O privilégio de ler
Drummond
Gi lb er to M en d o nç a T e l e s
J
á é hoje mais ou menos comum a afirmação de que a obra de um
grande escritor, como a de Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987), é algo que não se entrega totalmente, que sempre permanece desafiando as gerações de críticos e leitores, o que, além de
ser uma prova da “eternidade” da obra artística, não deixa de ser
também, um forte desafio à estética da recepção. Aliás, o próprio
poeta joga com esses elementos teóricos num poema de Fazendeiro do
ar, quando afirma, entre irônico e malicioso,
E como ficou chato ser moderno.
Agora serei eterno.
É sob este aspecto de perenidade e transformação que um obstinado leitor da obra de Drummond tem de se dar conta de uma dupla
transformação: uma, ao longo da obra em que pretende descobrir os
sinais de que o pensamento poético do autor dessa obra se foi modificando, de livro para livro; outra, ao longo de sua própria consciên81
Poeta, crítico e
professor de
Literatura
Brasileira na
PUC-Rio.
Gi lberto Mendo nç a Te l e s
cia crítica, questionando-se, e a seus métodos, num contínuo esforço
de perfeição. De um lado, o exame autocrítico de como me tenho variado e repetido diante da obra do poeta; e, de outro, uma nova tentativa de mostrar como a concepção poética de Drummond se afirmou e se modificou nesses sessenta e cinco anos de produção, que
são também os da história da própria modernidade brasileira.
Assim, com o tempo, revendo as suas pretensões, o crítico acaba
se dando conta de que, apesar de métodos e objetivos diferentes,
muito pouco conseguiu fixar nas suas aventuras. A riqueza, a complexidade e a força simbólica de uma obra como a de Drummond
constituem um desafio permanente. E só a soma futura dos livros,
monografias e das interpretações poderá oferecer, se não a totalidade, pelo menos uma visão das principais tendências temáticas e estilísticas de sua grande obra literária.
Pode ser um tanto fastidioso mostrar como me tenho debruçado sobre a poesia de Carlos Drummond de Andrade, mas é importante revelar o gosto do aprendizado, primeiro como leitor ávido
de fruição e prazer; depois, como leitor-crítico, tentando apreender algumas de suas categorias poéticas e procurando formular um
possível entendimento de seu processo de criação. A leitura inocente, de prazer, quase sempre tem levado à leitura crítica e esta, à
medida que se esgotam as suas possibilidades e proposições, se vê
atraída por outros sentidos, pela significação que acena a outras direções metodológicas.
Num verbete sobre História da Literatura, no Dicionário enciclopédico das ciências da linguagem, Todorov fala de alguns modelos metafóricos que têm sido usados para designar as “leis” de transformação do
discurso literário. Um desses modelos é designado pela palavra calidoscópio. A criação literária é comparada a esse jogo óptico, em que
cada movimento motiva novas combinações de forma, como em um
calidoscópio, porque a essência da criação literária estaria justamen-
82
O pri vi légi o de ler Dr u m m o n d
te nessa possibilidade “infinita” de combinações. Isto quer dizer que
a matéria e os elementos da literatura se apresentam ao mesmo tempo para todos os escritores que, entretanto, por força de sua própria
individualidade (do seu saber, de sua virtuosidade e de sua audácia,
isto é, da originalidade de seu estilo), combinam diferentemente a
sua matéria literária. O que se conta é mesmo a nova combinação, aquela
“alta organização” de que fala Iuri Lotman, aquela “personalidade
do autor” com que tanto se preocuparam os formalistas tchecos,
principalmente Jan Mukarövsky.
Há, nesta concepção, muito pouco de novidade nos movimentos
literários e nas suas obras, o que mais ou menos explica a extrema dificuldade na invenção e na imposição de um novo gênero. Neste sentido, o elemento identificador é a substância da tradição literária, enquanto o diferenciador reside no processo de organização que, sendo
novo, não rompe definitivamente com o conhecimento da tradição e
estabelece condições para o estatuto da originalidade. Todorov cita
a opinião de estudiosos como Chklosvki, para quem “O trabalho
das escolas literárias consiste muito mais na disposição que na criação das imagens”.
Se esta é a opinião de teóricos, o certo é que é também a de um escritor como Drummond que, num depoimento pessoal, me afirmou
estar convencido de que o poeta trabalha sempre a mesma obra, como
se houvesse um fundo permanente (o seu “armazém do factível”?),
sempre retomado mais ou menos diferentemente pela vida afora.1
Esta visão tem muito a ver com a da metáfora do calidoscópio ou,
pelo menos, com um dos métodos bem conhecidos na história geral,
o da repetição cíclica e em espiral dos acontecimentos, embora para
o poeta toda história seja remorso, conforme se lê em uma das
“Estampas de Vila Rica”, em Claro enigma.
83
1
Cf. A retórica do
silêncio. 2a edição.
Rio de Janeiro:
José Olympio,
1989, p. 50.
Gi lberto Mendo nç a Te l e s
1. A geografia de Versiprosa
2
O neto de
Drummond,
cioso dos
direitos autorais
e do
comportamento
amoroso do
poeta, proibiu a
publicação de
três belos
poemas a Lyo
que abrem o
manuscrito de
Lição de coisas, os
quais, não se
sabe por quê,
não foram
publicados na
primeira edição,
em 1962.
Ao publicar Versiprosa, em 1967, Drummond tem consciência de que
está num meio-termo entre a poesia e a prosa, tanto que numa pequena
nota define a sua montagem vocabular: “Versiprosa, palavra não dicionarizada, como tantas outras, acudiu-me para qualificar a matéria deste
livro.” Diz que se trata de um livro de crônicas publicadas nos jornais e
acrescenta, de maneira teórica e machadiana: “Crônicas que transferem
para o verso comentários e divagações da prosa. Não me animo a chamá-la de poesia. Prosa, a rigor, deixaram de ser. Então, versiprosa.”
É claro que o neologismo tem endereço certo e se restringe a
um livro de crônicas em verso, mas, visto num sentido mais largo,
ele pode apontar também para as duas vertentes, para os dois gêneros – a poesia e a prosa – em que se deu a produção intelectual do
escritor que escreveu mais de vinte livros de poemas e mais de
quinze de prosa, ou seja, de crítica, de crônica e de ficção – de novela e conto. E esses dois gêneros não são nem ficaram puros na
obra de Drummond: a poesia, através do verso, do verso livre, do
não-verso, do poema em prosa e de estruturas lírico-narrativas, se
foi insinuando pelas formas da prosa, principalmente da crônica,
como as desta às vezes perpassaram pelas do poema, além do que
grande parte dos contos se identifica com um tipo especial de
crônica desenvolvido pelo escritor. Na verdade, o norte e o sul
desses dois gêneros são mesmo a poesia e a crônica, cujos extremos,
entretanto, se tocam, se interpenetram e se revelam em um gênero
novo, memorialístico, como na série de poemas de Boitempo e de alguns outros livros da maturidade do poeta. [Não é possível incluir aqui os publicados depois da morte do poeta, como O amor natural, com suspeita de que tenha sido alterado para publicação; e
Poesia errante, no qual o valor literário se vê substituído por versos
circunstanciais e fracamente galantes – a Lyo.2]
84
O pri vi légi o de ler Dr u m m o n d
A trajetória literária de Drummond se reduz (ou se amplia?) a
uma forma especial de ver e de viver através das coordenadas de seu
tempo e de sua geografia. Apesar dos outros tempos, o que parece
contar e sobredeterminar a sua obra é que toda ela – verso e prosa –
se realizou em dois tempos visíveis, ainda que a maior parte dela
num único espaço: há um tempo de Minas Gerais e um tempo do Rio de Janeiro fluindo na sua obra, na qual o tempo de Minas se sobrepõe e
ilumina o distanciamento no Rio de Janeiro e o tempo do Rio, embora voltado para a realidade carioca, se veja sempre poetizado por
“um doce vento mineiro”, por “uma estrada de Minas, pedregosa”
ou por aquele “Espírito de Minas” que o visita no Rio de Janeiro e a
quem ele pede, em “Prece de mineiro no Rio”, de A vida passada a limpo
(1958) que não lhe fuja nesta cidade,
como a nuvem se afasta e a ave se alonga,
mas abre um portulano ante meus olhos
que a teu profundo mar conduza, Minas,
Minas além do som, Minas Gerais.
Com ou sem os traços biográficos possíveis de identificação ou
ficcionalmente identificados em sua obra, é fácil averiguar que toda
ela corresponde a essa dupla referência espacial, desdobrada num
mapa, num “portulano”, onde Minas e Rio de Janeiro se deixam ler
como duas “ilhas”, dois “portos”, conforme o sentido marítimo e a
etimologia de portulano. Daí a aproximação das duas regiões pelo sentido de mar: o real (não dito) do Rio de Janeiro e o imaginário, dito,
o “profundo mar” de Minas. Esta palavra se reveste, por sua vez, de
forte conotação simbólica na obra de Drummond, pertencendo
àquela categoria de coisas capazes de nos dar lição, pois estão “além
do som” ou, como o poeta já havia escrito em Lição de coisas nos seus
sessenta anos: “O nome é bem mais do que nome: o além-da-coisa, /
coisa livre de coisa, circulando.” O topônimo Minas chega a huma85
Gi lberto Mendo nç a Te l e s
nizar-se no poema “Canto mineral”, de As impurezas do branco (1973),
onde o poeta dialoga com ele – “Minas, oi Minas” – e onde o define
enigmaticamente no poema “A palavra Minas”, que assim começa:
“Minas não é palavra montanhosa. / É palavra abissal. Minas é dentro/ e fora”; e assim termina, dizendo que “Ninguém sabe Minas”:
Só mineiros sabem. E não dizem
nem a si mesmos o irrevelável segredo
chamado Minas.
Melhor: o grande poeta mineiro sabe e o diz, de maneira sibilina,
fragmentando-o ao longo dos poemas e deixando que o leitor, amorosamente, reúna esses fragmentos e recomponha pelo avesso, utopicamente, o melhor desse segredo. Uma coisa assim como fez Ísis
com o corpo despedaçado de Osíris.
Vê-se deste modo que a produção literária de Drummond se reparte espacialmente: de um lado a obra poética, que aponta originalmente para Minas Gerais na recuperação de um tempo que se atualiza e se presentifica na linguagem da poesia; e, de outro, as três faces
de sua obra de prosa, mais ligada ao Rio de Janeiro e realizada num
tempo cotidiano, em que os temas ou são motivados pelos fluxos da
reminiscência e da consciência (como no caso da crítica) ou são recolhidos diariamente da agitação da vida urbana ou da vida nacional
ecoando no Rio de Janeiro. Não se trata, entretanto, de um tempo
comum, “de partido” ou de “homens partidos”, mas de uma categoria de tempo que se desdobra da memória ou na memória, funcionando no presente como se este fosse apenas um motivo do passado,
mas um passado espacial (e especial) que se materializa no discurso
literário, como nos versos de “Explicação”:
No elevador penso na roça,
na roça penso no elevador.
86
O pri vi légi o de ler Dr u m m o n d
A sua obra poética está assim dentro daquela projeção geográfica “no
mar celeste do Tempo”, realizando-se através das duas vertentes mencionadas. É certo que a presença de Minas (“Minas além do som, Minas Gerais”) não exclui a possibilidade de inúmeros poemas se ligarem
a outras fontes “geográficas” de sua obra. De qualquer maneira, a poesia
é a parte mais funda e primitiva. Move-se miticamente em torno da
infância, da família, dos amigos e de Itabira, tomando gradativamente
consciência de si mesma, do seu autotelismo, quer dizer, vai-se fazendo metalinguagem à medida que o “mundo” se vai fazendo histórico e
se ampliando: primeiro na direção de Belo Horizonte (de Itabira para
Belo Horizonte); depois, na do Rio de Janeiro; e daí na universalização do mundo (o “sentimento do mundo”) na mais alta fusão de mito
e história, de intuição criadora e consciência artística.
A obra de prosa, que se iniciou timidamente aos dezesseis anos, na
Aurora Colegial, de Nova Friburgo, vai ganhando alento nos textos
publicados em Para Todos..., no Rio de Janeiro; começa a adquirir
personalidade depois de 1924, no Diário de Minas, e atinge projeção
estética nos jornais do Rio de Janeiro, onde se acentuou a sua atividade jornalística e onde se publicaram todos os seus livros de prosa
– anotações críticas, contos e crônicas. São justamente as crônicas, gênero em
que Drummond se tornou, também, um dos mais notáveis na literatura brasileira, que constituem a parte mais considerável de sua prosa, não só pela maior freqüência, como pela originalidade expressiva,
pela captação do flagrante diário, e pelo superior tratamento de humor e de ironia com que – um dos raros no país – transformou em
literatura os acontecimentos da vida real e imaginária, dos sublimes
ao mais ridículos. O talento do escritor o levou, com êxito, a percorrer, por um lado, a relação estilística entre a crônica e a poesia e, por
outro, entre a crônica e o conto, de maneira que a sua crônica quase
sempre participa da natureza dos três gêneros – uma pequena descrição de temas cotidianos, com muito de narrativa e de poesia.
87
Gi lberto Mendo nç a Te l e s
Poesia e crônica são as duas formas extremas da linguagem criadora de Drummond, aqui examinada, primeiramente, através de alguns aspectos do seu discurso poético e, depois, de algumas relações
culturais da sua prosa.
2. “Peço a palavra”
Em uma das oito partes do poema “Lanterna mágica”, de Alguma
poesia, que deve ser aproximado do “Poema das sete faces”, do mesmo livro, Drummond diz que “a história é cheia de teias de aranha”,
e, na face dedicada ao Rio de Janeiro, não vacila em pedir a palavra
diante da “boa” que passa: “Passou a boa! Peço a palavra!” Assim,
procurando limpar um pouco de teia de aranha sobre papéis acumulados e com um possível remorso de não ter sabido o sentido exato
daquele verso (“Certo remorso de Goiás!”), eu também peço a palavra para mostrar, de passagem, como de vez em quando, ao longo de
mais de trinta anos, tenho sido tentado a compreender a poesia de
Carlos Drummond de Andrade. Ler, reler, anotar e voltar ao ponto
de partida tem sido um exercício constante na minha relação com a
poesia drummondiana. Ler como poeta, como leitor comum, ler
como crítico, sempre procurando captar a estrutura e o valor de sua
obra – aquele mais além que nem sempre se consegue atingir –, mas
sempre lendo, relendo e anotando, em espiral, na constante busca de
uma nova síntese (muitas vezes apenas “síntese” de leituras anteriores), mas consciente da aventura de uma nova transformação do espírito crítico na direção camoniana da coisa amada. Eis, em resumo,
uma visão de como um caranguejo vem arranhando as praias desse
“profundo mar interior”, que é a poesia de Carlos Drummond de
Andrade.
88
O pri vi légi o de ler Dr u m m o n d
2.1. Forma & poesia
Em um artigo sob o título de “Forma & poesia”, de 1963,3 analisei o poema “Massacre”, de Lição de coisas (1962), e mostrei que, apesar de sua aparência de versos livres, havia por trás deles uma estrutura métrica, decassilábica, com cortes de seis sílabas, fato que se encontrava generalizado nesse livro. Em uma nota da primeira edição
(que restaurei na edição da Aguilar, de 2002), o poeta dizia haver
abandonado quase completamente a “forma fixa que cultivou durante certo período, voltando ao verso que tem apenas a medida e o
impulso determinados pela coisa poética a exprimir”. Escrevi então
que o poeta dava um aspecto informal ao que era, em essência, formalizado no sentido do verso tradicional. Senti que havia assim contradição entre o que dizia a “Nota da Editora”, citando um depoimento
do poeta, e a estrutura de Lição de coisas, livro que, realmente, levava
adiante um projeto poético sem precedentes na literatura brasileira.
2.2. Um procedimento estilístico
Cinco anos depois, na Revista de Cultura Brasileña, de Madri, publiquei um artigo de quarenta e oito páginas, intitulado “La repetición:
un procedimiento estilístico de Carlos Drummond de Andrade”,4
no qual procurei sistematizar o uso retórico da repetição, primeiro,
na estruturação do poema; depois, na intensificação nominal e na dinâmica do processo verbal, além de comprovar como os versos e o
ritmo se adequavam à entonação trocaica (paroxítona, grave) predominante na língua portuguesa e no espanhol, sobretudo quando
comparada às outras línguas românicas, como o acento jâmbico (oxítono, agudo) do francês e o dactílico (proparoxítono, esdrúxulo) do
italiano e do romeno.
89
3
Em o 4o Poder,
Goiânia,
28.7.1963.
Transcrito em A
crítica e o princípio
do prazer (Estudos
Goianos – II),
Goiânia:
Universidade
Federal de Goiás,
1995.
4
Revista de
Cultura Brasileña,
Madrid,
Embajada
Brasileña, no 27,
diciembre de
1968.
Gi lberto Mendo nç a Te l e s
2.3. A estilística da repetição
5
Tese de
Doutoramento e
de
Livre-Docência
na Pontifícia
Universidade
Católica do Rio
Grande do Sul,
em 1969.
Editado na
Coleção
Documentos
Brasileiros da
José Olympio
Editora, 1970.
6
Seleta em prosa e
verso. 12a edição.
Rio de Janeiro:
Record, 1994.
Esse artigo foi o núcleo da investigação e da análise que em 1970
se publicou com o nome de Drummond: a estilística da repetição.5 Dividiu-se o livro em duas partes. Na primeira, situou-se o poeta no contexto modernista, mas em um “não-estar-estando”, como num verso
de Claro enigma, e procurou-se dar uma idéia da “ingaia ciência” chamada Estilística. Na segunda, aparecem capítulos que se denominam “O armário cristalino”, “Os materiais da vida” e “A turva sintaxe”, nos quais estudou-se o procedimento técnico da repetição vocabular (epizeuxe) através da simples reduplicação (“palavra, palavra”,
José), do ritmo ternário (“curvas curvas curvas”, Brejo das almas) e da
pluri-repetição (“ficha ficha ficha ficha ficha / Fi ch ch ch ch ch”,
Vida passada a limpo). Procedendo a um levantamento do uso da repetição na obra de grandes poetas modernistas chegou-se à conclusão
de que “a reduplicação, pertencendo à linguagem coloquial, foi de
certo modo uma decorrência da moda literária do Modernismo, na
sua primeira fase, quando os poetas se aproximaram da linguagem
coloquial; ao passo que a triplicação do vocábulo (“Oh que duro,
duro, duro! / ofício de se exprimir”, Novos poemas) era um fenômeno
estilístico, de natureza individual, portanto, e muito mais freqüente
na poesia (e em toda a obra) de Drummond.
2.4. A linguagem criadora
Em 1971, com os estudos e notas na Seleta em prosa e verso,6 cujos
textos foram selecionados pelo próprio Drummond, escrevi, além
de um “Retrato” do poeta, um novo ensaio denominado “A linguagem criadora de Drummond”. Dois aspectos foram ali privilegiados: a Obra, distinguindo-se nela a poesia e a prosa e, nesta, a crônica, o
conto e também o ensaio crítico; e a Linguagem, com a observação de
90
O pri vi légi o de ler Dr u m m o n d
que como a sua obra – poesia e prosa – foi produzida dentro do
Modernismo, evoluindo com ele, era preciso que o valor de sua expressão literária fosse examinado tanto em relação com a linguagem
tradicional e renovada, como em relação direta com a linguagem coloquial, de que os modernistas tanto se aproximaram. É sabido que
essa linguagem é um feixe de traços lingüísticos diversos, todos vivos
no falar brasileiro. Procurou-se também alcançar o conjunto de sua
obra de poesia adotando-se outro tipo de classificação, como aquele
que já se mencionou – o do tempo de Minas Gerais, mais diretamente relacionado com a poesia; e o do tempo do Rio de Janeiro, que influiu fortemente na obra de prosa, nas crônicas principalmente.
2.5. Cammond & Drummões
Em 1973, no livro Camões e a poesia brasileira7 chamei a atenção para
a relação da poesia de Drummond com a épica e a lírica de Camões.
Em um capítulo intitulado “Cammond & Drummões”, afirmei que
Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade são entre os
grandes escritores de língua portuguesa os que mais dialogaram com
a obra e com o nome de Camões, citando versos e imagens da lírica e
do poema épico, deformando-os e até brincando com o nome do
vate lusitano. Drummond foi, literalmente, o amador da “cousa
amada”, ao juntar os dois significantes, fazendo o seu nome deslizar
para o nome do poeta de Os Lusíadas, assim como já havia feito o
nome de Camões navegar por sobre a etimologia de seu nome –
drumm + ond: “as altas ondas” em escocês.
Ao contrário de Cassiano Ricardo e de Jorge de Lima, que transfundiram nas suas obras épico-líricas temas e formas camonianas, a
obra de Carlos Drummond de Andrade, circunscrita na sua alta individualidade poética, não chegou nem teve necessidade de realizar essa
transfusão, de modo que o número de referências a Camões revela,
91
7
Rio de Janeiro:
MEC, 1983. A
4a edição,
aumentada, saiu
em Lisboa:
Imprensa
Nacional/Casa
da Moeda, 2001.
Gi lberto Mendo nç a Te l e s
além da natural admiração, um simples recurso literário, de intertextualidade, funcionando às vezes como fonte de humor e de ironia,
como modéstia, como mera citação e de vez em quando impregnando,
consciente ou inconscientemente, o seu processo criador.
Se lucidamente o poeta diz “Não me leias se buscas / flamante
novidade / ou sopro de Camões” (“Poema-orelha”, de Vida passada a
limpo), e se ironicamente afirma que “Os camonianos [que] são muitos e graves” ou “Confessei-lhe, em meu saber de ignorâncias feito”,
é fácil perceber que num poema como “A máquina do mundo”, de
Claro enigma, a dicção de Camões domina profundamente a linguagem de Drummond, quando este não só retoma o tema da “máquina
do mundo”, como a técnica anafórica usada por Camões no canto
IX de Os Lusíadas. O eu lírico do poema drummondiano também vai
dizendo: olha, repara, ausculta... vê, contempla essa ciência
Sublime e formidável, mas hermética,
essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo
se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.
A comparação com Camões se dá por intermédio de vários traços
estilísticos, além da antítese na concepção da máquina do mundo:
macromáquina em Camões; micromáquina em Drummond. Camões vê
(mostra) o grande universo descoberto pelos portugueses; Drummond vê (ausculta) o minúsculo universo interior do homem que
acabava de perder a sua mãe.
Só um rigoroso estudo estilístico e uma criteriosa incursão pelo
domínio do comparativismo poderão fornecer elementos para a sistematização das influências camonianas na obra de Drummond, as92
O pri vi légi o de ler Dr u m m o n d
sim como valeria a pena, no futuro, uma aproximação entre Drummond e Machado de Assis sob o ponto de vista de Camões, sabendo
de antemão como o autor de Dom Casmurro é também cantado e intertextualizado na poesia e na prosa do autor de Lição de coisas. Uma
verdadeira “quadrilha”, como no famoso poema de Drummond.
2.6 Perenidade e transformação
Em 1982, quando todo o Brasil comemorava os oitenta anos do
poeta, a revista Letteratura d’America, de Roma, e o suplemento de O
Estado de S. Paulo me solicitaram ao mesmo tempo um estudo sobre o
poeta. Assim, retomando anotações usadas em artigos, cursos, entrevistas e conferências, parti para uma nova maneira de ver o conjunto
da produção poética de Drummond. Concentrei-me desta vez só na
poesia e pude perceber as quatro fases em que se desdobrava a sua
atividade poética, de 1918 a 1980. Como cinco anos depois o mesmo suplemento de O Estado de S. Paulo pedia outro estudo sobre o poeta, as observações que farei daqui por diante provêm desses dois estudos, fundidos, ampliados e remodelados em muitas passagens.8
A partir daqui juntei ao corpus da poesia de Drummond uma
amostra do material que ele deixou inédito, antes da publicação de
Alguma poesia, recuando o início do seu discurso poético para 1918 e
estendendo-o até 1987, data da morte do poeta. Pude então perceber as seguintes fases na transformação de sua poesia: de Formação
(1918 a 1934), de Con-formação (1934-1945), de Transformação
(1945-1962) e de Confirmação (1962-1987). E, tal como disse a respeito da poesia de Jorge de Lima,9 é preciso que se entenda o sentido
dialético no interior de cada fase e de uma em relação à outra, se não
num movimento incessante, pelo menos num dinamismo de transformação na direção do mais puro, do mais belo e até do mais culturalmente necessário. Sabe-se que há marchas e contramarchas na his-
93
8
Em Letteratura
d’America, no 3,
Roma, Verão de
1982, sob o
título de “A
transformação na
poesia de
Drummond”; e,
com o nome de
“Perenidade e
transformação”,
no Suplemento
Cultural de O
Estado de S. Paulo,
31.10.1982.
Com o título de
“Transforma-se
o Amador na
Cousa Amada”,
no mesmo
Suplemento, em
29.8.1987.
9
Estudos de poesia
brasileira.
Coimbra
(Portugal):
Almedina, 1985.
Gi lberto Mendo nç a Te l e s
tória das formas literárias, mas o que se conta na lógica histórica é
que A é sempre A mais alguma coisa, quer dizer: o tema, a técnica e a
linguagem vão-se modificando de verso a verso, de poema a poema,
de livro a livro e de escritor para escritor.
No caso de Drummond e no caso de poetas de obras extensas e de
vida longa, a fase de confirmação constitui, ao mesmo tempo, uma síntese da síntese, como em alguns poemas de Paixão medida, em torno
de seus oitenta anos, ou tendem a se repetir e se escudar na facilidade, como na escolha dos decassílabos para a maioria dos poemas a
partir da série de Boitempo. Mas assim como Sêneca soube traduzir o
primeiro aforismo de Hipócrates na admirável precisão do “Vitam
brevem esse, longam artem”, Drummond soube também modificá-lo, admiravelmente, em “Música breve, noite longa”, como no segundo
quarteto de “Fraga e sombra”, de Claro enigma, onde a música está
para a vida assim como a noite está para a arte, numa inversão belíssima em que se dá relevo ao angustioso processo da criação artística.
2.7. Poesia completa
Ao preparar o volume Poesia Completa para a editora Nova
Aguilar, publicado em 2002 em duas edições [uma em convênio
com o Bradesco Seguros], obedeci à tendência do poeta nas edições
preparadas por ele: de um lado, as suas obras maiores; e, de outro, as
que o próprio Drummond considerava “menores”, tanto que foram
sendo progressivamente eliminados das sucessivas edições da Aguilar. Os dois lados formam as duas faces de uma mesma obra – seu
direito e avesso ou, melhor, seus lados luminoso e “sombrio”, assim,
entre aspas, para indicar a sua menos-valia. São os livros de poemas
circunstanciais, entre os quais incluí os memorialísticos, como a série de Boitempo (I, II e III), gênero poético que Drummond soube renovar a ponto de criar um gênero especial na poesia brasileira. O que
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O pri vi légi o de ler Dr u m m o n d
não impede a desvalorização dos poemas quando comparados com a
força dos livros do primeiro grupo. Entretanto, por injunção do
neto do poeta, a minha classificação foi descartada, talvez por causa
do sentido crítico de “obras maiores” e “obras menores” visível nela.
Não resta dúvida, porém, de que o material de fundo de gaveta aparecido postumamente (Poesia errante, por exemplo) só não desmerece
a obra de Drummond pela grandeza dela, mas não acrescenta
absolutamente nada, além de revelar aspectos sem interesse até
para a biografia do poeta.
Embora não tenha sido publicada a minha nova classificação, aí
vai ela, para o leitor interessado:
I – “A poesia é incomunicável” [Título tirado de um verso do poema
“Segredo”, de Brejo das almas.] Abrange os seguintes livros: Dispersos
(1918-1929: poemas publicados em jornais e inéditos em livros); Alguma
poesia, 1930; Brejo das almas, 1934; Sentimento do mundo, 1940; José, 1942; A rosa
do povo, 1945; Novos poemas, 1948; Claro enigma, 1951; Fazendeiro do ar, 1953;
Vida passada a limpo, 1959; Lição de coisas, 1962; A falta que ama, 1968; As impurezas do branco, 1973; Paixão medida, 1980; Corpo, 1984; Amar se aprende amando,
1985; O amor natural, 1992; e Farewell, 1996.
II – “Resumo do existido” [“(In)Memória”, Boitempo-I]. Comporta os
seguintes livros: Viola de bolso (1952-1967); Versiprosa, 1967; Boitempo-I,
1968; Boitempo-II (Menino antigo ), 1973; Discurso da primavera, 1978; Boitempo-III (Esquecer para lembrar), 1979; Poesia errante, 1988.
Na Nova reunião, em dois volumes, preparada pelo poeta e editada
pela José Olympio em 1985, os livros obedecem a esta ordem, sendo
que de Viola de bolso, Versiprosa, Discurso da primavera e Algumas sombras só
aparece uma seleção de poemas. Os dois grupos de livros não rompem
com a cronologia e permitem, primeiro, pelo tópico do “incomunicável”, perceber a luta do poeta com a palavra, com a poesia; e, pelo
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tópico do “resumo” e do “existido”, acompanhar o desdobramento
da sua concepção de poesia na direção do biográfico, dos acontecimentos, apesar da advertência (de 1945), de que não se deve fazer
versos sobre acontecimentos...
3. “Um não-estar-estando”
No poema “Canto negro”, de Claro enigma, Drummond usa uma
série de imagens propositalmente obscuras, entre as quais a afirmação de que “vem do preto essa ternura,/ [...] esse estar e não-estar já
sendo,/ esse ir como esse refluir”, enfim, o poeta parece querer expressar a simultaneidade de sensações se processando, o passado no
presente ou o futuro no presente, um eu que se faz outro sendo ele mesmo, conforme a bela observação de Octavio Paz, que confirma a idéia
do vir-a-ser ou a do “futuro sido”, de Heidegger. Aliás, Drummond
usa uma imagem parecida no “Poema-orelha” de A vida passada a limpo, onde escreveu: “Aquilo que revelo / e o mais que segue oculto /
em vítreos alçapões / são notícias humanas, / simples estar-nomundo, / e brincos de palavras, / um não-estar-estando, / mas de
tal jeito urdidos / o jogo e a confissão / que nem distingo eu mesmo
/ o vivido e o inventado. / Tudo vivido? Nada. / Nada vivido?
Tudo.” Ora, aí está, e quase exatamente, a imagem que pode sintetizar aqui a relação entre a simultânea transformação do pensamento
estético do Modernismo e a transformação do seu próprio pensamento poético: um não-estar estando ou um não-estar-já sendo cada vez
mais moderno e mais Drummond.
Para documentar essas fases e revelar o teor de modificação que se
vai produzindo na sua maneira de pensar a poesia, concentrei este estudo no tema da linguagem ou da própria literatura, na sua metalinguagem, isto é, nas manifestações teóricas possíveis dentro do próprio
poema, numa cadeia de continuidade e descontinuidade que, siste-
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matizadas e relacionadas com o discurso poético do Modernismo,
põe à mostra, no início, a identificação do poeta com o ideário
modernista; depois, mostra a ambigüidade de uma ruptura entre o
social e o individual; e, finalmente, a plena autonomia da linguagem
drummondiana, criadora de novas projeções da estética modernista.
A comparação dos elementos metalingüísticos de um livro com
os do livro seguinte, seja no conjunto de obras do autor ou na produção de toda uma época, oferece ao novo historiador da literatura a
possibilidade de estabelecer as mudanças, as variações, enfim, as recriações de formas já conhecidas, caídas em desuso e novamente trazidas à atividade literária.
3.1. Formação
A palavra Formação entra aqui com ênfase no sentido complementar dado pelo sufixo -ção: ato de, ou maneira como se organiza uma
realidade, física ou psíquica. Ou, no caso concreto, período em que
se formou a personalidade do poeta. Vai das crônicas publicadas na
Aurora Colegial, do Colégio Anchieta, de Nova Friburgo (RJ), por
volta de 1918, à publicação dos seus dois primeiros livros: Alguma
poesia, de 1930 (título que lembra o de Pierre Reverdy, Quelques poèmes, de 1916) e Brejo das almas (1934). O segundo livro completa a temática e a estilística do primeiro, no qual Drummond reuniu em
1930 apenas alguns, não todos os seus poemas, o que é mais ou menos comum entre os poetas. A sua formação literária coincide com o
seu amadurecimento intelectual (a partir dos anos 20) e com o amadurecimento do próprio Modernismo.
É bom que se diga que, mesmo sem participar diretamente da Semana de Arte Moderna, o poeta desde 1921 aspirava à modernidade, escrevendo poemas em prosa, um pouco à feição de Álvaro Moreyra que, em 1922, já publicava trabalhos seus na Para Todos, na Ca-
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reta e na Ilustração Brasileira, dentro da atmosfera de penumbrismo e de
neo-simbolismo que caracterizava a poesia brasileira dessa época. O
trabalho de pesquisa de Arnaldo Saraiva (ainda inédito em livro) e o
de Fernando Py são hoje indispensáveis ao conhecimento dessa
‘pré-história’ do poeta.
O seu contato com o Modernismo se dá a partir de 1924, quando
escreve a Bandeira e conhece em Belo Horizonte Mário de Andrade,
Oswald de Andrade, Tarsila e Blaise Cendrars, passando a se corresponder com Mário. Desse contato surge a idéia da Revista, em 1925,
e já em 1928 o seu famoso poema “No meio do caminho” aparece
no terceiro número da Revista de Antropofagia. No ano seguinte organiza uma série de entrevistas (“A Atualidade Literária”) publicada no
Diário de Minas, com depoimentos dos modernistas mineiros.
Toda a sua produção (poesia, crítica, contos e crônicas) revela, a
partir de 1924, a simetria de seu amadurecimento no sentido da modernidade. A manifestação de metalinguagem é pequena na poesia,
mas é bem considerável na parte crítica, onde discute as novidades
dos modernistas de São Paulo. Ainda inéditos em livro, os poemas da
década de 20 continuam nas revistas e jornais à espera de uma edição
que o poeta não teve nenhum interesse em ver realizada. [A amostra
que preparei para a Poesia Completa foi censurada pelo neto.]
No entanto, pela leitura desses poemas se pode descobrir um certo interesse em se definir, em definir os seus caminhos de escritor.
Não chegam talvez a constituir um projeto literário, mas já apresentam uma clara manifestação programática, muito a gosto, aliás, das
proclamações que sacudiam os meios literários naquele momento.
Em 1924, fala da “Poesia dos arrabaldes humildes” e, num poema
dedicado a Milton Campos, diz: “Ali, é a minha mesa / de trabalho
espiritual; / é ali que eu escrevo / os poemas que vou sentindo, / e
as minhas cartas de amor.” Em 1926 escreve: “Por que foi / que
muitas de nossas palavras (as melhores) saíram abafadas / do fundo
da garganta, / ou, já nos lábios, se transformaram, / em palavras ba98
O pri vi légi o de ler Dr u m m o n d
nais?” Como se vê, o novo vai chegando em forma de versos livres
(misturado às vezes com alguns decassílabos, tal como em Mário de
Andrade), retomando velhos temas, como esse do indefinível, a que
o poeta dá todavia um tratamento novo ou pelo menos antibilaqueano, fazendo as palavras chegarem aos lábios já carregados do pecado
venial da linguagem... Num “Soneto” de 1926 (mas soneto sem métrica e sem rima) chega a dizer que os versos são uma coisa tão velha,
falando também em “ridículo romantismo”. Muitos desses poemas
serão retomados mais tarde e aparecem em livros, tal como ele vai fazer também com os temas das crônicas, muitas das quais transformadas em poemas nos livros mais recentes.
O tema da poesia, do poeta e às vezes da linguagem poética é bem
freqüente tanto em Alguma poesia quanto em Brejo das almas, aparecendo
em versos isolados no corpo do poema ou já se reunindo na unidade de
alguns poemas, como “Também já fui brasileiro” (“Eu também já fui
poeta. / [...] / Eu também já tive meu ritmo. / [...] / Mas acabei confundindo tudo”) e “Política literária”, onde, de maneira econômica, se
vale das esferas administrativas para classificar ironicamente os poetas
brasileiros:
Enquanto isso o poeta federal
tira ouro do nariz.
Em “Poema que aconteceu” dá a entender que o poema se faz
fora do controle da razão: “A mão que escreve este poema / não
sabe que está escrevendo / mas é possível que se soubesse / nem ligasse.” Em “Nota social” o tema é o poeta (“O poeta está melancólico”), em “Poesia” dá realce ao problema da expressão e da poesia
como totalidade absoluta:
Gastei uma hora pensando um verso
que a pena não quer escrever.
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Os poemas acima mencionados são de Alguma poesia, onde se encontra também “O sobrevivente”, com versos largos, já claramente
dentro do ritmo e das soluções humorísticas do modernismo da
época: “Impossível compor um poema a essa altura da evolução da
humanidade./ Impossível escrever um poema – uma linha que seja –
de verdadeira poesia”, e dizendo, afinal, entre parênteses: “(Desconfio que escrevi um poema).” Mas a mais importante “poética” do
seu primeiro livro é o poema “Explicação”, verdadeiro manifesto
desse momento de formação, quando o poeta começa a perceber a
diferença entre a sua e a poesia dos outros escritores modernistas.
Aqui a tônica é o verso e a sua percepção por um leitor implícito:
“Meu verso é minha consolação./ Meu verso é minha cachaça.
Todo mundo tem sua cachaça.[...] // Para louvar a Deus como para
aliviar o peito,/ queixar o desprezo da morena, cantar minha vida e
trabalhos / é que faço verso. E meu verso me agrada. // Meu verso
me agrada sempre... / Ele às vezes tem o ar sem-vergonha de quem
vai dar uma cambalhota, / mas não é para o público, é para mim
mesmo essa cambalhota. /Eu bem me entendo.” Termina o poema
bem dentro da retórica da época, embora se perceba, pela ironia e
pelo humor, o tom pessoal se sobrepondo à moda literária:
Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou.
Eu não disse ao senhor que não sou senão poeta?
De Brejo das almas destacamos o poema “Convite triste” (que retoma um
dos temas de “Também já fui brasileiro”), onde se convida um amigo para
“fazer um poema / ou qualquer outra besteira”, e o poema “Segredo”,
em que o tópico do inefável (a “inania verba”, de Bilac, e o “o mulambo da
língua paralítica”, de Augusto dos Anjos) aparece logo de início:
A poesia é incomunicável.
Fique torto no seu canto.
Não ame.
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Aliás, os imperativos negativos deste texto (“Não ame”, “Não
diga nada”, “Não conte” e “Não peça”) antecipam a atitude e o acismo de “Procura da poesia”, de A rosa do povo.
Nesta fase de Formação, a sua atitude perante a linguagem poética é
de afirmação, isto é, de falar do poeta, do poema, da poesia, do ritmo, também de atitudes modernistas. Dir-se-ia que o Drummond
inicialmente penumbrista, começava a penetrar a claridade modernista. A sua participação se objetiva no tema da poesia, numa relação
transitiva entre o eu lírico e o tema escolhido. Enaltecendo ou criticando esses temas, o poeta se afirma no jogo modernista.
3.2. Con-formação
Não é o hífen da moda, é, antes, a tentativa de recuperar o sentido
etimológico da conformatio, a formação, a configuração, a representação, de que a retórica se valeu para a classificação de suas figuras de
palavras e de frases. Com estes recursos queremos indicar a fase em
que a obra de Drummond está representada por livros como Sentimento do mundo (1940), José (1942), A rosa do povo (1945) e Novos poemas
(1947). É a fase em que o poeta começa a dar melhor configuração à
sua linguagem, o momento em que a linguagem de adesão ao Modernismo [a con-formação] cede lugar à linguagem de formação pessoal, havendo portanto uma conformação, a simultaneidade do legado
modernista e o da forte criação drummondiana, que acaba se impondo. O poeta está superando o tempo de sua formação e já começa a fazer “escola”, no sentido de que está influenciando a sua época. Aqui
a participação passa a ser dupla: engaja-se nos temas sociais ao mesmo
tempo em que se vai penetrando “surdamente no reino das palavras”. O poeta olha para o mundo, mas contempla silencioso a essência da sua linguagem. É para muitos leitores a parte mais importante
da poesia de Drummond.
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Os poemas e metapoemas desta fase revelam uma concepção poética totalmente pessoal: as técnicas e cacoetes modernistas, presentes
nos dois primeiros livros, recebem tratamento novo e, motivado
pela originalidade criadora, se transformam num instrumento da
mais alta poesia. Mas o poeta se sente dividido: quer ser original e
solitário perante a linguagem e sabe que deve ser solidário perante o
mundo e os homens. Só na fase seguinte saberá conciliar definitivamente essa dialética que acaba envolvendo a crítica, também dividida nas suas preferências pelos poetas “engajados”, na verdade privilegiando apenas os seus temas, numa radicalidade facilmente demonstrável e sem se dar conta de que o engajamento maior se dava
mesmo era pela linguagem.
As tematizações da poesia estão disseminadas por vários poemas de
Drummond nesta fase, encontrando-se principalmente em “Brinde
no Juízo Final” (“Poetas de camiseiro, chegou vossa hora, / [...] /
poetas jamais acadêmicos, último ouro do Brasil. / [...] / Em vão assassinaram a poesia nos livros”) e em “Ode no cinqüentenário do poeta brasileiro” (sobre Manuel Bandeira ), de Sentimento do mundo; em
“Palavras ao mar” (“A palavra Encanto / recolhe-se ao livro, / entre
mil palavras / inertes à espera.”) e “O lutador” (“Lutar com palavras / parece sem fruto. / Não têm carne e sangue... / Entretanto,
luto.”), de José; e, principalmente, em “Consideração do poema”,
“Procura da poesia”, “A flor e a náusea”, além de outros em A rosa do
povo, como “Áporo”, “Fragilidade”, “Anúncio da rosa”, “Indicações”
e, ainda, de poemas como “Composição” e “O arco”, de Novos poemas.
Tais poemas refletem bem as duas direções apontadas, as quais adquirem relevo nos dois poemas iniciais de A rosa do povo, que funcionam
como profissão de fé, como manifesto, naquele momento de sua vida,
da vida do Modernismo ou já do Neomodernismo brasileiro e, também, dos problemas político-sociais do Brasil e do mundo.
A colocação dos textos “Consideração do poema” e “Procura da
poesia” no pórtico de seu livro dos quarenta anos não é simples co102
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incidência: o poeta os pôs ali de propósito – queria que soubessem
de sua duplicidade, dividido entre o poema e a poesia, entre especulações formais e intensificações de conteúdo. Queria assumir sua participação pela linguagem, mas o tempo (o início da década de 40)
lhe pedia uma participação social e humana mais explícita e menos
metafísica, embora o existencialismo europeu já mostrasse que a participação pela linguagem era a única possível aos poetas.
Em “Consideração do poema”, Drummond parece considerar a
sua carreira de escritor em face da própria literatura. Há como que
um desejo de independência em relação ao Modernismo e uma adesão consciente à tradição literária: o nome vem agora por dentro da
linguagem – é o velho que se faz novo. Por isso é preciso expor as
suas concepções, mostrar como pensa a respeito da poesia e como sabe
a respeito do poema, fazer enfim uma espécie de autocrítica e de balanço nessa altura de sua vida. Neste sentido é uma retórica, mas já
uma retórica drummondiana, que é preciso pôr em evidência. Então
o poeta começa tratando da rima, assim como fez no primeiro poema do seu primeiro livro. Mas já não brinca com ela, rimando mundo e Raimundo, procura dar-lhe uma significação semântica, conteudística. E, em três belos versos decassílabos (os primeiros conscientemente usados), explica a sua teoria que termina adequando-se a
um expressivo verso livre:
As palavras não nascem amarradas,
elas saltam, se beijam, se dissolvem,
no céu livre por vezes um desenho,
são puras, largas, autênticas, indevassáveis.
Deste modo, misturando versos livres com versos rigorosamente
metrificados, que predominam no belíssimo poema, Drummond
deixa entrever a dualidade de que falamos. O seu famoso “No meio
do caminho” é referido, mas agora sob o ritmo decassilábico.
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Gi lberto Mendo nç a Te l e s
(“Uma pedra no meio do caminho / ou apenas um rastro, não importa”). Primeiro que os críticos, sabe captar uma das mais discutidas técnicas da modernidade: a da intertextualidade, dizendo, com
Lautrèamont, que “Furto a Vinícius / sua mais límpida elegia. Bebo
em Murilo. / Que Neruda me dê sua gravata / chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus, Maiakovski.” Retoma o poema “Mãos
dadas”, de Sentimento do mundo, quando se diz “Poeta do finito e da
matéria”, inicia a metáfora do “navio que leva esta mensagem”, a
qual se completará no poema “Mas viveremos”, no final do mesmo
livro, onde se fala no “rubro couraçado”; e olha filosoficamente para
o seu novo poema, dizendo: “Essa viagem é mortal, e começá-la. /
Saber que há tudo. E mover-se em meio / a milhões de formas raras,
/ secretas, duras. Eis aí meu canto.” Mais adiante falará dos temas:
“Como fugir ao mínimo objeto / ou recusar-se ao grande? Os temas
passam, / eu sei que passarão, mas tu resistes, / e cresces como fogo,
como casa, / como orvalho entre dedos, / na grama, que repousam.” O poeta tem consciência de que constrói a sua linguagem, a de
que ele gosta e aprendeu a construir. Já não se trata de uma linguagem a que aderiu ou que ajudou a construir, mas que passou a ser de
todo mundo... Agora, com a sua linguagem, temática e estilisticamente sua, mas universalizada pela forma tradicional renovada,
Drummond pode dizer a seu poema:
Já agora te sigo a toda parte,
e te desejo e te perco, estou completo,
me destino, me faço tão sublime,
tão natural e cheio de segredos,
tão firme, tão fiel... Tal uma lâmina,
o povo, meu poema, te atravessa.
É fácil perceber que, dentro de uma forma rigorosa e nova para o
Modernismo, o poema expõe a direção do conteúdo participante,
concentrado na palavra povo e metaforizado em lâmina para mais ain104
O pri vi légi o de ler Dr u m m o n d
da realçar a penetração de uma semântica ideológica que a época encarecia, e precisava.
O rigor formal de “Consideração do poema” cede lugar à ênfase
que o poeta dará ao conteúdo de “Procura de poesia”, o segundo poema de A rosa do povo. Se há no primeiro a participação pela linguagem,
aqui a participação será pela inserção no real dos acontecimentos,
num desses momentos quentes da História brasileira, onde a ditadura
de Vargas servia de pendant para fatos da Segunda Guerra Mundial.
Aliás, o poema “Áporo”, também de A rosa do povo, é uma bela redução
alegórica desses problemas em um “país bloqueado”. Mas o curioso, e
paradoxal, é que o poema “Procura da poesia” é uma espécie de poética normativa, um tanto horaciana, “Não faças versos sobre acontecimentos”, “Não faças poesia com o corpo”, “Não cantes tua cidade”,
“Não dramatizes”, “Não te aborreças”, “Não recomponhas [...] tua
infância”, “Não osciles entre o espelho e a / memória”, “Não forces
o poema”, “Não adules o poema”, mas
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
E, ao terminar o poema, diz que as palavras “Ainda úmidas e
impregnadas de sono, / rolam num rio difícil e se transformam em
desprezo.”
Tem-se a impressão de que a forma livre do poema está em desacordo com a sua substância poética. No entanto, a série de prescrições de natureza preceptiva, é apenas um jogo irônico do poeta que
pede para não fazer o que ele já havia feito ou que faria daí para frente. Na superfície do poema se lê o que foi dito para ser lido: a técnica
do poema modernista, alguns versos longos, o tom imperativo de
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um conselho. Mas, por dentro, no não-dito, o leitor vai observando
uma seqüência de antinomias que conduzem ao “reino das palavras”, primeiramente à língua (ao “estado de dicionário”) e, finalmente, à linguagem, às “mil faces secretas sob a face neutra” das palavras, único lugar possível de criação e poesia. Em contradição com
a sua forma, que prolonga a do Modernismo, esse poema aponta
para a essência da linguagem, tal como “Consideração do poema”,
de forma quase inteiramente metrificada, aponta para um conteúdo
político-social. Aí está a possível contradição, o quiasmo que se forma na comparação entre os dois poemas: o conteúdo do primeiro
pediria versos-livres; o do segundo, versos metrificados, mas é o
contrário que se verifica, como se o poeta quisesse passar a mensagem de que o que se conta é mesmo o talento, a emoção, inclusive a
da técnica.
São, portanto, duas faces de uma teoria que, em forma de quiasmo,
se completam, exibindo porém os seus vincos: de um lado, a tradição
modernista, que Drummond já não tem mais interesse de prolongar,
uma vez que está em pleno domínio da poética e da retórica que ele
ajudou a construir, e que agora deseja abandonar; e, de outro lado, a tradição universal da poesia, de que se sente partícipe e que, maior que o
Modernismo brasileiro, o está arrastando para as aventuras da modernidade, onde o poeta se sente brasileiro e universal ao mesmo tempo.
O curioso, entretanto, é que esses dois poemas só se completam
com a leitura do terceiro, “A flor e a náusea”, assim como a metáfora
do título do livro – A rosa do povo – ganha novos significados quando
comparada com os poemas “Áporo” (onde uma orquídea se forma
contra todos os absurdos) e com o “Anúncio da rosa”, além de com
outros poemas envolvendo flor e rosa, no mesmo livro. Há, pois, uma
cadeia semântica de rosa / flor / orquídea / rubro couraçado / navio /
canto / PALAVRA que atravessa todo o livro, indo terminar no poema “Mas viveremos”, quando um “rubro couraçado” vai-se transformando em linguagem, como na última estrofe:
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Ele caminhará nas avenidas,
entrará nas casas, abolirá os mortos.
Ele viaja sempre, esse navio,
essa rosa, esse canto, essa palavra.
3.3. Transformação
É aqui, com livros como Claro enigma (1951), Fazendeiro do ar
(1953), A vida passada a limpo (1958) e Lição de coisas (1962), que o entendimento poético de Drummond recebe a sua grande transformação. A corrente modernista, a que o poeta aderiu e a que deu depois a
sua grande contribuição, foi inteiramente absorvida pela consecução
de uma plenitude expressiva em que falava mais alto a personalidade
do poeta Carlos Drummond de Andrade. A partir de então toda a
sua poesia é uma especulação sobre a essência da linguagem. A participação humana atinge a suma de todos os saberes poéticos e a linguagem se faz mesmo a morada do ser, não é mais apenas o instrumento transitivo e transparente a serviço da comunicação: ela passa
agora a comunicar a si mesma, plena de sua estrutura e opacidade.
Não importa mais se há uma forma moderna ou tradicional; o que
conta é a síntese, o adensamento da substância expressiva. À maneira
de Parmênides, Drummond pode afirmar agora, como num verso de
“Campo de flores”: “Sou e não sou, mas sou.”
Poemas como “Remissão”, “A ingaia ciência”, “Ser”, “Oficina irritada”, “Entre o ser e as coisas”, “A máquina do mundo”, em Claro
enigma; “Brinde no banquete das musas”, “Conclusão”, “Canto órfico” e “A Luís Maurício, Infante”, de Fazendeiro do ar; “Poema-orelha”, “Nudez” e “Ciência”, de A vida passada a limpo; “A Palavra e a Terra” e as séries “Ser” e “Palavra”, de Lição de coisas, mostram
claramente a essencialização do pensamento de Drummond. O poeta sabe que o tempo “se evapora no fundo do teu ser” e que a sua sabedoria, de experiência feita, “nada pode contra sua ciência / e nem
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contra si mesma”. Sabe que seu poema é como um filho: “faz-se por
si mesmo”, por isso quer que seu soneto “ao mesmo tempo saiba ser,
não ser”. É por aí que chega às altas culminâncias de “A máquina do
mundo”, com a qual passa a “mentar”
toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debruçada
no rosto do mistério, nos abismos.
E é a partir daí, depois de se tornar “fazendeiro do ar” e de passar
sua vida a limpo, que se sentirá apto para arquitetar um livro como
Lição de coisas, publicado nos seus sessenta anos.
A leitura das terceira e quinta estrofes de “A Palavra e a Terra”,
poema inicial de Lição de coisas, dá bem a dimensão das preocupações
essencialistas da poesia de Drummond, para quem (tal como nas mitologias sumérias) tudo se reduz ao nome: a voz que nomeia é a que
cria; a “essência / é o nome”; e este é um “segredo egípcio que recolho / para gerir o mundo no meu verso?”. Mas toda essa teoria do
nome encontra-se altamente projetada na estrofe V, onde se lê:
Tudo é teu, que enuncias. Toda forma
nasce uma segunda vez e torna
infinitamente a nascer. O pó das coisas
ainda é um nascer em que bailam mesons.
E a palavra, um ser
esquecido de quem o criou: flutua,
reparte-se em signos – Pedro, Minas Gerais, beneditino –
para incluir-se no semblante do mundo.
O nome é bem mais do que nome: o além-da-coisa,
coisa livre de coisa, circulando.
E a terra, palavra espacial, tatuada de sonhos,
cálculos.
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Certamente, nenhum estudioso da linguagem (gramático, filólogo, lingüista, semiólogo et caterva) conseguiria tamanha concentração
de problemas teóricos, lingüístico-estilísticos, numa expressão que
tem muito de ideogrâmica, uma vez que vai superpondo idéias numa
unidade que só é vista de perfil. Toda a história ou toda a teoria da
linguagem se deixa conotar nesses belos versos de Drummond.
A linguagem da poesia brasileira atingiu com esse livro dos sessenta anos de Drummond um dos seus pontos culminantes, numa
verdadeira lição para os novos e também para muitos de nossos velhos escritores. Nenhum poeta havia logrado antes tamanha organização nas estruturas externa e interna de um livro de poemas. Lição de
coisas é composto de dez partes: Origem, Memória, Ato, Lavra,
Companhia, Cidade, Ser, Mundo e Palavra, sendo que a décima parte é constituída pelo conjunto de todas as outras, vale dizer, pelo
próprio livro. Esta divisão, além de se manifestar também na estrutura de um poema como “O padre, a moça”, encontra a sua expressão total em “Isso é aquilo”, rigorosamente composta de dez estrofes com dez “versos” cada uma. Mas versos puramente nominais,
pois o único verbo que aparece está no título. Aliás, o título é o modelo de leitura desse poema mais do que concreto, como se pode ver
pela primeira estrofe: “O fácil o fóssil / o míssil o fóssil / a arte o
enfarte / o ocre o canopo / a urna o farniente / a foice o fascículo /
a lex o judex / o maiô o avô / a ave o mocotó / o só o sambaqui.”
Aboliu-se aí toda pontuação e a única sintaxe é a da coordenação
paralelística de palavras que, ou pelo significante ou pelo significado, se ligam e se completam num jogo verdadeiramente admirável. É
possível que o número dez possua aí o sentido simbólico do apontado por Cirlot: retorno à unidade (segundo os sistemas decimais), realização espiritual ou, ainda, totalidade do universo físico e metafísico, o que não deixa de estar de acordo com a síntese poética a que
chegara, em 1962, o grande poeta brasileiro. Depois desse livro, a
poesia de Drummond recebe uma forte inflexão para a recuperação
dos temas da infância e do passado.
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3.4. Confirmação
Ao adotar a palavra confirmação para designar a quarta fase da poesia de Drummond, estou enfatizando a significação latina da confirmatio, ou seja, consolidação, afirmação que se confirma, ou, tal como
na retórica, a parte da argumentação que, segundo Lausberg, demonstra a justeza de nosso próprio ponto de vista. Mas ao sair do
radical forma, presente nas designações anteriores, estou querendo
sugerir, com o radical firme, o sentido de afirmação, a adoção de uma
nova maneira de pensar a poesia, a qual, se já se fazia sentir nos outros livros do poeta, somente depois de Lição de coisas encontrará seu
mais completo desenvolvimento. É como se a lição continuasse, uma
vez que o poeta começa a recuperar, mais firmemente, alguns dos temas de que já havia tratado em livros anteriores.
Duas linhas se desenham nítidas nos seus livros mais recentes:
uma que reconquista o tempo de Minas, que já havia mencionado no
estudo de sua Seleta em prosa e verso; outra que prolonga os temas universais. Duas linhas que retomam e confirmam a dialética em que se
formou a sua personalidade literária: um olhar modernista para dentro de si mesmo e para a sua terra e família, numa linguagem que
tende a ser despida de conotações, como convém à referência das
pessoas, das coisas e dos fatos; e, ao mesmo tempo, um olhar filosófico sobre os acontecimentos, os amigos e sobre o amor e a morte. O
certo, porém, é que essas duas linhas às vezes se misturam, descendo
sobre elas aquele “Espírito de Minas”, soprando sobre elas aquele
“vento mineiro” que transforma os temas universais da Humanidade numa poderosa e profunda visão de Minas Gerais.
Em relação à primeira linha, refiro-me a um memorialismo poético
que, embora matéria comum à poesia, adquire características especiais na obra de Drummond, a ponto de se poder falar em um novo
gênero literário, tal a constância e a coerência estilística com que o
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poeta tratou de suas reminiscências em livros como os da série Boitempo, de que já tratei um pouco atrás. Poemas como “Rosa rosae”,
“Primeiro poeta”, “Mestre”, “Discurso”, “O fim do começo”,
“K”, “Os nomes mágicos” e “Criação”, de Boitempo I; “Nomes”,
“Verbo ser”, “Iniciação literária”, “Primeiro jornal” e “Certas palavras”, de Boitempo II; “Aula de português”, “Livraria Alves”, “Decadência do Ocidente”, “Estréia literária”, “Verso proibido”, “As
letras em jantar”, “Verbo e verba” e “A língua e o fato”, de Boitempo
III, formam um conjunto de metalinguagens reminiscentes, jogando com declinações latinas, ironizando o poeta que invejava, louvando o professor de latim, brincando com certas frases latinas, fazendo a apologia da letra K [o que mais tarde Murilo Mendes também fará] ou apreendendo um breve instante passado, como no
poema “O fim do começo”:
A palavra cortada
na primeira sílaba.
A consoante esvanecida
sem que a língua atingisse o alvéolo.
O que jamais se esqueceria
pois nem principiou a ser lembrado.
As pesquisas lingüísticas (lexicais) que assinalam os livros da
fase de transformação continuam nesta fase, como no poema “Nomes”, de Boitempo II. As especulações metafísicas com a palavra
continuam em “Verbo ser” do mesmo livro. Mas é a memória literária que domina, como a experiência do “transe literário” em
“Primeiro jornal”. Às vezes, retomam-se técnicas de construção do
poema “Procura da poesia”, que atingem também as palavras,
como em “Certas palavras” de Boitempo II: “Certas palavras não podem ser ditas / em qualquer lugar e hora qualquer./ [...] / E tudo é
proibido. Então, falamos.”
111
Gi lberto Mendo nç a Te l e s
O tom dessa linha é mesmo memorialístico. Assim, – seja tratando da “Aula de Português” (“A linguagem / na superfície estrelada
de letras, / sabe lá o que ela quer dizer?”), seja relembrando livros
proibidos, humorizando a sua estréia literária no jornalzinho de Friburgo (“O padre-redator introduziu / certas mimosas flores estilísticas / no meu jardim de verbos e adjetivos. / Aquilo não é meu.
Antes assim, ninguém me admirar”), seja ainda recordando o seu
primeiro banquete literário, seus amigos de redação, a anedota do
príncipe dos poetas ou o neologismo antipático do ludopédio –, a
poesia de Drummond é hoje a responsável por um novo gênero de
poesia no Brasil: o da memória poética, em versos metrificados, em versos
livres, em palavras-frase, em sintaxe verbal, em sintaxe nominal, enfim,
na mais ampla possibilidade de expressão em língua portuguesa.
Alguns temas desses livros constituem mesmo uma retomada de
temas explorados noutros livros, e, o que é mais freqüente, trata-se
de ampliação poética de cenas, episódios ou sugestões que aparecem
antes em alguns de seus livros de crônicas, justificando assim o seu
depoimento, já referido, de que estava convencido de que o poeta
trabalha sempre um mesmo assunto, espécie de fundo comum que
vem de suas vivências primordiais.
Quanto à segunda linha, em que se enfileiram livros como As impurezas do branco (1973), Discurso de primavera e algumas sombras (1977),
A paixão medida (1980), Corpo (1984), Amar se aprende amando (1985),
Poesia errante (1988) e Amor natural (1992), os dois últimos publicados postumamente, ela continua enriquecendo a participação do poeta nos temas universais da modernidade. Em As impurezas do branco,
encontra-se a ironia no poema “Ao Deus Kom Unik Assão”, ao
mesmo tempo em que se retomam concepções anteriores, como em
“O nome”, “A palavra Minas” (“Minas não é palavra montanhosa.
/ É palavra abissal. Minas é dentro / e fundo.”). Há todavia um pessimismo ao longo desses poemas, sobretudo em “Desabafar”, onde
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O pri vi légi o de ler Dr u m m o n d
o processo de fragmentação da palavra possui notável função expressiva. Às vezes é o nominalismo que predomina, como em “Homenagem” com o poeta arrotando nomes de suicidas famosos na literatura e terminando com a desmontagem da palavra “dissolução”
em “dis” e “solução”, acionando um recurso perfeitamente adequado à significação do poema. Há aí também homenagem a Emílio
Moura (“O poeta irmão”) e a Manuel Bandeira (“Desligamento do
poeta”), um dos escritores de sua preferência, várias vezes declarada.
Já em Discurso de primavera e algumas sombras, parece que Drummond
recolhe, pelo menos em “Os marcados”, o tipo de material que antes
ele teria posto sob a rubrica de Versiprosa, montagem de que o poeta
se valeu um dia para designar as suas crônicas em versos. São poemas
endereçados a ou sobre amigos escritores. Mas há também poemas
como “A palavra mágica” (“Procuro sempre, e minha procura / ficará sendo / minha palavra”) e o “Exorcismo” com que fustigou o
uso desregrado da terminologia científica nos estudos da linguagem
literária nas universidades do Rio de Janeiro.
A paixão medida retoma o oxímoro de Claro enigma e a força lírica da
fase de transformação, guardando por isso mesmo alguma relação filosófica e estilística com Lição de coisas. Drummond escreve aí a sua
primeira “Arte poética” declarada. Mas a escreve sobre uma estrutura de métrica grega ou latina, jogando com a terminologia de breves
e longas e concluindo que “tudo mais é sentimento ou fingimento /
levado pelo pé, abridor de aventura, / conforme a cor da vida no papel”. A combinação do alexandrino com o decassílabo nos dois últimos versos deflagra um belíssimo efeito rítmico em face dos versos
anteriores, feitos à maneira de dáctilos, troqueus, anapestos e jambos.
No poema “Patrimônio” retoma os possíveis da palavra Minas,
da coisa Minas e o vocábulo que a designa: “Ir de uma a outra, recolhendo / o fubá, o ferro, o substantivo, o som.” Explora ainda “O
nome”, “A palavra” (“Já não quero dicionários / consultados em
113
Gi lberto Mendo nç a Te l e s
vão”) e termina o livro com “História, coração, linguagem” e “O
poeta”, dois dos mais belos poemas que já escreveram sobre Camões. Veja-se o último, composto de uma só estrofe:
Este, de sua vida e sua cruz
uma canção eterna solta aos ares.
Luís de ouro vazando intensa luz
por sobre as ondas altas dos vocábulos.
Drummond aproxima aí, no não-dito do texto, Camões e o seu
próprio nome, de origem escocesa, a significar “altas ondas”, como ele
várias vezes explorou, falando no “Castelo de Drummond” (Boitempo
I), em “castelos na Escócia. / Corrijo: nas Escócias do Ar” (Boitempo
II) e dizendo que “Com tintas de fantasma escreve-se Drummond”
(Boitempo III). E num poema intitulado “Em A /grade /cimento” (Viola
de Bolso II), chega a brincar com a etimologia de seu nome ao registrar “Drum-onda?”
O livro Corpo, como todos os mais desta fase final da obra do poeta, confirma as duas linhas temáticas: a das reminiscências, agora cobrindo também o tempo do Rio de Janeiro, e a dos motivos universais, como o da atenção dada às coisas da linguagem. No poema “O
outro” pergunta: “Como decifrar pictogramas de há dez mil anos se
nem sei decifrar / minha escrita interior?” Diz em “Lição” o que
sabe não ser verdade: “a ode cristalina / é a que se faz sem poeta.” E,
em forma de “Lembrete”, anota:
Se procurar bem, você acaba encontrando
não a explicação (duvidosa) da vida,
mas a poesia (inexplicável) da vida.
Amar se aprende amando retoma quase na sua totalidade a natureza de
Versiprosa, com muitos poemas dedicados e narrativos. O mesmo
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O pri vi légi o de ler Dr u m m o n d
acontece com Poesia errante, que lembra Viola de bolso pela circunstancialidade dos poemas. E quanto a Amor natural, de que possuo uma cópia original oferecida pelo poeta em 1974, vê-se que é um belo livro
de poesia erótica, que o poeta não quis publicar em vida, a não ser
numa edição de um único exemplar. Uma edição crítica cuidadosa
pode revelar que houve modificações introduzidas a fim de “abrandar” o vocabulário erótico, substituindo-se, por exemplo, cu por ânus
em vários versos e contrariando assim o texto original e a estilística
drummondiana.
Pelo que se vê, esta fase de confirmação não passa de uma reunião
um tanto desorganizada de temas, de formas e de tendências expressivas das outras fases. A exceção é o livro Paixão medida, espécie de
suma poética organizada pelo autor nos seus oitenta anos: nele se encontram conotações de grande parte da cultura literária do Ocidente, embora sem a preocupação sistematizadora de Lição de coisas. Um
soneto, por exemplo, como “Os cantores inúteis”, com rimas embutidas e uma bela ironia contra os professores e analistas de poesia,
vale por si só como uma grande arte poética, ensinando que “A canção absoluta não se escreve” e que só “a melodia interna é que” governa os verdadeiros amantes.
Alguém já disse que cada livro de Drummond abre uma nova fase,
uma nova etapa de conhecimento e prática de poesia. É possível que
sim, é possível que seja até uma característica de todo grande poeta.
Prefiro, no entanto, reler toda a obra de Drummond, repartindo-a
em conjuntos cronologicamente ordenados e, a partir daí, assinalar
em cada conjunto as manifestações teóricas, metapoéticas, que direta ou indiretamente podem dar conta da ideologia literária do escritor. Acompanhar as transformações ou as variações dessas concep115
Gi lberto Mendo nç a Te l e s
ções que ora avançam, ora retomam antigas formas, num ir e vir incessante de livro para livro, é tarefa do esforço conjugado do crítico
e do historiador da literatura, formando, con-formando, transformando e afinal confirmando a contínua transformação de seu discurso poético.
O certo é que se percebe, em livro como A paixão medida, a “sacramentação” de uma crisma, a confirmação de uma linguagem poética
que Drummond veio lentamente construindo, a partir, primeiro, de
sugestões modernistas, mas retirada depois de sua própria personalidade criadora. O poeta soube encontrar a substância essencial da
poesia, renovando os seus temas, inventando audaciosamente novas
formas expressivas e, por força de um virtuosismo cada vez mais
apurado, soube dar vida nova à poesia brasileira e dignidade literária
à língua portuguesa. O poeta já não precisa mais de dicionário para
encontrar a sua palavra ansiosamente sonhada. Ela está nos seus poemas, na poesia que nos deixou e dentro da qual viverá e com a qual
viveremos “todos em comunhão, / mudos, / saboreando-a”, todos
nós amantes da verdadeira poesia.
4. “A linguagem de todos os
instantes”
De um modo geral, os estudos sobre a obra de Drummond têm
dado realce à poesia, relegando a segundo plano a sua contribuição
em prosa. Aliás, o próprio autor, com o seu reconhecido retraimento, seu ficar “torto no seu canto”, tem concorrido para essa confusão. No seu primeiro livro de prosa, Confissões de Minas, de 1944, escreve, na introdução: “É um livro de prosa, assinado por quem preferiu quase sempre exprimir-se em poesia. Esse suposto poeta não
desdenha a prosa, antes a respeita a ponto de furtar-se a cultivá-la.”
E, mais adiante, numa distinção teórica de interesse para a compre116
O pri vi légi o de ler Dr u m m o n d
ensão da linguagem de suas duas formas de criação literária, deixa
anotado que “Seria inútil repisar o confronto das duas formas de expressão, para atribuir superioridade a uma delas”, pois, “se a poesia é
uma linguagem de certos instantes, e sem dúvida os mais densos e
importantes da existência, a prosa é a linguagem de todos os instantes”. Esse texto teórico, elaborado na mesma época de A rosa do povo, é
mais uma prova da transformação de seu pensamento literário por
volta de 1945. A definição de poesia lembra a de Shelley, para quem
“A poesia é o registro dos melhores e mais felizes momentos dos
melhores e mais felizes espíritos”; e a de prosa deve ser lida num sentido amplo, em oposição à poesia, mesmo que as várias espécies de
prosa que aparecem em Drummond se encontrem numa gradação
oblíqua em relação à sua poesia, variando da crônica para o conto, ou da
crônica para o ensaio crítico. Note-se que a crônica domina toda a sua
prosa, chegando a insinuar-se pelo conto, retirando dele algumas vezes o poder de fabulação, perpassando leve pelos ensaios e agregando-lhes um conteúdo bastante subjetivo e emocional.
Tais observações críticas fazem parte de um projeto de vida literária
que ele veio praticando, na poesia e na prosa, desde a sua fase de Formação, mas que adquiriu relevo no momento em que a sua linguagem se viu
repartida entre a poesia “engajada” nos temas sociais e a poesia “engajada” em si mesma, no seu autotelismo criador. Um projeto que Drummond teve por certo intenção de executar até o fim, mesmo sabendo
que, freqüentemente, a “linguagem de todos os instantes” se mistura e
até se transforma na “linguagem de certos instantes”, quando se dá a
maior incorporação de traços mais próprios da poesia.
Embora seja possível assinalar o amadurecimento do escritor nos
três subgêneros de prosa – na crítica, na ficção e na crônica –, vendo-os
também através das fases de Formação, de Con-formação, de Transformação
e de Confirmação, preferiu-se estudá-los isoladamente, uma vez que não
senti neles uma diferenciação marcante como se deu com a poesia.
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Gi lberto Mendo nç a Te l e s
Tratarei, em primeiro lugar, das crônicas por ser a forma de linguagem mais freqüente na sua obra em prosa, num conjunto de dez livros. Isto sem se falar nas crônicas que ainda não foram recolhidas
dos jornais. E, como já disse, interferindo na estrutura de alguns
contos e até na de muitos ensaios de crítica. Em segundo lugar, farei
algumas observações sobre os contos, sobre os três (na verdade, dois)
livros de contos publicados. É muito difícil separar na obra de
Drummond os contos das crônicas e vice-versa: grande número de
crônicas tem estrutura de contos, ou, conforme a designação do autor, de casos e de histórias, termos mais adequados à ficção dos contos. Finalmente, me ocuparei da parte de crítica ou dos comentários
críticos sobre seus escritores preferidos, sobre a vida literária e sobre
as suas concepções de arte, de literatura e de linguagem.
4.1. O cronista
Em “A linguagem criadora de Drummond”, publicado na Seleta
em prosa e verso, escrevi que o aspecto subjetivo e indefinido da crônica, em cuja evolução se percebem transições da área científica para os
vastos territórios da literatura, dá-lhe características de uma espécie
literária que encontra notável preferência no espírito criador de
Drummond e a mais ampla ressonância no espírito do leitor brasileiro. O escritor move-se com a mesma naturalidade de invenção e
linguagem pelos domínios da poesia e da crônica, ingressando de vez
em quando numa zona em que se torna quase sempre difícil dizer se
se caminha no terreno da crônica ou se se flutua no reino da poesia:
no terreno, portanto, das prosas poéticas e dos poemas em prosa, um desses
hibridismos comuns à crítica preguiçosa. O próprio Drummond,
atendendo mais à urgência da forma, já havia procurado resolver este
problema, criando um livro com o título de Versiprosa (ou de poesia
prosaica?).
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O pri vi légi o de ler Dr u m m o n d
Repito que a crônica constitui uma de suas formas preferidas, se
bem que por imposição de trabalho jornalístico: o que não consegue
adequar-se à expressão poética encontra o seu recolhimento na crônica e, o que é bastante freqüente, o tema aparece às vezes tratado ao
mesmo tempo na crônica e na poesia. Principalmente os temas de infância, quando o espírito se levanta do Rio e voa pelas montanhas de
Itabira. De um modo geral, as crônicas não se nutrem de reminiscências. Elas nascem do burburinho da cidade, da fala dos adolescentes,
da conversa dos comerciantes e dos acontecimentos que, diariamente, no ônibus, no trabalho ou na praia se apresentam como matéria
que impressiona o cronista.
A formação do cronista começou aos dezesseis anos, no jornal estudantil Aurora Colegial, em Nova Friburgo, estendeu-se ao Para Todos...,
no Rio de Janeiro, e foi adquirindo personalidade no Diário de Minas e
no Minas Gerais, em Belo Horizonte, e conclui o seu ciclo inicial em
1934, quando Drummond publicou o seu segundo livro de poemas.
É provável que o êxito dos poemas tenha influído na produção do
cronista, que vai deixar inédita a maior parte dos textos que escreveu
até então. Também a sua mudança para o Rio de Janeiro e o cargo de
Chefe de Gabinete do Ministério da Educação e Saúde Pública devem
ter concorrido para a momentânea desativação do trabalho de cronista. O certo é que depois de 1941 inicia uma nova fase neste gênero, escrevendo para a revista Euclides, no suplemento literário de A Manhã, no
Correio da Manhã, na Folha Carioca, no Minas Gerais e mais tarde no Jornal
do Brasil. É portanto a partir de 1941, e mais precisamente de 1944,
quando publica Confissões de Minas, seu primeiro livro de prosa (de ensaios críticos), que se verifica a transformação da sua linguagem de
prosador, aparecendo como crítico, como contista (Contos de aprendiz,
1951) e iniciando em 1957 a série de livros de crônicas, a que se juntam as que foram reunidas na Revista do Arquivo Público de Minais Gerais,
em 1984, assinadas pelo pseudônimo de Antônio Crispim, usado pela
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Gi lberto Mendo nç a Te l e s
primeira vez numa crônica do Diário de Minas, em 20.4.1923. Depois
de A bolsa & a vida, em 1962, e de Cadeira de balanço, em 1966, o cronista
só faz é confirmar o alto grau de sua capacidade de escritor, lançando
livros como Caminhos de João Brandão, O poder ultrajovem e chegando a títulos como De notícias & Não-notícias se faz a crônica, de 1974, em que se
confirma o jogo entre o real e o ficcional, tanto nas crônicas como nos
contos. Os dias lindos, Boca de luar e Moça deitada na grama estão nesse patamar das obras que testemunham a virtuosidade e o talento expressivo
de quem mesmo depois dos setenta e cinco anos, não abria mão de seu
rigor e originalidade.
Leitura crítica interessante é acompanhar os pequenos prefácios
ou as simples notas com que o poeta apresenta os seus livros de
crônicas. Em Fala, amendoeira diz que “Esse ofício de rabiscar sobre
as coisas do tempo exige que prestemos alguma atenção à natureza –
essa natureza que não presta atenção em nós. Abrindo a janela matinal, o cronista reparou no firmamento, [...]. Pousou a vista, depois,
nas árvores que algum remoto prefeito deu à rua: [...] Estavam todas
verdes menos uma.”
Começa aí o seu diálogo com a amendoeira. Nesse livro, de 1957,
a ‘teoria’ da crônica se mostra na sua prática. Já em A bolsa & a vida, de
1962, na nota inicial, a mudança de atitude quase não chega a ser
percebida. O título A bolsa & a vida não deve ser interpretado em sentido truculento, embora haja conotação neste sentido. A bolsa é uma
bolsa modesta de comerciária, achada num coletivo. E a vida é isso e
tudo mais que o livro procura refletir em estado de crônica, isto é,
sem atormentar o leitor – apenas, aqui e ali, recordando-lhe a condição humana. Mas já se fala em “leitor”, em “reflexo da vida” e em
“estado de crônica” [recorde-se o “estado de dicionário”, do poema
“Procura da poesia”]. No fundo, uma teoria timidamente esboçada.
Já em Cadeira de balanço, de 1966, o cronista pensa mais fortemente
a sua linguagem e, metaforicamente, diz que a sua cadeira de balanço
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O pri vi légi o de ler Dr u m m o n d
“Favorece o repouso e estimula a contemplação serena da vida, sem
abolir o prazer do movimento. Quem nela se instale poderá ler estas
páginas mais a seu cômodo. Daí o título do livro, a que procurei
também dar certa arrumação, dividindo-o em seções com subtítulos
uniformes”. Aos tópicos da “contemplação”, da “vida” (cotidiana)
e da “leitura” (não mais do leitor) somam-se os do “prazer do movimento”, da “comodidade” e o da “organização”, isto é, o livro não é
um amontoado de crônicas, mas uma unidade altamente organizada.
Os textos são chamados eufemicamente de “esses escritos”. E o cronista acrescenta, à maneira machadiana: “Trazendo-os para aqui, foi
como se reconhecesse objetos emprestados a vizinhos, aliás simpáticos. [...] Vamos sentar.”
Alguma coisa nos lembra o “Prefácio” de Papéis avulsos, onde Machado de Assis informa que os seus contos são avulsos, “mas não vieram parar aqui como passageiros que acertam de entrar na mesma
hospedaria. São pessoas de uma só família que a obrigação do pão fez
sentar à mesma mesa”. A mesa de Machado guarda certa relação com
a cadeira de Drummond e ambos falam em “sentar”. Simples coincidência? Não. Drummond admirava muito Machado de Assis, dedicando-lhe o poema “A um bruxo, com amor”, em A vida passada a limpo.
Noutro livro, Caminhos de João Brandão, de 1970, adota agora a ironia para falar da crônica, sublinhando a diferença entre a teoria (indiretamente exposta) e a prática da crônica na vida diária: “Enquanto discutem com erudição os entendidos que bicho é a crônica – gênero literário ou número de show, mescla de conto e testemunho,
alienação ou radar, – meu amigo João Brandão vive sua vida entre a
rotina palpável e a aventura imaginária, e eu vou cronicando seu viver com a simpatia cúmplice que me inspiram o ser comum e sua
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Gi lberto Mendo nç a Te l e s
pinta de loucura mansa, pois na terra alucinada que nos tocou, ainda
é virtude (até quando?) cumprir sem violência o mandamento de
existir.”
As crônicas de Drummond tiveram grande repercussão, atingindo
tanto o leitor universitário como o menos exigente e, sem dúvida, ajudaram a popularidade do poeta. E o segredo dessa popularidade reside em grande parte na habilidade com que ele soube trabalhar a língua, respeitando-lhe as tradições e ativando-lhe as tendências renovadoras. A sua linguagem é o modelo da linguagem coloquial brasileira,
sabendo elevar-se nos momentos mais solenes e tomando a naturalidade, a graça e o atrevimento para tratar do broto de Ipanema, dos vaivéns políticos e da verborréia nordestina do vendedor de limão na
praia de Copacabana. O escritor não se detém diante da língua, à espera do momento inspirador. Pelo contrário, reúne seus aliados (inteligência, fantasia, experiência, cultura e saber retórico) e luta contra ela,
percorrendo-a do passado ao presente e mergulhando nas suas estruturas para extrair os mais surpreendentes efeitos, desde a linguagem
clássica às gírias cariocas; desde os regionalismos às notáveis pesquisas
das denominações das novas profissões. E tudo isso movimentado
com tanta sabedoria que nem é preciso conhecer mesmo o sentido de
cada palavra para participar do sentido geral, humorístico e fortemente humano, que se desdobra dos textos de suas crônicas. Às vezes, as
nossas comuns noções de poesia perdem a importância diante do teor
poético que se concentra em páginas como “Ontem, Finados”, como
no parágrafo final, de forte beleza evocativa:
Levamos muitos anos para chegar a este ponto de convivência não espírita, até não religiosa, com os mortos. E é uma sociedade encantadora, pela
polidez, pela sensibilidade, pela sutileza do entendimento mútuo. Sorrimos
muitas vezes de um traço do temperamento do morto, e permitimo-nos
com ele brincadeiras que em vida sua não nos animaríamos a fazer. O humour vitaliza a saudade, se é que se pode chamar saudade uma sensação de
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O pri vi légi o de ler Dr u m m o n d
presença tranqüila nos dias de sol, na rua que vamos percorrendo... com o
cumpincha invisível, chame-se ele Gastão, Mário, Rodrigo, Manuel, Alberto, Aníbal, tantos, longínquos, próximos, vivos, perfeitos...
Numa nota em Seleta em prosa e verso, informei que se trata de Gastão Cruls, Mário de Andrade e Mário Casasanta (e Drummond me
disse que realmente pensou nos dois), Rodrigo de Melo Franco,
Manuel Bandeira, Alberto de Campos e Aníbal Machado.
4. 2. O contista
A atender o que dizem as notas bibliográficas, Drummond publicou somente três livros de contos: os Contos de aprendiz, de 1951, incluindo neles “O gerente”, publicado em edição separada, em 1945;
70 Historinhas, de 1978; e Contos plausíveis, de 1981. Na verdade, dois
livros, porque o segundo não passa de uma seleção de pequenos contos, tirados – vejam bem – dos livros de crônicas. Os demais livros
de prosa trazem referências expressas de que se trata de ensaios e
crônicas, ainda que no interior das mesmas apareçam termos como
casos, histórias, historietas, historinhas, conto, diálogo, conversa de e possivelmente outros mais. Acontece que grande parte dessas crônicas possui
movimentação narrativa que ultrapassa as fronteiras do nome que as
classifica e estrutura, deixando aquele aspecto indefinido que parece
indicar uma fase anterior ao conto. Movimentam-se com certa autonomia: os acontecimentos se organizam numa diegese (numa história), libertam-se do autor para existirem noutro mundo, o da ficção.
Drummond acabou por sentir isso, tanto que, na organização do seu
material de prosa para a Seleta em prosa e verso, preferiu os termos divagações para as crônicas; historietas para pequenos contos; e contos para o
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Gi lberto Mendo nç a Te l e s
que ele, na esteira de Horacio Quiroga e Mário de Andrade, considerava conto.
Bem observadas, as suas historietas são mesmo uns minicontos ou,
se quiserem, contos de minissaia. Falta-lhes o pano para uma narrativa maior e nalgumas o tipo de crônica predomina. Na maioria, porém, a estrutura é a do conto, como é também a posição do narrador:
são poucas as personagens e o enredo se desenvolve linearmente,
com princípio, meio e fim; tanto o tempo como o ambiente se apresentam explorados dentro da técnica do conto. O fato de haverem
sido escritas para determinados espaços nos jornais é que lhes justifica o tecido transparente da linguagem, facilitando assim o destino
de serem imediatamente absorvidas pelo público. Por isso, as historietas de Drummond são fontes de dupla emoção: dão-nos a impressão de que estamos com um pé na realidade da crônica e com outro
no barco oscilante da ficção.
Enquanto as historietas são mais comuns, os contos propriamente
ditos são poucos. Muitos deles se realizam sobre as recordações dos
tempos infantis, estando assim impregnados de suave ondulação emocional, colocando o leitor tão próximo de outra realidade, que ele fica
pensando que, se houve por ali algum cronista, ele acabou sufocado
pelo peso da narrativa ou, como quer o poeta, “pelo mau cheiro da
memória”. Há também contos de maior fôlego, como “Flor, telefone,
moça” e “O gerente”, que participam de um superior tratamento da
matéria ficcional. Neles estamos diante de exemplos de perfeição no
gênero. Drummond conseguiu imprimir sobre estruturas tradicionais
a graça, a diafaneidade, a poesia e o mistério dos contos modernos,
criando uma atmosfera de penumbra em que a linguagem mais sugere
que descreve, e em que o leitor se vê obrigado a participar da obra para
tentar descobrir as suas mais íntimas intenções.
Quanto à sua concepção de conto, ela aparece quase sempre indiretamente: tem de ser depreendida e compreendida pelo leitor. Em Contos de aprendiz, por exemplo, há uma pequena nota (que não aparece na
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O pri vi légi o de ler Dr u m m o n d
sexta edição da Aguilar) em que se diz que a coisa que mais o fascinava
nas histórias ouvidas quando criança, não era o enredo, o desfecho, a
moralidade; e sim um aspecto particular da narrativa, a resposta de um
personagem, o mistério de um incidente, a cor de um chapéu...
Em Contos plausíveis adota a atitude retórica de duvidar se os contos serão mesmo contos e explica: “São plausíveis no sentido de que
tudo neste mundo, e talvez em outros, é crível, provável, verossímil.
Todos os dias a imaginação humana confere seus limites, e conclui
que a realidade ainda é maior do que ela.” Aliás, neste livro Drummond enfrenta com a maior galhardia a sua ‘teoria’ do conto, ao escrever o texto inicial a que chamou de “Estes contos” e que, bem
examinado, faz parte dos cento e cinqüenta minicontos, à maneira
dos de Ambrose Bierce, nas suas Fables fantastiques. Vale a penas transcrevê-lo por inteiro:
Há muita coisa a emendar em meus contos. Às vezes eles saem totalmente ao contrário daquilo que pretendiam contar. Costumam até ficar
melhor, mas nem sempre. Certos contos, os mais simples parecem inverossímeis, e os inverossímeis, pois também escrevi alguns desta natureza, despertam o comentário: “Daí, quem sabe? Tudo pode acontecer.”
Tenho a impressão de que tudo pode mesmo acontecer em matéria de
contos, ou melhor, no interior deles. Houve um que se recusou a terminar,
como se dissesse: “Fica tão bom assim... Só você não percebe isto.”
Duas historietas exigiram que as concluísse confessando minha incapacidade de contista. Como eu me recusasse a atendê-las, retrucaram: “Não
faz mal. Não é preciso confessar; todos sabem.”
Só um de meus contos me acompanha por toda parte, ao jeito de fato
fiel, sem que o faça para pedir alimento. É um continho bobo, anão, contente da vida. Vai no meu bolso. Não o leio para ninguém Seu calor me
agasalha. Já não me lembra o que diz, pois nunca o releio, mas sei que é raríssimo o texto que seja amigo do autor, e quanto a este, não duvido. Meu
melhor amigo é um continho em branco, de enredo singelo, passado todo
ele na antena esquerda de um gafanhoto.
125
Gi lberto Mendo nç a Te l e s
O leitor que se esforce por extrair daí os elementos para a composição
de uma teoria do conto, mesmo que não seja preciso, e que o esforço redunde em vão. O que se conta é mesmo o conto...
Para terminar as observações sobre o que pensava Drummond a
respeito da ficção, do romance e do conto principalmente, veja-se o
texto “Purgação” do “Caderno de notas” de Confissões de Minas. Ali se
comentam os títulos dos contos e romances de hoje. Drummond diz
que eles sugerem pouco e manifesta a sua simpatia pelos títulos clássicos, como A filha do capitão, de Puchkin, que “deixam o leitor perfeitamente livre de imaginar todas as possibilidades para depois conferi-las com o texto”. No final, escreve sobre o adjetivo dos títulos, ele
que, certa vez, no poema “Explicação”, de Alguma poesia, havia dito
que “A Europa é uma cidade muito velha onde só fazem caso de dinheiros e tem umas atrizes de pernas adjetivas que passam as pernas
na gente.” Ao fazer uso da metalinguagem (o terno adjetivo em lugar
da própria qualificação), o poeta fez mais do que pedia Marinetti
quando exigia a abolição do adjetivo ou a colocação, entre parênteses, de vários adjetivos para que o leitor escolhesse o que melhor lhe
parecesse adequado ao substantivo: o poeta de Itabira, com o termo
gramatical, abre de vez as possibilidades do imaginário, estendendo-as para todos os adjetivos da língua e se antecipando aos teóricos
da estética da recepção. Por isso, pode dizer: “Chego a crer que tudo
se pode dizer sem eles, melhor talvez do que com eles. Por que ‘noite
gélida’, ‘noite solitária’, ‘profunda noite’? Basta ‘a noite’. O frio, a solidão, a profundidade da noite estão latentes no leitor, prestes a envolvê-lo, à simples provocação dessa palavra noite.”
Nos “Apontamentos literários”, de Passeios na ilha, se lê: “Romance: arte de destelhar casas sem que os transeuntes percebam.” A linguagem figurada desvia o leitor da definição, levando-o a ver os
“transeuntes” como personagens do que passa a imaginar. Em O observador no escritório (“Fevereiro, 21”), registra a crítica de Marques
126
O pri vi légi o de ler Dr u m m o n d
Rebelo sobre a sua novela “O gerente”, achando que Drummond
narrou rapidamente a parte final. Drummond explica que procurou
“escrever a história em dois tempos, um lento, o de apresentação do
personagem e colocação dos elementos da história; outro, rápido, de
ação”. Percebe-se o sentido de planejamento, da arte de compor a
história. Em O avesso das coisas, publicado postumamente, o escritor
usou a forma das máximas para a definição de certas idéias, como
num dicionário humorístico. Eis alguns exemplos:
Conto de Fadas – “Evoluímos tanto que já é possível conceber conto de fadas
sem fadas e até sem conto.” Fábula – “A vida ensina que a moral das fábulas
é imoral.” Romance – “O romance torna a realidade ainda mais irreal.”
Estes são apenas alguns exemplos do que se pode extrair da obra
do escritor. Um ótimo exercício teórico é procurar classificar e organizar coerentemente esse pensamento fragmentário de Drummond
sobre a matéria ficcional, principalmente do conto que, a julgar pela
opinião de Cortázar, está mesmo muito próximo da poesia.
4.3. O crítico
As atividades de Drummond como crítico e / ou ensaísta não se
encontram também muito afastadas das do poeta, do cronista e do
contista, o que não deixa, aliás, de ser um fato muito comum na literatura. Vê-se no ensaísta o desdobramento do poeta: de dentro de
sua poesia – como nos poemas sobre as palavras, sobre o poema, sobre a poesia, sobre o nome – vai surgindo o ensaísta em forma de
metalinguagem, de um olhar crítico sobre a linguagem poética ou
sobre a literatura. E é por intermédio desses poemas, como é através
dos ensaios de crítica, que o escritor segreda um pouco de suas concepções literárias, seu modo de ser como escritor, bem como alguns
princípios de sua filosofia de arte. Veja-se que não há exatamente
127
Gi lberto Mendo nç a Te l e s
um livro de ensaios entre as obras de Drummond: há, isto sim, dois
livros híbridos, de ensaios e crônicas, sugerindo que estas participam
da natureza impressionista daqueles. Todavia, de Confissões de Minas
(1944) para Passeios na ilha (1952), é preciso registrar um notável esforço em substituir as impressões pelas observações, deixando o
conteúdo pela forma e linguagem dos poetas estudados.
Quase sempre, o que Drummond escreve aí sobre os outros poetas o crítico pode também escrever sobre ele. É como se ele extravasasse na crítica o seu modo de ser como poeta. Em Confissões de Minas,
ao falar da solidão de Fagundes Varela, diz que “por não ter sido um
solitário perfeito, e sim um homem, embora esquivo, preso aos outros homens por uma poderosa força de comunicação, é que sua poesia ainda hoje nos invade e nos comove tanto”, é como se estivesse
falando de si mesmo: um homem esquivo (gauche) que se vê ligado a
seus amigos por essa “poderosa força de comunicação” que é a sua
obra. O que diz sobre a simplicidade de Casimiro de Abreu encontra
eco nos seus dois primeiros livros. E, ao falar de Gonçalves Dias, observa que “há certa malícia escondida nas barbas severas do poeta”,
imagem que não está muito longe daquele verso final de “Construção”: “E o vento brinca nos bigodes do construtor.” Além dos poetas românticos, Confissões de Minas tem capítulos intitulados “Na rua,
com os homens”, “Confissões de Minas”, “Quase histórias”, e “Caderno de notas”. Na verdade, uma espécie de balaio em que se misturam ensaios, tentativas de conto, crônicas, cartas e diversas anotações literárias, ricas de confidências e revelações. Por isso mesmo,
muito importantes para a história do Modernismo brasileiro: é aí
que ficamos sabendo que “as cartas de Mário de Andrade ficaram
constituindo o acontecimento mais formidável de nossa vida intelectual belo-horizontina”.
Textos como “Autobiografia para uma revista” é importantíssimo
como depoimento, como autocrítica de sua poesia até 1940. Para o
128
O pri vi légi o de ler Dr u m m o n d
próprio Drummond, Alguma poesia “traduz uma grande inexperiência
do sofrimento e uma deleitação ingênua com o próprio indivíduo”;
Brejo das almas revela que “alguma coisa se compôs, se organizou; o individualismo será mais acerbado mas há também uma consciência
crescente da sua precariedade e uma desaprovação tácita da conduta
(ou falta de conduta) espiritual do autor”. E sobre Sentimento do mundo:
“Penso ter resolvido as contradições elementares da minha poesia,
num terceiro volume.” Mas acrescenta: “Só as elementares: meu progresso é lentíssimo, componho muito pouco, não me julgo substancialmente e permanentemente poeta.” E, de forma admirável, deixa escrita esta lição que não envelhece nunca:
Entendo que poesia é negócio de grande responsabilidade, e não considero honesto rotular-se de poeta quem apenas verseje por dor-de-cotovelo,
falta de dinheiro ou momentânea tomada de contato com as forças líricas
do mundo, sem se entregar aos trabalhos cotidianos e secretos da técnica,
da leitura, da contemplação e mesmo da ação. Até os poetas se armam, e um
poeta desarmado é, mesmo, um ser à mercê das inspirações fáceis, dócil às
modas e compromissos. Infelizmente, exige-se pouco do nosso poeta; menos do que se reclama ao pintor, ao músico, ao romancista...
Merece ainda mencionar, em Confissões de Minas, a parte denominada “Caderno de notas”, com reflexões sobre romance, poesia, literatura infantil (“O gênero ‘literatura infantil’ tem, a meu ver, existência duvidosa. Haverá música infantil? pintura infantil?”), religião e
poesia, o corpo feminino como tema das poetisas, o livro inútil (algo
mallarmaico), a linguagem, pontuação e poesia, a beleza das coisas
simples, o nu artístico, a moda literária e sobre os indefectíveis “vinte livros na ilha”.
Já em Passeios na ilha, que reúne prefácios e artigos publicados no
Correio da Manhã, é visível o amadurecimento, tanto das concepções
como do manejo da linguagem, que agora se apresenta mais flexível,
129
Gi lberto Mendo nç a Te l e s
combinando às vezes uma intenção estilística com uma não menos intencional dosagem de ironia, como em “Perspectiva do Ano Literário
1900”. Títulos como “Subúrbios da calma”, “Província, minha sombra”, “Sinais do tempo”, “O velho e o novo”, “Contemporâneos” e
“Presenças” são as partes em que se divide esse segundo livro, também
misto de ensaios e crônicas. O ensaísta agora se manifesta menos impressionista, mesmo quando se trata de páginas de recordações ou impressões avulsas sobre Manuel Bandeira, Américo Facó, Joaquim Cardoso, João Alphonsus, Raul Bopp, Emílio Moura, Henriqueta Lisboa
e Alphonsus de Guimaraens Filho. Há análises de métrica, fala-se em
“alquimia verbal”, e as concepções sobre a poesia refletem as experiências daquela fase de transformação de que se falou ao tratar do poeta.
Há páginas admiráveis de humor e muitos de seus “Apontamentos literários” se tornaram famosos pela linguagem direta, franca e irônica,
na linha dos grandes moralistas clássicos. Eis alguns:
– Impossível fazer compreender aos de vinte anos que não temos culpa
de ser mais velhos, de possuir maior soma de visões, de lembranças, de riquezas imponderáveis: que desvendamos certos segredos porque nos foi
dada oportunidade de viver já há mais tempo; que o tempo traz consigo
certa sutileza, ainda aos menos dotados, e que a suposta derrota do envelhecer nos confere uma relativa superioridade (aliás, de ninguém invejada).
– Aprendeu com Fidelino de Figueiredo: “Com os mortos não se deve
polemizar e com os vivos não vale a pena.”
– No Brasil, a glória começa com a violação do sigilo epistolar. Lemos
amanhã nos jornais a carta que mandamos hoje ao moço escritor.
– Impressionante, a sabedoria de suas vírgulas: é incapaz de misturar
duas tolices na mesma frase.
– A bolsa de valores intelectuais é emotiva e calculista, como todas as
bolsas. Hoje temos talento; amanhã não.
E diz haver aprendido com Machado de Assis (“Do homem experimentado”) que “Com o moço que nos visita sobraçando um
130
O pri vi légi o de ler Dr u m m o n d
maço de papéis datilografados entra-nos em casa, fatalmente, um
inimigo.”
Drummond deixou ainda três outros livros de crítica, o último
dos quais aparecido postumamente, em 1988. O observador no escritório, de 1985, é um diário que se estende de 1943 a 1977. Numa
nota, procura justificar porque escreveu um diário, que ele vê como
“documento de arquivo”:
Mas o escritor não precisa justificar-se, a não ser pela obra. Ninguém o
obriga à anotação íntima, a esse mirar-se no espelho do presente. Então, se
escreve o diário, há de ser por força de motivação psicológica obscura, inerente à condição de escritor, alheia à noção de utilidade profissional.
Às vezes as datas vêm com um título, entre os quais destacamos:
“O poema longo”, “Morte de Mário de Andrade”, “A família Portinari”, a “Fala de Luís Carlos Prestes”, “Vinícius interroga os espíritos”, “Deposição de Getúlio”, “Congresso de escritores”, “Cartas
maternas”, “Reações de Olavo Bilac”, “Manuel Bandeira enfermo”,
“Morre Américo Facó”, “O jazigo de Machado de Assis” e a série de
seus amigos políticos e escritores, como Francisco Campos, Ribeiro
Couto, Álvaro Moreyra, Cecília Meireles, Schmidt, Mário Barreto,
Abgar Renault, Niomar Moniz Sodré, Fernando Sabino, Murilo
Mendes e Rosário Fusco.
Tempo Vida Poesia aparece no catálogo da Record como livro de
poesia, mas trata-se de um livro de memória ou, como no subtítulo:
“confissões no rádio” ou “papo radiofônico” que o poeta manteve
com Lya Cavalcanti na Rádio Ministério da Educação e Cultura, na
década de 1950. O poeta narra episódios da sua iniciação literária,
do seu encontro com o Modernismo numa linguagem bem humorada, como no capítulo XVII, “Entre Bandeira e Oswald de Andrade”. No final, a entrevistadora quer saber em que consistia a antropofagia pregada por Oswald de Andrade:
131
Gi lberto Mendo nç a Te l e s
– E como se manifestava isso em literatura?
– “Comendo-se uns aos outros”, responde Drummond.
O avesso das coisas é um livro de aforismos, de que já dei alguns
exemplos quando tratei de Drummond como contista. Mas, para
terminar não ficam nada mal alguns dos aforismos drummondianos
sobre a literatura: “Novidade em literatura costuma surgir envolta
em naftalina”; “A obra literária deve ser sempre melhor do que o autor;” e “Para garantia de qualidade, seria melhor que o escritor só estreasse com o segundo livro”.
Há um poema em A rosa do povo, “Desfile”, que termina com o verso “fecho os olhos, para ensaio”, em que esta palavra (ensaio) está
sendo usada no sentido de preparo, isto é, o poeta se prepara para a
morte. Podíamos aqui, como evidente intenção de trocadilho, dizer
que Drummond fecha também os olhos para o ensaio, preferindo
expor as suas idéias sobre a poesia através da própria poesia.
5. “Tudo é teu, que enuncias”
A consciência literária e, portanto, artística de Carlos Drummond
de Andrade se manifestou por dentro da poesia, na lógica da prosa
(crônica, conto e critica), nas entrevistas (de que se publicou algumas nesta edição) e, por isso mesmo, na sua filosofia da linguagem,
no modo particular e bem seu de contemplar e de explorar o mais
fundo da língua e da linguagem. Não é necessário o auxílio das mais
recentes teorias lingüísticas, para se perceber a força criadora da linguagem. Principalmente quando a língua parece afastar-se de suas finalidades práticas de veículo de comunicação entre os homens, para
apresentar-se apenas como manifestação de si mesma, autocriadora,
atingindo na poesia a mais alta revelação do espírito humano. Para
Schlegel, a linguagem é “uma poesia em constante estado de desen-
132
O pri vi légi o de ler Dr u m m o n d
volvimento, cambiante, jamais acabado, de toda a humanidade”.
Para o pensador alemão, essa tonalidade poética da linguagem se revela em qualquer tipo de comunicação. Mas é inegável que é só na literatura que ela apresenta toda a sua possibilidade criadora, porque,
na literatura, se unem duas forças especiais da criação humana: de
um lado, a linguagem mesma: e, de outro, a arte, sobretudo na sua
forma de poesia.
A produção de qualquer obra de arte literária vai assim precedida
de um ato mental criador, cujos meios são proporcionados pela linguagem. Um escritor executa consciente ou inconscientemente as
operações estilísticas de escolha, combinação, substituição e transformação dos elementos da língua, indo dos sons às palavras, e das
significações às formas superiores do pensamento, nas estruturas
sintáticas. O motivo comum da criação é a necessidade de exprimir-se ou de comunicar-se, mas pode ser também a simples energia
da linguagem, latente no ato de pensar. O que é fora de dúvida é que
esse ou aquele motivo somente se concretiza pelo livre exercício da
linguagem.
Ora, a obra de Carlos Drummond de Andrade se constrói sob o
impulso dessas duas energias criadoras: há nele a consciência da criação pela literatura: “Tudo é teu, que enuncias”, como ele o diz em
“A Palavra e a Terra”, de Lição de coisas; e, ao mesmo tempo, a consciência de que essa criação se processa através da língua, pois, como
já se viu, para ele a poesia é “a linguagem de certos instantes” e a prosa, “a linguagem de todos os instantes”. Daí a consciência de que a
criação é a luta com a linguagem: “Lutar com palavras / é a luta mais
vã. [... ] / Entretanto luto.” E daí também a sua funda angústia no
ato de criar, tema que constitui uma constante evolutiva em toda a
sua obra: o poeta fala na “ânsia de explicar-me”, diz que a poesia é
uma “morte secreta” e “o que não é poesia não tem fala”, e chega ao
desespero de gritar contra “as nossas roucas onomatopéias”, la133
Gi lberto Mendo nç a Te l e s
mentando-se: “Triste é não ter um verso maior que os literários, é
não compor um verso novo, desorbitado.”
A distinção entre prosa e poesia, feita por Drummond em 1944,
comparada com a de um crítico francês da atualidade, Jean Cohen
(Estrutura da linguagem poética, 1966), motiva uma observação sobre a linguagem poética do Modernismo, depois do que, para terminar, passarei em revista os traços mais típicos da linguagem drummondiana. Diz
Cohen que a “prosa é a linguagem corrente”, tomada como norma ou
padrão da linguagem escrita; e a poesia, no caso, o poema, “é um desvio
com relação a essa norma”. Não resta dúvida de que é muito parecida
com a de Drummond, mas com a desvantagem de lançar ligeira confusão entre linguagem coloquial e linguagem literária.
Como a obra de Carlos Drummond de Andrade foi construída
dentro do Modernismo, evoluindo com ele, o valor de sua expressão
literária tem de ser examinado em relação direta com a linguagem
coloquial, de que os modernistas tanto se aproximaram. E esta linguagem é um feixe de traços lingüísticos diversos, todos vivos no falar brasileiro. No passado, a linguagem coloquial não admitia essa
abertura para os elementos populares da língua. O Modernismo, tal
como já havia acontecido, em menor escala, no Romantismo, abriu
as comportas do idioma, e tanto a poesia como a prosa se deixaram
inundar por esse alargamento da expressão. Muitos o criticaram; outros o confundiram com a facilidade, e se deixaram arrastar pela correnteza; apenas alguns raros escritores, como Drummond, disciplinados em seu ofício inventivo, continuaram a travessia desse rio noturno e volúvel, que é a linguagem literária modernista.
Os limites mais extremos dessa linguagem se podem documentar
na obra de Drummond, que funciona assim como um laboratório,
134
O pri vi légi o de ler Dr u m m o n d
uma “oficina irritada”, onde “os materiais da vida”, através da linguagem, vão-se submetendo a várias operações: de ampliação, concentração, combinação, eliminação e permuta, permitindo as mais diferentes
transformações. A sua obra é, por isso, uma gramática transformacional e
criadora. E as duas forças de criação, a da arte e a da própria linguagem,
se juntam numa única força centrípeta, cujo centro magnético é indiscutivelmente a poesia. Tocados pela atração mágica da poesia os mais
obscuros elementos da língua se movimentam eletrizados.
Veja-se, por exemplo, o que se passa com as palavras. Elas podem
ser também selecionadas e apresentadas dentro de uma divisão de
tempo e espaço: sobre uma base comum, de que o escritor se vale
para as suas operações, é fácil perceber quatro áreas lexicais ligadas
ao Tempo: arcaísmo (geolhos, fenestra), neologismo (insiderável,
dangerosíssima), gíria (morou, manja) e profissionalismo (sintequeiro, overloquista); e quatro áreas lexicais referentes ao Espaço:
regionalismo, termos do Sul (chê, guasca), do Nordeste (avexa, Senhor do Bonfim), do Norte (caxiri, guapuiar) e termos do CentroLeste, como as gírias cariocas (quadrado, fundir a cuca).
Reunidas as noções de tempo e espaço, e convocadas as palavras –
cada uma com a sua cor local e sua forma pitoresca –, o escritor começa o seu trabalho, a sua arte, de dispor cada termo no lugar exato para
que se possa concentrar a maior quantidade de comunicação estética.
Como o simples vocábulo não é suficiente às vezes para exprimir a
síntese original da intuição criadora, surgem os vários processos operatórios: montagem (ferotriste, noitidão), estrangulamento (col /
onizar, desfal / ecimento), repetição (canta, canta, canarinho; fala
fala fala fala), trocadilho (ações ao portador e portadores sem ação),
onomatopéias (vupt, e rrr), modismo (quedê, sol danado), locuções
e anexins (Cf. “Antigamente”), termos indígenas (mayra, tupi, girirebboy, bororo), estrangeirismos (smart, gauche), siglas (ABBR,
BR-15), deformações ortográficas (arkademias, jinela), motivações
135
Gi lberto Mendo nç a Te l e s
fono-semânticas (“De repente uma banda preta / vermelha retinta
suando / bate um dobrado batuta / na doçura / do jardim”), construções nominais (“O fácil o fóssil / o míssil o físsil / a arte o infarte”), ordem indireta (“de seu peso terrestre a nave libertada”), pontuação (“A bomba / declara-se balança de justiça arca de amor arcanjo de fratemidade”), além de procedimentos técnicos ou semânticos, como: alusão (bíblica: “Meu Deus, por que me abandonaste”;
literária: “Bicho da terra, vil e tão pequeno!”, Camões), sinônimos
(“Estou escuro, estou rigorosamente noturno, estou vazio”), homônimos (cava, cava), antônimos (automóveis imóveis, antítese), parônimos (lavar, lavrar) e, finalmente, a enumeração, sobretudo a caótica (“Pensando com unha, plasma, / fúria, gilete, desânimo”).
Mas não fica aí, o escritor fala em substantivo, adjetivo, verbo,
pronome, sintaxe, enumera as preposições e conjunções e chega até a
falar num “Pequeno mistério policial ou a morte pela gramática”.
Compreenda-se: a morte, aquela “morte secreta”, a poesia; e a gramática, aquele código de uma linguagem que “planta suas árvores no
homem e quer vê-las cobertas de folhas, de signos, de obscuros sentimentos” e vai além dos nomes, “coisa livre de coisa, circulando” na
língua portuguesa, para dar ao leitor o grande privilégio de ler em
vernáculo a grande obra de Carlos Drummond de Andrade.
6. Estudos do autor sobre Drummond
TELES, Gilberto Mendonça. “Forma e poesia”, O 4o Poder. Goiânia,
28 de jul. de 1963.
____. “La repetición: un procedimiento estilístico en Carlos Drummond de Andrade”, Revista de Cultura Brasileña, no 27. Madrid, dez.
de 1968.
____. “Carlos Drummond de Andrade”, in La poesía brasileña en la actualidad. Montevidéu: Letras e Artes, 1968.
136
O pri vi légi o de ler Dr u m m o n d
____. Drummond: A estilística da repetição. [Prefácio de Othon Moacyr
Garcia]. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1970. Coleção Documentos
Brasileiros. 2a ed. mesma editora, 1976. 3a ed. São Paulo: Experimento, 1997.
____. “Drummond (retrato). A linguagem criadora de Drummond”, in ANDRADE, Carlos Drummond de. Seleta em prosa e
verso. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1971. [13a ed., Record, 1991.]
____. “Cammond & Drummões”, in Camões e a poesia brasileira. Rio
de Janeiro: MEC / FCRB, 1973. 3a ed., Livros Técnicos & Científicos, 1979. 4a ed. aumentada com “O mito camoniano em língua portuguesa”. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda,
2001.
____. “A experimentação lingüística na poesia”. Revista do Instituto de
Estudos Brasileiros da Universidade de SãoPaulo, no 22, 1980.
____. “Perenidade e transformação”. O Estado de S. Paulo, São Paulo,
31 de out. de 1982.
____. “A transformação na poesia de Drummond”. Letterature dí
America, no 13, Roma, 1982.
_____. “A linguagem criadora de Drummond”. Letras, Lisboa, 30
nov. 1985.
_____. “Carlos Drummond de Andrade”, in Estudos da poesia brasileira. Coimbra: Almedina, 1985.
_____. “Transforma-se o amador na coisa amada”. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 29 de ago. de 1987.
_____. “O discurso poético de Drummond”, in A escrituração da escrita. Rio de Janeiro: Vozes, 1995.
Rio de Janeiro, 30 de maio de 2002.
137
“Se procurar bem, você acaba encontrando
não a explicação (duvidosa) da vida
mas a poesia (inexplicável) da vida.”
Carlos Drummond de Andrade, Corpo.
Rio de Janeiro, Record, 1984, p. 95.
Alguma prosa de
Drummond
J o ão Ad ol f o Ha ns e n
Não há muitos prosadores, entre nós, que tenham consciência do tempo, e
saibam transformá-lo em matéria literária.
Drummond, Confissões de Minas, agosto de 1943
Ó canhestras e vagas croniquetas,
quem vos salvou da poeira das gazetas?
[...]
Talvez algum caixeiro de quitanda
ou vendedor de velas para Umbanda,
a dissolver meu drummoniano orgulho,
vos convertia em material de embrulho
Drummond, “Saudação”, Viola de bolso II, 1956-1964
Para mim, que cresci provinciano em uma cidade mercantil do
interior, Drummond foi desde cedo não um tema literário, mas a
presença incorporada ao lado esquerdo, sugerindo-me que, se
139
João Adolfo
Hansen é
professor titular
na Universidade
de São Paulo.
Jo ão A do lfo Hans e n
1
Drummond,
“Apontamentos
literários”.
Correio da Manhã,
Rio, 1/9/1946.
2
“Mas Carlos
Drummond de
Andrade,
timidíssimo, é ao
mesmo tempo,
inteligentíssimo
e sensibilíssimo.
Coisas que se
contrariam com
ferocidade. E
desse combate
toda a poesia
dele é feita.”
Mário de
Andrade, “A
poesia em
1930”. Aspectos da
literatura brasileira.
5a ed. São Paulo,
Martins, 1974,
p. 33.
Deus é grande, o mato de Itabira e de Para-lá-do-Mapa é maior.
Hoje, principalmente hoje, sou grato à guerrilha da sua ironia imprescritível. Assim, quando Fábio Lucas me convidou para escrever sobre a sua prosa, ocorreu-me a hipótese de falar a partir dela e,
principalmente, com ela.
Como qualquer outro, o estilo de Drummond é uma sintaxe, uma
maneira particular de ver e de dizer as coisas. Mas não só, porque é
antes de tudo a impossibilidade de vê-las e dizê-las de outra maneira.1 Essa restrição, decisiva na sua arte de poeta do finito e da matéria, determina que a composição das significações de seus textos seja
feita como divisão pelo “fatal meu lado esquerdo”, expressão-síntese de sua poética legível no primeiro poema de A rosa do povo
(1945). Drummond é antes de tudo uma sensibilidade comovida,
mas capaz, como dizia T.S. Eliot dos poetas metafísicos ingleses do
século XVII, de controlar e devorar intelectualmente qualquer experiência afetiva.2 Desde seu primeiro livro, Alguma poesia (1930), sua
inteligência da forma aparece unida materialmente ao princípio da
liberdade humana como dicção irônica e auto-irônica muito pessoal
e sensível, mas sem subjetivismo, orientada por um desencantado e
firme senso utópico de justiça que a faz atenta a tudo quanto é dor.
A partir de Sentimento do mundo (1935-1940), humanizou-se mais, se
é possível dizê-lo, em uma maneira auto-reflexiva de dizer as coisas
daqui e do vasto mundo que evidencia a particularidade anti-heróica
de sua dicção. Acentuando a auto-reflexão com gravidade trágica, o
poeta opera o sentido “esquerdo” em dois níveis complementares de
significação, a angústia de viver as formas opressivas da vida capitalista e a resistência contra a sua essencial barbárie. Ser e tempo, vida
profunda e miséria histórica, a complementaridade antitética das
significações é estranhamento, tensão e contradição das normas sociais que organizam a naturalidade das representações que o leitor
habitualmente faz de si e do mundo. O estranhamento acontece em
140
A lgu ma pro sa de Dr u m m o n d
todos os níveis do discurso como dramatização dos temas por meio
de duas perspectivas compositivas antagônicas.3 Dividem a figuração da fala em afetos irônico-sentimentais irreconciliáveis e opõem
os enunciados como elevação lírica e trágica das matérias humildes e
baixas e rebaixamento cômico e satírico das matérias altas e graves:
“anjo torto”, “sublime cotidiano”. As mesclas estilísticas dessa divisão negam a unidade suposta do sujeito e a racionalidade suposta
das coisas, evocando no leitor as incongruências de um abismo de
melancolia racional e ceticismo sentimental.4
Diria, por isso, que as diferenças da sua poesia e da sua prosa se
parecem. E isso porque Drummond escreve uma e outra segundo a
dualidade característica da grande arte moderna: seus textos fazem
uma teoria da sensibilidade, como forma da experiência individual
possível, e uma teoria da arte, como reflexão da experiência social
real. Correndo paralelos, os dois sentidos não se juntam, contudo,
pois as condições sociais da experiência poética ainda não se tornaram condições da experiência real.5 Essa dissimetria de sensibilidade
e razão, de possível e real, é o núcleo da sua forma poética. Nela, o
corpo determinado pela fratura constitutiva do sujeito é condicionado pela divisão de classe. Fratura e classe o dividem como objeto
finito, nunca sublime nem sublimado, dissolvendo-o em afetos divergentes. Ao mesmo tempo, a reflexão é negação do limite. Distanciamento feroz da ironia, que nega a brutalidade do dado histórico, e
imersão doce do humor, que afirma a solidariedade com o sofrimento, mescla recusa e resignação. É muito difícil apreender essa experiência como uma unidade, pois ela antes se repete prismaticamente,
como uma ressonância de timbres, nos modos muito variados da extrema condensação dos poemas, aparecendo na prosa por assim dizer de maneira mais frouxa ou menos condensada, mas não menos
insistente. Seria inútil, por isso, comparar as duas formas só para
afirmar a superioridade de uma delas.6 Pois nelas ecoa a mesma ne-
141
3
Cf. Lima, Luiz Costa.
“O princípio-corrosão na
poesia de Carlos
Drummond de Andrade”.
Lira e antilira. Mário,
Drummond, Cabral. 2a ed.
revista. Rio de Janeiro,
Topbooks, 1995.
4
“Vila de utopia”,
Confissões de Minas. Obra
Completa, ed. cit., p. 561.
Como exemplo dessa
melancolia racional e
ceticismo sentimental,
leia-se “O enigma”:
“Ai! de que serve a
inteligência – lastimam-se
as pedras. Nós éramos
inteligentes, e contudo,
pensar a ameaça não é
removê-la; é criá-la. Ai! de
que serve a sensibilidade –
choram as pedras. Nós
éramos sensíveis, e o dom
da misericórdia se volta
contra nós, quando
contávamos aplicá-lo a
espécies menos
favorecidas.” (Novos
poemas, ed. cit., p. 231.)
5
Deleuze, Gilles. Lógica do
sentido. Trad. de Luiz
Roberto Salinas Fortes.
São Paulo, Perspectiva,
1974, pp. 265-266
(Estudos, 35).
6
Drummond. Confissões de
Minas, ed. cit., p. 505.
Jo ão A do lfo Hans e n
gatividade com o mesmo sentido moderno, mas com intensidades e
significações diferentes, próprias das duas.
Na auto-reflexão sobre a impossibilidade da existência da poesia
em um tempo de miséria, Drummond dissolve as formas artísticas
que naturalizam a arte como evidência. A particularidade histórica
do artifício aparece à leitura como suspensão e desvanecimento do
sentido, pois incide negativamente sobre os condicionamentos sociais, materiais e institucionais da sua própria possibilidade como poesia em um mundo inteiramente subordinado à lógica da mercadoria. O real não é racional, propõe sua forma, transformando e dissolvendo as ideologias correntes sobre o tempo e a História. Dissolvendo-as, também esvazia o ato da invenção em um vácuo posto entre
limites denegados: o ideal impossível das formas da sensibilidade
enfim livre – a inteireza da memória da infância, a vida sem culpa, o
amor, o trabalho significativo, a simplicidade da beleza, a liberdade
coletiva, a utopia revolucionária – o real intolerável objeto da reflexão – a miséria da História, a mercadoria, a feiúra da cidade, a exploração, a falta de sentido, a opressão de classe, o fascismo.
Como em Mallarmé, a destruição é a sua Beatriz. Poesia da experiência, não é harmônica, pois o sofrimento humano é histórico e vamos morrer. Sua divisão mesclada corresponde à desarmonia essencial da vida, pois sabe que o sofrimento nunca é anedótico, menor,
pouco ou insignificante. Máximo poeta moderno da memória, do
esquecimento esquecido de si mesmo e da impossibilidade de esquecer o peso horrível do passado, Drummond sabe que qualquer dor é
mal e que deve ser tratada com a delicadeza e a honestidade de uma
comoção só possível porque fundada na maior solidão de todas, a do
indivíduo sabedor de que vai morrer sem que a injustiça tenha acabado, uma solidão anti-heróica, portadora da peste coletiva transfigurada na recusa da grande saúde que faz a vida improvável. Sua poesia
lembra que a morte, tal o gavião molhado de “Morte das casas de
142
A lgu ma pro sa de Dr u m m o n d
Ouro Preto”, baixou entre nós, em nós, e não se vai. Com comovedora exemplaridade por assim dizer compendiária, que dramatiza
experiências que nunca tiveram vez nem voz, impensável amargo da
beleza e impensado recalcado da dor da herança das violências das
estruturas coloniais sintetizadas na memória da família patriarcal
mineira e das modernidades oligárquicas da sociedade urbana instaurada no país pela Revolução de 1930 e pelo Estado Novo, a força
negativa da sua recusa da vida ruim é extraordinária. Na literatura
brasileira contemporânea, só tem similar nas generosidades tão diferentes de homens e artistas como Mário de Andrade, Oswald de
Andrade, Graciliano Ramos e João Guimarães Rosa. Assim como
seria impossível pensar a poesia de Machado de Assis sem lembrar
sua prosa, é impossível falar da prosa de Drummond sem pensar
em sua poesia. Necessariamente, sua prosa inicial é lida, hoje, com a
experiência acumulada de toda a sua poesia, de Alguma poesia (1930)
até o póstumo Farewell (1996). O que, ao invés de torná-la menor,
efetivamente a faz mais complexa.
Na poesia, ainda na maior empatia pelo outro, a palavra de
Drummond é esquiva, escarpada e até escarninha, arredia ao contato: “toda sílaba/acaso reunida/ a sua irmã, em serpes irritadas vejo
as duas”, como em “Nudez”, de A vida passada a limpo. A condensação
é extrema; mas o hermetismo se abre, paradoxalmente, à variedade
das recepções. Mas sua prosa é ávida de contato. O que a caracteriza
nuclearmente é a comunicação de informações referenciais que desaparecem condensadas na imagem poética, pois a poesia não pressupõe a comunicação. A prosa não é secundária, contudo, nem menor
ou sem interesse, mas outra coisa, visível imediatamente na crônica.
Diferentemente da poesia, em que o conteúdo é a forma, a crônica comunica informações, pressupondo que a forma é meio para
conteúdos dirigidos a uma imagem preconstituída de leitor. O gênero comunica a própria comunicação. Essa estrutura faz a crônica
143
Jo ão A do lfo Hans e n
tender, independentemente da qualidade do texto particular, a ser
uma adequação comunicativa à recepção pressuposta. Muitas vezes,
uma facilidade e mesmo uma facilitação comunicativa, que fará o
leitor sorrir agradado com a própria inteligência capaz de reconhecer a engenhosidade amena da crítica das matérias, e, pensando por
instantes como realmente a vida anda ruim, passar para a seção esportiva. Até o dia seguinte, quando novamente sai o jornal. Pois a
forma da crônica prevê o esgotamento de si mesma quando lida,
mais ainda quando aparece onde deve, o jornal e o tempo brevíssimo
da sua leitura recortada na simultaneidade das informações que
compõem o ato como repetição das trocas comerciais onde a crônica
se dissolve naturalmente, como um fait divers entre outros.
Além disso, a crônica sempre é meio para outra coisa fora dela,
meio por assim dizer “iluminista”, sempre atravessado por uma tensão. A crônica escrita “criticamente” propõe as informações para o
leitor apostando na capacidade de produzir mudanças dos seus hábitos com comentários mais ou menos divergentes da normalidade
suposta das matérias cotidianas, mas, para realizar a pretensão, tem
que manter a normatividade da estrutura comunicativa, modulando-se como paralelismo de forma convencional e conteúdos “críticos”. Toda crônica é sempre “interessante”, no estrito sentido material de realizar o inter esse fático de mensagem situada “entre” a intencionalidade autoral e a recepção pressuposta. Em termos comunicacionais, basta que realize essa função de contato para ser eficaz. Já
em termos artísticos, não, pois a subordinação dos enunciados ao
contato determina a crônica como reprodução simples dos esquemas que organizam a experiência das matérias que os conteúdos
“críticos” pretenderiam superar. A crônica é não só interessante, no
sentido referido, mas literariamente boa quando é inventada programaticamente como tensão de função comunicativa e conteúdo crítico, direcionando os enunciados em sentido divergente do pressu-
144
A lgu ma pro sa de Dr u m m o n d
posto na reprodução da normatividade comunicativa, numa espécie
de auto-sabotagem maliciosamente irônica.
A função comunicativa do gênero, que no jornal é virtude, é o seu
maior defeito estético, quando os textos são juntados em livro. No
caso, a brevidade da recepção jornalística, pressuposta no contrato
enunciativo do gênero, é eliminada pela contigüidade dos textos no
livro, que os compacta e ao mesmo tempo os põe em relevo segundo
outros protocolos de leitura, como a contemplação desinteressada,
deslocando-os da sua recepção inicial e tornando ainda mais tênue a
atualidade do comentário dos temas. Daí, muita vez, esse ar meio
parado de depósito de coisas fúteis usadas que os livros de crônicas
geralmente têm. Neles, os aspectos das matérias cotidianas escolhidos e transformados pelo autor como temas de interesse imediato,
que no jornal são o nervo do gênero, tornam-se apenas póstumos,
bastando lembrar o óbvio de que o livro é compilação feita e editada
depois, quando a atualidade da crônica já passou e ela sobrevive a si
mesma, na leitura, como memória exterior de matérias mortas desprovidas de imediaticidade. É por isso, talvez, que as crônicas despertam o interesse de historiadores que se apropriam das ruínas do
tempo congelado nelas como documentos de reconstituições do
passado.
Muitas vezes, as crônicas de Drummond sofrem desses defeitos
determinados não propriamente pelo estilo, mas pela simples mudança do meio material de publicação. Mesmo assim, a passagem do
tempo e a função comunicativa própria do gênero não eliminam totalmente o sentido negativo que imprime aos temas nos textos publicados como livro. Isso porque usa a crônica tendendo a subordinar sua estrutura comunicativa à dramatização de conflitos, tensões
e contradições da memória coletiva depositada nas matérias sociais
que transforma nela, orientando o comentário com o sentido utópico da perspectiva ética que, compondo o estilo como negatividade,
145
Jo ão A do lfo Hans e n
consegue derrotar a facticidade e a obsolescência das matérias, flutuando, por assim dizer, aquém e além delas, para ganhar autonomia
análoga à da poesia. Mais ainda hoje, quando o eventual leitor
pós-moderno lê a crônica zombando da sua utopia como de um
morto de sobrecasaca. Pois o tempo das crônicas de Drummond
realmente passou, mas não as determinações dele, que aí estão, como
um verme, roendo o leitor pós-moderno ou pós-utópico, fazendo
ainda pior o soluço da vida criticada nelas. Seria equivocado, de
qualquer modo, aplicar os critérios de leitura da poesia à leitura das
crônicas de Drummond, pois equivaleria a esperar delas uma condensação que não têm nem pressupõem.
Vejam-se, para evidenciá-lo, um trecho de crônica e um poema
que, praticamente contemporâneos, têm a mesma referência, o mundo visto do apartamento.
A prosa:
Casa fria, de apartamento. Paredes muito brancas, de uma aspereza em
que não dá gosto passar a mão. Aí moram quatro pessoas, com a criada,
sendo que uma das pessoas passa o dia fora, é menina de colégio. Plantas, só
as que podem caber num interior tão longe da terra (estamos em um décimo andar), e apenas corrigem a aridez das janelas. Lá embaixo, a fita interminável de asfalto, onde deslizam automóveis e bicicletas. E ao longo da
fita, uma coisa enorme e estranha, a que se convencionou dar o apelido de
mar, naturalmente à falta de expressão sintética para tudo o que há nele de
salgado, de revoltoso, de boi triste, de cadáveres, de reflexos e de palpitação
submarina. Do décimo andar à rua, seria a vertigem, se chegássemos muito
à janela, se nos debruçássemos. Mas adquire-se o costume de olhar só para a
frente ou mais para cima ainda.7
7
“Esboço de
uma casa”.
Confissões de Minas,
ed. cit., p. 579.
E a poesia:
Silencioso cubo de treva;
um salto, e seria a morte.
146
A lgu ma pro sa de Dr u m m o n d
Mas é apenas, sob o vento,
a integração na noite.
Nenhum pensamento de infância,
nem saudade nem vão propósito.
Somente a contemplação
de um mundo enorme e parado.
A soma da vida é nula.
Mas a vida tem tal poder:
na escuridão absoluta,
como líquido, circula.
Suicídio, riqueza, ciência...
A alma severa se interroga
e logo se cala. E não sabe
se é noite, mar ou distância.
Triste farol da Ilha Rasa.8
A diferença aparece imediatamente na maneira de construir o
contrato enunciativo, visível nos diferentes graus de condensação da
forma. Funcionando como elemento especificador da comunicabilidade de cada gênero, a condensação também constrói destinatários
específicos para eles. A poesia, sempre efetuada como tensão de sensibilidade e reflexão da pseudo-referencialidade ficcional que a faz
auto-reflexiva, está aquém e além da simples função comunicativa de
informações própria da prosa e, particularmente, da crônica. A imagem poética de Drummond é sempre tão extraordinariamente condensada que, fundindo forma e conteúdo, torna-se símbolo, como
resultado imediato da auto-reflexão tornada sensível. Como a “pedra”, o “no meio do caminho”, o “gauche”, “José”, o “João amava
147
8
“Noturno à
janela do
apartamento”,
Sentimento do
mundo, ed. cit.,
p. 117.
Jo ão A do lfo Hans e n
Teresa”, o “elefante”, “Luísa Porto”, a “mesa”, o “áporo”, o “caso
do vestido” ou a “flor”, a imagem compõe o destinatário como abertura semântica para motivos inesperados e convergentes em associações difíceis de ser determinadas univocamente. Na imagem, não há
intervalo temporal entre significante e significado, por isso é muito
imediata e densamente “sentida-pensada” como síntese intraduzível
da experiência. E isso porque a beleza difícil da condensação de sensibilidade e auto-reflexão nela realizada dá-se à percepção num átimo, como lance de linguagem utópica que nega a imediatez da experiência comunicativa que regula as trocas simbólicas cotidianas na
encenação dos seus próprios limites como forma que as refigura,
dissolvendo a expectativa normalizada, referencial ou sentimental
do leitor. Como ocorre com as associações da oposição semântica de
“Triste” e “farol”, da expressão “Triste farol”, que é um correlato
objetivo construído como oxímoro ou síntese disjuntiva da tristeza
que tolda a lucidez do juízo do “eu” da enunciação, metaforizada na
luz-guia-altura do farol brilhando na treva. O mesmo oxímoro da
lucidez obscurecida do juízo que, no alto, distancia-se de si e do
mundo para avaliar a existência, é redistribuído nos significados de
“isolamento” e “solidão” da palavra “ilha” e na significação inesperada que irrompe quando a categoria “quantidade”, do adjetivo
“rasa”, se transforma, pela associação com “ilha”, em “qualidade”,
que traduz a lucidez triste como irrisão generalizada da vida banal.
“Triste farol da Ilha Rasa” é mais um símbolo drummoniano, pois
condensa e separa num átimo a unidade contraditória de sujeito-objeto na experiência angustiada que é a do leitor.
Na poesia, a elisão dos nexos gramaticais impede, obviamente, a representação do processo analítico do pensamento como linearização
sintática dos atos do juízo. A elisão dos nexos produz o discurso poético de Drummond como justaposição de fragmentos que, significando a divisão social do “eu” e das matérias, também diagrama o ato da
148
A lgu ma pro sa de Dr u m m o n d
desorganização programática da forma. A possível comunicabilidade
dos temas é realizada pelo eventual leitor como inferência parcial, apenas, de significações condensadas agudamente nas palavras ou entrevistas nos intervalos do deslocamento contínuo dos pedaços justapostos. Interceptando-se em vários planos semânticos simultâneos, associados como politematismo, as imagens dão-se à leitura como se as
palavras fossem as coisas ou símbolos em que a condensação elide a
arbitrariedade e imotivação de significante e significado.
Algo análogo ocorre na diferença da prosa. Como no trecho de
“Esboço de uma casa”, a prosa de Drummond também avança movida analiticamente por alguns impulsos básicos encontráveis na sua
poesia: a enunciação descendente, restritiva e quase pejorativa, demonstrando com minúcias a mesquinhez do objeto polifacetado
pelo distanciamento da enunciação triste e sem ênfase, não obstante
curiosa e quase onívora; o senso agudo do nonsense da opacidade bruta dos processos limitadores da vida; a desconfiança e a descrença
das soluções acabadas; o raríssimo senso de alternativa; a particularização de aspectos e afetos de coisas, pessoas, personagens, situações,
eventos; o desejo quase sempre incontido de evidenciar a não-naturalidade do que é dito; e a dramaticidade do terrível, que espreita
no mínimo detalhe inocente. Tudo feito, contudo, de modo seqüencial e analítico, que, privilegiando a comunicação dos temas e, principalmente, a perspectiva crítica do seu comentário, pensa o discurso
como meio para atingir coisas fora dele.
A materialidade da palavra em “estado de dicionário”, a mescla
estilística, a sintaxe gaga, a dissolução do verso, a ausência de música,
as incongruências de ironia, comoção, humor, desprezo e angústia
da poesia retomam a auto-reflexão irônico-sentimental praticada
pelos românticos como contraste de ideal sublime e de realidade
grotesca. Como reflexão infinita de um Eu ilimitado sobre a essência
da forma poética, a ironia romântica expressa o distanciamento que
149
Jo ão A do lfo Hans e n
9
“Se a realidade
dada perde seu
valor para o
ironista, não é
enquanto é uma
realidade
ultrapassada que
deve dar lugar a
uma outra mais
autêntica, mas
porque o ironista
encara o Eu
fundamental, para
o qual não há
realidade
adequada.”
“Kierkegaard: o
conceito de Ironia”,
in Ménard, Pierre.
Kierkegaard, sa vie, son
oeuvre, pp. 57-59,
cit. por Deleuze,
Gilles. Lógica do
sentido. Trad. Luiz
Roberto Salinas
Fortes. São Paulo,
Perspectiva, 1974,
p. 142 (Estudos,
35).
10
“Autobiografia
para uma Revista”.
Confissões de Minas
(Na rua com os
homens). Rio de
Janeiro, Companhia
Editora Aguilar,
1964, p. 533.
a perspectiva de uma consciência infeliz, mas superiormente crítica,
toma em relação ao mundo mau e incapaz, em suas formas finitas, de
oferecer consolo à má generalidade da sua solidão saudosa do Absoluto. Fundamentando as sentimentalidades em unidades metafísicas
tidas como soluções, os românticos recusam as únicas existentes, as
humanas, por isso nadificam o finito no mito.9
Nada desse idealismo no estilo da poesia e da prosa de Drummond. Anti-romântico, é material. Drummond sabe, com a lição romântica de Baudelaire, que o “eu” é abominável; sabe também, com
a lição cética de Montaigne, que é vário e desinteressante; sabe ainda,
com a simples experiência da vida brasileira, que há coisas mais fundamentais, como a destruição. E sabe principalmente, com a sabedoria do seu fazer, que o eu lírico eleva a voz do fundo do abismo do
ser, pois sua subjetividade é pura imaginação, como diz Nietzsche
no Nascimento da tragédia.
Em uma crônica de 1943, publicada em Confissões de Minas, Drummond afirma que sua primeira poesia ainda era inexperiente: “Meu
primeiro livro, Alguma poesia (1930), traduz uma grande inexperiência do sofrimento e uma deleitação ingênua com o próprio indivíduo. Já em Brejo das almas (1934), alguma coisa se compôs, se organizou; o individualismo será mais exacerbado mas há também uma
consciência tácita da conduta (ou falta de conduta) espiritual do autor.”10 Assim, a partir de Sentimento do mundo (1940), passou a construir a subjetividade poética como inclusão auto-reflexiva da fratura
constitutiva do “eu” nas matérias sociais divididas da sua lírica. O
“eu” se multiplica dividido por elas e, confundindo-se com elas,
principalmente nelas, dissolve-se. A inclusão do “eu” na substância
mesma da memória coletiva condensada nas matérias transformadas
no poema especifica o humor nem sempre negro de Drummond
como inclinação de uma reflexão rigorosa e afinal compassivamente
trágica, que segue analisando nas ruínas da História a falta de senti-
150
A lgu ma pro sa de Dr u m m o n d
do das formas capitalistas do presente, dando-lhes algum, contudo,
precário e provisório, na violenta comoção intelectual que o dissolve
e leva junto em outra e mais outra superação parcial do resíduo. Não
mais apenas como o distanciamento da ironia dos seus dois primeiros livros dos anos 1930, em que o “eu” observa de fora o espetáculo, do ponto de vista vingativo da sua verdade ressentida. Como já
disse Antonio Candido, nessa primeira poesia sempre há um “reconhecimento do fato”, mas a suposta unidade do objeto é dissolvida
pela ironia, que evidencia também a divisão de um eu tirânico, auto-mutilador e culpado.11
Sentimento do mundo (1940) e A rosa do povo (1945) amplificam coletivamente a “consciência tácita da conduta” como pensamento
material da forma no internacionalismo marxista que passa a dar
sentido utópico unificador da divisão do presente. Afirmativo,
como humor, “mergulho em lenho dócil” do “eu” no tempo histórico que o dissolve, e polêmico, como destruição e superação do
“eu” nas multiplicidades populares do futuro da revolução, “meu
coração cresce dez metros e explode. / – Ó vida futura! nós te criaremos.”, o desejo de abolir fronteiras políticas e de pôr fim à divisão de classes e de nacionalidades funde a dor individual no sofrimento dos inimigos do fascismo, “nós”, compondo a experiência
da leitura como uma polifonia de experiências anônimas de resistência. Solidarizando-se com a dor universal, a enunciação humorada se enternece com o povo, mas nunca é populista: a lucidez da
figuração da particularidade partida num tempo de partidos exclui
a imoralidade pretensiosa de falar por outros e no lugar de outros.
Enquanto dissolve fronteiras políticas no internacionalismo, evidenciando que a verdadeira fronteira é a de classe, o verso dessa poesia também se transforma, tende a dissolver-se como verso. Desde
1928, quando publicou “No meio do caminho”, na Revista de
Antropofagia, de Oswald de Andrade, Drummond dissolve a métrica
151
11
Candido,
Antonio.
“Inquietudes na
poesia de
Drummond”.
Vários escritos. São
Paulo, Duas
Cidades, 1970.
Jo ão A do lfo Hans e n
12
13
Idem, ibidem.
Candido,
Antonio.
“Drummond
prosador”, in
Recortes. São
Paulo,
Companhia das
Letras, 1993,
pp. 11-19.
passadista tradicional e muitas vezes deixa para trás o uso estrito
do verso livre modernista.12
Essa mesma orientação política do sentido das significações da
poesia aparece em outro registro discursivo, na nota introdutória de
Confissões de Minas, que reclama para a prosa, lembrando Hitler, Stalingrado e Mussolini, a função utópica de redimir o tempo dominado pela peste. A utopia orienta a prosa de Drummond, evidenciando
não diria a unidade, mas a distribuição diversa de seu sentido transfigurador do presente em registros estilísticos diferentes.
Sobre a prosa do poeta, é também Antonio Candido quem escreve um texto fundamental, subtexto deste. Nele, diz que o fato de
Drummond fazer da palavra o núcleo de sua poética implica a dissolução do verso e, ao mesmo tempo, o livre trânsito de formas tradicionalmente prosaicas em seus poemas.13 Falando da “limpeza contida” da sua linguagem, Candido propõe que os contos de Drummond ocupam um ponto médio, entre a crônica e a poesia. Crônica e
poesia formariam dois pólos estilísticos; o conto, a meio caminho de
ambos, seria inventado como transformação narrativa de referências
imediatas à vida de “todos os instantes”, própria da crônica, e condensações líricas da poesia. Candido indica-nos a possibilidade de
distribuir os gêneros praticados por Drummond sobre o eixo da
condensação: a crônica é coloquial e pragmática, devido à função comunicativa que a põe a meio caminho entre a notação documental e
a ficcionalização que revelam “certo conhecimento das formas graciosas de expressão, certo humour e malícia”, como se lê em uma delas, “Auto-retrato”, publicada na revista Leitura, em junho de 1943.
O conto, por definição gênero breve, tornado brevíssimo nas narrativas de Contos plausíveis (1981), funde referências documentais e elementos narrativos da crônica com elementos líricos e críticos da poesia, como se lê na referência à “antena esquerda de um gafanhoto”
que pousa na nota “Estes contos”, que antecede Contos plausíveis:
152
A lgu ma pro sa de Dr u m m o n d
“Meu melhor amigo é um continho em branco, de enredo singelo,
passado todo ele na antena esquerda de um gafanhoto.”14 A poesia,
como figuração de sensibilidade e reflexão, tem o máximo de condensação.
Uma leitura paciente de toda a prosa de Drummond que a compare com sua poesia encontrará mais evidências desse trânsito indicado por Antonio Candido dos temas de um campo para outro e seria útil para elucidar o sentido de formulações condensadas, por vezes herméticas, de muitos poemas. Não tenho espaço para fazê-lo e
indico exemplos.15 Também seria útil comparar a estrutura de textos postos na forma seqüencial da prosa, em inúmeros poemas, com
textos que publicou como prosa, nos quais a condensação onírica
dos significados tem efeitos análogos aos da poesia.16
14
Drummond.
“Estes contos”,
in Contos plausíveis.
4a ed. Rio de
Janeiro-São
Paulo, Record,
1998.
15 Lê-se em um pequeno texto de Confissões de Minas, “Neblina”: “Mas como é impossível partir – os caminhos são compridos
e os meios são curtos e a vida está completamente bloqueada –, tu te resignas a tomar o teu grogue do hotel, nessa hora mais
que todas tristíssima – seis horas da tarde, enquanto a neblina cai lá fora, e as mulheres passam monstruosas e vagas como
desenhos indecisos, que a mão constrói para apagar logo depois” (Confissões de Minas, ed. cit., p. 598). Em “Ciclo”, de A vida
passada a limpo, voltam as mulheres, transformadas na formulação: “Sorrimos para as mulheres bojudas que passam como
cargueiros adernando.” Aqui, o “monstruosas” da prosa se repete parcialmente em “bojudas”, que mantém a significação de
quantidade, mas com conotações sexuais e de fertilidade, como a de “vaso”; “como desenhos indecisos”, formulação genérica
da prosa, torna-se “como cargueiros adernando”, no poema, em que várias significações, “peso”, “carga”, “viagem”, “missão”,
“esforço”, “iminência de desastre”, “dificuldade”, etc. se acumulam, fazendo a imagem condensada. Mantém-se nos dois casos
a prótase da similitude, “como”, indicando a operação intelectual de comparação. Por vezes, é a estrutura de uma frase que
personifica o inanimado: “o mole consentimento das pêras” (Idem, p. 598) reaparece na poesia como “o sono rancoroso dos
minérios”. Leia-se ainda a crônica “Natal USA 1931”: “Possível alusão a Papai Noel, se bem que o indivíduo se haja
desprestigiado terrivelmente em literatura. O bom ladrão que, não podendo insinuar-se por outra abertura mais cômoda,
introduz-se pelo buraco da fechadura” (Confissões de Minas, ed. cit., p. 598), citando o poema “Papai Noel às avessas”, de
Alguma poesia. Do mesmo modo, a crônica “Viagem de Sabará”, em que Drummond trata da arte colonial, reaparece em
poemas de “Selo de Minas”, de Claro enigma.
16 Por exemplo, é o caso de “Enquanto descíamos o rio”, de Confissões de Minas, e de “O enigma”, de Novos poemas, que têm
andamento e processos analíticos análogos:
“E quando as águas pareciam calmas, um peixe voou que se escondia em camadas mais fundas que o mais fundo
suspiro. Logo se formaram círculos, elipses, triângulos e mais desenhos alheios à vã geometria. Entre esses ressaltava a
corola de uma flor, que era como uma cobra rastejando na corrente, mordendo apenas, com o seu breve contato, a planta
úmida de nossos pés e assumindo a cada instante uma nova complexidade.” (“Enquanto descíamos o rio”, Confissões de
Minas, ed. cit., p. 594). E: “As pedras caminhavam pela estrada. Eis que uma forma obscura lhes barra o caminho. Elas se
interrogam, e à sua experiência mais particular. Conheciam outras formas deambulantes, e o perigo de cada objeto em
circulação na terra. Aquele, todavia, em nada se assemelha às imagens trituradas pela experiência, prisioneiras do hábito ou
domadas pelo instinto imemorial das pedras. As pedras detêm-se. No esforço de compreender, chegam a imobilizar-se de
todo.” (“O enigma”, Novos poemas, ed. cit., p. 231.)
153
Jo ão A do lfo Hans e n
Até aqui, falei dessas articulações gerais sabendo que é impossível dar conta de toda a prosa de Drummond em um ensaio. Por
isso – e além disso – resolvi escolher o seu primeiro livro de prosa,
Confissões de Minas (1944), para tratar de algumas disposições a meu
ver básicas para a sua prosa posterior. Na nota introdutória e nos
textos desse livro, Drummond reflete sobre sua prática, estabelecendo os critérios utópicos de uma ética do estilo que manteve até
o fim.17 A nota é datada de agosto 1943 e redireciona retrospectivamente o sentido da leitura dos textos, escritos entre 1932 e a
data, explicitando que a leitura sempre pressupõe a complexidade
17
Neste texto, escolhi falar da prosa inicial de Confissões de Minas e de livros de poesia
publicados pelo autor até 1945, para estabelecer algumas relações entre eles. Mas avanço
um tanto, no tempo, para lembrar rapidamente que o arabesco em movimento
anunciado em Confissões de Minas no pequeno texto sobre a “pintura da passagem”, de que
trato adiante, torna-se princípio estruturador da forma em Claro enigma e Fazendeiro do ar.
Neles, o conceptismo já classificado como “barroquismo” da dicção do enovelar-se
intelectualista da linguagem sobre si, deslizando-se, estrutura, em palavra e palavra no
vazio que vai de uma a outra, como se em torno de um eixo de ar, intensificado na
suspensão encantatória do sentido livre de nexos de representação na fictícia aparência
do presente, tem certamente sentido alegórico de resposta política ao stalinismo do PCB
aludida também na prosa de Passeios na ilha, como Vagner Camilo demonstra em um livro
muito inteligente e instigante (Cf. Camilo, Vagner. Drummond. Da rosa do povo à rosa das
trevas. São Paulo, Ateliê Editorial, 2001). Mas, antes de tudo, isso – ou aquilo – que
também já foi chamado de “formalismo” pelos que preferem falar de história ignorando
a historicidade das transformações históricas da forma da poesia moderna – aponta
poeticamente para o mestre de Valéry, o Mallarmé do “nada”, o Mallarmé “syntaxier”, o
Mallarmé do “enunciar é produzir”, o Mallarmé que relaciona auto-reflexão, linguagem,
ficção e crítica da representação: “Minha matéria é o nada”, lê-se em “Nudez”, de A vida
passada a limpo (1958). Tratando do ser e do tempo sem perder-se na floresta negra ou no
mato nacionalista, Drummond busca o tema do “nada” também em outro mestre da
indeterminação rigorosamente construída, Machado de Assis, desenvolvendo-o como
palavra “em estado de dicionário”. Mas não só. Desde A rosa do povo, principalmente,
passou a fazer poemas narrativos e dramáticos longos, que lembram contos e peças
teatrais postos em forma de romance ritmado e rimado, como “Caso do vestido”. Já em
Alguma poesia e Brejo das almas, tinha escrito textos como “O sobrevivente” e “Outubro
1930”, em que a prosa comparece. Lição de coisas continua a experiência narrativa e
dramática em poemas como “Os dois vigários” e “O padre e a moça”.
154
A lgu ma pro sa de Dr u m m o n d
crescente de seus condicionamentos históricos. Por isso, acredito
que o livro possa ser lido hoje como um prefácio por assim dizer
posterior da arte de Drummond, uma vez que o redimensionamento do sentido político dos textos pela nota e a efetividade crítica
deles são decisivos para situar mais precisamente o sentido de livros posteriores, como A rosa do povo e, principalmente, Claro enigma,
além da prosa de Passeios na ilha.
Confissões de Minas publica textos de gêneros variados: crônicas escritas como ensaios críticos (“Três poetas românticos”, “Mauriac e
Teresa Desqueyroux”, etc.); crítica artística, crítica política e notícia
histórica (“Morte de Federico Garcia Lorca”, “Viagem de Sabará”,
etc.); memória dos anos da formação do autor em Belo Horizonte e
dos anos iniciais de sua vida no Rio (“Na rua, com os homens”;
“Estive em casa de Candinho”, etc.). Também há textos escritos
como crônicas narrativas, quase ficcionais, de vidas compostas como
retratos (“Lembro-me de um padre”, etc.); e, ainda, peças pequenas,
difíceis de classificar, postas entre a teoria da escrita, a invenção poética em prosa e o diário (“Caderno de notas”), etc.
Em um texto do livro, que situa o pessimismo da poesia de Abgar
Renault no Modernismo, lê-se o enunciado, que funde referências
de Mário de Andrade e Mallarmé:
Consumada a função destruidora do Modernismo, e desmoralizadas,
por sua vez, as convenções novas com que se procurava substituir as velhas
convenções, ficou para o poeta brasileiro a possibilidade de uma expressão
livre e arejada, permitindo a cada um manifestar-se espontânea e intensamente, no tom e com o sentido que melhor lhe convenha.18
O trecho é útil, principalmente a referência à possibilidade de
“uma expressão livre e arejada”, para especificar alguns dos pressupostos artísticos do Drummond prosador. Na sua prosa, como disse, a negatividade alia-se ao exercício de uma função que sua poesia
155
18
“Pessimismo
de Abgar
Renault”, in
Confissões de Minas,
ed. cit., p. 529.
Jo ão A do lfo Hans e n
19
Rubem Braga.
“Fala,
amendoeira”.
Diário de Notícias,
Rio de Janeiro,
19/9/1957.
20
Por exemplo:
“Não somos
bastante hábeis
para extrair de
nosso
instrumento a
nota mais
límpida, bastante
honestos para
confessá-lo,
bastante
hipócritas para
disfarçá-lo,
bastante cínicos
para nos
consolar,
bastante
obstinados para
tentar de novo e
sempre. Por fim,
cumprimos a
nossa carreira. E
não há outra.”
Cf. Drummond.
“Do homem
experimentado”,
in Passeios na ilha.
Ed. cit., p. 666.
não prevê, pelo menos imediatamente: a comunicação de informações, feita na forma do comentário, quando se trata de crônica.
Drummond é mais moita na crônica, dizia Rubem Braga, porque,
como o gênero o obriga a ser mais claro e como na poesia o hermetismo não é de todo impróprio, guarda para o poema o mais íntimo
da experiência.19
A tensão desse ocultamento na clareza é construída por procedimentos técnicos e tópicos de argumentação que modelam a função
comunicativa (a propriedade vocabular, a clareza sintática, o estilo
médio, a análise, o exemplo, a citação de autoridades, a explicação,
etc.) e a função crítica (a elisão de termos acessórios ou redundantes,
as marcas optativas de dúvida e indeterminação, a formulação aforismática, a análise do “eu” posto como não-unidade, a ironia ou o
humor quanto à matéria tratada, etc). Tais procedimentos, recombinados a cada texto, constituem por assim dizer o conteúdo material
da crônica de Drummond, como instrumentos gramaticais e retóricos mobilizados para “manifestar-se espontânea e intensamente”
nela. A eficácia técnica desses conteúdos materiais associa-se funcionalmente à análise das matérias sociais da crônica, constituindo a
maneira singular, “estilo de Drummond”, de efetuar valores simbólicos propostos à leitura como “conteúdo de verdade” relativizador
e relativizado.20 O valor – ou os valores – nascem, no nível da significação do texto, da tradução das significações transportadas das
matérias sociais para sua cena comunicativa pelo sentido utópico
que nega sua imediaticidade de “fatos” evidentes, transformando-as
em um “conteúdo de verdade” crítica. Este é orientado pela moralidade técnica que se autocritica, na invenção, como a distinção continuamente aplicada de “bom” e “ruim” que aparece, por exemplo, no
modo de construir o discurso como tensão.
Datando a nota introdutória de Confissões de Minas de agosto de
1943, “depois da batalha de Stalingrado e da queda de Mussolini”, os
156
A lgu ma pro sa de Dr u m m o n d
dois eventos – a resistência soviética contra os nazistas e a deposição
do fascista – são postos por Drummond como balizas históricas da
orientação do sentido da nota, feita como “exame da conduta literária
diante da vida”. Afirmando que não desdenha a prosa e que a respeita
a ponto de furtar-se a cultivá-la, Drummond a chama de “linguagem
de todos os instantes”, o que define as crônicas do livro, que estilizam
e comentam discursos de eventos e tipos humanos antigos e contemporâneos. A mesma definição faz ver que a poesia não é “linguagem de
todos os instantes”, pois implica outros processos e fins.
Drummond acredita que há uma necessidade humana não só de
que se faça boa prosa, “[...] mas também de que nela se incorpore o
tempo, e com isto se salve esse último”. A afirmação de que a prosa
deve ser inventada como redenção da miséria do tempo é utópica,
evidentemente; a mesma já figurada pelo poeta em textos anteriores
de poesia (Sentimento do mundo, 1940); José (1941), e que ainda aparece
em A rosa do povo (1945). Freqüentemente, a literatura é escrita à margem do tempo ou contra ele – por inépcia, covardia ou cálculo – diz.
Não basta usar as palavras “cultura” e “justiça” para incorporar o
tempo, pois é preciso “[...] contribuir com tudo [...] de bom para que
essas palavras assumam o seu conteúdo verdadeiro ou então, sejam
varridas do dicionário”.
A contribuição “com tudo de bom” pressupõe que não há temas
maiores ou menores, pois todos estão no tempo, atravessados pelas
mesmas determinações históricas que os tornam contraditórios:
“Este livro começa em 1932, quando Hitler era candidato (derrotado) a presidente da república e termina em 1943, com o mundo
submetido a um processo de transformação pelo fogo.” É justamente o pensamento da contradição que permite afirmar que os temas
passarão, assim como a arte que os figura. Enquanto não passam e
transformam a vida no que se sabe, os escritores têm que ter a honestidade de se confessarem mais determinados quanto aos problemas
157
Jo ão A do lfo Hans e n
fundamentais do indivíduo e da coletividade, examinando com rigor
as matérias da escrita, para atuar criticamente nos processos em que
se transformam separando delas o que merece durar como “conteúdo verdadeiro”. O preceito da distinção do “bom” do “ruim” já faz,
no caso, o que sua prosa seguinte faz: não aceitar a naturalidade das
coisas, mas regredir ao pressuposto dos discursos que as representam, evidenciando sua particularidade datada; simultaneamente, evidenciar os encadeamentos da mesma particularidade em teias microscópicas de causa-efeito, legíveis na mínima conversa de velório
ou na poesia de românticos, que permanecem impensadas para seus
agentes, enredando-os em petrificações. Cabe ao escritor classificá-las, especificá-las e destruí-las. Na forma leve do comentário da
crônica, na estranheza da ficção, na mescla irônica da poesia, a escrita deve assumir a utopia, dissolvendo a inércia de injustiças que se
tornaram hábitos, de superstições vividas como civilização, de provincianismos com pretensão a universalidade de “conteúdos verdadeiros” que se naturalizaram como opressão. A escrita é fundamentalmente uma crítica da opinião.
Os materiais de cultura à disposição do escritor, as representações da memória coletiva, estão no presente como conteúdos materiais a serem transformados pela técnica. O escritor deve dominá-la totalmente. A técnica não se subordina a nenhum programa
partidário (ainda que a utopia da nota introdutória de Confissões de
Minas seja marxista). Movendo-se nos limites de uma liberdade difícil, posta entre a omissão da “arte pela arte” e a submissão às palavras de ordem, a escrita deve incidir antes de tudo sobre si mesma, nas decisões do juízo do escritor que, por se saber dividido
num mundo dividido, transforma a experiência histórica depositada nas matérias em experiência do presente. Sempre uma parcialidade, a escrita também não pode ceder à dura necessidade da inércia do passado, como se a História, sua matéria, fosse uma história
158
A lgu ma pro sa de Dr u m m o n d
acabada de mortos. Mas transformá-la como história de vivos, presentes, tateando com humildade e fervor as possíveis formas de futuros em que as palavras “justiça” e “cultura” não serão só palavras.
Também a História é histórica, como história antes de tudo do presente, afirma Drummond, como o Oswald de Andrade do prefácio
de Serafim Ponte Grande. O mundo melhor avança inexoravelmente,
como todas as utopias. Dirá, depois, que toda história é remorso.
Amar, depois de perder, também dirá.
Reconhecendo a particularidade de Confissões de Minas, afirma
que o livro é insuficiente, pois lhe faltaria justamente o tempo,
escrito que foi para contar ou consolar o indivíduo das Minas
Gerais. Segundo Drummond, duro e orgulhoso, o provincianismo dos anos da sua formação intelectual teria impedido as relações do mesmo indivíduo mineiro que escreve a nota com o período histórico em que vive. Ou, ainda, diria pouco sobre elas.
Em Confissões de Minas, vários textos tratam de condicionamentos
desse “indivíduo das Minas Gerais” a quem teria faltado a experiência do tempo nos anos 20. Também tratam da sociabilidade
letrada em que se escolheu a si mesmo nesses anos, em Belo Horizonte. Numa crônica posterior, “BH”, publicada no Correio da
Manhã, em 10.12.1967, escreve:
Nas calçadas da Avenida Afonso Pena, moças faziam footing, domingo
à noite, como deusas inacessíveis, estrelas; a gente ficava parado no meiofio, espiando em silêncio. E divertimento era esperar o trem da Central, que
trazia os jornais matutinos do Rio; era fazer interminavelmente a crônica
oral da cidade nas mesinhas de café do Bar do Ponto, literaturar à noite na
Confeitaria Estrela, do Simeão, que nos fiava a média, com pão e manteiga.
Não acontecia nada. Que paisagem! Que crepúsculos! Que tédio!
Nesse tempo referido na crônica, 1923, como escreve em “Recordação de Alberto Campos”, ele e Abgar Renault, Gustavo Capa-
159
Jo ão A do lfo Hans e n
nema, Alberto Campos, Emílio Moura, Mílton Campos, Pedro
Nava, Mario Casasanta, Martins de Almeida, Gabriel Passos e outros, esporádicos, preparavam “materiais de cultura”. Como ocorre
nos grupos intelectuais do interior do país, condenados à formação
autodidata e à vigilância ferozmente irônica e auto-irônica contra os
poderes do obscurantismo local, também os intelectuais do grupo
de Drummond eram vítimas da própria ironia, como diz, e, impiedosos com o próximo, não se perdoavam a si mesmos nenhuma fragilidade. Não eram felizes. Seu compromisso, que era o de não terem nenhum, impunha-lhes disciplinas severas: “A voluptuosa disponibilidade deixava de ser uma condição edênica para constituir
fonte contínua de angústias.”21
Era ainda naquele tempo (bom tempo) em que se tomava cerveja e café
com leite na Confeitaria Estrela. Entre dez e onze horas, o pessoal ia aparecendo e distribuindo-se pelas mesinhas de mármore. Discutia-se política e
literatura, contavam-se histórias pornográficas e diziam-se besteiras, puras
e simples besteiras, angelicamente, até se fechar a última porta (você se lembra, Emílio Moura? Almeida? Nava?). Ascânio chegou quando o Estrela já
entrara em decadência, e nas melancólicas mesinhas o mosquito comia o
açúcar derramado sobre as últimas caricaturas de Pedro Nava.22
21
Drummond.
“Recordação de
Alberto
Campos”, in
Confissões de Minas,
ed. cit., p. 524.
22
Ibidem,
p. 525
“[...] o Estrela já entrara em decadência, e nas melancólicas mesinhas o mosquito comia o açúcar derramado sobre as últimas caricaturas de Pedro Nava.” Aqui, mais uma vez é o poeta que escreve,
condensando resíduos da memória individual numa alegoria de
qualquer experiência análoga. Na síntese magnífica, a vida provinciana avança na voracidade cega do inseto que devora o açúcar das caricaturas, transformando a ironia e a auto-ironia na irrisão dos intelectuais nas “melancólicas mesinhas”.
Quando diz que os textos de Confissões de Minas dizem pouco das
relações do indivíduo que os escreveu com o período histórico em
160
A lgu ma pro sa de Dr u m m o n d
que vive, isso é, obviamente, sinceridade sem complacência que
avalia o tempo da juventude vivendo a vida besta provinciana e as
limitações da falta de compromisso. Mas também é modéstia afetada. Mais ainda porque, em 1924, teve a oportunidade raríssima
de no meio do caminho da sua estrada de Minas pedregosa topar
com tempestades de homens como Mário de Andrade e Oswald de
Andrade. Eles o deseducaram, como se vê no estilo das crônicas de
Confissões de Minas, ajudando-o a reorientar o que já sabia do país e
do mundo, além de lhe terem mostrado coisas novíssimas, interessantíssimas. Coisa de sarapantar, o encontro dos três Andrades.23
Certamente, a província permanecerá até o fim na sua prosa, mas
ativamente transformada na posição internacionalista como a timidez ousada de seu estilo, que avança como quem não quer nada,
de cabeça baixa e de mãos pensas, cismando sobre o que é cheio de
si sem si.
23
“Vejo moços no fundo do poço, tentando sair para a vida impressa e realizada. Como
falam! Como escrevem! Como bebem cerveja! Estou entre eles, mas não sei que sou
moço. Julgo-me até velho, e alguns companheiros assim também se consideram. É uma
decrepitude de inteligência, desmentida pelos nervos, mas confirmada pelas bibliotecas,
pelo claro gênio francês, pela poeira dos séculos, por todas as abusões veneráveis ainda
vigentes em 1924. A mocidade entretanto parece absorver tóxicos somente para se
revelar capaz de neutralizá-los. Ninguém morria de velhice, e cada um,
inconscientemente, preparava a sua mocidade verdadeira. Essa tinha que vir de uma
depuração violenta de preconceitos intelectuais, tinha que superar fórmulas de bom
comportamento político, religioso, estético, prático, até prático! Havia excesso de boa
educação no ar das Minas Gerais, que é o mais puro ar do Brasil, e os moços precisavam
deseducar-se, a menos que preferissem morrer exaustos antes de ter brigado. Para essa
deseducação salvadora contribuiu muito, senão quase totalmente, um senhor maduro, de
trinta e um anos (quando se tem vinte, os que têm vinte e cinco já são velhos
imemoriais), que passou por Belo Horizonte numa alegre caravana de burgueses artistas
e intelectuais, adicionada de um poeta francês que perdera um braço na guerra e andava à
procura de melancia e cachaça. Foram apenas algumas horas de contato no Grande
Hotel; os burgueses agitados regressaram a São Paulo, o senhor maduro com eles; e de lá
começou a escrever-nos. As cartas de Mário de Andrade ficaram constituindo o
acontecimento mais formidável de nossa vida intelectual belo-horizontina.” Drummond.
“Suas cartas”, in Confissões de Minas, ed. cit., p. 534.
161
Jo ão A do lfo Hans e n
24
Vale totalmente
para a prática do
Drummond prosador
de Confissões de Minas o
que afirma sobre
poesia: “Entendo que
poesia é negócio de
grande responsabilidade, e não considero
honesto rotular-se de
poeta quem apenas
verseje por dor de
cotovelo, falta de
dinheiro ou
momentânea tomada
de contato com as
forças líricas do
mundo, sem se entregar
aos trabalhos
cotidianos da técnica,
da leitura, da
contemplação e mesmo
da ação. Até os poetas
se armam, e um poeta
desarmado é, mesmo,
um ser à mercê de
inspirações fáceis, dócil
às modas e
compromissos.
Infelizmente, exige-se
pouco do nosso poeta;
menos do que se
reclama ao pintor,
ao músico, ao
romancista...”
Drummond,
“Autobiografia para
uma revista”, in
Confissões de Minas (Na
rua com os homens),
ed. cit., p. 530.
Assim, será útil descrever, com exemplos de Confissões de Minas, alguns procedimentos que constituem os conteúdos materiais de
Drummond. Aqui, vou-me ater à propriedade vocabular, à clareza
sintática, à formulação aforismática e à pintura do “eu”. De permeio, é possível que mais coisas apareçam.
Confissões de Minas é escrito com grande propriedade vocabular.
Ela será, na prosa posterior de Drummond, sempre operada como
dupla adequação da palavra à representação dos temas e à sua avaliação para o destinatário. Os textos do livro estão atravessados pela
agitação modernista e sua propriedade vocabular não é purista,
como a unificação monocórdica do estilo restrita ao “bem dizer”
normativo e lusitanista dos gramáticos brasileiros de fins do século
XIX e começos do século XX, mas estilização de diversos padrões
da língua portuguesa oral e escrita como variedade necessária pressuposta no conceito de mot juste. Machado de Assis e Flaubert. A
propriedade e a variedade de Drummond pressupõem que a justeza
da palavra nos enunciados, como adequação representativa dos temas, deve ser também a evidência da justiça dos atos do juízo na
enunciação. A propriedade técnica do procedimento e do termo
aplicado é homóloga da orientação ética que preside sua escolha e
aplicação.24 Assim, avaliando as matérias, a enunciação não as expõe, apenas, como se fossem um dado natural e coubesse ao escritor apenas reapresentá-las numa combinação mais ou menos engenhosa. Antes de tudo, a enunciação as penetra, para solidarizar-se
com elas, quando frágeis e sofrentes, e desprezá-las, quando injustas e arrogantes, rindo-se com elas e delas enquanto as desmonta,
buscando o aspecto que as singulariza na sua existência social. A
particularização vê de perto, várias vezes, com minúcias, por isso é
apta para distinguir as ilimitadas refrações que se debatem entre o
“bom” e o “ruim”, evidenciando as distinções dos atos do juízo na
escolha da palavra justa:
162
A lgu ma pro sa de Dr u m m o n d
Mas, afinal, será padre ou soldado? Não se sabe. Sabe-se que está no
campo da luta, circulando entre os homens imóveis, levando-lhes comida e
cigarros, amparando-os quando tombam e arrastando-os nas costas por
uma hora inteira, como a esse coronel Fulgêncio, cujo corpo ainda palpitante padre Kobal tirou do chão varrido de balas e foi depositar no carro
que o transportou a Passa Quatro.
No ar fino, puríssimo, dos morros do Túnel, como se destaca a sua voz:
Meus amigos, atirrem! Mas atirrem sem ódio.25
Fazendo distinções, Drummond é discreto. Acredita, como Adorno, que o sujeito precisa sair de si na medida em que se oculta. Saindo de si com discrição, vai aos usos, incorporando à seleção vocabular a modernista “contribuição milionária de todos os erros”. Escreve dando nome aos bois: natural, é simples. Nunca o simplório das
singelezas que expressam as boas intenções da sentimentalidade kitsch
do autor esquecendo as matérias. Mas simplicidade que resulta da
depuração obtida por operações técnicas complexas,26 aplicadas
com precisão de cálculo. A “poesia mais rica / é um sinal de menos”,
lê-se em A vida passada a limpo. E: “... boa frase, para mineiros, é muitas
vezes o silêncio.” (Leitura, set. 1949.) Ou, principalmente: “À medida que envelheço, vou me desfazendo dos adjetivos. Chego a crer
que tudo se pode dizer sem eles, melhor talvez do que com eles. Por
que ‘noite gélida’, ‘noite solitária’, ‘profunda noite’? Basta ‘a noite’.
O frio, a solidão, a profundidade da noite estão latentes no leitor,
prestes a envolvê-lo, à simples provocação dessa palavra noite.”27
Nesse estilo ablativo, a subtração da crônica é sempre menor que
a da poesia, devido a sua função comunicativa. Não importa que a
palavra seja baixa, vulgar, infantil, analfabeta, rústica, erudita, provinciana, estrangeira, popular. Desde que se justifique, nos dois sentidos de “justeza” e “justiça”, ele a usa. E isso porque pressupõe,
como Mário de Andrade, a homologia das estruturas mentais coletivas e as estruturas lingüísticas que as expressam, segundo uma psico-
163
25
Drummond.
“Lembro-me de um
padre”, in Confissões
de Minas (Quase
histórias), ed. cit.,
p. 573.
26
Drummond.
“As coisas simples”,
in Confissões de Minas
(Caderno de notas),
ed. cit., p. 591.
27
Drummond.
“Purgação”, in
Confissões de Minas
(Caderno de notas),
ed. cit., p. 581.
Jo ão A do lfo Hans e n
logia social das formas que não chega a teorizar, mas que evidencia
na forma.28 Os mínimos detalhes revelam a concepção, operada
muitas vezes como técnica da evidentia, fazendo o leitor ver a experiência narrada, com grande economia dramática de meios. Como na
brevíssima incorporação do discurso direto, a fala do menino-guia
de “Viagem de Sabará”, que põe o leitor dentro da cena:
“... Aleijadinho, confiou-me ele degustando metodicamente um péde-moleque, era um homem sem braços nem pernas, tronco só, que fez todas essas igrejas que o senhor está vendo aí e depois foi para Ouro Preto fazer as
de lá.29
29
Drummond.
“Viagem de
Sabará”, in
Confissões de Minas,
ed. cit., p. 565.
Realizando o programa modernista de dar cidadania aos modos
populares de falar na prosa de Confissões de Minas, Drummond faz
aparecer, por vezes, os modos populares mineiros e até belo-horizontinos de falar, trazendo-os para a literatura culta não como
exotismo, mas produção expressiva filtrada pela posição intelectual
à esquerda, orientada pela ética que põe em estilo gráfico a linguagem falada. O léxico não pode ser o da língua abundantíssima, mas
fóssil, de Coelho Neto, um purismo estereotipado que foi, como diz
28
Em Confissões de Minas, Drummond assimila e desenvolve o que o amigo lhe dizia sobre
a relação de linguagem e psicologia popular em uma carta de 18/2/1925:
“O povo não é estúpido quando diz ‘vou na escola’, ‘me deixe’, ‘carneirada’, ‘mafiar’,
‘besta ruana’, ‘farra’, ‘vagão’, ‘futebol’. É antes inteligentíssimo nessa aparente ignorância
porque sofrendo as influências da terra, do clima, das ligações e contatos com outras
raças, das necessidades do momento e de adaptação, e da pronúncia, do caráter, da
psicologia racial modifica aos poucos uma língua que já não lhe serve de expressão
porque não expressa ou sofre essas influências e a transforma afinal numa outra língua
que se adapta a essas influências (...) A aventura em que me meti é uma coisa séria, já
muito pensada e repensada. Não estou cultivando exotismos e curiosidades do linguajar
caipira. Não.” Cf. Fernandes, Lygia. 71 Cartas de Mário de Andrade. Rio de Janeiro, Livraria
São José, s/d, p. 73.
164
A lgu ma pro sa de Dr u m m o n d
Mário de Andrade no ensaio “Parnasianismo”, de 2.9.1938, o
“maior crime”.30
Outro texto, sobre a ausência de pontuação em poesia,31 é útil
para pensar a sintaxe dessa “expressão livre e arejada”. Lendo os textos de Confissões de Minas também pela perspectiva da ética do estilo
afirmada na nota introdutória dele, pode-se dizer que Drummond
concebe a palavra duplamente: como conteúdo material ou elemento léxico construtivo da sintaxe, e como conteúdo semântico ou elemento constitutivo do “conteúdo de verdade” do sentido utópico
que dissolve os desgastes ideológicos das refrações e contradições
dos usos da linguagem. Exemplificando o que diz sobre a pontuação
com trechos poéticos de Mallarmé e Apollinaire, Drummond infere
que a fluidez de Mallarmé e o peso de Apollinaire não são produzidos pela ausência de vírgulas, mas salientados pelo artifício, concluindo que a pontuação regular ilumina todos os ângulos da superfície
do poema, mas impede que se destaque algum de seus acidentes.
Esse modo de entender a pontuação desloca-se imediatamente da
noção normativa da mesma como marcação gramatical lógica e impessoal das funções sintáticas da frase. Permite propor, quando relacionado com a forma da sua poesia, que entende a sintaxe não como
um resultado do preenchimento de estruturas normativas com palavras mais ou menos engenhosas ou “poéticas”, mas como produto
de uma construção contingente, in fieri, sujeita aos acasos da compo30
31
Drummond.
“Pontuação e
poesia”, in
Confissões de Minas
(Caderno de
notas), ed. cit.,
pp. 589-590.
“A necessidade nova de cultura, se em parte produziu apenas, em nossos parnasianos, maior leitura e
conseqüente enriquecimento de temática em sua poesia, teve uma conseqüência que me parece fundamental.
Levou poetas e prosadores em geral a um culteranismo novo, o bem falar conforme as regras das gramáticas
lusas. Com isso foi abandonada aquela franca tendência pra escrever apenas pondo em estilo gráfico a
linguagem falada, com que os românticos estavam caminhando vertiginosamente para a fixação estilística de
uma língua nacional. Os parnasianos, e foi talvez seu maior crime, deformaram a língua nascente ‘em prol do
estilo’. Manuel Bandeira cita o caso positivamente desaforado de Olavo Bilac, vendo erros em Gonçalves Dias,
corrigi-lo ingratamente.” Cf. Mário de Andrade. “Parnasianismo”, in O empalhador de passarinho. São Paulo,
Martins, 1955, pp. 11-12.
165
Jo ão A do lfo Hans e n
sição a cada termo que é escolhido. A construção do texto pressupõe
a pesquisa do som, da significação, da conexão e do sentido das palavras em cada ato enunciativo, que evita a inspiração fortuita trabalhando-as racionalmente, no sentido da justeza e da justiça referidas,
como elemento estruturante por assim dizer plástico da forma, que é
“no céu livre por vezes um desenho”, como em “Consideração do
poema”. Nenhuma noção neoclássica, rococó, romântica, realista ou
parnasiana da palavra, no caso, como clareza natural da imitação,
aplique decorativo, fulminante inspiração genial de potências cósmicas, reflexo mecânico ou Forma vestindo a idéia. A idéia e sua elocução nascem diretamente da palavra, extraída de fontes letradas da
cultura culta e dos usos coletivos anônimos, como forma tensa de
significações refratadas nos fragmentos justapostos no verso e/ou
na fluidez de arabescos. Na poesia, a palavra e a sintaxe assim
construídas remetem a leitura para significações por assim dizer
“verticais”, (des)ordenando as significações no campo semântico
geral da cultura moderna. Marcada funcionalmente pela pontuação
(ou sua ausência) a forma encena o não-fundo da linguagem como
realidade do possível que flutua na não-água da página, rio difícil,
tentando a viagem que divide o leitor32 entre o silêncio e o desprezo.
Sem elidir a divisão psicossocial da dicção, passa ao largo das classificações prévias de poesia e prosa, dissolvendo as classificações es-
32
Provavelmente, é em poemas de A rosa do povo, como “Vida menor”, “Nosso tempo” e principalmente em
alguns de Claro enigma, como “Os bens e o sangue”, “Rapto”, e em um dos melhores já escritos de toda a
história da poesia, “Elegia”, de Fazendeiro do ar (1952-1953), que o arabesco aparece na sua liberdade livre,
suspenso no ar, como o quarto de Manuel Bandeira e a sintaxe de Mallarmé. “Fragilidade”, de A rosa do povo,
teoriza a suspensão do sentido formulada antes, no pequeno texto de Confissões de Minas sobre “pintar a
passagem”. A suspensão aludida é a do ato que figura não propriamente conceitos cheios, mas o instante
mesmo das passagens do uso de uma palavra a outra, o átimo dos intervalos daquela indecisão entre som e
sentido que finalmente acha a chave. Berkeley dizia que a idéia do movimento é antes de tudo uma idéia inerte.
No auge da sua arte, em A rosa do povo e Claro enigma, Drummond figura o movimento da linguagem mesma no
incessante deslocamento vazio e silencioso dos signos, não-ser das coisas.
166
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tilísticas tradicionais enquanto remete a leitura para sua matériaprima básica, a palavra.33
Drummond não escreve prosa experimental, como Oswald de
Andrade, mas incorpora à escrita o núcleo moderno da experiência
modernista, a livre pesquisa dos conteúdos materiais da tradição literária da língua e sua transformação crítica como “expressão livre e arejada” de uma experiência brasileira internacionalista. Sua prosa é muito culta, pois se apropria de experiências estilísticas tentadas por outros escritores locais desde os seiscentistas. E todos os estrangeiros
inumeráveis, entre eles principalmente alguns antigos, como Montaigne, lembrado por Antonio Candido, que aparece na magreza da frase,
nos aforismos e na análise do “eu”. Não dissolve os nexos sintáticos,
não fragmenta a dicção, não a sutiliza a ponto de abolir a referência;
ao contrário, como é inteligência analítica, tem predileção pela oração
contínua e acidentes particularizadores, que lhe permitem a lucidez da
descrença. É típica de Confissões de Minas a formulação de períodos
compostos de orações principalmente restritivas, explicativas, condicionais, causais, concessivas e adversativas, indicando sempre com
partículas, como “mas”, “se”, “ainda que”, “também” e principalmente “talvez”, o afunilamento da particularização irradiante do tema,
sempre fixado na tensão social da sua referência. A tensão é construída, preferencialmente, pela formulação optativa, hipotética, dubitativa, índice de distanciamento – “pode ser”, “poderá explicar”; pelas
duplicações e repetições, marcas insistentes do desejo de especificação
33
“[...] a sua maestria é menos a de um versificador que a de um criador de imagens, expressões e seqüências,
que se vinculam ao poder obscuro dos temas e geram diretamente a coerência total do poema, relegando quase
para segundo plano o verso como unidade autônoma. Quando adota formas pré-fabricadas, em que o verso
deve necessariamente sobressair, como o soneto, parece escorregar para certa frieza. Na verdade, com ele e
Murilo Mendes o Modernismo brasileiro atingiu a superação do verso, permitindo manipular a expressão num
espaço sem barreiras, onde o fluido mágico da poesia depende da figura total do poema, livremente construído,
que ele entreviu na descida ao mundo das palavras.” Cf. Antonio Candido. “Inquietudes na poesia de
Drummond”, in Vários escritos. São Paulo, Duas Cidades, 1970, p. 122.
167
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– “o paralisa e o priva”, “liberta e ao mesmo tempo oprime”; e oposições, que explicitam a divisão de reflexão e sensibilidade – “desta solidão está cheia a vida”; “mas, poeticamente”, etc. Veja-se o exemplo:
No formigamento das grandes cidades, entre os roncos dos motores e o
barulho dos pés e das vozes, o homem pode ser invadido bruscamente por
uma terrível solidão, que o paralisa e o priva de qualquer sentimento de fraternidade ou temor. Um desligamento absoluto de todo compromisso liberta e ao mesmo tempo oprime a personalidade. Desta solidão está cheia a
vida de hoje, e a instabilidade nervosa do nosso tempo poderá explicar o fenômeno de um ponto de vista científico; mas, poeticamente, qualquer explicação é desnecessária, tão sensível e paradoxalmente contagiosa é esta espécie de soledade.34
34
Drummond.
“Fagundes
Varela, solitário
imperfeito –
Três poetas”, in
Confissões de Minas,
ed. cit.,
pp. 512-513.
35
Drummond.
“Questão de
corpo”, in
Confissões de Minas
(Caderno de
notas), ed. cit.,
p. 585.
A literatura, ao descrever o corpo, não o expõe, e, narrando o amor,
não o realiza.35 A sintaxe da prosa de Confissões de Minas tem a precisão
dessas elisões. Discreta e livre, as elisões não a obscurecem, mas a fazem clara. Obviamente, Drummond não é um neoclássico, não supondo nenhuma transparência do mundo, nem evidência de fundamento sólido, na sua razão, a que pudesse corresponder simetricamente a clareza do estilo. Ao contrário, quando transforma a matéria
social de seu tempo, relativiza – mas não a abole – a representação
fundamentada no pressuposto da adequação entre os signos da linguagem, os conceitos da mente e as estruturas da realidade objetiva,
pois sabe que o mundo é opaco, que o sujeito é fraturado e que a linguagem não é as coisas. Sua sintaxe é clara em função da opacidade geral: entende-a como meio para a civilidade, absolutamente fundamental na vida de relação. A sintaxe clara, ainda que acidentada pela particularização da difícil humanidade dos temas, decorre da ética do estilo. Subordinando as sutilezas do mesmo à figuração da franqueza da
crítica objetivamente fundada, Drummond não afeta bons sentimentos. Como observação sem ênfase, sua franqueza é crua, mas sempre
168
A lgu ma pro sa de Dr u m m o n d
vazada numa formulação gentil. O comentário das matérias é feito à
moda de antigo, que discreteia entre amigos, aparentemente só borboleteando por assuntos triviais e gravíssimos. Mas isso é disfarce.
Quando escreve que uma sutileza que não resista à prova da convivência mais larga é apenas um vício, Drummond alega justamente a necessidade política de socialização da inteligência. Sua clareza sintática a
realiza democraticamente, supondo a orientação ética que se lê nos
trechos da carta de Mário de Andrade transcritos numa crônica comovidíssima de Confissões de Minas.36 Mário de Andrade ensinou-o a esquecer o bovarismo de Joaquim Nabuco e as afetações de Anatole
France, como Silviano Santiago relembrou recentemente.37 A mesma
lição do amigo se lê quando afirma que é necessário reformar a capacidade de admirar, inventando olhos novos ou novas maneiras de olhar
para estar à altura do espetáculo do tempo: “estamos começando a
nascer.” Esse entusiasmo de moderno que hoje faz falta ecoa o mário-oswaldiano “ver com olhos novos” e exige um olhar armado, culto
e informadíssimo sobre as coisas estrangeiras, ao mesmo tempo sem
prevenção, ingênuo e como que primeiro e primitivo na consideração
das coisas antigas e menos antigas do país. Ele caracteriza os melhores
momentos de Confissões de Minas. Aqui, Drummond declara com todas
as letras sua apropriação dos paulistas, principalmente as lições de
Mário de Andrade sobre a moralidade da técnica e o “bárbaro e nosso”, de Oswald de Andrade. Mas, diversamente de Mário de Andrade,
também Mallarmé.38 Pondo todo o empenho na palavra justa e na
sintaxe clara, o pensamento ferozmente intelectual de Drummond
também lembra as finezas malvadas de Machado de Assis, com o seu
gosto acentuado pela enunciação suspensiva do sentido nas dissonâncias humoradas que até podem, se o leitor assim o quiser, ser entendidas como “ceticismo” e “niilismo”. Mas trabalham para outra coisa.
“A vida, como o correio, costuma chegar atrasada.” Esse enunciado de uma crônica de 1943 é típico do estilo de Drummond. Nele,
169
36
Cf. Drummond.
“Suas cartas”, in
Confissões de Minas,
ed. cit.,
pp. 533-541.
37
Cf. Santiago,
Silviano.
“Introdução à
leitura dos poemas
de Carlos
Drummond de
Andrade”, in
Carlos Drummond
de Andrade. Poesia
Completa.
Volume único.
Fixação de textos e
notas de Gilberto
Mendonça Teles.
Introdução de
Silviano Santiago.
Rio de Janeiro,
Editora Nova
Aguilar S.A.,
2002, pp. III-XLI.
38
“Selon moi
jaillit tard une
condition vraie ou
la possibilité, se
s’exprimer non
seulement, mais de
se moduler, chacun
à son gré”, escreve
Mallarmé em Crise
des vers.
Jo ão A do lfo Hans e n
39
Drummond. “Esboço
de uma casa”, in
Confissões de Minas
(Quase histórias), ed.
cit., p. 580.
40
Drummond. “No
jardim público de
Casimiro”, in Confissões
de Minas (Três poetas),
ed. cit., p. 513.
41
Drummond. “Poesia
e utilidade de Simões
dos Reis”, in Confissões
de Minas (Na rua com
os homens), ed. cit.,
p. 544.
42
Drummond. “Suas
cartas”, in Confissões de
Minas (Na rua com os
homens), ed. cit.,
p. 534.
43
Drummond. “Um
sinal”, in Confissões de
Minas (Caderno de
notas), ed. cit., p. 591.
44
Drummond. “João
Guimarães”, in Confissões
de Minas (Na rua com
os homens), ed. cit.,
p. 526.
45
Drummond. “Vinte
livros na ilha”, in
Confissões de Minas
(Caderno de notas), ed.
cit., p. 598.
vez por outra, um aforismo agudo e sintético interrompe a linearidade da função comunicativa da crônica com o relevo da súbita condensação que, hierarquizando conceitos distantes, obriga o leitor a
suspender os olhos, como na arte de seiscentistas maiores. Apodítico como saber só de experiência feito, o aforismo adverte o leitor de
que sempre se pode esperar o pior. O canário cantava? Pois o vento
derrubou a gaiola e o iodo no bico, o aparelho na perninha quebrada
e a mudez definitiva serão um testemunho da limitação que a vida
impõe ao canto.39 Pessimismo? Drummond não é superficial, ainda
no comentário ameno. Também propõe, mineiramente, que o que
não mata, engorda. Como na poesia, o ato de observar a vida sem ênfase modula-lhe a prosa.
Os aforismos – por vezes frases apenas sentenciosas que mimetizam na forma exterior a condensação interna do aforismo – aproximam e fundem conceitos distantes num átimo que faz o leitor refletir, talvez, com o pensamento material das incongruências figuradas
na síntese: “O encanto de Casimiro de Abreu está na tocante vulgaridade”;40 “Se quem possui um vício intelectual é feliz, o que possui
dois está acima da felicidade, do tempo e da vida terrestre”;41 “A
mocidade entretanto parece absorver tóxicos somente para se revelar
capaz de neutralizá-los”;42 “A dúvida rói-se a si mesma”;43 “A vida
separa os amigos, que a morte vem juntar bruscamente”;44 “Há paladares enciclopédicos, e o homem é, em si mesmo, um tecido de contradições”;45 etc.
Friedrich Schlegel dizia que uma agudeza triste é auto-contraditória, pois o dito agudo explicita justamente a alegria do pensamento que dança veloz entre os conceitos. Na prosa de Drummond,
o pensamento dança, mas é rotineira a sentença triste enunciada
como síntese do irremediável a que nunca falta o humor de quem
não observa as coisas de fora, mas se inclui compassivamente nelas.
Quando se inclui no sofrimento das coisas, Drummond afirma a
170
A lgu ma pro sa de Dr u m m o n d
gratuidade da sua liberdade sempre imprescritível; ao mesmo tempo,
tenta, com a exigüidade de seus meios, salvar a própria coisa que sofre, resistindo com ela na duração do seu sofrimento por assim dizer
“embaixo”, numa solidariedade triste e comovida, mas toda material
e controlada: “Vinte anos é uma bela idade, mas tem o inconveniente de não se dar a conhecer senão depois que a perdemos.”46
Não se apreende a verdade do acontecimento a não ser que ele se
inscreva também na carne; e a cada vez se deve duplicar a efetuação
dolorosa por uma contra-efetuação, que a limita, representa e transfigura.47 Tal aquele arrepio telepático que vibra nos bens municipais
de um poema, nas crônicas de Confissões de Minas a contra-efetuação
comovida dos atos do juízo é delicadamente compassiva e vai envolvendo sem sentimentalismo, na franqueza da análise, tudo quanto é
coisa pequena e frágil. Como as flores que Portinari pinta no baú
dos vencidos, a representação dá sentido provisório à falta de sentido do mundo, que é como que recolhido no gesto de solidariedade.
Cito inícios de crônicas:
“Morte de E.B.G. Não era meu amigo, mas conhecê-lo bastou
que a notícia, dada pelo rádio, me comovesse.” (“Morte de um
gordo”); “Percorrendo as oito páginas de notícias do país e do estrangeiro, detenho-me na coluna (tão modesta) que estampa o retrato do
menino Edival. O retrato e a notícia de sua morte, em dez linhas.”
(“Ternura diante do retrato”); “O caso do guarda-civil que, com risco da própria vida, salvou a de um homem que se afogava no Tamanduateí, em S. Paulo, pertence à anedota sem fugir à realidade.”
(“Bondade”); “Morreu a senhora do construtor, na casa ali em frente, de duas janelas e alpendre modesto, onde sobem trepadeiras.
Morreu ontem.” (“Enterro na rua pobre”); “Gosto desses fotógrafos de jardim público, que semanas e meses e anos a fio esperam um
freguês que não vem.” (“Os fotógrafos vegetais”); “A impossibilidade de participar de todas as combinações em desenvolvimento a
171
46
Drummond.
“Fagundes Varela,
solitário
imperfeito”, in
Confissões de Minas
(Três poetas
românticos), ed.
cit., p. 507.
47 Deleuze, Gilles.
“Porcelana e
vulcão”, in Lógica do
sentido. Trad. Luiz
Roberto Salinas
Fortes. São Paulo,
Perspectiva, 1974,
p. 164 (Estudos,
35).
Jo ão A do lfo Hans e n
48
Drummond.
Confissões de Minas,
ed. cit.,
pp. 576-607.
49 Drummond.
“Vila de utopia”,
in Confissões de
Minas, ed. cit.,
p. 561.
50
“A estante já
é uma seleção.
O homem
inteiro está ali,
naquelas
prateleiras que
dizem dos seus
bons e maus
hábitos
intelectuais. Por
isso não me
admirei ao ler,
num inquérito
dessa natureza, a
resposta de um
acadêmico de
direito, que
juntava o Werther
aos Apólogos, de
Coelho Neto....”
“Vinte livros na
ilha”. Confissões de
Minas (Caderno
de Notas), ed.
cit., p. 598.
51
Cf. Confissões
de Minas, ed. cit.,
pp. 582 e 584.
qualquer momento numa cidade grande tem sido uma das dores da
minha vida.” (“O cotovelo dói”).48
Camus podia ser lembrado. O ritmo da frase é contido como um
soluço intelectual; não há assuntos grandes nem pequenos, mas uma
maneira de ver e de dizer que torna impossível o estilo ser de outra
maneira: materialidade, cultura, particularização, negação, lucidez,
descrença, utopia, comoção, compaixão e solidariedade.
Tratando dessa maneira de ver e de dizer, Antonio Candido
aproxima a prosa de Drummond dos ensaios de Montaigne. Seguindo a pista, digamos que, em Montaigne, o uso de acumina, as
agudezas típicas do estilo epigramático de Sêneca e das sentenças
de Tácito, que vão caracterizar os estilos conceptistas do século
XVII hoje conhecidos como “Barroco”, substituem construções
sintáticas lineares, evidenciando o modo como significam, pois a
formulação aguda pressupõe o processo analítico do juízo, que
acha conceitos distanciados, compara-os, estabelece diferenças
entre eles e os substitui na metáfora que condensa a sua semelhança. Em Drummond, às vezes a raiva e a violência relampejam
na forma antitética das translações dos aforismos: “A vida não é
um prazer, mas uma pena.”49
Como Montaigne, também evita a elocução ornada dos estilos
inflados. Tem horror ao sublime, desconfia do alto e desgosta
francamente do florido. Referindo-se pejorativamente à prosa ornamental de Coelho Neto,50 indica preferir o estilo médio, que
evita o ornato, pois subordina o agradável dos efeitos à utilidade
civil do comentário, de modo apropriado democraticamente à comunicação de “todos os instantes”, própria da crônica. Por vezes,
tende ao baixo, quando faz ironias contra coisas que lhe parecem
estúpidas, pontuando a frase com agudezas descendentes, cômicas.
Bons exemplos, em Confissões de Minas, são os textos “Literatura infantil” e “Questão de corpo”.51
172
A lgu ma pro sa de Dr u m m o n d
A pintura do “eu” é uma tópica horaciana, realizada na poesia
antiga como uma imagem para ser vista de perto, várias vezes, com
minúcias de desenho feito à ponta de pincel e uma obscuridade relativa, derivada das distinções aplicadas aos caracteres e paixões da
alma. Tal como a prudência de antigo que gagueja fingidamente,
porque parou para examinar as nuanças de um caráter ou das paixões, a prosa de Confissões de Minas sempre se detém para figurar as
modulações do juízo do “eu” que se examina ao examinar a variedade grande dos assuntos e temas. É antes de tudo um “eu” intelectual, que faz a pintura de si declarando não sua suposta unidade ou
essência, mas sua contingência. Sabendo-se fraturado, submete à
reflexão as formas sociais de sensibilidade que o inventam quando
passa de um afeto a outro: Pensée échappée, je la voulais écrire; j’écris, au
lieu qu’elle m’est échappée.52
Outros aspectos fazem a diferença do “eu” da enunciação dessa
prosa de Drummond semelhante à diferença do “eu” da enunciação dos ensaios de Montaigne. Por exemplo, a semelhança da representação do lugar distanciado em que escreve. O francês o faz
retirado do mundo, como os romanos que saem da cidade para as
vilas do campo para escrever. O sujeito de enunciação das crônicas
de Confissões de Minas também se retira do mundo, mas não busca o
sossego do lugar ameno da tópica rústica, pois vai para o fundo da
sua galeria de mineiro – metáfora não de retiro espacial ou espiritual, mas do interior melancólico, obscuro e dividido, da sua consciência, como “espaço” da suspensão valorativa – para mais profundamente mergulhar na opacidade das coisas.53 De modo análogo, mas simetricamente inverso ao modo do “eu” nos ensaios de
Montaigne, que toma distância da guerra civil em uma privacidade
propiciada pelo isolamento para examinar-se de perto, várias vezes, com minúcias e clareza relativa, reconhecendo, como faz no
capítulo 13 do Livro III, que “[...] gostaria mais de me entender
173
52
Pascal, Pensées,
p. 370.
53
Em Passeios na
ilha, a ilha é a
metáfora desse
distanciamento
eqüidistante como
“uma fuga relativa,
e uma não muito
estouvada
confraternização”.
Cf. “Divagação
sobre as ilhas”, in
Passeios na ilha, ed.
cit., p. 611.
Jo ão A do lfo Hans e n
bem a mim mesmo do que a Cícero”, e isso talvez porque, como
afirma no capítulo 1 do Livro I, “[...] o homem é um tema maravilhosamente vão, diverso e ondulante. É infundado nele fundar julgamento constante e uniforme”, Drummond também toma distância do “eu”, construindo o estilo como mediação da forma dubitativa da sua lógica, mas para examinar as matérias públicas de
perto, refratadas nas divisões do “eu”. Em Drummond, obviamente, a razão não tem mais nenhum fundamento absoluto. O grande
cético Montaigne é leitor de Sexto Empírico e, no seu mundo antigo, a guerra religiosa demonstra que os católicos e os huguenotes
têm em comum a crença em Deus como fundamento das razões
opostas por que se trucidam. Drummond sabe tudo o que é preciso saber de Marx e Freud sobre a inexistência e a inutilidade de
Deus como fundamento da razão. Por isso mesmo – é a diferença
o que importa na analogia – a comparação com Montaigne continua muito pertinente para pensar a forma do estilo da sua lógica.
Para isso, vale a pena lembrar rapidamente o ensaio 28, do Livro I,
em que Montaigne compara a escrita à pintura de grotescos ou
arabescos que têm graça, ou seja, elegância, porque ao mesmo
tempo têm variedade e estranheza. No ensaio 18, do Livro II, diz
que sua escrita não levanta uma estátua para ser colocada em praça pública, indicando o estilo aplicado à matéria dos arabescos, a
mesma “vida baixa” do ensaio sobre o arrepender-se, o que também lhe permite definir o que diz como gênero cômico. E ainda,
o capítulo 8, do Livro III, em que, falando sobre o estilo de Tácito, afirma que o romano faz boutades espirituosas, tem finezas
verbais, é carnudo ou sentencioso, quando comparado a Sêneca,
que, por ser estéril e magro, é justamente o mais adequado para
compor o arabesco.
Semelhantemente, as crônicas de Confissões de Minas são escritas
como pintura de uma vida comum tratando de “todos os instantes”
174
A lgu ma pro sa de Dr u m m o n d
da vida de todos os dias; a pintura é feita de perto, com minúcias de
desenho ou arabescos que traçam pontos de fuga e perspectivas de
uma observação repetida, com clareza, em traços estéreis ou magros,
entrecortados por sentenças agudas. O gênero dessas crônicas mescladas não figura o geral ou o essencial como condição da experiência do “eu”, porque não é gênero teórico, didático ou abstrato, ainda
que Drummond escreva algumas crônicas como ensaios críticos e
históricos (por exemplo, “Fagundes Varela, solitário imperfeito” e
“Viagem de Sabará”) ; mas toma “pelo meio”, por assim dizer, os
argumentos que lhe permitem dar conta do particular das matérias e
da posição intelectual do “eu” encenados nelas. A operação é refinadamente técnica. Como Montaigne, Drummond é seco, ou magro,
para compor a escrita como fala de pessoa natural, comum, particular ou privada, tratando de matérias comuns e públicas. Por outras
palavras, como Montaigne ao escrever ensaios, Drummond também
compõe discursos do gênero “vida” ao escrever crônicas; nelas, o
ponto de vista sobre as “passagens” do “eu” é politicamente mais
fundamental, talvez, que os objetos descritos e analisados, pois evidencia a auto-reflexão e a particularidade datada dos condicionamentos da ética que os orienta.
Referindo as Meditações sul-americanas, em que Keyserling elenca
características espirituais que pretende serem próprias de uma generalidade genérica, “o homem sul-americano”, para relacioná-las com a suposta monotonia que paira na suposta “fisionomia moral” da América do Sul, Drummond afirma que o autor
extrai dessa monotonia um “sofrimento sul-americano”. Em seguida, diz:
Seria absurdo isolar, na sensibilidade mineira, um sofrimento itabirano? Julgo que não. Sou, Itabira, uma vítima desse sofrimento, que já me
perseguia quando, do alto da Avenida, à tarde, eu olhava as tuas casas re-
175
Jo ão A do lfo Hans e n
signadas e confinadas entre morros, casas que nunca se evadiriam da escura paisagem da mineração, que nunca levantariam âncora, como na frase
de Gide, para a descoberta do mundo. Parecia-me que um destino mineral, de uma geometria dura e inelutável, te prendia, Itabira, ao dorso fatigado da montanha, enquanto outras alegres cidades, banhando-se em rios
claros ou no próprio mar infinito, diziam que a vida não é uma pena, mas
um prazer. A vida não é um prazer, mas uma pena. Foi esta segunda lição,
tão exata como a primeira, que eu aprendi contigo, Itabira, e em vão meus
olhos perseguem a paisagem fluvial, a paisagem marítima: eu também sou
filho da mineração, e tenho os olhos vacilantes quando saio da escura galeria para o dia claro.54
54
Drummond.
“Vila de utopia”,
in Confissões de
Minas, ed. cit.,
pp. 561-562.
55
Leitura, junho
de 1945.
Não sendo fixos, porque atos do juízo, Drummond os figura
“vacilantes”, como pensamentos de um caráter dividido por motivações melancólicas e céticas, “obscuras”, mas em ação, saindo da
“escura galeria” para o “dia claro”. Neste, o que chama de “um sofrimento itabirano” é homólogo de outros, “provincianos”, “mi
neiros”, “brasileiros”, que qualquer um pode ainda agora viver muito legitimamente como seu, consideradas as mesmas determinações. As figuras resultantes desses atos do juízo são correlatos objetivos dos afetos que possuem e dividem o “eu”. A divisão aparece, no caso, habilmente formulada na sintaxe de formas antitéticas,
contrapostas, como ocorre no contraste da “geometria” do “destino mineral”, que prende a cidade (o “eu”) ao dorso fatigado da
montanha, e da fluidez alegre de cidades fluviais ou marítimas.
Como o ato do juízo é auto-reflexivo, a crônica como um todo representa um juízo em ato:
Fugindo ao assunto geral em proveito de um assunto particular, de lugar
e pessoa, estarei corrompendo esta crônica? Não creio. Lugar e pessoa serão
sempre as formas imediatas através das quais a realidade profunda se manifesta aos nossos sentidos contingentes, e uma idéia, a rosa mais bela, precisa
assumir espécies físicas para existir.55
176
A lgu ma pro sa de Dr u m m o n d
A arte dessa prosa suspensiva, posta entre a dúvida e a não-certeza, não obstante muito decidida quanto ao direcionamento utópico
do sentido da suspensão, pode ser melhor especificada por meio da
noção dinâmica de “passagem” própria de seu estilo. Em um pequeno texto de Confissões de Minas, escrito como uma “ficção teórica”, teoriza a movimentação necessária a um estilo capaz não só de fixar o
dinamismo do pensamento enquanto passa de um aspecto a outro
dos temas, figurando a “geometria mineral” da formação provinciana, mas principalmente as alusões aos possíveis do futuro. Tal estilo
deve figurar os temas, obviamente, mas também as formas fugidias
do vir-a-ser da sensação, da memória e da não-inteireza da razão que
os examina fazendo a experiência de dissolução da história própria
da arte moderna:
Escrever um livro inútil, que não conduzisse a nenhum caminho e não
encerrasse nenhuma experiência; livro sem direção como sem motivação;
livro disfarçado entre mil, e tão vazio e tão cheio de coisas (as quais ninguém jamais classificaria, falto de critério) que pudesse ser considerado,
ao mesmo tempo, escrito e não escrito, sempre foi um dos meus secretos
desejos.
Os dias passaram sobre esse projeto e não o fizeram mais nítido; ambições mais diretas me agitaram; nunca soube quando chegaria o tempo
desse livro, e nunca senti em mim a plenitude insuportável da maturação;
será hoje?
Se me disponho a escrevê-lo (o livro inútil) é porque já está feito... O
mesmo seria dizer que minha vida está acabada. Quando me sinto capaz de
nascer nesse escasso momento e olhar com olhos ingênuos essa janela que
se insere entre mim e a paisagem; ou aquela porta, que esconde um gato; ou
o céu, onde passam aeroplanos postais. O homem acabado, o livro acabado
são fórmulas; o homem que continua, o livro que continua, e, sobretudo, o
leitor que continua estão insinuando como é audacioso esse projeto e como
é difícil ‘pintar a passagem’, com o pincel que foge da minha mão, com a
177
Jo ão A do lfo Hans e n
mão que se desprega do braço e navega por conta própria, sobre a crista
móbil da onda, da onda que, por sua vez...56
56
Drummond.
Confissões de Minas
(Caderno de
notas), ed. cit.,
p. 585.
O livro inútil alegoriza várias disposições utópicas que a arte de
Drummond intensificou depois, principalmente na poesia. Fazendo-se por instantes a hipótese irrealizável, escrevê-lo equivaleria a
produzir um texto impossível, pois autonomizado de qualquer condicionamento. Certamente, a linguagem o faria cheio de coisas ausentes, mas seria vazio de experiência, por acumular todas as experiências; não teria nenhum caminho, por indicar todos; nem direção,
por ser tão repleto e acabado que toda imagem de futuro estaria bloqueada. Pois pressuporia – e implicaria – a “plenitude insuportável
da maturação”, não só como posse perfeita da técnica, mas, principalmente, como posse total do tempo. Seria, na sua inanidade de
abolido bibelô sonoro, a evidência de que a História teria acabado.
A “plenitude da maturação” seria “insuportável”, porque a escrita
seria tão imediatamente a memória, como repetição sem diferença
do tempo, que o seu presente de livro inútil ficaria idêntico a si mesmo, repleto da totalidade acabada da experiência: “Se me disponho a
escrevê-lo é porque já está feito... O mesmo seria dizer que minha
vida está acabada.”
Aqui, retomo o início, onde propus que as diferenças da prosa
e da poesia de Drummond se parecem, pois em uma e outra ele
faz uma teoria da sensibilidade e uma teoria da arte. A alegoria do
livro inútil significa, nesse sentido, tanto o que não se pode fazer
quanto o que se quer, mas ainda não é possível. Com ela, Drummond teoriza o núcleo duro da ética da sua arte. Kafka afirmava o
desejo de escrever como um cachorro. Picasso, que passaria a pintar com a esquerda quando sua mão direita estivesse habituada.
Contra a memória fonte do costume, dizia Oswald de Andrade.
Como eles, Drummond afirma que, para não escrever o livro inú178
A lgu ma pro sa de Dr u m m o n d
til, é preciso sentir-se “[...] capaz de nascer nesse momento escasso”. Escolher, entre os possíveis que enxameiam na experiência,
escrever numa circunstância escassa, o presente, cerceada de muitos jeitos por condicionamentos e determinações, alguns deles
inconscientes. A inteligência, a sensibilidade, o caráter, a família,
a educação, a formação provinciana, a cultura pessoal; a situação
de classe do escritor funcionário público, a posição de classe do
escritor funcionário público, as amizades e as inimizades do escritor funcionário público, os amores do escritor funcionário público, as trocas simbólicas do escritor funcionário público; as
instituições políticas e artísticas, a luta de classes, os acontecimentos do país e do mundo... Tornam impossível escrever o livro
inútil com o sentido dado à metáfora.
Porque, quando todos continuam a nascer num momento escasso, o “olhar com olhos ingênuos” do trabalho infindável da arte ainda não começou ou, se já começou, não é mais, não pode ser mais,
porque a vida não está, nunca estará completa ou acabada. Drummond afirma que o livro inútil, como livro acabado, é mais que inútil, pois pressupõe o homem acabado, a vida acabada. Fórmulas a
evitar, porque o homem, o livro e o leitor que continuam, apesar de
tudo, “nesse momento escasso”, nascem escassamente a cada instante, demonstrando que a escrita não está acabada porque a verdadeira
vida ainda nem começou. E o livro inútil é o que ainda não veio: o
que é moderno não admite cânone, nem canonização; toda crítica
será, antes de tudo, auto-reflexão da sensibilidade partida que escreve, pois o leitor continua dominado. A fidelidade ao acabado é uma
contrafacção, pois repetição do mesmo, num “momento escasso”
em que tudo também já mudou, mas no qual ainda não veio o terceiro pensamento. Quando vier, o livro inútil será afinal inútil.
Por enquanto, certamente, o fundo da imaginação individual
continua sendo a memória social dos signos. Mas a escrita que a
179
Jo ão A do lfo Hans e n
transforma não pode repetir sua divisão e sua morte. Os conteúdos sociais da memória só interessam como matéria da experiência do presente em que a escrita se abre inacabada ao futuro, enfim, donde tantas coisas apenas pressentidas hão de vir, entre elas
principalmente o sopro da insatisfação com as limitações do
“momento escasso”.
A utopia da arte moderna anunciada nessa prosa moderna “pinta
a passagem” do seu próprio vir-a-ser como futuro ainda não imaginado. Enunciados poéticos – “com o pincel que foge da minha mão,
com a mão que se desprega do braço e navega por conta própria, sobre a crista móbil da onda, da onda que, por sua vez...” – apontam
para a linguagem como a realidade do possível de uma experiência
ainda apenas aludida, pois nunca vivida antes por ninguém. Nela, a
estrutura estética tende a transcender-se a si mesma, como queria
Adorno, pressionada pelo conteúdo de verdade aludido, que anuncia o conceito irrealizável de sublime. Donde o “audacioso desse
projeto” e, certamente, enquanto o pincel foge da mão, também o
impossível utópico dele, pois os materiais do passado e do “momento escasso” do presente do escritor sempre lhe aparecem como inconciliáveis com o ideal pressuposto. Logo, ideal e material se afastam um do outro no esforço em que o escritor tenta figurar o infigurável, a arte que enfim faria coincidir totalmente a dissimetria de reflexão e sensibilidade, possível e real, abolindo o “eu”, o tempo mau
e a si mesma como coisas finalmente acabadas, superadas e verdadeiramente inúteis, na forma justa do livro afinal inútil. Enquanto isso,
é o “durante” do trabalho de “pintar a passagem” para o vir-a-ser da
outra coisa que Drummond anuncia generosamente nessa prosa
também indicativa da futura radicalidade do tema do “nada” em sua
poesia, como recusa da realidade vil.
Podia-se perguntar, finalmente, o que é o “conteúdo verdadeiro” de que fala Drummond na nota introdutória de Confissões de
180
A lgu ma pro sa de Dr u m m o n d
Minas. O resíduo utópico, texto também das crônicas, que sobra
da crítica do mundo torto como crítica das linguagens da memória dos signos na linguagem de um “eu” provisório que se auto-critica. Na nota, Drummond afirma que sua prosa marcada
pela vida provinciana é limitada, mas com um saldo, devendo ser
lida como depoimento negativo que indicará aos mais novos o
que fazer. O que fazer?
181
Sérgio Buarque de
Holanda e a crítica
literária
M assa u d M o is é s
E
m dois grossos volumes, totalizando 1.088 páginas,vieram a
público em 1996, sob o título de O espírito e a letra, os estudos
literários com que Sérgio Buarque de Holanda colaborou na imprensa por quase quarenta anos. Ainda que incorrendo no lugarcomum, não há outra maneira de dizer que é sempre bem-vindo o
resgate de trabalhos dispersos por jornais e revistas, sobretudo quando encerram matéria menos efêmera.
A vastidão da recolha induz a pensar que, se nem tudo foi transcrito, uma solução talvez mais apropriada teria sido selecionar os
textos mais relevantes. Abrangendo, no entanto, a sua (quase) totalidade, lucra o especialista, que deste modo tem acesso a um registro
vivo e lúcido da nossa atividade literária entre o crepúsculo da Belle
Époque e o fim dos anos 50. Ao leitor fica a incumbência de fazer a
sua própria escolha, mas é provável que sentirá algum alívio ao se
183
Titular de
Literatura
Portuguesa da
FFLCH da
Universidade de
São Paulo,
ensaísta,
historiador e
crítico literário.
Massau d Mo i sés
lembrar que tem à mão os demais escritos. Decerto, pensara ele, um
dia poderão ser-lhe úteis, ainda que seja por uma simples informação histórica ou referência bibliográfica.
Dispostos em ordem cronológica, esses “estudos de crítica literária”, como consta no subtítulo, permitem acompanhar a trajetória
do seu autor desde a mocidade (o seu primeiro artigo é de 22 de
abril de 1920, andava ele pelos 18 anos) até a maturidade (o último
é de 16 de maio de 1959). Conquanto se possa falar numa evolução,
ou em mudanças naturais, que o próprio exercício crítico vai introduzindo na mente de quem o pratica, é possível divisar uma unidade
entre o primeiro e o derradeiro artigo. Uma unidade que denota o
lento mas inexorável progresso do crítico no rumo da sua “vocação”, ou das características que o individualizam como tal, distinguindo-o dentre os que se dedicaram às mesmas tarefas ao longo
do Modernismo.
Já nos artigos iniciais (“Originalidade literária” e “Ariel”) podemos notar uma inclinação visível para a historiografia, fundada em
vária erudição, notadamente a sociológica, a prenunciar as Raízes do
Brasil (1936), obra do autor que viria a constituir, juntamente com
Casa-grande & senzala (1933), de Gilberto Freyre, uma das balizas
ideológicas para se entender a dualidade que permeia os anos 30 entre nós. O gosto da investigação acurada, da minúcia bibliográfica
rigorosa, das copiosas leituras, que alguém mais afoito poderia atribuir à juventude do autor, era verdadeiramente o indício de uma maneira toda sua de encarar as obras e os fatos literários.
Em determinado passo, diz que “o nosso desideratum e o caminho
que nos traçou a natureza, só ele nos fará prósperos e felizes, só ele nos
dará um caráter nacional de que tanto carecemos”. E acrescenta, como
a enunciar uma tese “científica” que “o caminho que nos traçou a natureza é o que nos conduzirá a Ariel, sempre mais nobre e mais digno
do que Caliban” (I : 45). Mais adiante, afirma que o que “temos de
184
Sérg io B ua rq ue de Ho landa e a c rí ti c a li te r á r i a
mais precioso” são “as tradições” (1 : 69). E ao tratar de Joaquim Nabuco, apontando nele a prevalência da “imaginação histórica” sobre a
“imaginação estética” (I : 180), parece falar de si próprio.
Por outro lado, alguns desses artigos juvenis estão irremediavelmente datados, frutos que são da chamada crítica militante, por natureza destinada a envelhecer antes do tempo, ainda quando forrada da
mais sólida erudição. Se fosse dado ao crítico rever suas idéias antes de
enfeixar em volume os artigos, diria que Gonçalves Crespo era “o mavioso e injustamente esquecido cantor dos Noturnos”? (I : 103), chamaria “Menino e moço” de “lindo soneto de Antônio Nobre”? (idem),
acharia que Semeador de pecados, livro de contos de Galeão Coutinho, “é
uma obra-prima sob qualquer aspecto por que se o encare”? (I : 160),
etc. Diria ainda que, “sob o ponto de vista artístico e sobretudo literário, o século XIX, excetuados os últimos anos, os da reação simbolista, foi de uma esterilidade rara”? (I : 132), consideraria “passadistas
Romain Rolland, Barbusse e Marcel Proust”? (I : 133), etc.
Diga-se a bem da verdade que o crítico teve tempo de refundir alguns dos seus juízos, como se pode ver, por exemplo, na mudança de
ponto de vista em relação a nomes como o de Araripe Júnior, Guilherme de Almeida, Graça Aranha, Ronald de Carvalho, Tristão de
Ataíde e outros. E com certeza, se pretendesse subtrair ao esquecimento a sua experiência de crítico, abandonaria boa parte dos artigos ao pó onde jaziam, como, aliás, procedeu ao agrupar apenas alguns deles em Cobra de vidro (1944) e Tentativas de mitologia (1979).
Mas não há outro modo de ler os estudos ora reunidos em volume senão como testemunhos do seu tempo, sujeitos aos azares da
sorte: oferecendo uma leitura diversa da nossa, ensinam-nos acerca
da precariedade dos juízos críticos, mas também nos advertem que
nem tudo escapa ao olhar atento. É o caso, por exemplo, da breve resenha às Letras floridas, de Amadeu Amaral, autor hoje esquecido, e a
clarividência com que soube enxergar a estatura de monstros sagra185
Massau d Mo i sés
dos como Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo
Neto e outros. Se bem que exagerou ao considerar Léon-Paulo Fargue, “ao lado de Joyce, um dos dois grandes gênios da invenção e da
improvisação lingüística em nosso tempo” (I : 394), quando pouco
dá margem a um gesto de surpresa e perplexidade por parte do leitor. Mas qual crítico não cometeu, pelo menos uma vez na vida,
aproximações do gênero?
Nem tudo, porém, ostenta equilíbrio necessário: Sérgio Buarque de Holanda tinha do seu ofício noções precisas, e na coerência
ou não com que as pôs em prática residiriam os acertos ou os deslizes que disseminou pelos ensaios, bem como os fortes sinais de sua
“vocação” de historiador. “O que diferencia um zoilo comum de
um crítico justo é essencialmente o poder de distinguir bem” (I :
127), sustenta ele, com muita razão, salvo no emprego do restritivo “justo”, fazendo supor que o “zoilo comum” ainda continua a
ser crítico.
Como se nessa involuntária concessão se escondesse um ato falho, e deslembrado, tempos depois, do que declarara poucos meses
passados, afirmará: “prefiro sempre os exageros e os excessos desde
que o crítico seja conscientemente enfático. O meio-termo é sempre
condenável” (I : 146). E como se não bastasse, arremata, em tom demasiado peremptório para não causar espécie: “não sou doutrinário
e nunca fui crítico” (idem). Como aceitar de ânimo leve afirmações
tão categóricas se umas linhas antes o autor lapidara uma frase indiscutível, ainda que com o mesmo tom?: “o dever de um crítico é emitir um juízo imparcial sem se preocupar com o fato da obra estar ou
não de acordo com o seu modo de ver” (I : 145).
Não me parece que isto se possa creditar inteiramente à extrema
juventude de quem se intitula um simples “comentador de livros”. A
sua noção de crítica, que reflui mais de uma vez na série de artigos,
permite-nos admitir que, ao se negar como crítico, podia estar fa186
Sérg io B ua rq ue de Ho landa e a c rí ti c a li te r á r i a
zendo uma afirmação-piada, bem ao gosto dos modernistas de 22,
mas a um só tempo inclinava-se a suspeitar que a sua flecha crítica
apontava para outra direção. Nos anos 40, ao retomar a sua atividade, após seis anos de afastamento, denota vir carregado de novas e
estimulantes leituras.
E ademais um robusto entendimento de crítica; a seu ver, para
que ela seja fecunda, deverá “considerar a obra literária não apenas
na sua aparência exterior, como produto acabado e estanque; [...]
terá de incluir [...] largamente elementos extraídos da história (e da
biografia), da psicologia, da sociologia, onde e quando se achem disponíveis” (II : 59-60). Lembre-se, de passagem, que tinha ele em
mente a “nova crítica” anglo-norte-americana, já então a sofrer restrições no seu berço de origem. O que importa, no entanto, é ver aí
quão atualizado estava o autor e, sobretudo, que aflora com progressiva nitidez a convicção que tinha ele de ser um crítico “fiel a um
ponto de vista predominantemente histórico, e descrente da pretensão de que a obra de arte e, de modo geral, a experiência estética tenham valor completo e independente” (II : 62).
Bem atento estava ele, no entanto, para as “seduções perigosas
que também pode encerrar o historismo” (II : 193). Não obstante,
depois de refutar o absolutismo histórico ou o “exacerbado historismo” (II : 306), dá a impressão de resvalar num inesperado determinismo ao sentenciar que “a mentalidade do homem depende de seu
clima histórico” (II : 484).
Nessa mesma ordem de idéias, confessará estar “longe de ser um
absolutista”, descrendo, “mal ou bem, das vantagens ou sequer da legitimidade de qualquer pauta invariável de referência para a crítica”
(II : 141), mais uma vez mostrando grande lucidez e ganhando a
imediata adesão do leitor sensato. Mas em dado momento, num artigo de dezembro de 1952, porventura apagando da memória o seu
notório relativismo crítico ou renegando um juízo irrefutável, além
187
Massau d Mo i sés
de bem formulado, assevera que “toda verdadeira crítica deveria ser
absolutista” (II : 573).
Pode-se tomar a contradição como indício de que, ao fim de contas, o crítico reconhecia que lhe faltava a condição básica para o ofício que abraçara com tanto ardor, contudo, isto não o isenta de haver proferido uma heresia para os padrões modernos. Daí que talvez
seja preferível vislumbrar, neste passo, um sinal a mais da profunda
inclinação para a historiografia que os artigos tão bem denunciam. E
não só. Embora Sérgio Buarque de Holanda se julgasse destituído de
espírito doutrinário, as suas observações ganham evidente impacto
quando se trata de questões puxadas à teoria ou que impliquem a
mobilização de argumentos de base histórica ou erudita. Se tais assuntos ponteiam os dois volumes, artigos há que se concentram neles, passando a tratá-los como matéria doutrinal ou teórica. É o caso,
por exemplo, de “Linguagem poética” ou “O romance burguês”,
ambos pertencentes ao volume II de O espírito e a letra, nos quais faz
considerações ainda hoje pertinentes acerca dos dois temas.
Sintomaticamente, à medida que se avizinhava do último artigo,
além de os redigir em largos intervalos, ao contrário dos anos anteriores, o crítico vestia com mais segurança a roupa que melhor lhe servia. Os últimos estudos são históricos, voltados para assuntos do
passado, não poucos deles em torno do Arcadismo. E nem falta a
pesquisa em bibliotecas européias, notadamente de Roma e Viena,
para fortalecer com nutrida erudição as suas teses acerca de Basílio
da Gama e a sua “epopéia americana”. O crítico ainda retrocede até
o século XVII, centrando-se em Bento Teixeira e a sua Prosopopéia, ou
mesmo até o século precedente, para focalizar, na península ibérica e
algures, o “doce baylo de mourisca”, eventual antecessor do nosso
samba. À vista disto, não surpreende que no espólio de Sérgio Buarque de Holanda se conservassem densos ensaios, postumamente enfeixados sob o título de Capítulos de literatura colonial (1991).
188
Sérg io B ua rq ue de Ho landa e a c rí ti c a li te r á r i a
O historiador finalmente encontrava o crítico: não seria despropositado pensar que tais estudos correspondiam, na verdade, ao
triunfo do historiador sobre o crítico. O que não significa, evidentemente, que a partir daí dispensasse ele as exigências críticas. Uma
coisa, porém, era fazer história literária, com todo o rigor crítico,
outra, bem diversa, era fazer o registro interpretativo da produção
literária contemporânea. Nem a hipótese de aí se esboçar uma história do presente salva dos riscos da precariedade os artigos de jornal. De qualquer dos modos, quando Sérgio Buarque de Holanda
se debruça sobre o passado, depara o seu lugar de eleição e a matéria mais propícia ao exercício da sua inteligência crítica e da sua diversificada erudição.
Muitas outras questões suscitadas por O espírito e a letra deixam de
ser examinadas, pois ampliariam demasiado os limites deste artigo.
Além disso, tão-somente confirmariam a impressão de estarmos perante uma série de trabalhos indispensáveis para se delinear com clareza o perfil do seu autor, como também para se avaliar com mais
precisão a nossa atividade literária, e para se ter uma idéia dos movimentos de cultura no estrangeiro, entre 1920 e 1959.
189
Urbano Duarte, gravura da
época da fundação da Academia,
estampada na revista Ilustração
Brasileira, edição comemorativa
do cinqüentenário da ABL.
Ano XXIV, Número 140,
Dezembro de 1946, p. 93.
Urbano Duarte –
O fundador da
Cadeira 12
F er na nd o S a l e s
Infância na Bahia
A Chapada Diamantina, no sopé da Cordilheira do Sincorá, abrange
em sua longa extensão toda uma região do Estado da Bahia.
Essa região, composta de municípios de considerável área territorial, teve seu povoamento iniciado a partir de 24 de junho de 1844,
com o descobrimento dos primeiros diamantes à margem do rio
Mucugê, origem do arraial, vila, cidade, município e comarca do
mesmo nome. A notícia de tais achados espalhou-se celeremente pelos quatro cantos da província e norte de Minas, atraindo ao local,
num abrir e fechar de olhos, centenas e centenas de pessoas. No pequeno povoado que se ergueu na falda da serra, todo ele de casebres
de palha, não tardou que surgissem, como que por encanto, as primeiras casas de telhas, intermediárias das futuras construções de sólida alvenaria.
191
Poeta, crítico e
ensaísta. Além dos
livros de sua
autoria, Fernando
Sales organizou
obras e estudos de
autores baianos,
entre os quais
Afrânio Peixoto.
O texto aqui
publicado é o
primeiro capítulo
de livro, em
preparação,
reunindo artigos e
textos de Urbano
Duarte.
Fernando Sales
A gente que afluiu às novas minas diamantíferas, os primeiros a ali
chegar, foram moradores de Chapada Velha, pequeno povoado surgido dois anos antes sob o mesmo signo, e que, em virtude de dificuldades para sua extração e sua pequena produção, sobretudo pelo tipo fino
comumente encontrado, logo sucumbiu, o que, aliás, não raro acontece a todo e qualquer centro de mineração, quando exauridas as suas riquezas. Seus garimpos foram, pois, abandonados, transferindo-se
quase toda a população para Mucugê, de onde distava apenas cerca de
oitenta quilômetros. Do povoado de antanho, de ruas movimentadas,
comércio desenvolvido e amplo casario residencial, a Chapada Velha,
hoje em dia, pouco sobra do que foi: nas poucas casas centenárias que
lhe restam, residem pequenos lavradores de cana-de-açúcar e de café
que, nas horas vagas, por influência atávica “ainda tentam a sorte”, faiscando à beira dos córregos ou nos aluviões do sopé da serra.
A descoberta do diamante em Mucugê constituiu, pois, uma das
mais belas páginas da história social, econômica e política do Estado. Seu povoamento teve início a partir de 26 de julho de 1844, com
o descobrimento, pouco antes, dos primeiros diamantes à margem
do riacho que lhe deu o nome.
Inúmeras foram as famílias que se transferiram de suas raízes de
origem ao trombetear das riquezas dos novos garimpos para, ali,
plasmarem uma sociedade cuja tradição é orgulho de sua boa gente,
quer pela sua grandeza, quer pela herança de sentimentos e de caráter, de nobreza e de fidalguia que lhe foram legados.
Dentre os que emigraram da Chapada Velha para o Mucugê destacou-se, de logo, a figura respeitável do Tenente-Coronel Justiniano Duarte de Oliveira, que pouco tempo ali permaneceu rumando
para a comercial Vila dos Lençóis, criada pouco depois, na convergência das riquezas da Chapada.
Em Lençóis, cujo desenvolvimento foi muito mais rápido que em
outra qualquer das demais cidades da região, Justiniano Duarte de
192
Urba n o Du arte – O fu ndado r da C ade i r a 1 2
Oliveira exerceu vários postos de relevo, desde o de coletor-geral ao
de comandante superior da Guarda Nacional, substituído neste
quando dos acontecimentos políticos de 1868, data de seu afastamento da terra em que vivera durante mais de quinze anos e à qual
dera, como recompensa do muito que dela tanto recebera, os rebentos da família ali constituída, dentre os quais um que se tornou orgulho daquela gente, aquele que a honrou e tanto a dignificou – o escritor Urbano Duarte de Oliveira.
Por essa época, agravou-se a situação política de Lençóis, com a
luta aguerrida entre o Coronel Martins da Rocha, apoiado pelo
Coronel Antônio de Sousa Spínola e pelos irmãos Francisco Antônio de Athayde, deputado geral; e o Coronel Gonçalo do Amarante Costa, presidente da Câmara Municipal e homem que acionava
o dispositivo econômico de seu grupo, na tentativa de afastar do
poder aqueles que se instalaram no comando da terra e nele se enquistaram, de forma poderosa, constituído pelo Coronel Antônio
Gomes Calmon, de seu genro, Deraldo de Brito Gondim, do Coronel Justiniano Duarte de Oliveira, dos irmãos Ferraz Moreira, notadamente Aristides, que desempenhou o triste papel de vítima de
simulado atentado, fato que provocou grande celeuma na imprensa de Salvador e enérgicos e candentes pronunciamentos na Assembléia Provincial e na Câmara Geral, com apelos ao governo para
pacificar a conturbada cidade de Lençóis, centro dos mais importantes da vida social e econômica da província da Bahia. Deflagra-se, desse modo, o primeiro grande choque político nessa terra
que amargou durante anos a condição que lhe foi imposta de cenário de lutas entre facções ambiciosas de mando. Acossado pelos
adversários, impotente para reagir às terríveis pressões exercidas
pelos irmãos Athayde e pelo Coronel Martins da Rocha, o primeiro do grupo oposto a capitular foi o Coronel Justiniano Duarte de
Oliveira.
193
Fernando Sales
Contava meu bisavô, Dr. Domingos Gomes de Azevedo, que o
primeiro decênio de povoamento dos Lençóis, à véspera de sua elevação à vila, foi acontecimento para ser lembrado, como de fato o
foi, durante muitos anos, na história da Chapada Diamantina.
Coincidiu essa festança com o nascimento do menino Urbano,
no sobradinho que seu pai, o coletor-geral Justiniano Duarte de Oliveira, acabara de construir na Avenida Sete de Setembro, fato que se
constituiu na melhor lembrança daquele réveillon. Entre risos, bailados de rua, trajes natalinos, o gemer de harmônicas e repenicados de
viola, a gente do então povoado manifestava o seu contentamento
naquele dia tão significativo do ciclo natalino.
Nesse ambiente de festa, de ruído, de alegria, nascia Urbano Duarte. Naquele instante, a terra, como numa previsão profética, saudava o pequeno rebento, exatamente aquele que viria a ser um de
seus mais ilustres conterrâneos.
Num universo de festa coletiva, nascera o bem-humorado jornalista de tão variadas colunas da imprensa carioca, o escritor que em
fim de tarde reunia-se com vários outros companheiros da arte de
escrever, tais como França Júnior, por ele escolhido para ser seu patrono na Academia Brasileira de Letras, Bilac, Coelho Neto, Paula
Ney, Guimarães Passos, Max Fleiuss, Pardal Mallet e outros seus
contemporâneos, notadamente na Confeitaria Colombo, bares e cafés situados no centro da cidade, próximos às redações dos jornais
em que trabalhavam: Ouvidor, Gonçalves Dias, Sete de Setembro e
Assembléia. Ali permaneciam até o cair da noite, em fins de tarde
que a todos alegravam e que se inspiravam, principalmente, em fatos
do cotidiano.
O ensino primário ele o fez em prédio que até há pouco tempo resistiu a sanha da reforma urbana, no que soube sua terra natal resistir, legando-nos um belo casario. A casa onde cursou as primeiras letras, na Rua da Baderna, próxima de sua residência, coincidentemen194
Urba n o Du arte – O fu ndado r da C ade i r a 1 2
te foi a mesma em que a professora Maria da Purificação, irmã do vigário da Freguesia, foi a professora que o menino Afrânio Peixoto,
quase vinte anos depois, seria o mais destacado aluno. São traçados
do destino aos quais conduz a vida.
Assim, o pequeno Urbano teve os primeiros anos de infância povoados pelas aulas da Escola Municipal instalada pela Intendência
Municipal, no nascer da cidade que crescia e chamava a si, principalmente, a programação da festa do Dois de Julho, data comemorativa
da Independência da Bahia, além de comemorações outras, de caráter popular, do calendário cívico e litúrgico, tais como a novena e
procissão de Senhor dos Passos, padroeiro dos garimpeiros de Lençóis, a 2 de fevereiro; a unção religiosa da Semana Santa; o Mês de
Maria, em maio; mas, além dessas efemérides do agiológio romano,
a vila quase cidade, a datar de 1864, vibrava de modo especial no
mês de junho, período em que a trezena de Santo Antônio, de 1 a
13, a novena de São João, de 16 a 24, e o tríduo de São Pedro, de 27
a 29, ressoavam pela noite fria.
Até a idade de nove anos, Urbano viveu com a família em Lençóis. Em seguida transferiu-se para Salvador, a fim de cursar Humanidades em colégio tradicional.
Numa madrugada, quando a barra do dia riscava de vermelho o
azul do céu e fugia no horizonte, Urbano, nos seus nove anos, acordou e correu para a sacada do sobradinho onde nascera, naquela manhã em que viajaria para a capital da província. Olhou em derredor:
quase à frente de sua casa, o velho sobrado da Câmara Municipal, o
primeiro edifício público construído na cidade, recentemente inaugurado. A emancipação do município, lembrava-se bem, fora em
1864. Muita festa, da qual participou o menino que seria o grande
escritor e jornalista.
A cavalgada desceu a Praça do Comércio a caminho do Lavrado,
no rumo de Andaraí, onde seriam hóspedes do Coronel Brás Ribei195
Fernando Sales
ro, político e grande amigo do Coronel Justiniano. No segundo dia
de viagem almoçaram na Fazenda Mucambo, de Antônio José de
Lima, alcançando o povoado de Tamanduá. Só no terceiro dia chegaram à estação de Queimadinhas, de onde Urbano partiria de trem
para São Félix e, dali, para Salvador. Uma longa viagem de quatro
dias.
Fora esta a última vez que viu Lençóis, pois de Salvador seguiu
para o Rio de Janeiro, após os preparatórios no Colégio do Dr. Abílio. Ali chegara quando aquele educandário ainda se encontrava sob
o influxo e prestígio da turma que o antecedera e de tantos outros
que o grande professor preparara para o renome de sua província.
Mas o garoto Urbano era por demais levado. Fazia ironia de tudo e
de todos. Isto lhe valeu, certa vez, aplicação de castigo que consistia
em permanecer de pé, sobre um banco, durante horas, à porta principal do Colégio, de costas para a rua. Era tradição corrente, em todas
as classes, que aquele castigo havia sido imposto a Rui Barbosa, por
isso outra não foi a reação de Urbano, ao lhe ser aplicada aquela medida disciplinar, a não ser, entre um sorriso e o seu reconhecido bom
humor, exclamar:
– Ora, mas se o Rui sofreu igual castigo, quanto mais...
Assim era Urbano Duarte. Fez humorismo durante toda a vida.
Na Escola Militar, após concluir o curso de Artilharia, seguiu carreira, galgando todos os postos do Exército até o de tenente-coronel,
tendo sido preparador de Gabinete de Química da Escola Superior
de Guerra.
Desde jovem, porém, dedicou-se à faina literária, conquistando,
por justiça, notoriedade no campo das lides intelectuais. Viveu na
sua imensa modéstia e o riso foi a sua arma para corrigir os costumes, segundo o que já sentenciara Nietzsche: “Rir é ser malicioso
com alguma condescendência.” E assim viveu Urbano, com bonomia nas rodas boêmias, nos meios de alegria espiritual, fazendo iro196
Urba n o Du arte – O fu ndado r da C ade i r a 1 2
nia, zombando dos costumes de sua época, impiedosamente malhando o vedetismo de seu tempo. Nasceu em dia de festa, de alacridade, ao espocar de foguetes e rojões. Passou pela vida a rir, a fazer
rir, a ferir, por meio do riso, por meio de estocadas de inteligência, o
fim de uma era de corrupção generalizada.
Durante sua vivência em Salvador, colaborou no Diário Popular,
cujo diretor era o seu grande amigo, Dr. Augusto Álvares Guimarães, casado com D. Adelaide Castro Alves, irmã de Castro Alves, a
quem prestou excelente colaboração. Foram os seus contemporâneos durante o tempo da capital baiana Rui Barbosa, em 1849, Benício de Abreu, em 1848, Aristides Milton e outros notáveis vultos.
Desde que partiu para o Rio de Janeiro não há registro de sua presença na Bahia, especialmente em Lençóis. A então Capital Federal,
com as suas atrações e encantos de metrópole, deve ter fascinado o
estudante provinciano, que logo se entrosou na vida carioca, ao lado
das obrigações de natureza estudantil. Lençóis, entretanto, não o esqueceu: além de seu nome em uma de suas principais ruas, é o patrono da Biblioteca Municipal.
Do pouco que lhe ficou na mente da cidadezinha em que viera ao
mundo restaram algumas expressões do linguajar local, em seu singular balbucio, vez por outra assinalado nas centenas de textos que
deixou e, agora, praticamente esquecidos. Só no agravamento da
moléstia que o levou ao túmulo, quase agonizante, ao lusco-fusco da
lembrança através da janela aberta de seu quarto de enfermo, viria,
sim, recordar o azulado da serra abrigando vida afora seus conterrâneos tão simples, a terra e sua gente garimpeira.
No Rio de Janeiro
Urbano Duarte pertenceu a uma geração de boêmios, embora
esse vocábulo em seu tempo não tivesse a expressão corrente dos
197
Fernando Sales
dias de hoje. Foi ele um boêmio de espírito, impenitente, irônico
sem fazer zombaria, caricaturista da palavra, sem dela se utilizar para
ferir, além do lampejo da inteligência; fez a charge escrita, enquanto
Ângelo Agostini usava o seu famoso pincel para retratar a claudicante ação política do Império que expirava ou fazia com que as suas
tintas corressem as mazelas da sociedade de então, constituída sobre
a base econômica do suor escravo a regar os campos de café do Sul;
os imensos canaviais do Nordeste e da Baixada Fluminense; as margens dos rios e as áreas de mineração de Minas e Bahia, inclusive no
côncavo do vale da Chapada a erguer-se como uma taça para recolher o suor derramado na encosta da cordilheira de sol a sol, fundamentando o poder de poucos como qualidade básica para o exercício do comando das comunidades que aqui se formavam.
Urbano Duarte, ao adotar o humorismo em sua prosa, ridicularizava, vergastava costumes absolutamente inatuais, pois já eram superados os princípios da infra-estrutura da sociedade brasileira, reformulados com o advento da Abolição e da República. É, pois, de justiça que se proponha a revisão da obra de Urbano Duarte. Teve ele
papel preponderante na crítica dos costumes de uma época da sociedade brasileira, além do seu merecimento puramente literário quanto à forma, ao estilo e à linguagem de sua obra.
Foi um dos precursores do humorismo na mais ampla conceituação de forma literária. Sua obra, contudo, não se filia à Escola Picaresca, que teve nos espanhóis Miguel de Cervantes, Diego Hurtado
de Mendonza e Ramón Jimenez suas figuras mais representativas e
que têm sido, pelos tempos afora, modelos insuperáveis na vária
concepção criadora do espírito de outros povos. Filia-se Urbano
Duarte também à prosa de sabor irônico e de forma concisa dos humoristas ingleses, notadamente Stern e Swift. Teve ele, como influência, como o indicam diversos aspectos de sua pequena mas homogênea e disciplinada bagagem, a figura de José Joaquim França
198
Urba n o Du arte – O fu ndado r da C ade i r a 1 2
Júnior, modelo que lhe inspirou o título da seção que manteve, durante anos, no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro. Ambos publicaram seu folhetim versando tipos, costumes, reflexos do dia-a-dia da
cidade de São Sebastião, dela fizeram deliciosa crônica, atual nos
dias que correm porque é literatura de todo o tempo.
A acentuada ascendência de França Júnior não ficou apenas na
pura e simples denominação da coluna diária de Urbano Duarte. O
teatro dos dois também muito se assemelha na organização do elenco, no pano de fundo e desfecho dramático. Justifica-se a influência
não só pela contemporaneidade dos dois espíritos, admiradores entre si e presos por laços de grande amizade, mas principalmente pela
novidade no campo literário, como que a satirizar o Romantismo, já
agonizante, ou os decadentes e esgotados escritores franceses daquele movimento.
Do grupo que freqüentava, Urbano Duarte ligara-se mais, inegavelmente, a Artur Azevedo, seu co-autor em várias peças teatrais. O
jornalista foi, sem duvida, um escritor a quem a imprensa absorveu.
E o fez de maneira tenaz, impiedosa, sacrificando-lhe a nascente e
vitoriosa carreira literária, para prendê-lo em seus liames, em seus
tentáculos, sugando-lhe a seiva literária, dela servindo-se para abrilhantar a matéria de colaboração e mesmo de redação, em troca de
minguados mil-réis. A par da sua atividade na imprensa, realizava
abnegado e paciente sua obra literária, versando o teatro, a crônica, o
ensaio literário, gêneros esses em que se destacou, embora os tenha
realizado em função do jornal. Homem de imprensa, profissional
dos mais categorizados, foi isso que Urbano Duarte realmente representou. Seu livro Humorismos, publicado em 1892 sob o pseudônimo de J. Guerra, é a reunião de algumas de suas mais deliciosas
crônicas, publicadas sob a denominação genérica de folhetins. Suas peças, duas das quais publicadas em volume, foram encenadas em alguns dos melhores teatros do Rio de Janeiro, principalmente o Fê199
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nix. Os ensaios literários, ainda sepultados em coleções de jornais e
revistas, são há algum tempo objeto de pesquisa que venho empreendendo, visando a uma seleção e conseqüente publicação em volume,
com introdução, notas, cronologia, documentário iconográfico e indicações outras.
Em colaboração com Alfredo Ernesto Jacques Ourique traduziu
A educação moral do soldado, obra que foi atribuída como de sua autoria,
e com o Coronel Fernandes Veiga escreveu O livro do soldado. No
campo teatral, além de sua famosa peça O escravocrata, publicada em
1884 e encenada durante algum tempo, constituindo-se em sucesso,
deixou-nos O anjo da vingança, Onde está a felicidade?, Os gatunos, tendo
traduzido com Azeredo Coutinho a ópera burlesca A princesa Trebison.
Na imprensa, a par de sua colaboração em O País, compareceu assiduamente nas páginas da Revista Musical e de Belas Artes, Revista da Fênix
Dramática, Correio do Povo, A Gazetinha, Jornal do Commercio e na Revista
Brasileira, onde publicou “O Naturalismo”e “D. Quixote”, dois dos
seus melhores ensaios literários.
Quando da criação da Academia Brasileira de Letras, em 1897,
foi Urbano Duarte um dos convidados para integrar aquele cenáculo de homens da mais alta categoria intelectual do país. Ali, escolheu
como patrono de sua cadeira, a de no 12, aquele que não poderia deixar de ser homenageado: José Joaquim França Júnior. Consubstanciou-se, assim, a velha amizade e, sobretudo, a influência nele exercida
por aquele saudoso escritor.
Na recém-criada Academia Brasileira, então situada no Silogeu
Brasileiro, Urbano Duarte pouco pôde dar de si. A freqüência, assim
mesmo, foi algumas vezes interrompida por afazeres que lhe asseguravam a subsistência e a de uma família de mulher e cinco filhos.
Seu bom humor, entretanto, não se alterava ante as dificuldades
de natureza econômica. Reunia-se, ao cair da tarde, nos cafés da Rua
Gonçalves Dias e, entre versos de Guimarães Passos, Olavo Bilac,
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Alberto de Oliveira, trechos da prosa de Coelho Neto e Pardal Mallet, deixas teatrais de Artur Azevedo e a palavra candente de José do
Patrocínio, Urbano, entre um sorriso e um trocadilho, desafiava o
mau tempo financeiro existente sobre a roda de intelectuais. E no
começo de noite, depois de passar pelo jornal, apanhava o seu bonde
para São Cristóvão e batia em retirada.
A morte do jornalista
O século XX encontrou Urbano Duarte com a saúde abalada.
Todavia participou, com a alegria e o entusiasmo de sempre, das manifestações de euforia da entrada do novo século. A moléstia pertinaz que o vitimou, continuava, contudo, a minar-lhe as energias orgânicas, exigindo-lhe a duras penas esforço que lhe agravava o estado
de saúde, pois necessitava manter-se em condições de assegurar o
sossego à família. Em novembro de 1901, Urbano, já acamado, remete à Redação de seu jornal a matéria a que estava obrigado e da
qual lhe resultava o ganha-pão ou, pelo menos, recursos suplementares ao orçamento, cuja despesa crescia dia a dia. O 46o aniversário já
o encontrava presa de terrível inquietação, pois o seu estado de saúde
agravava-se, reduzindo-lhe as resistências, o poder criador e a disposição de trabalho. Era enorme a sua preocupação em defender o sustento da família.
Chega o Carnaval de 1902. As batidas do bombo bombardeiam o
silêncio da cidade. Os clubes mantêm em seus salões os bailes
pré-carnavalescos, àquela altura chamados de Máscaras. O Sábado
Gordo encontra Urbano Duarte em estado pré-agônico. Raia o Domingo de Carnaval. Grupos de foliões desfilam pelas ruas de São
Cristóvão a caminho da cidade. Pelas janelas abertas de sua casa, situada no imperial bairro, assistido por médicos amigos, tendo à cabeceira os velhos e diletos companheiros, aqueles mesmos das noita-
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das da boemia, dos cafés e bares do centro da cidade, Urbano Duarte
ainda respira, ofegante, preocupando os familiares. A cidade vibra,
sacudida pelo saracoteio do samba, dos grupos ainda não coordenados pela denominação de Escola de Samba.
Era o Carnaval ainda sem a preocupação das pompas oficiais, autêntico na sua mais nítida expressão. No seu avanço avassalador, porém, não conseguia contagiar a todos, pois nem todos se dispunham à
arrancada da marcha infrene do tríduo momesco. Era assim, também,
Urbano Duarte. Completamente alheado a tudo aquilo, indiferente às
fanfarras da mascarada, através de um crepúsculo cinzento como deve
ser o da memória que entardece, voltada para as magoadas montanhas
longínquas de sua terra, e agonizante, recebia nos beijos reais da esposa e dos filhos, já àquele momento viúva e órfãos, a extrema-unção do
imaginário beijo materno, ouvindo a sorrir e, também a expirar, a cantilena monótona dos garimpeiros do Sincorá...
Naquele amanhecer de Terça-Feira Gorda, a cidade despertara
como que eletrizada a um toque de tambor. Blocos passavam pelas
ruas do velho bairro imperial de São Cristóvão. Fanfarras, blocos de
foliões riscavam ruas afora em busca do Centro da Cidade, da Praça
Onze e da Avenida Central. Aos gritos de “Evoé!”, “Viva Momo”,
chegou o Carnaval:
Viva o Zé Pereira
Viva o Carnaval
Viva o Zé Pereira
Que a ninguém faz mal.
Passou Chiquinha Gonzaga à frente de um Cordão, cantando, retumbantemente, o seu “Abre alas” e o povo saltitava berrando estrondantemente.
Numa casa do bairro de São Cristóvão rostos tristes olhavam,
através da vidraça, aquele frenesi de bandos de mascarados. Naquela
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casa, onde a tristeza e lágrimas contrastavam com tamanha esfuziante manifestação de alegria, um homem, aparentando menos de 50
anos, estava estirado no sofá da sala de visitas, olhos cerrados, mãos
entrecruzadas sobre o peito. Era Urbano Duarte. O calendário assinalava 10 de fevereiro de 1902.
No calendário de sua existência carioca, além do cotidiano ir e vir
da Escola Militar, por onde se diplomara Engenheiro Militar e atingira o posto de tenente-coronel do Exército, Urbano Duarte passava
pela Redação do Jornal do Commercio, na esquina da Avenida Central
com a Rua do Ouvidor, onde escrevia a sua crônica, os artigos e as
historinhas, estas de sua criação e logo adotadas por Waldomiro Silveira, Martim Francisco e, mais recentemente, por Stanislaw Ponte
Preta, Nelson Rodrigues, José Cândido de Carvalho, além de outros. Urbano Duarte foi, portanto, o criador ou um dos criadores da
historinha, gênero hoje tão em voga.
Esquecido por alguns, desconhecido por outros, Urbano Duarte
nem por isso deixa de ter o seu lugar de relevo em nossa história literária. Foi ele, por sua farta colaboração em algumas das nossas principais folhas, quem chamou a atenção para vários dos grandes vultos
que então surgiram na literatura brasileira, tendo sido autor da famosa frase “Romancista ao Norte!”, saudando o aparecimento de O
mulato, de Aluísio Azevedo.
No céu – se existe, lá é a sua moradia – Urbano continua a sorrir,
a fazer sorrir, a ironizar este mundo-de-meu-Deus... Nasceu em dia
de folguedo, entre o estrepitar de foguetes, o toque festivo dos sinos
da igreja de Nossa Senhora do Rosário e da capela do Senhor dos
Passos. Nasceu em dia de festa, num 31 de dezembro, fim de ano,
começo de ano novo, quando a cidade fremia de esperança no calendário. Bailes pastoris desfilavam pelas ruas descendo do Alto da
Estrela, ao longo da Boa Vista, em direção ao largo em que se iniciara a construção da igreja da Conceição. O bumba-meu-boi, partindo
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do Alto de São Félix, rumava em direção à Praça do Mercado, onde
uma multidão compacta, infrene, ainda sob o impacto da confraternização movida pelo impulso do afluxo à riqueza fácil, festejava ruidosamente o novo ano que nascia. Os negros desciam da rua onde se
reuniam e formavam o seu pequeno mundo, a sua colônia, e espalhavam-se pela Rua São José, em direção ao Lavrado, e ao som dos atabaques, dos agogôs, do batuque em homenagem a seus orixás, também participavam daquele instante de alegria coletiva. A Rua da Baderna, esta, nem era bom lembrar...
Urbano nascera num dia de festa e era como se tivesse escolhido
uma outra festa popular para despedir-se do mundo. Escolheu outra
data de alegria coletiva: o Carnaval. Situou, pois, sua vida entre duas
datas que o levariam a extravasar sua existência alegre e plena de bonomia...
O Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, no registro das sessões da
Academia Brasileira de Letras, que durante muitos anos ali publicava
suas sessões, noticiou uma sessão especial dedicada à passagem do
centenário de nascimento de Urbano Duarte como tendo ocorrido a
2 de janeiro de 1855.
Nós, que estávamos a aguardar a data para homenagear o conterrâneo de Lençóis nessa oportunidade, discordamos da comemoração feita pela Academia a um de seus fundadores. Fomos
consultar um encarregado da Casa, que não só confirmou a efeméride como se propôs a mostrar-nos o Livro de Assentamentos
dos acadêmicos, onde estava lançada a data de 2 de janeiro de
1855, com o que não concordamos: por isso à época procuramos
falar com o Embaixador Macedo Soares no seu primeiro regresso
de São Paulo.
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A data que dispúnhamos em nosso arquivo da Chapada Diamantina assinalava o nascimento de Urbano Duarte a 31 de dezembro
de 1855. Portanto, a Academia festejava a efeméride com quase um
ano de antecedência. Publicamos, então, uma matéria nos Diários
Associados, chamando a atenção do transcurso do centenário de
nascimento do escritor e jornalista que deixou obra pequena, mas de
reconhecida originalidade.
Pedro Calmon e diversos outros estudiosos de nossa história literária fixam o local de seu nascimento como tendo sido a cidade de
Lençóis, na Chapada, e a data de 31 de dezembro de 1855. Sacramento Blake, por sua vez, faz constar na pág. 331 de seu Dicionário bibliográfico brasileiro, vol. VII, edição de 1902: “Nascido na Chapada
em 1850”, tumultuando ainda mais informes por si já tão discutidos. Não conseguimos, no entanto, apurar quais as fontes de que se
valeram esses autores.
Augusto de Lima, ao ocupar sua cadeira na Academia, acentua:
“Ao Carnaval sacrílego ficava um corpo sem vida... e esta foi a sua
última ironia.” No instante em que se inaugurou na cidade de Lençóis a Biblioteca Municipal Urbano Duarte, entre o aplauso e o respeito da comunidade, a casa de seu nascimento foi por nós situada
depois de longa pesquisa. Tudo isso começou com o dado veiculado
por um seu co-estaduano e confrade, Augusto Sacramento Blake, e
vagamente citado por Augusto de Lima.
Folheei dicionários bibliográficos, notadamente dediquei-me a
consultar a história da Chapada e arredores, já que havia localizado o
Coronel Justiniano Duarte de Oliveira, coletor-geral em Lençóis,
pouco antes de a vila passar a cidade em 1864. Ainda mais: de informação em informação localizei o prédio em que Justiniano residira
ao alvorecer da década de 1850, construção por ele feita e da qual
tornou-se o primeiro ocupante. Estava desfeito o mistério. Para
melhor situar-me, localizei um filho de Urbano Duarte, Frederico
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Duarte de Oliveira, consultor jurídico do Ministério da Aeronáutica, que durante almoço íntimo em sua residência, na Tijuca, apresentou-me a seus irmãos, aos quais transmitiu as minhas providências sobre a comemoração do centenário de seu pai. Foi um sábado
agradável, depois da missa celebrada na igreja da Candelária, com a
presença de alguns acadêmicos e de baianos que reuni, invocando a
minha condição de Diretor da Casa da Bahia. Matara-se a charada.
O registro de Artur Mota, ao consignar vagamente haver nascido
Urbano Duarte na Chapada a 2 de janeiro de 1855, informação esta
constante no Livro de Assentamentos da Academia Brasileira de Letras, não tinha, como vemos, razão de subsistir.
Enquanto a Academia Brasileira de Letras, fiel à vaga informação
de Artur Mota, comemorou o centenário de Urbano Duarte de Oliveira na data que seus registros erroneamente assinalam, em sessão
em que foi orador o então ocupante da Cadeira 12, o ilustre historiador e ensaísta Embaixador José Carlos de Macedo Soares, e da qual
foi fundador Urbano Duarte, a cidade de seu nascimento o fez no II
Congresso de Educação e Cultura, de cunho municipal ali realizado,
do que se depreende a predominância de aceitação dos informes que
o dão como nascido a 31 de dezembro de 1855.
Registremos, aqui, além da criação da Biblioteca Municipal
Urbano Duarte, a iniciativa da Câmara Municipal de Lençóis para
que se denominasse Urbano Duarte a Rua da Boa Vista, que liga o
centro da cidade aos bairros Lava-Pés e Alto da Estrela, dos mais
tradicionais da cidade.
Urbano Duarte é uma lembrança permanente na cidade que o viu
nascer.
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