir-nos por “caminhos pouco trilhados
pelos mortais”, levar-nos para longe do que poderíamos acreditar
ser o ‘nós mesmos’, e revela-nos estranhamente como seres da lonjura, já indiciado pelo heraclitiano “procurei-me a mim próprio”,
projecto sempre inconcluso, porque “nunca encontramos os limites da alma, nem percorrendo todos os seus caminhos”. Sócrates,
fazendo sua a saudação divina, aparece possuído pelo ❞❛Ð♠✇♥ da inquietação, revelando a falência de todos os narcisismos da pólis por
uma interpelante ‘douta ignorância’. No contraponto, a proposta
protagoreana instaura o homem como a medida de todas as coisas:
“das que são enquanto são, das que não são enquanto não são.”
O homem, as suas realizações, as suas conquistas, o seu tempo, é
o herói que atribui proporção à realidade. Compreendendo o fel
oculto em tal mel, Platão não tarda a insurgir-se advertindo que o
divino, não o homem, “é que é a medida de todas as coisas”.
Nas propostas de Ricoeur não deixa de haver um eco protagowww.lusosofia.net
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reano, assim como as de Agostinho uma evocação de Platão. Ambos, pelos seus caminhos, se encontraram com o enigma e visam
salvar da dispersão a vida, respondendo à esfinge e matando-a. O
primeiro dá a medida humana: o homem, o que ele diz de si, a
sua cultura, as suas prefigurações, refigurações e configurações, o
seu narrar-se, é a medida do seu ser. O seu tempo parece bastarse a si e à sua identidade. Pelo menos Temps et Récit não parece
abrir-se para os referenciais ontológicos que haviam norteado algumas reflexões do jovem Ricoeur90 . O segundo, depois de trilhar as
múltiplas e costumeiras vias dos mortais, após tantos caminhos andados – ilusões de identidade, becos sem saída –, depois da grande
odisseia da procura de si mesmo, por mares encalpelados, à força
de um ‘pondus’ desvelador de si e do outro de si, aportou às praias
onde “o eterno é que é a medida de todas coisas”.
Ricoeur, leitor-de-Agostinho, defronta-se com a mesma questão com que o filho de Mónica se debatia. Ambos imersos no labirinto do tempo buscam a saída, radicalmente irmanados por uma
condição humana in-satisfeita. Agostinho compreende que o fio
de Ariadne não é solução. Não é por um retorno ao princípio (temporal) da criação que o enigma do tempo é resolvido, mas pelo
retorno ao princípio do Ser. E por isso sai pelo alto, como Dédalo, voando. Mas tal como Dédalo só saiu após ter construído o
labirinto, também Agostinho só aceita voar depois de viver intensamente o tempo, de tecer o tempo, mesmo as suas inutilidades.
90
Joaquim Cerqueira G ONÇALVES, “Do Tempo e da Eternidade”, in Communio (1991/2), p.143: “Paul Ricoeur não poderá ser considerado um filósofo
da eternidade, mas é-o certamente do tempo. A sua incomparável obra em três
volumes, Temps et Récit, que marcou a produção literária dos anos oitenta, coroando uma vida de dedicação especulativa, é uma outra forma de dar testemunho
da eternidade, ao tematizar as grandes questões do tempo e ao abrir-se inequivocamente ao referente ontológico, que aliás Histoire et Verité havia já enunciado.”
Se é verdade que em Histoire et Verité Ricoeur se abre a um sentido escatológico, “último dia” onde aparecerá a unidade de sentido, esse referente não se
vislumbra em Temps et Récit.
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Não há em Agostinho a fuga mundi que Ricoeur parece temer. Só
depois de “realizar o tempo” até o esgotar nas suas possibilidades
Agostinho aceita que, para cumprir o mesmo tempo, necessário
seja mostrar os seus limites e o carácter labiríntico, ilusório, da
busca cronológica.
Por isso sai por cima, a voar, mas não tão alto que, como Ícaro,
queime as asas: Agostinho não mergulha de um golpe no divino.
Também não voa demasiado baixo, para não enlamear as asas da
alma. E tem a lúcida consciência de que um labirinto à escala do
mundo, à força de percorrer os mesmos caminhos, pode tornar-se
bastante familiar, mas não deixa de ser nunca um labirinto, por
mais histórias coerentes que contemos sobre ele.
Também Ricoeur, em momentos particularmente felizes, compreende também a falência configuradora da narrativa. Quando
dá atenção às narrativas de conversão é sensível exactamente à
fraqueza do tempo para responder às “noites de identidade”. Há
instantes de despojamento extremo que nenhuma resposta satisfaz,
porque nenhuma tem o peso ontológico da pergunta. Ricoeur anda
sempre na periferia do ‘Qui?’ – “Seule ne peut être abolie la question: qui suis-je?”91 . Todas as mediações são importantes, mas
não bastam. Constituído na regio dissimilitudinis, não é nela que o
homem se alcança a si mesmo.
Noutros momentos Ricoeur crê firmemente no fio de Ariadne.
Parece-nos, contudo, ignorar propositadamente que esse fio hermenêutico está atado a um gonzo que não é a porta de entrada no
labirinto, nem está fora, mas já faz parte do próprio labirinto. É
verdade que o tempo narrado, o percurso, diz algo do ‘quem?’ da
acção. Mas poderá dizer tudo e afrontar ‘o devorador dos seus filhos’? Quem pode ser o narrador esse tempo? O homem? Mas não
está ele espartilhado exactamente por aquilo a que seria suposto
dar inteligibilidade92 ? “Quem” pode colocar a pergunta sobre o
91
92
P. R ICOEUR„ “L’identité...”,p.304.
Até porque (E. G ILSON, op.cit., pp.252.256) “entre Deus e a criatura, há
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tempo, como Ricoeur o faz, não está de certo modo a fugir ao determinismo do tempo? Acreditando ‘entreter’ a esfinge, e assim
fugir à dita aporia agostiniana, Ricoeur acaba por a encontrar, imóvel, à sua espera, noutra curva do caminho. Por isso, apesar do
valor prático, a identidade alcançada pela narração é uma categoria
fraca. Adia o inadiável. É esta a diferença entre Ricoeur e Agostinho. O primeiro crê o tempo condição de identificação por um
acto de narração. Dá coerência e uma certa familiaridade ao labirinto; consegue adormecer a esfinge temporariamente. Por isso até
é tranquilizante, securizante, conquanto não se coloquem as perguntas radicais. O segundo recolhe o que dessa narração é importante para, progressivamente, mostrar a falência e a impotência de,
no tempo, nos cumprimos. Importa contudo não queimar etapas.
Porque valoriza a liberdade, Agostinho valoriza igualmente o que
lhe permite o seu exercício: o tempo. Nisto inverte o determinismo
neoplatónico onde a emanação e o retorno têm um certo carácter
necessário. Agostinho dá valor positivo ao tempo e à história93 .
Mas a questão que brota no seio do tempo e da história intende
algo que esta não lhe pode dar. A História e todas as histórias acabam sempre por curto-circuitar numa espéce de Conto das Mil e
Uma Noites...
a mesma diferença que há entre uma consciência a que todas as notas de uma
melodia fossem simultaneamente presentes e a nossa consciência que apenas as
percebe uma a uma, ligando à que se escuta a lembrança das que se escutaram e a espera das que ainda não se ouviram. Mas como representarmos esta
relação em si mesma?” Mas ainda assim, “para conceber a eternidade, não bastaria imaginar o universo como uma canção familiar, da qual uma consciência
imensa saberia sempre com exactidão em que ponto do seu desenvolvimento se
encontra. É antes para lá de tal pensamento que Deus subsiste, Ele que é o criador de todo o pensamento; porque não há para ele nem passado, nem futuro,
mas um conhecimento das coisas indiviso e uno, como o acto mesmo pelo qual
as criou (Conf. XI, 31). Pode-se pois esperar que o estudo de tal acto reserve
extremas dificuldades àquele que o tentar representar.”
93
Juan P EGUEROLES, San Agustín. Un platonismo cristiano, Barcelona,
P.P.U., 1985, pp.270-271.
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Da Identidade Narrativa. P. Ricoeur, leitor...
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Assim, porque no seu ímpeto a questão é ontológica, a resposta
não poderá ser só narratológica. O anelo radical do homem, se necessita absolutamente da história, nunca será cumprido unicamente
pela história. O pensar agostiniano é já alvoroçado por um excesso
que lhe fala de coisas últimas que lhe não serão tiradas.
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