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João Tabarra – Um lugar no mundo

2015, Revista Estúdio

Texto sobre a produção do artista português João Tabarra, onde se busca ressaltar como se manifestam em sua obra temáticas e aspectos gerais que colaboram para a inscrição de sua produção numa hipotética "poética do fracasso". Artigo originalmente publicado na Revista Estúdio n.12, dez. 2015 (Lisboa).

JOÃO TABARRA – UM LUGAR NO MUNDO Guy Amado Texto originalmente publicado, com pequenas alterações, na Revista Estúdio vol. 6, n. 12, Lisboa, dez. 2015 À maneira de uma introdução Interessa aqui ressaltar como se manifestam na obra de Tabarra os aspectos do épico e do patético, acentuando sua dimensão crítica e colaborando para a inscrição de sua produção numa hipotética poética do fracasso. E quando a proposta do artigo é analisar determinados aspectos da obra de um artista, pode ser adequado fornecer, já de saída, dados que permitam uma maior aproximação à produção em foco por parte do leitor, para que então se proceda a seguir ao comentário. Iniciamos, portanto, com algumas imagens. Figura 1. Na penumbra que envolve a rodovia, vislumbra-se um vulto, subitamente surgido à luz dos faróis do automóvel. Está atravessado na estrada, obstruindo-a e interferindo na circulação do veículo: trata-se de um homem. É um homem mas está de gatas, em trajes negros como a noite em que se dá esse encontro, e apoiado em suas mãos nuas e pés descalços, à maneira de um animal selvagem. Está a encarar silenciosamente a fonte da iluminação que o faz surgir na imagem e não esboça qualquer actitude ou reação; apenas segue ali, como que ciente da fragilidade de sua condição frente à potência da máquina e de seu conductor. [figura 1] 1 Figura 1. João Tabarra, Strada – one of us, 2004 2. Em um cenário a céu aberto que se adivinha como sendo uma paisagem de periferia urbana, tomado por escassa vegetação rasteira e pontuado ao fundo por chaminés e torres de electricidade, surge em primeiro plano a figura de um homem a empunhar uma bandeira. O homem caminha decidido, e na bandeira que porta lê-se a frase “Plus jamais la fin du monde” [“Nunca mais o fim do mundo”], grafada em tinta spray à maneira de um graffiti. A postura resoluta da personagem em sua marcha solitária e a assertividade conclamativa da mensagem que carrega fazem lembrar a figura de Joseph Beuys em seu famoso trabalho cujo mote é também seu título, La Rivoluzione Siamo Noi (1972). As aproximações parecem contudo esgotar-se nestes aspectos: ao contário do que ocorre na peça do artista germânico e seu clamor universalizante pelo potencial que via nas aproximações entre arte, vida e a política, nosso caminhante assemelha-se mais a um activista resignado, em sua manifestação solitária. Ademais, é captado na imagem quase de costas em sua deslocação, o que 2 sinaliza certa indiferença em relação a juízos que se possa tecer de sua empreitada, enquanto o alemão dirige-se frontalmente ao espectador, como que a reiterar a natureza urgente de sua convocatória. De resto, o que pode haver de caricato em ambas as ações – e em Beuys esse registo não é raro, decorrente da tensão constante entre o humanismo idealista que advoga, com suas pretensões emancipatórias, e a ingenuidade no limite do exibicionismo que permeia algumas de suas intervenções de carácter público – tal fator é claramente diferido pelo modo como a figura do homem que avança convicto, com sua bandeirola, assume o carácter quixotesco de seu gesto. "Posso ir até ao fim do mundo a empunhar isto", quase parece dizer. [figura 2] Figura 2. João Tabarra, True lies and alibis – Marche solitaire, 1999. Fotografia. 3. Sob um céu límpido, em uma locação rural qualquer, apresenta-se um lago de águas barrentas. Sua presença ocupa cerca de dois terços da imagem, emoldurado pela característica vegetação que circunda; e agachado à margem direita deste lodaçal – e novamente à semelhança de um animal –, vemos um homem a saciar a sede naquelas águas barrentas, suas mãos e joelhos imersos na água. A despeito do evento assumir à partida contornos pueris, a composição cuidadosa da cena, sua iluminação e seu esquematismo – o modo como seus elementos a ela se ajustam – conferem à imagem uma aura que intui-se como 3 (algo perversamente) vinculada ao imaginário das fábulas e contos de fadas. [figura 3] Figura 3. João Tabarra, Lake + Fool, 2000 4. No écrã, agora sobre o oceano, paira um helicóptero, de onde se observará toda a ação subsequente. Um mergulhador, suspenso por um cabo atado à máquina, é descido ao nível do mar para resgatar um homem à deriva, cuja figura já se percebe na superfície líquida. Pouco tempo depois, estão ambos no aparelho, salvador e socorrido; este último tem vestidos calça, camisa e sapatos — ensopados — e exibe um sorriso ambíguo, menos de alívio que triunfal. Em seguida, a um comando do sapador a aeronave desloca-se para a direita do campo visual do espectador, rumo a um elegante e deserto complexo de piscinas. Ali, o cabo é novamente descido, e o profissional de salvamentos acionado; desta vez para deitar cuidadosamente o homem na acolhedora água azul que o aguarda abaixo. O nonsense da situação — que diverte e inquieta em medidas similares— será ainda intensificado pelo acto final, a se iniciar já em seguida, quando, após 4 alguns instantes, uma nova ordem é dada, agora para tornar a recolher o peculiar banhista. Ele é então sacado da piscina, onde chapinhava, e transportado uma vez mais para o mar, onde é finalmente depositado...apenas para reiniciar a ação, em uma espécie de loop “sisifesco”. [figura 4] Figura 4. João Tabarra, stills de Êxodo, 2007. Projeção HD em loop 5. De volta ao mar. É um dia cinzento na praia, e um homem solitário está de pé, em frente à linha marítima. Ele parece plenamente absorvido pelo acto contemplativo, fitando a imensidão do oceano como se assim, talvez, fosse capaz de alcançar sua outra margem, ou quiçá aceder a toda uma carga histórica intemporal evocada por aquele referencial. De seus ombros pende um longo e pomposo manto colorido — que contrasta vivamente com os mttizes pálidos da faixa litorânea que se funde ao céu — que se estende diagonalmente por muitos metros até o primeiro plano da imagem, vindo de encontro aos olhos do espectador. O objecto em princípio intensificaria a solenidade do momento; no entanto, acompanhando o serpentear que o improvável adereço descreve sobre a areia, percebemos que este é na verdade composto por um apanhado de singelas toalhas de praia, arranjadas para se obter tal efeito. Eventuais devaneios sobre glórias imemoriais, activados por aquele oceano carregado de História que se estende frente aos olhos, são assim subitamente interrompidos ou desmontados pela mera constatação deste artifício, em um golpe sutil à percepção. [figura 5] 5 Figura 5. João Tabarra, Shuffle, 2000 (detalhe) 6. O cenário vagamente rural sugere algum abandono. Na composição fotográfica precisa, vê-se na diagonal que "puxa" o olhar e se abre como eixo focal uma parelha improvável, composta por um homem de negro – sempre ele – e uma improvável fada, de branco, a se deslocar com esforço por uma trilha formada por rochas e pedregulhos. O esforço deve-se ao facto de trazerem consigo um carrinho de supermercado abarrotado com seus pertences, e o aclive que sugere ser aquilo uma colina torna a empreitada mais difícil. A estranha "fada" masculinizada vai à frente, a puxar, enquanto o homem completa a cena a empurrar o conjunto. Para onde vão não se sabe. Mas intui-se que seu caminho é o da adversidade; neste cenário perturbador, onde o mundano e o encantatório parecem encontrar-se sob o signo da falência, tal visão afigura-se algo melancólica; seu carácter patético, de um épico falhado, convida a um riso 6 nervoso, entre a eventual identificação e a repulsa inerente àquela condição. [figura 6] Figura 6. João Tabarra, This is not a drill (No pain, no gain), 1999 7. Em uma paisagem urbana de arrabalde, emoldurada por um conjunto habitacional social ao fundo, um grupo de pessoas está reunido aparentemente em torno de algo. À sua frente, em meio aos pedregulhos que abundam naquele terreno desolado, identifica-se a razão de ali estarem: distinguimos os contornos de uma faixa sinalizadora e plaquetas numeradas, ambas de uso pericial, do tipo utilizado para se demarcar áreas de ocorrência criminal. Temos portanto uma suposta equipa forense em acção. E no entanto não há vestígios materiais de qualquer corpo ou cadáver na área assinalada – o que de qualquer forma não parece alterar o comprometimento das personagens com a tarefa que lhes cabe. [Figura 7] 7 Figura 7. João Tabarra, A segunda morte de Rocinante, 2007 Autor e personagem de si E então assinala-se que as imagens acima descritas referem-se a obras de João Tabarra; e que é também ele próprio a figura masculina que surge como protagonista em todas, facto recorrente em sua práxis – ainda que na última foto isto seja menos imediatamente perceptível. Artista de formação essencialmente autodidacta, egresso do fotojornalismo (experiência absolutamente determinante em seu posterior percurso artístico), Tabarra desponta no cenário português em inícios dos anos 1990, já com uma abordagem crítica consistente e mordaz da realidade quotidiana. A fotografia e o vídeo são desde sempre seus instrumentos primordiais, alternando-se e convivendo sem problemas em sua práxis. E ainda que referido maioritariamente como fotógrafo, Tabarra tem no cinema influência 8 confessadamente decisiva em seu processo criativo. E interessa aqui destacar o facto de ser frequente, na práctica de Tabarra, vermos o próprio artista incorporado como personagem em suas séries fotográficas e seus vídeos e filmes. Com uma trajectória onde sobressai uma linha temática marcada pela componente social e política, João Tabarra constrói um percurso poético que tem sempre no escopo de suas questões a relação com o espectador ou observador, confrontando-o com a problematização simultânea sobre condições e possibilidades da sua própria existência, bem como do seu lugar no mundo. Sua produção artística é marcada por um tom político e forte sentido crítico da realidade que o cerca, pautado em uma plataforma estética que conjuga ainda uma dimensão ética e valores pessoais muito próprios. Seu imaginário incorpora também o absurdo, revelando as contradições e anseios do homem contemporâneo. O suposto protagonismo mencionado mais acima mostra-se contudo relativo, restrito à presença corpórea e silenciosa do artista em cena, já que emerge quase sempre em contextos e situações francamente ásperos, disruptivos, desconfortáveis. Não se trata, portanto, de haver uma qualquer pulsão narcísica – e menos ainda um afã hedonista – por trás deste flerte com a autorreferenciação: antes pelo contrário, é como se o artista antecipasse o constrangimento em convidar um actor ou outra pessoa que não ele para surgir nas elaboradas e desviantes narrativas visuais que constrói. E para mais, trata-se também de uma decisão de cunho conceptual, na medida que, ao assim proceder, encurta a distância comunicativa e estabelece um canal mais imediato de fruição com a audiência, ao eliminar um eventual "intermediário". Tais impressões tornam-se cristalinas nas palavras do próprio artista: [...] não uso de forma alguma o eu para atingir um clímax dramático, mas é verdade que ao não criar ou propor um outro personagem que actue nos meus trabalhos centro a atenção do receptor no autor e corro o risco de uma exposição narcísica… Mas o que de facto é importante salientar no porquê da minha entrada nos trabalhos, prende-se mais com uma fuga ao actor [...], quero aniquilar o intérprete e a distância com a qual eu teria que operar [...]. (Urbano, João; Maria Gusmão, João: 2007, 69-70) 9 Junto à componente autorrepresentativa, a um repertório de temas fortemente calcado nas contradições e anseios da vida quotidiana (aspectos aos quais o autor pode estrategicamente adicionar, e o faz, umas doses de ficção) e ao sentido crítico que caracteriza o discurso artístico e forja o modus operandi de Tabarra, está um conceito que muito ilumina seu processo de construção da imagem, conforme já argutamente apontado por Miguel Von Hafe Pérez em texto de há mais de 10 anos (2002: 17): o de cinematografia tal qual entendida e praticada por Jeff Wall. Uma passagem deste grande expoente da fotografia contemporânea resume muito das questões em jogo na obra de Tabarra: The beauty of the photograph is rooted in the great collage which everyday life is (…). There is a “voice” there, but it cannot be attributed to an author or a speaker, not even to the photographer. (…) Someone is now responsible for the mise-enscène, and that someone is pretending to be everyone, to be anonymous, in so far as the scene is “lifelike” and in so far as the picture resembles a photograph. Cinematography is something very like ventriloquism. (Wall, 2002: 22) A pulsão por dar corpo – e sobretudo voz – a um modo engajado de ser e estar no mundo, de oferecer interpretações à natureza complexa, conflitual e fascinante que tipifica a condição humana e que se mostra tão cara ao projecto estético de João Tabarra encontra nesta passagem uma bela definição. Afinal, este alguém por trás da concepção de uma imagem que seja "igual à vida" e que "pretenda ser toda a gente" e ainda ser anónimo, este "ventríloquo" que Wall sugere ser o operador desta cinematografia guarda muitas semelhanças com o artista português, seja enquanto indivíduo como em termos processuais. O vetor do fracasso O acentuado tom crítico – em registos oscilantes – que perpassa toda a produção imagética de João Tabarra é marcado por alguns elementos recorrentes, já muito comentados por interlocutores especializados ao longo dos anos. Interessa aqui destacar que suas encenações visuais – sejam elas filmes ou fotografias – apresentam com frequência um componente épico ou heróico que é sistematicamente subvertido pela presença de um elemento disruptor que será 10 trazido à baila para inviabilizar esta leitura (espera-se que a breve descrição de algumas obras do artista que abre este texto possa auxiliar na percepção deste factor). Em outras palavras, falamos de um quase permanente jogo de frustração de expectativas, que ora se dá em registo mais lírico ou poético, ora mais cru ou áspero. Esta combinação conduz ao estabelecimento de uma dinâmica em que o humor e o sarcasmo caminham lado a lado com um sentido do trágico e do patético, e onde a ideia de fracasso parece ganhar corpo como uma tónica dominante, como um mote temático informal que até certo ponto perpassa toda a sua obra e impulsiona seu processo de criação. Um fracasso onde cabem diversas acepções: do clássico herói falhado – e o Quixote de Cervantes será aqui certamente uma referência de peso, como se sustenta a seguir – a um colapso ideológico e, em última análise, civilizacional generalizado1, é sensível na produção de Tabarra a proximidade que esta mantém de um pathos do falhanço. Aspecto que não deixa de ser corroborado pelo artista, quando indagado a respeito deste tópico: Penso que a minha figura enquanto herói não tem uma ancoragem ou sustentação. O que eu vejo, ao ser eu a encenar-me como proposta de herói, é a de alguém absolutamente falhado. (...) Julgo que se trata de um herói completamente corrompido, falhado, que não chega sequer a ser herói, porque ele à partida é desmontado pela sua fragilidade e é reconhecido pelo receptor, pelo público, como um de nós. (...) Se vires, toda a construção dos meus trabalhos, aquilo que fica é, para já, um falhanço absoluto, um excesso ou uma excrecência total." (Urbano, João; Maria Gusmão, João, 2007, p. 70) Quixotismo 1 Tal pulsão se verifica de modo flagrante em seu mais recente projecto, "Biotope" (2015), uma incursão-manifesto ao universo da animalidade primeva como agenciadora de certo desencanto com todo um projeto dito civilizatório que conforma a existência contemporânea, para além de eventuais identificações pessoais com a causa ecológica. 11 E assim, à luz das potencialidades do falhanço, encerramos com a observação de pontos de contacto existentes na mais conhecida obra de Cervantes e na produção de Tabarra. E para tal emprestamos de Juan José Saer a bela imagem de uma "moral do fracasso" (Saer, 2002), concebida justamente a partir do intemporal Dom Quixote. O autor argentino postula essa noção a partir da enorme influência exercida pelo romance de Cervantes sobre o cânone da narrativa ocidental, especialmente o género da epopéia, contrapondo-a à "ingenuidade épica" enunciada por Adorno em ensaio de 1943, “Sobre a ingenuidade épica”. Neste texto, que integra a pesquisa do que viria a ser a monumental "Dialética do esclarecimento" que elaborava com Horkheimer, Adorno define o discurso épico a partir da noção de mito e do que nele vê como uma contradição de origem. Como observa a estudiosa do autor germânico Suene Honorato, o narrador intenta, por meio da linguagem, "o registro de um material de natureza fungível e monótona" – o próprio mito (Honorato, 2012, 66). Embora possa ser entendido como o próprio discurso narrativo, Adorno aqui o considera ainda como distinto da linguagem, como matéria para a produção da narrativa épica. Estruturante clássica dessa mesma narrativa épica, a "irrefletida inconsciência com que o herói da epopéia se lança ao mar dos acontecimentos para realizar um determinado objetivo" (Saer, 2002) dá lugar a um modelo mais desesperançado inaugurado pelo Quixote, onde não apenas os objetivos do protagonista são irrealizáveis como também os acontecimentos possuem condição incerta. E asssim como as personagens de Tabarra, ainda que antecipe vagamente seu fracasso, ele decide prosseguir em suas desventuras. A imagem do herói deslocado é a caracterização quixotesca por excelência; o cavaleiro errante vive em um mundo que não é o dele, tendo como meta – falhada – provar que o mundo ao qual ele pertence ainda existe. Se o confronto desta personagem tradicional com o mundo é marcado por sua tendência a confundir fragmentos da realidade quotidiana com indícios de um mundo que não mais existe, em Tabarra passa-se quase o oposto. O procedimento deste artista consiste em trazer à tona certas situações, fragmentos da realidade materializados em acções por vezes ficcionadas – encenações permeadas de um elemento mundano não raro incómodas – para nos fazer lembrar que o que ali se passa é parte de um todo que nos cerca, de um grande sistema que calha de ser 12 aquele mesmo em que vivemos. E que, por mais que isto nos desagrade ou gere desconforto, temos sempre que seguir nos havendo com ele. Em conhecida análise da saga quixotesca no capítulo de abertura de seu Madness and civilization, Michel Foucault sugere que o protagonista de Cervantes – seu alter-ego, para muitos – representaria, no limite, uma versão de todos nós – "of the imaginary relations he [man in general] maintains with himself" (Foucault, 1988, p. 32). Referia-se com isso a pequenas idiossincrasias que pontuam nossa existência, às pequenas ilusões que todos alimentamos, em graus diversos, acerca de nós mesmos, a fim de alimentar nossa autoestima e seguir em frente. Naquele texto, o pensador francês defendia a loucura enquanto motor da potencialidade criativa, espécie de força ontológica que impulsiona a criação para além das fronteiras do significado, da razão e do pensamento. Em Dom Quíxote, a loucura é o preço que o herói paga por confundir a ficção com a realidade; ali, como no mais das vezes na produção de Tabarra, a ficção é introduzida apenas para se aceder ao real de maneiras diversas, sempre a serviço de intenções muito sérias, estrategicamente amortecidas pelo registo do patético que permeia ambas as sagas – a do cavaleiro e a do artista. Ao fim e ao cabo, a obra deste artista parece partilhar da mesma atração pela impossibilidade, enunciando convicta e repetidamente sua investida rumo a um objetivo incerto e inatingível – condição classicamente impulsionadora da prática artística. A moral do fracasso inaugurada pelo cavaleiro de La Mancha é assim atualizada na produção de João Tabarra, nela injetando doses de generoso humanismo, apesar de tudo: ...O que espero que se note é uma destabilização final dessa ideia de herói. (...) Uma impotência de controlar o que se está a passar e o que sobra é uma fragilidade total do humano. E aí, em vez de sobrar o herói, sobra uma tentativa de herói que rapidamente se revela falhada. O que fica, no fim, é um de nós, um qualquer de nós. (Urbano, João; Maria Gusmão, João: 2007, 77-78) 13 Referências Bibliográficas Foucault, Michel (1988). Madness and civilization – A History of Insanity in the Age of Reason. Trad. Richard Howard. New York, Vintage Books Honorato, Suene (2012). "Sobre o conceito de 'ingenuidade épica' em Adorno". Revista Eletrônica Literatura e Autoritarismo (UFSM), v.12, pp. 65-77, Nov. 2012 Pérez, Miguel Von Hafe (2002). "Três andamentos numa aproximação ao trabalho de João Tabarra", in João Tabarra, cat. da Representação Portuguesa à XXV Bienal de Arte de São Paulo. Lisboa: Instituto de Arte Contemporânea / Ministério da Cultura Saer, Juan José (2002). "A moral do fracasso de Dom Quixote". Folha de São Paulo. São Paulo: Folha da Manhã S/A, 23 jun. 2002. Mais, n.541, p. 3-4 Tabarra, João (2014). Narrativa interior – João Tabarra. Catálogo de exposição. Lisboa: CAM – Fundação Calouste Gulbenkian. Urbano, João; Maria Gusmão, João (2007). "Desaparecimento, falha e êxodo - Entrevista a João Tabarra". Revista NADA, n.9, mar 2007: 61-79. Wall, Jeff (2002). "Arielle Pelenc in Correspondence with Jeff Wall", Jeff Wall, London: Phaidon Press: 22) 14