ISSN 2176 -7017
PERIÓDICO
DO PROGRAMA
DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
EM ARTES
CÊNICAS
PPGAC/UNIRIO
PERIÓDICO DO
PROGRAMA
DE PÓS-GRADUAÇÃO
ARTES
CÊNICAS
| PPGAC – UNIRIO
ISSN 2176-7017
O TEATRO TRANSDISCIPLINAR DE JAN FABRE
THE TRANSDISCIPLINARY THEATRE OF JAN FABRE
Wallace José de Oliveira Freitas
Naira Ciotti
Wallace José de Oliveira Freitas
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Artes
Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Naira Ciotti
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Professora Doutora do Departamento de Artes da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Wallace José de Oliveira Freitas
Federal University of Rio Grande do Norte (UFRN)
Master student’s Postgraduate Program in Performing Arts at
the Federal University of Rio Grande do Norte.
Naira Ciotti
Federal University of Rio Grande do Norte (UFRN)
PhD Professor in the Arts Department of the Federal University
of Rio Grande do Norte.
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RESUMO
O presente ensaio vislumbra compreender as metamorfoses sofridas
no teatro a partir da obra The Power of Theatrical Madness do artista
belga Jan Fabre. É intenção, apresentar esse artista e desmembrar
características do trabalho citado. Trata-se de uma obra especíica, mas
cuja análise crítica acaba por denunciar o modus operandi de Fabre
como um todo. Desenvolvendo relexões no campo das artes sobre as
possibilidades (ou necessidades) do teatro para além do texto clássico
(aristotélico) e das separações homogêneas das linguagens artísticas
como já nos indicara Lehmann em seus estudos sobre o teatro pósdramático.
Palavras-chave: Teatro pós-dramático; Jan Fabre; The Power of
Theatrical Madness; Corpo; Metamorfose.
ABSTRACT
The present study aims to understand the metamorphosis suffered in
theater from the perspective of The Power of Theatrical Madness of the
Belgian artist Jan Fabre. It’s the intention to introduce this artist and
use his work as a base for I can dismember the features of Jan Fabre’s
artwork. It’s a speciic work, however this critical analysis turns out to
reveal Fabre’s modus operandi as a whole. Developing considerations in
the arts of the possibilities (or needs) of the theater beyond the classic
text (Aristotelic) and homogeneous separation of artistic languages as
already indicated Lehmann in his studies of post-dramatic theater.
Keywords: Post-Dramatic Theater; Jan Fabre; The Power of Theatrical
Madness; Body; Metamorphosis.
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O TEATRO TRANSDISCIPLINAR DE JAN FABRE
Wallace José de Oliveira Freitas / Naira Ciotti
INTRODUÇÃO
Acredito que o nome “ensaio” seja o mais apropriado para esse texto que se
inscreve nas linhas abaixo, sobretudo, por acreditar que o sentido das coisas é de mais
fácil apreensão a partir do seu work in progress1 do que de seu resultado inal. Utilizo
desse espaço para trazer à luz o desenvolver de uma pesquisa, as discussões que têm
brotado no meu caminhar enquanto pesquisador e até as contradições, das quais se
fazem também pilares importantes.
Peço licença para usar deste espaço de disseminação acadêmica e tentar travar uma
articulação entre o cientíico e o artístico, não em um sentido extremamente apurado,
pois estaria me portando de forma pretensiosa em achar que domino os limites de
ambas as áreas. Mas, deixo aqui registrado meu desejo em exercitar essa prática tão
discutida nos estudos metodológicos na área das artes, que seria a não separação entre
este pesquisador que também é artista, que mistura ciência de uma forma poética, ou
vice-versa.
Esta parece ser a mais elementar das questões de método na
pesquisa em artes: como lidar com o logos acadêmico cientíico
(comunicante), quando se trabalha com uma forma de produção
simbólica ambivalente, como a linguagem do corpo (que, por
natureza, “corrompe” o próprio discurso). Tal questão nos
leva a uma aporia, uma diiculdade em parte insolúvel, que a
fenomenologia procura amenizar, ao vincular sujeito psicológico,
lógica da linguagem e ontologia (aquilo que dá os atributos
essenciais ao “ser” [...] (Andrade, 2012, p.114).
Nesse intento, para conhecimento geral, esse trabalho procura desenvolver
relexões no campo das artes sobre as possibilidades (ou necessidades) do teatro para
além do texto clássico (aristotélico) e das separações homogêneas das linguagens
artísticas. Discussão essa que nunca se esgota enquanto relexão sobre o momento
germinativo no qual estamos vivendo atualmente.
Seguindo para caminhos mais especíicos enquanto objetivos, a intenção é entender
o trabalho artístico de Fabre, levando em consideração seu teatro e as metamorfoses
1
Literalmente poderíamos traduzir por “trabalho em processo”, procedimento este que tem por matriz a
noção de processo, feitura, iteratividade, retroalimentação, distinguindo-se de outros procedimentos que partem de
apreensões apriorísticas, de variáveis fechadas ou de sistemas não-iterativos (COHEN, 2006, p.17, nota de rodapé).
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impingidas em suas obras, resguardando-me ao desejo de desvelar as características
do universo Fabriano enquanto linguagem híbrida, tendo como referência central a obra
The Power of Theatrical Madness.
2. JAN FABRE
O diretor Jan Fabre nasceu em 1958, na cidade de Antuérpia, na Bélgica, cidade
esta que o mesmo vive e trabalha até o momento, e ainda, onde mantém a sede do
seu grupo de experimentação teatral, o Troubleyn. No inal dos anos 70, ainda muito
jovem, Jan Fabre causou furor em uma performance envolvendo pacotes de dinheiros
pagos como entradas do público, a im de fazer desenhos com as cinzas dos mesmos
dinheiros queimados.
O artista cresceu e se tornou popular na cena teatral internacional. Introduzindo o
conceito de “real-time performance”- às vezes chamadas de “instalações vivas” - onde
explora possibilidades coreográicas radicais, a improvisação, colocando algumas vezes
os artistas em contato com o risco (por exemplo: uma bailarina dançando e correndo
em um chão todo banhado de azeite).
Fabre vem escrevendo seus trabalhos desde 1975, embora só tenham ganhado
visibilidade em meados de 80. Seus textos formam uma excepcional coleção de
miniaturas, por assim dizer, com um estilo de escrita muito aberto e reletem o conceito
do trabalho de Fabre como uma forma abrangente de arte em que as funções de diálogo/
texto colidem com outros elementos, tais como dança, música, ópera, performance e
improvisação.
Em 1982, o trabalho This is Theatre Like it Was to Be Expected and Foreseen
e, dois anos depois, The Power of Theatrical Madness, desaiaram os fundamentos do
estabelecido teatro europeu. Caos e disciplina, repetição e loucura, metamorfoses e
o anonimato se izeram ingredientes volumosos no teatro de Fabre. O artista acabou
invadindo o mundo do teatro europeu como um gladiador em um sonolento teatro de
fantoches e, nos últimos 30 anos, ele tem produzido trabalhos como artista plástico,
diretor de teatro e autor.
As peças de Fabre sempre são escritas na intenção de serem produzidas no
palco. Mas como informo nas datas, esses trabalhos somente se tornaram acessíveis
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ao público muitos anos depois, quando foram dirigidas pelo próprio autor. Muitas
obras foram criadas no âmbito dos ensaios e a partir de jogos de improvisação com os
performers. Em muitos casos, eles são uma combinação dos escritos do autor e scripts
improvisados.
Diicilmente se encontram diálogos realistas (comunicação, no sentido, pergunta
com espera de resposta) ou anedotas tirados da vida nas obras teatrais de Fabre. As
peças são de natureza conceitual e poética e procuram materializar rituais antigos,
temas que fascinam o autor; bem como questões ilosóicas que o obcecam.
Já no que diz respeito à esmagadora maioria do público, o que ela
espera do teatro, grosso modo, é a ilustração de textos clássicos,
talvez aceitando ainda uma encenação “moderna”, desde que
dotada de fábula compreensível, de um contexto que faça sentido,
de uma autenticidade cultural, de sentimentos teatrais tocantes.
[...] nas formas de teatro pós-dramáticas de Robert Wilson,
Jan Fabre, [...] normalmente encontram pouca compreensão
(Lehmann, 2007, p.22).
O trabalho literário de Jan Fabre, ilustra o que ele pensa sobre o teatro: um trabalho
de arte completo, onde à palavra é dado um lugar ponderado assumindo os mesmo
parâmetros funcionais que a dança, a música, a ópera, elementos da performance e a
improvisação.
A severidade com a qual Fabre se utiliza das palavras como um meio de expressão,
o força a colocar seu teatro em um lugar diferente, onde não existem hierarquias entre
as formas artísticas. A palavra entra nesse jogo enquanto experimentação potente para
compor suas obras. Como pode ser observado no texto falado pelos performers na obra
The Power of Theatrical Madness (a versão reperformada em 2012), escrito para dançar
ritmicamente à pulsão imagética e simultânea que ocorre no palco, em contraposição
ao frenético corpo correndo dos artistas no palco.
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Imagem 1 – O texto em The Power of Theatrical Madness, foto de Wonge Bergmann2
A imagem acima ilustra o momento em que o texto Fabriano entra em cena
em contraposição às várias coisas que estão acontecendo no palco, não seguindo
um luxo linear de compreensão, mas assumindo a função quase rítmica ao processo
desencadeado no palco, como pode ser lido a seguir:
Actor 1: Eighteen hundred seventy-nine. A Doll’s House.
Actor 2: Nora oder Ein Puppenheim! Hendrik Ibsen.
Actor 5: Ibsen? Eighteen hundred seventy-six, The Pretenders, SaxeMeiningen Compagnie, Berlin.
Actor 4: Mille-huit-cent quatrevingt-treize (1893), Fröken Julie, August
Strindberg.
5 Actor 6: Mademoiselle Julie, André Antoine, Théâtre Libre, Paris
Actor 3: Théâtre de l’Oeuvre, Paris. Mille-huit-cent quatrevingt-seize
(1896)?
Actor 8: Achttienhonderdzesennegentig (1896).
Actor 6: Ubu.
Actor 1: Ubu Roi! Alfred Jarry
2
Disponível em: < http://janfabre.be/troubleyn/en/performance/the-power-of-theatrical-madness/ >.
Acesso em 13 de agosto de 2015.
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Actor 7: Eighteen hundred ninety-eight (1898), The Seagull, AntonTchekhov
Actor 2: Constantin Stanislavski
Actor 5: Stanislavski? Nineteen hundred eleven, Hamlet, Gordon Craig.
Actor 3: Neunzehn hundert zwölf (1912)!
Actor 4: Nineteen hundred eleven. Art theater, Moscow.
Actor 1: Moscow? Maurice.
Actor 5: Maeterlinck!
Actor 7: Nineteen hundred six, Soeur Beatrice, St. Petersburg.
Actor 6: Nineteen hundred nine.
Actor 2: Neunzehn hundert neun. Oedipous Rex.
Actor 3: Reinhardt, Max! Zircus Schumann, Berlin.
Actor 8: Vsevolod Meyerhold, Nineteen hundred twenty-two, Actor’s
Theater, Moscow.
Actor 6: Le Cocu.
Actor 7: Le Cocu?
Actor 6: Le Cocu magniique!
Actor 5: La biomécanique!
Actor 3: Arnold Schönberg, Erwartung, Prague, neunzehn hundert
vierundzwanzig.
Actor 8: Der Verfremdungseffekt! Neunzehn hundert achtundzwanzig
(1928), Bertolt Brecht.
Actor 5: The Beggar’s Opera?
Actor 1: Die Dreigroschenoper!
Actor 6: Kurt Weill, Mahagonny-Songspiel, Baden-Baden, 1927.
Actor 2: Negentienhonderdeenenveertig (1941), Zurich.
Actor 3: With actors in exile: Mutter Courage!
Actor 4: Mille-neuf-cent trente-cinq.
Actor 8: Negentienhonderdvijvendertig.
Actor 7: Antonin Artaud!
Actor 6: Artaud! Artaud!
Actor 5: Les Cenci, Théâtre des folies, Paris.
Actor 1: Le Théâtre de la Cruauté.
Actor 4: Le Théâtre de l’Absurde! Mille-neuf-cent cinquante (1950).
Actor 3: Beckett.
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Actor 7: Ionesco! Eugène Ionesco.
Actor 2: Samuel Beckett, Nineteen hundred ifty-three, En attendant
Godot, Théâtre de Babylon, Paris.
Actor 6: Théâtre des Noctambules, Mille-neuf-cent cinquante, La
Cantatrice Chauve.
Actor 8: Nineteen hundred ifty-one: La Leçon!3
O texto é organizado como um encaixe de blocos modulares de sentido,
compostos de data-artista-obra-lugar, às vezes distribuídos sobre várias réplicas, e
então divididos entre vários performers. Em The Power of Theatrical Madness vence o
princípio do plurilinguismo, justiicando-se, nesse caso, pela idelidade à língua original
dos espetáculos/atores citados.
As ligações entre as réplicas são combinadas por complementos do bloco semântico,
por ainidades de argumentos, por repetições sonoras, por jogos de palavras e por
simples traduções ou por correções. A partir desse texto de Fabre, a história do teatro
torna-se um quebra-cabeça, com o qual se pode jogar e se divertir (Boato, 2013).
Quando o texto passa a ser projetado para além de suas funções convencionais,
muito provavelmente, o teatro que se envereda para esse tipo de utilização da linguagem,
torna-se incapaz de ser formatado também como um teatro convencional, no sentido
do texto ser o cerne da sua movimentação. Ele serpenteia junto à dança, ao som, ao
corpo, e ganha novas funções.
O atravessamento contínuo desse artista entre as diversas artes resultou numa
contaminação entre linguagens e na criação de um trabalho sem fronteiras, marcado
3
Tradução: Ator 1: mil oitocentos e setenta e nove. Casa de Bonecas. Ator 2: Nora Oder Ein Puppenheim! Hendrik Ibsen. Ator 5: Ibsen?
Dezoito cento e setenta e seis, he Pretenders, Saxe-Meiningen Compagnie, Berlim. Ator 4: Mille-huit cento Quatrevingt-treize (1893) Fröken Julie,
Agosto Strindberg. Ator 6: Mademoiselle Julie, André Antoine, héâtre Libre, Paris. Ator 3: héâtre de l’Oeuvre, Paris. Mille-huit cento Quatrevingt
apreensão-(1896). Ator 8: Achttienhonderdzesennegentig (1896). Ator 6: Ubu. Ator 1: Ubu Roi! Alfred Jarry. Ator 7: mil oitocentos e noventa e oito
(1898), A Gaivota, Anton Tchekhov. Ator 2: Constantin Stanislavski. Ator 5: Stanislavski? Mil novecentos e onze, Hamlet, Gordon Craig. Ator 3:
neunzehn hundert zwölf (1912)! Ator 4: novecentos e onze. Teatro Arte, Moscou. Ator 1: Moscou? Maurice. Ator 5: Maeterlinck! Ator 7: Novecentos
e seis, Soeur Beatrice, St. Petersburg. Ator 6: Novecentos e nove. Ator 2: neunzehn hundert neun. Oedipous Rex. Ator 3: Reinhardt, Max! Zircus
Schumann, Berlim. Ator 8: Vsevolod Meyerhold, novecentos e vinte e dois, Actor’s heater, Moscou. Ator 6: Le Cocu. Ator 7: Le Cocu? Ator 6:
Le Cocu magniique! Ator 5: La biomécanique! Ator 3: Arnold Schönberg, Erwartung, Praga, hundert neunzehn vierundzwanzig. Ator 8: Der
Verfremdungsefekt! Neunzehn hundert achtundzwanzig (1928), de Bertolt Brecht. Ator 5: ópera do mendigo? Ator 1: Die Dreigroschenoper! Ator
6: Kurt Weill, Mahagonny-Songspiel, Baden-Baden, 1927. Ator 2: Negentienhonderdeenenveertig (1941), de Zurique. Ator 3: Com atores no exílio:
Mutter Courage! Ator 4: Mille-neuf-cent trente-cinq. Ator 8: Negentienhonderdvijvendertig. Ator 7: Antonin Artaud! Ator 6: Artaud! Artaud! Ator
5: Les Cenci, héâtre des Folies, Paris. Ator 1: Le héâtre de la Cruauté. Ator 4: Le héâtre de l’Absurde! Cinquante Mille-neuf-cent (1950). Ator 3:
Beckett. Ator 7: Ionesco! Eugène Ionesco. Ator 2: Samuel Beckett, de mil novecentos e cinquenta e três, En attendant Godot, héâtre de Babilônia,
Paris. Ator 6: héâtre des Noctambules, Mille-neuf-cent cinquante, La Cantatrice Chauve. Ator 8: de mil novecentos e cinquenta e um: La Leçon!
FABRE, Jan. his is heatre Like it Was to Be Expected and Foreseen, cena quatro, texto da versão de 2012. Citado também no artigo do Pesquisador
Giulio Boato, 2013.
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pela miscigenação. O crítico Van Den Dries4 observa que, além da múltipla formação
artística de Fabre, tal contágio é decorrente de seu grande interesse pelo corpo e suas
metamorfoses (Dries, 2006).
Os corpos, conforme descreve Dries (2006), na produção de Parrots and Guinea
Pigs, possuem resguardado a noção de que, sua energia vital se estabelece por meio do
poder da metamorfose. Eles (os performers) estão sujeitos a um permanente processo
de mudança. Toda forma com aspecto de parado se converte em algo alienante para
eles. A eles o espaço é dado para se tornarem animais, para tentarem outro sexo, ou
para mudarem de uma criança para um senhor grisalho, instantaneamente.
Imagem 2: Parrots and Guinea Pigs, de 2002, fotografado por Malou Swinner5
A capacidade de esquiva faz deles impossíveis de serem controlados, na obra
anunciada na foto acima. Transformando-se em um carnaval de corpos em constantes
transformações. Eles mexem com a ordem de tudo, o lado de dentro transforma-se no
lado de fora e para cima transforma-se para baixo. Trata-se da permissividade do corpo
quando ele liberta-se da ordem da normalidade. O corpo ideal não é mais o centro das
importâncias, do contrário, é o corpo imperfeito e deformado. É colocar em cena as
4
O professor universitário Luk Van Den Dries é um dos principais críticos que vêm acompanhando o grupo
Troubleyn-Jan Fabre em caráter de observação e fazendo escritos a partir de ensaios e espetáculos. Livro que se
destacou em sua parceria com o Troubleyn, foi “Corpus Jan Fabre -Observations of a creative process” em 2006.
5
Imagem retirada do site: < http://janfabre.be/troubleyn/en/performance/parrots-guinea-pigs/ >. Acesso
em 28 de agosto de 2015.
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limitações que possuímos, os cansaços, as dores, sem negar o isiológico do corpo.
[...] num ritual de instrumentalização, o auditório é perturbado e
provocado, sacudido por performances em que a resistência física
e os limites do corpo são transgredidos ao longo de um processo
em que, mais uma vez, prazer e dor se fundem para construir,
numa nova estética, uma nova obra de arte: sangue, urina,
esperma, excrementos, músculos, pele, órgãos são mobilizados,
manipulados, dissociados do indivíduo como se fossem as tintas
de uma paleta a serem lançadas sobre a tela vazia (André, J.M,
2003, p.14-15).
A possibilidade de metamorfose é enxergada como festa nas obras de Fabre. O
corpo assumindo os mais diferentes aspectos para compor um jogo de conirmação
do corpo enquanto efêmero, obsoleto pelo tempo e pelo seu próprio funcionamento.
Corpo lindo, corpo feio, corpo em dor, corpo em transe, que incorpora as engrenagens
da vida, e da arte.
Todos os tipos de monstruosidades são permitidos nesse banquete carnavalesco,
ou obra teatral. O corpo sublime cede espaço para o grotesco, que já não almeja uma
forma ideal, mas encontra-se voluntariamente moldado por sua natureza terrena. Ele
aceita o seu humilde estado e permite-se misturar com todos os tipos de estados
superiores e inferiores. O corpo grotesco é conectado à terra num ininito processo de
regeneração. Vida e morte são partes indivisíveis desse processo.
A morte não é um im e ela não incute medo; pelo contrário, ela é bem-vinda
enquanto um aspecto natural do corpo. O corpo grotesco é, então, uma igura bastante
cômica: ele não apenas vira do avesso todos os relacionamentos, como também ri do
decaimento e da morte. Precisamente nessas fases de putrefação o novo nasce. O odor
da decomposição traz consigo algo sagrado também. A “sordidez sagrada” garante o
ciclo do renascimento.
Este é o ponto de partida (a metamorfose) para qualquer investigação sobre o
artista e aquilo que o estimula a promover relações intensas entre as diversas linguagens
que utilizam o corpo como elemento fundamental de sua constituição. No processo de
criação dos espetáculos, procedimentos de dramaturgia, dança, performance, teatro e
artes plásticas encontram-se e se transformam mutuamente.
3. THE POWER OF THEATRICAL MADNESS
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Foi em 1984 que Jan Fabre ganhou destaque ao apresentar sua obra The Power of
Theatrical Madness6 na Bienal de Veneza - Itália. A construção do espetáculo decorreu
do grande sucesso obtido com a obra anterior, de 1982, This is Theatre Like it Was to
Be Expected and Foreseen, facilitando o encontro com produtores que patrocinassem
a obra. Na época, alguns artistas, sobretudo, atores e bailarinos, apresentaram-se nas
audições para construção do espetáculo, mas os quinze selecionados (todos entre 20 e
30 anos) eram, na maioria, não proissionais.
Um trabalho em que tudo que poderia ser considerado errado, no teatro, era
ali permitido. Por exemplo, os espectadores podiam sair e voltar conforme sentissem
desejo, estimulando uma ideia de luxo livre ao público, sem ser condenado por não
querer assistir a obra, ou se sentir entediado em eventuais momentos.
A obra conta com um tempo de duração dilatado (4 horas e meia), talvez por
essa razão ela assumisse maior liberdade para o público ir e voltar. No Hall de entrada
do teatro havia um bar que permaneceu aberto durante mais de quatro horas (tempo
do espetáculo), e as pessoas podiam beber e assistir o espetáculo.
A obra trazia aspectos do renascimento europeu, das crises do próprio teatro, num
mix que ninguém conseguia deinir se era performance, dança, ou teatro, carregando
como pano de fundo do cenário pinturas de Michelangelo e outros artistas, e como
trilha sonora algumas músicas de Wagner (ópera).
Imagem 3: The Power of Theatrical Madness, 19847
6
Esta foi a primeira vez que a obra foi apresentada, no entanto, me interesso em discutir a obra que foi
reencenada por Jan Fabre/Troubleyn no ano de 2012 e que continua em turnê.
7
Fonte: < http://neuramagazine.com/wp-content/uploads/2012/11/fabre.jpeg >. Acesso em 13 de julho de 2015.
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Apesar de ter sido um trabalho muito importante para a carreira do diretor e
seu grupo, escolho falar sobre a mesma obra, porém, a versão reperformada no ano
de 2012 e que continua em turnê nos dias atuais. A escolha da obra do ano de 2012
se justiica devido à proximidade com minha época, com textos que discutem tal
espetáculo, e ainda, por causa da posse audiovisual que me foi concedida pelo grupo,
sendo inquestionável que, falar sobre a obra que possuo na íntegra me coloca mais
perto da idedignidade do trabalho artístico como um todo.
Conforme adianto que minha intenção é descrever do que trata a obra, enquanto
vou enxertando as características do teatro Fabriano, não posso deixar de expor a ideia
de reenactment, já que escolho o trabalho artístico que foi reperformado, e não sua
primeira versão.
3.1 REENACTMENT
Com quase 30 anos de diferença da primeira versão, Jan Fabre tenta se conectar
às lembranças pessoais enquanto diretor deste espetáculo, juntamente com Miet
Martens (sua assistente pessoal), que começou a fazer parte do grupo próximo da
estreia do espetáculo, o que foi interessante para esse processo de retorno à obra, pois
ela coincidentemente começou a integrar o grupo um mês antes da estreia de 1984, e
que ainda terminou por acompanhar cerca de sessenta apresentações pelo mundo.
Foi indicado o arquivamento de um espetáculo (a cristalização da
sua forma deinitiva no papel) como a morte da obra viva, seu
término natural. Mas, o evento teatral pode chegar a (sobre)viver
muito além das previsões de seu criador: passado o tempo da turnê,
mesmo após várias décadas, a obra pode ser retomada – pelo
seu autor ou não, por razões as mais diversas – e reapresentada
aos olhos do público (um público diferente, é claro, visto o salto
temporal) (Boato, 2013, p. 436).
Os primeiros usos do termo reenactment estão relacionados a encenações de
acontecimentos históricos, práticas inicialmente correntes nos Estados Unidos, que
ganharam sucesso na segunda metade do século XX, adquirindo tais proporções que se
tornaram um verdadeiro objeto de estudo a analisar e a relacionar com as artes visuais
e performativas, relacionando a encenação de acontecimentos de guerra passadas com
a prática crescente do reenactment em performance como sugere Rebecca Schneider.
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“Reenactment” é um termo que icou popularizado entre o im
do século XX e início do século XXI nos círculos de arte, teatro e
performance. A prática do re-playing ou re-fazer como um evento
precedente em obras de artes, ou ato, explodiu como base para
arte da performance ao lado do lorescimento do reenactment
histórico e “história viva” em vários museus de história, parques
temáticos, ou lugares de preservação da memória da sociedade.
De diferentes maneiras, o reenactment tornou-se popular e sua
prática voa no que tem sido chamado de “indústria de memória”.
(Schneider, 2011,p. 2).8
Em cerca de trinta anos, o reenactment se coloca como prática estética,
conseguindo confundir o campo artístico e o campo acadêmico: “recolocar em cena
antigas performances torna evidente a natureza performativa do fazer História” (Boato,
2013, p. 436), favorecendo, também, a difusão de um modo de expressão incluindo
leituras e documentações apresentadas em cena. Nesse pensamento, o passado
transforma-se em espaço de encenação para o presente, uma fonte de sabor já provado,
à qual se pode voltar para novas reedições.
Encarregando-se desse serviço, Jan Fabre realiza o retorno das duas obras que
deram o pontapé em sua carreira, This is Theatre Like it Was to Be Expected and
Foreseen (1982), e a obra chave deste capítulo, The Power of Theatrical Madness
(1984), trazendo para o ano de 2012 a produção reeditada de ambos espetáculos.
Atento para o fato, conforme sugestiona Boato (2013), sobre essa produção ser
um auto-reenactment – a reprise, por um autor, de seu próprio trabalho, neste caso,
após três décadas. Não atribuindo a tal obra a característica de ideia de cópia.
A reprise de uma obra performativa muito após sua criação – seja
ela retrabalhada pelo próprio autor ou reencarnada por outra
pessoa – não é jamais uma cópia decalcada de uma dada forma
estética. Assumir a responsabilidade de exumar um espetáculo
signiica encarregar-se de (re)descobrir seu modus vivendi:
informar-se sobre seu processo de criação, deinir as etapas de
seu precurso, compreender suas razões de ser no passado para
daí identiicar novas razões no contexto contemporâneo (Boato,
2013, p. 437).
8
Versão original: “Reenactment” is a term that has entered into increased circulation in late twentiethand early twenty-irst-century art, theatre, and performance circles. The practice of re-playing or re-doing a
precedent event, artwork, or act has exploded in performance-based art alongside the burgeoning of historical
reenactment and “living history” in various history museums, theme parks, and preservation societies.1 In many
ways, reenactment has become the popular and practice-based wing of what has been called the twentieth-century
academic “memory industry.” Contido no livro “Performing Remains Art and war in times of theatrical reenactment”,
de Rebecca Schneider, 2011.
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Para compor o elenco novo, foram feitas audições em várias partes da Europa,
e um número imenso de artistas se mostraram interessados em participar da obra.
Não se pode negar que os vários anos que apartam as duas edições dos espetáculos
inevitavelmente izeram desabrochar um leque de dissimilaridades que se mostram
testemunhos da evolução do percurso do diretor e dos performers “proissionais” que
agora se imprensam por uma vaga no teatro belga de Fabre.
Apesar de citar a palavra “proissionais”, Jan Fabre sempre que dá entrevista
assume seu desejo em trabalhar com artistas que tenham uma espécie de chama
genuína e uma imaginação vívida. “[...] quando tiver que escolher entre a raiva e a
técnica, sempre escolherei aquele que tem raiva” (Fabre; Boato, 2012, entrevista).
E ainda, informa, em outra entrevista - “eu os escolhi pelo seu universo pessoal, sua
mentalidade [...]. E, se trabalho com amadores, é porque não são deformados por
tiques ou receitas teatrais” (Fabre in Laurent, 1983, s. p.).9
Além dessa característica, o reenactment, a obra rememora a história do próprio
teatro, conforme irei expor melhor na frente, o que não se desassocia da ideia de história
e performance discutido mais verticalmente por Rebecca, e que cito no início desse
texto. Sem desejar realizar comparações, são qualidades diferentes para trabalhos que
levam o mesmo nome e discussão, porém com outras energias, por assim dizer.
Por mais que esta obra se coloque numa proximidade maior com a performance (no
sentido de não se apoiar no drama), e se direcione para um tipo de trabalho condicionado
na ausência de sínteses e linearidades, invadida pelo hibridismo das linguagens
artísticas, ainda me resguardo a tentar falar sobre as partes para poder entender um
pouco a obra, e neste sentido, acabo desmembrando o trabalho para poder apontar
seus meandros constituintes.
Compreendo que, por mais que o trabalho possa ser visto como algo “sem
história”, “sem sentido”, “sem concatenação”, desconio que seja possível, ainda que
para olhos virgens sobre este tipo de trabalho, não se extrair sentido, ou sentidos.
Pode-se considerar a performance como uma forma de teatro
por esta ser, antes de tudo, uma expressão cênica e dramática
— por mais plástico ou não-intencional que seja o modo pelo
qual a performance é constituída, sempre algo estará sendo
apresentado, ao vivo, para um determinado público, com alguma
“coisa” signiicando (no sentido de signos); mesmo que essa
“coisa” seja um objeto ou um animal, como o coiote de Beuys. Essa
9
Trecho da entrevista contida no texto de Giulio Boato. Genética de um Reenactment em Jan Fabre, de 2013.
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“coisa” signiicando e alterando dinamicamente seus signiicados
comporia o texto, que juntamente com o atuante (“a coisa”) e o
público, constituiria a relação triádica formulada como deinidora
de teatro. (Cohen, 2002, p. 56).
É na busca ou colocação desses “sentidos” que me escoro para escrever este
trabalho. The Power of Theatrical Madness, acima de tudo, é uma performance histórica.
É a história do fazer teatral. Não somente no campo de trabalho de Fabre – esta
produção signiicou seu deinitivo reconhecimento internacional, conforme anuncio –
mas também revela o ponto inal, quando a economia da ilusão verdadeiramente se
encontra e transcende a si mesma.
Como um momento chave na história do teatro ilusionista, Fabre escolhe
composições de Wagner, onde não somente mistura o gênero ópera com as outras
linguagens, mas ele também homenageia a Wagner, que foi o primeiro compositor e
teatrólogo a ter as luzes do teatro esmaecidas. The Power of Theatrical Madness cita
este momento emancipatório em uma cena extremamente longa e dolorosa, onde uma
performer tem seu acesso ao palco forçadamente negado.
Ela arranha, ela morde, ela seduz, ela amaldiçoa e grita, mas o performer que
controla a entrada do palco a arrasta de volta à estaca zero de maneira cada vez mais
violenta. Somente quando ela consegue responder a pergunta incansável, “1876?”,
que repetidamente se faz ressoar como controle de sua entrada, tratando-se da data
da estreia de Ring10, que é permitido seu retorno ao palco, o local de nascimento das
aparições teatrais.
10
Essa data coincide com a criação do Festival de Bayreuth (Bayreuther Festspiele), um festival anual que
acontece em Bayreuth, Alemanha, com performances de óperas do compositor Richard Wagner. O próprio Wagner
concebeu o festival para mostrar suas obras, em especial seu ciclo monumental Der Ring des Nibelungen e Parsifal.
As apresentações ocorrem em um teatro especialmente construído, o Bayreuth Festspielhaus. Wagner supervisionou
pessoalmente o projeto do teatro, que continha inovações arquitetônicas necessárias para a particular produção de
suas óperas.
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Imagem 4: Captura da cena descrita no texto, em vídeo pessoal11
3.2 REPETIÇÃO
O exemplo citado acima é só um dos vários momentos que dotam a obra do que
poderíamos chamar de “repetição”. Várias cenas se constituem dessa ideia de repetição,
uma repetição que poderia nomear de violenta, pulsando nos olhos de quem assiste.
No caso de Jan Fabre [...], sua função principal é a perturbação
e a agressividade – que inclui a agressão contra o público. Na
repetição agressiva é recusada a demanda do divertimento
supericial mediante o consumo passivo de estímulos: em vez de
variedade que mata o tempo, esforço da visão para tornar o tempo
perceptível (Lehmann, 2007, p. 309).
Na repetição parece existir uma cristalização do próprio tempo, como se eu
compreendesse e ao mesmo tempo negasse o decorrer desse tempo. Como se aliasse
para contribuir uma espécie de desconstrução do signiicado daquele algo mostrado.
A absorção da obra se conjura numa organização de decurso inindável, de difícil
sintetização, descontrolável. Um luxo lento ou rápido de signos esvaziados ou muito
cheios de comunicação onde a apreensão não pode mais ocorrer da obra como parte
de uma totalidade poética, cênica.
Repetição é a estratégia mais recorrente da obra de Fabre. Inúmeras cenas são
rompidas pelo peso da repetição. Por exemplo, as mesmas posições do balé clássico
11
Devido ausência de fotos que retratem exatamente o que estou falando, se fez necessário capturar imagens
a partir do vídeo enviado pela Companhia para conseguir deixar visualizável ao leitor algumas descrições.
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são repetidas inúmeras vezes, sempre os mesmos movimentos. Ou a repetição do ano
1876, o mesmo número várias vezes, até que a performer, que tenta subir no palco há
bastante tempo, conhece a resposta: “Anel de Nibelungo, Richard Wagner, Bayreuth.”
A repetição é exaustiva. Ela drena a energia.
O corpo precisa apoiar-se em suas últimas forças. Mas esse vazamento é
acompanhado por um movimento crescente. É justamente essa exaustão que apela
para que o corpo reaja: ao inal de suas cenas, corpos contorcidos adquirem certa
ardência. Este é um elemento recorrente em muitas cenas de muitas das peças de
Fabre. A repetição não afeta apenas o performer, mas também o espectador. Ao repetir
os mesmos mínimos atos inúmeras vezes, o espectador é convidado a enveredar para
além das primeiras impressões.
Detalhes passam a ganhar importância, você começa a notar diferenças pessoais,
certamente quando a repetição é atuada pelo grupo inteiro. E tal repetição inluencia
o próprio ato de assistir. A exaustão traz à tona sua própria dimensão temporal, você
começa a enxergar as coisas de uma maneira diferente, outro nível de percepção passa
a existir. Um tipo de assistir intoxicado se inicia.
Mas, não apenas o corpo e o ato de assistir icam cansados, o sentido dilui-se também.
A repetição atinge o próprio signo, existe uma constante mudança do signo para o seu
portador.
Imagem 5: Cena da tapa na obra The Power of Theatrical Madness, 201212
12
Fonte: < http://giuliaperelli.blogspot.com.br/2012/08/the-power-of-theatrical-madness.html >Acesso em
25 de outubro de 2015.
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Essa cena acima, na qual a foto não transmite a repetição imbuída, pois repetição
é movimento(s) e essa imagem capta apenas um momento, onde a performer canta
continuamente uma ária, enquanto recebe no rosto a mão quente do outro performer,
vão alternando tapas, um no rosto do outro. A cena tem uma duração longa, sobretudo,
por expor a violência física, o que exalta ainda mais o tempo de duração e repetição.
Apesar de existir uma certa harmonia, na dor, dos tapas, no passar da cena em
congruência com as ações simultâneas e imagens projetadas no cenário, os corpos
dos que se atingem nesse jogo não se negam ou se escondem, em nenhum momento.
As caretas, os gritos, as paradas, os risos, todas as expressões possíveis não são
sintetizadas, são exacerbadas. Eles não estão representando, e sim vivendo as dores
da encenação.
Deparo-me então com o que a Josette elenca: “o performer não representa. Ele
é. Ele é isso que ele apresenta. Ela não é nunca uma personagem. Ele é sempre ele
próprio, mas em situação” (Féral, 2015, p. 146). Nesse sentido, vejo todas as potências
no trabalho Fabriano, por mais plástico que possa também ser. Um artista que evidencia
os processos que o acometem e mudam o seu curso em cena, sem silenciar em nenhum
momento suas reações humanas, por mais repetitivas que possam ser.
3.3 DURAÇÃO
Além da questão da repetição, remeto-me a mostrar a relação da obra (as) de
Fabre com relação à duração, característica predominante em seus trabalhos cênicos,
por comporem sempre um volume maior de horas que comparado a espetáculos
convencionais.
A obra The Power of Theatrical Madness, dura cerca de quatro horas e trinta
minutos, e talvez por isso Fabre deixe ao espectador a liberdade para sair e entrar
conforme sinta vontade, ou ainda, icar apenas no bar nas entradas do teatro ao invés
de se submeter ao desaiar de permanecer sentado, digerindo o trabalho.
Veriicam-se elementos de uma estética da duração em numerosos
trabalhos teatrais da atualidade, destacando-se especialmente nos
casos de Jan Fabre, Einar Scheef [...], mas também em muitas
montagens nas quais a imobilidade, pausas extensas e a duração
absoluta da encenação são valorizadas como tais (Lehmann, 2007,
p.306).
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Ao assistir a obra a que me foi concedido acesso, percebo uma sensação de
lenta passagem do tempo. O tempo habitual da vida se quebra no teatro Fabriano. A
visualidade da obra parece conter em si mesmo um acúmulo de tempo, e por hipnose
ou cansaço, estabeleço uma relação diferenciada com a obra, meu corpo se conecta
por essa percepção diferenciada, e as vias de acesso ao entendimento são rasgadas
quando tento coincidir o tempo da vida com o tempo do teatro. No teatro o tempo é o
da morte.
Chega-se então à constatação de que aqui a duração não ilustra
a duração. Não se pode dizer que a vagareza no palco se refere à
lentidão de um universo ictício que estaria ligado ao nosso mundo
de experiências, nem que ela remete por ironia ou antífrase à
brutalidade ou à violência da vida “real”. O teatro se refere
sobretudo ao seu próprio processo (Lehmann, 2007, p. 307).
Veriica-se que repetição e duração estão intricadamente ligados na obra de
Fabre e elas dançam, se sobrepondo uma à outra. O espectador vivencia isso, seja em
forma de tédio, transe, hipnose, prazer ou agonia. O discurso (de cristalizar o tempo)
pode ser difícil em decorrência da suposta luidez imposta nessa era tecnológica, e
impaciências que nos transpassam. Sobre tempo e percepção, cada individuo é dotado
de percepções bastante especiicas, mas enquanto indivíduo, (eu) compreendo que a
dilatação do tempo, agrega uma relexão poderosa sobre o tempo da vida, da morte e
do teatro.
3.4 REFERÊNCIA À HISTÓRIA DO TEATRO
O espetáculo rememora o passado do próprio teatro, como se quisesse homenagear
a tradição, numa tentativa de fazer o esboço de um manual, ao mesmo tempo em
que irrita os espectadores (a repetição de cenas, palavras, jogos, tempo dilatado),
e paradoxalmente a essa celebração, existe uma tentativa de revolucionar a própria
prática teatral e as contaminações que tal linguagem tem (vem) sofrido.
Ao mesmo tempo em que Fabre evoca partes da história teatral, ele também
revive o conto de fadas de Andersen, A roupa nova do Imperador13. O centro desta peça
13
Famoso Conto de Hans Christian Andersen (1837), retratado em alguns desenhos animados de nossa
infância, que, em resumo, conta a história de um imperador muito vaidoso que gostava de se exibir em público sempre de roupa nova. Um dia, dois tecelões trapaceiros vieram ao seu palácio para oferecer um novo, precioso e mágico tecido. Mágico porque era invisível aos olhos de gente simples ou de pessoas desonestas. Foram bem recebidos
e conseguiram vender o tecido ao imperador, que com medo de ser considerado tolo sempre pedia a outra pessoa
para veriicar o andamento da confecção. Até que inalmente chegou o dia de desilar em público com a nova roupa.
Ninguém tinha coragem de dizer que o imperador estava nu, até que uma criança assim o fez. Com isso, a farsa foi
descoberta e o imperador, envergonhado, não mais saiu do palácio para exibir suas novas roupas.
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é um imperador, armado com um cetro e uma coroa, que usa suas roupas invisíveis
sobre seu corpo nu na tentativa de impressionar seus súditos.
Confrontado com a emissão de imagens e sensações causadas pela obra, o
público se encontra como alvo de uma quantidade inadmissível de informações: entre
as longínquas reminiscências infantis do conto de Andersen, a atenção ao jogo cênico
das roupas invisíveis e a irritação causada pela repetição interminável da aula de história
do teatro (enunciação das vanguardas históricas do teatro, compostos de data-artistaobra-lugar, dividido entre as vozes de vários atores), os espectadores sufocam em suas
poltronas (Boato, 2013).
Imagem 6: O Imperador em The Power of Theatrical Madness, 201214
Durante a performance, o imperador caminha cerimoniosamente, passando pelo
nosso campo de visão, simultaneamente surpreendente e ofuscante. Com a demonstração
desta sublime mentira, o “baile de máscaras inal”, Fabre traz ao palco um reino que
está em seus últimos passos. Seu gesto é uma evocação para a destruição. Numerosas
cenas mostram o esplendor e a beleza da mentira. Todos queremos acreditar em sapos
que se tornam príncipes, ou em heróis que veneram suas princesas. Fabre rememora
ou homenageia o teatro, ao mesmo tempo em que critica suas convenções.
Na obra de Fabre, esta é uma forte metáfora (a fábula de Andersen) para a
“suspensão da descrença” que comanda o mundo do teatro. Quando entramos no
teatro nós nos despimos de roupas supérluas e abraçamos, naquele mesmo momento,
14
Fonte:< https://nextfestival.wordpress.com/2012/11/26/seize-mille-deux-cent-secondes/ >Acesso em 18
de agosto de 2015.
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a ilusão da realidade que nos será ofertada. É certamente esse outro tempo o qual
Fabre quer pôr no palco. Ele se rende para os poderes da imaginação teatral. Será
que queremos acreditar que os dois imperadores dançando tango no palco não estão
desnudados? Será que queremos acreditar que os sapos amassados pelos pés não estão
realmente mortos? Será que queremos acreditar que a faca perigosamente empunhada
não representa um perigo real? O teatro está pregando esta peça em nós.
3.5 RISCOS?
Existe, na maioria dos trabalhos de Jan Fabre, e nesse em especiico, a colocação
dos performers em situações de risco, ou amostragem da sensação de risco sob os
atuantes de forma extremamente recorrente.
Em uma parte da obra, um performer empunha perigosamente uma faca em
direção à garganta de outro. É uma faca bastante grande e brilhante, e ainda aparenta
estar bem aiada. A distância entre eles é bem pequena. E para piorar o frenesi, os
artistas estão vendados.
Imagem 7: A “cena da faca” em The Power of Theatrical Madness, 201215
Fabre brinca com o perigo, mas se mantém dentro das convenções
do gênero. Esta cena envolve uma manha teatral, a qual garante
que os atores não conseguirão se tocar. Nessa produção, Fabre
15
Fonte disponível em: http://janfabre.be/troubleyn/en/performance/the-power-of-theatrical-madness/
Acesso em 13 de agosto de 2015.
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brinca completamente com o jogo da icção teatral (Dries, 2006,
p. 18).16
Nessa obra ele “come na mão do faz-de-conta” e expõe o teatro enquanto o
lugar das surpresas e do engano. A performance inteira é uma divulgação dos limites
iccionais do teatro. Ele não contrabandeia qualquer tipo de realidade para o palco. Pelo
contrário, ele a chuta para fora, em prol de icar apenas com a essência da teatralidade:
a bela mentira do teatro.
O mesmo acontece com a utilização de sapos na performance, que em determinado
momento, começam a povoar o piso da cena, e os atuantes em um ato ilusório, enrolam
os animais em panos brancos e depois (supostamente) os pisam, até os tecidos icarem
extensamente vermelhos. Pela quantidade de cor vermelho vivo no tecido, pode-se
levar a crer, como ele mesmo assume em algumas entrevistas, que esta ação não
causou, de fato, a extração em massa de sapos, se constituindo de uma farsa para
causar completo desconforto ao público.
Quando peixes morrem sobre o palco, quando sapos são
(aparentemente) pisoteados em cena, quando não se sabe se
um ator está sendo realmente tratado com choques elétricos
diante do público (o que de fato ocorre em Quem exprime meus
pensamentos..., de Fabre), é provável que o público reaja como
diante de um procedimento realmente, moralmente inaceitável.
[...] Se o espectador se pergunta (forçado pela prática da
encenação) se deve reagir àquilo que se passa no palco como
icção (esteticamente) ou como realidade (moralmente), essa via
do teatro no limite do real justamente desestabiliza a segurança
irreletida e a certeza com que o espectador vivencia seu estado
como um modo de comportamento social não-problemático
(Lehmann, 2007, p. 168-169).
Não é minha intenção opinar moralmente sobre esse ato, por mais que ele aponte
um outro (e importante) caminho para discussões verticalizadas, e sim tornar visível
o quanto Fabre leva aos extremos sua prática teatral, confundido o espectador e as
noções sobre a realidade, e até mesmo nossa condição humana abusiva aos animais.
Se eu me sinto mal em ver um animal sendo morto em cena, por que, então, não vejo
problema em comer um animal que foi morto longe da minha vista?
A resposta para essa pergunta que eu mesmo me faço, eu não tenho, e como
16
Versão original do livro de Luk Van Den Dries: Fabre toys with danger, but remains within the conventions
of the genre. This scene involves a theatrical trick that guarantees that the actors cannot touch each other. In this
production, Fabre goes all the way in playing the game of theatrical iction.
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incluo acima, não entrarei neste tópico. Mas pressinto que o efeito, seja ele perturbação
ou não, sobre aquele que assiste é instantâneo, e nisso, provavelmente, Fabre regozija.
O trabalho com animais vivos airma a escolha de submeter a
encenação teatral às leis do acaso (e, então, à não reprodutibilidade
do gesto), ainda que buscando certo controle da imprevisibilidade
do real no evento performativo (Boato, 2013, p. 451).
Não restam dúvidas que a utilização de animais em cena trará à tona a ideia
de acaso muito forte, pois se torna difícil conseguir controlar esse tipo de “atuante”.
Apesar dessa ideia de acaso vir atrelada às cenas que possuem animais, o trabalho de
Fabre se mostra em um rigor e disciplina extenuantes (contraditoriamente).
3.6 DISCIPLINA E PODER
A meu ver repetição também quer dizer disciplina. Os corpos fazem as mesmas
ações repetidas vezes, tão uniformemente quanto possível. Percebo que a uniformidade
é muito importante no trabalho Fabre. Por exemplo, os performers em The Power of
Theatrical Madness vestem, todos, a mesma roupa: calças pretas e uma jaqueta, blusa
branca e gravata preta.
Parece que Fabre tem um interesse especial em colocar no palco espécies. Os
contornos são sempre os mesmos. À distância – e Fabre provavelmente dirige essa
distância – é especialmente a uniformidade que atinge a vista (o vídeo propicia isso
melhor, por captar o palco sempre de longe, em sua totalidade). É um pouco como
assistir a uma massa de insetos se contorcendo – o ponto fulcral são as espécies, não
o individual.
Isso não atinge somente as roupas, mas até mais os movimentos. Cada tipo de
individualidade é reprimida por detrás de uma série de movimentos completamente
simétricos. É como se os atores desaparecessem atrás dos padrões mecanicamente
executados, todos ao mesmo tempo. O corpo individual se retira para o benefício do
corpo coletivo.
Poderia dizer, então, que a gênese de seu trabalho consiste nessa meticulosidade
desconcertante, precisa e violenta em uma forma rígida, com pretensões de resgatar
formas clássicas artísticas no intuito de desconstruí-las.
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Imagem 8: O igurino da obra The Power of Theatrical Madness, 201217
Essa foto da obra me convida a observar a disciplina harmônica dominante no palco,
os corpos rijos, as roupas iguais, e provavelmente por Jan Fabre ser um artista visual,
exista uma preocupação gritante em extrair uma espécie de simetria desconcertante.
Se prestarmos atenção, as distâncias entre os atuantes é minimamente calculada,
basta olhar para as distâncias dos pratos para perceber que deve existir uma marcação
para esses lugares comporem o arranjo total.
Além disso, os dois imperadores, cada qual nas pontas da cena, também dialogam
com a imagem total, simetricamente ao quadrado da “caixa cênica” que chamamos
de palco. Essa característica é muito forte nas obras de Fabre, e mais interessante
é perceber que esta cena é extremamente dinâmica, e na foto, tudo está tão bem
colocado que os artistas parecem bonecos polidos e não mais humanos.
Essa questão da disciplina me leva certeiramente a pensar em Foucault e a questão
do poder. Acredito que, a partir dessa disciplina, Fabre evidencia os princípios do poder.
A resistência física dos atores é testada constantemente ao extremo. Os movimentos
uniformes e as roupas são desenhados para eliminar qualquer sinal de individualidade.
Comandos e submissões dominam todas as cenas e ações.
17
Fonte disponível em: http://janfabre.be/troubleyn/en/performance/the-power-of-theatrical-madness/
Acesso em 13 de agosto de 2015.
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Como a “disciplinarização” do corpo constitui-se em parte importante da obra de
Fabre, acredito que ela pode ser compreendida sob a perspectiva de Foucault acerca da
análise do poder.
Em seu livro Vigiar e Punir, o ilósofo francês Michel Foucault demonstra que os
mecanismos de poder funcionam numa lógica produtiva, ao invés de operarem numa
de explícita repressão. Fazendo parte do interesse do poder produzir corpos os mais
produtivos possíveis. Nesse sentido, o poder exerce um efeito de instrumentalização de
corpos.
Ele transforma corpos em dispositivos capazes de incorporar, por sua vez, o
próprio poder. Isto ocorre por meio de uma forma de normalização. Todos os corpos
passam por uma fase de adaptação a uma norma, um sistema quase invisível que torna
o corpo socialmente aceitável. Aliado a essa normalização, a individualidade também é
assegurada, uma vez que a norma tolera um vasto número de variantes.
O poder apenas se torna repressivo para aqueles que não aceitam se adaptar:
esses “corpos externos” são sujeitados a um complexo aparato de terapia e punição.
Vejo uma forte referência da obra The Power of Theatrical Madness com a questão de
controle dos corpos.
A repetição ininita se torna uma estratégia para mostrar a
interiorização desses princípios de poder. As disciplinas do corpo
em si. A repetição obrigatória é predominante, não se trata de
uma repetição imposta do lado externo, mas de uma que vem a
ser por si só. Na forma de um comando que foi completamente
interiorizado. Estes corpos são dóceis. Todos que não se adequam
são banidos (Dries, 2006, p. 22).18
Isso se torna dolorosamente (pelas quedas que a performer sofre) visível em
uma cena de The Power of Theatrical Madness, a qual já foi anteriormente mencionada:
uma atriz só recebe a permissão de entrar no palco caso ela saiba a resposta para a
questão de número 1876. A ela é negado o acesso ao palco por meios de extrema
violência. Apenas quando, inalmente, encontra a resposta é que ela consegue entrar
no palco e se adaptar aos corpos disciplinados. A violência será, agora, internalizada.
Ela não resiste mais ao comando e à lei da normalidade. Ela se dobra para se adaptar
à ordem e, voluntariamente, se rende aos olhos que tudo veem.
18
Versão original: The endless repetition becomes a strategy to show the interiorization of those power
principles. The body disciplines itself. The obligation of repetition is predominant, not a repetition that is imposed
from the outside, but one that comes into being by itself. As a command that has been completely interiorized. These
are docile bodies. Everyone who does not it in is banned.
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Mas talvez a repetição exaustiva também possibilite a chance de escapar dessa ordem.
Justamente por que a ordem é tão excessivamente intensa e a uniformidade é aumentada
tão maniacamente, que começa a aparecer a possibilidade do individual surgir.
Talvez seja precisamente na perfeita repetição daquilo que é sempre idêntico, que as
diferenças mínimas entre todos esses corpos uniformes sejam dilatadas gradualmente.
Em meio àquilo que é mais uniforme, cada mínima diferença se torna uma ruptura
inevitável nesse mar de identidades. Possivelmente, Fabre se agarre a isso: milímetro,
segundo, que guardam em si a totalidade do tempo individual.
Mas através, ou devido a essa violência, a força de uma nova, e contemporânea, forma
de teatro consegue se romper. Além de Wagner, além de todos os artistas que são
frequentemente citados durante a performance, de Béjart a Peter Brook, de Artaud
a Beckett. Ao inal da performance um rapaz deita uma performer sobre seu joelho e
estapeia suas nádegas nuas até que ela já não suportando mais a dor e responde ao
enigma “1982?”
Imagem 9: Cena inal da obra “The power of Theatrical Madness, 201219
A performer grita, com as nádegas vermelhas marcadas em dor -“é teatro, como
era de se esperar”. Não randômico, o ano citado demarca a estreia da obra This is
Theatre Like it Was to Be Expected and Foreseen, de 1982. Fabre insere a si mesmo na
história do teatro.
19
Fonte disponível em: http://www.concertgebouw.be/content/cache/originals/img3642.800x400.jpg Acesso
em 13 de novembro de 2015.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Foi em decurso do desejo de entender o trabalho artístico de Jan Fabre que este
trabalho nasceu. Artista esse de quem eu nunca tinha ouvido falar enquanto estudante
na graduação, e que, creio, traz uma discussão germinativa para a cena contemporânea.
Da experiência de construção deste trabalho, não posso deixar de citar o estreitamento
das minhas pretensões investigativas com aqueles que estão lá na Bélgica, e que as
trocas têm sido constantes, deixando palpável a ideia de intercâmbios artísticos, e
descobertas e disseminações de um trabalho de que pouco tem se falado no Brasil.
Já havia intuído que, mesmo sendo detentor da obra em vídeo, ainda não seria
possível perceber todos os “meandros” da obra, e que para isso talvez fosse primordial
entender o processo e não sua inalização.
Entendo que, é a partir do processo
de criação da obra, e tudo que deriva disso (rubrica do ator, um pincel adaptado,
inluência detectada), ou seja, os detalhes que são deixados enquanto vestígios e que
são importantes tanto para o artista quanto para o pesquisador, que interessam para a
construção de uma análise mais rica.
O multiplex code é o resultado de uma emissão multimídica
(drama, vídeo, imagens, sons etc), que provoca no espectador
uma recepção que é muito mais cognitivo-sensória do que racional.
Nesse sentido, qualquer descrição de performance ica muito mais
distante da sensação de assisti-las, reportando-se, geralmente,
essa descrição ao relato dos “fatos” acontecidos. (Schechner, 1978
apud Cohen, 2002, p.30)20.
Diante desse pequeno fragmento colhido no livro do Cohen, percebi uma barreira,
pois, estando distante da obra, a possibilidade de sentir um trabalho tão cheio de
emissões sensórias, na tentativa de compreender as provocações suscitadas pela
encenação através de um vídeo, se tornou tarefa questionadora.
Concordo que falar de performance, ou de arte como um todo, talvez exija uma
proximidade maior, mas não anulo as possibilidades de partilhas. Mesmo não estando
próximo, e não “sentindo” como quem sente ao vivo, o vídeo, os textos e o site do
diretor me mostraram um caminho a seguir de forma menos obscura.
A partir do vídeo eu tenho uma experiência, eu extraio aquilo que me toca, eu
20
Citação contida no livro “Performance como Linguagem” do Renato Cohen, 2002.
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relaciono com outros sábios (os autores que permeiam meus escritos), eu procuro
respostas naqueles que viram de perto, e acabo assim, absorvendo muito do trabalho
e não trazendo uma análise inválida.
Falar desse teatro híbrido foi/é um exercício de não tentar separar as artes,
de perceber que as fusões são poderosas nessa arte que, de alguma forma querem
sempre centralizar – o teatro. Inclusive, o fato de precisar separar em tópicos algumas
informações por não conseguir, ainda, conceber uma luidez maior e segura da ideia de
trans na minha própria escrita.
Tenho me deixado contaminar por muitas das discussões suscitadas nas obras de
Fabre, como o tempo cristalizado, o corpo que não é negado, um teatro performativo, a
transdisciplinaridade como uma ilosoia, e escrever sobre isso me deixou mais próximo
de entender isso tudo.
Observo que esse trabalho foi apenas o precursor de uma pesquisa que irá
crescer, germinar através dos diálogos já realizados com o grupo, e produzirá trocas
imensuráveis, sobretudo no entendimento de que, cada vez menos, as fronteiras entre
as artes serão quebradas, e que as germinações podem respirar nos seus cruzamentos.
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ANEXOS:
FICHA TÉCNICA DA OBRA THE POWER OF THEATRICAL MADNESS
Direção Jan Fabre
Música Wim Mertens (published by Usura)
Figurino Pol Engels, Jan Fabre
Assistente de Direção Miet Martens, Renée Copraij Performers Maria Dafneros, Piet
Defrancq, Melissa Guerin, Nelle Hens, Sven Jakir, Carlijn Koppelmans, Georgios
Kotsifakis, Dennis Makris, Lisa May, Giulia Perelli, Gilles Polet, Pietro Quadrino, Merel
Severs, Nicolas Simeha, Kasper Vandenberghe
Costureira Katarzyna Mielczarek
Equipe Técnica Thomas Vermaercke, Geert Vanderauwera
Produção Executiva Helmut Van Den Meersschaut
Produção Executiva de 2012 Thomas Wendelen
Treinador Hans Peter Janssens (Chant), Tango Argentino (Marisa Van Andel & Oliver
Koch) (tango)
Estagiários Giulio Boato (dramaturgy) (Universiteit Bologna), Yorrith Debakker
(performer) (Artesis Hogeschool, Antwerpen), Zairia Dimitropoulou (performer)
(Karolos Koun Art Theatre School, Athene)
Produção do re-enactment 2012 Troubleyn/Jan Fabre (Antwerpen)
com co-produção de DeSingel (Antwerpen, Be), Romaeuropa Festival (Rome)
Estréia 18.07.2012, Burgtheater, Impulstanz Festival, Vienna.
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