APRESENTAÇÃO
UM CANTO PARA O CENTENÁRIO
APRESENTAÇAO
Um canto para o centenário
Estamos às vésperas do ano de 2022, ano do centenário de nascimento de José Saramago.
Nascido a 16 de novembro de 1922, podemos dizer, sem erro, que a partir do próximo dia 17 de
novembro já podemos abrir o tempo das esperadas comemorações.
Uma comemoração in absentia? Não será bem assim. Porque as vidas deixam marcas,
criam lastros, e continuam presentes, quando foram vividas com dignidade, com compromisso,
deixando atrás de si uma trajetória de superações – quase inverossímil – que fizeram do menino,
filho e neto de camponeses, que comprou seu primeiro livro aos 17 anos, o primeiro prêmio
Nobel de Literatura em língua portuguesa. A Biblioteca do Palácio Galveias, em Lisboa, guarda
a lembrança de um jovem visitante que lá ia quase diariamente, após o colégio ou o trabalho,
para aceder aos livros que a sua curiosidade ia aleatoriamente apontando, a ponto de a sua ficha
de leitor já não precisar voltar aos ficheiros, ficando lá, à sua espera, até o dia seguinte.
Sem precisar de qualquer garantia de sobrevivência em espaços transcendentes, é mesmo
aqui, na terra, que José Saramago ficará sempre como memória viva. Debaixo da azinheira
plantada no pátio da frente da Casa dos Bicos – agora Fundação José Saramago – estão parte
das suas cinzas. E uma frase memorável está inscrita ao longo do calçamento: “Mas não subiu
para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda”. Somos todos os que o conheceram em
seu combate em nome da justiça e da liberdade do homem no mundo – palestinos, sem-terra,
migrantes –, somos todos os que o leem e continuarão a lê-lo, uma espécie de Blimunda, que
guarda consigo a vontade desse Baltasar / José, para que ela frutifique num mundo carente de
utopias.
Este número da Revista Metamorfoses da Cátedra Jorge de Sena da Universidade
Federal do Rio de Janeiro é uma homenagem a José Saramago através de uma reunião de
vozes, etimologicamente uma sinfonia, para celebrar o seu centenário. É um número temático
inteiramente dedicado a ele. São vozes afinadas, de tonalidades variadas, mais experientes ou
mais jovens, que repassam seduzidas os textos que ele deixou: os romances – Levantado do
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Metamorfoses, Rio de Janeiro, vol. 17, número 2, p. 15-17, 2021
Um canto para o centenário
André Corrêa de Sá e Teresa Cerdeira
chão, Memorial do Convento, O ano da morte de Ricardo Reis, Evangelho segundo Jesus
Cristo, Ensaio sobre a cegueira, Todos os nomes, A caverna, Ensaio sobre a lucidez, incluindo
o texto inacabado Alabardas alabardas, espingardas espingardas. Mas não só: porque essas
vozes recuperam também os contos, as crônicas, os Cadernos de Lanzarote, As pequenas
memórias. São leituras que ora fazem dialogar o texto de Saramago com o de outros autores
– Borges, Herman Broch, Tomasi di Lampedusa – em exercício comparatista, ora relançam
certas constantes da sua obra, como a presença do maravilhoso ou do insólito. Retomam
reiteradamente, ainda, a questão da ética, agudizada num presente que tornou universalizante a
ameaça da morte, seja pela pandemia, seja por outras doenças morais e políticas que ameaçam
os refugiados, submetidos não só às guerras ou às calamidades climáticas, mas também à
absurda negligência dos países em que buscam acolhimento.
Na introdução de Terra, álbum de fotografias de Sebastião Salgado, com poemas e
música de Chico Buarque, escrevia Saramago, em modo de irônica narrativa do Gênesis, que
os homens se haviam esquecido “de que sendo a morte de todos, a vida também o deveria ser”.
E não foram poucos os momentos em que ele conclamou os Estados e os seus governantes,
tão ciosos de terem elaborado, enfim, depois da grande hecatombe da segunda guerra mundial,
a carta magna da Declaração Universal dos Direitos do Homem, a não se esquecerem de que
ela não era tudo, pois “nenhuns direitos poderão subsistir sem a simetria dos deveres que lhes
correspondem, o primeiro dos quais será exigir que esses direitos sejam não só reconhecidos,
mas também respeitados e satisfeitos”(Estocolmo, 10/12/1998).
Ainda em Estocolmo, quase ao fim do discurso na Academia Sueca, pronunciado a 7
de dezembro de 1998, José Saramago afirmava ter escrito o Ensaio sobre a cegueira, “para
recordar a quem o viesse a ler que usamos perversamente a razão quando humilhamos a vida,
que a dignidade do ser humano é todos os dias insultada pelos poderosos do nosso mundo, que
a mentira universal tomou o lugar das verdades plurais, que o homem deixou de respeitar-se
a si mesmo quando perdeu o respeito que devia ao seu semelhante”. Tal como o fizera Albert
Camus, no mesmo espaço e na mesma celebração, José Saramago assumia não temer a proposta
– aparentemente fora de moda – de uma função ética e social para a arte.
Os textos que fazem parte desta edição são as vozes de um canto para o centenário. Há
sopranos e contraltos e baixos e meios sopranos, há por vezes o paralelismo de um cânon,
há vozes maduras e jovens vozes, mas o que ressalta é mesmo uma harmonia, um desejo de
memória, uma celebração.
Não podemos encerrar sem agradecimentos especiais a Pilar del Río, que aceitou
contribuir com este número on-line da Revista Metamorfoses (eis aí um dos lados positivos da
perda da impressão em papel), enviando, a nosso pedido, uma visita filmada pela Fundação José
Saramago, de que ela é orgulhosamente a presidenta. E o fez nada mais nada menos que com
o apoio do cineasta Miguel Gonçalves Mendes, aquele mesmo que filmou José e Pilar, e que
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Um canto para o centenário
André Corrêa de Sá e Teresa Cerdeira
aceitou o desafio de um trabalho produzido em pouquíssimos dias, a fim de que pudesse integrar
também a cena de abertura de uma mesa-redonda em homenagem a José Saramago, realizada
em julho deste ano, no âmbito das realizações culturais do Real Gabinete Português de Leitura.
A série denominada “Luso-Brasilidades: práticas e trânsitos”, coordenada pela Professora Gilda
Santos, Vice-Presidenta dessa instituição reconhecida em várias partes do mundo como difusora
da cultura portuguesa, contou ainda com uma entrevista informal, em modo de conversa e de
evocação pessoal e literária, com o Professor Carlos Reis, da Universidade de Coimbra, amigo
do autor e um de seus mais agudos leitores. Esse material audiovisual, com o perdão do termo
arcaizante, que havia sido pensado anteriormente pelos dois coordenadores deste número da
Revista Metamorfoses – André Corrêa de Sá (UCSB) e Teresa Cerdeira (UFRJ) – retorna agora,
cedido pelo Real Gabinete, ao espaço da revista, como um hiperlink que a modernidade nos
faculta. Afinal, é dessas alianças que a difusão da cultura se nutre.
Quanto ao mais, os textos estão aí, oferecidos à leitura, como um complemento à já imensa
bibliografia sobre o autor. É o contributo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, através
da Cátedra Jorge de Sena, e da Universidade da Califórnia Santa Barbara que, numa aliança de
recíproca generosidade, se dispõem a abrir as comemorações do centenário de nascimento de
José Saramago.
Rio de Janeiro / Santa Barbara
Setembro de 2021
Teresa Cerdeira e André Corrêa de Sá
Metamorfoses, Rio de Janeiro, vol. 17, número 2, p. 15-17, 2021
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