ORGANIZADORES
Franciane Hasse
Regiane Nistler
Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino
DIÁLOGOS FUNDAMENTAIS
ENTRE DIREITO E DEMOCRACIA
AUTORES
André Frandoloso Menegazzo
Angela Araujo da Silveira Espindola
Bruna Adeli Borges
Bruno Ortigara Dellagerisi
Carolina Camargo
Fabrisia Franzoi
Fausto Santos de Morais
Fernanda Andrade
Franchesco Maraschin de Freitas
Franciane Hasse
Gabriela Natacha Bechara
Giulia Signor
Horácio Wanderlei Rodrigues
Jaqueline Mielke da Silva
Joacir Sevegnani
José Paulo Schneider dos Santos
Larissa Borges Fortes
Leandro Caletti
Luís Francisco Simões Boeira
Neuro José Zambam
Priscila Prux
Regiane Nistler
Salete Oro Boff
Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino
Silvia Helena Arizio
ISBN: 978-85-7696-191-8 (e-book)
Reitor
Dr. Mário César dos Santos
Vice-Reitora de Graduação
Cássia Ferri
Vice-Reitor de Pós-Graduação, Pesquisa,
Extensão e Cultura
Valdir Cechinel Filho
Vice-Reitor de Planejamento e
Desenvolvimento Institucional
Carlos Alberto Tomelin
Procurador Geral da Fundação UNIVALI
Francieli Cristina Tirelli Pereira
Diretor Administrativo da Fundação UNIVALI
Renato Osvaldo Bretzke
Organizadores
Franciane Hasse
Regiane Nistler
Sérgio Ricardo Fernandes De Aquino
Autores
André Frandoloso Menegazzo
Angela Araujo da Silveira Espindola
Bruna Adeli Borges
Bruno Ortigara Dellagerisi
Carolina Camargo
Fabrisia Franzoi
Fausto Santos de Morais
Fernanda Andrade
Franchesco Maraschin de Freitas
Franciane Hasse
Gabriela Natacha Bechara
Giulia Signor
FICHA CATALOGRÁFICA
Horácio Wanderlei Rodrigues
Jaqueline Mielke da Silva
Joacir Sevegnani
José Paulo Schneider dos Santos
Larissa Borges Fortes
Leandro Caletti
Luís Francisco Simões Boeira
Neuro José Zambam
Priscila Prux
Regiane Nistler
Salete Oro Boff
Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino
Silvia Helena Arizio
Capa
Alexandre Zarske de Mello
Diagramação/Revisão
Nathalia Batschauer D’Avila
Comitê Editorial E-books/PPCJ
Presidente
Dr. Alexandre Morais da Rosa
Diretor Executivo
Alexandre Zarske de Mello
Membros
Dr. Bruno Smolarek Dias
Dr. Clovis Demarchi
Dr.. José Everton da Silva
Dr. Liton Lanes Pilau Sobrinho
Dr. Márcio Ricardo Staffen
Créditos
Este e-book foi possível por conta da
Editora da UNIVALI e a Comissão Organizadora
E-books/PPCJ composta pelos Professores
Doutores: Paulo Márcio Cruz e Alexandre
Morais da Rosa e pelo Editor Executivo
Alexandre Zarske de Mello.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ................................................................................................................................... 6
PREFÁCIO.............................................................................................................................................. 9
Leilane Serratine Grubba ................................................................................................................. 9
INCENTIVOS FISCAIS E desenvolvimento sustentável ....................................................................... 10
André Frandoloso Menegazzo ....................................................................................................... 10
Salete Oro Boff ............................................................................................................................... 10
A JURISDIÇÃO COMO INSTITUIÇÃO INDISPENSÁVEL PARA A PRÁTICA DEMOCRÁTICA E PARA A
CONCRETIÇÃO DOS DIREITOS COLETIVOS ......................................................................................... 31
Angela Araujo da Silveira Espindola ............................................................................................... 31
Jaqueline Mielke da Silva ............................................................................................................... 31
ATUAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE ACERCA DO DIREITO SOCIAL AO LAZER E A IMPORTÂNCIA
DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL............................................................................................. 53
Bruna Adeli Borges ......................................................................................................................... 53
Silvia Helena Arizio ......................................................................................................................... 53
A ÁRDUA E COMPLEXA ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO PARA MANTER FORTE O ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO NO BRASIL ............................................................................................. 69
Franciane Hasse ............................................................................................................................. 69
Fabrisia Franzoi .............................................................................................................................. 69
A REPERCUSSÃO DAS ESCOLAS EXEGÉTICA E NORMATIVISTA NOS FUNDAMENTOS DO DIREITO:
CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES À CONCEPÇÃO DO MODELO CONSTITUCIONALISTA ................... 87
Fausto Santos de Morais ............................................................................................................... 87
Bruno Ortigara Dellagerisi .............................................................................................................. 87
José Paulo Schneider dos Santos ................................................................................................... 87
O DIREITO DOS ANIMAIS E A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ......................................................... 117
Fernanda Andrade........................................................................................................................ 117
Neuro José Zambam..................................................................................................................... 117
A PREVIDÊNCIA SOCIAL E OS IMPACTOS DA TERCEIRIZAÇÃO ......................................................... 142
Franchesco Maraschin de Freitas ................................................................................................ 142
PODER JUDICIÁRIO E ATOS INSTITUCIONAIS NA DITADURA MILITAR BRASILEIRA ......................... 158
Gabriela Natacha Bechara ........................................................................................................... 158
Horácio Wanderlei Rodrigues ...................................................................................................... 158
A SOLIDARIEDADE SOCIAL COMO FUNDAMENTO DA TRIBUTAÇÃO NO BRASIL............................. 182
Joacir Sevegnani ........................................................................................................................... 182
A FUNÇÃO CENTRAL DA SANÇÃO NA TEORIA PURA DO DIREITO ................................................... 208
Leandro Caletti ............................................................................................................................. 208
RONALD DWORKIN: A INFLUÊNCIA PARA A INTERLOCUÇÃO ENTRE DIREITO E LITERATURA ........ 229
Luís Francisco Simões Boeira ....................................................................................................... 229
MISERÁVEL LIBERDADE .................................................................................................................... 240
Carolina Camargo ......................................................................................................................... 240
Neuro José Zambam..................................................................................................................... 240
O ATIVISMO JUDICIAL COMO CONSEQUÊNCIA DA CRISE DA JURISDIÇÃO: UM OLHAR PARA A
ATUAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ................................................................................. 261
Priscila Prux .................................................................................................................................. 261
A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E A EFETIVIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS ..................................... 282
Regiane Nistler ............................................................................................................................. 282
MULTICULTURALISMO, PLURALISMO JURÍDICO E O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINOAMERICANO: HORIZONTES DEMOCRÁTICOS .................................................................................. 300
Giulia Signor ................................................................................................................................. 300
Larissa Borges Fortes.................................................................................................................... 300
Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino ........................................................................................... 300
APRESENTAÇÃO
O século XXI pode ser descrito como um tempo no qual empreende atitudes contra
a hegemonia ideológica, sejam políticas, econômicas, culturais, entre outras. Há, nesse
momento, não apenas uma condição para se repensar o que se tem feito ao longo desses
últimos 300 (trezentos) anos sobre como promover a integração humana, a proteção da
dignidade, a inviolabilidade da vida, a indispensabilidade da Liberdade, a necessidade da
Igualdade, a orientação da Justiça e a serenidade da Fraternidade, mas, também, de como
viabilizar todas essas condições como pressupostos de transformação e aperfeiçoamento
civilizacional.
A Pós-Modernidade sintetiza essas preocupações não como “tempo próprio”,
segundo o exemplo da Modernidade, Idade Média ou outro momento histórico, porém
como espírito 1 provocativo o qual reivindica significados mais genuínos para indicar os
critérios de progressividade do ser humano, desde a dimensão individual à coletiva – não
importa se for no espaço local, nacional, continental e/ou global. Esse momento de
transição histórica denota a complementaridade entre variados ciclos de vida, um ir e vir
entre o passado e o momento presente2. É a partir desse diálogo sedimentado, de escolhas
– boas ou ruins – que se esclarece o que significa esse “mantra”, repetido por Joaquín
Herrera Flores: humanizar a humanidade3.
Direito e Democracia, a partir dessa linha de pensamento, precisam convergir
1
“[...] Talvez, neste sentido, que corresponde a uma certa forma de pensamento débil, a pós-modernidade, atravessada
por tantas teorias contraditórias, encontre um lugar na História do pensamento jurídico: não como mudança de idade,
mas como catalisador para que tal venha a se produzir. [...] Fica a hipótese, submetida a quantos não entendam mais a
pós-modernidade como um tempo [...], mas como um espírito”. CUNHA, Paulo Ferreira da. Desvendar o direito:
iniciação ao saber jurídico. Lisboa: Quid Juris, 2014, p. 112/113.
2
“Posso contar-lhes o segredo da pós-modernidade? Qui potest capire capira, que compreenda aquele que puder
compreender: a concepção cíclica do mundo, fundamento do paganismo e que o monoteísmo semítico se pôs a evacuar,
tenda a retomar força e vigor. [...] Sim, um ciclo se encerra, forçando a reconhecer que a saturação de um mundo não
é o fim do mundo”. MAFFESOLI, Michel. O tempo retorna: formas elementares da pós-modernidade. Tradução de
Teresa Dias Carneiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012, p. 10/11.
3
HERRERA FLORES, Joaquín. A (re)invenção dos direitos humanos. Tradução de Carlos Roberto Diogo Garcia et al.
Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009, p. 42.
6
esforços para trazerem sopro de vida às demandas que não pertencem a outros tempos,
mas àquilo no qual torna o século XXI o momento adequado para, de modo permanente,
desvelar os cenários e condições que oportunizam sentido existencial ao ser humano,
principalmente no seu aspecto relacional. Não se trata de privilegiar tão somente
mecanismos, procedimentos para assegurar o exercício de reivindicação a direitos em
espaços democráticos sempre que houver qualquer espécie de violação, de supressão
desses pressupostos necessários à convivência.
Trata-se, sim, de privilegiar, por um lado, a produção do Direito e Democracia, os
quais já surgem desde a concepção individual, especialmente naquilo que se chama de
Consciência Jurídica, e o modo como essa percepção se torna algo necessário a ser
compartilhado pela sua importância na estabilidade da vida cotidiana, ou seja, não se trata
de um bem ou valor cujos benefícios se circunscrevem dentro dos limites do ego, mas
consegue se destinar, também, ao Outro numa “via de mão dupla”. Por esse motivo, o
aspecto dialogal entre “forma” e “substância”, tanto no Direito quanto na Democracia, não
é algo que possa ser ignorado na medida em que a sua supressão representa um cenário de
profunda anomia4.
Os temas estudados nesta obra, apresentados por Professores e Estudantes – entre
Graduação e Mestrado em Direito da Faculdade Meridional – IMED -, destacam a
importância desses argumentos expostos nas linhas anteriores. O Direito Tributário – na
sua face de Solidariedade e do Desenvolvimento Sustentável, a Jurisdição Constitucional e
a força do Poder Judiciário, os Direitos Coletivos, os Direitos dos Animais, o Direito e a
Literatura, o Multiculturalismo e o Pluralismo Jurídico na América Latina, o Direito
Previdenciário representam como, hoje, a Democracia precisa ser assegurada por um
4
“A anomia é uma situação social onde falta coesão e ordem, especialmente no tocante a normas e valores. Se normas
são definidas de forma ambígua, por exemplo, ou são implementadas de maneira casual ou arbitrária; se uma
calamidade como a guerra subverte o padrão habitual da vida social e cria uma situação em que se torna obscuro quais
normas têm aplicação; ou se um sistema é organizado de uma forma que promove o isolamento e a autonomia do
indivíduo ao ponto das pessoas se identificarem muito mais com os seus próprios interesses do que com os do grupo
ou da comunidade como um todo – o resultado poderá ser a anomia ou a ‘falta de normas’”. JOHNSON, Allan, G.
Dicionário de sociologia: guia prático da linguagem sociológica. Tradução de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1997, p. 17/18.
7
Direito no qual compreenda as demandas da vida cotidiana. Reitera-se o que se afirmou no
início: é esse espírito que conduz o Direito e a Democracia na sua tarefa de constituir
espaços os quais favoreçam entoar o “mantra”: humanizar a humanidade.
Cada autor ou autora deste livro expõe, com excelência acadêmica, as suas
preocupações de como esse diálogo entre Direito e Democracia não pode se tornar um
fenômeno “esquecido” ou, ainda, reservado somente aos representantes eleitos pelo Povo.
A transversalidade dos temas desenvolvidos indica essa necessidade: a responsabilidade na
constituição de uma vida sempre digna somente ocorre a partir de um binômio cooperativo
entre Estado e Sociedade. Esse é o fundamento que torna o momento presente sempre
mais real, significativo e capaz de indicar quais são as virtudes e vícios, de pessoas e/ou
instituições, para se consolidar um projeto de convivência pacífica mais duradoura.
A todos os leitores e leitoras, deseja-se que a obra traga novas ideias, novas – e
saudáveis – indignações para que os matizes caleidoscópicos deste estar-junto-com-oOutro-no-mundo não sejam guiados tão somente pelos interesses egoístas e edifiquem
uma “Sociedade do Desprezo5” ou uma “Sociedade de Aparências”, mas de interesses e
necessidades que conseguem extravasar esses limites e alcançam, também, possibilidades
altruístas, tanto ao Direito quanto à Democracia. Eis o sentido de tantas e diferenciadas
andarilhagens profundamente humanas. Adelante!
Os organizadores
5
HONNETH, Axel. La sociedad del desprecio. Traducción de Francesc J. Hernández y Benno Horzog. Madrid: Trotta, 2011.
8
PREFÁCIO
Os estudos sobre Direito e Democracia assumiram, desde o seu início, patamar
indispensável à boa formação dos estudantes e pesquisadores do Direito, bem como para
toda a população. Vivemos em um Estado Democrático de Direito, e compreender esse
sistema me parece essencial para uma boa vida em sociedade e para que possamos assumir
concretamente o nosso necessário papel de cidadãos.
Se a Democracia, nos Estados de Direito, é o melhor sistema para a garantia da
dignidade, dos Direitos Humanos e do desenvolvimento humano, tal como pressupõe as
Nações Unidas em seus últimos Relatórios de Desenvolvimento, esse livro aparece como
indispensável para todos e todas. Essa é a grande intenção dos organizadores dessa obra, o
Professor Dr. Sérgio Aquino e as acadêmicas mestrandas Franciane Hasse e Regiane Nistler:
difundir o conhecimento de temas transversais e imprescindíveis.
Linhas Gerais sobre Direito e Democracia é uma obra que conta com os escritos de
pensadores sérios, críticos e engajados na difusão do conhecimento sobre temas diversos
no que tange ao Direito e a Democracia, como o desenvolvimento sustentável, o Poder
Judiciário, a Jurisdição Constitucional, o Direito dos animais, a Ditadura Militar, a efetividade
de direitos fundamentais, o multiculturalismo.
Não obstante a complexidade dos temas, os autores buscaram expô-los de maneira
simples e compreensível ao leitor. Mais do que isso, é perceptível a preocupação dos
autores na necessidade da abordagem dos temas de maneira teórica e empírica/concreta,
inclusive vislumbrando as fissuras existentes entre a teoria e a prática.
O livro é um convite generoso para quem tem sede de conhecimento.
Passo Fundo (RS), novembro de 2016.
Leilane Serratine Grubba6
6
Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação
em Direito da Faculdade Meridional. Pesquisadora da Fundação Meridional.
9
INCENTIVOS FISCAIS E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
André Frandoloso Menegazzo7
Salete Oro Boff8
INTRODUÇÃO
A utilização cada vez mais frequente de normas indutoras de comportamentos no
âmbito do direito tributário revela um cenário em que se encontram, numa mesma
prescrição normativa, direito, economia e realidade fática, não como formas metafísicas da
interdisciplinaridade, mas como formas concretas de relacionamento do espaço factual que
forma e conforma o direito, direcionando efeitos nas relações sociais. Tratam-se de normas
jurídicas que consagram incentivos fiscais, os quais se valem de sanções positivas para
promover comportamentos desejados.
Outrossim, o constituinte originário, de modo prudente e inovador, sepultou o
paradigma estritamente liberal – o qual buscava no ordenamento jurídico o sustentáculo
para legitimar a produção econômica materialmente desregrada e irresponsável
socialmente – da superfície normativa constitucional e, por meio de uma viragem ética,
recepcionou uma nova (e paradigmática) concepção holística e juridicamente autônoma de
meio ambiente.
Diante desse cenário, levando em consideração a existência de normas fiscais
indutoras de comportamento, de um lado, e a exigência constitucional de adoção de
condutas sustentáveis, de outro, o presente artigo parte do método hipotético-dedutivo e
7
Mestre em Direito pela Faculdade Meridional (IMED). Pós-graduando em Gestão de Operações Societárias e
Planejamento Tributário, pelo Instituto Nacional de Estudos Jurídicos e Empresariais (INEJE). Bolsista CNPq. Advogado.
Email:
[email protected].
8
Pós-Doutora pela Universidade Federal de Santa Catarina (2008). Doutora em Direito pela Universidade do Vale dos Sinos
(2005). Mestre em Direito pela Universidade do Vale dos Sinos (2000). Especialista em Direito Público pela Universidade
Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (1998). Especialista em Literatura Brasileira pela Universidade
Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (1997). Professora do Programa de Pós-Graduação – Mestrado –
em Direito da Faculdade Meridional (IMED). Email:
[email protected].
10
tem por objetivo analisar a (im)possibilidade de utilização dos incentivos fiscais para a
promoção do desenvolvimento sustentável.
2. PREMISSAS TEÓRICAS ÀS SANÇÕES JURÍDICAS POSITIVAS: CIFRANDO UM PARALELO
ENTRE A ANÁLISE ESTRUTURAL E A ANÁLISE FUNCIONAL DO DIREITO
Um ponto de partida que parece sugerir condições mínimas para uma abordagem
relevante dos incentivos fiscais a partir de uma matriz calcada no Direito se dá com a
distinção de metodologia nas ciências jurídicas entre a análise estrutural e a análise
funcional do Direito. Nesse contexto, a compreensão das características edificantes do
positivismo jurídico é fundamental. Não que se queira hipostasiar esse ponto, mais não se
pode passar ao largo do mesmo.
A passagem da concepção jusnaturalista à positivista – que protagoniza nos
ordenamentos jurídicos desde o séc. XIX –, segundo Bobbio9, é ligada com a formação do
Estado moderno 10 , mais precisamente, com a dissolução da sociedade medieval,
constituída por diversos agrupamentos sociais dotados de um ordenamento jurídico
próprio, e o início do modelo moderno de organização social, que assumiu uma estrutura
monista. O Estado passou a concentrar a si todos os poderes, principalmente aquele de criar
o Direito. Inicia-se, com isso, a monopolização da produção jurídica por parte do Estado.
No positivismo jurídico, a definição do direito é dada com base na autoridade que
pôs as normas - elemento puramente formal -, e não com referência ao conteúdo dessas
normas ou aos resultados que o Direito persegue11. No que tange ao modo de encarar o
9
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995, p. 27.
10
A primeira teoria do Estado moderno é encontrada na obra: HOBBES, Thomas. Leviatã ou A Matéria, forma e poder de
um Estado eclesiástico e civil.Trad. Regina D´Angina. 2.ed., São Paulo: Ícone, 2003.
11
Essa dessacralização do direito natural em detrimento das concepções positivistas iniciou com a crítica da filosofia
jusnaturalista realizada pela Escola Histórica do Direito, entre o fim do séc. XVIII e a primeira metade do séc. XIX. Bobbio
(BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico, p. 45) alerta que a escola histórica e o positivismo jurídico não são a mesma
coisa; contudo, aquela preparou o terreno para a expansão desse por meio de suas críticas radicais ao direito natural.
Assim, pode-se afirmar que o positivismo nasce do impulso histórico para a legislação, realiza-se quando o princípio da
onipotência do legislativo aflora e a lei se torna fonte exclusiva, e o resultado disso tudo é representado, ao final, pela
codificação.
11
direito, o positivismo o considera como um conjunto de fatos ou fenômenos sociais, e não
como um valor. Com efeito, segundo Bobbio12, a validade do direito independe do fato de
ser bom ou mal, mas, e, tão somente, dos critérios relacionados a sua estrutura formal
(teoria do formalismo jurídico). E a lei, a seu turno, é a fonte única do Direito.
Ato contínuo, o juspositivismo define o Direito a partir da coação, entendida como
o meio mediante o qual se faz valer um dever-ser, uma norma jurídica. Por estar vinculado
à concepção legalista-estatal, o juspositivismo recepcionou a teoria imperativista, segundo
a qual a norma jurídica consiste em um comando 13 . Assim, essa norma não exprime
conselhos, mas determina comportamento obrigatórios a partir da exteriorização da
manifestação da vontade estatal por meio da codificação.
Aspecto de extrema relevância e essencialidade consiste na teoria do ordenamento
jurídico14. Introduzida pelo próprio positivismo jurídico, a teoria do ordenamento jurídico
entende o direito como uma entidade unitária, construída por um conjunto sistemático de
normas. Na essência, edifica-se sob três pilares fundamentais: a unidade, a coerência e a
completude15. A unidade formal refere-se ao modo pelo qual as normas são postas. Para
que seja assegurada essa unidade, não deixando aberturas, Kelsen, o principal expoente do
juspositivismo, propõe a teoria da norma fundamental. Trata-se de uma norma-base que
não é verificável positivamente, mas sim, suposta pelo jurista na compreensão do
ordenamento jurídico e que o leva a conferir validade a determinada norma se ela estiver
em sintonia com as premissas formais do ordenamento extraído da norma fundamental16.
Segundo Kelsen17, “uma ordem normativa que regula a conduta humana na medida
em que ela está em relação com outras pessoas é uma ordem social. A moral e o direito são
ordens sociais deste tipo”. Sob esse prisma, Kelsen insere o direito em uma das ordens
12
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, p. 135.
13
KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Tradução de José Florentino Duarte. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1986,
p. 29.
14
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Brasília: UnB, 1999.
15
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução: João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
16
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, p. 167/178.
17
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, p. 25.
12
sociais entre outras existentes, como ordens religiosas, morais, costumeiras, familiares,
econômicas, etc. Entretanto, o objeto de conhecimento do Direito deve se apartar das
outras ordens sociais e preocupar-se, tão somente, com os aspectos estruturais da ordem
normativa jurídica.
Assim, Kelsen adota a concepção estruturalista do Direito, na medida em que não
estimula a observação daquilo que está por trás da norma jurídica, das razões que
motivaram determinado comando. Não há espaço para as definições teleológicas dos
conceitos-chave da teoria do Direito.
O modo pelo qual as condutas humanas são prescritas ou proibidas distingue os
diferentes tipos de ordens sociais e a função que cada uma exerce dentro do contexto
social. A ordem social pode prescrever determinada conduta abstendo-se de quaisquer
consequências. Em contrapartida, pode orientar a conduta humana atribuindo-lhe
consequências positivas (prêmios) ou negativas (penas). Para Kelsen 18 , essa segunda
possibilidade – de atribuir consequências a comportamentos - reflete um princípio
vigorante no positivismo jurídico: o princípio retributivo (Vergeltung)19.
Segundo Kelsen20, contudo, o Direito somente deve reconhecer como jurídicas as
sanções negativas, posto que recompensas e prêmios pela realização de determinada
conduta são características de outras ordens sociais. Nessa medida, o ordenamento jurídico
estrutura-se sob o prisma protetivo-repressivo, posto que protege a realização de atos
lícitos a partir da punição de atos ilícitos.
Essa relação entre a realização de um ato ilícito e a sanção como consequência
18
KELSEN, Hans. Teoria geral das normas, p. 31.
19
Kelsen (KELSEN, Hans. Teoria geral das normas, p. 31) explica: “A proposição da Ciência do Direito descreve a validade
de uma norma jurídica geral que liga uma específica sanção do Direito a uma certa conduta; esta proposição jurídica
pode ser qualificada como lei jurídica. A proposição da Ética descreve a validade de uma norma Moral geral que liga
uma específica sanção Moral a uma certa conduta e é qualificada como lei moral. Em ambas as proposições se emprega
o princípio retributivo, que é o princípio segundo o qual deve ser punida a conduta contrária à sociedade: àquele que
se conduz mal, um mal deve ser aplicado; a conduta adequada à ordem social deve ser recompensada: àquele que se
conduz bem, um bem deve ser feito. Na lei jurídica aplica-se apenas um membro do princípio retributivo; na lei moral,
empregam-se ambos os membros”.
20
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, p. 26.
13
normativa desse comportamento é qualificada por Kelsen 21 como proposição para
diferenciação da norma jurídica descrita por ela. Nesse sentido, o Direito é, essencialmente,
uma ordem de coação; e essa proposição, é a específica lei jurídica. E justamente por esse
elemento da coação e, ainda, pela consequência atribuída ao comportamento conforme é
que a ordem normativa jurídica se diferencia, segundo Kelsen, da ordem normativa moral
e das outras ordens normativas.
Na leitura de Kelsen, não compete ao Direito estimular condutas desejadas com
promessas e recompensas, mas, e, tão somente, coibir comportamentos indesejados com
a aplicação de sanção negativa (pena). Ainda que reconheça a existência de sanções
positivas, Kelsen as insere em outras ordens sociais:
O prêmio e o castigo podem compreender-se no conceito de sanção. No entanto,
usualmente, designa-se por sanção somente a pena, isto é, um mal – a privação de certos
bens como a vida, a saúde, a liberdade, a honra, valores econômicos – a aplicar como
consequência de uma determinada conduta, mas já não o prêmio ou a recompensa22.
Ato contínuo, Kelsen23 relata, pois, que “as sanções são estabelecidas pela ordem
jurídica com o fim de ocasionar certa conduta humana que o legislador considera
desejável”. Nesse sentido, as sanções do Direito têm o caráter de atos coercitivos.
Originalmente, existia apenas um tipo de sanção, a sanção criminal. Posteriormente, foi
desenvolvida a sanção civil – ou execução civil -, que consiste na privação de bens e direitos
em virtude de descumprimento da legislação civil. Contudo, ambas consistem em sanções
negativas. Kelsen não insere sanções positivas na órbita de atuação do Direito.
Dito de outro modo, embora Kelsen reconheça a possibilidade de ordens normativas
induzirem comportamentos, nessas ordens não está inserido o Direito. Somente em relação
aos comportamentos indesejados deve-se atribuir uma sanção jurídica 24 . Os seguidores
21
KELSEN, Hans. Teoria geral das normas, p. 30.
22
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, p. 26.
23
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 21.
24
Nesse sentido, Kelsen (KELSEN, Hans. Teoria geral das normas, p. 172) destaca o papel da sanção no Direito: “Sob sanção
pode-se, outrossim, entender uma conduta face a um indivíduo, a qual geralmente é vista como um bem – conforme
uma norma da ordem – que deve ser feito a um indivíduo que se conduziu de uma forma correspondente à ordem. Essa
sanção, que não deve acontecer como reação a uma conduta contra a norma, mas uma conduta conforme à norma,
somente se encontra na Moral, não no Direito. Ela consiste na aprovação da conduta conforme à norma, e exterioriza-
14
dessa concepção estruturalista preocupam-se em saber ‘como o Direito é feito’, e não ‘para
que o Direito serve’.
A superação dessa visão que restringe o Direito a proteção de certas posições ou à
repressão de condutas violadoras da ordem jurídica iniciou em meados do séc. XX com
Norberto Bobbio, o qual revelou a função promocional do Direito por meio da utilização de
sanções jurídicas positivas.
Segundo a concepção funcionalista de Bobbio25, a partir das transformações sociais
que ocasionaram o surgimento do Welfare State, o Estado se propôs a perseguir novos fins
a partir de técnicas de controle social distintas daquelas tradicionais. Essas técnicas
configuram o elemento fundamental da ação do Estado social, diferenciando-o do Estado
liberal clássico, posto que às técnicas tradicionais de desencorajamento (sanção pelo
descumprimento da lei) agregam-se as técnicas de encorajamento em acréscimo, ou em
substituição (prêmios e recompensas jurídicas pela adoção de condutas desejadas).
Buscando a explicitação da função promocional do Direito, Bobbio26 destaca, pois,
que, em um sistema jurídico, a distinção entre prêmios e castigos não se confunde com a
distinção entre comandos e proibições. Geralmente, as sanções negativas (penas) reforçam
as normas negativas (comandos de não fazer), e as sanções positivas (prêmios e
recompensas) são aplicadas para o fortalecimento de normas positivas (comandos de dar
e/ou fazer). Contudo, não há qualquer incompatibilidade entre normas positivas e sanções
negativas, de um lado, e normas negativas e sanções positivas, de outro. Isso porque, em
um sistema jurídico, muitas das normas positivas são reforçadas por sanções negativas.
Assim, o Direito pode tanto desencorajar a fazer quanto encorajar a não fazer. Nesse
contexto, Bobbio relata a possibilidade de ocorrerem quatro diferentes situações: (i)
se em elogio, sinal de respeito ou algo semelhante [...] Normas de um ordenamento jurídico que autorizam
determinados órgãos da comunidade jurídica para outorgar certos direitos a pessoas que bem o mereceram da
comunidade, permitindo-lhes portar título distintivo, ou certas insígnias, ou conceder-lhes um prêmio, tais normas não
estabelecem – ou nem mesmo diretamente – sanções jurídicas nem reações a uma conduta conforme ao Direito,
impostas por normas jurídicas, mas reações a uma conduta, por outras razões, valiosas para a comunidade”.
25
BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função. Tradução: Daniela Beccaccia Versiani. Barueri: Manole, 2007.
26
BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função, p. 6.
15
comandos reforçados por prêmios; (ii) comandos reforçados por castigos; (iii) proibições
reforçadas por prêmios; (iv) proibições reforçadas por castigo27.
Além de punir a realização de atos em desconformidade com a legislação, o Direito
pode, portanto, dialogar com as demais ordens sociais – como a sociologia, a economia e a
cultura – e promover a realização de atos desejados pela sociedade, estipulando prêmios e
recompensas (sanções jurídicas positivas) a esses comportamentos. Na dicção de Bobbio28:
A Introdução da técnica de encorajamento reflete uma verdadeira transformação da função
do sistema normativo em seu todo e no modo de realizar o controle social. Além disso,
assinala a passagem de um controle passivo – mais preocupado em desfavorecer as ações
nocivas do que favorecer as vantajosas – para um controle ativo – preocupado em favorecer
as ações vantajosas mais do que em desfavorecer as nocivas.
Cifrando um paralelo de fácil compreensão, na ótica estruturalista, o Direito
configura uma ordem normativa em que as técnicas de controle social baseiam-se na
ameaça e na aplicação de sanções negativas. Trata-se, de uma postura abstencionista do
Estado, na medida em que interfere na sociedade somente quando forem praticadas
condutas desconformes, comportamentos ilícitos. Assim, espelha um determinado tipo
histórico de sociedade, aquela na qual a atividade econômica esteja subtraída da
intervenção estatal.
De outra banda, a partir do momento em que o processo inverso – de aumento
progressivo da intervenção estatal nas esferas dos interesses econômicos – começa a
ocorrer, as concepções tradicionais de direito até então vigentes tornaram-se incompletas,
“como vestidos que se tornaram demasiado apertados para um corpo que, de repente,
cresceu” 29. É justamente nesse cenário que aflora a concepção funcionalista do Direito,
segundo a qual a ordem jurídica normativa, além punir a realização de atos ilícitos por meio
de sanções negativas, pode (e deve) se valer de sanções jurídicas positivas para promover
condutas desejadas.
27
BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função, p. 7.
28
BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função, p. 15.
29
BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função, p. 10.
16
3. INCENTIVOS FISCAIS E PROMOÇÃO JURÍDICA DE COMPORTAMENTOS DESEJADOS
Para explicitar a operacionalização do Direito a partir da concepção funcionalista,
Bobbio exemplifica duas sanções jurídicas positivas para induzir e estimular
comportamentos: a sanção propriamente dita e a facilitação. A primeira delas é atribuída
ao destinatário depois do comportamento desejado ter sido realizado. Trata-se de um
prêmio pela concretização de um ato que promova o desenvolvimento aclamado pelo
ordenamento jurídico, como os atuais incentivos fiscais. Na facilitação, como o próprio
nome revela, o Direito facilita o procedimento para a realização do ato, atuando, portanto,
previamente. A previsão legal de subvenções, ajuda ou contribuição financeira estatal
configuram mecanismos de encorajamento por meio da técnica de facilitação. “Em outras
palavras, pode-se encorajar intervindo sobre as consequências do comportamento ou
sobre as modalidades, sobre as formas, sobre as condições do próprio comportamento”30.
Desse modo, busca tornar a conduta almejada necessária – posto que a sua não realização
causará uma desvantagem (social, econômica, política ou cultural) muito grande -, fácil e
vantajosa.
Essa inovação paradigmática implantada no ordenamento jurídico coloca em crise
teorias simplificadas do direito, sobretudo aquelas que o veem tão somente a partir de sua
função protetora ou de sua função repressiva, como a estruturalista. Importa asseverar,
ainda, que Bobbio não se contrapõe ao positivismo jurídico kelsiano. Admite-o, assume-o
em sua produção doutrinária. Ocorre, entretanto, que, ao reconhecer que essa concepção
não estimula a observação teleológica do Direito, Bobbio vai além de Kelsen e propõe ao
Direito a função promocional, sem abandonar as funções repressivas e protetivas.
Partindo desse contexto, Melo 31 propõe que o exame do regime jurídico dos
incentivos fiscais seja realizado a partir da complementariedade entre as concepções
estrutural (Kelsen) e funcional (Bobbio) do Direito. O estruturalismo, por si só, é insuficiente
30
BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função, p. 17.
31
MELO, Álisson José Maia. Premissas para uma abordagem jurídica dos incentivos fiscais. In: Machado, Hugo de Brito
(org.). Regime jurídico dos incentivos fiscais. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 86.
17
para compreender certas propriedades internas do que está se chamando de incentivo
fiscal, ao passo que a análise funcional não pode se abster das conquistas do estruturalismo
e da importância dos aspectos formais no Direito.
A análise funcional, destarte, não passa despercebida no âmbito do estudo da
tributação, principalmente levando em consideração a utilização cada vez mais frequente
de funções mediatas – ditas extrafiscais – em contraposição a função imediata de
arrecadação de verbas públicas nos sistemas tributários. Para que se possa explorar o tema
proposto com a precisão científica que a sua envergadura suscita, faz-se necessário revelar
o que se entende por incentivo fiscal.
Na doutrina de Scaff e Silveira32, os incentivos fiscais configuram espécies do gênero
isenção, tendo por conteúdo substancial a função indutora da norma tributária,
estimulando ou desestimulando comportamentos dos contribuintes. Assim, “quer-se
alcançar a noção de que os incentivos fiscais (e as isenções em sentido lato) são parte
relevante da autonomia financeira dos entes políticos, do poder (competência) de tributar
outorgado constitucionalmente e mesmo da própria tributação”33.
Por meio dos incentivos fiscais, segundo os tributaristas, aumenta-se a carga
tributária sobre comportamentos indesejados pelo Estado ou, ao revés, reduz-se a carga
tributária – ou suspende-a – sobre atividades que se pretende promover. Assim, o Direito
possibilita a maleabilidade na quantificação da tributação e configura uma importante
ferramenta indutora de comportamentos.
Scaff e Silveira34 diferenciam incentivos de benefícios fiscais. Enquanto os incentivos
têm caráter dinâmico, prospectivo, com o intuito de estimular comportamentos desejados,
os benefícios fiscais são estáticos, referem-se a situações já consumadas e importam na
32
SCAFF, Fernando Facury; SILVEIRA, Alexandre Coutinho da. Incentivos fiscais na federação brasileira. In: Machado, Hugo
de Brito (org.). Regime jurídico dos incentivos fiscais. São Paulo: Malheiros, 2015.
33
SCAFF, Fernando Facury; SILVEIRA, Alexandre Coutinho da. Incentivos fiscais na federação brasileira. In: Machado, Hugo
de Brito (org.). Regime jurídico dos incentivos fiscais, p. 31.
34
SCAFF, Fernando Facury; SILVEIRA, Alexandre Coutinho da. Incentivos fiscais na federação brasileira. In: Machado, Hugo
de Brito (org.). Regime jurídico dos incentivos fiscais, p. 46.
18
materialização, no âmbito tributário, de valores tidos por prioritários. Nessa vertente
doutrinária, portanto, somente os incentivos fiscais possuem a aptidão de induzir e
estimular comportamentos desejados, promover atividades consideradas importantes pelo
Estado.
Miguez de Mello e Simões35, a seu turno, não diferenciam benefícios de incentivos
fiscais, posto que o ordenamento jurídico brasileiro não recepcionou essa distinção. Para
eles36, ambos se referem a “estímulos com finalidades extrafiscais ou regulatórias muito
utilizados no mundo inteiro pelo poder público como instrumento de fomento de suas
políticas destinadas principalmente ao desenvolvimento econômico e social”. Nesse passo,
os incentivos (ou benefícios) fiscais constituem mecanismos de indução de
comportamentos, por meio dos quais o ente tributante reduz o ônus fiscal sobre atividades
que pretende promover, e aumenta sobre atividades que pretende desestimular. Em
resumo, configuram “instrumentos discricionários, excepcionais, relevantes, extrafiscais ou
regulatórios, calcados no poder de tributar e regular de que dispõem os entes federados
para promover o desenvolvimento econômico e social”37.
Nessa mesma linha é o entendimento de Machado38, para quem “o incentivo, ou
estímulo, caracteriza-se pelo tratamento favorecido, diferenciado para melhor, em razão
do atendimento da condição colocada para sua obtenção. E pode ser designado com
palavras em sentido idêntico, tais como benefícios ou alívios”. Com sublime cientificidade,
o tributarista cearense destaca, pois, que qualquer forma de redução de tributo, seja por
meio da minoração de alíquotas ou da base de cálculo, pode configurar incentivo fiscal,
desde que o legislador tenha por finalidade estimular ou desestimular determinado
comportamento.
35
MIGUEZ DE MELLO, Gustavo; SIMÕES, Luiz Carlos Marques Simões. Regime jurídico dos incentivos fiscais. In: Machado,
Hugo de Brito (org.). Regime jurídico dos incentivos fiscais. São Paulo: Malheiros, 2015.
36
MIGUEZ DE MELLO, Gustavo; SIMÕES, Luiz Carlos Marques Simões. Regime jurídico dos incentivos fiscais. In: Machado,
Hugo de Brito (org.). Regime jurídico dos incentivos fiscais, p. 129.
37
MIGUEZ DE MELLO, Gustavo; SIMÕES, Luiz Carlos Marques Simões. Regime jurídico dos incentivos fiscais. In: Machado,
Hugo de Brito (org.). Regime jurídico dos incentivos fiscais, p. 157.
38
MACHADO, Hugo de Brito. O regime jurídico dos incentivos fiscais. In: Machado, Hugo de Brito (org.). Regime jurídico
dos incentivos fiscais. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 171.
19
Assim, para que a desoneração possa se caracterizar como incentivo ou benefício
fiscal – para o autor as expressões são sinônimas -, torna-se forçosa a presença de um
elemento finalístico em sua essência: a “finalidade é o elemento caracterizador do incentivo
fiscal, qualquer que seja a forma pela qual seja o mesmo concedido. Como a própria
expressão indica, incentivo fiscal é o tratamento tributário favorecido concedido com a
finalidade de estimular comportamento”39.
Na mesma direção é a doutrina de Siqueira e Xerez40, segundo os quais somente se
pode falar de benefícios ou incentivos fiscais, expressões sinônimas, se houver por trás da
desoneração um elemento finalístico discricionariamente escolhido pelo legislador
competente. Desse modo, o incentivo fiscal não deriva diretamente de algum preceito,
direito, princípio ou valor jurídico, mas deve ser neles respaldado, a fim de se garantir a
legitimidade democrática da desoneração. Na retórica dos doutrinadores41, “o incentivo
não consubstancia área de intributabilidade, mas decorre do sopesamento político –
portanto discricionário – sobre instrumento adequado, necessário e suficiente para
promover determinado interesse albergado pelo ordenamento jurídico”.
No Supremo Tribunal Federal, ora se utiliza a expressão benefício fiscal, ora incentivo
fiscal, o que leva a concluir, pois, que o STF entende as expressões como sinônimas. Do
Recurso Extraordinário 577.348, julgado em agosto de 2009 sob a relatoria do Min. Ricardo
Lewandowski, extrai-se a seguinte conceituação: “incentivos ou estímulos fiscais são todas
as normas jurídicas ditadas com finalidades extrafiscais de promoção de desenvolvimento
econômico e social que excluem total ou parcialmente o crédito tributário”.
A soma dessas razões se presta a argumentar que tributação é mais que
arrecadação. O incentivo fiscal revela a possibilidade de se utilizar o tributo com outra
função além da tradicional função arrecadatória (fiscal). Por meio desse mecanismo, o
39
MACHADO, Hugo de Brito. O regime jurídico dos incentivos fiscais. In: Machado, Hugo de Brito (org.). Regime jurídico
dos incentivos fiscais. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 173.
40
SIQUEIRA, Natércia Sampaio. XEREZ, Rafael Marcílio. Questões de extrafiscalidade tributária nas democracias
contemporâneas. In: Machado, Hugo de Brito (org.). Regime jurídico dos incentivos fiscais. São Paulo: Malheiros, 2015.
41
SIQUEIRA, Natércia Sampaio. XEREZ, Rafael Marcílio. Questões de extrafiscalidade tributária nas democracias
contemporâneas. In: Machado, Hugo de Brito (org.). Regime jurídico dos incentivos fiscais, p. 459.
20
Direito apresenta a funcionalidade extrafiscal do tributo.
O propósito dos tributos fiscais é, basicamente, carrear dinheiro aos cofres públicos,
prover o Estado dos recursos financeiros necessários ao exercício da função pública que lhe
é imanente. Na medida em que a tecnologia jurídico-tributária confere ao Estado a
possibilidade de extrair, de maneira compulsória, recursos financeiros dos entes privados
através da instituição e cobrança de tributos, esse mecanismo pode ser utilizado, também,
para prestigiar objetivos alheios aos meramente arrecadatórios.
Assim, o tributo pode se configurar um instrumento indutor de comportamentos,
por meio do qual se prestigiam certas situações sociais, políticas ou economicamente
importantes, às quais o legislador buscou conferir tratamento fiscal mais ameno ou, ao
revés, mais custoso. Essa, com efeito, é a finalidade extrafiscal do tributo, uma alternativa
teleológica diversa da simples vocação arrecadatória. Segundo Berti42, a extrafiscalidade
busca alcançar “fins distintos dos meramente arrecadatórios mediante o exercício das
competências tributárias (poder de criar e alterar tributos) outorgadas pela Constituição
Federal às pessoas políticas União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios”.
Trata-se, portanto, de um instrumento jurídico-tributário pelo qual o Estado pode
conferir incentivos fiscais a determinadas atividades e, ainda, agravar condutas indesejadas,
sempre em estrita obediência aos princípios constitucionais tributários. Ainda que o Estado
tenha discricionariedade na escolha das atividades a serem incentivadas, estas devem estar
respaldadas em valores, direitos ou preceitos constitucionais.
Essa ferramenta jurídica é consequência do reconhecimento concepção
funcionalista do Direito, na medida em que busca compreender a função teleológica da
norma jurídica, induzindo comportamentos a partir da utilização de sanções jurídicas
positivas. Entretanto, para que se possa analisar a (im)possiblidade de utilização dessas
sanções jurídicas positivas para a promoção da sustentabilidade, faz-se necessário
compreender a importância dada ao tema pela Constituição Federal de 1988.
42
BERTI, Flávio de Azambuja. Impostos: extrafiscalidade e não-confisco. Curitiba: Juruá, 2003, p. 19.
21
4. O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Ao mudar de rumo e direcionar-se às novas preocupações éticas da humanidade, a
Constituição Federal de 1988, justamente por aflorar num momento de superação de
paradigmas clássicos de organização político-administrativa, apoiou-se, a um só tempo, em
padrões antropocêntricos, biocêntricos e, até mesmo, com borrifadas ecocêntricas. Uma
leitura atenta do corpo normativo constitucional demonstra essa adoção de um novo
paradigma ético-jurídico – que também é jurídico-econômico -, qual seja, o da ecologização
da Constituição.
Ao garantir a todos o direito fundamental de propriedade, o constituinte originário
também estabeleceu o dever de se cumprir uma função social (art. 5º, incisos XXII e XXIII,
CF/88)43. Não obstante, o mesmo artigo assegura a todos os cidadãos a possibilidade de
propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao meio ambiente (art. 5º, inciso LXXIII,
CF/8844). Outrossim, ganha proeminência a inserção do pensamento ético-ambiental no
Capítulo VII da Constituição Federal, o qual se destina a normatizar a ordem econômica e
financeira nacional. Do teor do art. 170 extrai-se que a ordem econômica deve ser fundada
na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por fim assegurar a todos
existência digna, conforme os ditames da justiça social, observando, entre outros, os
princípios da propriedade privada, da função social da propriedade, da livre iniciativa e,
gize-se, da defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme
o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e
prestação.
Trata-se de uma redefinição do modelo civilizatório e, consequentemente, das
43
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,
nos termos seguintes:
XXII - é garantido o direito de propriedade;
XXIII - a propriedade atenderá a sua função social.
44
LXXIII - qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público
ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e
cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência
22
balizas que devem orientar o exercício da atividade econômica, na medida em que a
normatização (ainda presente) de concepções clássicas do liberalismo radical abrem espaço
a um novo compromisso ético, destinado a reescrever a nova história do país sob a marca
da sustentabilidade. Além disso, o art. 186, inciso II45, sublinha que a propriedade rural
atenderá a sua função social se, entre outros requisitos constitucionais e legais, utilizar
adequadamente os recursos naturais disponíveis e preservar o meio ambiente. Até mesmo
o Sistema Único de Saúde (SUS) recebeu a atribuição constitucional de colaborar na
proteção do meio ambiente (art. 200, inciso VIII, CF/8846). Na comunicação social, é vedada
a disseminação de propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos ao
meio ambiente (art. 220, § 3º, inciso II47).
Entretanto, é no Capítulo VI da Constituição Federal 48 , sobretudo, que os
45
Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus
de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I - aproveitamento racional e adequado;
II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente.
46
Art. 200. Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei:
VIII - colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho.
47
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou
veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
§ 3º Compete à lei federal:
II - estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou
programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos,
práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.
48
CAPÍTULO VI
DO MEIO AMBIENTE
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes
e futuras gerações.
§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas;
II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e
manipulação de material genético;
III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente
protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que
comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção;
IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do
meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade;
V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a
vida, a qualidade de vida e o meio ambiente;
VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio
23
fundamentos dorsais da sustentabilidade ecológica ganham destaque, que o utilitarismo
(ambientalmente) despreocupado das concepções liberais perde espaço e, por
conseguinte, a preocupação com a preservação da biosfera recebe contornos
constitucionais extremamente relevantes. Desde logo, o art. 225, caput, acentua:
Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do
povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o
dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
Assim, a natureza, componente sem o qual não há vida, passa a ser compreendida
como uma realidade frágil e ameaçada pelas atuais – e também pelas futuras - gerações.
Por essa razão, recepcionou-se todo esse emaranhado de atributos e valores éticos.
Segundo Benjamin49, a constitucionalização do meio ambiente trouxe em seu bojo
seis benefícios substantivos, quais sejam: estabelecimento de um dever constitucional
genérico de não degradar, base do regime de explorabilidade limitada e condicionada;
ecologização da propriedade e da sua função social; proteção ambiental como direito
fundamental; legitimação constitucional da função estatal reguladora; e redução da
discricionariedade administrativa. Além disso, trouxe outros cinco benefícios formais:
máxima preeminência e proeminência dos direitos, deveres e princípios ambientais;
segurança normativa; superação do paradigma da legalidade ambiental; controle da
ambiente;
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica,
provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. (Regulamento)
§ 2º Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução
técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei.
§ 3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas,
a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.
§ 4º A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são
patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do
meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.
§ 5º São indisponíveis as terras devolutas ou arrecadadas pelos Estados, por ações discriminatórias, necessárias à proteção
dos ecossistemas naturais.
§ 6º As usinas que operem com reator nuclear deverão ter sua localização definida em lei federal, sem o que não poderão
ser instaladas.
49
BENJAMIN, Antônio Herman. Constitucionalização do ambiente e ecologização da Constituição Brasileira. In:
CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato. Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo:
Saraiva, 2012, p. 95/102.
24
constitucionalidade
da
lei;
e
reforço
exegético
pró-ambiente
das
normas
infraconstitucionais.
Na medida em que estabelece um inequívoco dever de não degradar, a Constituição
Federal firma uma base ecológica no regime de explorabilidade limitada e condicionada,
contrapondo-se ao direito de explorar de maneira ilimitada, plena e incondicionada,
inerente ao direito de propriedade clássico. Com efeito, limites mínimos e pulverizados de
exploração da propriedade são substituídos por limites amplos e sistemáticos, centrados na
manutenção dos processos ecológicos.
Vale dizer, o direito de explorar a propriedade privada é limitado pelo dever de não
degradar e condicionado por diretrizes ecológicas, posto que nem tudo que integra a
respectiva propriedade pode ser explorado. Desse modo, a ecologização da propriedade
privada e de sua função social irradia efeitos em toda órbita jurídica, porquanto estabelece
um contrabalanceamento do rigor privatístico demasiado e da hiperênfase do direito de
propriedade. Em razão disso, Benjamin50 destaca, pois, que a ecologização da Constituição,
buscou, a um só tempo, a instituição de um regime de exploração limitada e condicionada
– portanto, sustentável - da propriedade e agregar à função social da propriedade, tanto
urbana quanto rural, um forte componente ambiental, o que se mostra evidente nas
diretrizes ambientais inseridas no capítulo da Constituição destinado a ordem econômica e
financeira.
Outrossim, com a promulgação da atual Constituição Federal, a proteção ambiental
foi elevada ao nível de direito fundamental, em pé de igualdade com outros direitos
também fundamentais, como o próprio direito de propriedade. Por derradeiro, as
discussões sobre sustentabilidade e proteção ao meio ambiente passam a integrar o debate
jurídico, e não apenas os terrenos não jurígenos das ciências naturais e da literatura.
Buscando extrair o máximo de potencialidade do conteúdo deontológico do direito
constitucional, ampliando o seu sentido, bem como seu alcance, tendo por objetivo a
50
BENJAMIN, Antônio Herman. Constitucionalização do ambiente e ecologização da Constituição Brasileira. In:
CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato. Direito constitucional ambiental brasileiro, p. 98.
25
concretização dos valores e fins constitucionais, nota-se que o meio ambiente foi alçado ao
ponto máximo do ordenamento jurídico, ganhando status de direito fundamental. Isso
porque, em que pese não haja menção expressa no Título II da CF/88 ao meio ambiente, a
doutrina é conforme em afirmar, pois, que o § 2º do art. 5º51, ao recepcionar a “cláusula
de abertura”, aponta para a não taxatividade dos direitos fundamentais, de modo que esse
rol de direitos de cunho humanístico encontra-se espraiado no texto constitucional e, ainda,
em diplomas infraconstitucionais.
Grimone 52 , por sua vez, ao se referir ao direito ao desenvolvimento sustentável,
disserta que se trata de um direito fundamental não em virtude da menção ao meio
ambiente em diversos dispositivos constitucionais, mas pela sua correlação com o princípio
da dignidade da pessoa humana:
O direito ao desenvolvimento sustentável procura encontrar um parâmetro de convívio
entre o ser humano e a natureza. Busca valorizar o ser humano, retirando-o da miséria
material, por meio de uma profunda raiz ética, mas não o entrega ao consumo desenfreado
e ao vilipêndio dos recursos naturais. Ao contrário, procura inseri-lo como um membro
responsável dentro de uma grande cadeia que deve funcionar com harmonia e respeito.
Desse modo, fica evidente que o direito ao desenvolvimento sustentável é uma
manifestação implícita do princípio da dignidade da pessoa humana53.
Assim, a fundamentalidade da proteção ambiental significa não apenas a
obrigatoriedade de se buscar na sustentabilidade o vetor-guia na realização de políticas
públicas, consectário lógico da eficácia vertical desses direitos, mas, e, sobretudo, a
vinculação da diretriz ambiental nas relações estritamente privadas, em virtude da eficácia
horizontal dos direitos fundamentais. Além disso, por se tratar de direito fundamental, a
proteção ambiental consiste em uma norma possuidora de aplicabilidade imediata, de
modo que a adoção de medidas que visem à sustentabilidade ambiental, a redução do
desmatamento e a cessação de práticas poluidoras e degradadoras da biosfera não
necessitam a edição de uma lei infraconstitucional para se tornarem realidade.
51
§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios
por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
52
GRIMONE, Marcos Ângelo. O conceito jurídico de direito sustentável no Brasil. Curitiba: Juruá, 2012, p. 105.
53
GRIMONE, Marcos Ângelo. O conceito jurídico de direito sustentável no Brasil, p. 105.
26
Nessa mesma linha, a legitimação da função estatal reguladora possibilita ao poder
público a viabilização de ações interventivas que promovam a proteção do meio ambiente.
Na medida em que estabelece um substrato normativo em torno da sustentabilidade
ecológica, a Constituição Federal de 1988 legitima e facilita a intervenção do Estado,
legislativa ou não, em favor da manutenção e recuperação dos processos ecológicos
essenciais. Em termos práticos, disserta Benjamin (2012, p. 100), “já não se requer apelo
aos desastres naturais (liberalismo), nem catástrofes econômicas (welfarismo) para
justificar o protagonismo ecológico do Estado. Para tanto, basta a crise ambiental notada
pelo texto constitucional”.
Nessa linha, a sustentabilidade apresenta-se como um valor supremo na ordem
constitucional brasileira, determinando a responsabilidade do Estado e da sociedade pela
concretização solidária de um modelo de desenvolvimento pautado pelos padrões éticos
da sustentabilidade ecológica, de modo a assegurar os recursos naturais para o presente e
para o futuro.
Outrossim, Coelho e Araújo54 compreendem a sustentabilidade como um princípio
constitucional não somente ambiental, mas interdisciplinar, notadamente social,
empresarial e econômico, constituindo um parâmetro que, em virtude de sua força
normativa constitucional, orienta - ou deveria orientar - o ordenamento jurídico brasileiro,
principalmente naquilo que pertine a regulamentação da ordem econômica. Sob esse
prisma, um dos alicerces do conteúdo da sustentabilidade, tal como inserido no texto
constitucional, é a ideia de equilíbrio entre a exploração de recursos naturais para
impulsionar o desenvolvimento econômico e a sustentabilidade do ecossistema natural.
Dessa ecologização da Constituição, portanto, extrai-se o dever do Estado, tanto na
realização de políticas públicas materiais quanto na elaboração de instrumentos
normativos, de adotar sempre a alternativa menos gravosa ao meio ambiente, em estrita
54
COELHO, Saulo de Oliveira Pinto. ARAÚJO, André Fabiano Guimarães de. A sustentabilidade como princípio
constitucional sistêmico e sua relevância na efetivação interdisciplinar da ordem constitucional econômica e social: para
além do ambientalismo e do desenvolvimento. Revista da Faculdade de Direito de Uberlândia, v. 39, n. 1, ano 2011.
Disponível em: < http://www.seer.ufu.br/index.php/revistafadir/article/view/18499/9916> Acesso em: 20 abr. 2016.
27
obediência ao dever de sustentabilidade ecológica. Inobstante, o desenvolvimento com
sustentabilidade não é tão somente um compromisso estatal, mas, e, sobretudo, uma
responsabilidade de todos os atores sociais, públicos e privados, de tal sorte que as
limitações dos recursos naturais devem ser respeitadas e as suas potencialidades, com
efeito, asseguradas, a fim de que as futuras gerações possam encontrar um ambiente
propício à sadia qualidade de vida.
Seguramente, o constituinte originário, de modo prudente e inovador, sepultou o
paradigma estritamente liberal – o qual buscava no ordenamento jurídico o sustentáculo
para legitimar a produção econômica materialmente desregrada e irresponsável
socialmente – da superfície normativa constitucional e, por meio de uma viragem ética,
recepcionou uma nova (e paradigmática) concepção holística e juridicamente autônoma de
meio ambiente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando se fala em incentivos fiscais, está-se analisando a maneira pela qual a
linguagem do direito positivo projeta-se sobre o campo material das condutas
intersubjetivas e leva a incidência da norma jurídico-tributário. A Introdução de normas
jurídicas positivas no ordenamento jurídico brasileiro espelha adoção de um modelo
intervencionista estatal, desenhando um arquétipo estatal que não se abstém de promover
condutas desejadas, inclusive por meio da maleabilidade da carga tributária incidente em
determinadas atividades.
A vertente finalística dos incentivos fiscais reclama a observância das diretrizes e
objetivos constitucionais, a fim de que a sua utilização tenha por escopo a indução de
comportamentos aclamados pelo legislador constituinte, dentre os quais se inserem as
condutas ambientalmente saudáveis. Nessa perspectiva, a ecologização da Constituição
não atribuiu ao Estado tão somente o dever de adotar condutas sustentáveis na realização
de políticas públicas materiais, mas, e, sobretudo, o compromisso de induzir a adoção de
28
condutas em conformidade com os limites e potencialidades da natureza por meio de
sanções jurídicas positivas.
Assim, valendo-se da conexão entre direito, economia e realidade fática, os
incentivos fiscais se revelam uma importante ferramenta de criação de políticas fiscais de
efeitos sustentáveis, incorporando a defesa do meio ambiente na matriz estruturante do
direito tributário, adequando-o às novas prioridades estatais.
REFERÊNCIAS DAS FONTES CITADAS
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Constituição Brasileira. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato.
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como princípio constitucional sistêmico e sua relevância na efetivação interdisciplinar da
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Disponível
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29
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Trad. Regina D´Angina. 2.ed., São Paulo: Ícone, 2003
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brasileira. In: Machado, Hugo de Brito (org.). Regime jurídico dos incentivos fiscais. São
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nas democracias contemporâneas. In: Machado, Hugo de Brito (org.). Regime jurídico dos
incentivos fiscais. São Paulo: Malheiros, 2015.
30
A JURISDIÇÃO COMO INSTITUIÇÃO INDISPENSÁVEL PARA A PRÁTICA
DEMOCRÁTICA E PARA A CONCRETIÇÃO DOS DIREITOS COLETIVOS
Angela Araujo da Silveira Espindola1
Jaqueline Mielke da Silva2
INTRODUÇÃO
A presente reflexão pretende uma compreensão da jurisdição desde a sua
concepção clássica até a jurisdição moderna, com vistas a sublinhar, neste trajeto, a
emergência dos novos direitos, especialmente dos direitos coletivos. A primeira parte
intitulada dedica-se a demonstrar a insuficiência da jurisdição ante estes direitos. Faz-se,
ainda, um acompanhamento da construção dos direitos transindividuais ao longo da
evolução da própria concepção de Estado. A segunda parte deste ensaio propõe uma
releitura da jurisdição enquanto instância necessária para a prática democrática
conduzindo, assim, à terceira parte do ensaio, a qual, descartando o modelo normativistalegalista e o modelo funcionalista, sustenta a metodologia jurisprudencialista como
alternativa para a superação do esgotamento do paradigma liberal individualista enquanto
obstáculo para a concretização dos direitos coletivos. Reconhece-se, assim, o direito como
dimensão constitutivamente indefectível do Estado, impactando, por certo, na concepção
da jurisdição estatal, que precisa “coletivizar-se” para além da democratização do Estado.
1
Doutora e Mestre em Direito Público pela Unisinos. Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade
Meridional / IMED. Professora Adjunta do Departamento de Direito da UFSM e Colaboradora do Programa de PósGraduação em Direito da UFSM. Advogada.
2
Doutora e Mestre em Direito Público pela Unisinos. Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul – PUC/RS. Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Meridional
/ IMED. Professora dos cursos de Graduação e Pós-Graduação da Faculdade Inedi - CESUCA. Advogada.
31
2. A PROTEÇÃO DOS DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS E OS COMPROMISSOS HISTÓRICOS E
IDEOLÓGICOS DA JURISDIÇÃO MODERNA
A concepção de jurisdição necessariamente deve atentar para o fenômeno da
proteção dos direitos transindividuais. A jurisdição coletiva apresenta características
próprias que a distinguem da jurisdição individual, razão pela qual merece tratamento
diverso. Carlos Lunelli bem observa que “a prestação da tutela jurisdicional ambiental se
apresenta como um dos desafios do Estado contemporâneo. A ideologia que permeia o
processo, dando-lhe nítido comprometimento privatista é, certamente, um dos entraves
que se apresentam para a efetiva tutela do bem ambiental”. E a partir desta compreensão
propõe, uma releitura do direito processual, ou seja, “a compreensão de institutos
presentes em sistema jurídico diverso, divorciado da inclinação privatista e capaz de
representar maior possibilidade de proteção dos direitos e interesses transindividuais,
sobretudo os ambientais”3.
Em razão das modificações ocorridas no modelo liberal/individualista de Estado4,
houve uma verdadeira revolução em termos de categorias, direitos e de meios de proteção
aos mesmos5. Os direitos deixam de ter uma feição meramente individual, passando a ter
uma dimensão coletiva. Tais direitos 6 , além de evidentemente escaparem à tradição
liberal/individualista, colocam-se como indispensáveis à sobrevivência contemporânea 7 .
3
LUNELLI, Carlos Alberto. Por um novo paradigma processual nas ações destinadas à proteção de bem ambiental. A
contribuição do contempt court. In: Carlos Alberto Lunelli e Jefferson Marin. Estado, meio ambiente e jurisdição, p.
147-148.
4
No seu nascedouro, o Estado de Direito emerge aliado ao conteúdo do próprio liberalismo. Assim, os liames jurídicos do
Estado têm relação direta com a concreção do ideário liberal no que diz respeito ao princípio da legalidade (submissão
do poder estatal à lei, divisão de poderes e garantia de direitos individuais).
5
A consagração dos direitos sociais não é uma descoberta do século XX, na exata medida em que as Declarações de
Direitos da Revolução Francesa já estabeleciam obrigações positivas do Estado nos domínios do ensino e da assistência
social, o que viria a ser aprofundado nas constituições do século XIX.
6
Mauro Cappelletti refere, ao tratar do assunto, “que no campo jurídico o Estado Social incorporou novos direitos das mais
variadas ordens, direitos sociais dos pobres, os direitos sociais dos trabalhadores, os direitos sociais das crianças e dos
velhos, das mulheres, dos consumidores, do meio ambiente, etc”. CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. Revista do
Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Vol. I, separata, n. 18, p. 8-14, 1985.
7
François Ost cita algumas características que afastam para sempre a projeção contraditória entre direito subjetivo e
interesse: “a) O interesse, estando na base dos principais conceitos jurídicos, mesmo na de direito subjetivo, tem assim,
um caráter onipresente, aparecendo, desta forma, para além das pretensões asseguradas pela ordem jurídica; b)
Paralelamente a esta onipresença e, talvez em consequência mesmo desta presença constante, a noção de interesse se
caracteriza por uma imprecisão no seu significado, o que implica uma recorrente confusão e, mesmo, identificação entre
32
São direitos que atingem toda a coletividade; referem-se a categorias inteiras de indivíduos
e exigem uma intervenção ativa, não somente uma negação, um impedimento de violação
– exigem uma atividade. Contrariamente a um direito excludente, negativo e repressivo,
com feição liberal, tem-se um direito comunitário, positivo, promocional, de cunho
transformador8.
O ponto central da questão deixa de ser o individual, passando a ser
predominantemente o coletivo (´lato sensu´). A socialização e a comunitarização dos
interesses têm papel fundamental 9 . Assim, observa-se que os direitos transindividuais
(coletivos em sentido estrito mais difusos mais individuais homogêneos) escapam da
dimensão privada do modelo jurídico liberal e se caracterizam por uma amplitude não
apenas jurídica, em sentido estrito, mas também socioeconômica, tendo em vista que
importam muitas vezes no desapego, afastamento e/ou negação dos postulados liberais
tradicionalmente aceitos como meios de sanabilidade das controvérsias. Portanto, a
variabilidade e complexidade dessas questões coletivas fazem com que caminhos distintos
para sua resolução devam ser adotados. A resolução dos conflitos coletivos reclama a
negação dos postulados do modelo liberal/individualista10.
interesse e direito; c) De outro lado, o interesse adquire, como noção funcional ou operatória, uma leveza (souplesse)
que contrasta com a rigidez própria do direito subjetivo. Assim é que, à titularidade exclusivista do direito subjetivo se
contrapõe a titularidade difusa, indeterminada ou coletiva dos interesses; da mesma forma, os interesses estão
vinculados a valores novos especificados, apontando para objetivos abertos, ampliados; d) Por fim, o interesse incorpora
um traço subversivo, apontando novos atores, novos objetos, bem como implica uma relativização de direitos
tradicionais - o caso da propriedade que vê agregada a noção de função social, assumindo um interesse difuso da
coletividade - é exemplar. A preferência pela utilização do termo direito apenas para o âmbito dos interesses
juridicamente protegidos que têm sua titularidade ligada ao indivíduo aponta para os vínculos que se estabelecem entre
a noção de direito e sua projeção como direito individual, uma tradição vinculada ao liberalismo. Assim, direito seria
aquele fato juridicamente definido para o qual temos uma titularidade e um sujeito definidos, além de um objeto
perfeitamente delimitado, ou seja, identifica-se com a noção de direito subjetivo. Há, entre direito e interesse, uma
vinculação na qual à preponderância daquele se reflete uma negação deste. Ou seja: a hegemonia do direito subjetivo
implica a desqualificação do interesse como portador de alguma relevância jurídica”. Ver: OST, François. Entre Droit et
Non-Droit: l ´intérêt - Essai sur les fonctions qu´exerce la notion d´intérêt en droit privé, p. 106-107.
8
MORAIS, José Luís Bolzan. Do direito social aos interesses transindividuais: o Estado e o Direito na ordem
contemporânea, p. 96.
9
Lenio Streck afirma que “o Estado Democrático de Direito representa, assim, a vontade constitucional de realização do
Estado Social. É nesse sentido que ele é um plus normativo em relação ao direito promovedor-intervencionista próprio
do Estado Social de Direito. Registre-se que os direitos coletivos, transindividuais, por exemplo, surgem no plano
normativo, como consequência ou fazendo parte da própria crise do Estado Providência”. STRECK, Lenio. Hermenêutica
jurídica e (m) crise, p. 37.
10
Neste sentido, recomenda-se a leitura de LUNELLI, Carlos Alberto; MARIN, Jefferson. O contributo do contempt of court
33
Tratam-se de interesses que se referem simultaneamente a mais de um indivíduo,
ou seja, cada pessoa possui um interesse idêntico qualitativamente à outra e, portanto, não
diferenciado. Conforme refere Mauro Cappelletti 11 , cada indivíduo que compõe a
coletividade ou o grupo possui um interesse fragmentado, exatamente idêntico ao do outro
que compõe essa mesma coletividade ou esse mesmo grupo. Há, portanto, que se revisitar
os paradigmas até então vigentes12 e, para tanto, voltar os olhos para o perfil do Estado sob
o qual estes direitos se pretendem concretizar.
Na sequência de transformações verificadas no Estado de Direito, percebe-se que a
garantia de liberdades negativas, privilegiando o indivíduo, e a promoção de liberdades
positivas, atendendo ao bem-estar comum, deixaram de ser suficientes para suprir os
anseios da sociedade da época, a qual passava a reivindicar uma pretensão à igualdade.
Deu-se, assim, uma tentativa de transformação do status quo com o acréscimo do elemento
democrático ao Estado de Direito. Trata-se do Estado Democrático de Direito.
Os modelos do Estado Liberal de Direito e do Estado Social de Direito não conseguem
dar conta das progressivas e constantes demandas sociais, em especial no âmbito do ideal
de liberdade e igualdade, da limitação do poder, da proteção e implementação dos
direitos.13 O novo modelo de Estado de Direito – o Estado Democrático de Direito – tem o
objetivo de imprimir o ideal democrático ao Estado de Direito, em que a “preocupação
básica é a transformação do status quo”. 14 O Estado Democrático de Direito, segundo
Bolzan de Morais e Streck, possui um “conteúdo transformador da realidade”, distinguindose do Estado Social de Direito, que visava à “adaptação melhorada das condições sociais de
existência”.15 Streck vai dizer que “o Estado Democrático de Direito representa, assim, a
para o processo ambiental. Revista de Processo, v. 218, p. 47-64, 2013.
11
CAPPELLETTI, Mauro. Tutela dos Interesses Difusos. In: Revista AJURIS, n. 33, p. 169.
12
MARIN, Jefferson. A necessidade de superação da estandartização do processo e a coisa julgada nas ações coletivas da
tutela ambiental. In: Carlos Alberto Lunelli e Jefferson Marin (org.). Estado, meio ambiente e jurisdição, p. 51-92.
13 LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas hermenêuticas dos direitos humanos e fundamentais no Brasil. p.77.
14 BOLZAN DE MORAIS, José Luis. Do direito social aos interesses transindividuais: o estado e o direito na ordem
contemporânea, p.74.
15 STRECK, Lenio Luiz; BOLZAN DE MORAIS, José Luiz. Ciência política e teoria geral do Estado. p.90.
34
vontade constitucional de realização do Estado Social”.16 O Estado, enquanto fenômeno da
modernidade, teve várias roupagens, todas elas com consequências para a concepção de
direito e de jurisdição de um determinado período.
3. POR UMA RELEITURA NECESSÁRIA DO DIREITO E DO PROCESSO: IMPACTOS NA
CONCEPÇÃO DA JURISDIÇÃO
Uma releitura do direito e do processo civil modernos é condição de possibilidade
para a superação do direito enquanto sistema de regras e para a assunção de uma
materialidade ocupada pelos princípios. Já não é novidade que grande parte dos direitos,
tanto de cunho patrimonial como não patrimonial, não podem ser adequadamente
protegidos, sequer concretizados, através da função reparadora e individualista exercida
pela jurisdição. Não raro é possível verificar a inefetividade desta função jurisdicional.
O resultado desta releitura será a abertura de espaço para um novo cenário, para
um novo paradigma hermenêutico ou, quiçá, para a libertação do direito dos grilhões
paradigmáticos, favorecendo, deste modo, o reconhecimento de que o direito nasce do fato
e não da lei. É preciso, no entanto, estarmos dispostos a essa releitura, suspendendo alguns
prejuízos e desconfiando de algumas obviedades que se costumam reproduzir sem uma
reflexão mais profunda.
Ora, o desvelamento dos novos direitos – o processo de multiplicação de direitos –
que se verifica a partir dos últimos séculos, seja pelo aumento de bens a serem tutelados,
seja pelo aumento do número de sujeitos de direito ou ainda pela ampliação dos status dos
sujeitos,17 somados às alterações no perfil da sociedade brasileira e do Estado moderno
(desde o modelo liberal clássico, passando pelo (ou saltando o) Estado Social, até chegar –
ou pretender chegar – ao Estado Democrático de Direito),18 exige (a) que se questione o
16 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. p.39.
17Sobre a multiplicação dos direitos, consultar: BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. Ver
também: OLIVEIRA JR., José Alcebíades. Teoria jurídica e novos direitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000.
18Sobre as diversas roupagens do Estado moderno, consultar: STRECK, Lenio Luiz; BOLZAN DE MORAIS, José Luiz. Ciência
política e teoria geral do estado. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
35
papel da jurisdição ante a concretização dos direitos e (b) que se reconheça a função social
do direito processual, superando a falsa ideia de que o processo se reduz a simples
procedimento.
Esses problemas podem ser apresentados como pertencentes a duas categorias,
conforme expõe Castanheira Neves: são os problemas estruturais ou externos ao exercício
da jurisdição e o problema intencional, ou seja, o problema do sentido, do sentido da
jurisdição, o qual orienta a discussão sobre a Crise do Juiz, a Crise da Justiça. Crises essas
que não podem se traduzir exclusivamente ao negativo circunstancial, mas, em especial, à
consumação histórico-cultural de um sistema, ou seja, perda contextual de sentido das
referências até então regulativas. Para adotar uma terminologia que já faz parte do
modismo intelectual, a crise representa o cenário de um paradigma que, antes em vigor,
agora se esgotou, clamando por um novo paradigma, por um novo modelo de pensamento.
É evidente que o principal elemento fundante dos sistemas e dos paradigmas não se
concentra na sua estrutura, mas antes no seu sentido, eis que se a estrutura organiza e
permite o funcionamento do sistema ou de um paradigma, só o sentido funda e
constitutivamente sustenta. Por esta razão, concorda-se com Castanheira Neves, quando,
enfaticamente, alerta que uma crise só pode ser superada pela reflexão fundadora de um
novo sentido. Se assim for, não há como fundar um novo sentido sem distinguir os
problemas estruturais e o problema intencional, traçando uma reflexão crítico-reflexiva
acerca dos mesmos.19
Os problemas estruturais – externos ao exercício da função jurisdicional –
consideram o poder, a organização, a responsabilidade e o modo desse exercício, mas não
se referem à intencionalidade material da própria jurisdição como jurisdição e o sentido
que ela assume e realiza. Dizem o modo do fazer jurisdicional, mas não dizem “o que é”
esse fazer ou “o que” nele se faz. São (a) os problemas diretamente político-constitucionais;
19Nesse sentido, ver: CASTANHEIRA NEVES, António. Entre o “legislador”, a “sociedade” e o “juiz” ou entre “sistema”,
“função” e “problema”: os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do direito. In: Boletim da
Faculdade de direito da Universidade de Coimbra, op. cit., p.1-44.
36
(b) o problema institucional; e (c) o problema da legitimação decisória. Os problemas
estruturais ou externos são condições de possibilidade da jurisdição que se pretende, mas
o problema intencional ou interno compreende os momentos constitutivos da jurisdição,
toca a essência, e não a forma; a substância, e não o procedimento. Assim, tem-se que a
realização da essência está condicionada pela correta ou adequada solução dada aos
problemas estruturais; a solução correta ou adequada será um correlato funcional do que
seja ou se pretenda que seja a jurisdição enquanto tal. Como bem refere Castanheira Neves,
pensar o sentido da jurisdição é pensar a sua relação com o direito (juris-dictio), o que
significa que um diferente sentido do direito implicará correlativamente um diferente
sentido da jurisdição chamada a realizá-lo. Importa, portanto, mais que discutir problemas
estruturais do poder judiciário e da jurisdição, investigar sobre o problema do sentido, do
sentido da jurisdição, para que assim seja possível ressignificar o direito e a jurisdição e,
consequentemente o próprio papel do jurista.20
O magistrado na jurisdição coletiva não é imparcial tal como é na jurisdição que
tutela direitos individuais, razão pela qual as concepções de Antônio G. Micheli e Ovídio
Baptista da Silva revelam-se insuficientes para explicar a jurisdição coletiva. O que
efetivamente caracteriza a jurisdição coletiva, no estado social e democrático de direito, é
a presença de um terceiro que integra o conflito de interesses. No âmbito da tutela coletiva
o magistrado não pode ser visto como um terceiro imparcial, mas como um agente que
transforma a realidade social, realizando direitos fundamentais. A imparcialidade do
magistrado, embora mais fácil de ser compreendida no âmbito das ações individuais,
também é bastante criticada e questionada, principalmente nas ações individuais que
tenham por objeto direitos sociais e individuais homogêneos, que também se classificam
como transindividuais.
Assim, a jurisdição pode ser definida a partir da presença de um terceiro - que é o
magistrado -, que tem por função primordial a realização de direitos fundamentais. Como
20 CASTANHEIRA NEVES, António. Entre o “legislador”, a “sociedade” e o “juiz” ou entre “sistema”, “função” e
“problema”: os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do direito. In: Boletim da Faculdade de
direito da Universidade de Coimbra, op. cit., p.1-44.
37
integra o conflito, o magistrado tem um papel fundamental nas ações que tem por objeto
interesses coletivos, que é a de realizar direitos fundamentais.
Neste sentido, Michele Taruffo21 aponta três linhas para uma reflexão orientada à
superação da situação problemática no direito processual civil, admitindo que são aspectos
que poderão alcançar também ao processo penal e, ainda, para além do contexto italiano,
pois se trata de situação comum a muitos países. A primeira direção rumo à superação da
situação problemática no direito processual seria uma mudança na cultura processualista,
que se sobreponha a atitudes obsoletas, formalistas da dogmática tradicional. A segunda
direção é no sentido da recuperação e reformulação dos valores fundamentais e dos
princípios gerais considerados válidos para o processo. A terceira direção está na
redefinição da sistemática dos instrumentos de tutela processual.
Surge, portanto, a necessidade de uma nova forma de atuação do direito e dos
juristas, que passa por quatro principais aspectos: (a) a recuperação de sentido do direito;
(b) a recuperação do papel do poder (função) judicial; (c) a concretização jurídica e social
dos direitos e (c) a rediscussão do direito Processual. Portanto, para que se alcance algum
contributo para o processo civil moderno, não se pode furtar-se de, antes, investigar sobre
o sentido do direito e os modelos jurisdicionais de realização do direito, buscando, com isso,
identificar indícios da superação de velhos paradigmas e diagnosticar um novo caminho
para o direito e, consequentemente, para o direito processual civil.
Não se trata de apresentar soluções, mas antes de um “problematizar o problema”
da (in)efetividade da jurisdição e sua insuficiência na proteção de direitos difusos e
coletivos, sem ocultar a fragilidade das reformas processuais propostas pelo establishment
e das construções doutrinárias, eis que reproduzem o paradigma dominante, sem
problematizá-lo, sem revelá-lo, sem um “dar-se conta”, sem o necessário enfrentamento
da crise de paradigmas que assola o direito e o Processo22.
21TARUFFO, Michele. “Racionalidad y crisis de la ley procesal”. In: Doxa: Cuaderno de Filosofia del Derecho, n.22, 1999,
p.311-320.
22
LUNELLI, Carlos Alberto; MARIN, Jefferson. O Direito como ciência do espírito: a necessidade de mudança paradigmática
do processo. RECHTD. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito, v. 4, p. 165-174, 2012.
38
Retomando a sugestão de Michele Taruffo sobre as três linhas para uma reflexão
acerca da superação da situação problemática atual, é possível identificar alguns indícios
que atestam já está superação, com repercussão nas tarefas da função jurisdicional e na
atual situação jurídico-jurisdicional.
Ao falar sobre isso, Castanheira Neves detecta alguns fenômenos jurídicos que
indicam a superação do positivismo, quais sejam: (a) a recuperação da autonomia
normativo-intencional do direito perante a mera legalidade, na medida em que há uma
renovada distinção entre lex e ius, seja por meio da preferência jurídica dos direitos
(fundamentais) perante a lei, seja pelo reconhecimento de princípios normativos
translegais (que transcendem a lei/legalidade); e (b) o reconhecimento de limites
normativo-jurídicos da lei (os limites objetivos, os limites intencionais e os limites
temporais).
Ainda no cenário atual, (re)afirmam-se direitos fundamentais nas Constituições e
princípios normativamente materiais, colocados antes e acima da lei. Esta deixa de ser o
fundamento de validade jurídica dos direitos, e estes – reconhecidos como fundamentais –
passam a condicionar a validade daquela. A normatividade passa a ser determinada
realizando-se e na sua realização, eis que reconhecida na práxis histórico-social. Torna-se já
impossível continuar a identificar o direito com a legislação, bem como a idealizar o poder
judicial como um poder nulo, acético, insípido. Daí falar-se na necessária revisão do
problema das fontes do direito e do princípio da separação dos poderes.23 Para expressar
este contexto, Castanheira Neves, num esforço de síntese, vai afirmar que
as normas legais esperam a sua aplicação e em último termo visam-na, mas podem
compreender-se e determinar-se sem ela, ou seja, na sua subsistência abstrata; não assim
os princípios, já que o seu verdadeiro sentido não é determinável em abstrato, só em
concreto, porque só em concreto logram a sua determinação e se lhes pode atingir o seu
autêntico relevo. E decerto que a essa sua determinação em concreto será chamada, numa
responsabilidade iniludível, a jurisdição nos seus juízos decisórios em soluções das
23 LUNELLI, Carlos Alberto; MARIN, Jefferson. O Direito como ciência do espírito: a necessidade de mudança
paradigmática do processo. RECHTD. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito, v. 4, p.05
e 12-13.
39
controvérsias práticas suscitadas pela invocação daqueles mesmos direitos e destes
princípios.24
Afora a recuperação da autonomia normativo-intencional do direito perante a mera
legalidade, a superação do positivismo implica o reconhecimento de limites normativojurídicos que fazem ver que é através da jurisdição que vai se dar a realização concreta do
direito, em necessária intenção normativamente constituída. Esses limites desvelam o
espaço do poder judicial, da jurisdição e do papel do juiz. O direito legalmente positivado
não alcança a dinâmica social, ficando aquém do domínio histórico-socialmente
problemático a que terá de responder jurídico-normativamente. Isto significa que este
limite objetivo exige um desenvolvimento autônomo do direito através da sua própria
realização, ou seja, da sua jurisprudencial realização, afirmando-se não como um sistema
fechado, mas antes como um sistema aberto. De outro lado, existem limites intencionais
que fazem reconhecer que a realização do direito está para além de um sentido lógicodedutivo e formal, apresentando-se como insuficiente a subsunção da lei ao caso. A
realização do direito vai assumir um sentido normativamente material, mostrando-se
concretamente adequada ao mérito problemático dos casos decidendos e normativamente
justificada em referência aos fundamentos axiológico-normativos que dão sentido
normativo material ao próprio direito.
Por fim, há também os limites temporais,
catalogados por Castanheira Neves ao lado daqueles objetivos e intencionais. Todos eles
desconsiderados pelo positivismo. Os limites temporais, assim, surgem do reconhecimento
da dimensão histórica do direito e do seu sistema normativo. O positivismo, em qualquer
de suas vertentes, vai ignorar esta dimensão histórica, operando a partir de uma
racionalidade lógico-abstrata revestida por uma subsistência atemporal, a-histórica.25
24 LUNELLI, Carlos Alberto; MARIN, Jefferson. O Direito como ciência do espírito: a necessidade de mudança
paradigmática do processo. RECHTD. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito, v. 4, p. 07.
25 LUNELLI, Carlos Alberto; MARIN, Jefferson. O Direito como ciência do espírito: a necessidade de mudança
paradigmática do processo. RECHTD. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito, p.08-09.
40
4. A JURISDIÇÃO COMO INSTITUIÇÃO INDISPENSÁVEL PARA A PRÁTICA DEMOCRÁTICA:
A METODOLOGIA JURISPRUDENCIALISTA
Na perspectiva de Castanheira Neves, duas alternativas emergem. De um lado, é
possível que a resposta seja a opção por uma sobrevalorização da estratégica político-social,
assumindo-se o político como o único protagonista e, consequentemente, a função judicial
como operador tático, através de meios institucionais e normativo-decisórios; ou seja, a
jurisdição passa a ser instrumento desta estratégia político-social ou longa manus. E, de
outro lado, é possível que a resposta seja não uma disputa entre poderes, mas de afirmar o
direito ao poder, de reconhecer o direito como dimensão constitutivamente indefectível do
Estado e, assim, o Estado verdadeiramente como Estado de Direito. Neste caso, a
universalidade de certos valores e princípios normativos em que todos se reconheçam é
irrenunciável. É nesta universalidade axiológico-normativa que se traduz a autonomia do
direito, para Castanheira Neves; terá de reconhecer-se no direito a “medida de poder”, ou
seja, a sua validade crítica perante o político. Ao reconhecer-se esta autonomia do direito,
há que se chamar uma instância para contrapor-se à unidimensionalidade (ou totalitarismo)
do político. E esta instância, por certo, não há de ser o poder legislativo ou a legislação, haja
vista o seu compromisso político. A lei não é por si só o direito, podendo, inclusive,
manifestar-se em contradição com ele. Esta instância há de ser o poder judicial, a jurisdição.
Daí assumir-se a defesa da jurisdição estatal como instituição indispensável para a prática
democrática, para o exercício da cidadania e para a realização da Constituição. Resta clara,
portanto, a opção assumida por esta segunda alternativa, que se contrapõe a perspectiva
de uma jurisdição enquanto mero instrumento a serviço da estratégia político-social, na
qual o político é o único protagonista.26
Mas, ainda assim, o problema do sentido da jurisdição não se põe como solucionado.
26Ver, dentre as obras de Castanheira Neves: CASTANHEIRA NEVES, António. O direito hoje e com que sentido? (O
problema actual da autonomia do direito). Lisboa: Instituto Piaget, 2002; CASTANHEIRA NEVES, António. Entre o
“legislador”, a “sociedade” e o “juiz” ou entre “sistema”, “função” e “problema”: os modelos actualmente alternativos
da realização jurisdicional do direito. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Volume LXXIV,
1998, Coimbra, Universidade de Coimbra, p.14; CASTANHEIRA NEVES, António. Metodologia jurídica: problemas
fundamentais, Coimbra: Editora Coimbra, 1993.
41
É preciso agora investigar sobre os modelos de juridicidade e seus correlativos modelos de
jurisdição, entre os quais se pode continuar no caminho para uma resposta. Para tanto,
assume-se a perspectiva de Castanheira Neves, a partir da qual são identificados os três
modelos atualmente alternativos de realização jurisdicional do direito, os quais se
apresentam entre o legislador, a sociedade e o juiz. Estes três modelos são: o normativismo
legalista, o funcionalismo jurídico e o jurisprudencialismo.
Não se pode ignorar as tentativas de recuperação desse normativismo legalista, sob
outras roupagens: pela restauração do liberalismo radical, pelo pensamento jurídico
analítico ou, como alerta Castanheira Neves, pelo funcionalismo sistêmico, em alguma
medida. O normativismo legalista não pode ser menosprezado, sob pena de deixar-se
conduzir pelo canto da sereia. Se assim for, importante visualizar o normativismo legalista
de que trata Castanheira Neves, perspectivado pelo individualismo moderno-liberal e
iluminista, conforme já sinalizado noutra oportunidade. O normativismo legalista conta
com um determinante antropológico, na medida em que a compreensão que o homem tem
de si traz implicitamente a sua compreensão sobre o direito e a sociedade. Assim, a visão
de mundo que penetrava no século XVI até o século XVIII, radicava na autonomia humana,
na ruptura com a ordem teológico-metafísico-cultural transcendente. Àquele tempo, o
homem assumia como fundamento único de sua ação e de seu saber, respectivamente a
liberdade e a razão, uma razão em diálogo com a experiência empírica. Paralelamente,
afirmava-se ainda a secularização e a emancipação do econômico, especialmente em
relação aos quadros ético-religiosos. Assim, o domínio da práxis social era o domínio dos
interesses, expressão prática da liberdade. A consequência foi a emergência do
individualismo moderno-iluminista e do racionalismo.27
O Racionalismo, posto como pano de fundo do normativismo legalista, passa a ser a
expressão da ratio moderna – uma razão autofundada em seus axiomas e sistematicamente
dedutiva nos seus desenvolvimentos; uma razão que deixa de ser ontológico-metafísico27CASTANHEIRA NEVES, António. Entre o “legislador”, a “sociedade” e o “juiz” ou entre “sistema”, “função” e “problema”:
os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do direito. In: Boletim da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra, op. cit., p. 15.
42
hermenêutica como a razão clássica; uma razão como sistema, uma razão cartesiana –. No
contexto dessa visão de mundo, a visão de homens livres, racionais e, na sua liberdade,
também iguais, exigia-se a institucionalização de um novo poder, cujo sentido fundante
estaria no contrato social. Um contrato social perspectivado por Thomas Hobbes, por John
Locke, por Jean-Jacques Rousseau ou por Immanuel Kant. A consequência, por certo, deste
novo sentido fundante, aquele que o contrato constituísse, seria a constituição de uma
legalidade: o direito reduzido à lei.
Foi a crise do normativismo legalista e as modificações ocorridas na cultura europeia
no início da modernidade que abriram espaço para um novo modelo de judicialidade: o
funcionalismo jurídico.28 Este modelo de realização do direito assume como referencial
não mais o indivíduo (como o faz o normativismo legalista) ou uma associação atomística
de indivíduos, mas sim a sociedade, teorizada enquanto sistema social pensado
funcionalmente, um sistema que funcionaliza todos os seus elementos e as suas dimensões,
inclusive o próprio direito.
O pensamento moderno, entre os séculos XVIII e XIX, trouxe uma nova compreensão
sobre o ser. Essencialmente diferente do pensamento clássico, o moderno se enraíza na
história. Rompe-se com os compromissos platônico-aristotélicos e a atitude contemplativa
perante o ser. O homem moderno viu-se perante um mundo de faticidade empírica e de
causalidade, axiologicamente neutro29 e a modernidade associou-se, dentre outros, à ideia
de que o mundo é passível de transformação pela intervenção humana e, portanto, as ações
sociais dos indivíduos são mediadas por algum tipo de interesse com um sentido objetivo:
um outro tipo de racionalidade passou a permear todo o agir social.
Ora, a racionalidade invocada pelo funcionalismo jurídico, na verdade, consiste em
uma racionalidade finalística (zweckracionalitat), não-axiológica (wertrationalitat) para
falarmos com Max Weber.30 Ou, ainda, de uma razão como instrumento, sob um aspecto
28Integra-se, no âmbito do funcionalismo jurídico, o Critical Legal Studies Movement.
29As influências de Descartes e Leibniz foram determinantes para esta ruptura com o pensamento clássico e para uma
nova compreensão do ser.
30 WEBER, Max. Economía y sociedad: esbozo de sociología comprensiva. 10. ed. Fondo de Cultura Económica: México,
43
utilitarista: uma razão instrumental na perspectiva de Max Horkheimer.31
Em Max Weber,32 a racionalidade implica adaptação dos meios aos fins. No entanto,
a zweckracionalitat é uma ação racional com relação a um objetivo, movida pelo sopesar
das vantagens, das utilidades, dos efeitos e dos danos, ou seja, pondera-se sobre fins, meios
e consequências que estão implicados na ação: enquanto a wertrationalitat é uma ação
racional com relação a um valor, que assume como referenciais princípios e um sentido
ético. A racionalidade finalística (formal), portanto, preocupa-se com o modo como se
atinge o conteúdo, e não com este propriamente dito – assume uma postura
procedimentalista. A racionalidade axiológica (material), de outro lado, preocupa-se mais
com o conteúdo, sem desconsiderar o modo de alcançá-lo, porém aquele é a principal
preocupação. A passagem do pensamento clássico para o pensamento moderno faz com
que as categorias da ação e do comportamento em geral não mais sejam as do bem, do
justo, da validade (axiológica material), e sim as do útil, da funcionalidade, da eficiência. O
processo de amplificação desta racionalidade vai repercutir em um atrofiamento dos
valores em relação aos fins; dos fundamentos em relação aos efeitos. E, claro, a legislação
– um dos principais meios mobilizados pelo funcionalismo jurídico – passa a ser vista e
tratada como instrumento da ação política, sem se reduzir às funções normativas de
garantia dos direitos ou segurança jurídica ou de limite dos poderes. 33 A preocupação
primeira da perspectiva funcionalista não está em saber particularmente o que é o direito,
mas sim, para que serve.34
1994.
31 HORKHEIMER, Max. Eclipse da razão. Rio de Janeiro: Editorial Labor do Brasil, 1976.
32 Foi Max Weber quem introduziu o conceito de ‘racionalidade’. WEBER, Max. Economía y Sociedad: esbozo de
sociología comprensiva. 10. ed. Fondo de Cultura Económica: México, 1994.
33 CASTANHEIRA NEVES, António. Entre o “legislador”, a “sociedade” e o “juiz” ou entre “sistema”, “função” e
“problema”: os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do direito. In: Boletim da Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra, p.17.
34A complexidade do funcionalismo jurídico vai justificar o seu desdobramento em modalidades distintas: o funcionalismo
político, o funcionalismo social-tecnológico, o funcionalismo socioeconômico e o funcionalismo sistêmico. Uma
abordagem detalhada sobre os mesmos não se faz imprescindível para atingir os objetivos propostos neste trabalho.
Para uma melhor compreensão sobre eles, vale a exposição e cuidadosa crítica que lhes faz Castanheira Neves ao longo
de sua obra. O primeiro deles – o funcionalismo político – encontra expressão na “teoria crítica do direito” ao assimilar
o projeto filosófico-social da Escola de Frankfurt, bem como no “Critical Legal Studies Movement”. O funcionalismo
social-tecnológico é percebido na “social engineering” de Roscoe Pound ou no racionalismo crítico de Hans Albert, que
44
Embora a perspectiva do funcionalismo possa trazer algumas contribuições, em
especial no contraponto que faz aos compromissos ideológicos assumidos pelo
normativismo legalista, ela peca por projetar o direito como mero instrumento a serviço de
finalidades externas ao direito. A decisão judicial, na concepção funcional do direito, é vista
como a realização de uma estratégia político-social, teleologicamente programada. É a
decisão-solução enquanto momento tático. Perspectiva esta sedutora, exatamente no
contexto atual, em que o homem se preocupa com a eficiência, a utilidade, o dano, porém
ignora, por vezes, o conteúdo e a materialidade de suas ações. Isso poderá conduzir o
direito à arbitrariedade, na medida em que o direito nada mais terá a falar, visto que, na
sua generalidade e realização concreta, é condicionalmente determinado pelos interesses
política ou socialmente mais adequados. Como bem alerta Castanheira Neves, o direito é
afinal puramente política, no funcionalismo político; simplesmente tecnologia ou
administração no funcionalismo social e econômico. Veja-se que o funcionalismo jurídico
não envolve as funções que o direito exerce na sociedade, mas antes as funções que se
pretende realizar através dele. Assim, pretender conferir funções ao direito ou realizar sua
função, não significa que se esteja assumindo uma opção pela perspectiva funcionalista,
mas, antes, uma opção pelo próprio direito e pelo homem, ou seja, uma opção
antropológico-cultural de que dependerá o sentido do direito e a sua subsistência enquanto
tal.35
Por fim, tem-se o jurisprudencialismo, trazido por Castanheira Neves como
contraponto aos radicalismos dos dois modelos anteriores (normativismo-legalista e
funcionalismo jurídico) e orientado por uma perspectiva polarizada no homem-pessoa,
sujeito da prática problemática-judicanda e assumido como a reafirmação/recuperação do
sentido da prática jurídica como iuris-prudentia: “axiológico-normativa nos fundamentos;
converte a teoria epistemológica de Karl Popper para o pensamento jurídico. Já o funcionalismo socioeconômico está
contido na “análise econômica do direito”, na perspectiva da “maximização da riqueza” de Richard Posner. Ainda nesta
perspectiva, tem-se a abordagem preponderantemente econômica do direito de Guido Calabresi e Ronald Coase.
Destaca-se, ainda, o funcionalismo sistêmico, cujos principais expoentes são Niklas Luhmann e Gunther Teubner.
35 CASTANHEIRA NEVES, António. Entre o “legislador”, a “sociedade” e o “juiz” ou entre “sistema”, “função” e
“problema”: os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do direito. In: Boletim da Faculdade de
direito da Universidade de Coimbra, p.31-32.
45
prático-normativa na intencionalidade e judicativa no modus metodológico”. O
jurisprudencialismo parte de uma perspectiva do homem-pessoa, ou seja, de uma
perspectiva em que o direito está diretamente a serviço de uma prática pessoalmente
titulada e historicamente concreto. 36 Nega-se, assim, a identificação da pessoa ao
“indivíduo” e se recusa o individualismo para desvelar a responsabilidade ética perante a
pessoa em todo o universo humano, bem como a responsabilidade ética da pessoa
relativamente a esse universo. Dito de outro modo, “a pessoa não é só sujeito de direitos,
sejam eles fundamentais ou outros, mas simultaneamente sujeito de deveres”. E mais: não
são os direitos simples reivindicações politicamente sustentadas, tampouco os deveres
exterioridades limitativas somente pelo cogente cálculo dos interesses e sempre
repudiavelmente sofridos, como acontece com a polarização prática do indivíduo, mas
manifestações mesmas da axiologia responsável e responsabilizante da pessoa. É esta
abordagem, conforme adiante se terá a oportunidade de explanar, que irá fundar e
fundamentar a crítica à abstração das pessoas e dos bens, própria da época do direito
liberal, e à sanção eminentemente ressarcitória no contexto do direito processual civil. A
assumir a defesa da jurisdição e do direito não se esgota em mudança de instituições, exigese mudanças de mentalidade. Afinal, não se faz futuro sem ideias.
Nessa perspectiva, uma concepção da jurisdição, da função judicial e do papel do juiz
passa, necessariamente, pela recompreensão do próprio homem, de seus compromissos,
passa pelo reconhecimento comunitário da pessoa e da sua dignidade ética, mas também
assume implicações normativas, consequentes desta recompreensão e reconhecimento.
Trata-se, nas palavras de Castanheira Neves, de uma “exigência de fundamento”, exigência
essa que, enquanto expressão de uma ratio, manifestação de um sentido, ou de um valor,
ou de um princípio transindividuais, está implicada no postulado do sujeito ético e na
intenção de um social compromisso prático em que a racionalidade não advém de um
teórico universal sistemático, mas por uma prática fundamentação normativa material. Sob
36 CASTANHEIRA NEVES, António. Entre o “legislador”, a “sociedade” e o “juiz” ou entre “sistema”, “função” e
“problema”: os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do direito. In: Boletim da Faculdade de
direito da Universidade de Coimbra, p.15 e 32.
46
esta ótica, o direito não se reduz a simples objeto normativo para uma determinação
estritamente racional, tampouco a mero instrumento ou meio de um heterônomo finalismo
funcionalmente eficiente, mas um “axiológico-normativo fim em si – ele próprio um valor
na validade que exprime”. Trata-se daquilo que Castanheira Neves designa por “consciência
axiológico-normativa da consciência jurídica geral da comunidade histórico-cultural”.37
Essa compreensão faz crer uma opção diversa, que não se enquadra nem no
jusnaturalismo, tampouco no positivismo jurídico. Assume-se o direito como “uma resposta
culturalmente humana ao problema também humano da convivência no mesmo mundo e
num certo espaço histórico-social” sem a necessidade ou a indisponibilidade ontológica,
mas sim com a historicidade e a condicionalidade de toda a cultura. O direito não é,
portanto, um dado, um “descoberto” pela “razão teorética”, mas, antes, é constituído por
exigências humano-sociais particulares explicitadas pela “razão prática”. E mais: não trata
simplesmente do resultado normativo de uma voluntas orientada por um finalismo de
oportunidade ou a mera expressão da contingência e dos compromissos político-sociais,
haja vista que a prática jurídica (decorrente também de uma prática histórico-cultural)
convoca constitutivamente na sua normatividade certos valores e certos princípios
normativos fundamentantes de uma certa cultura numa certa época. Recusa-se, assim, a lei
como critério jurídico para a decisão concreta, eis que se exige uma autônoma constituição
da solução jurídica – não se identifica nem se esgota no texto legal. Este é o núcleo da
concepção jurisprudencialista, que, acredita-se, muito poderá contribuir para o repensar do
direito processual civil, rompendo, assim, com as resistências hoje detectadas à função
preventiva do poder judicial, da jurisdição, e à reformulação do papel do juiz.38
A consequência, claro, é uma indeterminação normativa que vai exigir: primeiro,
37 CASTANHEIRA NEVES, António. A revolução e o direito. In: Digesta, v. 1, p. 51-239 (em especial p. 208-222); ___. Justiça
e direito. In: Digesta, v. 1, p. 241-286 (em especial p. 274-284) e ___. Entre o “legislador”, a “sociedade” e o “juiz” ou
entre “sistema”, “função” e “problema”: os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do direito. In:
Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, p. 35.
38 CASTANHEIRA NEVES, António. Metodologia jurídica: problemas fundamentais. Coimbra: Editora Coimbra, 1993 e
CASTANHEIRA NEVES, António. Entre o “legislador”, a “sociedade” e o “juiz” ou entre “sistema”, “função” e “problema”:
os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do direito. In: Boletim da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra, p.35-36.
47
uma determinação de índole dogmática a que são chamadas as normas legais, com a
complementaridade da reelaboração doutrinal e dos contributos jurisprudenciais (um
sistema normativo) e, segundo, uma índole de mediação judicativa a realizar-se na concreta
problematização dos casos decidendos (um problema prático). É exatamente a dialética
entre o sistema e o problema concentrados no objetivo judicativo de realização normativa
que desenha a racionalidade jurídica do jurisprudencialismo – racionalidade essa atenta à
intenção de justeza material em relação ao problema (numa perspectiva substancialista),
sem, contudo, ignorar a intenção de concordância normativa (que não se resume ao texto
legal, mas o transcende, para alcançar os princípios normativos).
Assim, o alargamento e aprofundamento da experiência problemática, enquanto
experiência também histórica, não causa estranheza, mas, antes, a angústia do
estranhamento,39 para falar com Heidegger. A mudança permanente nos horizontes de
expectativa do homem está implicada em novas intenções que, através de novos problemas
e novos sentidos às respostas, vão sendo assumidas, demarcando a capacidade
hermenêutica do direito. Não se admite uma sobrevalorização do sistema que se traduza
no axioma de que os problemas a emergir serão unicamente aqueles suscitados tal qual
idealizados. Novas perguntas (problemas) surgem, bem como outros sentidos para as
respostas, implicados em novas intenções, são assumidos: o direito realiza-se na sua
possibilidade de vir-a-ser, em constante tensão com o tempo. António Castanheira Neves
vai dizer que
o problema deixa de ser a expressão interrogante da resposta-solução já disponível, ou a
pergunta que antecipa e nos remete a essa resposta-solução, para ser uma pergunta que
ainda não encontrou resposta, uma experiência problemática que não foi absorvida por uma
intencionalidade dogmática acabadamente fundamentante.40
39Segundo Martin HEIDEGGER, a “angústia é a situação emotiva capaz de manter aberta a contínua e radical ameaça que
sai do ser mais íntimo e isolado do homem”. Diante da angústia, Heidegger afirma haver duas soluções: ou o homem
foge para a vida cotidiana, ou supera a angústia, manifestando seu poder de transcendência sobre o mundo e sobre si
mesmo (HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Parte II. 13. ed. Universidade São Francisco. Petrópolis: Editora Vozes, 2005).
40António CASTANHEIRA NEVES, António. Entre o “legislador”, a “sociedade” e o “juiz” ou entre “sistema”, “função” e
“problema”: os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do direito. In: Boletim da Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra, p.38.
48
Ou seja, o direito não é um dado, ou um objeto, mas, antes, um problema – um
“contínuo problematicamente constituendo”. Exatamente por isso cumpre a ele ultrapassar
o jurídico positivo e, como dito, recusar o texto de lei como critério jurídico para a decisão
concreta. Isso implica um diálogo problemático entre a norma (enquanto normativa solução
abstrata de um pressuposto problema jurídico tipificado) e as exigências normativas
específicas
do
caso
decidendo
compreendido
autonomamente.
Há,
portanto,
inevitavelmente uma mediação judicativa a que o intérprete (o julgador concretojudicativo) será chamado e – veja-se – de que será o responsável.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O jurisprudencialismo assume o paradigma da jurisdição centrado no juízo e não na
subsunção lógico-dedutivista ou na simples decisão. Juízo esse que não se identifica com
um qualquer raciocínio lógico, mas que, antes, realiza o sentido prático de julgar. É um juízo
da ponderação prática, de índole prático-argumentativa, que assume como critério
fundamentos 41 – ou seja, um juízo que, mediante uma ponderação argumentativa
racionalmente orientada, convoca posições divergentes e conduz a uma solução
comunicativamente fundada. É preciso alertar, no entanto, que o argumento não é, nesta
perspectiva, uma premissa, não se trata de uma proposição pressuposta de uma inferência
necessária. Se assim fosse, estaríamo-nos conduzindo para a mera subsunção lógicodedutiva. Trata-se, portanto, de juízos axiológico-normativamente críticos sobre o objeto
problemático de resolução, cuja principal função social está na afirmação de valores em seu
concreto cumprimento. Assim, para o jurisprudencialismo, a perspectiva normativa é
imanente e o seu tempo é o presente (não o passado, como na perspectiva legalista, nem
no futuro, como na perspectiva funcionalista), sendo indispensável o juiz e a sua
41Esses fundamentos não são considerados como premissas ou como efeitos, mas fundamentos propriamente dito, ou
seja, fundamentos em que a normatividade do sistema da validade se manifeste e se determine, como bem refere
Castanheira Neves (CASTANHEIRA NEVES, António. Entre o “legislador”, a “sociedade” e o “juiz” ou entre “sistema”,
“função” e “problema”: os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do direito. In: Boletim da
Faculdade de direito da Universidade de Coimbra, p. 41).
49
responsabilidade ética de projeção comunitária. O papel a ser assumido pelo juiz, nesta
quadra, não é o de mero funcionário, servidor passivo do legislador ou simples burocrata,
mas daquele que assume para si uma responsabilidade ética, que constitui o direito como
expressão humana. É esse juízo que importa considerar para uma revisão do direito
processual civil e de seus compromissos ideológicos.
Não há como desviar-se da perspectiva filosófico-fenomenológica para
compreender a situação problemática do direito hoje, especialmente no que se refere às
insuficiências do direito processual civil e os obstáculos à construção e à compreensão da
tutela jurisdicional preventiva. Ora, sem o exercício filosófico-reflexivo, o homem (e o
direito) torna-se simplesmente vítima do processo histórico e do curso dos fenômenos. Sem
uma “parada” filosófica, novas atitudes dos juristas de hoje não pode ser pensadas e o
direito não pode ser problematizado. Por óbvio, há que se pôr de lado aprofundamentos
filosóficos, primeiro por não ser este o objetivo da pesquisa, segundo por não se ter
condições e formação para fazê-lo. Porém, evidenciar os pontos de partida assumidos se
faz necessário. O itinerário não se assenta em “essências” ou em “a prioris” ontológicos,
mas assume a perspectiva do homem-pessoa e a defesa da jurisdição estatal, enquanto
instituição indispensável à prática de um regime verdadeiramente democrático.
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52
ATUAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE ACERCA DO DIREITO SOCIAL AO
LAZER E A IMPORTÂNCIA DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
Bruna Adeli Borges1
Silvia Helena Arizio2
INTRODUÇÃO
A Constituição Dirigente contém decisões políticas, institui os fins públicos a serem
alcançados, define os direitos individuais, a luta política e o poder de fiscalização e atuação
dos poderes estatais, bem como, define os objetivos a serem traçados pelo Estado.
A Carta Magna de 1988 se define como Constituição Dirigente através das chamadas
normas pragmáticas no sentido de melhorar as condições sociais e econômicas da
população, pois, visa garantir e efetivar os direitos sociais e confere maior estabilidade a
determinadas matérias para manutenção da paz. Já o direito fundamental social ao lazer,
também está assentado na Constituição Federal brasileira 1988. Deste modo, abrange
grandiosa dimensão de variedades de significados e aplicações, na vida dos brasileiros. Com
o passar do tempo, a sociedade humana tem se modificado e, para visionários idealistas,
tem evoluído muito. Principalmente nos últimos anos, a diversificação e as transformações
tecnológicas tem se dado em escala exponencial. No campo das ciências jurídicas e sociais,
isto tem sido constante. Assim, também na área do direito constitucional, especialmente
no tangente à realização dos direitos sociais, precisamente no direito ao lazer, há
necessidade de se verificar a transposição da norma ao cotidiano das pessoas.
1
Mestra
em
Direito
pela
Faculdade
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8210489605739125
2
Mestra em Direito pela Faculdade Meridional – IMED. Advogada. E-mail:
[email protected] Lattes:
http://lattes.cnpq.br/0270249244632821
Meridional
53
–
IMED.
E-mail:
[email protected]
Deste modo, a partir desta nova visão acerca dos direitos sociais, obrigatoriamente
existe a necessidade de abrangência e entendimento das transformações pela ciência
jurídica, inclusive, tendo por esteira o direito positivo. Especialmente, em torno da
aplicação do direito social ao lazer, o qual, aos poucos, tem gerado dúvidas e incertezas que
surgiram de dissídios filosóficos e desaguaram na pragmática.
O problema desta pesquisa pode ser descrito na seguinte indagação há possibilidade
efetiva na consolidação do direito social ao lazer expresso na Constituição Dirigente, frente
às diretrizes da sociedade pautada pelo desenvolvimento sustentável?
A hipótese de solução para essa pergunta surge a partir da visão diferenciada do
papel da Constituição Dirigente, do direito social ao lazer e do desenvolvimento através do
avanço tecnológico e da modernização social. É necessário, nesse argumento, que o
crescimento econômico seja considerado um fim em si mesmo. A partir deste cenário, a
Constituição Dirigente e o direito social ao lazer surgem como fundamento para estabelecer
os vínculos de uma sociedade com desenvolvimento sustentável.
O objetivo geral deste estudo é investigar como a Constituição Dirigente destaca a
efetivação do direito social e regulamenta o lazer através de políticas públicas direcionadas
para um desenvolvimento sustentável. Os objetivos específicos podem ser descritos como:
1) verificar a eficácia e a aplicabilidade das normas constitucionais que contêm direitos
sociais, especialmente, ao lazer; 2) estabelecer o alcance e a profundidade das políticas
públicas para efetivação do direito fundamental social ao lazer como aplicação das normas
constitucionais e como resultado desse poder-dever do ente público; 3) avaliar a forma de
desenvolvimento sustentável no direito social ao lazer aplicado na Constituição Dirigente.
O estudo utiliza como critério metodológico para o relato dos resultados
apresentados, o método dedutivo, assim como as técnicas de pesquisa bibliográfica3, da
3
“(...) Técnica de investigação em livros, repertórios jurisprudenciais e coletâneas legais”. PASOLD, Cesar Luiz.
Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. 12. ed. Florianópolis: Conceito Editoria/Millenium, 2011, p. 207.
54
categoria4, do conceito operacional5, da resenha e do referente. Além destes, outros podem
ser acionados para que o aspecto formal deste estudo se torne esclarecedor ao leitor.
Os fundamentos teóricos desse artigo são caracterizados por autores como José
Afonso da Silva, Fabio Corrêa Souza de Oliveira, Maria da Graça dos Santos Dias, José Eli da
Veiga, Neuro José Zambam, Márcio Ricardo Staffen, entre outras leituras necessárias e
trazidas para elucidar o presente estudo.
2. CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE E OS DIREITOS SOCIAIS
A Constituição de cada Estado é uma conquista de ganhos sociais ao longo da história
que inaugura um novo tipo de nação. A Constituição Brasileira de 1988 proporcionou um
avanço na consolidação das garantias, direitos fundamentais, direitos sociais e civis, bem
como protege os direitos políticos democráticos de qualquer interferência autoritária.
Neste sentido, deve ser compreendida6 como um sistema que privilegia os valores
sociais e elegeu o valor da dignidade humana como valor essencial. Desta forma, significa
que o valor da dignidade humana direciona a ordem da Carta Magna de 1988.
Destaca-se que a Constituição Federal de 1988 define as chamadas normas
constitucionais programáticas e institui a melhoria das condições sociais e econômicas da
população. Emana um Estado Social que visa garantir e efetivar os direitos sociais, o que
tornou a mais volumosa a adotar certos institutos de proteção no anseio de conferir maior
estabilidade a determinadas matérias que são indispensáveis à manutenção da paz.
4
“(...) palavra ou expressão estratégica à elaboração e/ou expressão de uma ideia” PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da
pesquisa jurídica: teoria e prática, op. cit., p.25.
5
“(...) uma definição para uma palavra ou expressão, com o desejo de que tal definição seja aceita para os efeitos das
ideias que expomos” (...) PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática, op. cit., p.37
6A constituição é algo que tem como forma, um complexo de normas (escritas ou costumeiras); como conteúdo, a conduta
humana motivada pelas relações sociais (econômicas, políticas, religiosas etc.); como fim a realização dos valores que
apontam para o existir da comunidade; e, finalmente como causa criadora e recriadora o poder que emana do povo.
Não pode ser compreendida e interpretada senão se tiver em mente essa estrutura, considerada como conexão de
sentido, como é tudo aquilo que integra um conjunto de valores. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional
Positivo, 19 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2001.p. 39.
55
Diante do exposto acima, afirma-se que a Constituição brasileira é dirigente, é o que
declaram vários doutrinadores, como por exemplo, José Joaquim Gomes Canotilho, Luís
Roberto Barroso e Lenio Luiz Streck, pois preenche claramente um bloco acentuado de
normas constitucionais o qual se define fins e tarefas, estabelecendo programas e metas a
serem cumpridas, num plano entre Estado e sociedade.
Evidencia-se um contexto histórico quando Canotilho elaborou sua tese de
doutoramento em 1980 sobre a Constituição Dirigente que buscava a unidade substancial
da Constituição, seu valor normativo e o seu caráter vinculante, afirmava ainda, valores
profundamente democráticos conferindo força normativa do direito. Portanto, essas
normas não são meros programas nem sentenças meramente políticas, possuem valor
idêntico aos dos preceitos constitucionais. O autor defendia a Constituição como uma ação
dos Poderes Estatais agregados a uma cidadania participativa. Porém, seu texto causou
diversas discussões políticas nos entornos acadêmicos, o autor deixava de lado sua posição
anterior e mudava sua doutrina, enfatizando o fim da Constituição Dirigente7.
É necessário registrar que a Teoria da Constituição Dirigente teve ampla recepção no
nosso país, com a promulgação da Constituição Federal de 1988 cujo seu texto denota uma
estrutura ao dirigismo constitucional, pois não se limita a um simples ordenamento político,
mas a uma ordenação econômica e social com o desígnio do Estado Social.
Passados vinte anos da promulgação da Carta de 1988, ainda continua a ser
responsável pela carência de cidadania participativa, alienada do povo e com óbices na
prestação estatal. Vem com uma imagem democrática, mas na sua origem deve-se levar
em conta os fatores de sua legitimação, pois na sua substancialidade não é, embora advinda
de um processo democrático. Contudo, o que se deve preconizar é a conciliação do ser e do
7 Todavia,
não é cabível reputar ao Professor Gomes Canotilho a afirmativa peremptória da morte e da Constituição
Dirigente, assim como não é viável entender que o escrito deita abaixo todo o seu magistério anterior sobre a
diretividade constitucional. Não representa um mero adeus as suas lições passadas, como se nada subsistisse. Por outras
palavras, por uma simbologia mais exata, Canotilho não procedeu a uma ab-rogação (ou revogação total), mas sim uma
derrogação (ou revogação parcial) da doutrina esposada na obra Constituição Dirigente vinculação do legislador.
OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Morte e Vida da Constituição Dirigente. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2010, p. 252.
56
dever-ser, uma melhor comunicação entre a sociedade democrática e a Constituição8, pois
esta não é a causadora da desilusão e não pode perecer diante dos olhos da nação.
Assim, exemplifica-se que há um contrassenso ou mesmo uma inaptidão
hermenêutica quanto da leitura da norma constitucional, pois quando se assevera dos
direitos sociais, principalmente o direito ao lazer tem-se um descrédito de que a norma é
ineficaz, embora não há como exigir que o Estado 9 cumpra de todo e qualquer lazer e
entretenimento existente, interpretando assim esgotar o que diz a norma. A força jurídica
do preceito leva a implementação de uma política pública de um direito ao lazer que se
comunica a todos da sociedade10 e não a cada indivíduo, traz condições de proporcionar o
direito ao lazer nas praças, ruas, e outros, ofertando instalações dignas para comunidade.
Por outro lado, cabe salientar que a conquista do Estado Democrático de Direito11
que introduziu os direitos fundamentais e sociais para seu interior, não cabe somente
positivar a norma, mas que essa não perca para o fato, pois se assim fosse recairia a um
abandono. Assim, os direitos de terceira dimensão, tais como: culturais, sociais e
8A
9
Constituição de 1988 pode, ao máximo, ser concebida como ingênua, otimista. Mas, na verdade, nem isto. Ela apenas
não renunciou ao caráter prescritivo, à tarefa de apontar para um futuro promissor é possível, desideratos capitais, que,
creio, que qualquer teoria procedimentalista abraça. Não se pode concluir que a Constituição errou ao prever que a
saúde é direito de todos e dever do Estado (artigo 196). OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Notas sobre uma teoria da
Constituição Dirigente constitucionalmente adequada ao Brasil. Livro Procad Unisinos- UERJ, p. 18.
Por inusitado que seja, a um nocivo divórcio na Ciência Jurídica no Brasil: o desquite entre a Teoria do Estado e a Teoria
da Constituição, em grave prejuízo para ambas, formou-se um foço abissal entre uma e outra, que não se comunica
entre si, como se a teoria da Constituição nada tivesse a dizer para a Teoria do Estado e vice e versa. Salvo raríssimas
exceções, que confirma a regra geral, a doutrina não estende pontes entre elas, união empreendida por outros domínios
do saber, conquanto integrados (interdisciplinaridade), partes de um todo, por assim dizer, a Sociologia, a História, o
Serviço Social, a Economia. OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Notas sobre uma teoria da Constituição Dirigente
constitucionalmente adequada ao Brasil. Livro Procad Unisinos- UERJ, p. 20.
10
Não se comunga com a tese de que a fonte de toda a materialidade é a sociedade ou evolução histórica. Levar os direitos
a sério é entender de que as pessoas têm direitos contra o Estado, conta legislação, contra a comunidade. Se a
substancialidade vale pelo seu mérito inerente, então independe de ser acolhida socialmente, o que implica
imperiosidade de reconhecer direitos e deveres não só em um patamar supraconstitucional ou supra positivo porquanto
também em um patamar supra social. OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Morte e Vida da Constituição Dirigente. Rio
de Janeiro: Lúmen Juris, 2010, p. 467.
11Um
Estado Constitucional Democrático e Social não pode apenas assegurar teoricamente a justiça pela positivação de
seus princípios; necessita igualmente a levar a efeito políticas sociais públicas que contribuam a construção da
autonomia de seus cidadãos. Não se pode aceitar uma ação compensatória do Estado, simplesmente cumprindo tarefas
não assumidas pelas instituições primárias, por terem sido instituídas de seu poder. A verdadeira democracia consiste
na abertura de espaços de participação em todos os setores da vida, permitindo a cada ator social a afirmação de sua
identidade, a criação de vínculos, o desenvolvimento da consciência política e da responsabilidade social, bem como a
realização da autonomia. DIAS, Maria da Graça dos Santos. A Justiça e o Imaginário Social. Florianópolis: Momento
Atual, 2003, p. 73.
57
econômicos devem instituir condições necessárias para seu livre exercício, juntamente com
os direitos de primeira e segunda dimensão para que haja uma efetivação e igualização
social.
A partir deste contexto da realização dos direitos fundamentais sociais, deve levar
em conta a norma constitucional instituída pelo Estado Democrático de Direito, há de se
compreender a ideia de força normativa e dirigente da Constituição, possibilitando um novo
discurso e alterando a relação entre política e direito. Nesse sentido, o sentimento do
Direito12 não faculta somente ao Estado, mas também ao cidadão que tem a capacidade de
avaliar a norma exatamente pela oposição entre o direito e o anseio da consciência jurídica
dos cidadãos.
Com base no exposto acerca da Constituição Dirigente que ficou caracterizada pela
sua força normativa do texto constitucional, no próximo tópico será abordada a efetivação
do direito ao lazer como forma de desenvolvimento humano e que deve ser imposta a todos
da sociedade.
3. EFETIVAÇÃO DO DIREITO SOCIAL AO LAZER
Os direitos sociais encontram-se intimamente atrelados às tarefas do Estado, pois, a
este, justamente, cabe o dever de zelo pela adequada satisfação das necessidades dos seres
humanos e da coletividade sob sua égide.
Os direitos fundamentais são produto do tempo. Esta assertiva encontra
fundamento verossímil na história de construção das prerrogativas humanas. Isto, vez que,
com o passar dos anos, as pessoas precisavam de necessidades diferentes, as relações
sociais se tornaram diversas, assim, havendo imperatividade de modificação e acréscimo
12
O Direito é um fenômeno cultural que plasma os valores da comunidade e os torna vigente em determinado momento
e local, mas que é também uma realidade autônoma consubstanciada em normas e em princípios jurídicos dotados de
uma lógica e de uma dinâmica próprias. Pelo que é de exigir ao direito constitucional que seja capaz de considerar
simultaneamente valores, fatos e normas, na interactividade e reciprocidade do seu relacionamento complexo,
julgando dimensões éticas, artísticas, técnicas e científicas, no âmbito de uma compreensão simultaneamente cultural
e juridicamente dos fenômenos constitucionais. SILVA, Vasco Pereira da. A Cultura a que tenho Direito: direitos
fundamentais e cultura. Coimbra: Edições Almeida S/A, 2007, p. 25.
58
ao rol de prerrogativas das pessoas. Desta forma, inicialmente, estruturou-se os direitos
fundamentais de primeira geração – que dizem respeito à proteção direta das pessoas,
entre si e frente ao Estado. Em um segundo momento, originaram-se os direitos sociais,
então compreendidos como direitos de segunda geração – direitos econômico-sociais, de
cunho coletivo. Estes últimos, pela primeira vez editados, de modo significativo, pela
Constituição alemã de 1919, a famosa Constituição de Weimar.
Conforme assinala Marcos Sampaio 13 , a positivação dos direitos sociais nas
constituições contemporâneas visa possibilitar melhores condições de vida, a fins de igualar
as situações sociais e as dimensões do homem nos direitos fundamentais que incidem
positivamente proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente.
Desta maneira, cabe ressaltar que a Constituição de Weimar, ao inserir os direitos
sociais, contemplou o direito do cidadão ao emprego, à educação e à proteção contra os
riscos da sociedade industrial. Além disso, estabeleceu também, direitos de primeira
dimensão como, por exemplo, o sufrágio universal.
A Carta de 1934 fez surgir no Brasil, o modelo de Estado Social, de inspiração alemã,
ligado politicamente às formas democráticas nas quais a sociedade se sobrepõe ao
indivíduo. Esta referida Constituição apresentou-se a partir da influência recebida pela
Constituição de Weimar, trazendo modificações como o direito de propriedade aliado ao
interesse social e coletivo; a ordem econômica e social; a instituição da Justiça do Trabalho;
o salário mínimo e as férias; o amparo à maternidade e à infância; a colocação da família e
da cultura sob a proteção especial do Estado14.
Já a Constituição de 1937, no item “Ordem Econômica”, trata de preceitos
relacionados à legislação do trabalho, como contratos coletivos, licença anual remunerada,
13 Exatamente
por essa razão, o nascimento da história do Estado social coincide com a história da transformação da
sociedade, pelo reconhecimento jurídico dos direitos individuais sociais, como fizeram as diversas constituições pelo
mundo todo”. SAMPAIO, Marcos. O conteúdo essencial dos direitos sociais. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 80.
14
Art. 121. A lei promoverá o amparo da produção e estabelecerá as condições de trabalho, na cidade e nos campos,
tendo em vista a proteção social do trabalhador e os interesses econômicos do país. PACHECO, Júlio César de Carvalho.
Os direitos sociais e o desenvolvimento emancipatório. Passo Fundo: IMED, 2009. p. 55.
59
indenização proporcional aos anos de serviço, jornada de trabalho e artigos referentes aos
direitos e garantias individuais e à proteção da família, da educação e da cultura.
A Constituição brasileira de 1946, também teve grande influência da Carta alemã
(Weimar), com dispositivos que preceituavam a participação obrigatória e direta do
trabalhador nos lucros da empresa, nos termos e pela forma que a lei determinar.
Em 1967 a Constituição delineou sua ênfase para a indústria, o comércio, e o
desenvolvimento econômico. Além disso, concedeu preponderância ao Poder Executivo
sobre os demais Poderes.
A Constituição Federal de 1988, seguindo as anteriores, segue a linha de proteção
dos direitos sociais, trazendo no Capítulo II, do Título II, que trata dos “direitos sociais”.
Ainda, há um título especial sobre a “ordem social” (Título VIII), sem ocorrer uma separação
radical entre uma ordem e outra.
Ademais, pode-se depreender que os direitos sociais estão intimamente ligados ao
direito de igualdade, eis que são pressupostos da fruição dos direitos fundamentais que
devem ser efetivados para todos.
No Brasil, especialmente com a Constituição Federal de 1988, é que o lazer começou
a ser discutido, mais intensamente, no seu art. 6º, como direito social, ao lado de outros,
por exemplo, como a saúde e a educação.
O conceito de lazer, em razão de sua subjetividade intrínseca, não apresenta
uniformidade entre a doutrina que estuda o assunto. Afirma Beatris Chenin15 o lazer, na
verdade, é um campo de atividade de estreita relação com as demais áreas da atuação
humana. Isto, pois, engloba atividades ante estresse e tempo de descanso 16 , repouso,
15“O
aspecto atitude, considerando o lazer como um estilo de vida, portanto independente de um tempo determinado, e
a que privilegia o aspecto tempo, situando-o como liberado do trabalho, ou como tempo livre, não só do trabalho, mas
de outras obrigações – familiares, sociais e religiosas. Tendo em vista que uma pessoa pode desenvolver mais de uma
atividade ao mesmo tempo, como por exemplo, escutar uma música enquanto trabalha”. CHEMIN, Beatris Francisca.
Políticas públicas de lazer: o papel dos Municípios na sua implementação. p.43.
16
Direito ao descanso abre a possibilidade de reconhecer o lado significativo do trabalho, de também se voltar a outras
atividades culturais. Trabalho e lazer são da mesma forma, uma parte da cultura que o direito também promove.
HÄBERLE, Peter. Constituição e Cultura: o direito ao feriado como elemento de identidade cultural do Estado
60
sendo associado popularmente além do tempo livre do trabalho, do estilo de vida, a
atividades recreativas e culturais, atividades como teatro, cinema, exposições, esportes, ou
a manifestação ao ar livre e de conteúdo recreativo.
O lazer dentro da diversidade de interpretações existentes pode ser compreendido
basicamente, como a cultura vista de forma abrangente. A ideia de lazer é identificada por
meio de duas grandes linhas de pensamento: primeira, como estilo de vida das pessoas, a
sua atitude de satisfação, de prazer, de bem-estar diante das experiências da vida; segunda,
como tempo disponível que a pessoa tem a livre escolha ou atividades em geral incluídas
(familiar, sociais, escolares, etc.) e do próprio trabalho como objetivos econômicos.
Dessa forma, Beatris Chemin17, trata “o direito ao lazer pode ser tido como direito
fundamental do homem de se desenvolver como ser humano dotado de razões e desejo,
na busca de sua elevação física, psíquica, social e espiritual, estimulando e aprimorando
seus talentos e capacidades no interesse que bem lhe prouver”.
Afirma assim Chemin entendendo que18 todavia, o lazer pode ser visto no sentido
existencial em que a pessoa tem acesso aos bens culturais variados e de todas as formas
que incrementassem valor ao ser humano, no sentido de desenvolvimento e crescimento
individual. Nas palavras de José Afonso da Silva 19 : “lazer é a entrega à ociosidade
repousante. Recreação é a entrega ao divertimento, ao esporte, ao brinquedo. Ambos se
destinam a refazer as forças depois da labuta diária e semanal. Ambos requerem lugares
apropriados, tranquilos, repletos de folguedos e alegrias”.
Assim, o lazer, como fator de desenvolvimento humano, como resultado da
experiência cultural construída, é um dos meios pelo qual a pessoa pode se desenvolver
Constitucional. Trad. Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2008, p. 10.
17
CHEMIN, Beatris Francisca. Políticas públicas de lazer: o papel dos Municípios na sua implementação, op. cit., p. 55.
18
“A respeito deste fator social, a prática de lazer tem de vir acompanhada de uma boa conscientização de sua importância
para o desenvolvimento humano, para que não esteja a serviço apenas do mundo do trabalho, procurando evitar a
homogeneização das formas de lazer, das atividades impostas pela sociedade consumista, impregnadas pela mídia de
massa, finde por regrar a vida do trabalhador, de maneira a enquadrá-lo num esquema predeterminado e que
reproduza a influência da noção de trabalho nos demais setores da vida civil”. CHEMIN, Beatris Francisca. Políticas
públicas de lazer: o papel dos Municípios na sua implementação, op. cit., p. 56
19
SILVA, José Afonso. Comentário contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2005. p.186.
61
existencialmente como ser humano e cidadão responsável de uma comunidade, regrando
sua vida com atitudes e tempos que possam contribuir para o aumento de suas capacidades
e habilidades, tendo como base o aproveitamento das diversas experiências do cotidiano,
não somente para si, mas também, para as demais pessoas ao seu redor.
Enfim, o lazer, como desenvolvimento da personalidade, tem a ver com a
disponibilidade participativa e atitudes conscientizadas, criativas, enriquecedoras, em
suma, preponderância do viés humanista do indivíduo. Como parte de tudo isso, cabe ao
Poder Público fornecer e proporcionar esse momento de lazer para as pessoas como forma
de divertimento, desconcentração, motivando as atividades culturais20, entre outras, para
toda a população. No entanto, a efetivação do direito ao lazer requer a união de diversas
políticas públicas em áreas que se encontram juntamente ao lazer e que objetivam também
a busca do bem-estar social para todos.
O estudo desta temática analisou a efetivação do direito social ao lazer, bem como,
todos os atores envolvidos para o seu desenvolvimento, passando, pelos textos
constitucionais. No entanto, a noção de desenvolvimento será o próximo tópico a ser
estudado.
4. DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
O Desenvolvimento Sustentável, como concepção, surgiu com a Primeira
Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento em Estocolmo
no ano 1972. A Organização das Nações Unidas (ONU) denominou a década de 1960 como
a “Primeira Década das Nações Unidas” para o desenvolvimento, trazendo uma cooperação
internacional que proporcionaria um crescimento econômico de modo a resolver os
problemas dos países mais periféricos.
20
O Estado constitucional aberto necessita de elementos culturais de base. Cultura é o “húmus” de toda sociedade aberta.
Ela que lhe confere “fundamentos e motivos”. Sem cultura, o homo politicus ficaria sem chão. HÄBERLE, Peter.
Constituição e Cultura: o direito ao feriado como elemento de identidade cultural do Estado Constitucional. Trad.
Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2008, p. xiii.
62
Em 1987 a ONU criou uma comissão para o estudo do desenvolvimento,
apresentando o Relatório de Brundtland (Nosso Futuro Comum) 21 , que formalizou o
conceito de Desenvolvimento Sustentável.
Deste modo, a participação ativa da sociedade é fundamental para que haja um
Desenvolvimento Sustentável, tendo em vista que este mantém o progresso humano não
apenas em alguns lugares, mas em todo do mundo, pois na medida em que o homem evolui
surgem novas necessidades vitais.
Neste sentido Sidney Guerra, ao tratar da ideia de desenvolvimento sustentável22
destaca, este como um desafio e principal objetivo da sociedade para satisfazer as
necessidades das gerações presentes, visando às gerações futuras, o que implica na
possibilidade de atingir um nível satisfatório de desenvolvimento.
A relevância do desenvolvimento dirigido por uma sustentabilidade conduz à
organização da economia, fortalece as Políticas Públicas, os recursos ambientais, bem como
os recursos disponíveis. Estabelecendo assim, um aumento das capacidades humanas e das
liberdades em geral, podendo funcionar por meio da promoção das liberdades integradas
e interdependentes.
Em linhas mais precisas o Desenvolvimento Sustentável tem por teor a manutenção
das fontes para produção e reprodução do homem e de suas atividades, neste sentido
21“O que tem
havido e coisa bem diversa: desde 1987, um intenso processo de legitimação e institucionalização normativa
da expressão “desenvolvimento sustentável” começou a se afirmar. Foi nesse ano que, perante a Assembleia Geral da
ONU, Gro Harlem Brundtland, a presidente da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento,
caracterizou o desenvolvimento sustentável, como “conceito político” e um “conceito amplo para o progresso
econômico e social”. O relatório ali lançado com o belo título “Nosso Futuro Comum” foram intencionalmente um
documento político que procurava alianças com vista à viabilização da Conferência das Nações Unidas sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento, “Rio-92”. VEIGA, José Eli da. Desenvolvimento Sustentável: o desafio do século XXI, op.
cit., p.113.
22
O desenvolvimento sustentável como sendo a forma de desenvolvimento que satisfaz às necessidades das gerações
presentes sem comprometer a capacidade das gerações futuras de alcançarem a satisfação de seus próprios interesses.
A ideia contém conceitos-chave: a) o conceito de necessidade, em particular as necessidades essências dos países
pobres, para as quais deve ser dada prioridade absoluta; b) a ideia de existência de limitações à capacidade do meio
ambiente de satisfazer, ás necessidades presentes e futuras imposta pelo estágio atual da tecnologia e da organização
social. GUERRA, Sidney. Desenvolvimento Sustentável nas três grandes conferencias internacionais de ambiente da
ONU: O grande desafio no plano internacional. In: GOMES, Eduardo B; BULZICO, Bettina (org.). Sustentabilidade,
Desenvolvimento e Democracia. Ijuí: Editora Unijuí, 2010. p. 80.
63
oportuniza uma relação de convivência entre homens e o ambiente para que todos possam
desfrutar de recursos existentes e de oportunidades hoje á disposição. Para Neuro José
Zambam 23 “a relevância da fundamentação do direito ao Desenvolvimento Sustentável
reflete os limites do atual modelo, tanto considerando a sua referência teórica quanto sua
efetivação e as consequências visíveis na quase totalidade das relações humanas e na vida
social”.
Houve no século XX um cenário de mudanças, onde se estabeleceu o regime
democrático e participativo da organização política em meio às inovações tecnológicas e
cientificas, relações entre comércio e capital, o crescimento das comunicações, uma melhor
internacionalização entre os Estados, criando um ambiente próprio para o desenvolvimento
democrático, bem como a concretização de direitos aos cidadãos.
Neste contexto, oportunizaram-se as garantias dos Direitos Fundamentais com
previsão constitucional, esta visão ensejou um desenvolvimento como nunca visto num
processo de expansão das liberdades em que as pessoas desfrutam, Amartya Sen
argumenta que “expandir as liberdades que temos razão para valorizar não só torna nossa
vida mais rica e mais desimpedida, mas também permite que sejamos seres sociais mais
completos, pondo em prática nossas volições, interagindo com o mundo em que vivemos e
influenciando esse mundo24”.
Segundo José Eli da Veiga 25 um melhor aumento das capacidades humanas de
liberdade nas implementações de políticas públicas, contribuem diretamente para a
expansão de liberdades que possam vir a ser usufruídas pelos membros da sociedade.
O desafio da expansão das liberdades demanda um desenvolvimento de forma
23
ZAMBAM, Neuro José. Desenvolvimento Sustentável: direito dos cidadãos e compromissos de todos. In: TRINDADE,
André Karam; ESPINDOLA, Ângela Araújo da Silveira; BOFF, Salete Oro. Direito, Democracia e Sustentabilidade. Passo
Fundo. IMED Editora, 2013. p. 93.
24SEN,
Amartya. Desenvolvimento como liberdade, op. cit., p. 29.
25O
processo de desenvolvimento pode expandir as capacidades humanas, expandindo as escolhas que as pessoas têm
para viver vidas plenas e criativas. E as pessoas são tanto beneficiarias deste desenvolvimento como agentes do
progresso e da mudança que provocam. Este processo deve beneficiar todos os indivíduos equitativamente e basearse na participação de cada um deles. VEIGA, José Eli da. Desenvolvimento Sustentável: o desafio do século XXI, op. cit.,
p. 85.
64
consciente voltada para as ações26 a serem realizadas numa forma dialógica na elaboração
e implementação das políticas públicas, possibilitando a sustentabilidade da vida
econômica e social, superando a violação dos direitos humanos daqueles que se mantêm
restritos numa profunda desigualdade.
O sistema político democrático leva a liberdade política, que por si fortalece as
demais liberdades, assim podendo conduzir suas vidas, participando dos assuntos públicos
de modo a alcançar um grau de liberdade consolidada. Nessa linha, Neuro José Zambam
entende que “o homem tem o direito a um modelo de desenvolvimento no qual seja o
agente principal27”.
O cenário é de exercitar a liberdade permanente, de forma a concretizar os
objetivos, o sentimento de poder de cada um dos cidadãos em constante ação como atores
das ações, proporcionando para si e para a sociedade uma identidade.
Por fim, o Desenvolvimento Sustentável consciente é sem dúvida a identidade da
sociedade, num dinamismo onde a expansão das liberdades consolidadas supera a violação
dos direitos humanos daqueles que se mantém em desigualdade e, assim contribuindo para
as condições de justiça, dotados de validade universal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Constituição de 1988 é voltada à transformação da realidade. A perspectiva
jurídica da Constituição precisa ser completada por considerações de política constitucional
dirigidas para manter, possibilitar ou criar os pressupostos de uma realização legítima da
Constituição. O grande problema da Constituição de 1988 é o de como aplicá-la, como
26Neste
sentido, desenvolvimento sustentável, combate à pobreza erradicação da fome fim do trabalho escravo, políticas
de saúde pública, promoção da paz e outros inúmeros exemplos pode ser utilizado para demonstrar ações nas quais
atores transnacionais/globais se inserem na tentativa de se fazer efetivo o ideal de direitos humanos”. STAFFEN, Márcio
Ricardo. Interfaces do Direito Global. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Juris, 2015.
27ZAMBAM,
Neuro José. Desenvolvimento Sustentável: Direito dos cidadãos e compromissos de todos. In: TRINDADE,
André Karam; ESPINDOLA, Ângela Araújo da Silveira; BOFF, Salete Oro. Direito, Democracia e Sustentabilidade. Passo
Fundo. IMED Editora, 2013.
65
realizá-la, ou seja, trata-se da concretização constitucional. Não se reclamam mais direitos,
mas garantias de sua implementação.
Na realidade, não a crise vivenciada sob a vigência da Constituição de 1988 não é
uma crise da Constituição, mas da sociedade, do governo e do Estado. A prática política e
o contexto social têm favorecido uma concretização restrita e excludente dos dispositivos
constitucionais. Na medida em que se amplia a falta de concretização constitucional, com
as responsabilidades e respostas sempre transferidas para o futuro, intensifica-se o grau de
desconfiança e descrédito no Estado, seja enquanto poder político através das políticas
públicas seja enquanto a efetivação do direito social ao lazer.
A Constituição Dirigente aspira transformar num plano global que determina tarefas,
estabelece programas e define fins para o Estado e para a sociedade. A Constituição como
instrumento formal de garantia não possui qualquer conteúdo social ou econômico, apenas
estabelece competências, preocupando-se com o procedimento, com o objetivo de criar
uma ordem estável.
O direito ao lazer ao ser estabelecido no texto constitucional representa a
necessidade para satisfação humana. Assim, as políticas públicas devem garantir a proteção
deste direito, pois a sua ausência atenta contra os valores da vida e de todos os demais
direitos fundamentais da Carta de 1988. Com o avanço da tecnologia e da globalização,
evidencia-se profunda desigualdade social, fruto da concentração da renda, da pobreza e
da economia voraz de mercado, consequentemente, as pessoas não conseguem saciar as
suas necessidades básicas.
Considera-se que, para compreender o desenvolvimento sustentável, deve-se
buscar o reconhecimento das diferenças, superar as desigualdades, manter um equilíbrio
social e político, ter acesso à educação e a sistema de saúde universais, a independência na
opção de preferências políticas, religiosas, culturais, conceber a permanente evolução da
concepção moral e de seus valores mais importantes, sendo todos apresentados por
múltiplas vozes o que trará um ideal nas garantias consolidadas em uma sociedade.
66
Quando analisadas dentro das políticas públicas há que ser feita por meio das
liberdades individuais e do comprometimento social, juntamente com os direitos sociais e
econômicos, inclusive a não discriminação entre pessoas de raças diferentes, entre homens
e mulheres, pois todos devem ter o direito de acesso ao lazer.
REFERÊNCIAS DAS FONTES CITADAS
CHEMIN, Beatris Francisca. Políticas públicas de lazer: o papel dos Municípios na sua
implementação. Curitiba: Juruá, 2007.
DIAS, Maria da Graça dos Santos. A Justiça e o Imaginário Social. Florianópolis: Momento
Atual, 2003.
GUERRA, Sidney. Desenvolvimento Sustentável nas três grandes conferencias
internacionais de ambiente da ONU: O grande desafio no plano internacional. In: GOMES,
Eduardo B; BULZICO, Bettina (org.). Sustentabilidade, Desenvolvimento e Democracia. Ijuí:
Editora Unijuí, 2010.
HÄBERLE, Peter. Constituição e Cultura: o direito ao feriado como elemento de identidade
cultural do Estado Constitucional. Trad. Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de
Janeiro: Lúmen Juris, 2008.
OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Morte e Vida da Constituição Dirigente. Rio de Janeiro:
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68
A ÁRDUA E COMPLEXA ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO PARA MANTER
FORTE O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO NO BRASIL
Franciane Hasse1
Fabrisia Franzoi2
INTRODUÇÃO
A curiosidade pelas questões inerentes a como deve ser a atuação do Poder
Judiciário no Estado Democrático de Direito que se vive no Brasil foi o alicerce, bem como
o primeiro passo para a pesquisa e consequente construção do referido artigo.
Inicialmente, em linhas gerais, apresenta-se a definição de Estado e sua evolução
histórica. Será visto que as modificações do Estado acontecem para concretizarem-se os
interesses do povo, surgindo o Estado Democrático de Direito, a fim de limitar o poder do
próprio Estado e de seus agentes, superando as desigualdades sociais e realizando a justiça
social, através da atuação do Poder Judiciário, tornando-se este o ponto principal do
presente artigo.
Destaca-se, que a função do Estado Democrático de Direito é de agir sob os anseios
da sociedade, contribuindo para que se realizem esses anseios da forma como ela escolheu,
como forma de manifestação da justiça e dos direitos igualitários, na busca da manutenção
da ordem social e da democracia.
1
Mestranda em Direito pelo PPGD da Faculdade Meridional - IMED. Especialista em Direito Empresarial e dos Negócios
pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI. Especialista em Direito Processual Civil pelo Instituto Catarinense de Pósgraduação – ICPG. Bacharel em Direito pela Universidade para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí – UNIDAVI.
Bacharel em Sistemas de Informação pela Universidade para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí – UNIDAVI.
Docente dos cursos de Direito e Sistemas de Informação do Centro Universitário para o Desenvolvimento do Alto Vale
do Itajaí – UNIDAVI. Advogada OAB/SC. E-mail:
[email protected]
2
Doutoranda em Desenvolvimento Regional - FURB; Mestre em Ciência Jurídica - UNIVALI; Especialista em Planejamento
Tributário – UNIDAVI; Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho – Universidade Cândido Mendes;
Professora do Centro Universitário para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí – UNIDAVI; Analista Judiciária do TRT
12ª Região; Rio do Sul; Santa Catarina. E-mail:
[email protected]
69
Pretende-se verificar se o magistrado que age em um Estado Democrático de Direito,
ao utilizar de forma moderada os mecanismos interpretativos de modo a convalidar a
legitimidade social das leis então vigentes e adequadas ao caso concreto em análise, se tem
por finalidade deferir o provimento jurisdicional mais justo possível ou não, pois o que a
sociedade atual almeja é que os magistrados se preocupem não apenas com a aparente
solução do caso concreto, mas, sim, com a efetivação da justiça substancial.
2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO ESTADO
A partir do momento que os indivíduos desejam viver de maneira unida e organizada
e admitem que um dos membros assuma o poder de chefiar o grupo, com objetivo comum,
tem-se instalado o Estado. Utilizando-se as palavras de Alexandre Groppali apud Bastos3 é
de se concluir que o Estado:
[...] é um ente social constituído de um povo organizado sobre um território, sob o comando
de um poder soberano, para fins de defesa, ordem, bem-estar e elevação. [...] Sob outro
critério, pode-se definir o Estado como uma ordenação jurídica na qual um complexo de
normas gerais e coercitivas regulam os órgãos e os poderes do Estado bem como as relações
dos cidadãos entre si, e a deles com mesmo Estado. [...] No último ângulo visual, pode-se
definir o Estado como uma instituição territorial, conforme os cidadãos sejam ou não
admitidos na sua administração e governo. Unindo agora em uma única definição sintética
todas estas definições analíticas sucessivas, pode-se dizer que o Estado é uma pessoa
jurídica soberana constituída de um povo organizado sobre um território, sob o comando de
um poder supremo, para fins de defesa, ordem, bem-estar e progresso social.
Ainda, sobre a definição de Estado, Dallari4 cita que é a:
[...] ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em
determinado território. Nesse conceito se acham presentes todos os elementos que
compõem o Estado, e só esses elementos. A noção de poder está implícita na soberania,
que, no entanto, é referida como característica da própria ordem jurídica. A politicidade do
Estado é afirmada na referência expressa ao bem comum, com a vinculação deste a um certo
povo e, finalmente, a territorialidade, limitadora da ação jurídica e política do Estado, está
presente na menção a determinado território.
3
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e Ciência Política. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p.10.
4
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 118.
70
O Estado, dentre as instituições criadas pelo homem, é considerado a que representa
uma maior complexidade. Permite-se mesmo dizer que ele representa um elevado grau de
civilização de um povo, de uma sociedade.
Nesse sentido, o Estado aparece em uma época bem determinada, no século XVI.
Não se quer, contudo, com esta afirmação, negar que a Antiguidade Clássica (polis gregas e
Império Romano) já apresentasse traços enunciadores dessa realidade. Porém, os autores
preferem estabelecer o seu surgimento no começo da era moderna, vez que somente a
partir de então as chamadas entidades políticas tiveram reunidas em si todas as qualidades
distintivas fundamentais do Estado.5
Alguns doutrinadores, entre eles, Hobbes e Rousseau, tentando explicar a origem do
Estado, dispunham que este nasce a partir da realização de um acordo entre os homens,
em proveito de um número indeterminado de pessoas. Logo, o Estado surge através de um
pacto social que fundamenta todo o seu poder na aquiescência recíproca de todos os
indivíduos que o integram. É necessário dizer ainda, que o pacto social tem como fim
primordial conceber uma entidade personalizada resistente, forte, eficaz e com a
capacidade de resguardar as prerrogativas de cada um, individualmente, e ainda, de
promover o bem comum. O Estado é, então, consequência de acordos mútuos e
consecutivos havidos entre os indivíduos pertencentes à sociedade. Pode-se dizer, assim,
que o homem evoluiu de um “estado de natureza” para um “estado social”.
Thomas Hobbes, um dos expoentes de tal pensamento, em sua obra Leviatã,
sustentava a posição de que a sociedade política foi instituída através da realização de um
contrato social acordado entre os homens para o fim de obter-se uma vida mais pacífica,
harmônica, segura, além de uma maior garantia/guarda de seus bens e direitos. Tal contrato
social adveio em decorrência do estado de beligerância que reinava na época, associado ao
elevado grau de violência em que se encontrava o homem no seu “estado de natureza” momento em que a paixão e o egoísmo estavam acima da razão. O ser humano, quando em
5
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e Ciência Política. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p.6.
71
seu “estado de natureza”, fazia parte de um imenso conflito de todos contra todos, em que
“o homem era o lobo do próprio homem”. Dessa forma, Hobbes achava que a sociedade
não poderia ser considerada um fato social, e sim, um contrato que teve a anuência de
todos os homens.
Tal contrato baseia-se no deslocamento absoluto dos direitos individuais, das
prerrogativas próprias de toda uma coletividade para uma autoridade soberana que fará
uso do poder comum a ele concedido para o fim de se obter os fins almejados pela
sociedade administrada.
Rousseau, por sua vez, acreditava que o “estado de natureza” tinha como
características marcantes a bondade e a liberdade humanas, sendo por estas guiado, e que
a inquietação primeira do indivíduo era somente com relação aos negócios materiais
concernentes a sua vida pastoral. Permite-se até mesmo dizer que para Rousseau o “estado
de natureza” representa um estado agradável, encantador, e os culpados pela devassidão
do homem foram as artes acompanhadas da criação da sociedade.
As artes, para Rousseau, corresponderiam à causa do degradamento, da
degeneração moral, da perversão humana, pois, com o seu surgimento, apareceram
juntamente o ciúme, a invídia e a competitividade. Brotou no indivíduo o desejo de, de
alguma forma, sobressair-se entre os demais, seja pela música, seja pela dança. No entanto,
o autor percebeu que, para viver em companhia de outras pessoas, para manter um certo
relacionamento com seus entes, havia a necessidade de criar-se uma sociedade, por meio
da realização de um pacto social, contando com a anuência de todas as pessoas que a
integram, objetivando, dessa forma, conseguir resguardar seus direitos e bens, e mais,
manter a segurança e a convivência entremeada de paz e harmonia entre os indivíduos,
convivência este presente no “estado de natureza”.
Pois bem. Historicamente, o aparecimento do Estado atrela-se às tribulações
políticas pelas quais a sociedade passou no começo do século XVI. À época, irromperam-se
violentas disputas religiosas contra as quais os entes jurídicos constituídos eram
inoperantes, instalando-se a inseguridade no seio da coletividade. Clamava-se por um
72
poder que sobrepujasse os grupos rivais em conflito.
Era de grande importância para a sociedade da época medieval que o rei tomasse,
por completo, o poder para si e se tornasse soberano de fato acima, inclusive, das próprias
leis. Ao término desse processo de constituição do poder real, ou melhor, de fortificação e
concentração dos poderes do rei, vem o Estado moderno, cujo traço marcante é justamente
a presença de uma ordem jurídica soberana, isto é, uma ordem acima de tudo e de todos,
fonte de todo poder, de toda autoridade dentro do Estado. O poder reúne-se em uma única
autoridade a qual impede quaisquer ingerências provenientes do exterior, fora de seu
território, e, da mesma forma, a ela estão submetidas todas as outras que estão sob sua
jurisdição, internamente.
São essas as características que continuam, ainda hoje, a reger o Estado moderno,
possuindo este, contudo, um modelo diferente àquele do século XVI. Essa diferença devese ao fato de que com o passar dos tempos tornou-se possível exercer um certo controle
sobre o poder absoluto do Estado, mas de forma que ele continuasse a ser soberano. Nem
o Estado constitucional moderno, apesar de sua atuação estar sujeita a normas que
restringem seu poder, abriu mão de sua soberania. Atua, portanto, o Estado nos limites de
seu território, prevalecendo sobre todos os demais órgãos e anseios destes, pois é nele em
que se reúne todo o poder, toda a força.
Porém, para que a máquina estatal funcione, para que todas as sociedades que se
desenvolvem dentro do Estado consigam atingir seus objetivos, alcancem seus fins sociais,
a elas é concedida uma parcela de autoridade. Mas todas, repita-se, estão subpostas ao
Estado, pois cabe somente a este determinar o alcance e a magnitude de atuação daquelas
e contribuir, conforme a necessidade, com a sua força.
3. ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
O conceito de Estado Democrático de Direito da forma como atualmente é
73
conhecido, decorre de um longo processo da evolução (Estado Liberal de Direito; Estado
Social de Direito e Estado Democrático de Direito) da maneira como as sociedades foram
se organizando ao longo dos séculos.
É importante destacar que o Estado Democrático de Direito é proveniente dos
antigos povos gregos e de seus pensadores, que no século V até o I a. C., Sócrates, Platão e
Aristóteles já criavam a teoria do Estado Ideal, na qual se refletia sobre a melhor maneira
de organizar a sociedade, pensando nos interesses comuns. Mas apenas ao final do século
XIX que as bases mais relevantes do Estado de Direito consolidaram-se.6
Sobre as raízes do Estado Democrático de Direito, Dallari7, discorre:
A ideia moderna de um Estado Democrático tem suas raízes no século XVIII, implicando a
afirmação de certos valores fundamentais da pessoa humana, bem como a exigência de
organização e funcionamento do Estado tendo em vista a proteção daqueles valores.
Destaca-se que o Estado Democrático moderno surgiu das lutas contra o
absolutismo, como bem delineia Dallari8:
Daí a grande influência dos jusnaturalistas, como LOCKE e ROUSSEAU, embora estes não
tivessem chegado a propor a adoção de governos democráticos, tendo mesmo ROUSSEAU
externado ser descrédito neles. De fato, após admitir que o governo democrático pudesse
convir aos pequenos estados, mas apenas a estes, diz que “um povo que governar sempre
bem não necessitará de ser governado”, acrescentando que jamais existiu verdadeira
democracia, nem existirá nunca. E sua conclusão é fulminante: “Se existisse um povo de
deuses, ele se governaria democraticamente. Tão perfeito governo não convém aos
homens”. Apesar disso tudo, foi considerável a influência de ROUSSEAU para o
desenvolvimento da ideia de Estado Democrático, podendo-se mesmo dizer que estão em
sua obra, claramente expressos, os princípios que iriam ser consagrados como inerentes a
qualquer Estado que se pretenda democrático.
Mais a frente, Dallari9 ilustra que é através de três grandes movimentos políticosociais que se transpõem do plano teórico para o prático os princípios que iriam conduzir
6
SANTOS, A. A. dos. O Estado Democrático de Direito. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 91, ago 2011. Disponível
em:
<http://ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=10143&revista_caderno=9>.
Acesso em: maio de 2016.
7
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 145.
8
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 147.
9
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 147.
74
ao Estado Democrático:
[...] o primeiro desses movimentos foi o que muitos denominaram de Revolução Inglesa,
fortemente influenciada por LOCKE e que teve sua expressão mais significativa no Bill of
Rights, de 1689; o segundo foi a Revolução Americana, cujos princípios foram expressos na
Declaração de Independência das treze colônias americanas, em 1776; e o terceiro foi a
Revolução Francesa, que teve sobre os demais a virtude de dar universalidade aos seus
princípios, os quais foram expressos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de
1789, sendo evidente nesta a influência direta de ROUSSEAU.
Foram esses movimentos, no século XVIII, que definiram as diretrizes na organização
do Estado a partir de então, concretizando assim, a ideia de Estado Democrático de Direito
como ideal supremo.
O Estado Democrático de Direito deve realizar uma distribuição igualitária de poder,
possibilitando a sua racionalização, controlando, assim, a violência, baseando-se na
legislação, para que se possa organizar a sociedade. Essa forma de Estado não pode ser vista
como uma estrutura finalizada, mas sim uma questão que pode ser transformada, com base
em novos estudos, acontecimentos e interpretações 10 . Streck 11 afirma que o Estado
Democrático de Direito possui um conteúdo transformador da realidade:
O Estado Democrático de Direito tem um conteúdo transformador da realidade, não se
restringindo, como o Estado Social de Direito, a uma adaptação melhorada das condições
sociais de existência. Assim, o seu conteúdo ultrapassa o aspecto material de concretização
de uma vida digna ao homem e passa a agir simbolicamente como fomentador da
participação pública quando o democrático qualifica o Estado, o que irradia os valores da
democracia sobre todos os seus elementos constitutivos e, pois, também sobre a ordem
jurídica. E mais, a ideia de democracia contém e implica, necessariamente, a questão da
solução do problema das condições materiais de existência.
Uma síntese dos princípios que passaram a nortear os Estados, como exigências da
democracia, Dallari indica três pontos fundamentais:
A supremacia da vontade popular, que colocou o problema da participação popular no
governo, suscitando acesas controvérsias e dando margem às mais variadas experiências,
10
SOARES, M. L. Q. Teoria do Estado – O substrato clássico e os novos paradigmas como pré-compreensão para o direito
constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 16.
11
STRECK, Lenio Luiz; DE MORAIS, José Luis Bolzan. Ciência Política e Teria Geral do Estado. 4ª ed. Porto Alegre: Livraria
do Advogado Editora, 2004, p. 93.
75
tanto no tocante à representatividade, quanto à extensão do direito de sufrágio e aos
sistemas eleitorais e partidários.
A preservação da liberdade, entendida sobretudo como o poder de fazer tudo o que não
incomodasse o próximo e como o poder de dispor de sua pessoa e de seus bens, sem
qualquer interferência do Estado. A Igualdade de direitos, entendida como a proibição de
distinções no gozo de direitos, sobretudo por motivos econômicos ou de discriminação entre
classes sociais.12
As modificações do Estado no século XIX e na primeira metade do século XX foram
decisivas pela busca desses ideais, sendo a preocupação primordial, a participação do povo
na organização do Estado.
José Afonso da Silva13 entende que o conceito clássico de Estado de Direito abrange
três características: a) submissão (dos governantes e dos cidadãos) ao império da lei; b)
separação de poderes; c) garantia dos direitos fundamentais.
Streck14 leciona acerca do bem-estar pela ação positiva do Estado:
[...] desaparece o caráter assistencial, caritativo da prestação de serviços, e estes passam a
ser vistos como direitos próprios da cidadania. [...]
Seria, o Estado garante tipos mínimos de renda, alimentação, saúde, habitação, educação
assegurados a todo cidadão, não como caridade, mas como direitos políticos. [...]
Há uma garantia cidadã ao bem-estar pela atuação positiva do Estado como afiançador a
qualidade de vida do indivíduo.
O papel basilar do Estado Democrático de Direito é o de superar as desigualdades
sociais e regionais, realizando a justiça social. No Brasil, o Estado Democrático de Direito
consagrou-se com a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1°, bem como por meio da
dignidade humana, das liberdades econômicas, sociais e culturais, da efetividade da
cidadania. Constou em diversos artigos a defesa da cidadania, da democracia, da dignidade
da pessoa humana e da liberdade plena como meio de se efetivar o bem-estar social. Neste
sentido, Abreu destaca:
12
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 151.
13
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 113.
14
STRECK, Lenio Luiz; DE MORAIS, José Luis Bolzan. Ciência Política e Teria Geral do Estado. 4ª ed. Porto Alegre: Livraria
do Advogado Editora, 2004, p. 141-142.
76
Resta evidente, pois, o compromisso do estado brasileiro com a função social. De igual sorte,
o artigo 1º da Constituição afirma que a República Federativa do Brasil tem como
fundamentos a cidadania, a dignidade da pessoa humana e o pluralismo político, os valores
sociais do trabalho e livre iniciativa, além da soberania. Ademais, a Constituição assinala
como objetivos fundamentais do Estado brasileiro, em seu artigo 3º, construir uma
sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza
e marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos,
sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e outras formas de discriminação
(ABREU, 2011, p. 140).
Segundo Dalmo Dallari15:
O Estado Democrático é aquele em que o próprio povo governa, sendo evidente colocar o
problema de estabelecimento dos meios para que o povo externe a sua vontade, através da
representativadade", ou seja, a eleição de um representante para realizar os ideais
pretendidos pelos cidadãos.
Diante do entendimento, acima mencionado, verifica-se que a Constituição Federal
de 1988, consagra o Estado Democrático de Direito, através dos mecanismos de
participação popular nas decisões políticas, tais como: o sufrágio; o plebiscito, referendo e
iniciativa popular. Outrossim, a Constituição Federal consagra em seu artigo 170 os
princípios basilares da ordem econômica, entre eles a função social da propriedade e a
redução das desigualdades regionais e sociais. Ainda, em seu artigo 193, ressalta que a
ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça
sociais.
No mais, para a concretização do Estado Democrático de Direito, há a necessidade
de um Judiciário envolvido com os valores sociais e políticos, bem como se ressalta a tese
da democracia na visão da jurisdição e do processo como instrumento de consolidação da
cidadania.
A Constituição Federal de 1988 institui em seu preâmbulo o Estado
Democrático, destinado a garantir o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade,
o bem-estar, bem como à justiça, sendo previsto de forma implícita a democracia a forma
de assegurar tais direitos. Logo, para concretizar os direitos previstos na Constituição
15
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
77
Federal de 1988, houve uma crescente demanda de ações judiciais, a fim de que o Judiciário
garantisse e efetividade de tais direitos.
No entanto, o Judiciário não possui estrutura (física ou de pessoal), para garantir o
pleno acesso à justiça, um dos principais objetivos de um Estado Democrático de
Direito. Para Streck16 “Estamos, assim, em face de um sério problema: de um lado temos
uma sociedade carente de realização de direitos e, de outro, uma Constituição Federal que
garante estes direitos de forma mais ampla possível”. Desse modo, o Estado Democrático
de Direito, privilegia o positivismo jurídico, como forma de assegurar a democracia através
garantias constitucionais, tal como o sufrágio.
Por oportuno, destaca-se o entendimento de Streck17:
O Estado Democrático de Direito proporcionou uma nova configuração nas esferas de
tensão dos Poderes do Estado, decorrente do novo papel assumido pelo Estado e pelo
constitucionalismo, circunstância que reforça, sobremodo, o caráter hermenêutico do
direito.
Seguindo esta esteira de raciocínio, Ferrajoli18 entende:
Assim, devemos reconhecer que desta expansão da jurisdição advém um enorme
crescimento do poder judiciário e de seu papel político, o qual cria o risco de se produzir um
desequilíbrio nas relações entre os poderes públicos e requer, portanto, um reforço das suas
condições de legitimidade. Certamente, o papel de garanti no qual consiste tal poder implica
excluir, a princípio, que se possa temer o chamado governo dos juízes.
Diante do mencionado, os autores levantam a questão da crise atual da democracia
no Estado Democrático de Direito Brasileiro, visto que atualmente existe um problema de
hermenêutica jurídica, onde para eles os juízes estão interferindo nos Poderes Legislativo e
Executivo. Assim, é preponderante entender-se como o Poder Judiciário brasileiro vem,
deve vim ou está atuando para fortificar o Estado Democrático de Direito.
16
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 10. ed.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 347.
17
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. p. 347.
18
FERRAJOLI, Luigi. A democracia através dos direitos: o constitucionalismo garantista como modelo teórico e como
projeto político. Tradução Alexandre Araújo de Souza e outros. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 241.
78
4. A ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE
DIREITO
Percebe-se que inúmeras críticas têm sido feitas recentemente ao Poder Judiciário
brasileiro, principalmente da sua necessidade de adaptar-se às variadas demandas da
sociedade atual, de forma a torná-lo mais rápido e eficiente, de focar-se nas suas reais
funções, a fim de atender às demandas da população. Quando a sociedade evolui e o
Direito permanece estático, as leis podem não mais corresponder à atual realidade. Deste
modo, é provável que elas venham a cair no conhecido desuso.
No contexto do Estado Liberal, um dos princípios mais consideráveis é o da
Legalidade. O juiz é visto como um aplicador da Lei, e por isso, ele não pode criar o direito,
apenas colocá-lo em prática19. Deverá prevalecer a legalidade entrelaçada ao princípio da
Segurança Jurídica.
Necessário se faz que o magistrado tenha mecanismos interpretativos
indispensáveis para o reconhecimento da ocorrência ou não de anacronismo, injustiças e
falhas na lei, quando for aplicá-la ao caso concreto, ou seja, extrair do grandioso e complexo
ordenamento jurídico somente as normas pertinentes e adequadas à individualidade da
situação fática em julgamento.
O poder judicial é capaz de invocar e realizar o Estado constitucional
contemporâneo, deve ser totalmente imparcial, mostrar-se observador das normas gerais
e também abstratas. Garante-se independência de forma democrática e que se legitima,
com o predomínio hierárquico e um dever da obediência. O controle assumido pelo juiz de
Direito não lhe traz privilégios hierárquicos do poder, ainda que tenha autonomia,
precisando respeitar a lei e a sociedade.20
19
SILVA, D. H. D.; COELHO, T. G. A imparcialidade do juiz no contexto do Estado Democrático de Direito: uma reconstrução
possível? Revista eletrônica do Curso de Direito - PUC Minas Serro, 2012. Disponível em:
<periodicos.pucminas.br/índex.php/direitoserro/issue/view/6047>. Acesso em: 29 abr. 2016.
20
PINTO, O. P. de A. M. Responsabilidade do poder judiciário no Estado Democrático de Direito. Disponível em:
<http://www.amb.com.br/portal/docs/artigos/Artigo%20%20Responsabilidade%20do%20Poder%20Judici%C3%A1rio%20no%20Estado%20Democr%C3%A1tico%20de%20Direi
to.doc>. Acesso em: maio de 2016.
79
Pela conceituação do que é o atual Estado Democrático de Direito, inicialmente, já
se percebe que o Poder Judiciário não pode ser omisso e nem passivo e sua atuação. Não
pode estar alheio da realidade social, deve ser um ativo participante na criação dos destinos
da sociedade e do país sempre levando em consideração o primado maior do bem coletivo.
Para José Alfredo Baracho21,
No Estado de direito exige-se grande esforço do juiz, para o exercício do desenvolvimento
da função promocional do direito: - construção de uma jurisprudência que consagre os
valores constitucionais da igualdade e da solidariedade, realizando-se os avanços
normativos necessários à sociedade [...]
Esses avanços deram-se principalmente após a promulgação da Constituição Federal
de 1988, onde o Poder Judiciário foi provocado a garantir os direitos de cidadania,
principalmente os direitos fundamentais de educação, saúde, justiça, segurança e vida da
população. O número de demandas cresceu, o desafio é imenso, mas ele não pode se eximir
de trazer a pacificação social, de garantir acesso à Justiça e trazer uma solução justa, legal
e rápida dos litígios. Deve ter “um papel ativo, inovador na ordem jurídica e social, visto que
é chamado a contribuir para a efetivação dos direitos sociais, procurando dar-lhes sua real
densidade e concretude.22”
O Judiciário deixa de atuar como mero aplicador mecânico de normas préestabelecidas e passa a assumir, com o advento do neoconstitucionalismo, a
responsabilidade pela efetivação dos direitos sociais”23
O julgador, que lida com a dignidade da pessoa humana, num Estado Democrático e Social
de Direito, há de ser atuante no processo, com o objetivo maior de buscar a verdade real,
igualando as condições das partes, tentando equilibrar as desigualdades sociais que, muitas
21
BARACHO, José Alfredo. Teoria geral da cidadania: a plenitude da cidadania e as garantias constitucionais e
processuais. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 29.
22
PINTO, Oriana Piske de Azevedo Magalhães. Responsabilidade do Poder Judiciário no Estado Democrático de Direito.
Disponível em: http://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/artigos/2008/responsabilidade-do-poder-judiciario-noestado-democratico-de-direito-juiza-oriana-piske-de-azevedo-magalhaes-pinto acesso em: 28 maio 2015.
23
RIBAS, G. P. P.; SILVA, J. R. da; MANDALOZZO, S. S. N. A atuação do poder judiciário frente ao Estado Constitucional de
Direito.
Disponível
em:
<http://www.veros.adv.br/publicacoes/A%20ATUACAO%20DO%20PODER%20JUDICIARIO%20NO%20ESTADO%20CO
NSTITUCIONAL%20DE%20DIREITO.pdf>. Acesso em: 19 maio 2016.
80
vezes, se fazem refletir no processo. Tal poderá o juiz atingir, por exemplo, com a inversão
do ônus da prova, dada a hipossuficiência de uma das partes, evidenciada, sobretudo, nas
relações de consumo e em ações previdenciárias. O juiz deve ser imparcial, é verdade, mas
tal não significa permanecer inerte, aguardando a provocação das partes. Ser imparcial, num
Estado Democrático de Direito, significa proporcionar igualdade de condições aos litigantes,
e isso só se atinge com um juiz atuante e efetivo. Um juiz que não se conforme com a
verdade tal qual lhe é apresentada, mas que busque incessantemente a verdade real.24
Percebe-se assim que, o princípio da imparcialidade, que tanto se questiona, está
intimamente conectado à luta pela efetivação da igualdade e da proteção dos direitos
sociais, procurando, sempre, a garantia do bem comum e da harmonia social.
Percebe-se atualmente que o Poder Legislativo elabora as leis, muitas vezes da
forma incorreta, leis inconstitucionais, sem o devido respaldo financeiro do Poder
Executivo, etc. Mas, também o Poder Executivo não cumpre a legislação em vigor no país,
deixando direitos fundamentais da população sem efetivação. É função do Poder Judiciário
fazer valer esses direitos, concretizar o significado das regras constitucionais. Deve
manifestar-se rapidamente sobre a inconstitucionalidade de leis ordinárias, deve
questionar a coerência dessas leis com os princípios constitucionais, deve obediência
irrestrita à Constituição Federal, principalmente ao que tange aos direitos fundamentais,
para assim legitimar a independência do Poder Judiciário.
Mas não se pode esquecer que só ter-se-á um Estado Democrático de Direito efetivo
se o devido processo legal for respeitado. Para isso, as decisões judiciais não podem deixar
de serem fundamentadas e de observarem rigorosamente vários princípios, principalmente
o princípio da motivação das decisões. Não deverá haver jamais decisão judicial sem que o
magistrado elenque os fundamentos ou motivações de suas conclusões (CF, art. 93, IX).
Pretende-se assim, evitar arbitrariedades e sujeitar o magistrado ao ordenamento jurídico,
como é exigência do Estado Democrático de Direito. Com essa fundamentação das
24
BRIÃO, R. F. Os poderes introdutórios do juiz e a busca da verdade real no processo civil moderno. Academia Brasileira
de
Direito
Processual
Civil.
Disponível
em:
<http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/PODERES%20INSTRUTORIOS%20DO%20JUIZ%20E%20A%20BUSCA%20DA%
20VERDADE%20REAL%20%20Roberta%20Fussieger%20Bri%C3%A3o.pdf>. Acesso em: maio de 2016.
81
decisões, o juiz estará controlado, mediante recursos, sobretudo pelo povo, que é a fonte
de onde emana seu poder (CF, art. 1º, parágrafo único). Não se pode esquecer também do
princípio da publicidade, de outro lado (CF, art. 93, IX), pode-se dizer que a atividade
jurisdicional é uma das mais públicas e acessíveis desse país.
O Poder Judiciário deve popularizar impreterivelmente suas práticas internas, para
que tenha mais credibilidade perante a população. Muitas vezes dá-se maior valor aos ritos,
que quase passaram a ser o fim em si mesmos, numa inversão de valores. Para Pinto25 “o
processo deve ser caminho de realização da Justiça desejada pelos cidadãos, não estorvo
incompreensível e inaceitável”.
Os magistrados carecem de melhores instrumentos de trabalho.
Sabe-se que o Poder Judiciário está passando por várias modificações estruturais e
funcionais, que o processo eletrônico é uma realidade, mas essa era pós-industrial que se
vive, com a velocidade das informações e das necessidades dos jurisdicionados, novos
instrumentos, sejam físicos ou legais, devem ser pensados e colocados em prática, pois
senão o Poder Judiciário poderá perder-se no tempo e no espaço, já que “justiça tardia é
injustiça”.
Sempre importante lembrar, conforme preconiza a Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988, em seu art. 5º, LXXVIII, a duração razoável do processo é um
direito assegurado a todos, tanto no âmbito judicial quanto no administrativo.
É crucial trazer à baila importante inovação, que a Lei n. 13.105, de 16 de Março de
2015, que se trata do Novo Diploma Processual Civil, que nas suas Exposições de Motivo,
ratifica o entendimento de que este código “[...] tem o potencial de gerar um processo mais
célere, mais justo, porque mais rente às necessidades sociais e muito menos complexo” 26
25
PINTO, Oriana Piske de Azevedo Magalhães. Responsabilidade do Poder Judiciário no Estado Democrático de Direito.
Disponível em: http://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/artigos/2008/responsabilidade-do-poder-judiciario-noestado-democratico-de-direito-juiza-oriana-piske-de-azevedo-magalhaes-pinto acesso em: 28 maio 2015.
26
BRASIL. Senado Federal (2010). Exposição de motivos do Novo Código de Processo Civil. Disponível em:
<http://legis.senado.leg.br/mateweb/arquivos/mate-pdf/160823.pdf>. Acesso em: 06 maio 2015, p. 10.
82
O Novo Código de Processo Civil é um instrumento que visa dar uma contribuição
considerável à sociedade, vez que tende a romper com o excesso de formalidades, para que,
dessa forma, possa tornar o processo um meio realmente eficaz sob a ótica da celeridade na
prestação jurisdicional. Assim, os jurisdicionados beneficiam-se por um mecanismo que
objetiva romper com a morosidade existente no âmbito processual, a qual macula a ideal
eficiência do Estado em dissolver as intempéries oriundas de sua própria substância
humana, de modo que os conflitos não mais se prolonguem no tempo sem uma efetiva
resposta do Estado-Juiz27.
O Poder Judiciário deve ser mais próximo da população na pacificação social, deve
expor aos jurisdicionados como as relações interpessoais e interinstitucionais devem ser
éticas. Isso não enfraquecerá a instituição, muito pelo contrário, irá enobrecê-lo, pois um
maior respeito e credibilidade, surgirá.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As mudanças do Estado ocorrem para efetivar-se a realização dos interesses do
próprio povo, restringindo o poder do Estado em razão das garantias constitucionais
destinadas à concretização dos direitos coletivos e individuais. Nesta linha de raciocínio, o
Estado Democrático de Direito, buscou limitar o poder do próprio Estado e de seus agentes,
superando as desigualdades sociais e realizando a justiça social.
No Brasil, o Estado Democrático de Direito teve seu início com a Constituição Federal
de 1988, constando em vários artigos a defesa da cidadania, da democracia, da dignidade
da pessoa humana e da liberdade plena como meio de se efetivar o bem-estar social.
Ocorre que a sociedade reclama uma postura cada vez mais enérgica do Poder
Judiciário, o qual não deve se distanciar das questões sociais, deve chamar para si a
responsabilidade do processo evolutivo das nações, eis que é também responsável pelo
bem comum, principalmente quando se trata de assuntos como a dignidade da pessoa
humana, a redução das desigualdades sociais e a defesa dos direitos de cidadania.
27
LEAO, José Bruno Martins; PRANDI, Luiz Roberto. O poder do juiz no estado democrático de direito. In: Âmbito Jurídico,
Rio
Grande,
XIX,
n.
144,
jan
2016.
Disponível
em:
<http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=16748>. Acesso em maio 2016.
83
É difícil a atividade do Poder Judiciário diante da sociedade atual. Aplicar o direito ao
caso concreto, vai muito além da “mera aplicação da letra fria da lei”. Aplicar a norma legal
referente ao caso concreto é discutir a magnitude do ordenamento jurídico, eis que há um
conjunto de regras e diretrizes interpretativas que deverão ser empregadas para que se
localize a melhor solução ao problema social do jurisdicionado apresentado à análise do
Poder Judiciário, e, portanto, alcançar-se ao máximo possível do ideal da verdadeira justiça.
Notou-se, neste artigo, que a atuação do Poder Judiciário no Estado Democrático de
Direito consiste em cuidar da efetivação da justiça ante as variadas situações fáticas
existentes e, com isso, diminuir, na medida de seus poderes constitucionais e legais, os
problemas oriundos do convívio social, auxiliando para a construção de uma sociedade cada
vez mais livre, justa e pacífica.
REFERÊNCIAS DAS FONTES CITADAS
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democracia participativa e da cidadania inclusiva no Estado democrático de direito. São
Paulo: Conceito Editorial, 2011.
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constitucionais e processuais. São Paulo: Saraiva, 1995.
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BRIÃO, R. F. Os poderes introdutórios do juiz e a busca da verdade real no processo civil
84
moderno.
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STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da
construção do direito. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.
86
A REPERCUSSÃO DAS ESCOLAS EXEGÉTICA E NORMATIVISTA NOS
FUNDAMENTOS DO DIREITO: CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES À
CONCEPÇÃO DO MODELO CONSTITUCIONALISTA
Fausto Santos de Morais 1
Bruno Ortigara Dellagerisi2
José Paulo Schneider dos Santos3
INTRODUÇÃO
O conceito de direito contemporâneo, de vertente constitucionalista, distancia-se,
até certo ponto, dos ideais jurídico-positivistas de outrora. Hoje, as exigências políticojurídicas são outras, sendo outro, também, o papel do poder judiciário na realização e
efetivação de direitos.
Acredita-se
que
o
advento
do
constitucionalismo,
mormente
com
a
institucionalização dos direitos humanos no âmbito estatal interno, isto é, com o
reconhecimento dos direitos fundamentais, na sua concepção subjetiva e objetiva,
impulsionado pelos reflexos do segundo pós-guerra, inspirou a extensão (abertura) material
do sentido jurídico.
1
Doutor em Direito Público (UNISINOS), docente do PPGD da Faculdade Meridional. Pesquisador com apoio da
Fundação Meridional. Advogado.
2
Mestre em Direito pela Faculdade Meridional (IMED) de Passo Fundo/RS, vinculado à linha de pesquisa 2 – Mecanismos
de efetivação da Democracia e Sustentabilidade. Bolsista CAPES (modalidade Taxa). Graduado em Direito pela
Faculdade Meridional (IMED) de Passo Fundo/RS. Bolsista desempenho. Advogado.
3
Mestrando em Direito pela Faculdade Meridional (IMED) de Passo Fundo/RS, vinculado à linha de pesquisa 1 –
Fundamentos do Direito e Democracia. Pós-graduando em Direito Penal e Processo Penal pela Faculdade IDC de Porto
Alegre/RS. Graduado em Direito pela Faculdade Meridional (IMED) de Passo Fundo/RS. Pesquisador científico FAPERGS
(2012-2015). Advogado.
87
Porquanto, como se pretende demonstrar, a transição das teorias jurídicas
positivistas, guardada a especificidade de espaço e tempo, colocou em xeque a
autossuficiência da lei e demonstrou certa fragilidade prática do direito enquanto teoria
pura.
Restam as seguintes indagações: como fica a segurança jurídica? Qual a legitimidade
do judiciário na materialização de direitos? A Constituição de fato vinculará o processo de
decisão judicial?
Como se vê, a passagem do positivismo jurídico (sentido lato) ao constitucionalismo
não denota outro elemento senão a alternância na concepção da relação entre direito e
moral. É justamente nesse ponto que surgem as problemáticas teórico-práticas que a
doutrina incessantemente vem procurando resolver.
A esse respeito, não se pode olvidar a importância da filosofia no conceito e
produção do direito. Não obstante, o direito, enquanto disciplina, apresenta carências
estruturais e impossibilidades de, por si, resolver os problemas que surgem na dinamicidade
das demandas jurídico-sociais. O amparo filosófico é, nesse sentido, imprescindível à
institucionalização de um ordenamento jurídico íntegro e coerente. Por isso, teorizar acerca
das significantes de um modelo de direito constitucionalista exige, num primeiro momento,
a compreensão da relação “Indivíduo e Estado” e, por consequência, da dicotomia “direito
e moral”.
O presente estudo, nessa linha, tem como escopo apresentar a manifestação da
moral no direito e os seus atuais reflexos na produção e aplicação do saber jurídico, tendo
como pano de fundo o resgate de dois pilares do pensamento jurídico clássico de cariz
positivista.
Não há dúvida que o paradigma positivista é multissecular, de modo que não é
possível intentar uma teorização singular a esse respeito. Todavia, o presente trabalho se
propõe, a título de recorte teórico, a individualizar duas escolas clássicas do positivismo
jurídico, a saber, o positivismo exegético (item 2.1.) e o positivismo normativista (item 2.2.).
88
Antes, porém, o estudo perpassará a discussão “Estado e positivismo” (item 1),
alcançando as contribuições de Bobbio e Hobbes, o que notadamente auxiliará na
exposição dos elementos constitutivos da filosofia positivista, em especial na verificação do
juiz bouche de la loi (da França, do início do século XIX), bem como na análise da relação
entre direito e moral, sob a ótica positivo-normativista de Kelsen.
O constructo ora proposto encontra justificativa à medida que empresta
contribuições teóricas à resolução das atuais controvérsias jurídicas na concretude e
realização das garantias fundamentais.
Para fins metodológicos, o trabalho está orientado e organizado conforme os
aportes da fenomenologia hermenêutica, sistematizando os conceitos e as críticas
mediante a pesquisa bibliográfica sobre o positivismo jurídico e o seus efeitos no estudo da
aplicabilidade dos direitos fundamentais no Brasil.
2. O IMPACTO DO ENTE ESTATAL NA PRODUÇÃO DO DIREITO: DIÁLOGO ENTRE AS
TEORIAS HOBBES E BOBBIO
Destaca-se, inicialmente, não ser possível analisar a filosofia positivista sem se ter a
correta compreensão acerca do real valor-função do ente estatal. Em última análise, o
Estado é o ente necessário ao desenvolvimento do positivismo jurídico.
Tanto é assim que uma das principais dificuldades enfrentadas pelo direito natural é
o fato de o estado de natureza constituir-se em um estado de anarquia permanente4. Isso
porque nele prevalece a lei do mais forte, onde todos têm o arbítrio de utilizar da força
necessária na defesa de seus interesses particulares, haja vista a total ineficácia do direito
não escrito, diante da ausência de um poder centralizado, capaz de fazê-lo cumprir.
Era necessário, dessa maneira, acabar com a anarquia social. Como pode ser
verificado na história, isso só foi possível com o surgimento do Estado, ente dotado de força
4
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995, p. 35.
89
indiscutível e irresistível, capaz de constranger os homens a respeitar as leis, o que ocorreu
após a dissolução da sociedade medieval, de cunho extremamente pluralista, dividida em
grupos, ordens, classes, de múltiplas unidades territoriais ou sociais, com ordenamentos
próprios e distintos, com o direito sendo produzido pela sociedade civil5.
Para Hobbes, a constituição do Estado advém do anseio humano pela proteção,
organização e valorização da própria existência. Nesse sentido, o Estado poderia ser
legitimado voluntariamente pela aceitação dos homens ou a eles imposto6.
Nessa esteira, as leis civis – gerais e abstratas – representariam a vontade do
soberano, sendo obrigação dos homens conhecê-las e respeitá-las. No entanto, a relação
entre a lei civil e a lei da natureza7 seria um só produto. Assim, as qualidades e virtudes
morais, quando ditas pelo soberano, assumiriam o valor de ordem positiva (escrita) e, dessa
forma, deveriam obrigatoriamente ser seguidas. Atenta-se ainda para o fato de que, na falta
da lei escrita, os mandamentos naturais poderiam ser aplicados desde que não estivessem
em contraposição à vontade do soberano.
Dessa forma, a passagem do direito natural ao direito positivado se deve, dentre
outros fatores, ao surgimento do Estado. Isso porque, a partir do advento do ente estatal,
a produção legislativa que antes era esparsa (uma vez que a norma a ser aplicada poderia
ser deduzida das regras do costume, das regras elaboradas pelos juristas, ou de critérios
equitativos do próprio caso) concentrou-se nas mãos do órgão com força para fazê-la
cumprir (o leviatã hobbesiano). Assiste-se assim ao processo de monopolização da
produção jurídica por parte do Estado8.
Verifica-se, então, que o direito positivo, o direito posto pelo Estado por meio da lei,
nasce, em um primeiro momento, da necessidade de ordenação do instável direito
5
Ibid., p. 27.
6
HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. trad. João Paulo Monteiro e
Maria Beatriz da Silva. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 105-106.
7
Hobbes compreende as máximas da natureza a partir do seguinte enunciado: “Não faças aos outros o que não consideras
razoável que seja feito por outrem a ti mesmo.”. Cf. Ibid., p.165.
8
BOBBIO, op. cit., p.56.
90
primitivo. Ou seja, o surgimento do Estado simboliza a derrocada da anarquia (comum à
condição natural do homem), evidenciando-se como um meio eficaz de intervenção na vida
social9.
O legalismo (consolidações dos ditames legais em leis civis), nessa linha, foi a
resposta encontrada para garantir a segurança jurídica, exigência das sociedades
complexas, e afastar o totalitarismo jusnaturalista10, com a promulgação de leis gerais e
abstratas, postas pelo Estado (ou seja, pelo soberano).
Nesse diapasão, Bobbio entende que “o positivismo jurídico nasce com o impulso
histórico para a legislação, se realiza quando a lei se torna a fonte exclusiva (ou prevalente)
do direito, e seu resultado último é representado pela codificação”11. Portanto, com as leis
positivas, governantes e governados estão a ela subordinados, colocando, assim, um limite
na vontade do homem, eis que ninguém está acima da lei.
Em Hobbes, entretanto, a subordinação à lei não é uma via de mão dupla. Para ele,
a lei é a expressão do intentar do soberano. E, como tal, não poderia ser contrária à razão
– esta, insiste-se, produto do saber soberano –, estando a legitimidade da decisão judicial
condicionada a esse elemento12.
Quer dizer, a decisão judicial valeria sempre quando não fosse contrária à vontade
do soberano. Nesse sentido, valendo-se das teorias hobbesianas, a lei deveria preencher
três requisitos: (a) competência: a produção do direito seria exclusiva do legislador; (b)
publicidade: as leis deveriam ser do conhecimento de todos; (c) legitimidade 13 : a
9
Ibid., p. 119.
10
O pensamento jusnaturalista fez crer que o homem, por si só, e em face de sua própria condição existencial, era
merecedor de uma gama de direitos naturais e intransferíveis. Algo que só foi possível através das concepções filosóficas
e religiosa dos antigos tempos, uma vez que são esses os cernes da identidade humana. Cf. SARLET, Ingo Wolfgang. A
eficácia dos direitos fundamentais. 6. Ed. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2006 p. 45. Assim desde os
séculos XVI e XVII são vistos ideais de direitos imprescindíveis à pessoa humana que corroboraram com o advento dos
direitos fundamentais. Dentre esses ideais estão, por exemplo, os direitos à liberdade e dignidade humana, à vida, à
propriedade e à resistência. Cujo referencial teórico encontra maior contorno nas teorias, contratualistas, dos
pensadores ingleses Coke e Locke (dentre outros, não menos importantes, é claro). Cf. Ibid., p. 47 – 48.
11
BOBBIO, op. cit., p. 119.
12
HOBBES, op. cit., p.165.
13
Faz-se imperioso destacar que há, em Hobbes, uma particularidade quando da interpretação das leis. As leis da natureza
eram interpretadas no processo de “criação” de sentença. Assim, o juiz, ao desempenhar suas funções judicantes,
91
interpretação da lei seria exclusividade dos escolhidos pelo soberano14.
Quanto à legitimidade na aplicação do direito, além do respeito à vontade do
soberano, um bom juiz seria aquele: (i) capaz de fazer uma leitura correta da equidade; (ii)
de afastar e repudiar o apego pelos acúmulos de capitais; (iii) de proferir uma decisão
imparcial, não se deixando levar pela subjetividade emocional15.
Em última análise, a institucionalização do direito positivo remonta aos primórdios
da civilização. A evolução desses períodos e o advento da vida civil exigem do direito a
edificação (positivação) de um sistema legal habilitado a conferir maior rigidez e
legitimidade aos mandamentos e ordens organizacionais.
Destarte, o aparecimento do Leviatã é, por certo, o reconhecimento do Estado na
condição de soberano das produções jurídico-legislativas, o que, conforme poderá ser
observado, tem forte influência na consolidação do pensamento positivista (sentido lato),
em especial na França pós-revolucionária.
3. POSITIVISMO JURÍDICO, O QUE É ISSO?
Faz-se oportuno destacar, inicialmente, que não é intenção deste trabalho reduzir
o positivismo jurídico às escolas abaixo individualizadas. Reconhece-se, sem embargo, que
a filosofia positivista sofre(u) diversas variações (de tempo e espaço) durante a história, o
que se intensificou com a “evolução” das alegorias, social e difusa, de direitos
analisava se as demandas guardavam coerência com a equidade e com a razão natural.
14
Ibid., p. 167.
15
Ibid., p. 170.
92
fundamentais16, sobretudo pela realização material desses direitos17'.
Logo, o recorte aqui formulado, reconhecendo o salto temporal que ele significa,
pretende apresentar as características de duas escolas do positivismo jurídico de forma a
demonstrar elementos convergentes e divergentes entre essas correntes, bem como
eventuais influências no modelo de produção e aplicação do direito constitucionalista
contemporâneo18.
Ora, não se está negando as diversas variações da filosofia positivista, tampouco se defende
que o tema aqui abordado não sofra interferência de outras correntes temáticas. O que, por óbvio,
ocorre.
Aliás, o positivismo jurídico, não raras vezes, é concebido de forma negativa na
tradição jurídica, quer seja no ensino ou na aplicação do direito. Há quem sustente que o
16
Está falando-se da dinamicidade conceitual comum aos direitos fundamentais. Pensar numa definição de direito
fundamental pressupõe reconhecê-lo em diferentes níveis de extensão. Com o segundo pós-guerra, e, portanto, num
Estado de direito, surgiu o entendimento de que os direitos fundamentais extrapolam o conceito de direitos subjetivos
e devem ser percebidos, também, como valores objetivos, que norteiam e dão força à ordem constitucional de
determinado Estado. Esse direito, segundo Novais, irradia a todos os ramos do direito (enquanto disciplina) e vincula,
ou deve vincular, sobre a atuação de todos os poderes estatais. Quer dizer, direitos fundamentais subjetivos fazem
referência à relação “Estado e Indivíduo”. Direito fundamental objetivo, por seu turno, é aquele que condiz com a
universalidade dos direitos, deve ser tido num caráter geral e universal, irradiando-se em todo o ordenamento de um
Estado democrático de direito. Cf. NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente
autorizadas pela constituição. 2. Ed. Coimbra: Editora Coimbra, 2010, p. 57-58.
17
Sobre o tema, Queiroz reconhece a existência de direitos fundamentais, prima facie, não positivados no direito
constitucional interno de determinado Estado. Ela bem refere que esses direitos podem ser tidos sob diferentes
nomenclaturas, quais sejam: i) direitos fundamentais direitos fundamentais extra-constitucionais (CANOTILHO); ii)
direito fundamental em sentido material (MIRANDA); iii) sub-constitutional rule-making (MONAGHAN). A autora, por
sua vez, classifica os direitos fundamentais em enumerados e não enumerados. A diferença entre eles, segundo a
autora, é que os primeiros (enumerados) estão estabelecidos na Constituição. Já os não enumerados encontram-se
consignados pelos órgãos responsáveis pela aplicacio do direito. Queiroz adverte que em que pese esses últimos não
estejam de pronto estabelecidos na Constituição, eles, se previamente estabelecidos e pensados pelo legislador,
possuem o mesmo valor constitucional que os direitos escriturados no texto constitucional. Cf. Direitos Fundamentais.
2. Ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p.106-107.
18
A utilização da expressão “neoconstitucionalista” ou “neoconstitucionalismo” quer colocar em evidência a tentativa de
superação do modelo positivista exegético, no entanto, acaba esbarrando na armadilha da tese sobre a interpretação
do direito como ato de vontade. Assim, reconhecendo a existência de correntes que utilizam a mesma expressão, mas
que postulam uma forma própria de conceber o direito, a expressão será utilizada como sinônimo da consideração da
Constituição como fonte de validade da ordem jurídica e proteção dos direitos fundamentais através do Poder
Judiciário. Importa destacar a crítica de Streck ao afirmar que “neconstitucionalismo” em terrae brasilis teve a patologia
de contribuir para corromper o próprio texto constitucional, visto que não conseguiu se livrar da influência da
interpretação do Direito como um ato de vontade. Assim, o neoconstitucionalismo brasileiro tem a característica de
estar filiado a posturas voluntaristas. Cf. STRECK, Lenio Luiz. Neoconstitucionalismo, positivismo e pós-positivismo. In:
FERRAJOLI, Luigi; STRECK, Lenio Luiz; TRINDADE, André Karam (org.). Garantismo, hermenêutica e
(neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012, p. 62.
93
positivismo jurídico representa, tão-somente, um período em que o direito era resumido
àquilo que estivesse na Lei. Sua idealização, todavia, possui contornos maiores, e seus
pressupostos não podem ser caracterizados por um conceito deveras reducionista (e
desconectado da realidade, é claro).
Nesse ângulo, falar da filosofia positivista requer certo cuidado. Não se pode pretender
conferir cientificidade (certeza) ao conceito lato de positivismo jurídico. Assim, parafraseando Lenio
Streck, ao se falar no conceito de positivismo jurídico, imprescindível se faz a seguinte assertiva: de
qual positivismo se está a falar?
No caso, abordar-se-á a exegese francesa e o normativismo em Kelsen. Com efeito, objetivase deixar nítida a relação entre direito e moral durante esses dois períodos da história positivista,
bem como superar a imprecisão semântica no que diz respeito ao conceito de positivismo jurídico.
Afinal, o que é direito positivo e o que é direito natural?
Enquanto o direito natural vale em toda parte e não muda com o tempo, ou seja, é universal
e imutável, o direito positivo vale nos limites da jurisdição da lei e muda conforme a organização
social, ou seja, é particular e mutável. Outra diferença importante refere-se à fonte do direito.
Enquanto o direito natural provém da vontade divina, o direito positivo é fruto da vontade do
legislador. Em relação aos objetos dos direitos, o natural estabelece comportamentos bons e maus
por si mesmo, ao passo que para o positivo isso é indiferente19.
Quer dizer, o direito natural jamais ofereceu oposição ao direito positivo. Na
verdade, o ideal extrapositivo de direito tinha a moral como critério derradeiro de
juridicidade (legitimidade). A concepção positivista, por sua vez, aceitava como conceito de
direito apenas aqueles direitos escriturados, sendo os dizeres naturais – eivados de juízos
morais – meros elementos passíveis de positivação, portanto, com condição de, uma vez
positivados, serem concebidos como direito20.
De tal sorte, um dos pilares do positivismo jurídico, como se verifica estampado em
seu nome, é a positivação do direito. Por obra do positivismo jurídico ocorre a redução de
19
BOBBIO, op. cit., p. 22.
20
MOLLER, Marx. Teoria geral do neoconstitucionalismo: bases teóricas do constitucionalismo contemporâneo. Porto
Alegre: Livraria dos Advogados, 2011, p. 75.
94
todo o direito a direito positivado, estando o direito natural, nessa ótica, excluído da
categoria do direito21, sendo uma mera possibilidade de (se tornar) direito.
A transição ao modelo positivista de direito só foi possível a partir da criação do
Estado, que surgiu com a ambição e necessidade dos homens em sair da anarquia presente
no estado de natureza. Significa isso que, em determinado momento da história, o homem
abdicou da insegura autogovernação e entregou ao homem (soberano) ou a um conjunto
de homens (parlamento) a tarefa de governar sua vida. Ou seja, passa-se do estado de
sobrevivência para o de convivência humana. Em síntese, apresenta-se como competência
do Estado a garantia da paz e a defesa comum22.
A partir de então, o direito válido passou a ser aquele posto pelo Estado, órgão
capacitado para criá-lo e legitimado para aplicá-lo. A validade da lei depende da correta
observação do seu processo de criação, depende da existência de um verdadeiro ato de
vontade do soberano23.
O processo de monopolização da produção jurídica por parte do Estado somente foi
possível a partir do advento do Estado Moderno, com estrutura monista, concentrando em
si todos os poderes, em especial, aquele de criar e aplicar o direito24.
Dessa maneira, verifica-se no positivismo jurídico a soberania do Estado na produção
de normas jurídicas. Isto é, através da lei, tem-se a transcrição dos costumes do direito
natural para um direito sujeito ao crivo do ente estatal.
É, por conseguinte, cristalina a existência de diferentes níveis de manifestação da
moral no direito durante a passagem positivista. Tal fato tem relação direta com a
alternância da concepção do modelo político-estatal. Isto é, a separação entre direito e
21
BOBBIO, op. cit., p. 26.
22
Explica-se que para controlar o homem, o Estado se utiliza da força e, também, de certa forma, monopoliza toda a
produção jurídica, o que para alguns seria o ponto negativo de Hobbes e para outros, os defensores do autor, seria o
mal necessário para se alcançar o estado de convivência. Cf. op. cit., p. 105-106.
23
KAUFMANN, Arthur; HASSEMER, Winfried. Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas.
Lisboa: Gulbenkian, 2002, p. 115.
24
BOBBIO, op. cit., p. 27.
95
moral do liberalismo não é (e nem poderia ser) a mesma verificada no socialismo ou na
democracia. No primeiro, o legislativo é o poder em notoriedade. Nos dois últimos,
destacam-se os poderes executivo e judiciário, respectivamente.
Destaca-se que todas essas características supracitadas compõem a ideia de
positivismo jurídico, porém, numa noção prima facie (em sentido lato). Ocorre que resumir
um paradigma ainda influente no direito da atualidade é o mesmo que remontar à
imprecisão semântica antes denunciada.
Por isso, intentar-se-á, sequencialmente, demonstrar as características de duas
concepções diferentes do positivismo jurídico (a saber: o exegético e o normativista), a fim
de evidenciar eventuais contrassensos ou tautologias entre elas, com o objetivo final de
compreender o atual padrão (constitucionalista) de produção e realização do direito.
3.1 A Escola Exegética
O Positivismo Jurídico foi, e ainda é – Ferrajoli, por exemplo, caracteriza o seu
constitucionalismo garantista como um reforço ao positivismo jurídico –, uma escola de
grande influência no direito. A concepção de direito, para essa doutrina, surgiu quando o
direito positivo passou a ser considerado direito em si próprio, desvinculando-se do direito
natural.
Em outras palavras, não se pode negar que o positivismo jurídico, em sua origem,
tenha sido constituído ante uma rigorosa cisão entre elementos jurídicos e morais. O que
se pretendia para o direito, num primeiro momento, era a não interferência da teoria
filosófica dos valores. A proposta era conceber o direito por meio de uma neutralidade
axiológica. Isto é, admitir como crível a produção do direito destacada de qualquer tipo de
valoração possível associada às questões sociais, teóricas e práticas25.
25
MORAIS, F. S. de. 2013. Hermenêutica e pretensão de correção: uma revisão crítica da aplicação do princípio da
proporcionalidade pelo Supremo Tribunal Federal. São Leopoldo, RS. Tese de Doutorado. Universidade do Vale do Rio
dos Sinos – UNISINOS, p. 23.
96
Bobbio, nesse ínterim, leciona que o positivismo jurídico encara o direito de maneira
avalorativa. Ou seja, para a visão positivista, o direito é tido como um fato e não como um
valor. O direito independe de ser bom ou mau; “na linguagem juspositivista o termo ‘direito’
é então absolutamente avalorativo, isto é, privado de qualquer conotação valorativa ou
ressonância emotiva” 26 . À vista disso, o direito se funda em critérios que concernem
unicamente a sua estrutura formal.
Vislumbra-se, assim, a importância da criação do Estado para o direito positivo. Nas
estruturas sociais medievais, cada um era responsável pela defesa de seus bens. Não existia
uma força superior a todos, capaz de constranger cada cidadão a respeitar as leis. Assim,
quando cada homem transfere parte de sua capacidade de autogovernar, cria-se um ente
com mais força que qualquer indivíduo isolado, capaz de fazer cumprir as leis.
Logo, com a formação do Estado moderno, se impõe ao juiz a obrigação de aplicar
apenas as normas postas pelo ente estatal, que se torna, assim, o único criador do direito27.
Com a formação do Estado, o direito passa a ser a expressão do ente estatal, órgão detentor
de poder, e não fruto da sapiência dos juízes.
Somente a partir do monopólio estatal da produção jurídica, a lei foi considerada
como principal, senão a única, fonte do direito. Antes disso, o julgador possuía grande
margem de discricionariedade 28 para escolher qual norma aplicar, pois não havia a
obrigatoriedade de escolher exclusivamente normas emanadas pelo Estado.
É por essa razão que se faz imprescindível entender o verdadeiro papel do Estado na
produção e controle do direito. Eis a relevância de Hobbes, que, como muito bem lembrado
por Moller, é tido, ainda que de forma não unânime, como o primogênito dos positivistas29.
Com o passar do tempo, porém, aquela idealização hobbesiana de Estado se
26
BOBBIO, op. cit., p. 131.
27
BOBBIO, op. cit., p. 28.
28
O que se mostrou contrário ao anseio do povo, eis que a escolha da própria fonte do direito era uma “opção” deixada
ao livre arbítrio do julgador, sendo significativo o grau de insegurança e incerteza jurídica.
29
Op. cit., p. 75.
97
mostrou prejudicial à determinada parte da sociedade. A insegurança do estado de
sobrevivência (direito natural) fora resolvida com a institucionalização do ente estatal
(soberano). No entanto, a soberania, antes fundamental à organização da vida humana,
passou a obstar as pretensões do povo. A misericórdia do soberano passou a ser
insuficiente, urgindo a necessidade de um sistema jurídico que protegesse o homem dos
abusos do Estado30.
Percebe-se, aqui, que o liberalismo tem direta influência na guinada do pensamento
positivista. Em última análise, a recusa aos elementos valorativos e morais do direito natural
já não se mostrava suficiente. O Estado, que deveria ordenar o convívio social, estava a
privilegiar determinadas classes e, por consequência, prejudicar outras. Assim, o que se
precisava, então, era fortalecer e legitimar o direito escrito de modo a afastar a insegurança
e os arbítrios estatais.
Ou melhor, em dado momento, mormente na Europa Ocidental, se pretendeu
unificar os sentidos jurídicos e consubstanciar a política. Nesse enredo, na França
revolucionária, em que os costumes e o direito natural apresentavam-se favoráveis à tirania
do soberano, a lei surge como instrumento capaz de uniformizar o espírito do povo ao
propósito do Estado31.
Eis o surgimento da chamada L’école de l’exégèse. Tal denominação diz respeito à
corrente de pensamento jurídico-filosófico que influenciou o direito francês do pósrevolução, cuja vigência é reconhecida até o início do século XX e pode ser precisamente
dividida em três grandes períodos: (a) a institucionalização, de 1804 a 1830; (b) o apogeu,
de 1830 a 1880; (c) a derrocada, de 1880 a 190032.
O exegetismo33, entre outros ideais, aposta na capacidade racional do legislador na
30
Ibid., p. 77.
31
Ibid., p. 75.
32
NEVES, António Castanheira. Digesta. Escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, da sua Metodologia e
Outros. v. 1. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 189.
33
O termo exegetismo tem origem no direito romano, mais especificamente, no modo como o direito romano era
estudado e ensinado: “havia um texto específico (Corpus Juris Civilis) em torno do qual giravam os mais sofisticados
estudos sobre o direito” Cf. STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? Porto Alegre:
98
criação do direito. Nessa esteira, o legislador teria condições de estabelecer normas gerais
e abstratas, cujos imperativos da certeza, necessidade e rigor do raciocínio lógico
permitiriam prever todas as condutas a serem regulamentadas, o que pode ser denominado
como postulado da suficiência da lei34.
É correto dizer que o direito deste momento foi pensado através da exclusividade e
soberania estatal na produção dos comandos jurídicos. A dissociação com a moral é notória.
Reclamava-se, portanto, que a aplicação do direito não dependesse de juízos de valor,
sendo o juiz mero reprodutor dos comandos legais produzidos pelo ente legitimado, ou
seja, pelo legislador, que representava o Estado.
Significa isso que o positivismo exegético foi o instrumento utilizado para conter o
abuso do poder estatal, evidenciado por juízes comprometidos com a ideologia políticojurídica do Rei e da Nobreza, derrotados pela Revolução Francesa 35 , ao imprimir uma
aplicação literal do direito. Em resumo, o direito era aquilo que a lei estabelecesse, sendo
o juiz a “bouche de la loi”, com o poder-dever uno de reproduzir os sentidos contidos nos
comandos legais.
Nessa matriz positivista, a interpretação jurídica deveria estar limitada ao uso da
subsunção e, assim, através de silogismos se daria a aplicação do próprio direito. Por isso,
sustentava-se o direito como um sistema regrado, que exigiria a validade, coerência e
completude de seus mandamentos36.
Segundo Bobbio, o nome “escola da exegese” tem origem na metodologia seguida
nos primórdios do estudo e apresentação do Código de Napoleão. Adotou-se, naquele
momento, rigor científico na organização dos dizeres legais (ditos pelo órgão legiferante).
Apostou-se na formulação de explanações a respeito de cada dispositivo constante no
corpo do Código37.
Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 86.
34
NEVES, op. cit., p. 189.
35
MORAIS, op. cit., p. 24.
36
Ibid., p.23
37
BOBBIO, op. cit., p. 83.
99
Ao transformar o juiz em um mero aplicador da lei, pretendia-se alcançar um grau
elevado de segurança jurídica, pois, assim o fazendo, o direito posto pelo Estado seria
aplicado e impossibilitaria o (re)aparecimento da nefasta “justiça dos juízes” (para os
soberanos e nobres). Buscava-se a completude do ordenamento jurídico. Dessa forma,
sempre que o juiz encontrasse uma lacuna no ordenamento, deveria buscar a solução nas
normas explícita ou implicitamente contidas no ordenamento jurídico38.
O chamado princípio da completude do ordenamento jurídico implica o princípio da
onipotência do legislador, um dos dogmas fundamentais do positivismo de vertente
exegética. A resposta para todo e qualquer problema jurídico estaria no interior do
ordenamento, sendo dever do juiz sempre encontrar essa resposta39.
Com efeito, o Code Civil francês proibia ao juiz deixar de julgar por falta de dispositivo
normativo, apostando na ideia de completude do direito. Como bem diz Castanheira Neves,
a escola da exegese é constituída “como um estrito positivismo hermenêutico”40, no qual o
juiz deveria aplicar estritamente o previsto na Lei ou, subsidiariamente, descobrir a vontade
do legislador, como forma de manutenção da autoridade reconhecida à Lei.
Porém, se mesmo após esse procedimento, não fosse possível obter uma solução
legal para dado caso jurídico, entendia-se, então, que esse caso não deveria fazer parte do
direito, pois não estava escriturado no ordenamento jurídico, devendo-se recorrer ao référé
législatif 41 como maneira de obtenção da vontade do legislador.
A redução de todo o ordenamento jurídico em um corpo de normas
38
Ibid., p. 133.
39
A ideia dominante era a de que o juiz era subordinado à lei, e que a decisão do juiz deveria ser uma decisão fiel ao texto
da lei, pois somente assim estar-se-ia garantindo a segurança do direito. Essa segurança implicava saber se o
comportamento adotado é ou não conforme a lei. Cf. Ibid., p. 40.
40
Neves, op. cit., p. 187-188.
41
O referendo legislativo não tinha outro objetivo que não o de manter sob o próprio domínio o controle e produção
legislativa. Assim fora criado o tribunal de cassação francês com o intuito de coibir a criação de normas jurídicas pelos
juízes, impondo a idealização de obrigatoriedade do référé législatif. Esse tribunal atuaria na fiscalização das decisões
judiciais, cuidando para que estas não estivessem em desacordo com a Lei. Nessa senda, as demandas sem soluções
aparentes na Lei deveriam ser devolvidas imperiosamente, ad referendum, ao legislador, o qual possuía legitimidade
para esgotar as dúvidas existentes. Cf. AZEVEDO, Plauto Faraco de. Método e hermenêutica material no Direito. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 18.
100
sistematicamente organizadas e expressamente elaboradas42 ocorreu, pela primeira vez,
em 1804, quando, na França, entrou em vigor o Código de Napoleão. A importância deste
código é tamanha que influenciou todo o pensamento jurídico moderno e
contemporâneo43. Assim, a filosofia exegética guarda relação direta com a consolidação da
tendência codicista.
Para Azevedo, o Código napoleônico, promulgado em 1804, simboliza a grandeza e
soberania do direito positivado cuja tendência foi seguida pelos códigos prussianos e
bávaros44. Castanheira Neves, por seu turno, ressalva que os códigos bávaros, da Prússia e
os austríacos, devem ser entendidos como códigos não revolucionários, uma vez que não
representavam uma ruptura com a tradição histórica e nem mesmo deixavam de admitir
sua própria incompletude, o que abria precedentes para a utilização de princípios do direito
natural como fonte subsidiária do direito codificado.
Ao contrário, na França, a ideia da codificação adquire consistência política durante
a Revolução. É, sem dúvida, um período de evidência dos ideais iluministas. O Code Civil,
nessa ótica, pode ser visto como consequência da revolucionária recusa ao passado.
Portanto, almejava-se o direito como expressão acabada da razão jurídica45.
Em última análise, o projeto do código francês pressupõe um legislador universal e
a realização de um direito simples e unitário. Para os juristas franceses, a multiplicidade de
leis é fruto de corrupção e, com a vigência da codificação, o direito se tornaria simples,
completo e acessível a todos46.
Os exegetas tinham a ideia de que o código deveria ser completo e, no Código de
Napoleão, visualizam-se os princípios da completude do ordenamento jurídico e da
42
A escola da exegese se limitava a uma interpretação passiva e mecânica do Código. Inclusive, durante o período
exegético, as aulas ministradas nas faculdades de direito limitavam-se à leitura do código, pois o direito era aquilo que
no código estava posto, e o código possuía a completude das leis. Para Streck “(...) a simples determinação rigorosa da
conexão lógica dos signos que compõem a ‘obra sagrada’ (Código) seria o suficiente para resolver o problema da
interpretação do direito”. Cf. STRECK, op. cit., p. 87.
43
BOBBIO, op. cit., p. 63.
44
AZEVEDO, op. cit., p. 20.
45
NEVES, op. cit., p. 182.
46
BOBBIO, op. cit., p. 65.
101
onipotência do legislador. Em seu artigo 4º, assim dispõe o código, “o juiz que se recusar a
julgar sob o pretexto do silêncio, da obscuridade ou da insuficiência da lei, poderá ser
processado como culpável de justiça denegada”.
O art. 4º explica com três conceitos os casos que poderiam colocar o juiz em
dificuldade. a) obscuridade da lei: o juiz deve torná-la clara através da interpretação; b)
insuficiência da lei: o juiz deve completar o dispositivo legislativo (integração da lei); e c)
silêncio da lei: o juiz deve suprir a lei, deduzindo de qualquer modo a regra para resolver o
caso47. A compreensão deste artigo pelos primeiros intérpretes do código é de que sempre
dever-se-ia deduzir da própria lei a norma para resolver qualquer controvérsia. Sobre essa
interpretação do artigo 4º do Código de Napoleão se fundou a L’école de l’exégèse.
Conforme destaca Bobbio, a escola da exegese foi acusada de “fetichismo da lei,
porque considerava o Código de Napoleão como se tivesse sepultado todo o direito
precedente e contivesse em si as normas para todos os possíveis casos futuros”. Amparados
pelos princípios da completude do código e da onipresença do legislador, a pretensão era a
de fundar a resolução de quaisquer questões na intenção do legislador48.
Mas porque a escola da exegese vingou? Bobbio elenca cinco principais causas do
advento dessa escola. São elas: i) a codificação; ii) o princípio de autoridade; iii) a separação
dos poderes; iv) a certeza do direito; v) a pressão exercida pelo regime napoleônico49.
Como se vê, a codificação é causa da exegese, pois a existência de um código
completo permite procurar em seu interior a solução de qualquer litígio, desprezando
outras fontes jurídicas, cujo manuseio é mais complexo e difícil do que o direito codificado.
O princípio de autoridade impedia o subjetivismo dos juristas. A vontade do legislador
codificada se mostrou, naquele momento, o modo mais seguro e completo de obedecer à
uniformização político-jurídica pretendida.
A justificativa jurídico-filosófica da escola da exegese era a doutrina da separação
47
Ibid., p. 74
48
Ibid., p. 77.
49
Ibid., p. 78-81.
102
dos poderes 50 . Segundo esta, a função do juiz é de operador do direito, estando
impossibilitado de prover e criar direitos. O magistrado nesse enredo é, tão-somente, a
boca através da qual se reproduz o significado da lei (e, desse modo, do direito).
O princípio da certeza do direito traz o ideal positivista da segurança jurídica. Com a
codificação, cada cidadão pode conhecer antecipadamente a conduta tipificada e as
consequências do comportamento em desconformidade com a lei.
Por todo o exposto, são cinco as características fundamentais da escola da exegese:
i) a inversão das relações tradicionais entre direito natural e direito positivo; ii) a concepção
rigidamente estatal do direito; iii) a interpretação da lei fundada na intenção do legislador;
iv) o culto ao texto da lei; v) o respeito pelo princípio de autoridade51.
Ademais, o direito natural passa a ser desvalorizado pela escola exegética, que
entende que o jurista deve voltar sua atenção unicamente ao direito positivo. A inversão
das relações entre direito natural e direito positivo se configura, ainda, por entender que a
relevância daquele aumenta à medida que se proceda a sua positivação. Isso porque os
exegetas acreditavam em uma concepção estatal e unitária do direito.
Não é exagero repetir que na escola da exegese a lei não deve ser interpretada
segundo a razão e os critérios valorativos daquele que deve aplicá-la, mas, ao contrário,
deve submeter-se completamente à razão expressa na própria lei 52 . O juiz não tem de
manifestar sua opinião. Ele deve buscar na lei a solução para o problema. Aliás, “sua
sentença deverá ser um texto preciso da lei”53.
Fica clara qual era a função do juiz exegético. Ou melhor, fica clara qual não era a
sua função54. Ao juiz não cabia interpretar a norma jurídica. Caso contrário, ao interpretar,
50
Montesquieu, ao contrário daquilo que costumeiramente se afirma, discorreu sobre a possibilidade de interferência
entre os três poderes do Estado. Cf. AZEVEDO, op. cit., p.15.
51
BOBBIO, op. cit., p. 84-89.
52
BOBBIO, op. cit., p.41.
53
PERELMAN, Chaïm. Ética e direito. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2005, p. 388.
54
Como destaca Pêpe, “uma das marcas do positivismo jurídico é a descaracterização das demais ordens normativas que
foram e que são produzidas tradicionalmente”. Como resultado dessa descaracterização, tem-se a desvalorização das
103
estaria condicionando a norma a um sentido diferente daquele proposto pelo legislador55.
Enfim, percebe-se que a L'école de l'exégèse foi uma passagem positivista de
legalismo forte e com um modelo analítico-dedutivo de aplicação do direito56. O juiz, nessa
passagem, deveria se limitar a ser um mero aplicador dos ditames legais.
Além disso, necessário se faz mencionar que, ao exigir uma interpretação mecânica
dos institutos jurídicos, a escola da exegese representa a separação das influências morais
no direito. Assim, a moral entraria no direito apenas no processo de feitura da legislação,
não podendo a decisão judicial substanciar-se em juízos subjetivistas e valorativos no ato
de aplicação do direito.
3.2 O Positivismo Normativista de Kelsen
O momento normativista não ocorre logo após a derrocada da exegese francesa.
Tampouco se pode afirmar que o normativismo tenha sido originariamente pensado em
países com influência direta da exegese. Acredita-se, entretanto, que uma leitura
comparativa entre essas escolas (exegética e normativista) facilita a compreensão da
evolução do sentido jurídico positivista ao longo da história.
Inicialmente, é possível perceber que Kelsen, idealizador do positivismo
normativista57, teorizou a necessidade de um direito que conhecesse o seu próprio objeto.
A chamada “Teoria Pura do Direito” 58 é fundada com o intuito de expurgar as carências e
fragilidades do direito (enquanto teoria). Isto é, pretendia-se excluir da disciplina jurídica
“normas morais, religiosas e habituais que contêm fortemente conteúdos normativos próximos daqueles que o sistema
jurídico trata com pretensa exclusividade”. Cf. O Jusnaturalismo e o Juspositivismo Modernos. In: SANTOS, André
Leonardo Copetti; STRECK, Lenio Luiz; ROCHA, Leonel Severo (Orgs). Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 25.
55
BOBBIO, op. cit., p.41.
56
NEVES, op. cit., p. 189.
57
Streck adverte que Kelsen foi mal recepcionado por parte da doutrina brasileira, o que contribui para a falsa percepção
de que o juiz normativista seria a “cura dos males do direito”. Cf. STRECK, Lenio. Lições de crítica hermenêutica do
direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014, p. 29.
58
É importante destacar que Kelsen não desenvolveu uma teoria do direito positivo. Logo, a pureza pretendida por Kelsen
era a do direito enquanto ciência jurídica.
104
tudo aquilo que não lhe pertencesse59.
Para o positivismo normativista, portanto, não importa a questão de saber como
deve ser o direito. Em verdade, seu princípio metodológico fundamental é a libertação da
ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estanhos (a política, a sociologia, a
história, a ética ou a psicologia). Por essa razão, chama-se teoria pura do direito. É ciência
jurídica e não política do direito60.
Aliás, a matriz normativista se destaca por ser o período em que se buscou a
autonomia do direito. Pretendia-se para o direito uma linguagem com conteúdo certo e
adequado 61 , livre de interferências estrangeiras. Em outras palavras, intentava-se uma
fonte científica do direito62, apartada de elementos externos ao ordenamento normativo.
Não seria à toa que o ideal de desenvolvimento do direito como ciência, conforme
pretendido pelos normativistas, pressuporia falar em rigor linguístico. Isto é, a ciência não
só é dependente da linguagem, mas, na verdade, é a linguagem – dotada de rigor –
propriamente dita63.
Objeto último do constructo normativista é a (r)estruturação dos sentidos jurídicos
pela e na linguagem. Contudo, o conceito de linguagem também deveria ser (re)pensado.
Logo, para um enunciado deter o rigor pretendido, ele deveria estar amparado numa
linguagem sintática e semanticamente adequada64. Em suma, um enunciado que se quer
científico, quando de sua formação de sentido (sintaxe-semântica), precisa estar abrangido
dentro dos limites do discurso fático. Portanto, deve, em sua essência, ser elemento
59
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. trad. João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 01.
60
Ibid., p.01.
61
Não se pode negar, contudo, que Kelsen entendia que a linguagem-signo comportava vários significados.
62
Kelsen focou sua teorização na análise jurídica e, por isso, propôs o direito como ciência. Ocorre, todavia, que,
diferentemente dos fatos e elementos das demais ciências, no direito todas as condutas humanas têm, em si, uma
autoexplicação. Ou seja, para o direito, todo ato humano revela, por si, um sentido jurídico. A interpretação normativa
é, nesse contexto, fundamental à juridicidade da ação humana (KELSEN, 1999, p. 03).
63
WARAT. Luis Alberto. O direito e sua linguagem. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995, p. 37-38.
64
Embora divirja, Warat reconhece a preocupação de Kelsen com os métodos de verificação científica do direito. Cf.
WARAT, op. cit., p. 40-43.
105
verificável65.
Depreende-se da passagem acima transcrita que o normativismo cuida da
verificação semântica da linguagem, o que se traduz na possibilidade da constatação fática
de dado enunciado. Para Warat66, Kelsen se preocupou em explicitar que se uma norma é
significante – verificável faticamente – ela é, então, válida67.
Por tudo isso, pode-se concluir que essa passagem positivista, calcada numa teoria
da verdade, busca conferir certeza ao sentido dos enunciados jurídicos. Enfim, a vertente
normativista se traduz na era da caça à cientificidade do direito. O êxito dessa empreitada,
porém, dependeria da adoção de uma linguagem sintática e semanticamente adaptada a
esse novo modo de enxergar o direito.
Eis a conhecida epistemologia da linguagem jurídica 68 . Trata-se notadamente do
controle metodológico-científico dos enunciados normativos. O que se explicita pela
teorização da norma jurídica69 proposta por Kelsen70.
Para Kelsen, a ciência jurídica tem a função de conhecer o direito e de, a partir disso,
descrevê-lo. A produção do direito não compete à ciência jurídica e, sim, às autoridades
jurídicas (órgãos executores do direito). Assim, a função da ciência jurídica seria a de
descrever o esquema de normas existente na ordem jurídica, ou seja, dizer o direito como
65
Ao tratar de elementos verificáveis, Warat está denunciando a preocupação empírica dos enunciados jurídicos do
positivismo lógico. Quer dizer, os juízos não verificáveis faticamente representariam verdades subjetivas (crenças e
opiniões, por exemplo). Em última análise, o normativismo refutou aquelas significantes percebidas sem a consideração
doutros elementos perceptíveis. Cf. Ibid., p.42.
66
Nota-se que Warat se opõe à proposta normativista. Para ele, mais valeria uma preocupação dogmática com a eficácia
e legitimidade dos critérios de significação do sistema jurídico do que com as condições de verdade e validade da norma.
Cf. ibid., p. 44. Ainda, Warat entendia que a epistemologia kelsiana era falha e carecia de padrões pragmáticos,
hermenêutico-críticos. Cf. Ibid., p. 47. Streck, seguindo a crítica waratiana, alerta que no positivismo normativista de
Kelsen a pragmática ficou relegada para um segundo plano: o da discricionariedade do intérprete. Cf KELSEN, Hans.
Teoria pura do direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 89.
67
WARAT, op. cit., p. 43-44.
68
Essa passagem da linguagem comum para linguagem objetiva (científica) do direito é conseguida através do fenômeno
da metalinguagem. Em verdade, seria a metalinguagem a condição (controle e explicitação) para o rigor científico do
direito. Cf. WARAT, op. cit. p.49.
69
Reitera-se, Kelsen reconhece a norma jurídica (a interpretação normativa) como sendo o elemento que confere sentido
jurídico a uma ação humana. Cf. KELSEN, op. cit., p. 03.
70
WARAT, op. cit., p. 50.
106
ele é71.
Para a teoria pura do direito, o objeto da ciência jurídica não é a conduta humana,
mas sim, as normas jurídicas. Dito de outro modo, Kelsen entende que “a conduta humana
só o é (objeto da ciência jurídica) na medida em que é determinada nas normas jurídicas
como pressuposto ou consequência, ou na medida em que constitui conteúdo de normas
jurídicas”72.
Diga-se, existe, para os normativistas, uma ligação entre direito e moral. O direito é
por essência moral, isto é, “a conduta que as normas jurídicas prescrevem ou proíbem
também é prescrita ou proibida pelas normas da moral”. Contudo, isso não quer dizer que
o direito necessariamente tem que ser moral (justo). Isso porque, “uma ordem social que
não é moral, ou seja, justa, pode ser direito”73.
Kelsen teorizou acerca da existência de dois tipos distintos de ordenamento
jurídicos74. O ordenamento estático e o ordenamento dinâmico. A teoria estática tem por
objeto o direito como um sistema de normas em vigor. Há nela uma imbricação entre a
moral e o direito, pois são concebidos de maneira jusnatural 75 . Quer dizer, “a norma
hipotético fundamental seria o elo de validade de toda ordem jurídica”76.
Já a teoria dinâmica, com características próprias do direito positivo, “tem por objeto
o processo jurídico em que o direito é produzido e aplicado, o direito no seu movimento”.
O foco é a competência para a criação e alteração normativa. A teoria dinâmica também é
dirigida às normas que regulam a produção e a aplicação do direito 77 . Na perspectiva
71
KELSEN, op. cit., p. 81.
72
Ibid., p. 79.
73
Ibid., p. 72.
74
Bobbio, por sua vez, reconhece a escola do positivismo normativista a partir de três características fundamentais que
transformam o direito em um ordenamento e, portanto, em “uma entidade nova, distintas das normas singulares que
o constituem”. São elas a unidade, a coerência, a completude. Op. cit. p 198. A unidade diz respeito ao modo pelo qual
as normas são postas. É, portanto, uma unidade formal. Já para os jusnaturalistas, a unidade é relativa ao conteúdo das
normas, ou seja, é uma unidade material. Op.cit., p. 199.
75
KELSEN, op. cit., p. 79.
76
MORAIS, op. cit., p. 25.
77
KELSEN, op. cit., p. 79.
107
dinâmica, a norma é válida se for criada por um agente competente, cuja autoridade
decorreria de normas de competência. Logo, tanto o legislador quanto o juiz teriam
competência para criar normas.
O jusnaturalismo, por sua vez, concebe o direito como um sistema unitário, no qual
as normas podem ser deduzidas de um sistema lógico até que se chegue a uma norma geral.
A propósito, essa é a “base de todo o sistema e que constitui um postulado moral
autoevidente”. Para os juspositivistas, destarte, o direito se constitui em um sistema
unitário. Suas normas são postas pela mesma autoridade e, dessa forma, podem retornar à
mesma fonte de origem78.
Como visto, a teoria da norma fundamental é idealizada como a base do
ordenamento jurídico, com capacidade de fechar o sistema e garantir a almejada unidade
formal do ordenamento. Essa norma fundamental “cria a suprema fonte do direito” e não
pode ser verificada positivamente, pois “trata-se de uma hipótese da qual se parte no
estudo do direito”79.
Para “fechar o sistema” e não fazê-lo derivar do fato, Kelsen considera o poder
constituinte como autorizado por uma norma fundamental, pois “se o ato legislativo, que
subjetivamente tem o sentido de dever-ser80, tem também objetivamente este sentido,
quer dizer, tem o sentido de uma norma válida, é porque a Constituição empresta ao ato
legislativo esse sentido objetivo”81.
Os contributos de Kelsen permitem conceber o Direito, quando da sua aplicação,
como um processo complexo. O Direito seria como uma moldura, um quadro, com
diferentes possibilidades de significações (normas), as quais só poderiam ser dirimidas pela
78
BOBBIO, op. cit., p. 199.
79
Ibid., p.200-201.
80
A “distinção” entre ser e dever-ser é ponto crucial no normativismo kelsniano. Veja-se, por exemplo, que num contrato
de obrigação uma das partes desempenha o ser, uma vez que ela espera da outra uma ação e, então, um dever-ser.
Assim, a norma, para Kelsen, não é mero acontecimento, pois, dela se retira um dever-ser, um sentido jurídico. Op. cit.,
p.04.
81
Ibid., p. 09.
108
interpretação82.
Ademais, é pela interpretação normativa que se encontra a validade do direito
(enquanto teoria pura). Em outros dizeres, a validade jurídica pressupõe um dever-ser83.
Outro ponto chave de Kelsen é a noção de licitude e ilicitude e sua relação com a
interpretação normativa. Para o autor, a norma implica ao sujeito um dever, fazer ou deixar
de fazer, eivado de juridicidade84.
De tal sorte, Kelsen, em sua teoria pura do direito, propõe um escalonamento do
próprio ordenamento jurídico, com sobreposição de normas jurídicas. Nele, normas
inferiores resultariam de atos controlados por norma hierarquicamente superior. Isto é,
esta precederia e vincularia o âmbito daquelas. Adverte-se, no entanto, para uma
determinação inacabada e não absoluta pela norma superior, de modo que esta
representaria sempre, no ato de produção ou execução normativa, o “caráter de um
quadro” com certa margem de livre apreciação, cujo acabamento dependeria também dos
próprios critérios do artista (leia-se juiz o tribunal)85.
A ser assim, a moldura normativista denota um juiz livre para decidir. Em outras
palavras, no interior da norma fundamental existem várias possibilidades de aplicação do
direito. Desse modo, para Kelsen, o direito é todo “ato que se mantenha dentro deste
quadro ou moldura, que preencha essa moldura em qualquer sentido possível”86.
Por isso, a interpretação conduziria sempre a um resultado possível. A interpretação,
no entanto, não tem o condão de oferecer um único resultado correto. Para Kelsen, a
82
Para Kelsen, a interpretação é uma “operação mental que acompanha a aplicação do direito”. Essa aplicação pode se
dar em dois níveis diferentes. Em primeiro lugar, tem-se a interpretação do direito pelo órgão encarregado de aplicálo. Num segundo instante, essa interpretação não mais é realizada pelo órgão judicante e, sim, pela Ciência do Direito.
Ibid., p. 387-388. Destarte, cogita-se que Kelsen percebeu que interpretar e aplicar são dois elementos existentes no
empreendimento jurídico e, como tais, fazem parte de um mesmo processo (evolutivo e conexo).
83
KELSEN, op. cit., p. 07.
84
O caráter impositivo da norma jurídica é condicionado pela coerção. Por esta, o indivíduo sabe que tem o poder-dever
de atuar de determinado modo, evitando os resultados indesejados pela norma jurídica, sob pena de assumir os efeitos
de sua ação. Há que se ressaltar, também, que o dever jurídico-normativo impõe ao sujeito (de direito) um poder-dever,
mas que quanto à imposição negativa, deixar de fazer, o sujeito está vinculado apenas a um dever, excluindo-se dele a
possibilidade conferida ao indivíduo que pratica positivamente uma ação. Ibid., p. 82-83.
85
86
Ibid., p. 387-388.
Ibid., p. 390.
109
questão de saber qual das possibilidades a aplicar, dentro da moldura, é a correta, é uma
preocupação que deve ocupar a política de direito e não a sua teoria87.
À vista disso, Kelsen admite que o juiz tenha certa liberdade para “criar” o direito.
Esse poder criacional do juiz torna a aplicação da lei uma função voluntária, transformando
o mandamento judicial em uma das possibilidades a preencher a moldura.
Assim, a aplicação do direito feita por um órgão jurídico reflete na combinação da
interpretação cognoscitiva do direito a aplicar, que só é obtida através de uma operação do
próprio conhecimento, com o ato de vontade do juiz. Esse ato de vontade se revela na
escolha de uma das possibilidades encontradas na mesma interpretação cognoscitiva. “Com
este ato, ou é produzida uma norma de escalão inferior, ou é executado um ato de coerção
estatuído na norma jurídica aplicada”88.
A liberdade do órgão judiciário para criar o direito, através de um ato de vontade,
respaldado por uma interpretação cognoscitiva do órgão, abre caminho para normas que
não se tratam de direito positivo, como moral, política e justiça. Porém, como essas normas
não resultam do direito positivo (ciência do direito), e, aliás, por ele são caracterizadas
negativamente, “nada pode se dizer sobre a validade ou verificabilidade89 do ponto de vista
da ciência do direito”90.
A criação do direito por um órgão executor é autêntica e se dá pela interpretação. É
justamente esse poder de criação do direito que separa a interpretação feita por um órgão
jurídico de todas as outras91.
É importante destacar a existência de dois tipos de interpretação em Kelsen: i) a
interpretação feita por um órgão jurídico, eivada de discricionariedade e externada através
87
Ibid., p. 393.
88
Ibid. p. 394.
89
Explica-se que, para Kelsen, “a produção do ato jurídico dentro da moldura da norma jurídica aplicanda é livre, isto é,
realiza-se segundo a livre apreciação do órgão chamado a produzir o ato” Cf. ibid., p. 393.
90
Ibid., p. 393.
91
Ibid., p. 394-395.
110
de um ato de vontade do julgador92, que cria direito novo; ii) a interpretação da ciência
jurídica. Esta, por se turno, tenta obter o maior grau possível de segurança jurídica,
buscando conhecer o sentido das normas jurídicas. Isso porque a interpretação feita pela
ciência do direito não é criação jurídica. Na realidade, “é pura determinação cognoscitiva
do sentido das normas jurídicas”. Aliás, Kelsen deixa claro que a teoria pura do direito
repudia a ideia de se obter direito novo a partir da interpretação cognoscitiva 93 . Em
complemento, a interpretação feita pela ciência jurídica seria incapaz de preencher as
lacunas da moldura, razão pela qual Kelsen delega tal tarefa (a de criação jurídica) ao órgão
aplicador do direito.
A interpretação jurídico-científica, com efeito, deve apenas estabelecer as possíveis
significações de uma norma jurídica. Assim, o fruto do seu conhecimento revelará as
possibilidades de aplicação desta. A aplicação, contudo, somente pode ser realizada por um
órgão jurídico competente para escolher uma das possibilidades reveladas94.
Percebe-se, face à plurissignificação da maioria das normas jurídicas, que a busca
pela correta interpretação normativa não é objeto da ciência jurídica desenvolvida por
Kelsen. Entretanto, através da interpretação jurídico-científica, é plausível que se obtenha
o maior grau de segurança jurídica, pois “pode mostrar à autoridade legisladora quão longe
está a sua obra de satisfazer à exigência técnico-jurídica de uma formulação de normas
jurídicas o mais possível inequívocas”95.
Conjectura-se, derradeiramente, haver um nítido paradoxo em Kelsen. Preocupado
exclusivamente com a pureza do direito, Kelsen retira o rigor de sua teoria ao permitir que
o juiz, mediante um ato de vontade, proveniente de sua interpretação cognoscitiva, crie
direito. Assim, toda a rigidez metodológica defendida em sua teoria pura do direito
92
Na visão kelsiniana é essencialmente “através deste ato de vontade (que) se distingue a interpretação jurídica feita pelo
órgão aplicador do Direito de toda e qualquer outra interpretação, especialmente da interpretação levada a cabo pela
ciência jurídica” Cf. Ibid. p. 394.
93
Ibid., p. 395.
94
Ibid., p. 395
95
Ibid., p. 396-397.
111
desaparece, abrindo espaço para a utilização da moral, da justiça, da política (dentre outros
elementos que não são objeto de conhecimento científico do direito) em um único
momento: na decisão judicial.
Não obstante a isso, os poderes estatais, com o advento do Estado democrático de
direito, novamente sofrem significativas alterações. As transformações sociais e a
necessidade de políticas públicas efetivas à sociedade, somadas à institucionalização dos
textos constitucionais, contribuíram para o engrandecimento do poder judiciário, o plus
normativo apontado nos trabalhos de Lenio Streck.
O Judiciário passou a ser, nesse sentido, o canal por onde escoam os litígios e
demanda da sociedade contemporânea96 . O conceito de direito agora, sabe-se, gira em
torno da diferenciação norma-regra e norma-princípio, encampada especialmente pelo
jurista alemão Robert Alexy97.
Pode-se concluir que o positivismo exegético separava direito e moral, confundia
texto e norma, lei e direito, ou seja, proibia a interpretação. O positivismo normativista
relegou o problema da interpretação a uma questão menor, pois para essa escola o
problema do direito estava “nas condições lógico-deônticas de validade das normas
jurídicas” 98 . Já o neoconstitucionalismo (ou constitucionalismo contemporâneo), na sua
perspectiva metodológica, sustenta a existência de uma conexão necessária entre direito e
moral, ponte que seria feita pelos princípios constitucionais e pelos direitos fundamentais99.
Nesse sentido, Streck defende que existem apenas seis hipóteses em que uma lei
pode deixar de ser aplicada, a) quando a lei é inconstitucional; b) quando for o caso de
96
STRECK, op. cit., p. 45.
97
Para Streck, o juris alemão, Alexy, se vale, até certo ponto, dos ideais exegéticos. A crítica do autor é pontual e diz
respeito à solução dos easy cases via subsunção. Segundo ele (Streck), o autor alemão, nos casos fáceis, crê na
suficiência ôntica da lei. Ou seja, Alexy, segundo propõe o crítico Gaúcho, acredita que em tais casos, em que os
dispositivos normativos forem claros, a prolação da decisão judicial não exigiria do magistrado nada além de mera
aplicação subsuntiva dos ditames legais. Enfim, esse magistrado alexiano, para Streck, apresenta semelhanças com o
juiz boca da lei do positivismo exegético. Cf. Ibid., p.30.
98
Streck, op. cit., p. 13.
99
COMANDUCCI, Paolo. Formas de (neo)constitucionalismo: un análisis metateórico. Isonomía. Trad. de Miguel Carbonell.
n. 16. 2002, p. 101.
112
resolução de antinomias; c) se for possível uma interpretação da lei conforme a
Constituição; d) quando aplicar a nulidade parcial sem redução de texto; e) no caso de uma
inconstitucionalidade parcial com redução de texto; f) no caso do confronto entre regra e
princípio100.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Cumprindo com objetivos propostos, buscou-se problematizar o conceito de
positivismo jurídico. Tal estudo é atualmente necessário uma vez que possibilita a
construção de um arcabouço teórico básico para compreender fenômenos vivenciados no
direito contemporâneo.
Como se viu, o pensamento positivista sustentou, ao menos originariamente,
especialmente na passagem exegética, a crença da concretude e da necessidade de respeito
ao ordenamento jurídico, encontrando no Estado-Legislador a legitimidade da lei e,
consequentemente, o sentido das fontes do direito. O juiz, nesse enredo, deveria limitar-se
a reproduzir os dizeres escriturados na lei.
Noutro giro, extrai-se do momento normativista, sobretudo em Kelsen, que o direito
deveria ser compreendido em dois níveis distintos (o da teoria e o da aplicação). Pregavase, enquanto teoria, a desvinculação do direito com qualquer elemento estrangeiro.
Blindou-se, de tal modo, a teoria do direito de qualquer interferência moral. A ótica é outra
quando da aplicação e materialização do direito. Nela, admitia-se certa maleabilidade da
norma jurídica, sendo o ato de vontade do juiz o sangradouro à manifestação moral no
direito.
Em última análise, ao juiz exegeta era proibido criar o direito. A aplicação do direito
deveria ser uma reprodução da lei. Portanto, a autonomia do juiz, na construção de sentido
jurídico, representaria ofensa à legalidade do direito. O juiz normativista, por sua vez, foi
concebido como um criador necessário de direitos. A norma jurídica, por apresentar a
100
Streck, op. cit., p. 14-15.
113
autossuficiência da lei exegética, reclamava um artista com liberdade para preencher a
moldura jurídica. Por derradeiro, no desempenhar da função criacional, o juiz normativista
estaria preenchendo a moldura com a possibilidade que o seu ato de vontade apontou ser
a (mais) correta. Isto é, seria a retomada da moral como fonte do direito ou, no mínimo,
como elemento de interferência na tomada de decisões e materialização de direitos.
Embora não tenha sido objeto central de pesquisa, é de se notar que o advento do
constitucionalismo, pós-segunda guerra, representa nova transição do modelo de direito.
Nele, teoricamente falando, não se comunga com o enrijecimento do ordenamento jurídico
e tampouco com sua banalização (abertura desmedida para juízos morais). Na verdade, a
passagem desse constitucionalismo tem nos textos constitucionais e no zelo aos direitos
fundamentais a expressão da razão jurídica. Todavia, se está longe de encontrar um
consenso a respeito do conceito e alcance das fontes do direito (constitucionalista)
contemporâneo.
Além disso, com a supervalorização dos princípios jurídicos, a separação entre direito
e moral ganha novos contornos, alcançando debates sobre os limites e a legitimidade da
atuação jurisdicional. A esse respeito, e a título de provocação para a sequência da
pesquisa, o artigo 5º da CRFB/88 bem representa a miscigenação de teorias jurídicas
influentes no atual modelo de direito. De um lado, e para alguns, fica clara a influência
positivo-legalista na escrituração taxativa dos direitos fundamentais. De outro, o §2º do
dispositivo constitucional supracitado, ao prever a abertura de reconhecimento material
dos direitos fundamentais, remonta, de certa forma, aos ideais iusnaturalistas.
Ou seja, ora os dizeres constitucionais fecham a interpretação e aplicação do direito,
ora flexibilizam-nas, denotando, ainda hoje, diferentes níveis de interferência moral no
direito.
114
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115
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116
O DIREITO DOS ANIMAIS E A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL
Fernanda Andrade1
Neuro José Zambam2
INTRODUÇÃO
A aproximação entre “o direito dos animais e a jurisdição constitucional”, tema
desta pesquisa, reclama a formação de horizontes prévios de compreensão: (1) a
possibilidade de titularização de direitos pelos animais; (2) a existência de proteção
constitucional aos animais; e (3) a jurisdição constitucional como possibilidade de uma
Constituição dirigente e compromissária, em prol dos direitos dos animais.
A possibilidade de titularização de direitos pelos animais põe em evidência e
questionamento as pré-compreensões de que o ser humano seria o único titular de direitos;
que as interações realizadas entre o ser humano e os animais seriam interações entre um
sujeito de direito e um objeto de direito; que os animais seriam coisas, objetos humanos,
seres a serviço da humanidade; e que os animais não possuem valor intrínseco, não são fins
em si, mas seu valor seria instrumental, utilitário.
O artigo 225 da Constituição Federal oferece proteção e vedação à crueldade contra
os animais. Em razão do seu conteúdo, inválida seria a produção legislativa regulamentando
qualquer tipo de instrumentalização animal; contudo, não é essa a realidade.
Constantemente, entram em vigor leis que retrocedem na proteção constitucional
1
Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Faculdade Meridional – IMED, Passo
Fundo/RS; Especialista em Direito Constitucional Contemporâneo; Advogada; e-mail:
[email protected].
2
Pós-doutor em Filosofia na Universidade do Rio dos Sinos – Unisinos; Doutor em Filosofia pela PUCRS. Professor do
Programa de Pós-graduação em Direito e da Graduação em Direito da Faculdade Meridional – IMED. E-mail:
[email protected]. Passo Fundo, RS, Brasil.
117
conferida, exigindo o exercício da jurisdição constitucional.
A jurisdição constitucional possui forte relação com o caráter dirigente e
compromissário da Constituição Federal, por seu papel decisivo na defesa e na
implementação de direitos constitucionalmente previstos. Essa relação carrega implícita a
tensão relacionada à legitimidade do Poder Judiciário para declarar a inconstitucionalidade
de leis votadas pelo Poder Legislativo, eleito democraticamente pelo povo.
O tema – tormentoso, atual e de necessário enfrentamento – questiona a
possibilidade de proteção e efetividade do direito dos animais, materializados no texto da
Constituição, através do exercício da jurisdição constitucional. A hipótese para o problema
surge, inicialmente, como verdadeira. Os horizontes prévios de compreensão acima
descritos constituem o caminho a ser percorrido e os objetivos de investigação deste
trabalho. O estudo utiliza, como critério metodológico, o método dedutivo. A técnica
utilizada será a pesquisa bibliográfica e legislativa.
2. OS ANIMAIS COMO TITULARES DE DIREITOS
A atribuição de um sentido para a condição jurídica dos animais não encontra
coesão. Esse item dedica-se a investigar quais os critérios utilizados tradicionalmente pela
doutrina para o reconhecimento do ser humano como sujeito de direito e, a partir desse
critério, verificar a possibilidade de enquadramento dos animais nessa categoria.
Inicialmente, é necessário diferenciar as categorias jurídicas de pessoa e sujeito de
direito, irrefletidamente equiparadas em grande escala na doutrina civilista. Nem todo sujeito
de direito é pessoa e nem toda a pessoa, para o direito, é um ser-humano. Sujeito de direito –
centro de imputação de direitos e obrigações – é um gênero que abarca entes personificados
(pessoas naturais/seres-humanos – e pessoas jurídicas) e entes despersonificados (nascituros,
massa falida, condomínio, herança vacente e vacante). Pessoa e sujeito de direito, portanto, não
são categorias equivalentes. Com essa compreensão, é possível, juridicamente, perquirir acerca
118
dos animais como sujeitos de direito despersonificados3.
Dito isso, uma breve digressão pelos manuais de direito civil, aponta que a o critério da
legalidade e o critério da autonomia moral são recorrentes para o reconhecimento do ser
humano como sujeito de direito.
Para o critério da legalidade4, sujeito de direito é aquele que a legislação diz que é. No
entanto, a legalidade, por si só, permite que um direito injusto e imoral seja válido e legítimo. É
o que se verifica na doutrina de Hans Kelsen5, que buscou conferir à ciência jurídica um método
e um objeto próprios – a norma. Para Kelsen, método e objeto deveriam ter o enfoque
normativo, totalmente separado da moral e da política – “princípio da pureza” –, o que poderia
dar ao jurista uma autonomia científica6.
A existência específica da norma, nesse viés, é a sua validade. A norma vale não porque
é justa ou porque é eficaz a vontade que a instituiu, mas porque está ligada a normas superiores
por laços de validade (e com um mínimo de eficácia), numa série finita que culmina numa
“norma fundamental”. O conteúdo da norma é irrelevante para a definição da validade7.
A validade e a legitimidade de um direito sem preocupação com o conteúdo de suas
normas, pode representar a imposição do racismo, do nacionalismo, do sexismo, etc., presentes
no regime nazista, nos ordenamentos jurídicos escravocratas, nas legislações que não
reconhecem (ou não reconheciam) as mulheres, os idosos, as crianças, os desprovidos de
posses, os deficientes físicos, etc., como sujeitos de direito.
3
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2003.
4
João Franzen de Lima, afirma que sujeito de direito “é o ente a quem a ordem jurídica assegura” (LIMA, João Franzen de.
Curso de direito civil brasileiro. 7.ed. V.1: introdução e parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 133). Washington
de Barros Monteiro, diz que o direito subjetivo é uma “faculdade reconhecida à pessoa pela lei” (MONTEIRO,
Washington de Barros. Curso de direito civil. 35.ed. V.1: parte geral. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 04). E, no mesmo
sentido, Paulo Dourado de Gusmão refere que o direito subjetivo é o “poder de agir, garantido pela norma jurídica”
(GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do direito. 23.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 250). O critério
adotado por esses autores, como facilmente se identifica, é o da lei; sujeito de direito é aquele que a legislação diz que
é.
5
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
6
“Como teoria, quer única e exclusivamente conhecer o seu próprio objeto. Procura responder a esta questão: o que é e
como deve ser o Direito, ou como deve ele ser feito. É ciência jurídica e não política do Direito. Quando a si própria se
designa como ‘pura’ teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao
Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa,
rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os
elementos que lhe são estranhos. Este é o seu princípio metodológico fundamental” (KELSEN, Hans. Teoria pura do
direito. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 01).
7
COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsen. 3. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000.
119
Para exemplificar essa realidade com um dado pátrio, a Constituição do Império, de
1824, extinguiu as penas de galés e açoites, mas o Código Criminal do Império repristinou os
castigos. O Código, no entanto, não foi considerado inconstitucional, por dois motivos: porque
o controle de constitucionalidade era feito pelo Poder Legislativo e isso não funcionou no
Império; e porque a Constituição somente se aplicava às pessoas e não às coisas. Escravos eram
res. Sobre isso, afirmou Lenio Luiz Streck: “estás envergonhado de nosso Direito de antanho?
Pois, por certo, daqui há 50 anos, poderemos dizer isso sobre o tratamento dado hoje ao direito
dos animais”8.
As “as aproximações realizadas entre o fenômeno do especismo9 com os do racismo,
nacionalismo ou sexismo não devem ser interpretadas como equalizando, em sentido literal e
absoluto, homens e não-homens”10. O que se pretende evidenciar é que todos esses fenômenos
são formas de discriminação e partem da falsa noção de que características moralmente
irrelevantes (raça, sexo, nacionalidade, espécie, etc.), possam ser utilizadas para subjugar seres
com interesses e torná-los meros objetos.
O critério da legalidade, portanto, não é um critério seguro. Afirmar que um sujeito de
direito é aquele que a lei diz que é, significa a possibilidade de condicionar essa categoria
jurídica ao império do poder e da força e de impor um direito injusto.
Outro critério identificado é o da autonomia moral11; o ser humano é merecedor de
dignidade e respeito porque é um ser racional e autônomo, capaz de pensar e de escolher
livremente fazer o que é moralmente certo. Essa noção é atribuída à Immanuel Kant.
Kant12 afirma que duas coisas lhe enchem o ânimo de admiração e veneração: “O
céu estrelado sobre mim e a lei moral em mim”. A primeira se refere à conexão entre o
mundo exterior dos sentidos até o imensamente grande (“mundos sobre mundos e
sistemas de sistemas”); a segunda começa no seu “eu”, na personalidade, e expõe-lhe no
8
STRECK, Lenio Luiz. Quem são esses cães e gatos que nos olham nus? Disponível em <http://www.conjur.com.br/2013jun-06/senso-incomum-quem-sao-caes-gatos-olham-nus>. Acesso em 03 Nov. 2015.
9
“Especismo” é um termo cunhado em 1970, por Richard Ryder, e pode ser traduzido como o preconceito ancorado no
pertencimento ou não a uma espécie, para a admissão ou negação de direitos.
10
LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris, 2008, p. 532.
11
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27.ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 232.
12
KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. Lisboa: Edições 70, 1994, p. 183-184.
120
mundo. Se o ser humano é capaz de ser livre, deve ser capaz de agir não apenas de acordo
com uma lei imposta, mas de acordo com a lei moral outorgada por ele próprio, produto da
sua razão. Para Kant, o ser humano não é apenas um ser que obedece aos estímulos de dor
e prazer de seus sentidos, mas é, também, um ser racional, que pode determinar sua
vontade independentemente dos ditames da natureza ou de sua inclinação. Embora não
tenha sido o primeiro filósofo a sugerir que os seres humanos raciocinam, sua noção de
razão, assim como suas concepções de liberdade e moralidade são especialmente rigorosas,
repudiando o papel subalterno e instrumental da razão, como escrava das paixões13.
A autonomia kantiana pressupõe o ser humano como agente racional. Por meio da
autonomia, cada pessoa teria uma bússola que permitiria dizer o que é consistente e o que
é inconsistente com o dever14. Para Kant, se uma ação for boa em si, em sintonia com a
razão, em obediência à lei moral, está-se diante de um “imperativo categórico”15, que deve
pautar a interação entre os “agentes morais” (pessoas), que se distinguem de tudo aquilo
que existe16.
Toda a retórica kantiana, no campo da moral, se fundamenta na racionalidade
humana. As demais criaturas estariam alijadas de quaisquer considerações de ordem ética
ou moral. Avançando-se nessa concepção, surge a distinção entre seres que seriam fins em
si próprios (pessoas) e seres que teriam valoração apenas relativa, de meios ou
instrumentos destinados a fins subjetivos (coisas). Esse mundo de Kant é um mundo
marcado pela dominação, em que a razão deve enfrentar a natureza, com o homem como
senhor do universo e dominador de todas as coisas; os seres que são coisas devem ser
sujeitados aos interesses individuais das pessoas17.
Kant nega qualquer obrigação para com os animais, considerando-os seres sem
13
SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa? Tradução de Heloisa Matias e Maria Alice Máximo. Título original:
Justice. 13.ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2014, p. 150-151.
14
SCHNEEWIND, J. B. A invenção da autonomia. São Leopoldo: Unisinos, 2001, p. 560.
15
SANDEL, Justiça, p. 151-156.
16
LOURENÇO, Direito dos animais, p. 314.
17
LOURENÇO, Direito dos animais, p. 233-235.
121
racionalidade e sem aptidão de autonomia. Os agentes morais, para Kant, são livres para
usá-los; contudo, devem evitar crueldades – não com fundamento nos animais em si –, mas
por interesse humano de não se tornar cruel – dever indireto. Dentre as críticas à teoria dos
deveres indiretos, pode-se apontar que “a tese parte da premissa de que haveria uma nítida
linha divisória entre animais e pessoas e que, por esse motivo, animais seriam meras
‘coisas’. Por que razão haveria de se concluir que o fato de matar animais tenderia a
brutalizá-las?18”.
Entre as várias objeções feitas à teoria kantiana, também está o fato de que os
conhecimentos comportamentais e biológicos atuais permitem afirmar que os animais
possuem níveis de consciência, capacidade para julgamentos e certa autonomia – “possuem
preferências e agem de modo a satisfazê-las a todo instante”19.
Sob outro aspecto, nem todos os humanos são plenamente racionais e autônomos,
como, por exemplo, bebês, portadores de deficiências mentais severas, senis, etc. (casos
marginais)20. Não possuindo absoluta racionalidade e autonomia, de acordo com Kant, os
deveres para com eles seriam apenas “deveres indiretos”21.
Se, por acaso, Kant afirmasse que eles também são “fins em si mesmos”, então as
características de racionalidade e autonomia não poderiam servir de base para o status de
agente moral (sujeito de direitos). Kant, então, teria de negar esse status a esses seres
humanos, da onde se conclui que há uma falha estrutural na sua fundamentação. Se é o
fato de que os humanos são racionais (ou autônomos, ou conscientes, ou possuírem
linguagem) que permite negar o status moral aos animais, então, analogamente, ter-se-ia
18
LOURENÇO, Direito dos animais, p. 233-235, 297, 316, 323.
19
LOURENÇO, Direito dos animais, p. 318-319.
20
“Mas a maioria de nós acredita que pessoas mentalmente incapazes (demasiadamente débeis, jovens ou velhas) têm
um direito à proteção contra a exploração, contra o tratamento desrespeitoso e degradante, e contra toda a ordem de
abusos. Então, como atribuir um status moral a retardados graves e não aos animais, uma vez que, no que tange ao
desenvolvimento mental, à habilidade comunicativa observável e a uma vida emocional, tais pessoas deficientes são
incomparavelmente inferiores a muitos animais? Uma vaca é mais racional que um bebê. Um porco tem mais
inteligência, capacidade mental e entendimento do mundo que uma criança recém-nascida” (NACONECY, Carlos. Ética
& animais: um guia de argumentação filosófica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006, p. 163).
21
LOURENÇO, Direito dos animais, p. 313-323.
122
que negá-lo a todos os humanos desprovidos de tais características22.
Verifica-se, assim, que nem o critério da legalidade, nem o critério da autonomia
moral, apontados pela doutrina pátria, são capazes de albergar todos os seres-humanos;
ambos são falhos, não são bons critérios. E, verificando-se que tais critérios não
contemplam todos os seres-humanos, não se pode insistir que esses são critérios para o
reconhecimento dos sujeitos de direito.
Prosseguindo-se na busca, chega-se ao critério da senciência. Carlos Naconecy 23
explica que um ser senciente tem capacidade de sentir, importa-se com o que sente, e
experimenta satisfação e frustração. Seres sencientes percebem ou estão conscientes de
como se sentem, onde e com quem estão e como são tratados. Possuem sensações como
dor, fome e frio; emoções relacionadas com aquilo que sentem, como medo, estresse e
frustração; percebem o que está acontecendo com eles; são capazes de apreender com a
experiência; são capazes de reconhecer seu ambiente; têm consciência de suas relações;
são capazes de distinguir e escolher entre objetos, animais e situações diferentes,
mostrando que entendem o que está acontecendo em seu meio; avaliam aquilo que é visto
e sentido, e elaboram estratégias concretas para lidar com isso. Importa dizer, senciência
não é o mesmo que sensibilidade; organismos unicelulares, vegetais, etc., apresentam
sensibilidade, mas não senciência. Seres sencientes interpretam as sensações e
informações que recebem do ambiente por meio de cognição (razão) e emoções.
A “senciência é um pré-requisito para se ter interesses” 24 . Rudolf von Jhering 25
afirmou que o direito subjetivo assegura a proteção de interesses; logo, interesse é tutelável
e é direito. O elemento interesse na essência da noção de sujeito de direito torna essa noção
capaz de albergar toda uma esfera de seres com interesses tuteláveis. Por essa
compreensão, todo o ser vivo senciente é apto a ser sujeito de direito, categoria na qual,
22
LOURENÇO, Direito dos animais, p. 321-322.
23
NACONECY, Ética & animais, p. 117.
24
NACONECY, Ética & animais, p. 178.
25
JHERING, Rudolf von. A finalidade do direito. Campinas: Bookseller, 2002, p. 57.
123
por esse critério, estão incluídos todos aqueles que são ou podem ser excluídos pelos
critérios da legalidade e da autonomia moral.
Dessa forma, a utilização do critério da senciência para a definição dos sujeitos de
direito, ao mesmo tempo em que possui o condão de abarcar todos os seres humanos,
implica, necessariamente, no reconhecimento, como sujeitos de direito, de todos os seres
sencientes como os seres humanos, incluindo-se todos os animais sencientes. A propósito,
a Declaração de Cambridge, de 2012, firmada por cientistas de instituições como a
Universidade Stanford, o Massachusetts Institute of Technology e o Instituto Max Planck,
proclamou ser induvidoso que todos os mamíferos, aves, peixes, répteis e alguns
invertebrados ostentam consciência26. Afastar os animais não-humanos do reconhecimento
como sujeito de direitos, assim, seria uma adesão ao especismo, que, como dito, é um
critério tão arbitrário quanto o racismo, o nacionalismo ou o sexismo.
A senciência é o critério adotado pela Ética Animal 27 . Peter Singer 28 , a partir da
senciência, constrói o princípio da “igual consideração de interesses”, explicando, em sua
obra “Libertação Animal”:
Há importantes diferenças óbvias entre os humanos e os outros animais, e estas diferenças
devem traduzir-se em algumas diferenças nos direitos que cada um tem. Todavia, o
reconhecimento deste fato não constitui obstáculo à argumentação a favor da ampliação do
princípio básico da igualdade aos animais não humanos. As diferenças que existem entre
homens e mulheres também são igualmente inegáveis, e os apoiantes da Libertação das
Mulheres têm consciência de que estas diferenças podem dar origem a diferentes direitos.
Muitas feministas defendem que as mulheres têm o direito de praticar o aborto através de
simples pedido. Não se conclui daqui que, uma vez que estas feministas defendem a
igualdade entre homens e mulheres, deverão igualmente apoiar o direito dos homens ao
aborto. Como os homens não podem praticar o aborto, não faz sentido falar do direito
masculino à prática do aborto. Uma vez que os cães não podem votar, não faz sentido falar
26
OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Bases de sustentação da ecologia profunda e a ética animal aplicada (o caso Instituto
Royal). In: BOFF, Salete Oro; ESPINDOLA, Angela Araujo da Silveira; TRINDADE, Andre Karan (Orgs.). Direito, democracia
e sustentabilidade: anuário do programa de pós-graduação da Faculdade Meridional. Passo Fundo: Imed Editora, 2013.
P. 34-64.
27
“[...] a expressão ‘Ética Animal’ (do inglês Animal Ethics), que deve ser interpretada pelos leitores como a forma elíptica
de ‘ética do tratamento dos animais (não-humanos) por parte dos humanos’. A Ética Animal, como um subcampo da
Bioética ou da Ética Ambiental, constitui-se assim num ramo da Ética Aplicada” (NACONECY, Ética & animais).
28
SINGER, Peter. Libertação animal. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 05, 14-15.
124
do direito canino ao voto. Não há razão para tanto a Libertação das Mulheres como a
Libertação Animal se envolverem nestas discussões absurdas. A extensão do princípio básico
da igualdade de um grupo a outro não implica que devamos tratar ambos os grupos
exatamente da mesma forma, ou conceder os mesmos direitos aos dois grupos, uma vez
que isso depende da natureza dos membros dos grupos. O princípio básico da igualdade não
requer um tratamento igual ou idêntico; requer consideração igual. A consideração igual
para com os diferentes seres pode conduzir a tratamento diferente e a direitos diferentes.
[...] Se um ser sofre, não pode haver justificação moral para recusar ter em conta esse
sofrimento. Independentemente da natureza do ser, o princípio da igualdade exige que ao
seu sofrimento seja dada tanta consideração como ao sofrimento semelhante – na medida
em que é possível estabelecer uma comparação aproximada - de um outro ser qualquer. Se
um ser não é capaz de sentir sofrimento, ou de experimentar alegria, não há nada a ter em
conta. Assim, o limite da senciência (utilizando este termo como uma forma conveniente, se
não estritamente correta, de designar a capacidade de sofrer e/ou, experimentar alegria) é
a única fronteira defensável de preocupação relativamente aos interesses dos outros.
O princípio da igualdade dos seres humanos não é a descrição de uma igualdade de
fato, mas a prescrição de como devemos tratar os seres humanos. A defesa da igualdade
humana não depende da inteligência, da capacidade moral, da força física, etc., mas da
capacidade sofrer, que deve conferir a um ser igual consideração. A igual consideração de
interesses deve ser aplicada também aos membros de outras espécies, posto que demarcar
essa fronteira com outras características seria arbitrário, possibilitando escolher alguma
característica como a cor da pele. Assim, a senciência é necessária e suficiente para
assegurar que um ser possui interesses – no mínimo o de não sofrer29.
Tom Regan, também a partir do critério da senciência, apresenta a compreensão dos
animais como “sujeitos de uma vida”, com valor inerente, como expõe em sua obra “Jaulas
Vazias”30:
O que eu tinha aprendido sobre direitos humanos provou ser diretamente relevante para
aminha reflexão sobre os direitos animais. Se os animais têm direitos ou não depende da
resposta verdadeira a uma pergunta: Os animais são sujeitos-de-uma-vida? Esta é a
pergunta que precisa ser feita sobre os animais porque é a pergunta que precisamos fazer
sobre nós. Logicamente não podemos nos colocar diante do mundo e declarar: O que
esclarece o porquê de termos direitos iguais é o fato de sermos todos igualmente sujeitos-
29
SINGER, Libertação animal, p. 09, 13, 15.
30
REGAN, Tom. Jaulas vazias: encarando o desafio dos direitos animais. Porto Alegre: Lugano, 2006, p. 65-66.
125
de-uma-vida; mas outros animais, que são exatamente como nós enquanto sujeitos-deuma-vida, bem, eles não têm nenhum direito! [...] Então, eis a nossa pergunta: entre bilhões
de animais não-humanos existentes, há animais conscientes do mundo e do que lhes
acontece? Se sim, o que lhes acontece é importante para eles, quer alguém mais se
preocupe com isso, quer não? Se há animais que atendem a esse requisito, eles são sujeitosde-uma-vida. E se forem sujeitos-de-uma-vida, então têm direitos, exatamente como nós.
Devagar, mas firmemente compreendi que é nisso que a questão sobre direitos animais se
resume.
A compreensão dos animais como sujeitos de direito, com a adoção do critério da
senciência, importa, não em garantir melhorias nas condições de tratamento aos animais,
quando instrumentalizados, mas no questionamento direto sobre o direito (humano) de
utilizar qualquer ser (humano ou não-humano), para seus fins. O reconhecimento dos
animais como sujeitos de direito implica que se leve em consideração seus interesses de
vida, liberdade e integridade física e psíquica. Embora eventualmente legal, a
instrumentalização e violência contra os animais para pesquisas, vestuário, alimentação,
rituais religiosos e entretenimento, desconsidera esses interesses.
Eis a questão que se apresenta: o reconhecimento dos animais como sujeitos de
direito (despersonalizados) implica no reconhecimento de direitos para os animais para
além do que a legislação prevê ou que, por vezes, lhes nega – vida, liberdade e integridade
física e psíquica. Trata-se de uma mudança compreensiva, ainda não realizada pela maioria
dos seres humanos, nem pelo direito.
3. A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL AOS ANIMAIS
O direito é um complexo sistema, que possui na Constituição Federal sua principal
fonte. Fonte é origem, é princípio, é causa. A metáfora das fontes é utilizada em grande
escala nos manuais de direito, pois, assim como “a água verte de fontes, o direito também
surgiria de algo”31.
31
COELHO, Curso de direito civil, p. 27.
126
A Constituição Federal, nos artigos 23, inciso VII32 e 225, inciso VII33, prevê que as
três esferas do poder público possuem competência para preservar a fauna; que “todos”
possuem o direito ao meio ambiente equilibrado, “essencial à sadia qualidade de vida”; e,
ainda, que incumbe ao poder público proteger a fauna, ficando “vedadas” as práticas que
“submetam os animais à crueldade”.
Tais dispositivos constitucionais implicam no estabelecimento de um dever
constitucional de preservação. O artigo 225 apresenta um direito e um dever, tanto do
Estado quanto da coletividade, de prestar e defender a proteção ambiental. Emerge do
dispositivo constitucional um princípio de convivência de todas as formas de vida.
O inciso VII do § 1º do artigo 225 apresenta um caráter defensivo e prestacional, de
proteção aos animais e de vedação à crueldade. Trata-se de uma linha de conduta que,
como norma constitucional, fundamenta o Estado Democrático de Direito e promove uma
consciência social. A vedação constitucional à crueldade concebe uma identificação dos
animais com interesses próprios e autônomos dos humanos. Esta prescrição é o ponto de
partida principal para a defesa do direito dos animais no direito brasileiro atual, em face da
qual não seria possível admitir qualquer tipo de exploração institucionalizada dos animais
sem violação da norma constitucional.
Ingo Wolfgang Sarlet34, em recente trabalho que aborda a vinculação entre os direitos
fundamentais e a dignidade, afirma que todas as concepções que sustentam a dignidade como
32
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
[...]
VII - preservar as florestas, a fauna e a flora;
[...]
33
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à
sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as
presentes e futuras gerações.
§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
[...]
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica,
provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.
[...]
34
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 9. ed.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 25-38.
127
atributo exclusivo da pessoa humana, encontram-se sujeitas à crítica de um “excessivo
antropocentrismo, notadamente naquilo em que sustentam que a pessoa humana, em função
de sua racionalidade [...] ocupa um lugar privilegiado em relação aos demais seres vivos”.
Sarlet considera um “desafio fascinante” sustentar a “dignidade da própria vida de um
modo geral, ainda mais numa época em que o reconhecimento da proteção do meio ambiente
como valor fundamental indicia que não mais está em causa apenas a vida humana”. O autor
afirma haver uma “tendência contemporânea” à proteção constitucional da fauna e da flora,
inclusive contra atos de crueldade praticados pelo ser humano. Essa proteção demonstra que a
comunidade humana vislumbra, em determinadas condutas praticadas em relação a outros
seres vivos, “um conteúdo de indignidade”.
Ainda, Sarlet destaca que nem todas as medidas de proteção da natureza não humana
têm como fim assegurar aos seres humanos sua vida com dignidade, mas dizem com a proteção
da vida por si só, o que “resulta evidente que se está a reconhecer à natureza um valor em si,
isto é, intrínseco”. O autor também afirma que o reconhecimento de uma dignidade da vida para
além da humana não necessariamente conflita com a noção de dignidade (própria, diferenciada
e não excludente) da pessoa humana. Para Sarlet, a perspectiva de dignidade da pessoa humana
“há de ser compreendida como um conceito inclusivo”. Embora Sarlet não aprofunde a temática
do direito dos animais, é relevante que em uma obra que objetive tratar de direitos da pessoa
humana, a possibilidade de reconhecimento do direito dos animais tenha sido possibilitada,
inclusive como tendência constitucional.
A vedação constitucional à crueldade, em razão da qual nenhuma exploração ou
violência seriam admitidas, não é a realidade jurídica – nem constitucional – constatada.
Coexistem com os citados dispositivos constitucionais, os artigos 23, inciso VIII35 e 24, inciso
VI36 da Constituição Federal, que preveem ser de competência do poder público o fomento
35
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
[...]
VIII - fomentar a produção agropecuária e organizar o abastecimento alimentar;
[...]
36
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
[...]
VI - florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio
ambiente e controle da poluição;
[...]
128
à produção agropecuária e a autorização legislativa para a caça e pesca.
O cotejo dos artigos constitucionais até aqui citados, demonstra que, ao mesmo
tempo em que existe um dever de proteção dos animais, não sendo permitida a prática de
crueldade, o abate de animais para a alimentação humana e para a utilização de suas peles
(couro, pêlos, penas) para fins humanos, é permitido e incentivado constitucionalmente.
Dito de outro modo, não se pode maltratar, mas se pode matar (para a satisfação humana),
cindindo-se, dessa forma (e como se isso fosse possível), o sentido da morte do sentido de
crueldade.
Pertinente que se indague sobre a coerência (e sobre a utilidade para os animais) do
reconhecimento de um mitigado direito (não serem submetidos à crueldade) sem o
reconhecimento, conjuntamente, do direito à vida, à liberdade e à integridade física e
psíquica. Não permitir a crueldade e, ao mesmo tempo, incentivar a reprodução e
confinamento de animais destinados ao abate, no mínimo, desperta questionamento.
Outra indagação que surge, refere-se ao fato de que embora não exista oposição
jurídica à pecuária (é, inclusive, incentivada constitucionalmente), a opinião pública e o
aparato estatal, paradoxal e incoerentemente, estarrecem-se diante da descoberta de um
abatedouro de cães e gatos37. Algumas espécies, então, além da humana, teriam direito à
vida, além do direito de não serem submetidas a práticas cruéis. Critérios arbitrários e
desarrazoados como a beleza e a simpatia humana (que podem variar conforme a cultura
observada) conduzem à realidade jurídica de que alguns animais têm direito à vida (animais
belos e/ou simpáticos aos humanos) e outros não (“animais de panela”). Trata-se do
especismo.
Infraconstitucionalmente, o que se verifica é legislação, em grande escala, tratando
37
“De propriedade de um casal, que foi preso em flagrante nesta quinta, o abatedouro ficava nos fundos de uma casa.
‘Eles matavam com um machado e, depois, queimavam o couro com maçarico’, afirmou o delegado Anderson
Giampaoli, da 2ª Delegacia de Saúde Pública. Semanalmente, eram vendidas dez carcaças, cada uma variando entre R$
180 e R$ 220, diz a polícia. [...] No freezer da casa, a polícia encontrou 70 quilos de carne, que incluía, além dos cães,
dois gatos inteiros. Segundo os investigadores, o dono da casa contou que pegava qualquer animal na rua. Alguns eram
mantidos
no
quintal
esperando
pela
encomenda.”
Disponível
em:
<http://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL1376300-5605,00.html>. Acesso em: 16 Nov. 2009.
129
os animais como coisas (como seres a serviço da humanidade, sem valor intrínseco). O
Código Civil enquadra os animais na categoria de “coisas” 38 fungíveis, suscetíveis à
propriedade, à venda e ao penhor, conforme demonstram os seus artigos 445, §2º39; 93640;
1.313, inciso II41; e 1.44642.
O tratamento dos animais como coisas é verificado em toda a legislação que
regulamenta a sua utilização para alimentação, vestuário, utensílios, entretenimento
(pescarias, zoológicos, rodeios, circos, esporte, etc.), experimentação científica, trabalhos
forçados (veículos de tração animal, por exemplo) e toda a forma de instrumentalização
animal para fins humanos 43 . Se tais utilizações são regulamentadas é porque são
permitidas, e, portanto, a preocupação com a vida, com a liberdade e com a integridade
física e psíquica dos animais é inexistente ou de pouca abrangência ou efetividade para a
libertação dos animais do jugo humano.
Em sua grande maioria, os “avanços” legislativos verificados para a proteção animal
se referem à preservação das espécies e à diminuição do sofrimento na instrumentalização
– “bem-estarismo” animal. A propósito, o regulamentado e propagandeado “abate
humanitário” carrega um inevitável paradoxo: a busca de melhor trato dos animais
38
“Coisa é tudo o que existe além dos sujeitos de direito; se tem valor econômico, isto é, quantificável em dinheiro, é
chamada de ‘bem’”. (COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil. Parte geral. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2012).
39
Art. 445. O adquirente decai do direito de obter a redibição ou abatimento no preço no prazo de trinta dias se a coisa
for móvel, e de um ano se for imóvel, contado da entrega efetiva; se já estava na posse, o prazo conta-se da alienação,
reduzido à metade.
[...]
§ 2o Tratando-se de venda de animais, os prazos de garantia por vícios ocultos serão os estabelecidos em lei especial, ou,
na falta desta, pelos usos locais, aplicando-se o disposto no parágrafo antecedente se não houver regras disciplinando
a matéria.
40
Art. 936. O dono, ou detentor, do animal ressarcirá o dano por este causado, se não provar culpa da vítima ou força
maior.
41
Art. 1.313. O proprietário ou ocupante do imóvel é obrigado a tolerar que o vizinho entre no prédio, mediante prévio
aviso, para:
[...]
II - apoderar-se de coisas suas, inclusive animais que aí se encontrem casualmente.
[...]
42
Art. 1.446. Os animais da mesma espécie, comprados para substituir os mortos, ficam sub-rogados no penhor.
[...]
43
Nenhuma das referidas formas de instrumentalização animal é indispensável à vida ou à saúde humana, conforme se
desenvolverá no capítulo 2.
130
referidos na Instrução Normativa nº 03/200044, do Ministério da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento, que apresenta os métodos de insensibilização45, baseia-se na ideia de que
é errado sujeitá-los a sofrimento desnecessário (o que não se desconsidera totalmente
como “avanço”); porém, justamente o ato de matar animais que o ser humano não tem
necessidade de comer, é o maior dos sofrimentos desnecessários.
Contudo, ainda que o Código Civil confira aos animais um status jurídico de coisas, e
mesmo diante de tantas realidades de coisificação animal legalizadas, é possível afirmar que
o automatismo animal desenvolvido por René Descartes 46 e que ainda hoje possui
seguidores, já encontra alguns freios (ainda que, como dito, antropocêntricos, mitigados e
com pouca abrangência na preservação da vida e da liberdade individualizada). Ao contrário
do que afirmou Descartes, os animais não são como “um relógio, composto apenas de rodas
e de molas” e não se pode dispor dos animais da mesma forma que se pode dispor das
coisas. É possível jogar o (próprio) relógio na parede, martelá-lo, atear fogo; não se pode
dispor dos animais da mesma forma, ainda que recebam constantemente tratamento
jurídico de “coisas”.
Essa impossibilidade de dispor dos animais da mesma forma que se pode dispor das
coisas, além da proibição constitucional à crueldade, está evidenciada na Lei nº 9.605/1998
(Lei dos Crimes Ambientais), que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas
de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente. Em seu artigo 3247, a Lei criminaliza os
44
Disponível em <http://www.agricultura.gov.br/arq_editor/file/Desenvolvimento_Sustentavel/Producao-IntegradaPecuaria/IN%2003%20de%202000.pdf>. Acesso em 17 Jun. 2016.
45
“Os animais não entregam suas vidas voluntariamente. Tampouco morrem dormindo ou anestesiados. Para os animais,
assim como para os humanos, a expectativa de morrer violentamente e num ambiente não-familiar provoca angústia.
Alguns deles vão para o abate em pânico, agitando-se freneticamente, pois já antecipam aterrorizados o que lhes
acontecerá, em vista de todo o cenário que os cerca. Os animais, ouvindo, vendo e cheirando a morte que os aguarda,
tentam inutilmente fugir da área da matança. Em primeiro lugar, gado, porcos e aves são desacordados por meio de
atordoamento por percussão/penetração ou corrente elétrica. Esses métodos de insensibilização não são inteiramente
confiáveis. Em muitos casos, a velocidade acelerada do processo de abate não permite uma verificação da consciência
do animal. Em face disso, os animais, apenas paralisados, podem recobrá-la, sendo degolados, esfolados e
esquartejados com seus olhos ainda piscando. Nos matadouros clandestinos (que são quase a metade do total no Brasil)
o abate é a marretadas, sendo necessárias várias delas muitas vezes, e, não raro, os animais chegam vivos ao estágio
seguinte” (NACONECY, Ética & animais, p. 211).
46
DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 55-79.
47
Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou
exóticos:
131
maus-tratos, prevendo pena de detenção e multa para quem “praticar ato de abuso, maustratos, ferir ou mutilar animais”.
Então, sob o entendimento do artigo 225, VII da Constituição Federal e da Lei nº
9.605/1998, as coisas e os animais são diferentes, inclusive juridicamente, coexistindo essa
compreensão com o regramento civilista e com a diversa produção legislativa que
regulamenta a instrumentalização animal, ora avançando, ora retrocedendo no sentido de
proteção. É evidente a indefinição e a incoerência do sentido constitucional e legal atribuído
aos animais, o que torna relevante o exercício da jurisdição constitucional sobre o tema.
4. O STF E O DIREITO CONSTITUCIONAL DOS ANIMAIS
A reificação animal, sem compromisso com a realidade física, biológica e psíquica dos
seres sencientes, está presente na produção legislativa pátria, inclusive posterior à
Constituição Federal que veda a crueldade contra os animais. Os animais estão num lugar
de indefinição e incerteza no sistema jurídico; a legislação pátria ora lhes confere proteção,
ora protege a instrumentalização. A atuação do Supremo Tribunal Federal, nesse contexto,
é de extrema importância, uma vez que possibilita o exame da constitucionalidade da
legislação que regulamenta a prática de crueldades, constitucionalmente vedada.
Não obstante todas as incoerências, fragilidades e multiplicidade de sentidos que
envolvem a questão animal, o próprio exercício da jurisdição constitucional também envolve
um posicionamento teórico, a possibilitar ou não, a atuação do STF na declaração de
inconstitucionalidade de leis formalmente válidas. A análise dos paradigmas de controle
judicial da atividade legislativa deve compreender a discussão que se estabelece entre as
correntes procedimentalista e substancialista.
A teoria procedimentalista propõe um modelo de democracia constitucional que não
Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.
§ 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos
ou científicos, quando existirem recursos alternativos.
§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.
132
tem como condição prévia fundamentar-se em conteúdos substantivos, mas em
procedimentos que asseguram a formação democrática da opinião e da vontade. Entende
que o Tribunal Constitucional deve ficar limitado à tarefa de compreensão procedimental
da Constituição, isto é, limitando-se a proteger um processo de criação democrática do
direito.
John Hart Ely, em sua construção procedimentalista, entende que ainda que seja
necessário estabelecer limitações ao governo da maioria, é mais democrático estabelecer
limitações impostas pelo próprio povo; o intérprete toma seus valores diretamente da
Constituição, e como a Constituição foi ratificada pelo povo, esses valores vêm do povo48.
Ely sustenta que se for possível identificar que o objetivo que o legislador visava era
inconstitucional, a lei é inconstitucional. Mas, se for impossível fazer uma demonstração
confiante da motivação, o ponto de vista constitucional apresentará dificuldades. Além
disso, não basta justificar a não representação de minorias por falta de organização política,
mas é preciso buscar os indícios de bloqueio no acesso à representação, investigando as
condições que cercam o grupo para ver se há bloqueios sistêmicos, ainda que não oficiais
ou legais. Sua teoria restringe o controle de constitucionalidade “na medida em que insiste
que esse controle só pode tratar de questões de participação, e não dos méritos
substantivos das decisões políticas impugnadas”.
Avesso à justiça constitucional, Jürgen Habermas49 entende que o Tribunal Constitucional
deve ficar limitado à tarefa de compreensão procedimental da Constituição, isto é, limitando-se a
proteger um processo de criação democrática do direito. Para Habermas, “o Tribunal Constitucional
não deve ser um guardião de uma suposta ordem suprapositiva de valores substanciais. Deve, sim,
zelar pela garantia de que a cidadania disponha de meios para estabelecer um entendimento sobre
a natureza de seus problemas e a forma de sua solução”50.
48
ELY, John Hart. Democracia e desconfiança. Uma teoria do controle judicial de constitucionalidade. Tradução de Juliana
Lemos. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
49
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
50
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5. ed. São Paulo: Saraiva,
2014, p. 95.
133
As teses procedimentalistas, garantindo somente o acesso aos mecanismos de
participação democrática no sistema (o que, não raro, exclui minorias isoladas e sem voz do
processo de participação política), distanciam-se da realidade de países como o Brasil, já
que em sua especificidade formal, não estabelecem condições de possibilidade para a
construção de uma concepção substancial do que a Constituição estabelece em termos de
direitos fundamentais e sociais.
O modelo substancialista, embora rechace decisionismos e ativismos, aproxima-se
do constitucionalismo dirigente, que ingressou nos ordenamentos jurídicos após a segunda
guerra. Inexorável que, a partir da positivação dos direitos sociais-fundamentais, o Poder
Judiciário passe a ter um papel de relevância no que pertine à jurisdição constitucional. Para
Streck51,
[...] a própria concepção processual não pode abri mão de juízos de substância: as
inadequações das leis só podem ser resolvidas pela tarefa construtiva dos juízes, e os
indivíduos encarregados de conduzir os processos democráticos necessitam de um espírito
crítico para compreender a complexidade da própria democracia, sob pena de, a partir de
uma formação dogmática e autoritária, construir a antítese do processo democrático. [...] A
ideia de que se possa separar o “direito positivo” e seus processos dos valores substantivos
é uma miragem [...].
Streck afirma que países como o Brasil, necessitam de uma jurisdição constitucional
que não se limite à preservação dos procedimentos democráticos. As teses procedimentais
enfraquecem o papel compromissário e vinculante do texto constitucional. Carente da
concretização de direitos fundamentais e sociais, o país necessita de uma Constituição
dirigente adequada (conteúdo compromissário mínimo) e de mecanismos de acesso à
participação democrática e à jurisdição constitucional.
O acesso ao Poder Judiciário e a independência judicial frente à lei, são destacados
por Ovídio Araújo Baptista da Silva52:
51
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 155.
52
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1997, p. 44
134
[...] é indispensável, e mais do que indispensável, urgente, formar juristas que não sejam,
como agora, técnicos sem princípios, meros intérpretes passivos de textos, em última
análise, escravos do poder [...], pois o servilismo judicial frente ao império da lei anula o
Poder judiciário que, em nossas circunstâncias históricas, tornou-se o mais democrático dos
três ramos do Poder estatal, já que, frente ao momento de crise estrutural e endêmica vivida
pelas democracias representativas, o livre acesso ao Poder Judiciário, constitucionalmente
garantido, é o espaço mais autêntico para o exercício da verdadeira cidadania.
A defesa da jurisdição constitucional, com a adoção da tese substancialista, envolve
também as reflexões apresentadas por Jaqueline Mielke Silva53, quando afirma que mesmo
no Estado Democrático, a pressão política sobre os direitos, com possibilidade de sua
afetação, está presente; “os procedimentos democráticos não garantem uma identidade
natural entre lei e justiça”. Essa reflexão tem especial relevância quando se trata do direito
dos animais.
A pressão política sobre os direitos dos animais pode ser verificada no fato de que a
JBS – maior produtora de proteína animal do mundo, presente em 20 (vinte) países, com
vendas de US$ 43,2 bilhões em 2013 54 - está entre as três principais financiadoras das
campanhas presidenciáveis em 2014 (maior financiadora da campanha de Dilma Roussef PT), e no fato de ter financiado quase um terço dos parlamentares da Câmara dos
Deputados nas eleições de 201455. A força e influência da bancada pecuarista no Congresso
Nacional e no governo é notória56.
Dessa forma, a implementação dos direitos positivados no texto da Constituição, não é
alcançável apenas pela preservação dos procedimentos democráticos, mas exige uma jurisdição
constitucional efetiva. Esse é caminho que, na área do direito dos animais, está obtendo
53
SILVA, Jaqueline Mielke. A democracia como possibilidade de produção de sentido: o papel do poder judiciário na tutela
de direitos fundamentais no estado social e democrático de direito. In: BOFF, Salete Oro; ESPINDOLA, Angela Araujo da
Silveira; TRINDADE, Andre Karan (Orgs.). Direito, democracia e sustentabilidade: anuário do programa de pósgraduação da Faculdade Meridional. Passo Fundo: Imed Editora, 2014, p. 317-340.
54
Disponível em <http://www.valor.com.br/agro/3831632/jbs-e-segunda-maior-empresa-de-alimentos-do-mundo-emvendas-anuais>. Acesso em 26 Jul. 2016.
55
Disponível em <http://exame.abril.com.br/negocios/noticias/baroes-da-carne-se-tornam-bilionarios-com-ajuda-dobndes>. Acesso em 26 Jul. 2016.
56
A diretoria da JBS no Brasil, após a eleição de Dilma Roussef, demonstrou insatisfação com a indicação de Kátia Abreu
(PMDB-TO) para o ministério da agricultura e providenciou reuniões com Dilma e Michael Temer para discutir a questão.
(Disponível em <http://www1.folha.uol.br/poder/2014/08/1496943-tres-empresas-bancam-65-da-arrecadaao-depresidenciaveis.shtml>. Acesso em 26 Jul. 2016.
135
progressos nas decisões do Supremo Tribunal Federal.
Em 1972, o STF, no julgamento do RHC nº 50.343, negou a impetração em favor “de
todos os pássaros que se achem na iminência de encontrarem-se aprisionados em gaiolas em
virtude de comercialização, de utilização, perseguição, caça ou apanha ilegal”. O relator,
Ministro Djaci Falcão, afirmou que “situam-se eles como coisa ou bem, podendo apenas ser
objeto de direito, jamais integrar uma relação jurídica na qualidade de sujeito de direito. Não
vejo como se erigir o animal como titular de direito”57.
A compreensão dos animais como objetos de direito, embora ainda arraigada no
sistema jurídico, mostra indícios de novas possibilidades compreensivas. Lourenço58 afirma
que a “mudança pauta-se numa exegese construtiva que teria por finalidade a tutela
específica do interesse do próprio animal, como possuidor de valoração moral e jurídica
intrínseca”. Essa nova compreensão já foi verificada na atuação do tribunal constitucional:
O STF declarou a inconstitucionalidade de manifestações culturais com o uso de
animais. É o caso do Recurso Extraordinário nº 153.531-8-SC59, julgado em 1997, em que
entidades de defesa dos direitos dos animais, em ação civil pública, julgada procedente pelo
STF, pleitearam compelir o Estado de Santa Catarina a legislar ou agir administrativamente,
coibindo a “farra do boi”.
Também é o caso da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.856-RJ60, julgada em
2011, proposta pelo Procurador Geral da República, julgada procedente, com a declaração
de inconstitucionalidade da Lei Estadual do Rio de Janeiro nº 2.895/98, que autorizava e
regulamentava a “rinha de galo”.
As razões de procedência de ambos os acórdãos deixam vincado o conteúdo do
artigo 225 da Constituição Federal, com referência expressa à vedação da crueldade contra
os animais. São julgamentos que instigaram o STF a definir o papel a ser exercido pela
57
LOURENÇO, Direito dos animais, p. 524.
58
LOURENÇO, Direito dos animais, p. 482-485.
59
Disponível em <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=211500>. Acesso em 18 Jun.
2016.
60
Disponível em <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628634>. Acesso em 18 Jun.
2016.
136
jurisdição constitucional, na defesa e na implementação do direito dos animais
constitucionalmente previstos.
Importantes decisões envolvendo o direito dos animais ainda estão pendentes no
STF, envolvendo a utilização de animais em espetáculos para entretenimento humano e em
rituais religiosos:
A Lei nº 10.519/2002, regulamenta as atividades de rodeio, assim compreendidas as
“atividades de montaria ou de cronometragem e as provas de laço”61. A abordagem da Lei
é flagrantemente antropocêntrica; enfatiza a “habilidade do atleta em dominar o animal
com perícia”. Trata-se de atividade tão brutal, que houve a necessidade de descrição
legislativa dos “apetrechos técnicos” que podem ser utilizados e dos que são proibidos na
montaria 62 . Já os animais utilizados em espetáculos circenses possuem “uma dose” de
proteção desde o Decreto-Lei nº 3.688/41 (Lei das Contravenções Penais). O artigo 6463 do
Decreto-Lei prevê pena de prisão e multa para o tratamento de animal com crueldade ou
submetido a trabalho excessivo, e aumento de pena se o tratamento é conferido em
exibição ou espetáculo público. O conteúdo do Decreto-Lei, embora penalize a crueldade e
o trabalho excessivo, não demonstra a compreensão do trabalho forçado, da imposição de
comportamento não natural e dos meios para alcançar os resultados pretendidos.
61
Art. 1o A realização de rodeios de animais obedecerá às normas gerais contidas nesta Lei.
Parágrafo único. Consideram-se rodeios de animais as atividades de montaria ou de cronometragem e as provas de laço,
nas quais são avaliados a habilidade do atleta em dominar o animal com perícia e o desempenho do próprio animal.
62
Art. 4o Os apetrechos técnicos utilizados nas montarias, bem como as características do arreamento, não poderão
causar injúrias ou ferimentos aos animais e devem obedecer às normas estabelecidas pela entidade representativa do
rodeio, seguindo as regras internacionalmente aceitas.
§ 1o As cintas, cilhas e as barrigueiras deverão ser confeccionadas em lã natural com dimensões adequadas para garantir
o conforto dos animais.
§ 2o Fica expressamente proibido o uso de esporas com rosetas pontiagudas ou qualquer outro instrumento que cause
ferimentos nos animais, incluindo aparelhos que provoquem choques elétricos.
§ 3o As cordas utilizadas nas provas de laço deverão dispor de redutor de impacto para o animal.
63
Art. 64. Tratar animal com crueldade ou submetê-lo a trabalho excessivo:
Pena – prisão simples, de dez dias a um mês, ou multa, de cem a quinhentos mil réis.
§ 1º Na mesma pena incorre aquele que, embora para fins didáticos ou científicos, realiza em lugar público ou exposto ao
público, experiência dolorosa ou cruel em animal vivo.
§ 2º Aplica-se a pena com aumento de metade, se o animal é submetido a trabalho excessivo ou tratado com crueldade,
em exibição ou espetáculo público.
137
Em atenção à essa realidade cruel, leis estaduais e municipais têm,
progressivamente, proibido a utilização de animais em apresentações circenses. É o caso
do Código de Proteção dos Animais do Estado de São Paulo, a Lei Estadual nº 11.977/200564,
que proíbe a apresentação ou utilização de animais em espetáculos circenses, em provas
de rodeio e em todo espetáculo que induza o animal à atividade ou comportamento não
natural. No entanto, pende de julgamento no STF a ADI nº 3.595, ajuizada pelo então
governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, contra o Código de Proteção dos Animais do
Estado.
Outra pendência no STF, trata do flagrante exemplo de retrocesso do direito dos
animais, materializado na Lei Estadual do Estado do Rio Grande do Sul nº 12.131/2004, que
acresceu um parágrafo único ao artigo 2º da Lei Estadual nº 11.915/03 – Código Estadual
de Proteção aos Animais. Tal parágrafo estabeleceu que não se enquadra na vedação de
ofensa ou agressão física aos animais “o livre exercício dos cultos e liturgias das religiões de
matriz africana”. A inconstitucionalidade dessa lei estadual é objeto do Recurso
Extraordinário nº 494.601.
A jurisdição constitucional, dessa forma, possui relevância na fixação de sentido do
status jurídico dos animais e na defesa da proteção aos animais prevista
constitucionalmente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O questionamento sobre a possibilidade da titularização de direitos pelos animais
reclama a busca de um critério isento para a definição de um sujeito de direito. Essa busca
conduz ao critério da senciência, que, ao mesmo tempo em que possui o condão de abarcar
todos os seres humanos, implica no reconhecimento de todos os animais sencientes como
titulares de direitos, devendo-se, nessa condição, conferir-lhes direitos (ainda) não
64
Artigo 21 - É vedada a apresentação ou utilização de animais em espetáculos circenses.
Artigo 22 - São vedadas provas de rodeio e espetáculos similares que envolvam o uso de instrumentos que visem induzir
o animal à realização de atividade ou comportamento que não se produziria naturalmente sem o emprego de artifícios.
138
previstos pela legislação ou que a legislação lhes negue – vida, liberdade e integridade física
e psíquica.
A Constituição Federal estabelece um dever de proteção aos animais e a vedação à
crueldade – o principal ponto de partida para a defesa do direito dos animais no direito
brasileiro atual. Contudo, coexiste com a positivação constitucional, o regramento civilista
e vasta produção legislativa regulamentando a instrumentalização dos animais,
objetificando-os.
A jurisdição constitucional, nesse contexto, ganha relevância na proteção e
efetivação do direito dos animais constitucionalmente previstos, possibilitando a
declaração de inconstitucionalidade (incluída a não recepção) da legislação ordinária
retrocessiva. O caminho abolicionista em prol dos animais, portanto, pode acontecer em
conformidade com o sistema jurídico vigente. Merece reflexão e busca de alternativa
jurídica para a declaração de inconstitucionalidade de dispositivos da Constituição Federal
– artigos 23, inciso VIII e 24, inciso VI – para que a mudança libertária em curso receba o
suporte jurídico que necessita.
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141
A PREVIDÊNCIA SOCIAL E OS IMPACTOS DA TERCEIRIZAÇÃO
Franchesco Maraschin de Freitas1
INTRODUÇÃO
A Previdência Social é um direito não apenas consolidado na Constituição Federal
de 1988, mas também é prevista na Declaração Universal dos Direitos do Homem e na
Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem. É por esse Direito Social que é
assegurado aos cidadãos às medidas necessárias contra os riscos sociais. Nesse diapasão, o
Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) só poderá gerir esse direito se houver verbas
suficientes para tanto, eis que se trata de um sistema contributivo nucleado pelo princípio
da solidariedade entre os participantes.
No ano de 2004 foi protocolado o Projeto de Lei nº 4330 que regulamenta o contrato
de prestação de serviço a terceiros e as relações de trabalho dele decorrentes. Esse Projeto
de Lei, de forma sucinta, possibilita a terceirização das atividades-fim das empresas, indo
de encontro à Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalha, qual possibilita, apenas, a
terceirização das atividades-meio das empresas.
A terceirização possui consequências tanto na esfera dos Direitos Sociais dos
trabalhadores quanto aos cofres do INSS. Essas consequências, no decorrer do tempo,
poderão ser irreversíveis, aniquilando os direitos adquiridos pelas revoltas populares.
Tem-se como problema de pesquisa: Quais os impactos que terceirização trará à
saúde financeira e econômica da Previdência Social? Parte-se da hipótese que a
terceirização traz prejuízos aos cofres da Previdência Social e a contemplação dos Direitos
Sociais dos trabalhadores.
1
Mestre em Direito pelo PPGD – IMED. Bolsista CAPES. Advogado. E-mail:
[email protected].
142
Esse estudo tem como objetivo identificar algumas fragilidades que a terceirização,
juntamente com algumas medidas governamentais, pode acarretar aos Direitos Sociais e à
estrutura da autarquia responsável na gerência da Seguridade Social, tais como o déficit
financeiro na autarquia dado a alta rotatividade nos empregos e a diminuição dos salários
de contribuição. O trabalho desenvolvido, tendo como técnica de pesquisa a Categoria e o
Conceito Operacional2, concentrando-se na pesquisa bibliográfica e estatística.
O tema é de suma importância para atual conjectura em que vivemos, dada à
iminência da aprovação do Projeto de Lei nº 4330 que refletirá diretamente e indiretamente
nos Direitos Sociais dos seguradores do INSS.
2. A RELEVÂNCIA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL NA CONTRIBUIÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS
O Sistema de Seguridade Social, em seu conjunto, como dito alhures, visa garantir
que o cidadão se sinta seguro e protegido ao longo de sua vivência, tendo por fundamento
a solidariedade humana. Ele é um dos instrumentos através do qual se pretende alcançar s
objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil arrolados no artigo 3º da
Constituição. A expressão Seguridade Social, pode ser considerado um termo geral utilizado
por nosso legislador constituinte para designar o sistema de proteção que abrange os três
programas sociais de maior relevância: a previdência, a saúde e a assistência social3.
José Antonio Savaris diferencia a Previdência Social de Seguridade Social: “o sistema
pelo qual o Estado e a sociedade protegem o indivíduo contra riscos que podem prejudicar
sua saúde, impedir seu desenvolvimento ou diminuir sua capacidade para o trabalho é o
2
A Categoria é a palavra ou expressão estratégica à elaboração e/ou à expressão de uma ideia. Na realidade o próprio rol
de Categorias é estabelecido para facilitar o entendimento da pesquisa e de seu relato e, portanto, requer segurança,
a qual lhe será conferida pela busca de um consenso, qual seja a ideia de que o pluralismo jurídico, consubstanciado
com o cumprimento dos Deveres Fundamentais, são essenciais para concretização do Estado Democrático de Direito.
Contudo, para efetivação da técnica da Categoria é necessária à sucessão do Conceito Operacional em sua vertente
Legal, ou seja, partindo-se de comandos jurídicos (art. 5º, CF/88 – deveres fundamentais; e o pluralismo concretizado
no preâmbulo da Carta Magna) é buscado na pesquisa a elaboração de um Conceito mais adequado à realidade jurídicosocial.
3
ROCHA, Daniel Machado da; BALTAZAR JUNIOR, José Paulo. Comentários à lei de benefícios da Previdência Social. 11.
ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora: Esmafe, 2012, p. 27.
143
que a Constituição Federal de 1988 chama de ‘Seguridade Social’. Ela se destina a assegurar
os direitos individuais à saúde, assistência social e Previdência Social”4. Cada uma destas
áreas, atualmente, tem a sua política elaborada por um Ministério específico.
Para o desenvolvimento do trabalho, vale frisar o que a Declaração Universal dos
Direitos do Homem, em seu artigo 25º, preconiza, qual seja:
Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a
saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à
assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança
no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de
meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade5.
A Previdência Social – espécie notoriamente contributiva do gênero seguridade
social, não se prescinde da necessária participação econômica do segurado, sem o qual o
sistema não seria viável –, como defendida no artigo 6º da Constituição Federal, é um
direito social, ou seja, é um direito constitucional. Um direito social fundamental do
indivíduo. Ademais, além de um Direito Fundamental Social escudado em nossa Carta
Magna, ele também preconiza a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem
em seu artigo XVI:
Artigo XVI. Toda pessoa tem direito à Previdência Social de modo a ficar protegida contra
as consequências do desemprego, da velhice e da incapacidade que, provenientes de
qualquer causa alheia à sua vontade, a impossibilitem física ou mentalmente de obter meios
de subsistência6.
Um cidadão que está inserido no seio da sociedade, em regra, está em razão de sua
capacidade de produção e sua força de trabalho. Desta maneira, ocorrendo alguma
circunstância que o deixe num momento de vulnerabilidade, ou seja, incapaz de manter seu
sustento e de sua família, a Previdência Social revela sua verdadeira importância. É, nas
palavras de Cesar Augusto Kato e Rose Kampa, “o caráter contributivo e obrigatório da
4
SAVARIS, José Antonio. Noções jurídicas fundamentais sobre os benefícios previdenciários por incapacidade.
________(org.). Curso de Perícia Judicial Previdenciária. São Paulo: Conceito Editorial, 2011, p. 25.
5
Declaração
Universal
dos
Direitos
Humanos.
Disponível
http://www.ohchr.org/EN/UDHR/Documents/UDHR_Translations/por.pdf>. Acesso em 03/05/2015.
6
Declaração
Americana
de
Direitos
e
Deveres
do
Homem.
Disponível
http://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/b.Declaracao_Americana.htm> Acesso em 03/05/2015.
144
em
em:
<
<
Previdência Social que traduz na expectativa legítima do trabalhador de ser amparado no
momento de uma necessidade, interessando especialmente as hipóteses de incapacidade
laborativa”7. Ou seja, traduz a tranquilidade, sobretudo no futuro, como formar de garantia
do ser humano contra o perigo de passar privações, propiciando a efetivação da justiça
social.
Corrobora Fabio Lopes Vilela Berbel quando afirma que se trata de um “conjunto de
regras e princípios estruturalmente alocados, com escopo de realizar a Seguridade Social
que, a partir de uma visão meramente política, seria a proteção plena do indivíduo frente
aos infortúnios da vida capazes de leva-lo à indigência, ou seja, a proteção social da
infelicidade individual”8.
Apesar das normas de direitos sociais exercerem funções jurídico-objetivas no
ordenamento constitucional e possuírem eficácia que se origina diretamente da
Constituição o seu significado seria restrito caso não houvesse outras normas
constitucionais ou infraconstitucionais voltadas à sua concreção9. Via de regra, os direitos
fundamentais sociais, enquanto gerais (frisa-se os genéricos elencados no artigo 6º da
Constituição), não conferem direito subjetivo, ou seja, por não serem direitos de defesa
cuja força eficacial se extrai diretamente da Constituição, fora as exceções alhures, não
originam pretensão exercitável em juízo.
No caso da Previdência Social, a legislação extravagante (Lei 8.212/91 – Lei que
regula a Seguridade Social e seu custeio -, e Lei 8.213/91 – Lei que regula os benefícios da
Previdência Social) e a própria carta constitucional (artigo 201 e 202) direcionam a
generalidade do artigo 6º para um caminho de proteção e concretização da esfera da
Seguridade Social fazendo com que sejam implementadas políticas governamentais
específicas para o seu firmamento.
7
KATO, Cesar Augusto; KAMPA, Rose. Direito constitucional à prova e a perícia médica previdenciária no Juizado Especial
Federal. SAVARIS, José Antonio. Curso de Perícia Judicial Previdenciária. São Paulo: Conceito Editorial, 2011, p. 71.
8
BERBEL, Fabio Lopes Vilela. Teoria geral da Previdência Social. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 122.
9
LEDUR, José Felipe. Direitos fundamentais sociais: efetivação no âmbito da democracia participativa. Porto Alegre:
Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 83.
145
Sendo assim, é justamente quando a força laboral do cidadão está deficitária, que a
Previdência Social ratifica seu papel nuclear, na busca da manutenção do ser humana
dentro de um padrão de vida minimamente adequado.
Desta maneira, não há dúvidas quanto o reconhecimento à Previdência Social como
um Direito Fundamental Social possibilitando a exigência de aplicabilidade imediata nas
situações de direito substancial carecedoras de tutela jurisdicional. Contudo, há situações
em que a jusfundamentabilidade do Direito Fundamental Social a Previdência Social é
ceifada por políticas de contenção financeira e orçamentária, tendo como consequência a
usurpação da Dignidade da Pessoa Humana.
3. CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS
As empresas, diante de uma breve análise histórica constitucional, sempre
participaram do financiamento da seguridade social, ao lado dos trabalhadores e do Estado.
A Constituição de 1934 foi a primeira a dispor, de modo expresso, sobre as contribuições
sociais, fazendo constar e seu artigo 121,§1º, “h”, que caberia “assistência médica e
sanitária ao trabalhador e à gestante, assegurado a esta descanso, antes e depois do parto,
sem prejuízo do seu salário e do emprego, e instituição de previdência, mediante
contribuição igual da União, do empregador e do empregado, a favor da velhice, da
invalidez, da maternidade e nos casos de acidentes do trabalho ou de morte”10.
3.1 Contribuições previdenciárias patronais
A doutrina majoritária caracteriza as contribuições previdenciárias como
pertencentes do bojo do sistema tributário brasileiro. Tais contribuições são, pois, tributos
e, por esse motivo, estão sujeitas a todas as limitações constitucionais gerais ao poder de
tributar, tais como os princípios da irretroatividade, da legalidade, da capacidade
contributiva, entre outros.
10
TORRES, Heleno. Comentários ao art. 195, I, b. CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK,
Lenio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 1911.
146
Em corrente diversa, quase isolado, Marcus Orione Gonçalves entende que as
contribuições previdenciárias devem ser enquadradas como “salário social diferido”, haja
vista o princípio fundante de ambas as categorias: enquanto o princípio que rege as figuras
tributárias é o da legalidade, para as contribuições sociais, a viga que sustenta é o princípio
da solidariedade11.
Tais como qualquer tributo, elas só serão consideradas legais se possuírem seu
fundamento constitucional. O fundamento constitucional das contribuições está escudado
no artigo 195 da Constituição Federal de 1988, qual convenciona os responsáveis pelo seu
financiamento:
Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta,
nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:
I - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes
sobre:
a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer
título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício;
b) a receita ou o faturamento;
c) o lucro;
II - do trabalhador e dos demais segurados da Previdência Social, não incidindo contribuição
sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de Previdência Social de que
trata o art. 201.
É possível analisar, de uma forma sucinta, um dos fatores que foi prejudicial para os
trabalhadores e que refletiu na contribuição das empresas nas contribuições: a automação.
A automação reduziu em muito a base da contribuição fundada em folha de salário, o que
determinou que a Constituição Federal se cria duas novas materialidades para contribuição
previdenciária das empresas: o faturamento e o lucro, além da liberalidade da criação de
uma nova fonte de custeio, conforme o artigo 195, §4º12.
11
CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. Comentários ao art. 195. CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET,
Ingo W.; STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 1910.
12
TORRES, Heleno. Comentários ao art. 195, I, b. p. 1913.
147
As empresas e as entidades equiparadas a elas possuem como obrigação o
pagamento das contribuições tanto à seguridade social quanto à previdência. Referente à
seguridade, são devidas contribuições sobre a receita bruta e lucro, conforme a
Constituição Federal, artigo 195, I, “b” e “c”, bem como sobre eventual importação de bens
e serviços. No que tange a previdência, as empresas têm de pagar a denominada
“contribuição patronal”13, que incide sobre as hipóteses da alínea “a”, inciso I, do artigo
supracitado.
O fato gerador da contribuição das empresas é, em regra, a atividade remunerada
dos segurados a seu serviço, com ou sem vínculo empregatício. Destarte, a base-de-cálculo
da cota patronal previdenciária será a remuneração dos segurados.
Os empregadores, na contribuição patronal, funcionam como uma espécie de
patrocinadores dos benefícios pagos a seus empregados e dependentes. Essa contribuição
é motivo de intensas críticas, em virtude dos empregadores não possuírem nenhuma
vantagem direta em razão desse pagamento. Ao teor da reclamação, afirma-se que o
pagamento “desvantajoso” dessa contribuição aumenta o custo da mão de obra,
estimulando a informalidade do mercado de trabalho.
3.2 Contribuições dos Segurados e o Salário de Contribuição
O indivíduo constitui a sociedade; é parte integrante e necessária. É impossível
conceber um Ser humano senão como indivíduo social. Assim, a pessoa, por si, e a
sociedade são as responsáveis pela viabilidade e manutenção da Dignidade da Pessoa
Humana. Ambas, de forma conjunta e coordenada, reúnem esforços para o indivíduo
recuperar sua “integral valia quando afetado por um risco social”14.
A cobrança de contribuição social do próprio beneficiado pelo regime previdenciário
13
VELLOSO, Andrei Pitten. Contribuições Previdenciárias. ROCHA, Daniel Machado da; SAVARIS, José Antônio (Coord.).
Curso de especialização em direito previdenciário – vol. 3. Curitiba: Juruá, 2009, p. 77.
14
BERBEL, Fábio Lopes Vilela. Teoria geral da previdência privada. Florianópolis: Conceito Editorial, 2012, p. 51.
148
é consequência da natureza contributiva do sistema, conforme expresso ordenamento
constitucional15. Da mesma forma como para as empresas – na maioria das vezes -, o fato
gerador da contribuição do empregado é a atividade remunerada, ou seja, quanto menos
ele ganha, menos ele contribui. A base de cálculo, embora não preveja a Constituição, é
prevista em lei com o nome de salário de contribuição. Pode-se dizer que o critério é
adequado, pois, nas palavras de Fábio Zambitte Ibrahim, “a remuneração é a melhor
tradução numérica para o labor remunerado, sendo a base imponível mais adequada”16.
Conquanto todos os seguradores devam entornar suas contribuições de forma
mensal, a forma de cálculo varia de acordo com cada categoria de segurado. Há, no
contexto brasileiro, basicamente três formas de cálculo de contribuição dos trabalhadores.
Contudo, deixaremos de analisar a forma de cálculo do segurado especial por não
influenciar no resultado da pesquisa.
3.2.1 Empregado, Trabalhador Avulso e Empregado Doméstico
A incidência da contribuição desses segurados, não é meramente proporcional, mas
sim progressiva, quanto mais o segurado ganha, mais ele contribui e mais a previdência
arrecada, ou seja, à medida que é aumentado o salário é aumentado à alíquota. Esta é
definida em lei, atualmente, como 8,0; 9,0 ou 11,0% dependendo da faixa de remuneração,
conforme artigo 20 da Lei nº 8.212/91. Cumpre esclarecer, a título informativo, que não há
aplicação progressiva de várias alíquotas na mesma competência, ou seja, a alíquota incide
na totalidade do salário de contribuição. Atualmente, o valor de descontos é a seguinte17:
15
IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito Previdenciário. 19. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2014, p. 224.
16
IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito Previdenciário, p. 225.
17
Ministério da Previdência Social. Disponível em: http://www.mtps.gov.br/servicos-do-ministerio/servicos-daprevidencia/mais-procurados/calculo-de-guia-da-previdencia-social-carne/tabela-de-contribuicao-mensal. Acesso em
22 mai 2016.
149
Tabela para Empregado, Empregado Doméstico e Trabalhador Avulso
Salário de Contribuição (R$)
Alíquota (%)
Até R$ 1.556,94
8
De R$ 1.556,95 a R$ 2.594,92
9
De R$ 2.594,93 até R$ 5.189,82
11
A forma de recolhimento desse percentual devido pelos segurados é de total
responsabilidade dos empregadores, é uma obrigação instrumental, caso não seja feito, o
ônus de eventuais diferenças devidas será da empresa ou do empregador, haja vista essa
presunção absoluta de recolhimento.
3.2.2 Contribuinte Individual e Segurado Facultativo
No que condiz estes segurados, a contribuição deixa de ser progressiva e passa a ser
proporcional. Apesar da base de cálculo também utilizar o salário-de-contribuição, a
alíquota passa ser constante, equivalente a 20%. Os seguradores facultativos, como o
próprio nome diz, são voluntários, sendo eles próprios obrigados a efetuar seus
recolhimentos. Sua contribuição é mais significativa, pois eles não possuem o amparo da
contribuição patronal, dada a impossibilidade da prática.
Diferente é o caso do contribuinte individual (trabalhador autônomo), visto que já
existe a contribuição patronal sobre a renumeração paga ou creditada (artigo 22, III, da Lei
nº 8.2112/91), gerando uma situação de desigualdade quando presta serviços a empresa,
visto que teria que arcar com o valor de 20% do salário de contribuição. Em virtude desse
caso, a Lei nº 9.876/99 criou uma sistemática que possibilita a redução da contribuição do
contribuinte individual, por meio de um abatimento da contribuição no percentual de 45%
feita pela empresa sobre a remuneração paga, limitando, de sua parte, a dedução de 9% do
respectivo salário-de-contribuição. Contudo, paira-se numa problemática: o contribuinte
individualmente poderia utilizar-se desta dedução, após certificar-se que a contribuição já
foi quitada pela empresa ou, ao menos, declarada em documento fiscal. Nessa situação,
150
“caberá ao segurado ‘presumir’ que, sobre seu salário-de-contribuição, houve a
contribuição, e daí proceder ao cálculo” 18 pela regra exposta.
Para sanar essa mazela factual é aplicado o teor do artigo 33, §5º, da Lei de Custeio
(Lei nº 8.212/91), em que o desconto de contribuição legalmente autorizado será de
exclusiva responsabilidade do empregador. Ou seja, por essa regra caberá à empresa
efetuar a retenção da cotização devida pelo individual, na alíquota de 11%, sendo devido
pelo segurado, apenas o limite máximo do salário-de-contribuição.
Ademais, cumpre ressaltar que o contribuinte individual também será obrigado a
complementar, diretamente, a contribuição até o valor mínimo mensal do salário-decontribuição, quando as remunerações recebidas forem inferiores a este. De igual forma,
caso o contribuinte preste serviço à pessoa física, este deverá efetuar os recolhimentos por
conta própria e pela alíquota de 20%, eis que não há a contribuição patronal.
4. OS (PREVISÍVEIS) IMPACTOS DA TERCEIRIZAÇÃO NA ESFERA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL
Voltou à discussão pelo Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 4330/2004, qual
permite a terceirização em qualquer atividade das empresas, contrariando a Súmula nº 331
do Tribunal Superior do Trabalho que permite, apenas, a terceirização da “atividade-meio”
do tomador.
O autor do Projeto de Lei, Deputado Sandro Mabel, apresentou como justificação a
desatualização do cenário legislativo brasileiro frente à realidade que acometa o plano da
terceirização. Para o autor do Projeto, “no Brasil, a legislação foi verdadeiramente
atropelada pela realidade. Ao tentar, de maneira míope, proteger os trabalhadores
simplesmente ignorando a terceirização, conseguiu apenas deixar mais vulneráveis os
brasileiros que trabalham sob essa modalidade de contratação”19.
18
IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito Previdenciário, p. 228.
19
BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 4330/2004. Dispõe sobre o contrato de prestação de
serviço
a
terceiros
e
as
relações
de
trabalho
dele
decorrentes.
Disponível
em:http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=A283CAEB51B4A8D3E835D5C59595
E573.proposicoesWeb2?codteor=246979&filename=PL+4330/2004. Acesso em 30/05/2015.
151
Contudo, sabe-se que a principal motivação do processo de terceirização é, em geral,
a busca da redução do custo de trabalho alheio ao mecanismo de maior competitividade.
Todavia, para isso efetivamente se concretizar é necessário diminuir a remuneração dos
trabalhadores e proporcionar condições de trabalho inferiores aos postos de trabalho
formalizados.
Na concepção de Sérgio Pinto Martins, a terceirização é vista como desvantagem
para o trabalhador, pois se pode indicar a perda do emprego, cujo possuía uma
remuneração certa, passando a tê-la incerta, além da perda dos benefícios sociais
decorrentes do contrato de trabalho e das normas coletivas da categoria. O trabalhador
deixa de ter uma tutela trabalhista de modo a protegê-lo20. Ao invés de equiparar a minoria
terceirizada desvantajosa com a maioria dos trabalhadores direitos e assegurada, está se
regredindo para a equiparação da maioria assegurada para minoria desvantajosa.
Além disso, a rotatividade na empregabilidade é um dos matizes que deverão ser
mitigados quando da implementação do PL 4330/2004. Conforme dados do estudo
realizado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos DIEESE, enquanto um trabalhador direto trabalha em torno de 5,8 anos na mesma empresa,
um trabalhador terceirizado trabalha em média 2,6 anos. Ou seja, enquanto a rotatividade
entre os trabalhadores diretos é de 22%, a rotatividade entre os terceirizados é de 44,9%21.
O elevado índice de rotatividade entre os trabalhadores terceirizados é altamente
impactante na esfera social e para os cofres do INSS.
O
trabalhador
que,
não
por
sua
culpa,
alterna
constantemente
emprego/desemprego ceifa seu planejamento e desenvolvimento de vida. É identificado
que o tempo médio de permanência do trabalhador terceirizado na mesma empresa é de
dezoito meses, ou seja, um ano e meio de contratação 22 . Em situação que poderia se
20
MARTINS, Sério Pinto. A Terceirização e o Direito do Trabalho. São Paulo: Atlas, 2001, p. 34.
21
Subseção DIEESE - CUT Nacional, Secretaria das Relações de Trabalho/CUT, Secretaria da Saúde do Trabalhador/CUT.
Terceirização
e
Desenvolvimento,
uma
conta
que
não
fecha.
Disponível
em:
<http://www.sinttel.org.br/downloads/dossie_terceirizacao_cut.pdf>. Acesso em 31/05/2015.
22
POCHMANN,
Marcio.
Sindeepres,
Trajetórias
da
Terceirização.
Disponível
em:
<
http://www.sindeepres.org.br/~sindeepres/images/stories/pdf/pesquisa/trajetorias1.pdf>. Acesso em 31/05/2015.
152
aposentar por tempo de contribuição com idade entre 50 e 60 anos de vida – começando
sua vida laborativa com 16 anos e contribuindo 35 anos com o INSS – alternando curtos
períodos de tempo de trabalho, terá direito a aposentadoria por tempo de contribuição
entre 70 e 80 anos, optando, com razão, pela aposentadoria por idade, contribuindo 20
anos a menos e usufruindo dos benefícios. Ou seja, contribui menos e ganha mais.
Outra questão impactante aos cofres do INSS é a brusca redução de salários e,
consequentemente, das contribuições previdenciárias que a terceirização proporciona,
visto que a contribuição previdenciária do contribuinte, e em algumas situações da
empresa, diz respeito ao salário de contribuição. Essa constante, em termos estatísticos,
condiz que os empregados terceirizados recebem 11,5% a menos que os trabalhadores
direitos 23 . Essa redução se dá, por muitas vezes, pela intermediação que ocorre pelas
empresas prestadoras de serviços, pois elas também irão receber pela prestação.
Além disso, de forma indireta, outros direitos serão ricocheteados, não na esfera dos
cofres INSS, mas sim dos direitos sociais dos trabalhadores. A presidente Dilma Rouseff
sancionou a Lei nº 13.134/15, qual retrata os novos requisitos para aquisição do benefício
do seguro-desemprego. É visível os impactos indiretos que a terceirização irá causar no
núcleo do seguro-desemprego. O seguro-desemprego, antes da vigência da do
sancionamento da Lei nº 13.134/15 era devido da seguinte forma: o trabalhador demitido
de forma involuntária poderia solicitar o benefício após ter, no mínimo, seis meses de
trabalho ininterruptos na primeira solicitação. Com o novo texto foi alterado a regra,
elevando o tempo de trabalho para concessão:
Art. 3º Terá direito à percepção do seguro-desemprego o trabalhador dispensado sem justa
causa que comprove:
I - ter recebido salários de pessoa jurídica ou pessoa física a ela equiparada, relativos a:
a) pelo menos 12 (doze) meses nos últimos 18 (dezoito) meses imediatamente anteriores à
data de dispensa, quando da primeira solicitação;
23
FIESP;
CIESP.
Nota
Técnica
Terceirização.
Abril
de
2015.
Disponível
em:
http://www.sebraesp.com.br/arquivos_site/biblioteca/guias_cartilhas/terceirizacao_guia_fiesp.pdf>. Acesso
31/05/2015.
153
<
em
b) pelo menos 9 (nove) meses nos últimos 12 (doze) meses imediatamente anteriores à data
de dispensa, quando da segunda solicitação; e
c) cada um dos 6 (seis) meses imediatamente anteriores à data de dispensa, quando das
demais solicitações.
Ou seja, como vimos alhures, um dos impulsos da terceirização é a rotatividade dos
empregados, que possuem uma média de dezoito meses trabalhados na mesma empresa.
Destarte, caso o trabalhador esteja um pouco abaixo da média de tempo de serviço em um
mesmo lugar, ele não receberá o seguro-desemprego devendo, pois, estar com outro
emprego em vista caso queira sustentar sua família.
É possível analisar, que a terceirização, além dos impactos financeiros negativos
diretos aos cofres do Instituto Nacional de Seguridade Social, a diminuição dos salários dos
trabalhadores, a insegurança na mantença do emprego, também, de forma indireta e em
conjunto com o sancionamento da Lei nº 13.134/15, traz prejuízos aos direitos sociais dos
segurados, pois, o trabalhador terceirizado dificilmente atingirá os (altos) requisitos de
concessão do seguro, qual seja o tempo mínimo de doze meses.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É latente o entendimento de que a Previdência Social é um Direito Social assegurado
constitucionalmente e que qualquer manobra que venha impossibilitar sua efetividade é
inconstitucional. A terceirização não é apenas maléfica na esfera financeira da Previdência
Social, haja vista a diminuição do valor contributivo do empregador e do contribuinte dada
à elevada rotatividade dos trabalhadores e a considerável baixa salarial que possa ocorrer.
Além disso, há o impacto no status jurídico do trabalhador: terceirizado ou empregado. O
status jurídico que dirá a forma de recolhimento das suas contribuições previdenciárias. O
que antes era regulado pela Consolidação das Leis Trabalhistas, tendo o empregador
responsabilidade no recolhimento das contribuições, hoje ele terá (provavelmente) o status
de contribuinte individual passando, pois, a ser responsável, em partes, pelo recolhimento
de sua própria contribuição.
154
Juntamente com a Lei nº 13.134/95 que retifica os requisitos para concessão do
seguro-desemprego, a rotatividade dos empregados nas empresas agirá como fator
importante no desrespeito desse Direito Social. Aliás, não só o seguro-desemprego será
atingido pela implementação o Projeto de Lei º 4330, mas a rotatividade também será
responsável por “extinguir” a modalidade de aposentadoria por tempo de contribuição,
visto que a aposentadoria por idade será muito mais atrativa aos segurados terceirizados.
Com a liberação da terceirização na atividade-fim e em todos os setores econômicos,
a Constituição de 1988 sofrerá um extensivo abalo em termos de Direitos Humanos. A
temeridade é de o texto constitucional não se valer para os trabalhadores terceirizados,
porquanto os direitos sociais ali previstos terão nenhuma efetividade.
O cunho social e o lado cidadão nas relações com a classe trabalhadora do Estado
Democrático de Direito serão perdidos. Surgirá, em contraponto, o Estado Democrático de
Direito do Lucro, cujo sua essência consagrará a terceirização em todas as áreas da cadeia
econômica sem se importando com a dignidade da pessoa humano e os direitos até então
adquiridos.
REFERÊNCIAS DAS FONTES CITADAS
BERBEL, Fábio Lopes Vilela. Teoria geral da previdência privada. Florianópolis: Conceito
Editorial, 2012.
BERBEL, Fabio Lopes Vilela. Teoria geral da Previdência Social. São Paulo: Quartier Latin,
2005.
BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 4330/2004. Dispõe sobre o
contrato de prestação de serviço a terceiros e as relações de trabalho dele decorrentes.
Disponível
em:
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=A283CAEB5
1B4A8D3E835D5C59595E573.proposicoesWeb2?codteor=246979&filename=PL+4330/20
04. Acesso em 30/05/2015.
155
CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. Comentários ao art. 195. CANOTILHO, J. J. Gomes;
MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários à
Constit.uição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 1907-1910.
DECLARAÇÃO AMERICANA DE DIREITOS E DEVERES DO HOMEM. Disponível em: <
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03/05/2015.
DECLARAÇÃO
UNIVERSAL
DOS
DIREITOS
HUMANOS.
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http://www.ohchr.org/EN/UDHR/Documents/UDHR_Translations/por.pdf>. Acesso em
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FIESP; CIESP. Nota Técnica Terceirização. Abril de 2015. Disponível em: <
http://www.sebraesp.com.br/arquivos_site/biblioteca/guias_cartilhas/terceirizacao_guia
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IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito Previdenciário. 19. ed. Rio de Janeiro: Impetus,
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KATO, Cesar Augusto; KAMPA, Rose. Direito constitucional à prova e a perícia médica
previdenciária no Juizado Especial Federal. SAVARIS, José Antonio. Curso de Perícia Judicial
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LEDUR, José Felipe. Direitos fundamentais sociais: efetivação no âmbito da democracia
participativa. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009.
MARTINS, Sério Pinto. A Terceirização e o Direito do Trabalho. São Paulo: Atlas, 2001.
POCHMANN, Marcio. Sindeepres, Trajetórias da Terceirização. Disponível em: <
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ROCHA, Daniel Machado da. O direito fundamental à Previdência Social na perspectiva dos
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Livraria do Advogado Editora, 2014.
156
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da Previdência Social. 11. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora:
Esmafe, 2012.
SAVARIS, José Antonio. Noções jurídicas fundamentais sobre os benefícios previdenciários
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São Paulo: Conceito Editorial, 2011.
TORRES, Heleno. Comentários ao art. 195, I, b. CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar
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Curitiba: Juruá, 2009.
157
PODER JUDICIÁRIO E ATOS INSTITUCIONAIS NA DITADURA MILITAR
BRASILEIRA1
Gabriela Natacha Bechara2
Horácio Wanderlei Rodrigues3
INTRODUÇÃO
Contemporaneamente parece unanimidade o entendimento de que a ditadura
militar no Brasil é um período tenebroso na história brasileira, vez que responsável pela
interrupção do breve restabelecimento democrático ocorrido após o fim do Estado Novo e
por ser um período em que se promoveu uma sistemática violação aos direitos humanos.
Faz-se necessário esclarecer que o estabelecimento do regime militar no Brasil
seguiu a lógica norte-americana de contenção do comunismo, sendo posto em prática, em
seu viés teórico, pela doutrina da segurança nacional através da Escola Superior de Guerra
1
Este artigo configura uma versão revisada e atualizada da seguinte publicação: RODRIGUES, Horácio Wanderlei;
BECHARA, Gabriela Natacha. Ditadura militar, atos institucionais e Poder Judiciário. Justiça do Direito, Passo Fundo,
UPF, v. 29, n. 3, set./dez. 2015, p. 587-605. Disponível em: <http://www.upf.br/seer/index.php/rjd/article/view/5611>
2
Doutoranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) da Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC). Mestre em Teoria, Filosofia e História do Direito pelo PPGD/UFSC. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Conhecer
Direito (NECODI). Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
3
Doutor em Direito (Filosofia do Direito e da Política) pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em
Direito (Instituições Jurídico-Políticas) pela UFSC. Realizou Estágios de Pós-Doutorado em Filosofia na Universidade do
Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e em Educação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor
Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPG Direito) da Faculdade Meridional (IMED/RS). Professor
Colaborador dos Programas de Pós-Graduação em Direito (PPGD) e de Pós-Graduação Profissional em Direito (Mestrado
Profissional) da UFSC. Professor Titular de Teoria do Processo do Departamento de Direito da UFSC, de 1994 a 2016.
Sócio fundador do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI) e da Associação Brasileira de
Ensino do Direito (ABEDi). Membro do Instituto Iberomericano de Derecho Procesal (IIDP). Pesquisador do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação Meridional. Presidente da Comissão de
Educação Jurídica da OAB/SC. Publicou diversos livros e uma centena de artigos em coletâneas e revistas especializadas,
em especial sobre Ensino e Pesquisa em Direito e Teoria do Processo.
158
- ESG 4 . Outrossim, o regime ditatorial brasileiro possui algumas peculiaridades, que o
distanciam das demais ditaduras latino-americanas, onde pode-se citar a utilização do
direito como forma de legitimação do regime ditatorial. Essa utilização do direito se deu
através da criação dos chamados Atos Institucionais, que passaram a ser utilizados pelos
militares como forma de regulamentar os direitos do cidadão brasileiro durante o regime
de exceção.
Nesse sentido, passados 30 anos do fim da ditadura, parece relevante o resgate
histórico do período, principalmente no que tange especificamente aos Atos Institucionais
outorgados durante o período pelos militares, e refletir acerca da relação que foi
estabelecida com o Poder Judiciário a partir da edição desses Atos. O objetivo é o de
contribuir com os estudos e aprofundamentos acerca do que ocorreu no Brasil durante a
ditadura e possibilitar futuras reflexões acerca do regime e suas consequências, ainda que
de forma bem pontual e sem ter a pretensão de esgotar o assunto. Para isso o presente
trabalho, utilizando-se de uma pesquisa essencialmente bibliográfica, faz algumas breves
considerações acerca do período da história brasileira que antecede ao golpe de 1964, bem
como alguns aspectos que se considerou importantes sobre o regime. Em seguida abordase a supracitada especificidade, qual seja, a utilização do que se denomina de regime dos
Atos Institucionais. Por último, faz-se alguns apontamentos acerca do ocorrido com o Poder
Judiciário na época. Finalmente, parte-se para as Considerações Finais.
2. O PERÍODO PRÉ-GOLPE E O ESTABELECIMENTO DA DITADURA MILITAR
A ditadura militar brasileira (1964-1985) foi um regime de exceção estabelecido
pelas forças armadas do país em nome de uma alegada proteção frente à ameaça comunista
4
A esse respeito, cabe esclarecer que a doutrina da segurança nacional “[…] identificava, como seus inimigos internos,
determinados setores da sociedade, tidos como agentes do comunismo internacional. Disseminada pelos EUA logo
após a Segunda Guerra e desenvolvida no Brasil pela Escola Superior de Guerra (ESG), a partir de 1949, a Ideologia de
Segurança Nacional tornara-se peça chave da propaganda e das ações militares ocidentais contra o ‘expansionismo
vermelho’. A formação de lideranças civis e militares tinha como pressupostos a incapacidade governamental das elites
civis e, consequentemente, atribuía aos militares a missão de salvar o país da infiltração comunista.” (DOLHNIKOFF;
CAMPOS. Manual do candidato. 2001. p. 277.)
159
que se espalhava pelo continente latino-americano e restante do mundo. Denominada de
Revolução pelos militares, o intuito era o de resguardar a sociedade brasileira, sua família,
liberdade e religiosidade (em sua forma cristã), bem como sua democracia, salvando o país
da corrupção e subversão que supostamente acompanhariam os comunistas.
O cenário interno que enseja o golpe militar ocorrido em 1964 começa a se delinear,
resumidamente, a partir das décadas de 50 e 60, com o um aumento das pressões sociais e
o surgimento de novas formas de organização populares. Peculiaridades regionais, a
situação política e a disputa de poder acabaram por resultar em inquietações sociais
generalizadas. Com o passar do tempo, o aumento da população urbana em conjunto com
o êxodo rural, o endividamento externo, o déficit orçamentário da União, os elevados
índices de inflação e o aumento da concentração de renda resultam em uma onda de
reivindicações sociais.
Com a renúncia de Jânio Quadros em 25 de agosto de 1961, João Goulart assume a
presidência do país5, com poderes limitados em razão do parlamentarismo imposto pelos
militares e num contexto de mobilizações e pressões sociais até então desconhecidas no
país. Como plano de governo, Goulart estabelece como ideologia básica o nacionalismo e
as chamadas reformas de base, que incluem reforma agrária, urbana, bancária, fiscal e
educacional, além do direito de voto aos analfabetos. Tais reformas incluíam também
medidas de cunho nacionalistas como uma maior intervenção por parte do Estado e a
nacionalização de algumas empresas.6
Em plebiscito nacional ocorrido em janeiro de 1963 os brasileiros votam pela
revogação da emenda que impusera o parlamentarismo. Deflagrada a crise econômica
5
João Goulart encontrava-se fora do país, em visita a China, quando da renúncia de Jânio Quadros. Foi necessária uma
mobilização popular, denominada de Campanha pela Legalidade, para assegurar sua posse. Conforme exposto no livro
Brasil Nunca Mais: “Apontado como radical pela alta hierarquia das Forças Armadas, o vice-presidente João Goulart,
principal herdeiro do nacionalismo getulista da década de 50, teve seu nome impugnado pelos três ministros militares.
Contra esse veto, levantou-se uma ampla mobilização popular em todo o país. A reação mais enérgica partiu do Rio
Grande do Sul, onde o governador Leonel Brizola comandou uma forte pressão, nas ruas, para que fosse assegurada a
posse de Goulart. Receosos da guerra civil que se esboçava, os militares novamente recuaram, impondo, no entanto, o
estabelecimento do sistema parlamentarista de governo, que retirava poderes do presidente”. (ARQUIDIOCESE. Brasil:
Nunca Mais. 1986. p. 57)
6
Cfe. FAUSTO. História do Brasil. 2003. p. 447-448.
160
oriunda de governos anteriores, movimentos sociais passam a se organizar e a reivindicar
seus direitos. Ocorrem manifestações do Movimento Nacional dos Sargentos, das Ligas
Camponesas e algumas greves, inspiradas pelo próprio governo para aumentar a pressão
por reformas.
O presidente João Goulart passa a organizar uma série de comícios populares em
diferentes cidades do país onde anuncia o lançamento de decretos que dariam início às
reformas de base. Seu primeiro comício acontece em 13 de março de 1964, no Rio de
Janeiro, sendo considerado o início do fim de seu governo. Isso porque as medidas
presidenciais colocavam em risco o controle da elite, que vê seus privilégios ameaçados
pelas manifestações populares com a incorporação das massas à política do país e começam
a se organizar para oferecer oposição.
No dia 19 de março, em protesto ao comício presidencial, setores mais
conservadores, contando com o apoio de empresários7 e da Igreja Católica8, organizam em
São Paulo a primeira Marcha da Família com Deus pela Liberdade9, pregando o perigo da
postura anticristã, contra a família e comunista do governo federal10. Em seguida, contando
com apoio norte-americano, em 31 de março de 1964 tropas militares são deslocadas para
o Rio de Janeiro, deflagrando-se o golpe militar brasileiro.
Indicado pela junta militar que deflagrara o golpe, assume a presidência da república
o marechal Humberto Alencar Castelo Branco (1964-1967), na época chefe do Estado Maior
do Exército. Castelo Branco foi sucedido pelo general Artur da Costa e Silva (1967-1969),
militar de tendências mais duras e radicais11. Em virtude do afastamento deste último por
7
Interesses do capital nacional e estrangeiro ameaçado leva o empresariado a apoiar econômica e politicamente.
8
Setores da ala mais conservadora da Igreja Católica tiveram papel fundamental na mobilização que antecedeu o golpe
de 1964.
9
Segundo estimativas existentes na época, a Marcha do Rio de Janeiro contou com a participação de 500 mil pessoas,
tendo sido organizada em diferentes cidades do Brasil. Seu fundo estratégico consistia na manipulação dos sentimentos
religiosos da população, majoritariamente católica.
10
As tentativas de reforma passam a ser encaradas como tentativas de implantar o comunismo no país, quando na
verdade tratava-se apenas da modernização necessária para reduzir as desigualdades sociais, tão exacerbadas no país.
11 Conforme
esclarecem Miriam Dolhnikoff e Flávio de Campos, “Os militares distinguiam-se ainda em dois outros agrupamentos: a chamada “Sorbonne”,
como eram conhecidos os ideólogos da Escola Superior de Guerra (ESG), que forneceriam as bases doutrinárias para a intervenção político-social, e os representantes da “linhadura” que comandavam as principais unidades militares. Durante os vinte anos de ditadura, esses dois grupos disputaram o controle político do país e compuseram o núcleo do
161
motivos de saúde, foi formada uma Junta Governativa Provisória em 1969. Essa Junta foi
responsável pela edição da Emenda Constitucional n. º 1/196912, introduzindo modificações
no texto constitucional.13
Os anos seguintes foram de sistemáticas violações aos direitos humanos. Inúmeros
brasileiros foram presos, torturados, mortos e desaparecidos. Assim, em contrapartida as
violações, desrespeitos e retrocessos do período, surgem algumas iniciativas de resistência
a abusividade perpetrada pelas forças militares e seus apoiadores. Tais grupos são frutos
da repressão e da impossibilidade de oposição legal e de resistência civil, e são influenciados
pelas guerrilhas que haviam começado a se formar nos países latino-americanos vizinhos.
Dessa forma:
Em resposta à falta de alternativa para a oposição legal, grupos de esquerda começaram a
agir na clandestinidade e adotar táticas militares de guerrilha urbana e rural. Em setembro
de 1969, houve o primeiro ato espetacular da guerrilha urbana, o seqüestro do embaixador
norte-americano. Daí até o final do governo Médici, em 1974, forças da repressão e da
guerrilha se enfrentaram em batalha inglória e desigual. Aos seqüestros e assaltos a bancos
dos guerrilheiros, respondia a repressão com prisões arbitrárias, tortura sistemática de
presos, assassinatos. Opositores assassinados eram dados como desaparecidos ou mortos
em acidentes de carro. A imprensa era proibida de divulgar qualquer notícia que
contrariasse a versão das forças de segurança.14
O fato de as guerrilhas serem isoladas politicamente e divididas, além das sucessivas
mortes e desaparecimentos dos militantes que as compunham, fizeram com que os grupos
de luta armada começassem a desaparecer. Em 1972 a maioria dos grupos armados já não
existia. Seus líderes morreram em confronto com as forças militares ou sob tortura. Dessa
forma, todos os grupos que optaram pela luta armada, cedo ou tarde acabaram esfacelados
pelos militares, resultando na prisão, tortura, morte, “desaparecimento” e banimento de
centenas de militantes envolvidos. Na verdade, dada a falta de preparo da maioria dos
poder.”
(DOLHNIKOFF; CAMPOS. Op. cit. p. 271)
12
BRASIL.
Emenda
Constitucional
n.º
1,
de
17
de
outubro
de
1969.
Disponível
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc01-69.htm>
13
Essas alterações trazidas pela edição da EC n.º 1/1969 fazem com que alguns juristas defendam tratar-se, a bem da
verdade, de nova Constituição, debate este que não se entende como pertinente ao presente trabalho.
14
CARVALHO. Cidadania no Brasil. 2012. p. 162-163.
162
em:
jovens envolvidos, bem como a diferença de recursos disponíveis, tem-se que a esquerda
armada jamais constituiu ameaça política significativa ao regime, mas seus ataques deram
argumentos aos militares linha-dura, fortalecendo a opinião dos que defendiam uma maior
repressão.15
Em 1973 o general Ernesto Geisel toma posse, prometendo o início de uma distensão
política16, verdadeira liberalização do regime com uma abertura “lenta, gradual e restrita”.
Assim, apesar da repressão, uma nova conjuntura nacional começa a se caracterizar com o
crescimento das lutas populares e o isolamento político do regime, ao mesmo tempo em
que se agrava a situação econômica. Esse cenário tem como propulsores a promessa de
distensão por parte do general Geisel e as vitórias do MDB nas eleições de 1974, que apesar
de configurarem uma oposição consentida, mostram a existência de um movimento para
rearticulação política da sociedade.
Pessoas dos mais diversos segmentos da sociedade civil começam a se manifestar e
a se organizar por uma mudança de regime e pela redemocratização do estado brasileiro,
podendo-se citar entre eles professores, intelectuais, estudantes, artistas, religiosas,
sindicatos, associações de moradores e associações trabalhistas, grupos representando
parcelas mais vulneráveis da sociedade como negros, mulheres, pessoas com incapacidades
físicas, idosos, a impressa estrangeira e a imprensa nacional.
São exemplos de mudança no cenário político brasileiro os Pacotes de abril de 1977
e de junho de 1978, a Lei de Anistia de 1979, a Lei da Reforma Partidária também de 1979,
a EC n. º 15 de 1980 estabelecendo eleições diretas para Governadores, resultando já em
eleições diretas para Governadores no ano de 1982 e o movimento Diretas Já que tem início
em 1983, com a rejeição da PEC n.º 5/1983, apresentada pelo Deputado Federal Dante de
Oliveira.
15
Cfe. SKIDMORE. Brasil: de Castelo a Tancredo 1964-1985. 1989. p. 249.
16
A estratégia da distensão foi formulada pelo general Golbery. Quanto as razões de Geisel e Golbery para promoverem
a abertura provavelmente dizem respeito ao desgaste enfrentado pelo governo e os reflexos negativos da Ditadura
Militar nas forças armadas.
163
A luta pela normalização democrática e pela conquista do Estado Democrático de Direito
começara assim que se instalou o golpe de 1964 e especialmente após o AI 5, que foi o
instrumento mais autoritário da história política do Brasil. Tomara, porém, as ruas, a partir
da eleição dos Governadores em 1982. Intensificara-se, quando, no início de 1984, as
multidões acorreram entusiásticas e ordeiras aos comícios em prol da eleição direta do
Presidente da República, interpretando o sentimento da Nação, em busca do reequilíbrio da
vida nacional, que só poderia consubstanciar-se numa nova ordem constitucional que
refizesse o pacto político social.17
Ainda que rejeitada, a EC n. º 5/1983 ensejou a eleição indireta de Tancredo Neves
em 1985, encerrando duas décadas de ditadura militar no Brasil. Com o seu falecimento,
assumiu o seu vice, José Sarney, que apesar de seus laços com o governo autoritário, deu
continuidade a abertura democrática, instituindo, através do Decreto n. º 91.450/198518 a
Comissão provisória de Estudos Constitucionais, conhecida por Comissão Afonso Arinos,
seu presidente, e buscando cumprir o disposto na EC n. º 26/1985 19 , determinou a
convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte.20
3. O REGIME DOS ATOS INSTITUCIONAIS
O período de exceção no Brasil, diferentemente dos outros regimes militares latinoamericanos 21 , se caracterizou pelo uso do aparato legal como forma de sustentação e
legitimação perante à população civil, mantendo, com pequenas exceções, o Congresso
Nacional em funcionamento.
Durante o regime, o sistema partidário organizava-se em dois partidos, a Aliança
Renovadora Nacional – ARENA –, partido apoiado pela situação (militares), e o Movimento
17
SILVA. Curso de direito constitucional positivo. 2010. p. 88.
18
BRASIL.
Decreto
n.º
91.450,
de
18
de
julho
de
1985.
Disponível
em:
<http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaNormas.action?numero=91450&tipo_norma=DEC&data=19850718&link=s
>
19
BRASIL. Emenda Constitucional n.º 26, de 27 de novembro de 1985. Disponível
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc26-85.htm>.
20
LENZA. Direito constitucional esquematizado. 2013. p. 128-129.
21
A Revolução Cubana ocorreu em 1959. Por sua vez, pode-se citar como exemplo das demais ditaduras latino-americanas
as estabelecidas em 1954 na Guatemala e no Paraguai, em 1966 na Argentina, em 1968 no Peru, em 1973 no Uruguai e
no Chile, em 1978 na República Dominicana, entre outras.
164
em:
Democrático Brasileiro – MDB –, considerada oposição consentida. Dessa forma, mantevese a aparência de legalidade, pois os membros do Congresso Nacional, frente às constantes
ameaças e tentativas de coerção por parte dos militares, não conseguiam exercer seus
mandatos de forma livre e imparcial.
De tal sorte, ainda que com a manutenção do Congresso Nacional e a existência do
bipartidarismo, os militares é quem legislavam concretamente através dos Atos
Institucionais e Ato complementares, estabelecendo-se o que passou a ser denominado de
Regime dos Atos Institucionais22.
Segundo relatório da Comissão Nacional da Verdade – CNV, entregue a Presidência
do Brasil em 10 de dezembro de 2014
A ordem jurídica do regime militar era híbrida: ainda vigorava a Constituição de 1946,
porém, nos limites estabelecidos pelos atos institucionais que passaram a ser editados. Em
outras palavras, ao lado de uma ordem de base constitucional, de caráter permanente, havia
uma ordem de base institucional, de caráter transitório, que vigoraria o tempo que fosse
necessário para consolidar o projeto político dos militares. As Constituições de 1946 e de
1967 – alterada pela Emenda Constitucional no 1/1969 – e os atos institucionais editados
durante o regime eram tidos pelos militares como normas fundacionais, a partir das quais
se construiu o ordenamento jurídico da ditadura.23
Ao todo, durante o regime ditatorial, foram editados 17 Atos institucionais 24 . Os
cinco primeiros atos são os mais conhecidos da população, em virtude das mudanças
estabelecidas. O ato inaugural, Ato Institucional n. º 125, de 09 de abril de 1964, redigido
por Francisco Campos26, estabelece, principalmente, a eleição indireta para Presidente. É
nele que o governo militar deixa clara sua visão de que o regime, a bem da verdade, se trata
22
Nesse sentido, vale ressaltar que os Atos Institucionais foram normas arbitrariamente editadas entre os anos de 1964
e 1969 pelos comandantes das forças armadas ou pelo presidente, sem qualquer consulta popular ou participação dos
membros do poder legislativo, eleitos como representantes do povo.
23
BRASIL. Relatório da Comissão Nacional da Verdade. 2014. p. 935.
24
BRASIL. Atos Institucionais 1 a 17. Disponíveis em: <http://www4.planalto.gov.br/legislacao/legislacao-historica/atosinstitucionais>
25
BRASIL. Ato Institucional n.º 1, de 9 de abril de 1964. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br//CCIVIL_03/AIT/ait01-64.htm>
26
Francisco Campos foi o responsável pela elaboração e redação da Constituição de 1937, considerada por muitos
doutrinadores como fascista.
165
de uma Revolução. Acerca desse entendimento, relevante a transcrição, in verbis, do seu
preâmbulo:
É indispensável fixar o conceito do movimento civil e militar que acaba de abrir ao Brasil uma
nova perspectiva sobre o seu futuro. O que houve e continuará a haver neste momento, não
só no espírito e no comportamento das classes armadas, como na opinião pública nacional,
é uma autêntica revolução.
A revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz,
não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação.
A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela
eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder
Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si
mesma. Ela destitui o governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo.
Nela se contém a força normativa, inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas
sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória. Os Chefes da
revolução vitoriosa, graças à ação das Forças Armadas e ao apoio inequívoco da Nação,
representam o Povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte, de que o Povo é o único
titular. O Ato Institucional que é hoje editado pelos Comandantes-em-Chefe do Exército, da
Marinha e da Aeronáutica, em nome da revolução que se tornou vitoriosa com o apoio da
Nação na sua quase totalidade, se destina a assegurar ao novo governo a ser instituído, os
meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do
Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direto e imediato, os graves e urgentes
problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da
nossa Pátria. A revolução vitoriosa necessita de se institucionalizar e se apressa pela sua
institucionalização a limitar os plenos poderes de que efetivamente dispõe.
O presente Ato institucional só poderia ser editado pela revolução vitoriosa, representada
pelos Comandos em Chefe das três Armas que respondem, no momento, pela realização dos
objetivos revolucionários, cuja frustração estão decididas a impedir. Os processos
constitucionais não funcionaram para destituir o governo, que deliberadamente se dispunha
a bolchevizar o País. Destituído pela revolução, só a esta cabe ditar as normas e os processos
de constituição do novo governo e atribuir-lhe os poderes ou os instrumentos jurídicos que
lhe assegurem o exercício do Poder no exclusivo interesse do País. Para demonstrar que não
pretendemos radicalizar o processo revolucionário, decidimos manter a Constituição de
1946, limitando-nos a modificá-la, apenas, na parte relativa aos poderes do Presidente da
República, a fim de que este possa cumprir a missão de restaurar no Brasil a ordem
econômica e financeira e tomar as urgentes medidas destinadas a drenar o bolsão
comunista, cuja purulência já se havia infiltrado não só na cúpula do governo como nas suas
dependências administrativas. Para reduzir ainda mais os plenos poderes de que se acha
investida a revolução vitoriosa, resolvemos, igualmente, manter o Congresso Nacional, com
as reservas relativas aos seus poderes, constantes do presente Ato Institucional.
166
Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este
é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente
a todas as revoluções, a sua legitimação.
Em nome da revolução vitoriosa, e no intuito de consolidar a sua vitória, de maneira a
assegurar a realização dos seus objetivos e garantir ao País um governo capaz de atender
aos anseios do povo brasileiro, o Comando Supremo da Revolução, representado pelos
Comandantes-em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica resolve editar o
seguinte.27 (grifo nosso)
O AI-1 mantém a Constituição anterior de 1946, alterando-a, vez que modifica
aspectos que dizem respeito às eleições, projetos de emendas constitucionais para
alteração da Constituição, conferindo, no geral, grandes poderes ao Presidente, que passa
a poder decretar estado de sítio, contar com poderes para alterar a Constituição, suspender
direitos políticos e cassar mandatos. Assim, o AI-1 além de suspender as garantias de
vitaliciedade e estabilidade, vai mais além ao retirar do judiciário o poder de apreciar a
suspenção e ou cassação dos direitos políticos, como se observa da leitura do próprio texto
legal:
Art. 7º - Ficam suspensas, por seis (6) meses, as garantias constitucionais ou legais de
vitaliciedade e estabilidade.
[...]
§ 4º - O controle jurisdicional desses atos limitar-se-á ao exame de formalidades extrínsecas,
vedada a apreciação dos fatos que o motivaram, bem como da sua conveniência ou
oportunidade.28
O AI-1 defere ainda ao Presidente a possibilidade de suspender direitos políticos e
cassar mandatos legislativos sem a necessidade de apreciação do ato por parte do Poder
Judiciário, conforme segue:
Art. 10 - No interesse da paz e da honra nacional, e sem as limitações previstas na
Constituição, os Comandantes-em-Chefe, que editam o presente Ato, poderão suspender os
direitos políticos pelo prazo de dez (10) anos e cassar mandatos legislativos federais,
estaduais e municipais, excluída a apreciação judicial desses atos.29
27
BRASIL. Ato Institucional n.º 1, de 9 de abril de 1964.
28
Idem. Ibidem.
29
Idem. Ibidem.
167
Esse ato deu ensejo ao início de algumas cassações, como a do ex-presidente e na
época senador Juscelino Kubitschek de Oliveira 30 , que ensaiava possível candidatura
presidencial para o ano de 1965 e era considerado, pelas forças armados, extremamente
popular junto aos cidadãos brasileiros.
Sobre o AI-1, assim se manifesta a Comissão Nacional da Verdade:
Ocorreram dispensas, reformas, aposentadorias ou demissões sumárias de quem, a juízo da
ditadura militar, tivesse atentado contra a segurança do país, o regime democrático e a
probidade da administração pública. Ao presidente da República, o AI-1 conferia poderes
larguíssimos, incluindo o de cassar mandatos, suspender direitos políticos, intervir nos
estados, decretar estado de sítio e emendar a própria Constituição. O controle judicial
manteve-se restrito a formalidades, ficando excluídos de qualquer apreciação judicial os
atos praticados com fundamento no ato institucional.31
Já no ano seguinte, em 27 de outubro de 1965, tem-se a expedição do Ato
Institucional n. º 2 32 . Entende-se como necessário realizar a integral transcrição do
preâmbulo do AI-2 para uma maior compreensão do contexto da época:
À NAÇÃO
A Revolução é um movimento que veio da inspiração do povo brasileiro para atender às suas
aspirações mais legítimas: erradicar uma situação e uni Governo que afundavam o País na
corrupção e na subversão.
No preâmbulo do Ato que iniciou a institucionalização, do movimento de 31 de março de
1964 foi dito que o que houve e continuará a haver, não só no espírito e no comportamento
das classes armadas, mas também na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução.
E frisou-se que:
a) ela se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que traduz, não o interesse
e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação;
b) a revolução investe-se, por isso, no exercício do Poder Constituinte, legitimando-se por si
mesma;
30
ÍNTEGRA do último discurso de Juscelino Kubitschek como senador, na véspera da cassação. Disponível em:
<http://www12.senado.leg.br/jornal/edicoes/2012/12/21/integra-do-ultimo-discurso-de-juscelino-kubitschek-comosenador-na-vespera-da-cassacao-1>
31
BRASIL. Relatório da Comissão Nacional da Verdade. 2014. p. 936.
32
BRASIL.
Ato
Institucional
n.º
2,
de
27
<http://www.planalto.gov.br//CCIVIL_03/AIT/ait-02-65.htm>
168
de
outubro
de
1965.
Disponível
em:
c) edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua
vitória, pois graças à ação das forças armadas e ao apoio inequívoco da Nação, representa o
povo e em seu nome exerce o Poder Constituinte de que o povo é o único titular.
Não se disse que a revolução foi, mas que é e continuará. Assim o seu Poder Constituinte
não se exauriu, tanto é ele próprio do processo revolucionário, que tem de ser dinâmico
para atingir os seus objetivos. Acentuou-se, por isso, no esquema daqueles conceitos,
traduzindo uma realidade incontestável de Direito Público, o poder institucionalizante de
que a revolução é dotada para fazer vingar os princípios em nome dos quais a Nação se
levantou contra a situação anterior.
A autolimitação que a revolução se impôs no Ato institucional, de 9 de abril de 1964 não
significa, portanto, que tendo poderes para limitar-se, se tenha negado a si mesma por essa
limitação, ou se tenha despojado da carga de poder que lhe é inerente como movimento.
Por isso se declarou, textualmente, que "os processos constitucionais não funcionaram para
destituir o Governo que deliberadamente se dispunha a bolchevizar o País", mas se
acrescentou, desde logo, que "destituído pela revolução, só a esta cabe ditar as normas e os
processos de constituição do novo Governo e atribuir-lhe os poderes ou os instrumentos
jurídicos que lhe assegurem o exercício do poder no exclusivo interesse do País".
A revolução está viva e não retrocede. Tem promovido reformas e vai continuar a
empreendê-las, insistindo patrioticamente em seus propósitos de recuperação econômica,
financeira, política e moral do Brasil. Para isto precisa de tranqüilidade. Agitadores de vários
matizes e elementos da situação eliminada teimam, entretanto, em se valer do fato de haver
ela reduzido a curto tempo o seu período de indispensável restrição a certas garantias
constitucionais, e já ameaçam e desafiam a própria ordem revolucionária, precisamente no
momento em que esta, atenta aos problemas administrativos, procura colocar o povo na
prática e na disciplina do exercício democrático. Democracia supõe liberdade, mas não
exclui responsabilidade nem importa em licença para contrariar a própria vocação política
da Nação. Não se pode desconstituir a revolução, implantada para restabelecer a paz,
promover o bem-estar do povo e preservar a honra nacional.33
Em seu artigo 6° e parágrafos seguintes, o AI-2 eleva para dezesseis o número de
ministros que compõem o Supremo Tribunal Federal – STF34, introduz novamente a figura
do Juiz Federal, extinta pela Constituição de 1937, que passa a ser indicado politicamente,
ao passo que anteriormente sua nomeação se dava pelo Presidente da República.
Dando continuidade ao estabelecimento de mudanças que os militares entendiam
cabíveis, o AI-2 transfere a competência para processar e julgar os crimes contra a
33
BRASIL. Ato Institucional n.º 2, de 27 de outubro de 1965.
34
O STF contava anteriormente com 11 ministros, quantidade determinada pelo Decreto n.º 19.656/1931.
169
segurança nacional para a Justiça Militar, alterando o parágrafo 1º do artigo 108 da
Constituição de 1947, que passou a vigorar com a seguinte redação:
Art. 108 - A Justiça Militar compete processar e julgar, nos crimes militares definidos em lei,
os militares e as pessoas que lhes são, assemelhadas.
§ 1º - Esse foro especial poderá estender-se aos civis, nos casos expressos em lei para
repressão de crimes contra a segurança nacional ou as instituições militares.35
O AI-2 ainda em seu artigo 14, mantém a suspenção das garantias de vitaliciedade,
inamovibilidade, estabilidade e o exercício de funções por tempo certo, extinguindo os 13
Partidos Políticos existentes à época no artigo 18, mantendo também as hipóteses de
exclusão da apreciação de certos atos por parte do Poder Judiciário em seu artigo 19.
Segundo a Comissão Nacional da Verdade, essas alterações:
[...] demonstram o intento deliberado do regime ditatorial de alinhar a magistratura federal
de primeira instância com a ideologia e a burocracia do regime. Não por acaso, a
magistratura federal tinha por atribuição julgar, mesmo que não exaustivamente, as
seguintes matérias: os crimes políticos e os praticados em detrimento de bens, serviços ou
interesse da União ou de suas entidades autárquicas, ressalvada a competência da Justiça
Militar e da Justiça Eleitoral; os crimes contra a organização do trabalho e o exercício do
direito de greve e os HC em matéria criminal de sua competência ou quando a coação
proviesse de autoridade federal não subordinada a órgão superior da Justiça da União. O AI2 deveria vigorar até a posse do presidente da República a ser eleito em 3 de outubro de
1966.36
Doravante, tem-se o AI n. º 3, de 5 de fevereiro de 196637, que cuida das eleições
ocorridas no mesmo ano, importantes considerando-se a manutenção do poder pelos
militares. No final do ano de 1966, tem-se o Ato institucional n. º 4 de 12 de dezembro de
196638, que convoca o Congresso Nacional para apreciar projeto de Constituição proposto
pelo Presidente.
Tem-se, dessa forma, a promulgação de uma Constituição pelo governo militar,
35
BRASIL. Ato Institucional n.º 2, de 27 de outubro de 1965.
36
BRASIL. Relatório da Comissão Nacional da Verdade. 2014. p. 936-937.
37
BRASIL.
Ato
Institucional
n.º
3,
de
5
de
<http://www.planalto.gov.br//CCIVIL_03/AIT/ait-03-66.htm>
fevereiro
de
1966.
Disponível
em:
38
BRASIL.
Ato
Institucional
n.º
4,
de
12
de
<http://www.planalto.gov.br//CCIVIL_03/AIT/ait-04-66.htm>
dezembro
de
1966.
Disponível
em:
170
entrando em vigor quando da posse como presidente do Marechal Arthur da Costa e Silva.
Sobre essa Constituição, afirma José Afonso da Silva:
Sofreu ela poderosa influência da Carta Política de 1937, cujas características básicas
assimilou. Preocupou-se fundamentalmente com a segurança nacional. Deu mais poderes à
União e ao Presidente da República. Reformulou, em termos mais nítidos e rigorosos,
sistema tributário nacional e a discriminação de rendas, ampliando a técnica do federalismo
cooperativo, consistente na participação de uma entidade na receita de outra, com
acentuada centralização. Atualizou o sistema orçamentário, propiciando a técnica do
orçamento-programa e os programas plurianuais de investimento. Instituiu normas de
política fiscal, tendo em vista o desenvolvimento e o combate à inflação. Reduziu a
autonomia individual, permitindo suspensão de direitos e de garantias constitucionais, no
que se revela mais autoritária do que as anteriores, salvo a de 1937. Em geral, é menos
intervencionista do que a de 1946, mas, em relação a esta, avançou
no que tange à
limitação do direito de propriedade, autorizando a desapropriação mediante pagamento de
indenização por títulos da dívida pública, para fins de reforma agrária. Definiu mais
eficazmente o direito dos trabalhadores.39
Por fim, entre as menções aqui cabíveis, tem-se o mais conhecido e draconiano dos
Atos Institucionais, o AI n. º 5, de 13 de dezembro de 196840, que marca o início do período
mais duro da ditadura militar brasileira. O AI-5 é assim considerado pois suspende a garantia
do habeas corpus, dispões dos poderes do Presidente para decretar estado de sítio,
intervenção federal, suspensão de direitos políticos e restrição ao exercício de qualquer
direito público ou privado; cassação de mandatos eletivos, voltando a excluir seus atos da
apreciação por parte do Poder Judiciário e podendo decretar recesso no Congresso
Nacional, Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais. Ainda, em conjunto com o AI n. º
5, foi editado o Ato Complementar n. º 3841, determinando o fechamento do Congresso
Nacional, que assim permaneceu por quase um ano.
Após a edição do AI-5, em dezembro de 1968 é anunciada a primeira lista de
cassações, contendo o nome de 11 deputados federais. Em 19 de janeiro de 1969, é editada
39
SILVA. Op. cit. p. 87.
40
BRASIL.
Ato
Institucional
n.º
5,
de
13
de
<http://www.planalto.gov.br//CCIVIL_03/AIT/ait-05-68.htm>
41
BRASIL.
Ato
Complementar
n.º
38,
de
13
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ACP/acp-38-68.htm>
171
de
dezembro
dezembro
de
de
1968.
Disponível
em:
1968.
Disponível
em:
mais uma lista, contendo o nome de 2 senadores e 35 deputados federais. Foram
aposentados ainda três ministros do STF: Hermes Lima, Vítor Nunes Leal e Evandro Lins e
Silva, seguidos por uma saída voluntária do presidente do tribunal na época, Antônio
Gonçalves de Oliveira e do ministro Antônio Carlos Lafayette de Andrada, bem como um
ministro do Superior Tribunal Militar, Peri Constant Bevilacqua. Pode-se considerar que as
cassações dos ministros geraram grande temor nos demais juízes, eis que viram
concretizados, por meio de cassações de juízes e ministros, o controle do Poder Judiciário
por parte dos militares.
Outrossim, artistas e intelectuais passaram a ser censurados e perseguidos.
Professores como Fernando Henrique Cardoso, Caio Prado Júnior e Florestan Fernandes
foram expulsos de suas Universidades. Ao todo, 333 representantes do Poder Legislativo
tiveram seus direitos políticos suspensos apenas no ano de 1969 (78 deputados federais,
cinco senadores, 151 deputados estaduais, 22 prefeitos e 23 vereadores).
4. SUPREMACIA DO EXECUTIVO E O PODER JUDICIÁRIO
Parece que a partir das edições dos Atos Institucionais, passou-se a ter, no Brasil,
uma preponderância do Poder Executivo sobre os demais poderes, que ficavam sob o
comando direto do Presidente. Verifica-se, portanto, uma utilização do Poder Executivo
para instrumentalizar o regime militar, desrespeitando a ideia clássica de separação de
poderes, que deveriam operar de forma harmônica e independente entre si, oferecendo
freios e contrapesos quando de suas atuações em uma sociedade democrática.
Esse entendimento é compartilhado pela Comissão Nacional da Verdade, que
argumenta que os 17 Atos editados revelam um processo de fortalecimento de um dos
poderes, o do Executivo, que foi se sobrepondo aos demais gradualmente.42
Com efeito, não se estabeleceu limite ao exercício do Poder Executivo, nem se
respeitou a autonomia dos poderes, pois o Poder Legislativo e Judiciário viram-se
42
Cfe. BRASIL. Relatório da Comissão Nacional da Verdade. 2014. p. 936.
172
submetidos ao Poder Executivo, controlado pelos militares, além de terem de obedecer ao
disposto nos Atos Institucionais e seus complementos, assim como o estabelecido na Lei de
Segurança Nacional.
A supremacia do Executivo pode ser entendida como um reflexo da perda de força
política do Legislativo, cujo voto foi silenciado. Por sua vez, por meio de contenções legais,
ficou afastada do Poder Judiciário sua competência e possibilidades de atuação quando do
cerceamento de direitos e garantias fundamentais. Assim, as violações ocorridas em
decorrência de omissões/ações do Poder Executivo eram apreciadas de forma errática, pois
algumas vezes inclusive sem qualquer apreciação, dado o esvaziamento das prerrogativas
e competências do Poder Judiciário, que não pode fazer valer suas atribuições
constitucionais em todo o seu potencial.
Conforme relatório da Comissão Nacional da Verdade:
[...] durante o regime militar, num processo iniciado em 1964 e concluído em 1969,
restringiu-se, de um lado, o acesso ao Poder Judiciário, ao impedir-se o controle judicial
sobre determinadas matérias; de outro, possibilitou-se a interferência, pelo presidente da
República, na estrutura e na composição das instituições judiciárias, mediante criação e
extinção de cargos e aposentadoria de magistrados.43
O processo de esvaziamento do Poder Judiciário e fortalecimento do Executivo pode
ainda ser observado através do Decreto Lei n.º 898, de 21 de setembro de 196944, que
institui a Lei de Segurança Nacional. Essa lei Define os crimes contra a segurança nacional,
a ordem política e social, estabelece seu processo e julgamento e dá outras providências. A
Lei de Segurança Nacional prevê para os crimes nela listados diversos tipos de penas, como
a de detenção, reclusão, prisão perpétua e até pena de morte nos casos dos crimes que
resultassem em falecimento. Estabelece ainda a competência da Justiça Militar para julgar
esses crimes, ficando sujeitos ao foro militar tanto os militares quanto os civis.
Nesse bojo, entende-se que a atuação dos ministros do STF à época deu-se de acordo
43
BRASIL. Relatório da Comissão Nacional da Verdade. 2014. p. 939.
44
BRASIL.
Decreto
Lei
n.º
898,
de
21
de
setembro
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1965-1988/Del0898.htm>
173
de
1969.
Disponível
em:
com o contexto político e suas possibilidades de atuação, vez que sua competência foi
gradualmente diminuída e pelo fato de encontrarem-se sob a égide de um Executivo
pautado por preocupações com a segurança nacional, sua proteção e defesa, e a contenção
do comunismo. Dessa forma, submisso ao Poder Executivo, o STF revela atuação errática,
com uma acentuada inconstância nos seus posicionamentos, proferindo decisões
antagônicas, hora a favor, hora contra.
Sobre a atuação do STF durante a ditadura militar, o relatório da Comissão Nacional
da Verdade assim disciplina:
No âmbito do STF, verificaram-se três tipos de atitudes: num primeiro momento, o STF
omitiu-se, não conhecendo pedidos de habeas corpus em que a autoridade coatora fosse
militar; em etapa posterior, porém, passou não somente a conhecê-los como também, no
mérito, a conceder a ordem, deferindo, entre o golpe de 1964 e as vésperas da entrada em
vigor do AI-5, a maioria dos pedidos. Com a vigência do AI-5, porém, o STF, impossibilitado
agora de conhecer pedidos de habeas corpus impetrados por acusados dos crimes previstos
no ato institucional, foi reduzido, nessa matéria, à condição de ator secundário, a quem,
quando provocado, na maioria das vezes se declarava incompetente. No sistema de justiça
do regime inaugurado em 1964, o protagonismo em tudo que dissesse respeito aos crimes
contra a segurança nacional passou a ser, depois do AI-5, da Justiça Militar. Isso significou
submeter as pessoas acusadas de crimes previstos no artigo 10 do AI-5 ao julgamento por
juízes que tendiam a orientar-se por aquilo que julgavam ser interessante, conveniente e
oportuno para a dita “revolução”.45
Com efeito, com as alterações introduzidas pelos Atos Institucionais, o protagonismo
passou a pertencer à Justiça Militar, principalmente a partir da edição do AI-2, processando
e julgando civis e militares que tivessem incorrido nos crimes tipificados pela Lei de
Segurança Nacional. A Justiça Militar foi a responsável pela execução de perseguições e
punições políticas durante a ditadura militar, tendo, entre outros, aplicado a Lei de Anistia46
aos militares e se omitido nos casos de violações aos direitos humanos de que tomava
conhecimento. Sobre a Justiça Militar, tem-se que esta
Com a incorporação das alterações promovidas pelo Decreto-Lei no 1.003/1969, que
institucionalizou as punições políticas, a Justiça Militar ampliou formalmente suas
45
BRASIL. Relatório da Comissão Nacional da Verdade. 2014. p. 956.
46
BRASIL. Lei 6.683, de 28 de agosto de 1979. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6683.htm>
174
atribuições, passando a competir-lhe o processamento e o julgamento de civis incursos em
crimes contra a segurança nacional e as instituições militares. Com isso, tornou-se uma
genuína retaguarda judicial para a burocracia e para a repressão ditatoriais, mostrando-se,
muitas vezes, conivente ou omissa em relação às denúncias de graves violações de direitos
humanos.47
Por sua vez, a Justiça Comum foi chamada a pronunciar-se em ações propostas por
vítimas ou seus familiares, como na ação ajuizada pelos familiares de Vladimir Herzog e os
de Julia Gomes Lund e outros familiares de combatentes que desapareceram quando do
episódio da Guerrilha do Araguaia48.
Acerca da atuação da Justiça comum estadual e federal, a Comissão Nacional da
Verdade vislumbrou
[...] um significativo abuso do direito de defesa por parte da União e dos agentes da
repressão processados. Observou-se, também, um comportamento dos órgãos judicantes –
notadamente, das instâncias superiores –, no mais das vezes, pautado na interpretação do
STF, que persiste, ainda na atualidade, por entender a Lei da Anistia como um óbice ao
processamento e à apuração de graves violações de direitos humanos perpetradas pelos
agentes da repressão durante a ditadura.49
O relatório da Comissão Nacional da Verdade encerra suas considerações sobre o
tema entendendo que durante a ditadura militar, as decisões do Poder Judiciário refletiam
seu tempo e seus senhores, em uma sociedade repressiva e violenta. Os magistrados que
permaneceram como tais no Poder Judiciário frequentemente eram parte da estrutura
militar e tinham clareza das circunstâncias em que haviam sido ungidos, interpretando e
aplicando o ordenamento em consonância com o regime militar.50
Sobre a atuação dos magistrados em geral, vale apenas frisar que no Brasil, país de
dimensões continentais, os efeitos do período de exceção foram sentidos de forma
diferente, pois a atuação militar não se deu em todos as regiões do país da mesma maneira
e com a mesma intensidade, não se podendo falar, portanto, em uma única visão acerca da
47
BRASIL. Relatório da Comissão Nacional da Verdade. 2014. p. 948.
48 A Guerrilha do Araguaia foi um movimento de resistência armada à ditadura militar brasileira. A Guerrilha foi organizada por membros do Partido Comunista do Brasil – PCdoB,
que se estabeleceu nas margens do rio Araguaia, nos estados do Pará, Maranhão e Goiás, entre o final da década de 60 e início da década de 70.
49
BRASIL. Relatório da Comissão Nacional da Verdade. 2014. p. 957.
50
Cfe. BRASIL. Relatório da Comissão Nacional da Verdade. 2014. p. 957.
175
atuação do poder judiciário durante o período de exceção.
Acerca da atuação dos advogados, o mesmo pode ser dito, uma vez que alguns
profissionais se viram intrinsecamente envolvidos pela defesa dos direitos violados e outros
em nada participaram. Todavia, não há como se negar que a profissão de advogado,
umbilicalmente ligada à administração da justiça, viu-se alvo do interesse militar em
diversos momentos.
Em documento que trata de sua autonomia51, a Ordem dos Advogados do Brasil –
OAB –, considera que durante a ditadura militar ocorreram duas investidas contra a
autonomia da Ordem, vez que as forças armadas tentaram submetê-la ao controle direto
do Poder Executivo. A primeira tentativa teria sido quando do Decreto-lei n. º 200, de 25 de
fevereiro de 196752. O Decreto tratava de reforma administrativa das Autarquias, sendo
que o Decreto n. º 60.900, de 26 de junho de 196753, vinculou a OAB ao Ministério do
Trabalho e da Previdência Social, em flagrante tentativa de lhe retirar a autonomia. Em
decisão publicada no ano seguinte no Diário Oficial da União – DOU – de 21 de outubro de
1968, considerou-se não aplicar à Ordem a legislação referente às Autarquias, tendo em
vista o disposto no parágrafo 1º do artigo 139 da Lei n. º 4.215/6354, o Estatuto da OAB
vigente na época, que disciplinava não se aplicar à OAB disposições legais referentes às
autarquias ou entidades paraestatais.
A segunda tentativa teria se dado quando do Decreto n. º 74.000/197455, que mais
uma vez vinculava o Conselho Federal e Conselhos Seccionais da Ordem dos Advogados do
Brasil ao Ministério do Trabalho. Dessa vez, entretanto, a vinculação perdurou por alguns
51
A
QUESTÃO
da
autonomia.
<http://www.oab.org.br/historiaoab/links_internos/primanos_questaoauto.htm>
52
BRASIL. Decreto-lei n.º 200, de 25 de fevereiro de 1967. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decretolei/Del0200.htm>
53
BRASIL.
Decreto
n.º
60.900,
de
26
de
junho
http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/decreto/1950-1969/D60900.htm>
54
BRASIL. Lei n.º 4.215, de 27 de abril de 1963. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/19501969/L4215.htm>
55
BRASIL.
Decreto
74.000,
de
1º
de
maio
de
1975.
<http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=187999&norma=203431>
176
de
Disponível
1967.
Disponível
Disponível
em:
em:
<
em:
anos, sendo retirada apenas em 14 de fevereiro de 1978, com publicação no DOU de
parecer que desligava a Ordem de sua vinculação governamental.
Essas situações podem ser vistas como tentativas de submissão dos advogados ao
Poder Executivo, que poderia reprimi-los em sua atuação, retirando-lhes a autonomia
quando do exercício da profissão. Assim, nessas ocasiões de vinculação ao Executivo, os
advogados tiveram que passar a ponderar acerca da prática da advocacia, além de, em
alguns casos, sofrerem ameaças em razão de seu exercício, mesmo em situações em que a
independência do exercício da profissão não havia sido subtraída.
À época, os advogados encontravam-se num contexto em que sua atuação
profissional mostrava-se extremamente necessário, vez que o período era pautado pelo
controle estatal, pela censura, por punições e cerceamento de direitos, por torturas,
prisões, assassinatos e desaparecimentos, assim como diversas outras arbitrariedades, sem
obediência aos princípios máximos do contraditório e da ampla defesa.
É esse, portanto, um contexto em que o papel do operador do direito se vê
diminuído, ainda que não tenha desaparecido completamente, uma vez que muitos
profissionais, apesar das dificuldades, persistiram na tentativa de oferecer algum respaldo
legal para minorar o sofrimento daqueles que se viram impactados pelo regime, na forma
das prisões ilegais, torturas, desaparecimento, entre outros.
A redemocratização trouxe consigo à promulgação de uma nova Constituição,
apelidada de cidadã. Essa Constituição engloba em seu texto a proteção de uma gama
imensa de direitos e garantias, restabelecendo o Estado de Direito e auferindo um
panorama de ascensão ao Poder Judiciário, pois, ciente dos problemas enfrentados por este
Poder durante a ditadura, o Constituinte positivou no texto máximo uma maior autonomia
e independência ao Judiciário nos artigos 92 a 10056. Também deu nova feição ao Ministério
Público, atribuindo-lhe a guarda da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses
56
Sobre o Poder Judiciário na Constituição de 1988 ver: RODRIGUES; LAMY. Teoria Geral do Processo. 2016. p. 259-298.
177
sociais e individuais indisponíveis57. Finalizando, o texto constitucional, em seu artigo 133,
positivou no texto constitucional a importância do exercício da advocacia, pois considerou
que a figura do advogado como indispensável à administração da justiça 58 , situação
reforçada pelo Estatuto da Advocacia e da OAB editado em 199459.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O regime ditatorial brasileiro, que perdurou por duas décadas, foi um período de
cerceamento de liberdades políticas e individuais, com graves violações aos direitos
humanos. Diferentemente da sucessão de regimes militares que dominaram o restante da
América Latina, no Brasil manteve-se a aparência de legalidade e de funcionamento das
instituições democráticas.
Como se pode observar da leitura do presente artigo, a validade dos Atos
Institucionais não adivinha de obedecerem a um processo legislativo democrático, no qual
os representantes regularmente eleitos por sufrágio universal fariam ouvir, ainda que
apenas teoricamente, as demandas de seus eleitores. A validade dos Atos era uma
decorrência do poderio militar, das forças armadas que se encontravam por trás da
formulação e edição desses Atos, utilizados como um mecanismo de sustentação do
regime, auferindo-lhe fundamentação jurídica, suportando a ditadura legalmente e assim,
combatendo manifestações populares.
Os Atos editados pelos militares, portanto, apesar de respaldados legalmente,
careciam de legitimidade popular, podendo, inclusive, serem considerados moralmente
injustos, pois não contavam com o aval do povo, detentor do poder soberano em uma
democracia. Esses Atos retiraram do Legislativo a competência para legislar, outorgando-a
ao Presidente da República, ocorrendo o fenômeno do fortalecimento do Executivo e
consequente esvaziamento dos demais poderes.
57
Sobre o Ministério Público na Constituição de 1988 ver: RODRIGUES; LAMY. Op. cit. p. 300-308.
58
Sobre a advocacia na Constituição de 1988 e na Lei n.º 8.906/1994 ver: RODRIGUES; LAMY. Op. cit. p. 311-322.
59
BRASIL. Lei n.º 8.906, de 4 de julho de 1994. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8906.htm>
178
Nesse bojo, modifica-se a relação existente entre os poderes, que perdem sua
autonomia. Especificamente no tocante ao Poder Judiciário, observou-se toda uma
modificação em sua competência e atuação, que se deslocou em grande parte para a Justiça
Militar, ferindo as competências constitucionalmente outorgadas.
REFERÊNCIAS DAS FONTES CITADAS
A
QUESTÃO
da
autonomia.
Disponível
em:
<http://www.oab.org.br/historiaoab/links_internos/primanos_questaoauto.htm>. Acesso
em 30 jun. 2016.
ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil: Nunca Mais. Um relato para a história. 13. ed.
Petrópolis: Vozes, 1986.
BRASIL. Relatório da Comissão Nacional da Verdade. Brasília: CNV, 2014. Disponível em:
<http://www.cnv.gov.br/>. Acesso em: 30 jun. 2016.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 2016. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 30
jun. 2016.
BRASIL. Lei n. º 8.906, de 4 de julho de 1994. Dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a
Ordem
dos
Advogados
do
Brasil
(OAB).
Disponível
em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8906.htm>. Acesso em 30 jun. 2016.
BRASIL. Decreto n. º 91.450, de 18 de julho de 1985. Institui a Comissão Provisória de
Estudos
Constitucionais.
Disponível
em:
<http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaNormas.action?numero=91450&tipo_norma=
DEC&data=19850718&link=s>. Acesso em 30 de junho de 2016.
BRASIL. Emenda Constitucional n. º 26, de 27 de novembro de 1985. Convoca Assembleia
Nacional
Constituinte
e
dá
outras
providências.
Disponível
em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc26-
179
85.htm>. Acesso em 30 de junho de 2016.
BRASIL. Lei 6.683, de 28 de agosto de 1979. Concede anistia e dá outras providências.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6683.htm>. Acesso em 30 jun.
2016.
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181
A SOLIDARIEDADE SOCIAL COMO FUNDAMENTO DA TRIBUTAÇÃO NO
BRASIL
Joacir Sevegnani1
INTRODUÇÃO
A solidariedade social, como um valor que envolve e permeia as relações humanas,
se afigura como um atributo inerente à vida em comunhão com o outro desde tempos
pretéritos. Contudo, somente a partir de meados do século XX é que muitos Estados
nacionais a introduziram em suas constituições, o que permitiu conferir-lhe um caráter de
juridicidade.
No Brasil, a inclusão da solidariedade social no artigo 3º da Constituição Federal de
1988, como norma programática, vem ensejando discussões acerca da possibilidade de
atribuir-lhe eficácia normativa. Com essa caracterização, ganha uma dimensão ampliada
que permite repensar as bases da tributação.
A sujeição da tributação ao princípio da solidariedade social não tem o condão de
desconsiderar os seus princípios mais caros, como o da legalidade. Não se trata de atribuirlhe um predomínio sobre as demais normas, mas de propiciar uma composição equilibrada,
de modo a contribuir para uma tributação segundo bases imponíveis adequadas à
capacidade contributiva dos contribuintes.
Nessa linha, o estudo tem por objetivo demonstrar que se campo potencial de
incidência dos tributos está delimitado pela capacidade contributiva, hodiernamente é a
solidariedade social que lhe dá sustentação, possibilitando a sua instrumentalização por
meio de uma progressividade ampla. A concretização desse modelo tributário no Brasil
1
Auditor Fiscal da Receita Estadual do Estado de Santa Catarina; Professor de Direito Tributário e Direito Constitucional
do Centro Universitário para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí - UNIDAVI; Mestre e Doutor em Ciência Jurídica
pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI; Doutor em Giurisprudenza, sob a modalidade dupla titulação pela
Universidade de Perúgia, Itália.
182
pode fortalecer o ideário de uma tributação voltada não apenas à arrecadação, mas,
sobretudo, a cumprir a sua função redistributiva e, por consequência, reduzir as
desigualdades sociais.
2. O CONCEITO DE SOLIDARIEDADE SOCIAL
A palavra solidariedade não tem uma larga história. Conquanto sua raiz seja latina,
provém do francês “solidarité”, pois o termo não existia no latim clássico nem no medieval.
No latim, a expressão in solidum significava compacto e equivalia à totalidade ou ao todo.
Partindo-se da sua raiz etimológica podem-se distinguir dois universos significativos: o de
algo que está construído solidamente e de obrigações contraídas conjuntamente. Do
primeiro, infere-se a lógica orgânica ou a consideração da unidade de um todo em que as
partes estão solidamente ligadas e, do segundo, a exigência de compartilhar o destino entre
pessoas.2
No Direito Romano a solidariedade significava a natureza coletiva de uma
responsabilidade financeira ou penal, segundo a qual cada membro de um coletivo podia
ser responsável por todo o grupo ou, ao contrário, um grupo podia carregar a
responsabilidade de um dos seus membros. Hoje, no âmbito jurídico, o termo solidariedade
não está ligado unicamente ao direito das obrigações e vincula-se, principalmente, com a
teoria dos direitos humanos e do Direito Constitucional.3
Como destaca González Sánchez, um passo importante na conceituação da
solidariedade acontece quando se deixa de vê-la como uma conduta baseada em uma
moralidade individual, que se canaliza por ações de ajuda mútua, nos moldes que se
concretizam nas relações familiares. Quando ocorre a passagem para a solidariedade
baseada num modelo em que o indivíduo está integrado na convivência social e impregnado
2
VILLAR EZCURRA, Alicia; GARCIA-BARÓ LÓPEZ, Miguel. Pensar la solidaridad. Madrid: Universidad Pontificia Comillas,
2004, p. 120-121.
3
VILLAR EZCURRA, Alicia; GARCIA-BARÓ LÓPEZ, Miguel. Pensar la solidaridad. Madrid: Universidad Pontificia Comillas,
2004, p. 121.
183
de uma cultura política, deixa de adotar uma atitude passiva e assume responsabilidades e
deveres para com a organização política.4
O designativo “social”5 é que confere à solidariedade o sentido de um instituto que
trata das relações entre pessoas de grupos sociais, da sociedade ou de comunidades
internacionais, numa acepção ampla. Daí que a solidariedade acrescida do adjetivo “social”
se refere ao sentimento de pertencer à união de indivíduos para a realização de fins
voltados à consecução do bem comum. Disto resulta que ela pode ser entendida como uma
relação de corresponsabilidade e partilha que vincula os membros uns aos outros,
objetivando a mútua ajuda nas dificuldades e nas necessidades.
Evidencia-se ainda que o vocábulo possui uma estreita ligação com a fraternidade.
Contudo, aparenta que, nos dias de hoje, essa correlação envolve uma dimensão valorativa
e derivativa que permite estabelecer entre ambas uma distinção sob a ótica da abrangência
que comportam. A fraternidade pode ser entendida como o conjunto no qual se encontra
inserida a solidariedade, como um subconjunto daquela.
Como explica Borgetto, não existe contradição ou inconsistência entre ambas. Na
realidade, a solidariedade é tanto um princípio como parte de um conceito maior que é
abrangido pela fraternidade. A fraternidade é significativamente mais rica e mais ampla, na
medida em que contempla não só a ajuda ao próximo, mas se exprime também através do
amor, da tolerância e do respeito pelos outros. Sendo a fraternidade um conceito geral, a
ideia de solidariedade deve ser considerada muito menos como sua substituta ou como um
de seus componentes. Fraternidade e solidariedade são institutos que se complementam.6
A fraternidade abarca, assim, não apenas um conteúdo de auxílio a alguém ou a uma
4
GONZÁLEZ SÁNCHEZ, Carlos. El principio de solidaridad en la Constitución Española: Situación y protección jurídicofinanceira del ciudadano. Salamanca: Ratio Legis, 2012, p. 28.
5
A adjetivação da solidariedade, com o acréscimo do termo “social” também é adotada por Stefano Giubboni e Ernani
Contipelli, respectivamente, nas obras: GIUBBONI, Stefano. Diritti e solidarietà in Europa: i modelli sociali nello spazio
giuridico europeo. Bologna: Mulino, 2012; CONTIPELLI, Ernani. Solidariedade social Tributária. Coimbra: Almedina,
2010.
6
BORGETTO, Michel. La notion de fraternité en droit public français: le passé, le présent et l'avenir de la solidarité. Paris:
Editeur LGDJ, 1993, p. 613.
184
causa, como se qualifica, em regra, a solidariedade. Contempla, sobretudo, uma relação de
alteridade em que todos se colocam como iguais. Não iguais em condições materiais,
culturais ou sociais, mas como pessoas humanas que se reconhecem e respeitam-se
reciprocamente. Dessa forma, é possível definir “a fraternidade como uma forma intensa
de solidariedade que une pessoas que, por se identificarem por algo profundo, sentem-se
‘irmãs’”7. Disto decorre que a fraternidade é um fato da vida, pois ao nascer adquire-se a
condição de coirmandade e pertencimento à humanidade.
A fraternidade pode ser concebida como a razão primeira e mais profunda a motivar
as relações sociais. Nesta percepção, afigura-se como um valor que guia toda a convivência
humana. Os documentos constitucionais têm-lhe atribuído, com frequência, uma
configuração valorativa, como forma de servir de base antropológica a todo o ordenamento
jurídico, mas sem um caráter normativo. Por outro lado, como uma derivação da
fraternidade, a solidariedade social consolidou-se como norma jurídica diretiva,
fundamentadora de princípios e regras ou de eficácia normativa imediata. Essa é a
conformação que os dois institutos receberam na Constituição da República Federativa do
Brasil de 19888. Enquanto a fraternidade encontra-se inserida no seu preâmbulo, como um
valor supremo a guiar a convivência social, as disposições constitucionais que expressam a
solidariedade social, conferem-lhe um caráter de princípio fundamental9 ou mesmo de
norma de aplicabilidade concreta10.
7
PIZZOLATO, Filippo. A fraternidade no ordenamento jurídico italiano. In: BAGGIO, Antônio Maria (Org.). O Princípio
esquecido /1: A fraternidade na reflexão atual das ciências políticas. Vargem Grande Paulista: Editora Cidade Nova,
2008, p. 113.
8
Neste trabalho, em substituição à expressão “Constituição da República Federativa do Brasil de 1988”, será utilizado por
vezes expressões como, Constituição brasileira, Constituição brasileira de 1988 ou Constituição Federal ou Constituição
Federal de 1988, visando uma melhor adequação e clareza ao contexto em que estará inserida.
9
Dentre os princípios fundamentais prescritos na Constituição da República Federativa do Brasil, a solidariedade social
está expressa no inciso I, do artigo 3º, nos seguintes termos: “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República
Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária”.
10
O artigo 40, “caput”, da Constituição da República do Brasil, ao dispor sobre o regime de previdência dos servidores,
adotou um modelo de solidariedade, ao atribuir a todos a condição de contribuintes, norma que produziu efeitos
concretos sobre a contribuição, por exemplo, dos inativos. “Art. 40. Aos servidores titulares de cargos efetivos da União,
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, é assegurado regime de
previdência de caráter contributivo e solidário, mediante contribuição do respectivo ente público, dos servidores ativos
e inativos e dos pensionistas, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto neste
artigo”.
185
Cabe ainda destacar que diversos autores11 tem-lhe atribuído a acepção de direitos
de terceira geração. No entendimento de Pérez Luño, a solidariedade social é protagonista
e valor-guia dos direitos e liberdades do presente. Os denominados ‘direitos de
solidariedade’, em muitos casos, fazem referência também a garantias jurídicas
reivindicadas desde o plano dos direitos econômicos, sociais e culturais, ou seja, desde os
direitos de segunda geração.12
Com essas premissas, pode-se estipular que a solidariedade social se relaciona com
outros valores e tipos de direitos que incidem na organização jurídica da coletividade.
Ademais, por meio de um efeito reflexivo, comporta também deveres. Isto porque, em
regra, os direitos têm como correlativos, determinados deveres atribuídos a pessoas físicas
e jurídicas. Sem o cumprimento dos deveres, a exemplo do dever fundamental de pagar
tributos13, não é possível a concretização de muitos direitos.
Ao se lhe atribuir características de direitos e de deveres, resulta também que para
a sua concretização, a atuação do Estado é fundamental, seja para estruturar uma
organização jurídica que estimule a sua realização ou como instrumento para a
compreensão da aplicação e interpretação das normas jurídicas estabelecidas.
No entanto, é preciso ter claro que a solidariedade social não se realiza somente por
intermédio da atuação do Estado. Ao seu lado, e sem a necessidade de interferência estatal,
se realiza normalmente no espaço da sociedade civil.
Disto emana que a solidariedade social pode materializar-se também pelas ações das
pessoas que, por se considerarem membros de uma comunidade, contribuem
espontaneamente para reduzir as desigualdades que atingem aquelas que se encontram
em situação mais débil, mais desfavorecida ou mais desvantajosa. Não obstante, a distinção
11
A título exemplificativo, vide as obras: TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva,
2006, p. 421-422 e ALMEIDA, Fernando Barcellos. Teoria geral dos direitos humanos. Porto Alegre: Sérgio Antonio
Fabris Editor, 1996, p. 45.
12
PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. La tercera generación de derechos humanos. Navarra: Editorial Aranzadi, 2006, p. 16.
13
O dever fundamental de pagar tributos é tratado com profundidade na obra: NABAIS, José Casalta. O dever
fundamental de pagar impostos: contributo para a compreensão do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina,
2004.
186
que se procede entre a atuação espontânea dos indivíduos e aquela decorrente da indução
estatal, é inegável que ambas atuam conjuntamente numa relação de complementaridade.
Portanto, apesar de a solidariedade social apresentar-se com um sentido aberto e
de múltiplas significações, sujeita a mutações no tempo e no espaço, para adequar-se à
complexidade da sociedade, é possível aferir que se configura, não apenas como alicerce
das relações sociais, mas também como orientação para o legislador, no momento da
elaboração das normas jurídicas, e como fundamento para as decisões judiciais e ações
desenvolvidas pelos agentes executores das demandas públicas. Nesse contexto, a
solidariedade social é um agir conjunto da sociedade e do Estado, mediante o exercício de
direitos e o cumprimento de deveres, com o objetivo de proporcionar bem-estar aos
cidadãos.
3. BREVES COMENTÁRIOS SOBRE A TRIBUTAÇÃO NO BRASIL
Hodiernamente as funções do Estado são amplas, destacando-se o ofertamento de
sistemas de previdência e assistência, zelando pela velhice, pela doença, pela educação,
pela segurança, enfim, adotando políticas públicas de atendimento às necessidades dos
cidadãos para que possam ter uma existência digna.
Os recursos necessários ao
financiamento das despesas públicas são obtidos quase que exclusivamente através da
arrecadação de tributos.
O poder de instituir e exigir tributos encontra a sua legitimação na soberania que o
Estado é detentor, permitindo-lhe apropriar-se de parte do patrimônio dos particulares
com capacidade para contribuir, que em regra tem como base impositiva o rendimento, o
consumo e a riqueza. Denota-se que se o poder de exigir tributos encontra-se inserido no
conceito de soberania e esta provém do povo14, é inegável que não representam mais uma
imposição exigida arbitrariamente do contribuinte, à semelhança da submissão do vencido
ao vencedor, como ocorria em tempos antigos.
14
A Constituição Federal prevê em seu artigo 1º, parágrafo único, que “Todo o poder emana do povo, que o exerce por
meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
187
No Brasil, os tributos decorrem da lei que é aprovada por representantes escolhidos
pelo povo, prerrogativa que é exercida com fulcro no dever fundamental de pagar tributos,
que tem na Constituição seu fundamento.
Do ponto de vista jurídico, “tributo é toda prestação pecuniária em favor do Estado
ou de pessoa por ele indicada, tendo por causa um fato lícito, previsto em lei, instituidor de
relação jurídica” 15 . Segundo a concepção de Torres, diante da ampliação dos poderes
estatais que a Constituição Federal de 1988 concebeu para o Estado brasileiro, o conceito
de tributo também deve ser alargado. Assim, o autor conceitua tributo como o:
[...] dever fundamental, consistente em prestação pecuniária, que, limitado pelas liberdades
fundamentais, sob a diretiva dos princípios constitucionais da capacidade contributiva, do
custo/benefício ou da solidariedade do grupo e com a finalidade principal ou acessória de
obtenção de receita para as necessidades públicas ou para atividades protegidas pelo
Estado, é exigido de quem tenha realizado o fato descrito em lei elaborada de acordo com a
competência específica outorgada pela Constituição.16
Uma conclusão que se extrai dessa nova configuração é que a tributação é, em
grande medida, reflexo dos valores impregnados na sociedade, que são captados pelos seus
representantes nas casas legislativas e transformados em normas jurídicas.
Nesse prisma, a Constituição brasileira de 1988 delimitou a competência tributária
entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, circunscrevendo a esfera de
atuação de cada uma dessas entidades jurídico-políticas, no que concerne à instituição e
consequente cobrança dos tributos.
É no texto constitucional ainda que estão expressas as cinco espécies de tributos que
podem ser instituídas, bem como as suas características tipificadoras: os impostos17 , as
15
COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 381.
16
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 7. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 320-321.
17
Imposto é, segundo a definição do artigo 16, do Código Tributário Nacional, “o tributo cuja obrigação tem por fato
gerador uma situação independente de qualquer atividade estatal específica, relativa ao contribuinte”.
188
taxas18, a contribuição de melhoria19, os empréstimos compulsórios20 e as contribuições
especiais21.
Se o Estado detém a competência para instituir e exigir tributos, resulta que aos
contribuintes recai o dever fundamental de pagá-los. Enquanto que do ponto de vista
jurídico, o dever fundamental de pagar tributos configura-se como um pressuposto
inerente à própria ordem constitucional, do ponto de vista político, decorre da natureza
social das pessoas humanas, unidas em sociedade para a realização de fins comuns.
É um dever que indiretamente está relacionado aos direitos fundamentais, como a
liberdade. Sem tributos o cidadão somente desfrutaria fugazmente de maior liberdade. Os
cidadãos ver-se-iam submetidos em breve prazo à violência, à arbitrariedade e à justiça
privada dos demais membros do grupo social. Afirmar que os tributos são o preço da
liberdade não constitui mera falácia. Continua sendo correta a afirmação de Robert
Wagner, antigo alcaide de Nova York, de que os impostos são o preço da civilização.22
Como dever fundamental figura como um contributo indispensável a uma vida em
comum e de bem-estar para todos os membros da sociedade. É que para cumprir as suas
funções e proporcionar a fruição de grande parte dos direitos fundamentais, o Estado tem
de socorrer-se das receitas tributárias. A opção que se amolda a esse modelo é o que Nabais
denomina de Estado Fiscal23, mas estruturado de forma que uns paguem mais e outros
18
As taxas vêm conceituadas na própria na Constituição Federal em seu artigo 145, inciso II, podendo ser exigidas “em
razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e
divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição”.
19
A contribuição de melhoria, de acordo com o artigo 81, do Código Tributário Nacional, pode ser instituída “para fazer
face ao custo de obras públicas de que decorra valorização imobiliária, tendo como limite total a despesa realizada e
como limite individual o acréscimo de valor que da obra resultar para cada imóvel beneficiado”.
20
Os empréstimos compulsórios estão previstos no artigo 148, da Constituição Federal, para atender despesas
extraordinárias decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência, e para a realização de
investimento público de caráter urgente e de relevante interesse nacional.
21
As contribuições especiais encontram-se inseridas no texto constitucional nos artigos 149 e 149-A, como instrumentos
de atuação em determinadas áreas, destinando-se a atender finalidades específicas, como saúde, assistência e
previdência, ou interesses de categorias profissionais ou econômicas específicas, ou ainda, como mecanismo de
intervenção no domínio econômico.
22
TIPKE, Klaus. Moral Tributaria del Estado y de los contribuyentes. Madrid: Marcial Pons, 2002, p. 56-57.
23
A expressão Estado fiscal é utilizada para caracterizar os países contemporâneos, cujas necessidades financeiras são
essencialmente cobertas por recursos oriundos dos impostos arrecadados. (NABAIS, José Casalta. O dever fundamental
de pagar impostos: contributo para a compreensão constitucional do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina,
189
menos. Disto resulta que todos os cidadãos são portadores de direitos, mas somente as
pessoas com capacidade para contribuir têm o dever de pagar tributos. Como assevera o
mesmo autor, esse é, seguramente, um dos preços mais baratos a pagar pela manutenção
da liberdade e de uma sociedade civilizada.24
Nesta linha, os tributos passam a ser concebidos não mais sob um enfoque individual
de quem contribui, mas por meio de uma relação indissociável do coletivo. Pagar tributos
ou zelar pelo cumprimento desta obrigação é um dever que está vinculado à noção de
cidadania plena.
Nessa nova conformação social e política, o dever de pagar tributos caracteriza-se
como uma categoria constitucional com caráter de fundamentalidade, que expressa uma
dimensão de solidariedade social, pois traz subjacente a manutenção e existência do
próprio Estado e, em especial, a realização de direitos fundamentais sociais como saúde,
educação, saneamento básico e segurança, dentre outros.
Segundo Sacchetto, foi um salto “genético” relativamente ao passado, quando o
dever tributário era dominado pela lógica do princípio da contraprestação, do benefício ou
da teoria comutativa. Ao analisar o modelo tributário italiano, assinala que a Constituição
de 1948 estabeleceu uma ruptura com a tradição precedente. Como disposição fundante
do dever de solidariedade, o artigo 2º25 espraia a amplitude do seu enunciado por todo o
texto constitucional, enquanto a previsão do artigo 5326 expressa o dever fundamental de
todos concorrerem com tributos para o financiamento das despesas públicas, de acordo
2004, p. 191-192)
24
NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a compreensão constitucional do
estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 2004, p. 185-186.
25
Redação original em italiano: “Art. 2 - La República reconoce y garantiza los derechos inviolables del hombre, ora como
individuo, ora en el seno de las formaciones sociales donde aquél desarrolla su personalidad, y exige el cumplimiento
de los deberes inexcusables de solidaridad política, económica y social.” Redação de acordo com a tradução do autor:
“Art. 2º - A República reconhece e garante os direitos invioláveis do homem, quer como ser individual quer nas
formações sociais onde se desenvolve a sua personalidade, e requer o cumprimento dos deveres inderrogáveis de
solidariedade política, econômica e social”.
26
Redação original em italiano: “Art. 53 - Todos estarán obligados a contribuir a los gastos públicos en proporción a su
capacidad contributiva. El sistema tributario se inspirará en criterios de progresividad.” Redação de acordo com a
tradução do autor: “Art. 53 - Todos têm a obrigação de contribuir para as despesas públicas na medida de sua
capacidade contributiva. O sistema tributário é inspirado nos critérios de progressividade.”
190
com a capacidade contributiva.27
A transformação inferida pelo autor no sistema tributário italiano foi reflexo da
mudança de paradigma a que foi submetido, deixando de guiar-se pela denominada “teoria
do imposto-troca” para fundar-se na “teoria do imposto-solidariedade”. De certo modo, as
duas teorias marcaram as disputas ideológicas, principalmente nos dois últimos séculos, e
na atualidade estão fortemente estruturadas em duas coalizões que se distinguem pelo
modelo de Estado e pelos valores de vivência social que defendem.
A primeira caracteriza-se, especialmente, pela defesa dos ideais liberais,
considerando o tributo como um fato econômico; a segunda é essencialmente solidarista e
vê o tributo como uma condição da cidadania política. Em razão dos projetos distintos de
sociedade e Estado que apregoam, resulta na consequente justificação distinta dos tributos
e da função que devem desempenhar.
Em ambas as teorias a necessidade dos tributos não está em causa, mas apenas as
formas que devem adquirir para harmonizarem-se com os valores e a lógica subjacente do
projeto de vida coletiva que cada uma pretende concretizar.
A teoria do imposto-troca, fundada na ideia de uma equivalência tributária que
concretiza um modelo de justiça comutativa28, prevaleceu a partir da segunda metade do
século XVIII e se impôs nos dois séculos seguintes. Nesse modelo, o tributo29 funciona como
uma troca, ou melhor, como um preço pago pela segurança e os serviços prestados pelo
Estado. Essa forma de concebê-lo tem suas origens na visão contratualista de Hobbes, Locke
27
SACCHETTO, Cláudio. Il dovere di solidarietà nel Diritto Tributário: l’Ordinamento Italiano. In: PEZZINI, Barbara;
SACCHETTO, Claudio (Org.) Il dovere di solidarietà. Milano: Giuffrè Editore, 2005, p. 182.
28
De acordo com Bobbio, a justiça comutativa visa estabelecer uma correspondência entre o dispêndio realizado e a coisa
recebida, de tal modo que o valor será considerado justo se houver uma equivalência aproximada entre ambos.
(BOBBIO, Norberto. Estado Governo e Sociedade: para uma teoria geral da política. 14. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007,
p. 19). Embora o autor a conceba com uma visão relacionada essencialmente às relações privadas, no contexto da
tributação é utilizada para estabelecer uma equivalência entre o valor pago e o serviço recebido. É mais perceptível nas
taxas, em que há o pagamento equivalente ao custo por uma prestação de serviço público ou pelo exercício do poder
de polícia, mas pode corresponder também a uma média proporcional de tributação, exigida igualmente de todos, sem
variação percentual.
29
Embora o autor utilize a expressão imposto, o faz claramente com o sentido de tributo, como se o conhece no Brasil,
ou seja, como o gênero, do qual o imposto é espécie. Em razão disso, por uma questão didática, optou-se por utilizar o
termo “tributo”.
191
e Rousseau, segundo a premissa de que os homens concordam em alienar uma parcela de
sua liberdade em troca de bens e segurança. Nos últimos anos vem experimentando um
renascimento sob o nome de princípio da equivalência30. De acordo com esse princípio, a
distribuição do tributo é baseada aproximadamente na utilidade que a cada um aproveita
do seu pagamento.31
Rejeitando a concepção de uma equivalência entre os tributos pagos e os serviços
prestados aos contribuintes32, a teoria do imposto-solidariedade surge no final do século
XIX, originada, principalmente, pelo pensamento da doutrina solidarista. A tributação passa
a ser considerada como um dever necessário, fundado na ideia de solidariedade, que tem
por objetivo proporcionar uma justiça distributiva33. Para isso guia-se pela observância da
capacidade econômica dos contribuintes, com ênfase para a progressividade dos tributos
e, do ponto de vista da aplicação dos recursos arrecadados, pela ideia de redistribuição e
equalização.34
Nesta ótica, o sistema político volta-se para a criação de regras que configurem um
sistema tributário com justiça fiscal e, conjuntamente, transforme os tributos em meios
eficazes de redistribuição de renda. Com isto, é possível estabelecer, inclusive, o que se
denomina de imposto negativo, ou seja, a garantia de uma renda mínima para quem se
encontra abaixo da linha da pobreza.
A teoria do imposto-solidariedade está fortemente impregnada na Constituição
brasileira. Como se asseverou, a solidariedade social expressa no artigo 3º, inciso I, da
30
Sobre o princípio da equivalência sugere-se o interessante estudo publicado na obra: VASQUES, Sérgio. O princípio da
equivalência como critério de igualdade tributária. Coimbra: Almedina, 2008.
31
BOUVIER, Michel. Introduction au droit fiscal général et à la théorie de l'impôt. 9. ed. Paris: LGDJ, 2008, p. 226-228.
32
As taxas são o exemplo clássico de tributo que ainda hoje estão fundadas na teoria do imposto-troca, embora a aplicação
dos recursos arrecadados possa ocorrer de acordo com o princípio da solidariedade social, ao distribuí-los segundo as
prioridades sociais.
33
Para Bobbio, “a justiça distributiva é aquela na qual se inspira a autoridade pública na distribuição de honras ou de
obrigações: sua pretensão é que a cada um seja dado o que lhe cabe com base em critérios que podem mudar segundo
a diversidade das situações objetivas, ou segundo os pontos de vista”. (BOBBIO, Norberto. Estado Governo e Sociedade:
para uma teoria geral da política. 14. ed. São Paulo: Paz e Terra, p. 19-20). No âmbito da tributação os principais critérios
utilizados são a progressividade e a seletividade.
34
BOUVIER, Michel. Introduction au droit fiscal général et à la théorie de l'impôt. 9. ed. Paris: LGDJ, 2008, p. 231-233.
192
Constituição Federal, atua como um princípio fundante das relações sociais e políticas, e
espraia a sua abrangência sobre outros princípios e regras. Em matéria tributária, além de
estar diretamente vinculada ao artigo 40, merece destaque a vinculação indireta com o
princípio da capacidade contributiva, que será abordada adiante.
A ênfase que se confere ao princípio da solidariedade social não tem o condão de
relegar a um plano secundário o princípio da legalidade, cuja conquista proporcionou
grandes avanços nas relações entre contribuintes e Estado. Ao contrário, o objetivo é
demonstrar a possibilidade de sua concretização, observando os estritos limites da lei.
Na atualidade, considerando especialmente os regimes representativos de governo,
é conferido aos representantes do povo a faculdade de criar ou aumentar tributos para
suprir as despesas públicas. Como a instituição ou aumento de qualquer espécie tributária
depende exclusivamente de aprovação pelo Poder Legislativo, salvo situações excetuadas
pelo texto constitucional35, a norma tributária somente existe se criada mediante lei e na
medida por ela criada.
Em síntese, o sistema tributário brasileiro apresenta-se rigorosamente desenhado
na Constituição Federal, dispondo ainda que a instituição e aumento de tributos somente
poderá ser realizada mediante lei. Portanto, o princípio da solidariedade social não pode
afastar a exigência de lei para o regramento das matérias tributárias que o texto
constitucional vincula ao princípio da legalidade, pois a relação entre ambos é de
complementaridade e de harmonização.
Há que se buscar, portanto, um equilíbrio que permita o desenvolvimento
sustentável do Estado brasileiro, em que o dever fundamental de pagar tributos esteja
estruturado de acordo com uma justa tributação sobre aqueles que são instados a
35
Cabe ressaltar que a Constituição Federal, ao estabelecer o princípio da legalidade tributária, o fez com ressalvas,
afirmando em seu artigo 153, §1º, que "é facultado ao Poder Executivo, atendidas as condições e os limites
estabelecidos em lei, alterar as alíquotas dos impostos enumerados nos incisos I, II, IV e V". Trata-se, tão somente, de
exceção descrita expressamente na Constituição Federal, não implicando, pois, em ofensas ao princípio da legalidade
tributária. À lei, neste caso, caberá estipular os limites dentro dos quais o Poder Executivo poderá agir para alterar as
alíquotas dos tributos. O legislador, no caso, apenas fixa ao Poder Executivo uma margem de ação, que o impede de
agir arbitrariamente e até discriminadamente. O tributo, no entanto, será instituído por lei, com todos os seus
elementos constitutivos.
193
contribuir e, ao mesmo tempo, proporcione recursos suficientes para financiar as despesas
de manutenção das demandas públicas. Nesse contexto, uma justa tributação deve estar
pautada pela observância do princípio da capacidade contributiva.
4. O PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA
O princípio 36 da capacidade contributiva nasce inspirado na máxima do Direito
Romano, suum cuique tribuere (dar a cada um o que lhe é devido). Ressurge
embrionariamente no século XVIII, na obra A Riqueza das Nações, de Adam Smith, sob a
denominação de equidade. A equidade diz respeito à necessidade de o Estado exigir que
cada um contribua na proporção dos ganhos que desfruta sob a proteção do poder público.
Conclui o autor ser essa a razão para que os ricos paguem mais, pois necessitam de uma
maior segurança para proteger os seus bens.37
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 enunciou em seu artigo
13º que “para a manutenção da força pública e para as despesas de administração é
indispensável uma contribuição comum, que deve ser repartida entre os cidadãos de
acordo com as suas possibilidades”. Por estar matizada pelos ideais liberais, a equidade
configura-se como uma garantia de que as pessoas contribuam proporcionalmente aos seus
ganhos e de acordo com o retorno que recebem dos poderes públicos. Vê-se que é, em
certa medida, uma especificação do princípio da igualdade.
Como acentua Amaro, como um princípio inspirado na ordem natural das coisas,
parte da premissa de que “onde não houver riqueza é inútil instituir imposto, do mesmo
modo que em terra seca não adianta abrir poço à busca de água”. Porém, não visa apenas
preservar a eficácia da lei de incidência, para que esta não se torne inócua diante da
36
De acordo com Ávila, “princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão
de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação demanda-se uma avaliação da correlação entre o estado
de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção”. ÁVILA,
Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2011,
p. 78.
37
SMITH, Adam. A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas. São Paulo: Nova Cultural, 1996, v.
II, p. 282-284.
194
ausência de riqueza38 a tributar, mas se dirige ainda ao contribuinte, como uma garantia
contra uma tributação excessiva, quando comparada com a sua capacidade econômica.39
No Brasil, o princípio da capacidade contributiva está previsto no artigo 145, §1º, da
Constituição Federal, cujo texto dispõe que “sempre que possível, os impostos terão caráter
pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte”. A primeira
dúvida que emerge da redação é se a sua aplicabilidade se reduziria aos impostos pessoais
e, ainda assim, permitindo ao legislador avaliar a possibilidade da sua implementação.
Na opinião de Nobre Júnior a exceção “sempre que possível” não configura
autorização ao legislador para que, se assim entender, possa graduar os impostos de acordo
com a capacidade econômica do contribuinte. A cláusula jamais poderá servir de álibi ao
legislativo para dispensar um tributo da observância da capacidade contributiva do
obrigado pelo seu pagamento. Acrescenta que, apesar de a capacidade contributiva estar
mais afinada com os impostos, é induvidoso que o mesmo indicativo da capacidade
econômica deve ser aplicado às demais espécies tributárias, somente devendo ser afastada
quando impossível a sua aplicação.40
A possibilidade de aplicação da capacidade contributiva a todos os tributos decorre,
em algumas situações, do próprio texto constitucional, a exemplo da dispensa de taxas para
obtenção do registro civil de nascimento e de certidão de óbito
41
, e de leis
infraconstitucionais que concedem isenção a determinadas pessoas ou situações,
considerando a reduzida capacidade econômica. Nessas situações, embora possa aparentar
que a capacidade contributiva seja uma garantia apenas em favor da dispensa de tributo,
em face da incapacidade econômica do contribuinte, não se pode olvidar que o excesso de
exação também estará por ela albergado.
38
O termo “riqueza” será utilizado na sua acepção genérica, para se referir aos diversos signos identificados no texto
constitucional como passíveis de incidência tributária após a instituição do tributo.
39
AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 14. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 138.
40
NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. Princípio constitucional da capacidade contributiva. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris Editor, 2001, p. 65-66, 83.
41
Constituição Federal de 1988, art. 5º, inciso LXXVI.
195
Mesmo em se tratando de taxas e contribuições de melhoria, que possuem
limitadores próprios, a capacidade contributiva pode ser utilizada como fundamento
jurídico quando estes limites forem ultrapassados. A propósito, o Supremo Tribunal Federal
tem adotado em diversos julgamentos 42 o entendimento da subordinação das taxas ao
princípio da capacidade contributiva. Em razão disso, concorda-se com Oliveira que
nenhuma situação (inclusive o consumo) que não reflita capacidade contributiva poderá ser
eleita pelo legislador como fato gerador de tributo.43
Feitas essas observações iniciais, cabe delimitar o campo material de abrangência da
capacidade contributiva, ou seja, qual a riqueza que está contemplada no seu campo de
incidência que permite aos entes estatais submetê-la à tributação.
Inicialmente, cabe destacar que a capacidade contributiva deve estar demarcada por
limitadores que impeçam, de um lado, a imposição onde não há manifestação de riqueza e,
de outro, a tributação excessiva que venha a expropriar o patrimônio dos contribuintes. No
primeiro caso, a intributabilidade é uma salvaguarda do mínimo existencial, no segundo, a
elevação da tributação não pode configurar-se em mutilação da propriedade.
Ultrapassados esses limites, em ambas as situações o exercício do poder tributário
converte-se em confisco, atentando contra a dignidade da pessoa humana.
A vedação de confisco configura-se, segundo Torres, como uma imunidade
tributária44 que preserva a parcela necessária à sobrevivência da propriedade privada. Isto
porque a relação entre o direito de propriedade e o Direito Tributário é dialética. Se por um
lado a propriedade privada é por excelência a base imponível da tributação, por outro, está
protegida qualitativa e quantitativamente contra a incidência desmedida que implique na
42
“O critério adotado pelo legislador para a cobrança dessa taxa de polícia busca realizar o princípio constitucional da
capacidade contributiva, também aplicável a essa modalidade de tributo, notadamente quando a taxa tem, como fato
gerador, o exercício do poder de polícia”. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 176.382-5/CE,
DJ de 02.06.2000. Segunda Turma. Relator: Min. Celso de Mello). Na mesma linha, vide o Recurso Extraordinário nº
177.835-1/PE, DJ de 25.05.2001. Tribunal Pleno. Relator: Min. Carlos Velloso.
43
OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. Direito Tributário: capacidade contributiva: conteúdo e eficácia do princípio. 2.
ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 113.
44
Imunidades tributárias são prescrições constitucionais limitadoras do poder de tributar e garantidoras dos direitos do
cidadão. Assim, estabelecem uma área de incompetência, impedindo a atuação do legislador ordinário de instituir
norma que vise exigir tributo, quando vedado pela Constituição.
196
sua extinção. Contudo, assevera o autor que a vedação de confisco é uma cláusula aberta
que impossibilita fixar previamente os limites quantitativos que não podem ser
ultrapassados. Qualquer que seja o critério de aferição deve pautar-se pela razoabilidade.45
Deste modo, a exação confiscatória situa-se fora da capacidade contributiva, porque
transcende os limites possíveis e está radicada na injustiça que imuniza a cobrança de
tributos sobre o mínimo existencial ou quando é exigido em quantitativo superior ao
suportável pelos contribuintes.
Embora se apresente com um conteúdo variável, o mínimo existencial pode ser
delimitado em cada tempo e lugar para efeitos de afastamento da imposição tributária.
O seu conteúdo não abrange apenas a assistência, mas também os meios
necessários à sobrevivência em condições dignas, que permitam a cada pessoa exercer com
autonomia e responsabilidade os direitos fundamentais. Trata-se de um limite que, de um
lado, o Estado não pode subtrair do indivíduo, de outro, deve positivamente assegurar,
mediante prestações de natureza material. Relevante neste contexto é ainda o papel do
legislador que, ao instituir normas, deve respeitar esse limite e ao mesmo tempo fomentar
ações que contribuam para a minoração das condições de pobreza.46
Na opinião de Torres, apesar de carecer de um conteúdo específico que permita
mensurá-lo, o mínimo existencial abrange qualquer direito, em especial os direitos
fundamentais, como direito à saúde, à alimentação, dentre outros. Não é possível
determiná-lo objetivamente porque envolve mais aspectos de qualidade do que
propriamente de quantidade, tornando difícil extremá-lo em sua região periférica. No plano
tributário está fundamentado na ideia de proporcionar condições iniciais para o exercício
da liberdade, da felicidade, dos direitos humanos e do princípio da igualdade, como uma
autêntica imunidade tributária, ainda que implícita.47
45
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 7. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 58.
46
SARLET, Ingo Wolfgand; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde:
algumas aproximações. In: SARLET, Ingo Wolfgand; TIMM, Luciano Benetti (Orgs.). Direitos Fundamentais: orçamento
e reserva do possível. 2. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 21-23.
47
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito constitucional financeiro e tributário: os direitos humanos e a tributação:
197
No Brasil, entende-se que o parâmetro definidor do mínimo existencial pode ser
correlacionado com o valor do salário mínimo, que está previsto no artigo 7º, inciso IV, da
Constituição Federal, como sendo aquele fixado em lei, “capaz de atender a suas
necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde,
lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social”. Convergem aproximadamente
para essa ideia Tipke e Yamashita, conquanto defendam que o valor definido como mínimo
existencial fiscal não deva ser inferior àquele fixado para efeitos da concessão do direito da
seguridade social.48
Ademais, nada obsta que em determinadas situações o legislador ordinário possa
corrigir distorções, mediante a edição de normas legais que confiram isenções ou reduções
da tributação para determinadas pessoas, em situações especiais, ou para bens, produtos
ou serviços considerados essenciais para uma vida com dignidade.
Em relação às exigências tributárias excessivamente elevadas, a despeito da quase
ausência de normatização49, o Supremo Tribunal Federal tem atuado com rigor, para evitar
os excessos dos governos, pautando-se por critérios de proporcionalidade
50
e
razoabilidade 51 . Denota-se que as decisões não se circunscrevem apenas aos tributos
imunidades e isonomia. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 144-146.
48
TIPKE, Klaus; YAMASHITA, Douglas. Justiça fiscal e princípio da capacidade contributiva. São Paulo: Malheiros Editores,
2002, p. 34.
49
Cita-se como exceção, a fixação na Lei nº 10.257/2001, que estabeleceu as diretrizes nacionais da política urbana, do
limite máximo de incidência do IPTU em 15%, para os imóveis não edificados, subutilizados ou não utilizados, de acordo
com a redação do artigo 7º, §1º. “§1º O valor da alíquota a ser aplicado a cada ano será fixado na lei específica a que se
refere o caput do art. 5o desta Lei e não excederá a duas vezes o valor referente ao ano anterior, respeitada a alíquota
máxima de quinze por cento.”
50
"Tributação e ofensa ao princípio da proporcionalidade. [...] O Estado não pode legislar abusivamente. A atividade
legislativa está necessariamente sujeita à rígida observância de diretriz fundamental, que, encontrando suporte teórico
no princípio da proporcionalidade, veda os excessos normativos e as prescrições irrazoáveis do Poder Público. O
princípio da proporcionalidade, nesse contexto, acha-se vocacionado a inibir e a neutralizar os abusos do Poder Público
no exercício de suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos
atos estatais. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.551-MG, DJ de 20.04.2006.
Tribunal Pleno. Relator: Min. Celso de Mello)
51
“Resulta configurado o caráter confiscatório de determinado tributo, sempre que o efeito cumulativo – resultante das
múltiplas incidências tributárias estabelecidas pela mesma entidade estatal – afetar, substancialmente, de maneira
irrazoável, o patrimônio e/ou os rendimentos do contribuinte. O Poder Público, especialmente em sede de tributação
(as contribuições de seguridade social revestem-se de caráter tributário), não pode agir imoderadamente, pois a
atividade estatal acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade." (BRASIL. Supremo Tribunal
Federal. Ação Direta de Constitucionalidade nº 8 MC/DF, DJ de 13.10.1999. Relator: Min. Celso de Mello)
198
propriamente, mas também para evitar o confisco por meio de multas desproporcionais52
e juros abusivos.
Entendeu ainda aquela Corte que a caracterização do efeito confiscatório pressupõe
a análise de dados concretos e das peculiaridades de cada situação, levando-se em conta
os custos, a carga tributária global, margens de lucro e outras condições pontuais do
mercado e da conjuntura social e econômica.53
Estabelecido o campo de abrangência da capacidade contributiva, cabe ainda avaliar
a forma de submeter a riqueza tributável à incidência dos tributos. Para esse fim, do texto
constitucional extrai-se que o legislador ordinário pode adotar como instrumentos para
aplicar a incidência tributária, a proporcionalidade, a seletividade e a progressividade.
A proporcionalidade surge como uma derivação do princípio da igualdade, inspirada
nos ideais liberais da Revolução Francesa. Foi fortemente defendida por Stuart Mill,
argumentando que “taxar as rendas mais altas em uma percentagem maior do que as
rendas menores significa impor um tributo à iniciativa e à parcimônia, impor uma
penalidade a pessoas por terem trabalhado mais duro e economizado mais do que seus
vizinhos”54.
Para o autor, a igualdade deve ser a norma que norteia tudo aquilo que diz respeito
ao governo, porque não lhe é permitido fazer nenhuma discriminação de pessoas e classes
que se encontram em situação de equivalência, no momento de exigir um sacrifício
tributário. Nessa perspectiva, a proporcionalidade na tributação indica igualdade de
sacrifício, o que pressupõe uma exigência proporcional à riqueza de cada um. Em sua
opinião, ainda que esse padrão não possa ser atingido na plenitude, deve ser o ideal
52
“Conforme orientação fixada pelo STF, o princípio da vedação ao efeito de confisco aplica-se às multas. Esta Corte já
teve a oportunidade de considerar multas de 20% a 30% do valor do débito como adequadas à luz do princípio da
vedação do confisco. Caso em que o Tribunal de origem reduziu a multa de 60% para 30%”. BRASIL. Supremo Tribunal
Federal. Recurso Extraordinário nº 523.471-MG, DJ de 23.04.2010. Segunda Turma. Relator: Min. Joaquim Barbosa.
53
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 448.432-CE, DJ de 28.05.2010. Segunda Turma. Relator:
Min. Joaquim Barbosa.
54
MILL, John Stuart. Princípios de economia política: com algumas de suas aplicações à filosofia social. Tradução de Luiz
João Barúna. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 293.
199
almejado pelos modelos tributários.55
Os entes tributantes podem ainda ajustar a incidência tributária por meio da
seletividade, visando adequá-la indiretamente à capacidade econômica dos destinatários
consumidores. Para atingir esse objetivo é necessária a instituição de um percentual de
tributação mais elevado para os bens considerados de “luxo”, consumidos principalmente
pelos indivíduos das classes mais altas, e um percentual inferior ou nulo para os bens que
compõem a cesta básica, subsidiando desta forma, os bens de primeira necessidade,
imprescindíveis às classes baixas. É o que ocorre com os impostos indiretos56, a exemplo do
ICMS57 e do IPI58. A esse respeito, como esclarece Torres, a desobediência do legislador ao
princípio da seletividade no IPI e no ICMS macula com o vício de inconstitucionalidade a
exigência tributária.59
Por fim, a progressividade é decorrência de uma evolução do sistema de tributação.
Especialmente a partir do período pós Segunda Grande Guerra, diversos países trataram de
inseri-la em seus textos constitucionais, a exemplo da Itália, Espanha e Portugal. Como se
enfatizou, a Constituição italiana de 1948 estabeleceu em seu artigo 5360 que “o sistema
tributário é inspirado nos critérios da progressividade”. A Constituição portuguesa de 1976,
previu em seu artigo 104, item 1, que “o imposto sobre o rendimento pessoal visa a
diminuição das desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades
e os rendimentos do agregado familiar”. Seguindo a mesma tendência, a Constituição
espanhola de 1978, definiu em seu artigo 31, item 1, que “todos contribuirão para o
55
MILL, John Stuart. Princípios de economia política: com algumas de suas aplicações à filosofia social. Tradução de Luiz
João Barúna. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 290.
56
Impostos indiretos são aqueles que incidem sobre o preço das mercadorias, em que normalmente o empresário embute
o valor do imposto no seu custo, repassando-o ao consumidor, a exemplo do IPI e o ICMS.
57
Imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte
interestadual e intermunicipal e de comunicação.
58
Imposto sobre Produtos Industrializados.
59
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito constitucional financeiro e tributário: os direitos humanos e a tributação:
imunidades e isonomia. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 438.
60
Redação original em italiano: “Art. 53 - Todos estarán obligados a contribuir a los gastos públicos en proporción a su
capacidad contributiva. El sistema tributario se inspirará en criterios de progresividad”. Redação de acordo com a
tradução do autor: “Art. 53 - Todos têm a obrigação de contribuir para as despesas públicas na medida de sua
capacidade contributiva. O sistema tributário é inspirado nos critérios de progressividade”.
200
financiamento das despesas públicas de acordo com a sua capacidade econômica mediante
um sistema tributário justo inspirado nos princípios de igualdade e progressividade que, em
nenhum caso, terá alcance confiscatório”61.
A progressividade implica em atribuir um aumento mais que proporcional à
imposição tributária, visando essencialmente alcançar uma melhor e mais justa distribuição
da renda e da riqueza, de acordo com os objetivos fundamentais expressos na Constituição
de 1988, em seu artigo 3º, especialmente nos incisos I e III. A utilização deste princípio está
em consonância com a ideia de que os tributos não representam apenas mero sacrifício
para os cidadãos, mas sobretudo, o contributo indispensável a uma vida digna para todos
os membros da sociedade organizada, de modo que as desigualdades possam ser
minimizadas por meio de uma tributação que onere com maior intensidade aquelas pessoas
com maior capacidade para contribuir.
Para alguns doutrinadores, a progressividade só é cabível nos casos em que a
Constituição expressamente autoriza. Como adverte Torres, o regime de progressividade só
é aplicável ao Imposto de Renda - IR, ao Imposto Predial e Territorial urbano – IPTU e ao
Imposto Territorial Rural – ITR, enquanto não houver consentimento constitucional para
que outros tributos possam ser progressivos.62
A progressividade é por excelência o princípio instrumentalizador da capacidade
contributiva. Do ponto de vista da tributação, é por meio deste que a solidariedade social
se concretiza em níveis mais elevados, uma vez que proporciona uma redistribuição da
renda, o que contribui para a redução das desigualdades sociais.
Em razão disso, entende-se que a ausência de permissão constitucional não obsta a
adoção da progressividade pelo legislador ordinário. Essa mudança de entendimento se fez
sentir, inclusive, no Supremo Tribunal Federal. Rompendo com a posição anteriormente
61
Texto original: “Artículo 31 - 1. Todos contribuirán al sostenimiento de los gastos públicos de acuerdo con su capacidad
económica mediante un sistema tributario justo inspirado en los principios de igualdad y progresividad que, en ningún
caso, tendrá alcance confiscatorio.”
62
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário: Valores e princípios constitucionais
tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 314.
201
firmada de que o legislador comum não pode valer-se da progressividade, fora das
hipóteses taxativamente indicadas na carta política, esta Corte decidiu63 que se o alvo do
preceito constitucional da progressividade é estabelecer uma graduação que leve à justiça
tributária, ou seja, onere aqueles com maior capacidade para arcar com o ônus tributário,
o princípio tem aplicabilidade, ainda que não enunciado expressamente.64
Evidencia-se, portanto, que a concepção hodierna da capacidade contributiva não
repousa mais no princípio da igualdade, como ocorria até meados do século XX, mas na
solidariedade social. Essa mudança de referencial teórico transformou a capacidade
contributiva num instrumento alargado que não se reduz apenas a regular a incidência
tributária, mas também em produzir externalidades positivas pela abstenção do poder de
tributar.
Não obstante a instituição de alguns tributos progressivos, no seu conjunto o sistema
tributário brasileiro é regressivo, fazendo com que a tributação recaia de forma mais
intensa sobre as pessoas com menor capacidade econômica, o que implica num fracasso
parcial da função distributiva que a ele se atribui, como medida transformadora da
realidade social. Isto é decorrência da representatividade elevada dos impostos indiretos
(impostos sobre o consumo) sobre o total da carga tributária e de uma pouca efetividade
dos impostos sobre o patrimônio e a renda.
Enquanto em países como EUA e Japão a tributação sobre o consumo representa em
média 15% do total da arrecadação e nos países da OCDE (Organização para a Cooperação
e Desenvolvimento Econômico) é de aproximadamente 30%, no Brasil este percentual
atinge 52%. Como consequência, a carga tributária suportada para os 10% das famílias mais
pobres em comparação com a sua renda é três vezes superior àquela paga pela população
que se encontra na faixa dos 10% das famílias mais ricas.65
63
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Repercussão Geral em Recurso Extraordinário nº 562.045-0/RS, DJ de 01.02.2008.
Tribunal Pleno. Relator: Min. Ricardo Lewandowski.
64
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.010-2/DF, DJ de 12.04.2002. Tribunal
Pleno. Relator: Min. Celso de Mello.
65
TOLENTINO FILHO, Pedro Delarue. Progressividade da tributação e justiça fiscal: algumas propostas para reduzir as
inequidades do Sistema Tributário brasileito. In: RIBEIRO, José Aparecido Carlos; LUCHIEZI JR., Álvaro; MENDONÇA,
202
Apesar da resistência à adoção de uma progressividade tributária ampla no Brasil,
percebe-se que está em marcha um processo de revisão do seu conteúdo, para adequá-la
à realidade de um Estado que, por um lado, deve tributar com moderação e, por outro,
encontra-se envolto em dificuldades financeiras que prejudicam a concretização eficiente
das políticas públicas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As reflexões que se pretendeu estabelecer nesta abordagem visaram demonstrar
que as bases da tributação no Brasil devem ser repensadas, especialmente quando se trata
de avaliar quem são as pessoas com capacidade econômica para contribuir e em que níveis
devem ser submetidas à incidência dos tributos.
Se até meados do século XX a capacidade contributiva estava fundada na ideia de
igualdade, de modo que todos deveriam contribuir proporcionalmente para ao custeio das
demandas públicas, hodiernamente está alicerçada no princípio da solidariedade social, o
que se traduz numa ampliação da sua abrangência para contemplar finalidades que
transcendem a fins meramente arrecadatórios.
Disso decorre que enquanto o princípio da capacidade contributiva delimita o espaço
tributável, evitando a incidência sobre o mínimo existencial ou para além de níveis
aceitáveis, é o princípio da solidariedade social que propicia os fundamentos para a adoção
de uma progressividade ampla, a contemplar todos os tributos nacionais.
Entretanto, reafirma-se que a ênfase conferida ao princípio da solidariedade social
não significa que a lei seja relegada a um plano secundário. A solidariedade social não pode
realizar-se fora do campo da legalidade, mas deve atuar como instrumentalizadora no
momento da elaboração da lei, para conferir-lhe um caráter redistributivo, e na
interpretação – segundo a lei – no momento da aplicação e controle jurisdicional.
Sérgio Eduardo Arbulu. Progressividade da tributação e desoneração da folha de pagamentos: elementos para
reflexão. Brasília: Ipea – SINDIFISCO - DIESE, 2011 , p. 13-15.
203
Ademais, essa nova configuração não demanda alteração do texto constitucional,
mas apenas uma reinterpretação pelos órgãos do Poder Judiciário nos seus julgamentos e
pelo Poder Legislativo na elaboração das normas tributárias. Portanto, sustenta-se que a
solidariedade social deve ser concebida como a pedra angular do sistema tributário
nacional, de modo a permitir que a progressividade seja utilizada na maior medida do
possível e para todos os tributos, como forma de dar efetividade à função redistributiva que
lhe é atribuída.
Nesse viés, cabe principalmente aos entes estatais (União, Estados, Distrito Federal
e Municípios) promoverem uma revisão das leis tributárias para, de um lado, excluir
renúncias fiscais que contrariam o interesse público e, de outro, incluir potenciais
contribuintes que ainda não estão compelidos a contribuir, para figurarem como sujeitos
passivos das obrigações tributárias. Medidas dessa natureza podem proporcionar a
manutenção da arrecadação, em face da repartição justa do ônus tributário entre todos
que figuram com capacidade para contribuir, sem uma elevação efetiva da carga tributária
global.
Encerra-se com a percepção de que a concretização de um modelo tributário
fundado na solidariedade social depende em grande medida de uma introjeção social do
seu conteúdo, para que produza um ambiente propício à revisão das legislações tributárias
nas casas legislativas, à aplicação pelos agentes do Poder Executivo e no controle exercido
pelos órgãos do Poder Judiciário.
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de 20.04.2006. Tribunal Pleno. Relator: Min. Celso de Mello.
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de 12.04.2002. Tribunal Pleno. Relator: Min. Celso de Mello.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ag. Reg. no Recurso Extraordinário nº 450.855-9/RS, DJ
de 09.12.2005. Relator: Ministro Eros Grau.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 176.382-5/CE, DJ de
02.06.2000. Segunda Turma. Relator: Min. Celso de Mello). Na mesma linha, vide o Recurso
Extraordinário nº 177.835-1/PE, DJ de 25.05.2001. Tribunal Pleno. Relator: Min. Carlos
Velloso.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 448.432-CE, DJ de
28.05.2010. Segunda Turma. Relator: Min. Joaquim Barbosa.
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23.04.2010. Segunda Turma. Relator: Min. Joaquim Barbosa.
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207
A FUNÇÃO CENTRAL DA SANÇÃO NA TEORIA PURA DO DIREITO
Leandro Caletti1
INTRODUÇÃO
Tida como uma das matrizes epistemológicas mais importantes na teoria jurídica, a
obra Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen, malgrado escrita no longínquo ano de 19342,
ainda desperta paixões e repulsas de toda a ordem, ambas viscerais. Seja pela reprodução
fiel de seu princípio purificador, seja por releituras críticas, oposicionistas ou atualizadoras,
sua relevância ainda é manifesta para a conformação das teorias jurídicas.
É assente de dúvidas que o objetivo da obra kelseniana sob exame foi analisar e
propor os fundamentos e os métodos da teoria jurídica; mais precisamente, atribuir à
ciência jurídica método e objetos próprios, suficientes para vencer confusões
metodológicas, possibilitando ao jurista uma autonomia científica que movimentos como a
“escola livre do direito” ou a “jurisprudência dos interesses”, por exemplo, jamais
supunham possíveis (a atividade pretoriana vinha, de modo inteiramente acrítico,
confundindo suas razões de decidir com a psicologia, a sociologia, a ética e a teoria política).
Com esse intuito – e por influência clara do assento que ocupou no Círculo de Viena3,
ao lado de filósofos como Rudolf Carnap, Moritz Schlick e Ludwig Wittgenstein –, Hans
1
Mestrando no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito (Mestrado) da Faculdade Meridional (IMED).
Membro do Grupo de Pesquisa "Transnacionalismo e Circulação de Modelos Jurídicos". Bolsista PROSUP/CAPES
vinculado ao PPGD-IMED. Advogado (OAB/RS). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3650515438834580. E-mail:
[email protected]
2
A edição da Teoria Pura do Direito objeto das reflexões deste estudo é a segunda edição, de 1960, não a primeira, de
1934.
3
Segundo Lacoste, o Círculo de Viena defendia uma filosofia antimetafísica, intimamente ligada às ciências da natureza,
à lógica e à matemática. O propósito do Círculo de Viena era romper com a metafísica, buscando na ciência a
fundamentação de conhecimentos verdadeiros, assim como ocorre nas ciências exatas, nas quais se têm resultados
precisos. Havia, segundo ele, clara relação entre a filosofia defendida pelo Círculo de Viena e a do positivismo, pois
ambas eram caracterizadas pelo cientificismo, pela concepção que reconhece a superioridade da ciência sobre as
demais formas de conhecimento. LACOSTE, Jean. A filosofia no século XX: ensaios e textos. Tradução: Marina
Appenzeller. Campinas, (SP): Papirus, 1992, p. 39/40.
208
Kelsen embasou sua teoria sobre o “princípio da pureza”, de acordo com o qual o enfoque
normativo deveria ser o fundamento do método e o objeto da ciência jurídica. Noutras
palavras, o direito devia ser reconhecido como norma, não como valor transcendente.
Partindo dessa matriz analítica4 da teoria jurídica, o modo de estratificação da Teoria
Pura do Direito atende a uma judiciosa divisão desse último em estática e dinâmica jurídica,
onde a primeira cuida das normas a partir dos conceitos fundamentais a qualquer sistema
jurídico (sistema de normas em vigor), ao passo que à segunda incumbe observar a
produção e a aplicação das normas a partir de atos de vontade e autorizações em escala
hierárquica (sistema de normas em movimento).
Inserto na primeira categoria – a estática jurídica – se encontra o conceito de
Sanção 5 , prevalecente não apenas porque Hans Kelsen conceitua o direito como uma
ordem coativa da conduta humana, mas também – e principalmente – porque se constitui
no elemento fundante da própria norma jurídica.
A Sanção, com efeito, articula todos os demais conceitos da Teoria Pura do Direito.
Pode-se dizer, noutra mirada, que os demais conceitos da estática jurídica confluem para a
Sanção, elemento fundante.
A partir dessas premissas, este ensaio utiliza o método dedutivo 6 , cuja premissa
maior é o exame da função da Sanção na Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, objetivando
delineá-lo como conceito fundante da norma jurídica e da unidade temática dada pelo autor
austro-húngaro ao sistema jurídico (premissa menor). As técnicas utilizadas são a Pesquisa
4
A tradição analítica do direito inaugurou-se com os trabalhos de Jeremy Bentham, no final do séc. XVIII, não obstante a
escola só ter recebido tal título a partir da contribuição de John Austin e seus escritos, apresentados na primeira metade
do séc. XIX.
5
O Conceito Operacional da Categoria Sanção fica entendido como “[...] a consequência de determinado pressuposto
estatuído na norma jurídica. Efetuado o ato ou omissão disposto na norma jurídica como antecedente, a consequência
será uma sanção também disposta na norma”. ROCHA, Leonel Severo. Introdução. In: ROCHA, Leonel Severo (Org.).
Paradoxos da auto-observação: percursos da teoria jurídica contemporânea. 2. ed. rev. e atual. Ijuí, (RS): Ed. Unijuí,
2013, p. 26.
6
“[...] base lógica da dinâmica da Pesquisa Científica que consiste em estabelecer uma formulação geral e, em seguida,
buscar as partes do fenômeno de modo a sustentar a formulação geral”. PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa
jurídica: teoria e prática. 12. ed. São Paulo: Conceito Editorial, 2011, p. 205.
209
Bibliográfica7, a Categoria8 e o Conceito Operacional9
10.
O problema de pesquisa consiste na seguinte indagação: o conceito de Sanção posto
na Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen carece de uma roupagem crítica? A hipótese para
esse questionamento exsurge, em princípio positiva, porquanto urge uma epistemologia
dialógica que contemple saberes políticos, sociais e históricos que não resumam o
conhecimento e o seu objeto numa relação de exterioridade estéril.
O objetivo geral, assim, é o de examinar a função da sanção na Teoria Pura do Direito.
Os objetivos específicos se estratificam em: 1) realizar um resgate histórico da assunção do
Positivismo e da incursão de Hans Kelsen e sua Teoria Pura do Direito; e, 2) elucidar a função
da sanção na Teoria Pura do Direito.
Os constructos teóricos deste estudo podem ser expressados pelos pensamentos de
autores como Luis Alberto Warat e Lenio Luiz Streck, além, por óbvio, da intelecção do
próprio Hans Kelsen, entre outras leituras inerentes à delimitação temática.
2. RESGATE HISTÓRICO DO SURGIMENTO DO POSITIVISMO
Positivismo filosófico e o positivismo jurídico nasceram no mesmo século (XIX) e,
não obstante congregassem, de forma invariável, os mesmos integrantes, não se
confundem enquanto doutrina filosófica11. Este ensaio se fixa, por óbvio, no positivismo
7
“[...] Técnica de investigação em livros, repertórios jurisprudenciais e coletâneas legais”. PASOLD, Cesar Luiz.
Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. p. 207.
8
“[...] palavra ou expressão estratégica à elaboração e/ou expressão de uma idéia”. PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia
da pesquisa jurídica: teoria e prática. p. 25. Grifo do autor.
9
“[...] uma definição para uma palavra ou expressão, com o desejo de que tal definição seja aceita para os efeitos das
idéias que expomos [...]”. PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. p. 37. Grifo do autor.
10
Para efeitos deste artigo, as Categorias cujos Conceitos Operacionais estejam nessa qualidade identificados em notas
de rodapé, aparecerão, no corpo do texto, grifadas com a letra inicial maiúscula.
11
Importa não confundir positivismo filosófico, surgido na Alemanha, com positivismo jurídico, de matriz francesa, ainda
que a maioria dos positivistas jurídicos tenham sido, antes, positivistas filosóficos. Ambos possuem origem no Século
XIX, todavia, o positivismo filosófico possui o seguinte conceito: “Este termo foi empregado pela primeira vez por SaintSimon, para designar o método exato das ciências e sua extensão para a filosofia (De Ia religion Saint-Simonienne, 1830,
p. 3). Foi adotado por Augusto Comte para a sua filosofia e, graças a ele, passou a designar uma grande corrente
filosófica que, na segunda metade do séc. XIX, teve numerosíssimas e variadas manifestações em todos os países do
mundo ocidental. A característica do P. é a romantização da ciência, sua devoção como único guia da vida individual e
social do homem, único conhecimento, única moral, única religião possível. Como Romantismo em ciência, o P.
210
jurídico, cuja grafia, doravante, aparece apenas como Positivismo.
No dizer de Bobbio12, trata-se de uma concepção do direito que nasce a partir da
superação da ideia de que direito natural e direito positivo eram considerados no mesmo
sentido, passando o último a ostentar a qualidade de direito em sentido próprio (o direito
positivo é direito, o natural, não). Em suma, o Positivismo é aquela doutrina segundo a qual
não existe outro direito que não o positivo.
Noutra leitura, Streck13 afirma o positivismo como uma postura científica em que o
“positivo” é referência aos fatos, entendidos como uma determinada interpretação da
realidade, composta tão somente daquilo que se pode contar, medir, pesar ou, em último
caso, definir por meio de um experimento.
Até se chegar, todavia, ao estado de coisas positivista e, mesmo, ao fim do século
XVIII e início do século XIX, em que eclodiam as correntes de pensamento das escolas
“histórica” e “da exegese”, por exemplo, houve um primeiro rompimento14, responsável
pelo cenário histórico retratado, a saber, a superação do jusnaturalismo15.
Com efeito, originariamente, os direitos nasceram naturais e de origem divina,
constituindo-se em Razão Instrumental 16 da manutenção do status quo desejado,
principalmente, pela Igreja Católica. Entretanto, ainda os juristas e filósofos da Antiguidade
acompanha e estimula o nascimento e a afirmação da organização técnico-industrial da sociedade moderna e expressa
a exaltação otimista que acompanhou a origem do industrialismo”. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. p. 776,
grifo do autor.
12
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Tradução: Márcio Pugliesi, Edson Bini, Carlos E.
Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995, p. 26.
13
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5. ed. rev. mod. e ampl. São
Paulo: Saraiva, 2014, p. 32/33.
14
O segundo rompimento, ou segunda virada, é a do próprio positivismo, levada a cabo por Kelsen e Hart, em seus
respectivos sistemas jurídicos.
15
O direito natural foi evocado pela primeira vez na tragédia “Antígona”, ao apresentar a existência de um ordenamento
superior à legislação positiva estabelecida pela vontade do Soberano. O pano de fundo é o cumprimento de uma decisão
do Soberano no sentido de não ser enterrado o corpo de Polínice, irmão de Antígona e reputado traidor pelo rei Creonte.
Porém, Antígona invoca as leis não escritas dos deuses, imutáveis e que se protraem no tempo, para enterrar o irmão
com fundamento no direito das famílias de sepultar seus mortos.
16
“[...] tipo de racionalidade a que recorremos quando ponderamos a aplicação dos meios mais simples para chegar a um
dado fim. A máxima eficiência, a melhor ratio custo-produção, é a medida do sucesso”. TAYLOR, Charles. A ética da
autenticidade. Lisboa: Edições 70, 2009, p. 20, grifo do autor.
211
grega e romana possuíam noções do direito natural. Os Romanos, por exemplo, distinguiam
o direito dos cidadãos romanos – o direito civil – do direito afeto aos não cidadãos, regidos
pelas regras da natureza das coisas – o direito natural.
O fundamento do direito natural na Antiguidade clássica remonta à Natureza e suas
leis, válidas a todos os seres da Terra, não apenas aos humanos. Aliás, Gilissen17 afirma que
o direito natural nasceu na Grécia antiga e teve como primeiros defensores os filósofos
Heráclito de Éfeso e Sófocles. Para o jusnaturalismo, o direito positivo precisaria observar
um regramento superior àquele ditado pelo Soberano, numa concepção atrelada à ideia de
que a Justiça18 é o valor fundante do direito e da sociedade.
A utilização da religião como instrumento de controle e manipulação desencadeou
um processo de ruptura da mentalidade jurídica da época, que culminou com a separação
do direito da moral e a extirpação do cunho religioso do então direito natural. Foram,
portanto, a negação da Hegemonia da Santa Sé e a liberdade religiosa que constituíram o
rompimento com o direito natural divino, num período denominado “trânsito à
modernidade19.
É, portanto, nesse espaço de tempo que a sociedade sofre transformações,
mormente sociais, políticas e econômicas, que determinam o início da saturação da tríade
direito-religião-natureza. Essas modificações se verificam a partir de três signos distintivos,
17
GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. 4. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2003, p. 364.
18
“[...] é a disposição da alma graças à qual elas se dispõem a fazer o que é justo, a agir justamente e a desejar o que é
justo. [...] A justiça nesse sentido é a excelência moral perfeita, embora não o seja de modo irrestrito, mas em relação
ao próximo. [...] Ela é perfeita porque as pessoas que possuem o sentimento de justiça podem praticá-la não somente
em relação a si mesmas como também em relação ao próximo”. ARISTÓTELES. Ética a nicômacos. 3. ed. Brasília: Editora
da Universidade de Brasília, c1985, 1999, par. 1129a – 1130b.
19
Designa o período que se inicia no século XIV e se estende até o século XVIII, no qual, de forma paulatina, a sociedade
produz e sofre transformações que se constituem na sementeira do surgimento do ideal de Direitos Humanos, do
primeiro direito humano fundamental e do próprio modernismo.
212
a saber, a Secularização20 (sustentada sobre o pilar da Reforma21 ), o Humanismo22 e os
processos revolucionários, que acabariam por positivar os primeiros direitos.
Noutro prisma, a outrora incipiente economia capitalista já dava origem a ambientes
de urbanização, em cujo bojo ocorriam discussões e se alargava a cultura. Nesse cenário, os
debates teológicos, filosóficos e científicos começavam a ultrapassar os limites das
instituições e transpor o elitismo clérico. A essa altura, o direito natural já não era mais
divino, mas secular, racional, evolução que só ocorreu graças ao iusracionalismo23. Essa
passagem para um direito natural concreto será a responsável, no século XVIII, pelas
declarações de direitos americana e francesa e, via de consequência, pelas primeiras
positivações de direitos.
Em paralelo, na esfera política, o pluralismo ainda inerente ao feudalismo
poliárquico já fora substituído pelo Estado, assim entendido um órgão de poder racional
centralizado, burocrático e soberano, que não reconhecia ente hierarquicamente superior
e enfeixava em suas mãos o monopólio no uso da força legítima e da produção legislativa.
20
Categoria que ostenta o seguinte Conceito Operacional: a secularização pressupõe mundanizar, extrair o cunho religioso
da cultura, ao efeito de uma progressiva soberania da razão e de um protagonismo do homem orientado na direção de
um tipo de vida puramente terrenal, em oposição à ordem da revelação e da fé, baseado na autoridade da Igreja. É
consequência da ruptura da unidade religiosa, e abarcará a todas os seguimentos da vida, desde a arte, a pintura, a
literatura, a nova ciência e a política a partir da obra de Maquiavel. Os temas religiosos são substituídos pelos problemas
humanos.
21
“Renovação religiosa ocorrida na Europa durante o séc. XVI, com o retorno às origens do cristianismo. Preparada pelo
humanista Erasmo de Roterdã [...], a R. foi iniciada pelo monge agostiniano Martinho I.utero [...], que [...] afixou nas
portas da catedral de Wilienberg noventa e cinco teses contra a venda das indulgências. Em sua orientação global, a R.
protestante apresenta-se como uma das vias de realização do retomo aos princípios, lema do Renascimento (v.). No
domínio religioso, o retorno aos princípios levava a negar o valor da tradição, portanto da Igreja, que se julgava sua
depositária e intérprete. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 839.
22
Este Conceito Operacional suscita definições as mais diversas, conforme se escolha a Categoria filosófica, antropológica
ou jurídica. Para o presente estudo, o norte filosófico é colhido de Nogare: “[...] Em sentido lato, este humanismo
filosófico pode significar qualquer conjunto de princípios doutrinais referentes à origem, natureza, destino do homem.
[...] Em sentido estrito, o humanismo filosófico é qualquer doutrina que em seu conjunto dignifica o homem”. NOGARE,
Pedro Dalle. Humanismos e anti-humanismos: introdução à antropologia filosófica. 13. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994,
p. 15.
23
Movimento responsável pela transformação do direito natural divino em secular. Constitui-se na base teórica dos
direitos do homem que finalmente seriam positivados nos documentos resultantes das revoluções burguesas do final
século XVIII. Como principais representantes destacam-se podemos identificar Johann Oldendorp, os autores da
escolástica tardia espanhola, Johannes Althussius e o fundador por excelência do iusracionalismo Hugo Grotius.
Também são dignos de menção os iusnaturalistas racionalistas (ou iusracionalistas) Thomas Hobbes, Baruch de
Espinosa, Samuel Pufendorf, Christian Thomasius e Christian Wolf, que servirá de elo entre o iusracionalismo e o
Iluminismo. GARCIA, Marcos Leite. A contribuição de Christian Thomasius ao processo de formação do ideal dos direitos
fundamentais. Revista Novos Estudos Jurídicos. Itajaí, v. 10, n. 2, 2005, p. 417-450, p. 423.
213
É de se notar que a exacerbação do absolutismo do Estado e a comum utilização do direito
como instrumento de governo também engrossaram o caldo social que, em seguida, se pôs
a reclamar a garantia à pessoa de um espaço pessoal e alguns direitos.
Sobrevém, então, o Renascimento 24 e, com ele, o Humanismo, seu aspecto
fundamental, numa pressuposição de que o homem é o centro da vida, considerado na sua
grandeza, mas também consciente de suas limitações e fragilidades. Esse conjunto de
modificações sociais, políticas, econômicas e jurídicas retratadas nas linhas anteriores, que
afetaram todos os segmentos da vida naquele período histórico, realizou, de forma
progressiva, uma tarefa de substituição na ordem medieval: impôs uma garantia mínima de
segurança que a ordem divina até então vigente não podia proporcionar.
Entretanto, o amadurecimento do capitalismo, já não agradava a todos. As
necessidades da burguesia capitalista emergente, com seu espírito ativo e agressivo,
marcado pelo desprezo por sentimentos e orientado para o bom êxito dos negócios não se
coadunava com o Estado Monárquico, cada vez mais absoluto e soberano, conduzido ao
extremo na teorização de Jean Bodin25.
Nasce, então, um novo consenso político crítico, que se antagoniza à origem do
poder, sua justificação, seu exercício e seus fins. Esse cenário, que culmina numa imbricação
entre iusracionalismo e Iluminismo (iusracionalismo iluminista), é o húmus para as
revoluções americana e francesa, de onde também defluem as primeiras declarações de
direitos e as incipientes positivações. Sublinhe-se que, até ali, o ato de declarar direitos
estava atrelado à soberania, de modo que, quando a autoridade se deslocou dos senhores
feudais para os reis, o poder de dizer o direito também mudou de mãos.
Por essa razão, quando os súditos desejaram a afirmação de seus direitos, redigiram
24
“Designa- se com este termo o movimento literário, artístico e filosófico que começa no fim do séc. XIV e vai até o fim
do séc. XVI. difundindo-se da Itália para os outros países da Europa. [...] A partir do séc. XV, porém, essa palavra passa
a ser empregada para designar a renovação moral, intelectual e política decorrente do retorno aos valores da civilização
em que, supostamente, o homem teria obtido suas melhores realizações: a greco-romana. Assim, o R. foi forçado a
ressaltar as diferenças que o distinguiam do período medieval, em sua tentativa de vincular-se ao período clássico e de
haurir diretamente dele a inspiração para suas atividades. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. p. 852.
25
Confira-se: BODIN, Jean. Los seis libros de la república. Tradução: Pedro Bravo. Madrid: Aguillar, 1973.
214
suas próprias declarações, à chancela posterior do soberano. Assim ocorreu com a Magna
Carta de 1215, com a Petição de Direitos de 1628 e o Bill of Rights de 1689. Outra realidade
se passou com as Declarações de 1776 (americana) e 1789 (francesa). Nelas, não se tratava
de pedir ou apelar; utilizou-se o termo “declaração” para induzir um reapoderar-se da
soberania. Ambos os processos revolucionários, portanto, tiveram a clara influência da
construção filosófica contratualista26 , para quem a liberdade era conceito fundamental,
visto que a sua ausência se constituía em verdadeira condição, na estrutura do direito
natural, para o contrato, para obter a paz e garantir o direito fundamental à vida.
É por esse motivo que, na sociedade política emergente, os direitos naturais são
transferidos ao poder absoluto do Estado, deixando a liberdade de ser individual para
atrelar-se ao corpo político. Ela só se mantinha, assim, no espaço privado insubordinado ao
poder da lei (espaço de satisfação das necessidades). As declarações de direitos decorrentes
desses processos revolucionários, especialmente a de 1789, inaugura, além da incipiente
positivação dos direitos enumerados, a concepção individualista da sociedade, embrião da
futura democracia moderna, nos dizeres de Bobbio27.
Para além disso, se pode especular que deflagrou a sementeira do moderno
constitucionalismo (vinculação dos direitos a uma Constituição), da igualdade formal, da
soberania e da separação dos poderes. Releva compreender que, passado o processo
revolucionário francês, se registrou a concentração do poder pleno na figura do legislador,
26
“Doutrina que reconhece como origem ou fundamento do Estado (ou, em geral, da comunidade civil) uma convenção
ou estipulação (contrato) entre seus membros. [...] Eclipsado na Idade Média pela doutrina da origem divina do Estado
e, em geral, pela comunidade civil, o C. ressurge na Idade Moderna e, com o jusnaturalismo, transforma-se em poderoso
instrumento de luta pela reivindicação dos direitos humanos”. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia, p. 205/206,
grifo do autor. A influência do contratualismo de Hobbes, que anunciava a compreensão dos direitos do homem a partir
do conceito de liberdade no estado de natureza (competição e confronto sem limites e corrosão das relações sociais),
sobre os eventos revolucionários americano e francês é mínimo, todavia, sua influência no pensamento de Locke e para
a formação da ideologia burguesa é manifesta. Confira-se: HOBBES, Thomas. Leviatã. Tradução: Richard Tuck. São Paulo:
Editora Martins Fontes, 2003, p. 108; LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. São Paulo: Editora Martins Fontes,
2005, p. 836/837. Em paralelo, é reconhecida a influência desse último (a lei natural coloca nas mãos de cada homem
o poder para a sua execução e, portanto, o poder de preservação de seus direitos e dos direitos dos outros homens) e
de Rousseau (“cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a suprema direção da vontade geral;
e recebemos, coletivamente, cada membro como parte indivisível do todo”) sobre a Declaração de Independência dos
Estados Unidos da América e sobre a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2003, p. 22.
27
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução: Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 51.
215
o que se constituía em salvaguarda contra possíveis arbitrariedades decorrentes da
discricionariedade do juiz na solução das controvérsias. Essa cassação à liberdade do
magistrado seria agravada, mais tarde, com a teoria da separação dos poderes, de
Montesquieu.
Os tempos são os do final do século XVIII e início do século XIX, donde remontam a
Constituição francesa (1791) e o Código napoleônico (1804), este último um signo da
superação do regime jurídico anterior. Nessa época, começam a florescer movimentos
jurídicos incipientes do Positivismo (para quem o jusnaturalismo confluía, ao longo do iter
histórico retratado), como a “escola histórica do direito”, na Alemanha, com Gustavo Hugo
e Savigny. Esse movimento preparou o terreno ao Positivismo, disparando críticas radicais
ao jusnaturalismo, reputado, para a escola, mera filosofia do direito positivo.
É também da mesma quadra o criticismo inaugurado por Immanuel Kant, que se
encarregou de refutar cientificamente o jusnaturalismo racionalista.
No âmbito do direito, essa mensurabilidade positivista será encontrada num primeiro
momento no produto do parlamento, ou seja, nas leis, mais especificamente, num tipo de
lei: os Códigos. É preciso destacar que esse legalismo apresenta notas distintas, na medida
em que se olha esse fenômeno em determinada tradição jurídica (como exemplo, podemos
nos referir: ao positivismo inglês, de cunho utilitarista; ao positivismo francês, onde
predomina um exegetismo da legislação; e ao alemão, no interior do qual é possível
perceber o florescimento do chamado “formalismo conceitual” que está na raiz da chamada
“Jurisprudência dos Conceitos”).28
Instalado o Positivismo e proclamados os primeiros Códigos, tem relevância o
surgimento da “escola da exegese”, na França, na primeira metade do século XIX.
Caracterizada por resumir o direito ao conjunto dos textos legais sistematizados nos códigos
(mormente no napoleônico) e pela estrita hermenêutica exegética que culminava numa
determinação dogmática de índole lógico-analítica e dedutiva 29 , foi a responsável pelo
primeiro quadro positivista, dito legalista, ou, na nomenclatura de Streck30, “primevo ou
28
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. p. 33.
29
CASTANHEIRA NEVES, António. Temas de teoria do Direito e do pensamento jurídico. In: Digesta. 1. ed. v. 3. Coimbra:
Coimbra Editora, 2010, p. 181.
30
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. p. 34.
216
exegético”. Adiante no curso histórico precedente à incursão de Hans Kelsen e de sua Teoria
Pura do Direito, advieram o “movimento do direito livre” e a “jurisprudência dos
interesses”.
O primeiro, de origem germânica, nas primeiras décadas do século XX, advogava a
libertação do direito daquilo que era legislado, da lei (precisamente, queria designar
“direito livre da lei”). Combatia a metodologia clássica daquele positivismo legalista alhures
retratado, agora aperfeiçoado como “científico” pelo historicismo, para propor uma esfera
de liberdade do operador jurídico na procura do direito que fosse responsável e não
exaurível pela codificação.
Antes de se adentrar na análise da segunda (jurisprudência dos interesses), é mister
fazer menção à sua predecessora, a “jurisprudência dos conceitos”, teoria argumentativa
que pretendia resolver a celeuma entre proibição de criação do direito pelos juízes versus
existência de lacunas na positivação (constatação de ruína da ideia do fechamento do
sistema positivista, preconizada pelo exegetismo).
Apoiada na lógica, a “jurisprudência dos conceitos” deduzia princípios jurídicos a
partir de conceitos indeterminados, apegando-se às visões ontológica e essencialista, tudo
a procurar a comprovação de que a lei era fértil e inventiva de per si, sendo desnecessário
descer às situações mundanas, concretas da vida.
A “jurisprudência dos interesses”, enfim, também nasceu na primeira década do
século XX e reinou até a década de 1930, pelo menos, propugnando uma oposição direta à
escola francesa exegética e à lógica essencialista da “jurisprudência dos conceitos”. Sua
proposta era clara e determinada: substituir, na celeuma antes descrita da insuficiência da
codificação, a subsunção legal rígida pela valoração das situações fáticas. Noutras palavras,
sai a lógica estanque e entra vida fecunda e factível.
Presenciava-se, por conta disso, a superação do positivismo exegético pela assunção
da discricionariedade do julgador; o elemento volitivo discricionário, antes encerrado na
tarefa do legislador, troca novamente de cadeira (porque outrora já havia saído do banco
217
do Soberano ao do legislador) e vai sentar na atividade jurisdicional, caracterizando a
decisão concreta.31
Castanheira Neves32 anota o “êxito prático total” dessa corrente metodológica, não
circunscrito ao cenário jurídico alemão, mas extensiva a toda a Europa continental. Segundo
o autor, o contributo mais importante da corrente foi compreender o direito não apenas
como uma apreensão externa da sociedade, vendo-o realmente como a solução resultado
de problemas prático-normativos.
Nessa esteira, o direito afastava-se cada vez mais do eixo exegético e do formalismo
da “escola histórica” e da “jurisprudência dos conceitos”, num claro influxo sociológico
permanente e dominante. Sucede, todavia, que essa virada axiológica se alargou em níveis
tais que produziu um verdadeiro colapso na ciência jurídica da segunda metade do século
XX. Cada eixo social, por conta da mixórdia estabelecida, procurava influenciar a atividade
jurisdicional, misturando ao direito toda a ordem de conceitos. O resultado eram decisões
casuísticas e juridicamente não aquilatáveis.
É precisamente esse o cenário histórico, social e jurídico em que Hans Kelsen resolve
se imiscuir.
Quando Hans Kelsen, na segunda década deste século [XX], desfraldou a bandeira da Teoria
Pura do Direito, a Ciência Jurídica era uma espécie de cidadela cercada por todos os lados,
por psicólogos, economistas, políticos e sociólogos. Cada qual procurava transpor os muros
da Jurisprudência, para torná-la sua, para incluí-la em seus domínios.33
Trindade 34 , observando que Kelsen, ombreado por Bobbio, se constituem nos
31
Até hoje se discute a perniciosidade dessa abertura, hodiernamente praticada por outras vias, como a “ponderação”
indiscriminada e incorretamente aplicada. Embora tal problemática não caiba na delimitação teórica deste ensaio,
remete-se o leitor à solução que se entende mais correta, a saber a “hermenêutica crítica do direito”. Confira-se, para
tanto: STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5. ed. rev. mod. e
ampl. São Paulo: Saraiva, 2014; STRECK, Lenio Luiz. Lições de crítica hermenêutica do direito. 2. ed. rev. e ampl. Porto
Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2016; MORAIS, Fausto Santos; TRINDADE, André Karam. Ponderação, pretensão
de correção e argumentação: o modelo de Robert Alexy para fundamentação racional da decisão. Revista SJRJ. Rio de
Janeiro, v. 19, n. 35, dez. 2012, p. 147/166.
32
CASTANHEIRA NEVES, António. Temas de teoria do Direito e do pensamento jurídico. p. 236.
33
REALE, Miguel. Filosofia do direito. 16 ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 455.
34
TRINDADE, André Karam. Considerações sobre o problema do fundamento do Direito: breve análise das teorias de
Kelsen, Bobbio, Hart e Dworkin. Revista Eletrônica Direito e Política, Itajaí, (SC), v. 9, n. 2, 2º quadrimestre de 2014.
Disponível em: <www.univali.br/direitoepolitica>. Acesso em: 10 set. 2015.
218
principais expoentes do Positivismo, registra que o autor austro-húngaro, ao desenvolver
sua Teoria, possuía duas preocupações centrais: o fundamento de validade das normas e
da unidade do sistema (para o que o conceito de Sanção vai corresponder grandemente).
Escreveu-se, alhures, que nas escolas examinadas havia a sementeira do Positivismo.
Kelsen, com sua Teoria purificadora, não investiu contra elas; seu principal foco foi reforçar
o método analítico proposto pelos conceitualistas de modo a responder ao crescente
desfalecimento do rigor jurídico que tanto a “jurisprudência dos interesses”, quanto a
“escola do direito livre” impunham através do aparecimento de argumentos psicológicos,
políticos e ideológicos na interpretação do direito.35
Pois bem, com a obra em comento, Kelsen pretendeu defini-lo a partir da descrição
de uma ciência social de forma a libertá-lo de laços ideológicos. Daí o qualificativo "pura",
que se refere à Teoria, não ao direito. Não existe um "direito puro" e Kelsen, por óbvio,
tinha conhecimento disso. É a teoria, isto é, a descrição, o conhecimento, que deve sofrer
a purificação metódica proposta.
A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo - do Direito positivo em geral, não
de uma ordem jurídica especial. É teoria geral do Direito, não interpretação de particulares
normas jurídicas, nacionais ou internacionais. Contudo, fornece uma teoria da
interpretação. Como teoria, quer única e exclusivamente conhecer o seu próprio objeto.
Procura responder a esta questão: o que é e como é o Direito? Mas já não lhe importa a
questão de saber como deve ser o Direito, ou como deve ele ser feito. É ciência jurídica e
não política do Direito. Quando a si própria se designa como “pura” teoria do Direito, isto
significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir
deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa,
rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência
jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico
fundamental.36
A Teoria Pura do Direito, explica Warat37, foi concebida como um sistema conceitual,
destinado a fornecer tanto as normas metodológicas para a adequada produção do saber
35
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. p. 34.
36
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 1.
37
WARAT, Luis Alberto. A partir de Kelsen. Seqüência, Florianópolis, v. 3, n. 4, 1982, p. 107/115, p. 108/109.
219
dogmático do direito, como as categorias gerais desse modelo de conhecimento. Ou seja,
como epistemologia e como dogmática geral. Nesse sentido, a proposta kelseniana
apresentou um grau de adaptabilidade tal, que, depois dela, resulta difícil tentar
compreender e explicar a lógica da dogmática jurídica à margem de suas referências
analíticas.
A Reine Rechtslehre, em síntese apertada, veio para superar o Positivismo exegético,
inaugurando um Positivismo normativista que não separa o direito da moral, separa a
ciência do direito da moral. Em Kelsen, o cientista do direito faz um ato prescritivo, não
descritivo, relegando o ato volitivo ao aplicador da lei. É por essa razão que, quando
(falaciosamente) se atribui a Kelsen a abertura discricionária à intelecção do juiz – no
momento presente, um flagelo constante –, deve-se objetar, afirmando: “juiz não faz
ciência, faz política jurídica”38.
Aliás, poucos são os juristas que conseguem observar essa divisão na Teoria Pura do
Direito, que também se consubstancia na sua principal chave de leitura – e de compreensão
–: Kelsen a biparte em ciência do direito, uma metalinguagem (específica, própria, técnica),
e o direito, a linguagem objeto ou comum.39
Poder-se-ia arguir, no aspecto, que Kelsen tenha insuflado um certo egocentrismo
textual, o que é verdade. Ao erguer sua Teoria na norma fundamental gnoseológica e na
pureza metódica, por certo exteriorizou explicitamente essa sistemática.
Entretanto, as problemáticas insertas por Kelsen na sua Reine Rechtslehre, ao longo
do tempo, foram sofrendo um processo de obliteração, produto principalmente das
interpretações críticas que propugnam a ênfase no caráter político do direito e na dimensão
jurídica da política. E o conceito de Sanção cunhado pela Teoria Pura do Direito não escapa
a essa tendência.
38
A expressão, já consagrada no movimento da Crítica Hermenêutica do Direito, é de Streck. STRECK, Lenio Luiz. Verdade
e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. p. 35, nota de rodapé n. 7.
39
A delimitação temática imposta a este ensaio não permite o aprofundamento das demais problemáticas da Teoria Pura
do Direito, excepcionado conceito de Sanção, a ser examinado na seção vindoura.
220
3. A FUNÇÃO CENTRAL DA SANÇÃO NA TEORIA PURA DO DIREITO
Como já escrito, Kelsen partiu de uma matriz analítica da teoria jurídica para
estratificar a Teoria Pura do Direito numa engenhosa bipartição em estática e dinâmica
jurídicas, onde a primeira se relaciona com as normas a partir dos conceitos fundamentais
a qualquer sistema jurídico (sistema de normas em vigor), ao passo que à segunda incumbe
observar a produção e a aplicação das normas a partir de atos de vontade e autorizações
em escala hierárquica (sistema de normas em movimento).
Por outro lado, se Kelsen conceitua o Direito como uma ordem coercitiva da conduta
humana, é porque o conjunto de normas que foram esta ordem estatui atos de coerção, ou
seja, sanções. Sob essa ótica, a sanção surge como elemento fundante da própria norma
jurídica e portanto integra o momento estático do ordenamento jurídico, articulando em
torno de si os demais conceitos expostos na Teoria Pura.40
Definindo o direito como uma ordem de coação 41 , Kelsen indica que sua função
essencial é a de regulamentar o emprego da força nas relações entre os homens,
aparecendo, assim, como uma organização da força.
A centralidade do conceito de Sanção, nessa conformidade, faz com que todos os
demais elementos da estrutura normativa ganhem definição a partir desse paradigma, que
se constitui, inclusive, no critério adotado para individualizar e identificar o ordenamento
jurídico – afinal, uma norma só é considerada jurídica se prevê uma sanção para seu
descumprimento, ou, pelo menos, esteja em relação com uma outra norma que o faça. Em
suma, a Sanção ostenta o caráter de consequência de determinado pressuposto declarado
na norma jurídica; praticado o ato ou a omissão prescritos na norma como antecedente,
deflagra-se a Sanção como consequente.
Podem-se elencar pelo menos quatro caracteres indeléveis do conceito
sancionatório da Teoria Pura do Direito, a saber: 1) diferencia sancionar da coação pura e
40
KEGEL, Patrícia Luiza. Uma Análise do Conceito de Sanção no Sistema Jurídico de Hans Kelsen. In: ROCHA, Leonel Severo
(Org.). Paradoxos da auto-observação: percursos da teoria jurídica contemporânea. 2. ed. rev. e atual. Ijuí, (RS): Ed.
Unijuí, 2013, p. 63.
41
Coação, em Kelsen, deve ser entendida como a reação Estatal às condutas consideradas indesejáveis, reação esta
externada através da inflicção de uma sanção, que se faz acompanhar de um ato impositivo ou de força. É esse, aliás, o
signo distintivo entre o direito e os outros sistemas de controle social.
221
simples (a coação pode ou não constar do ato sancionador); 2) fixa a Sanção como produto
de uma conduta humana; 3) reconhece a diferença entre a sanção penal e a civil; e, 4)
determina que o sancionamento seja aplicado por autoridade competente (determinada
em norma superior).
Dentro do que propugna este ensaio, importa demonstrar quais e de que modo os
outros conceitos da estática jurídica se relacionam com o de Sanção, concretizando a função
central dessa última na Teoria Pura do Direito.
A uma, liga-se à Sanção o conceito de ato ilícito, todavia, invertido. Um ato ser ilícito
não o liga, necessariamente, a uma sanção; contrario sensu, um ato ativo ou omissivo só
recebe o qualificativo de ilícito se tem uma sanção como consequente. Assim, quando um
proceder é antecedente da sanção consequente, o ilícito é requisito, não uma negação da
norma.
A duas, também aproximado do conceito de Sanção tem-se o de dever jurídico,
entendido como proceder oposto ao ato ilícito. Mantendo-se a lógica invertida, a pessoa
que comete o ilícito não cumpre o dever jurídico, aplica a norma, ao passo que aquela que
adimple o dever jurídico (não comete o ilícito), observa a norma.
A três, tem-se a relação com o conceito de responsabilidade, no sentido de
possibilidade de uma pessoa sofrer uma Sanção, podendo-se agregar, ainda, nexos com os
conceitos de direito subjetivo (proteção jurídica de um interesse), de pessoa física e de
pessoa jurídica. As três últimas hipóteses só existem porque incide sobre elas um complexo
de normas, cujo componente essencial, como visto, é a Sanção.
Ao fim e ao cabo, a Teoria Pura do Direito se alinha muito mais como teoria do
sistema jurídico do que como teoria da norma, do que se infere que a Sanção é fundamental
também para o fechamento do seu sistema42. Esse paradigma – da função central da Sanção
no sistema jurídico – sofreu (e sofre) diversas críticas, sendo as formuladas por Norberto
Bobbio (inicialmente, inspirado em Kelsen) e Herbert Hart as mais célebres.
42
KEGEL, Patrícia Luiza. Uma Análise do Conceito de Sanção no Sistema Jurídico de Hans Kelsen. p. 66.
222
O primeiro43, admoesta com o entendimento de que o direito possui novas funções
no estado promocional, acenando com as “sanções positivas”, que atuam como estímulo
às condutas socialmente desejadas (objeta que a Sanção não possui apenas o aspecto
repressivo, mas também o positivo).
O segundo44, se insurge não contra o conceito de Sanção propriamente, mas em
desfavor de seu papel e função dentro do sistema jurídico (a concepção kelseniana do
direito como ordenamento coercitivo da conduta humana reduziria a realidade jurídica).
Ambos, entretanto, também apresentaram soluções deficientes.
Bobbio, porque reduz o direito à matriz funcionalista; Hart, porque seu sistema
aberto à aceitação do político pressupõe o cenário inglês, o que retira do debate ideologias
significativas.
Verificou-se que o normativismo kelseniano caracteriza a sanção como a privação devida de
certos bens: vida, saúde, liberdade, etc., feita por um órgão da comunidade; assim, a sanção
é vista como um ato de coerção devido. Mas, a definição de coerção que Kelsen oferece é
extranormativa. É fruto de um estudo comparativo de todos os ordenamentos jurídicos
existentes ou que tenham existido. Assim, o conceito de coerção devida surge de um estudo
empírico e não estrutural; surge a partir de uma análise por meio da qual se define a
estrutura lógica das normas e proposições jurídicas e se indica um dos elementos materiais
das ordens jurídicas. Como se pode, portanto, construir uma teoria pretensamente rigorosa
a partir de um elemento tão pouco delimitado? Por certo, a definição de sanção, em Kelsen,
é circular.45
A solução a que este estudo se perfila não é contra Kelsen, a favor de Bobbio, Hart,
Warat ou quem quer que seja. Ela também não deprecia as assertivas criadas por cada um,
representantes maiores e mais profícuos do Positivismo. Ela se resume numa constatação
e a numa proposição.
A constatação: um sistema jurídico precisa ter um outro eixo central que não o
conceito de Sanção, dada a circularidade viciosa muito bem apontada pelo mestre
argentino.
43
BOBBIO, Norberto. Contribución a la teoría del derecho. Valência: Fernando Torres Editor, 1980, p. 387.
44
HART, Herbert L. A. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994, p. 105.
45
WARAT, Luis Alberto. A pureza do poder. Florianópolis: Editora da UFSC, 1983, p. 95.
223
A proposição: a construção de uma epistemologia dialógica que contemple saberes
políticos, sociais e históricos que expandam o conhecimento e o seu objeto para além de
uma relação de exterioridade amorfa e estéril.
Essa nova percepção, pluralista, a ser edificada diuturnamente pelos juristas (os da
academia e os dos tribunais), deve ser aberta, como queria Hart, positiva, do ponto de vista
da funcionalidade da Sanção, como aspirou Bobbio, e sem desconsiderar o edifício
doutrinário do mestre austro-húngaro; deve trazer à tiracolo, sobretudo, o signo da
inventividade, do imponderável.
Registre-se que, por advogar essa releitura, este ensaio não ostenta o atrevimento
de afirmar errônea a Teoria Pura do Direito; demarcar sua inadequação ao momento
presente, sim, é a terminologia mais apropriada. Todavia, um sistema jurídico redivivo, sem
estereótipos pré-taxados e que consolide experiências sociais, econômicas, políticas,
religiosas, dentre outras, que resgatam qualidades humanas importantes, depende,
inexoravelmente, de uma postura crítica e questionadora.
Enfim, se trata de (re)criar uma epistemologia visionária, sementeira de um
comportamento que refuta a “castração simbólica” a que alude Warat46 no aclamado “A
ciência jurídica e seus dois maridos”. Depende de nós; de sermos, na academia, nos
escritórios e nos tribunais (mas principalmente nas universidades, no ministério do ensino
jurídico), menos o “amor-dever” de Teodoro e mais o amor intenso, alegre e autônomo de
Vadinho.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desde o jusnaturalismo, passando pelo processo de Secularização e racionalização
do direito natural (iusracionalismo), pela substituição do feudalismo pela figura clássica do
Estado, pelo Humanismo ínsito ao Renascimento, pelo contratualismo antecedente aos
processos revolucionários americano (1776) e francês (1789) e pelas primeiras codificações,
46
WARAT, Luis Alberto. A ciência jurídica e seus dois maridos. p. 63.
224
tudo confluía à assunção do Positivismo, num impulso constante e imbricado.
Hans Kelsen, percebendo o cenário de caos que rodeava o sistema jurídico do início
do século XX, exsurge com sua Teoria Pura do Direito, inaugurando um Positivismo
normativista que resgatava o formalismo da “escola histórica”, agregando bases científicas
e metodológicas até então inéditas.
A teoria jurídica de Kelsen preocupou-se somente com a análise do Direito positivo
enquanto uma realidade normativa, desconsiderando interesses políticos.
A teoria jurídica pura referia-se exclusivamente ao Direito positivo com base em
categorias próprias (normativas) que não fossem derivadas de outras disciplinas, nem se
encontrassem envoltas por juízos políticos, pretensões ideológicas ou obscuridades
metafísicas.
Inserto na estática jurídica da Teoria Pura do Direito, o conceito de Sanção prevalece
não apenas porque Hans Kelsen conceitua o direito como uma ordem coativa da conduta
humana, mas principalmente porque se constitui no elemento fundante da própria norma
jurídica e, principalmente, do sistema jurídico. É por essa razão que se afirma que a Teoria
Pura do Direito é mais uma teoria do sistema jurídico do que da norma.
Diante do problema de pesquisa delimitado – indagação acerca de se o conceito de
Sanção posto na Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen carece de uma roupagem crítica –,
confirmou-se positiva a hipótese aventada, consistente na construção de uma
epistemologia dialógica que contemple saberes políticos, sociais e históricos que não
aprisionem o conhecimento e o seu objeto numa relação de exterioridade estéril.
Essa constatação derivou do exame do conceito de Sanção, inserto na estática
jurídica da Teoria Pura do Direito, definição essa que conforma não apenas a estrutura da
norma jurídica, mas também – e mormente – o fechamento de todo o sistema jurídico
estratificado por Hans Kelsen.
O substrato formado por esse paradigma kelseniano de centralidade do conceito de
Sanção, pelas críticas de Bobbio, Hart e Warat e pela confirmação diária da insubsistência
225
de um sistema jurídico cuja premissa é o ato sancionador dão ensejo a um reclamo – já
intempestivo – por uma nova epistemologia.
Uma nova virada que contemple e dialogue com saberes políticos, sociais e
históricos, tudo a expandir o conhecimento e o seu objeto para além de uma relação de
exterioridade amorfa e estéril.
A construção desse novo paradigma é tarefa diária e afanosa, que não pode tardar,
pena de castrar-se o inventivo – caractere vivo do direito que se renova diariamente – nas
molduras pré-concebidas e já consabidamente saturadas.
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WARAT, Luis Alberto. A pureza do poder. Florianópolis: UFSC, 1983.
WARAT, Luis Alberto. A partir de Kelsen. Revista Seqüência, Florianópolis, v. 3, n. 4, 1982,
p. 107/115.
228
RONALD DWORKIN: A INFLUÊNCIA PARA A INTERLOCUÇÃO ENTRE DIREITO
E LITERATURA
Luís Francisco Simões Boeira1
INTRODUÇÃO
Este trabalho visa desenvolver uma análise crítica ao pensamento de Ronald
Dworkin, e a sua contribuição para a interferência da literatura no direito e no julgamento
dos juízes tendo como parâmetro os seus escritos em relação ao Romance em Cadeia2e o
julgamento com base na integridade3.
O entendimento de Dworkin é o de que o direito precisa ser decidido de forma
ampla 4 com conceito de integralidade, e que esta precisa ir além do que as decisões
baseadas no convencionalismo 5 ou as que decidem com base no pragmatismo 6 . Tais
decisões precisam ser interpretativa, para que se consiga uma análise concisa do processo,
podendo assim decidir o caso da maneira mais adequada. Ao sentenciar baseado na
integridade, o magistrado precisa ir além, em suas decisões, tendo em vista que, conforme
1
Mestrando do PPGD da Faculdade Meridional (IMED), Mecanismos de Efetivação da Democracia e da Sustentabilidade,
[email protected].
2
“Podemos comparar o juiz que decide sobre o que é o direito em alguma questão judicial, não apenas com os cidadãos
da comunidade hipotética que analisa a cortesia que decidem o que essa tradição exige, mas com o crítico literário que
destrinca as várias dimensões de valor em uma peça ou um poema complexo” (DWORKIN, 2014, p. 275).
3
“Segundo o direito como integridade, as proposições jurídicas são verdadeiras se constam, ou se derivam, dos princípios
de justiça, equidade e devido processo legal que oferecem a melhor interpretação construtiva da prática jurídica da
comunidade” (DWORKIN, 2014, p. 272).
4
“Os dois tipos principais de convicções que estão ao alcance de todo o intérprete – sobre a interpretação que se adapta
melhor ou pior a um texto, e sobre qual das duas torna o romance substancialmente melhor são inerentes a seu sistema
geral de crenças e atitudes; nenhum tipo é independente desse sistema de alguma maneira que o outro não o seja”
(DWORKIN, 2014, p. 282).
5
“O convencionalismo exige que os juízes estudem os repertórios jurídicos os registros parlamentares para descobrir que
decisões foram tomadas pelas instituições às quais convencionalmente se atribui poder legislativo” (DWORKIN, 2014,
p. 272).
6
“O pragmatismo exige que os juízes pensem de modo instrumental sobre as melhores regras para o futuro” (DWORKIN,
2014, p. 272).
229
Dworkin (2014, p. 273) “direito como integridade é diferente, é tanto o produto de sua
interpretação abrangente da prática jurídica quanto sua fonte de inspiração”.
Neste contexto, Ronald Dworkin ilustra em sua obra, “O Império do Direito”, a
tomada de decisão tendo como parâmetro o uso da metáfora do Romance em Cadeia7, onde
o autor se utiliza de análise de um julgador com capacidade além da média para tomar a
melhor decisão. Com base na utilização de análise crítica, de como os juízes devem tomar
as decisões corretas se utilizando de julgados preexistentes, como se estivesse escrevendo
um romance, onde vários autores, se revezassem na elaboração de capítulos intercalados
sendo que cada romancista deve escrever o capítulo que lhe é proposto em sintonia com os
capítulos escritos anteriormente pelos autores que o antecederam.
Para Ronald Dworkin, o juiz para obter êxito em seu julgamento precisa decidir com
base nos precedentes de julgamentos anteriores, e consequentemente, julgar de acordo
com os princípios que melhor se enquadrem no caso sob judice, devendo sempre atuar de
forma ampla8, tendo como base a integridade, ao passo que se decidir diversamente ficam
os magistrados vinculados ao que julgadores/autores anteriores previamente decidiram/
escreveram. Também se dá a eles, a possibilidade de que decidam/ escrevam de forma
inovadora,9 pois o julgador pode, de acordo com uso de inovação, decidir da forma que para
ele melhor se adapte ao caso em análise.
7
“[...] podemos encontrar uma comparação ainda mais fértil entre literatura e direito ao criarmos um gênero literário
artificial que podemos chamar de “romance em cadeia”“ (DWORKIN, 2014, p. 275).
8
“Quando um juiz declara que um determinado princípio está imbuído no direito, sua opinião não reflete uma afirmação
ingênua sobre os motivos dos estadistas do passado, uma afirmação que um bom cívico poderia refutar facilmente, mas
sim uma proposta interpretativa: O princípio se ajusta a alguma parte complexa da prática e a justifica; oferecer uma
maneira atraente de ver, na estrutura dessa prática, a coerência de princípio que a integridade requer” (DWORKIN,
2014, p. 274).
9
“Os Juízes, porém, são igualmente autores e críticos. Um juiz que decide o caso McLoughlin ou Brown introduz
acréscimos na tradição que interpreta; os futuros juízes deparam com uma nova tradição que inclui o que foi feito por
aquele” (DWORKIN, 2014, p. 275).
“Uma vez que se decida, vai acreditar que a correta interpretação do caráter de Scrooge é aquela que torna o romance
melhor, segundo sua concepção” (DWORKIN, 2014, p. 281).
230
2. DA LITERATURA E A LIGAÇÃO COM A DECISÃO
A trama do Romance em Cadeia dá um novo sentido aos julgamentos10, isto por que
para Dworkin, o juiz necessariamente precisava julgar de acordo com os parâmetros
utilizados pelos julgados anteriores, mas tem a possibilidade de inovar decidindo com base
na integridade do Direito11, isto significa que o pragmatismo utilizado no julgamento não
mais pode ser utilizado, devendo ser utilizado à decisão com base na análise do Direito de
forma integral.
Por isso, defendo que os princípios não abrem a interpretação, e sim fecham /limitam. Os
princípios (re) inserem a facilidade ao direito, e espelham uma determinada tradição jurídica
que permitirá um diálogo constante entre a decisão particular com todo o ordenamento.
Deste modo, proporcionam que a atividade jurisdicional, por intermédio da fundamentação,
que é condição de possibilidade, publicize o sentido que será intersubjetivamente
controlado, e que tenderá a manter a coerência e a integridade do direito (STRECK, 2013, p.
358).
Para Dworkin os casos difíceis, precisam ser decididos de forma mais ampliada12, se
utilizando um ponto de vista interno e outro ponto de vista externo. Nesta situação, o ponto
de vista externo é a visão dos historiadores, que tratam de analisar o momento atual do
sistema jurídico e em que circunstâncias ele é aplicado ao caso sob judice. Já do ponto de
vista interno, os juristas analisam o caso de forma argumentativa para pôr em prática a
vontade da população por meio da análise dos precedentes e de julgados que antecederam
10
“Dworkn, em sentido contrário, apresenta abjeções à construção hartiana. Primeiramente, o jusflosófo norteamericano defende que as partes num processo possuem o direito de que a solução jurídica para o casso esteja de
acordo com o ordenamento previamente estabelecido. Este, por sua vez, seria fundamentado para todos os casos,
fáceis ou difíceis, impedindo tanto a discricionariedade judicial como a poder criativo dos juízes, nos termos proposto
por Hart” (STRECK, 2013, p. 358).
11
“A objeção não é bem fundada, pois repousa sobre uma dogmática. Constitui uma parte conhecida de nossa experiência
cognitiva o fato de algumas de nossas crenças e convicções operarem como elementos de comprovação ao decidirmos
até que ponto podemos ou devemos aceitar ou produzir outras, e a comprovação é efetiva mesmo quando as crenças
e atitudes coercitivas são polemicas. [...] A possibilidade de as convicções de um intérprete exercerem um controle
recíproco, como deve ser o caso se ele estiver realmente interpretando, vai depender da complexidade e da estrutura
do conjunto de suas opiniões sobre o assunto” (DWORKIN, 2014, p. 282-284). “A final, ele não tem nada de que possa
afastar-se (ou a que se apegar) enquanto não elaborar um romance-em-execução a partir do texto, e as diversas
decisões que discutimos são decisões que deve tomar exatamente para poder fazê-lo” (DWORKIN, 2014, p. 285).
12
“Este ordenamento jurídico seria composto não apenas por regras, mas também por princípios. Isto, em decorrência do
fato de que uma sociedade é formada por pessoas que além de obedecerem às regras criadas pelo acordo político,
reconhecem também princípios comuns como norteadores de suas práticas (Comunidade de Princípios). Em
contraposição a Hart, estes princípios vedariam um juízo discricionário” (STRECK, 2013, p. 359).
231
o caso Analisado. “As duas perspectivas sobre o Direito, a externa e a interna, são
essenciais, e cada uma delas deve incorporar ou levar em conta a outra” (DWORKIN, 2003,
p. 18).
[...] observa-se que em Dworkn o direito é um conceito interpretativo. Entende a prática
jurídica é, primordialmente, interpretativa, uma vez que em juízo as partes conflitantes
apresentam interpretações alternativas que pretendem dizer o Direito para o caso. Assim, a
interpretação, para além de um caráter meramente instrumental, é imprescindível, é
indissociável do fazer jurídico. Nestes termos, o Direito transcenderia os catálogos de
princípios e regras, seria uma atitude interpretativa e reflexiva, dirigida à política no mais
amplo sentido. (STRECK, 2013, p. 359-360).
Para Ronald Dworkin, há uma grande ligação entre a literatura e o direito13, para ele
o trabalho dos juízes, assim como nas tramas dos romances, deve organizar seus julgados
de acordo com os que lhe antecederam. “Podemos encontrar uma comparação muito fértil,
entre a literatura e direito, ao criarmos um gênero literário artificial que podemos chamar
de “romance em cadeia”” (DWORKIN 2003 p.275), sendo assegurada aos mesmos a
utilização de princípios que entendam ser pertinente ao caso em sua análise.
O romance em cadeia apresenta uma perspectiva de que a aproximação entre
direito e literatura deve ser apreciado, tendo uma comparação entre a atuação de um juiz
com a de romancistas que trabalham suas escritas de forma conjunta, se utilizando dos
escritos de capítulos/julgados anteriores, para continuar a trama sempre com a devida
coerência na escrita. Conforme STRECK, (2013, p. 360) “Esta aproximação metodológica do
Direito com a Literatura é observada quando apresenta a figura da chain novel, comparando
o trabalho do juiz como o de um romancista em cadeia”.
Ao se utilizar da parábola do juiz Hercules, Dworkin tenta enfatizar que no judiciário
existe a necessidade de encaminhar as decisões da forma mais adequada ao caso. Sendo
13
“[...] Dworkin aproxima o Direito da Literatura. Como é sabido, o jusfilosófo pertencia ao movimento do law and
literature que albergava tanto as abordagens que estudavam narrativas literárias relevantes para a compreensão do
fenômeno jurídico (law in literature), como também a aplicação de técnicas da crítica literária aos textos legais (law as
literature). Neste prisma, a interpretação não terá como objetivo fornecer um juízo de valor das proposições jurídicas,
tampouco buscar a voluntas legislatoris, mas sim tornar o objeto da interpretação o melhor possível” (STRECK, 2013, p.
360).
232
também estas, as que mais se encaixem 14 aos julgados que antecederam aquele em
questão, ao tomar a decisão, tendo como base a análise de várias alternativas e precisando
estudar qual das decisões será a que irá ser mais adequada, Hercules toma para si a
responsabilidade de julgar o caso, tendo como parâmetro as decisões de casos
semelhantes, e ir ainda mais além, fazendo com que a sua decisão seja a que corresponda
ao caso em apreço como a resposta correta. Ele defende o direito como integridade e,
portanto, quer uma interpretação de acordo com que fizeram os juízes em casos anteriores.
Também, é possível que os juízes realizem a inovação15 em suas decisões, desde que esse
sempre se utilize de interpretação, e não de ativismo jurídico, necessitando esta resposta
ser devidamente fundamentada para que a esfera jurídica tenha a maior transparência
possível.
Ele sabe que outros juízes decidiram casos que, apesar de não exatamente iguais ao seu,
tratam de problemas afins. Devem considerar as decisões deles como parte de uma longa
história que ele tem que interpretar e continuar, de acordo com sua opinião [...] (DWORKIN,
2003, p. 286).
Esta busca por uma decisão/capitulo segue na aproximação da literatura e o direito,
pois existe a necessidade de o julgamento se dar tomando como parâmetro as várias
decisões anteriormente escritas,16 fazendo com que os juízes tenham atitudes/atuação de
forma bastante próxima do que realizam os escritores na literatura. Para estes, não há como
escrever um capítulo de um romance sem que este seja um seguimento do que foi escrito
nos capítulos antecedentes, o que não deixa o escritor engessado17 a escrever conforme o
14“Esta
perspectiva impede que o autor/interprete seguinte proceda de modo subjetivista – no sentido que a história
começa nele, e por isso, poderia fazer o que quisesse – a ideia não é um conjunto de crônicas ou contos com os mesmos
personagens, mas uma única história, iniciada antes dele e continuada como se escrita por um só, mesmo sendo uma
obra a inúmeras mãos” (STRECK, 2013 p. 361).
15
“É possível um tribunal revisar entendimento consolidado na jurisprudência”? Sim. Na common law, os juristas
americanos chamam isto de overruling. Tal operação, entretanto, jamais poderá ser realizada, monocraticamente, sem
que se justifiquem as razões que tornaram os precedentes anacrônicos e/ou insustentáveis. (TRINDADE, 2014, p. 2).
16
“Entretanto, Dworkin adverte que, o juiz, assim como cada escritor da cadeia, deve proceder a uma avaliação geral do
que já foi dito pelos juízes anteriores, isto não significa que ele esteja obrigado a se ater, apenas, ao que se encontra
assentado jurisprudencialmente, sendo-lhe facultado, inclusive, alterar o rumo da história de acordo com as
possibilidades verificadas no presente” (TRINDADE, 2014, p. 3).
17
“Para o jusfilósofo, há uma interpretação da história que deve ser coerentemente reconstruída e adequadamente
continuada. Não é somente o ontem, também não é só o hoje, tampouco apenas intérprete, ou tão só autor. A jurisdição
deve imbricar a história jurídico-institucional do passado construída coletivamente com as exigências do hoje”. (STRECK,
233
pensamento de quem escreveu os capítulos anteriores Sempre que o romancista escreve
um texto que teve capítulos escritos por outros autores, ele precisa se embasar nos
capítulos anteriores, mas irá colocar a sua carga de ficção para dar um ar de inovação ao
romance.
Os juízes, para Dworkin, ao escrever uma sentença/capítulo, devem sempre atuar
como os romancistas,
18
se utilizar de outros julgados para escrever um novo
capítulo/sentença, e reescrever a história com a sua pitada de inovação para continuar a
escrever o conto do judiciário, isto precisa ser feito com a perfeita busca pela melhor
resposta, neste caso, sem se distanciar em demasiado do que já foi anteriormente posto
por outros julgadores.
Cada um deve escrever seu capítulo de modo a criar da melhor maneira possível o romance
em elaboração, e a complexidade dessa tarefa reproduz a complexidade de decidir um caso
difícil de direito como integridade. O projeto literário fictício é fantástico, mas não
irreconhecível (DWORKIN, 2014, p. 276).
2.1 Da Influência de Ronald Dworkin na Aproximação Direito com a Literatura
O direito e a literatura vêm se aproximando,19 e cada vez mais os julgadores devem
se utilizar significativamente da literatura para elaborarem seus trabalhos. No que diz
respeito ao que fora transcrito nos contos literário, pode-se visualizar que com o passar do
tempo, o a literatura precisa estar cada vez mais próxima do direito. Para tanto, inspira-se
muito nos escritos de Dworkin que
2013, p. 361).
18
“Para explicar isto, nada pode ser mais ilustrativo do que a metáfora do “romance em cadeia” (chain móvel), elaborada
por Dworkin – em sua clássica obra “Uma Questão de Princípio” –, segundo a qual cada juiz deveria se considerar parte
de um complexo empreendimento em cadeia, ao lançar-se à criação e à interpretação jurisprudencial” (TRINDADE,
2014, p. 2).
“O juiz, ao decidir, deve interpretar as decisões anteriores, e como resultados proceder de forma que encontre maior
adequação (dimension of Fit) e que torne determinada prática legal a melhor possível (Dimension of value, dimension
of political morality, justification)” (STRECK, 2013, p. 361).
19
“Além do destaque que confere à interdisciplinaridade, na medida em que se baseia no cruzamento dos caminhos do
direito com as demais áreas do conhecimento – fundando um espaço crítico por excelência, através do qual seja possível
questionar seus pressupostos, seus fundamentos, sua legitimidade, seu fundamento, sua efetividade, etc. –, a
possibilidade da aproximação dos pontos jurídicos e literário permite que os juristas assimilem a capacidade criadora
da literatura e, assim, possam superar as barreiras colocadas pelo sentido comum teórico, reconhecendo a importância
do caráter constitutivo da linguagem no interior dos paradigmas da intersubjetividade” (TRINDADE, 2012, P. 63).
234
Ao analisar a maneira como o direito se assemelha à literatura, Dworkin recorre a uma
sugestiva e elaborada imagem para descrever o romance em cadeia, concebendo a
interpretação jurídica como a interpretação jurídica como a extensão de uma história
institucional do direito, que se desenvolve a partir de inúmeras decisões, estruturas,
convenções práticas” (TRINDADE, 2014, p. 2-3).
Ao buscar em Dworkin, vê-se a necessidade de observar a decisão com base na
integridade, que pressupõe interpretação parcial de princípios, tendo em vista que a análise
da integridade não exige a observação de princípios já superados por determinada
comunidade, nem obriga os magistrados a tomar decisões percebendo as leis como a
continuidade destes princípios.
A integridade não exige coerência de princípio em todas as etapas históricas do direito de
uma comunidade; não exige que os juízes tentem entender as leis que aplicam como uma
continuidade de princípios com o direito de um século antes, já em desuso, ou mesmo de
uma geração anterior. Exige uma coerência de princípio mais horizontal do que vertical ao
longo de toda a gama de normas jurídicas que a comunidade agora faz vigorar (DWORKIN,
2014, p. 273)
A temática tratada por Dworkin cria a possibilidade de se tratar nos bancos das
faculdades de Direito, uma nova disciplina que vem sendo cada vez mais trabalhado. Isto
por que a maneira com que Ronald Dworkin trata a ligação entre direito e literatura20 em
suas obras, e principalmente quando relata o romance em cadeia, dá uma visão de
integração21 entre o direito e a literatura no que tange aos julgamentos.
O processo interpretativo não seria escrito somente por um autor, mas, sim por vários, eis
que cada um cada um deles é responsável pela redação de um capítulo separado devendo
continuar a elaboração do romance a partir de onde seu antecessor parou (TRINDADE, 2014,
p. 3).
Já para Ost (2005, p. 23):
[...] em vez de um diálogo de surdos entre um direito codificado, instituído, instalado em sua
racionalidade e sua efetividade, e uma literatura rebelde a toda convenção, ciosa de sua
20
“Nesse contexto, em que a literatura assume grande importância, parece conveniente aprofundar um pouco, entre
tantos aspectos, aqueles ligados (1.1) à sua dimensão criadora e crítica, (1.2) à sua dimensão linguística e, por fim (1.3)
às convergências e divergências que se podem estabelecer entre direito e literatura" (TRINDADE, 2012, p. 64)
21
“Hércules deve formar sua própria opinião sobre esse problema. Assim como um romancista em cadeia deve encontrar,
se puder alguma maneira coerente de ver um personagem em um tema, tal que um autor hipotético com o mesmo
ponto de vista pudesse ter escrito pelo menos a parte principal até o momento em que esse lhe foi entregue”
(DWORKIN, 2014, p. 288).
235
ficcionalidade e de sua liberdade, o que está em jogo são empréstimos recíprocos e trocas
implícitas. Entre ‘tudo é possível’ da ficção literária e o ‘não deves’ do imperativo jurídico,
há, pelo menos tanto interação quanto conforto.
Os estudos sobre a ligação entre Direito e Literatura,22 surgiram nos Estados Unidos
da América. Conforme Trindade; et al (2008), os pioneiros foram os Norte-Americanos, que,
desde 1908, já vem publicando sobre os temas relacionados ao Direito e Literatura, tendo
como referência o trabalho de John Wigmore, A List of Legal Novels e, em 1925, o ensaio
Law and Literature, de Benjamin Cardozo. Enquanto na Europa tomou corpo a partir dos
anos 70 do século XX, isto fez com que o Direito e a Literatura fossem estudados em
conjunto nas universidades. A evidência nos sucessos se deu com a reaproximação dos
estudos das obras literárias, e seus valores humanísticos, o que resultou na afirmação do
Law and Literature Movement, nos anos 80. Este movimento trata o estudo em três vieses,
o Direito na Literatura,23 analisando a forma em que o direito é tratado na literatura. O
Direito como Literatura, 24 trata do ponto de vista da sua função narrativa e da
interpretação, e ainda o Direito da literatura,25 que cuida das normas jurídicas ligadas à
literatura, e protege a atividade literária.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A obra de Ronald Dworkin possui fundamental importância para que se tenha uma
interdisciplinaridade entre o Direito e a Literatura, pois em seus escritos, nota-se uma
ligação muito forte entre estas duas áreas, durante as muitas26 passagens de seus textos.
22
“Em suma, o momento é ainda de superação do atual modo-de-produção do direito e, portanto, de repensar o direito.
Para isso, especialmente nestes tempos de pós-positivismo, a teoria da literatura deve ser vista como uma forte aliada,
inclusive por que, conforme já explicitado por Shelley, no longínquo ano de 1821, em seu The Defense of poetry, não há
como negar que poets are the unacknowledged legislators of the world” (TRINDADE, 2012, p. 68).
23
“As possíveis respostas às questões provocadas pela abertura de sentido do direito demandam novos (e críticos)
espaços teóricos, como por exemplo, este, no qual o direito encontra a literatura e vice-versa” (CHEUIRI, 2007, p.120).
24
“Quanto ao direito como literatura, que supõe a aplicação ao direito dos métodos da crítica literária, ele constitui na
verdade um campo de estudo imenso” (OST, 2005, p.51).
25
“Até mesmo no que tange à regulamentação das obras literárias, relativamente à autoria, originalidade etc., a relação
entre direito e literatura se coloca” (CHUEIRI, 2007, p.120).
26
“É claro que a crítica literária contribui com as tradições artísticas em que trabalhão os autores; a natureza e a
importância dessa contribuição configuram em si mesmas, por problemas de teoria crítica. Mas a contribuição dos juízes
é mais direta, e a distinção entre autor e intérprete é mais uma questão de diferentes aspectos do mesmo processo”
236
Isto dá um novo paradigma interpretativo para o Direito que busca na Literatura um suporte
para as decisões judiciai. Esta busca se dá pela maneira com que o julgador deve interpretar
os julgados anteriores, sempre procurando retirar informações pertinentes para a sua
decisão, mas também, reescrevendo uma nova história, como, segundo Dworkin, fazem os
romancistas.
Uma vez que toda interpretação criativa compartilha essas características, e tem, portanto,
um aspecto ou componente normativo pode tirar proveito de uma comparação entre o
direito e outras formas ou circunstâncias de interpretação (DWORKIN, 2014, p. 275).
Outra colaboração para a aproximação do direito com a literatura que se deu com
os textos de Ronald Dworkin, foi o fato de que escritor Norte Americano, ao escrever sobre
a integridade, deu um novo parâmetro a interpretação do direito. 27 Esta nova ordem
jurídica sai do pragmatismo do direito positivo e se encaminha para um direito em que se
deve utilizar todas as áreas da interpretação para encontrar a resposta correta Dworkin
(2014) traz como parâmetro a utilização de uma visão externa do direito que corrobora com
a visão interna, que ligadas conseguem uma melhor interpretação do caso em análise. Para
DWORKIN (2014, p. 281). “Uma vez que decidida, vai acreditar que a correta interpretação
do caráter de Scrooge é aquela que torna o romance melhor, segundo sua concepção”.
Assim como, num romance em cadeia, a interpretação representa para cada intérprete um
delicado equilíbrio entre diferentes tipos de atitudes literárias e artísticas, em direito é um
delicado equilíbrio entre convicções políticas de diversos tipos: tanto no direito quanto na
literatura, estas devem ser suficientemente afins, ainda que distintas, para permitirem um
juízo geral que troque o sucesso de uma interpretação sobre um tipo de critérios por seu
fracasso sobre o outro. (DWORKIN, 2014, p. 287).
Das obras do autor, a que tem maior influência sobre esta ligação, é a metáfora do
romance em cadeia em que Dworkin faz uma ligação do Direito com a Literatura, e
consequentemente, auxilia de forma direta possibilidade de criação de uma nova disciplina
que tenha como objeto a ligação entre o direito e a literatura. Com este escrito o autor faz
(DWORKIN, 2014, p. 275).
27
“Estabeleci uma distinção entre duas formas de integralidade ao arrolar dois princípios: a integralidade na legislação e a
integralidade na deliberação judicial” (DWORKIN, 2014 p. 261).
237
uma ligação clara dos julgamentos com os textos literários, isto gera a possibilidade de o
direito ser escrito/decidido como se fosse um romance escrito por diversos escritores.
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da Faculdade Mineira de Direito – v.10, n.19 (jan. - jun. 2007). Belo Horizonte: Ed. PUC
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DWORKIN, Ronald. O Império do direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo:
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problema para Dworkin e não é para Alexy. DOI 10.12957/dep.2013.8350. Revista Direito
238
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cadeiavirou-cadeia-romance> Acessado em: 26/04/2016.
239
MISERÁVEL LIBERDADE1
Carolina Camargo2
Neuro José Zambam3
INTRODUÇÃO
O escritor francês Victor Hugo publicou em 1862 a obra Os Miseráveis. No ano de
1980 a Obra foi adaptada para compor um musical no teatro com a direção de Robert
Hossein chamado O musical de Os miseráveis. A repercussão mundial que fez dos
Miseráveis um clássico da literatura é atribuído ao enredo da história versar sobre a triste
realidade miserável que a população vivia na época bem como ao tratamento e a negação
da reinserção do apenado na sociedade.
A Revolução Francesa é o marco histórico do romance, o autor apresenta a saga
vivenciada pelo personagem principal Jean Valjean que resta condenado a cinco anos de
prisão por furtar um pão com o intuito de alimentar seus sete sobrinhos que estavam
passando fome e também durante o tempo de cárcere é condenado a mais quatorze anos
por tentar fugir, resultando em 19 anos de prisão.
Somando a descrição do contexto histórico o autor destaca a situação de
1
Este Artigo foi escrito e apresentado no IV Colóquio Internacional de Direito e Literatura da Rede Brasileira Direito e
Literatura de 2015
2
Mestranda em Direito pela Faculdade Meridional – IMED/RS. Graduada em Direito pela Faculdade Anhanguera de Passo
Fundo/RS. Pós-Graduada em Direito de Família Avançado pela Faculdade Anhanguera de Passo Fundo/RS. Pesquisadora
no CENTRO BRASILEIRO DE PESQUISA SOBRE A TEORIA DA JUSTIÇA DE AMARTYA SEN: interfaces com direito, políticas
de desenvolvimento e democracia do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito - IMED/RS. E-mail:
[email protected]
3
Pesquisador e Coordenador do grupo de pesquisa: Multiculturalismo, minorias e espaço público. Pós-Doutor em Filosofia
pela PUCRS. Professor do Programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade Meridional - IMED – Mestrado. Professor
do Curso de Direito (graduação e especialização) em Direito da Faculdade Meridional – IMED de Passo Fundo. Membro
do Grupo de Trabalho, Ética e cidadania da ANPOF (Associação Nacional dos Programas de Pós-graduação em Filosofia).
Pesquisador da Faculdade Meridional. Coordenador do Grupo de Pesquisa: Multiculturalismo, minorias, espaço público
e sustentabilidade. E-mail:
[email protected];
[email protected].
240
miserabilidade que vivia a classe social proletária e a decadência da própria burguesia
resultado do regime anterior da monarquia absolutista, assim deixa claro o panorama
socioeconómico da sociedade francesa do século XIX.
Percebe-se que a Revolução Francesa tinha um significado muito maior do que
determinar a época histórica. Muitos personagens eram burgueses e proletariados que
buscavam a liberdade de uma democracia representativa onde pudessem exercer o poder
de escolha de seus representantes através do voto. Assim as classes sociais unidas baseadas
em ideias iluministas tinham como objetivo acabar de uma vez por todas com o luxo que a
monarquia e o clero tinham às custas do suor e sofrimento do povo, a revolução
representava a libertação do povo pobre e a busca por direitos.
Em meio à guerra social e política que a França enfrenta, Jean Valjean cumpre sua
pena de prisão e então sai do sistema prisional. Durante os anos que permanece
encarcerado Valjean sonha com o dia que vai estar livre, e cria grandes expectativas e
esperança para concretizar ao retornar para a sociedade. O que ele encontra fora do
sistema não condiz com seus sonhos, mas sim com uma realidade dura e cruel que assola
grande parte das pessoas que cumprem pena restritiva de liberdade e se deparam com a
discriminação.
O objetivo principal da pena restritiva de liberdade é o direito de ir e vir, mas seu
alcance vai além da constrição do direito de liberdade interferindo diretamente na vida
pessoal e social do ex apenado de maneira negativa rompendo laços afetivos e trabalhistas
tornando inviável e/ou impossível a sua reinserção na sociedade.
Nessa senda um dos grandes desafios da reinserção é a rotulação e a discriminação
social que o indivíduo sofre no momento em que cumpre a sua pena e tenta retornar a
sociedade que o afastou por uma conduta ilegal, mas que também não cumpre com um dos
objetivos principais da pena que é a preparação e a adequação do indivíduo dentro do
círculo social.
Por mais que a legislação brasileira adote uma postura reintegradora com a Lei de
241
Execuções Penais de garantir ao apenado a oportunidade de promover e oportunizar a
reinserção na sociedade se sabe que na prática forense a eficácia e efetividade da norma é
prejudicada por fatores como a falência do Estado, a falta de investimento nas casas
prisionais, a necessidade de uma educação de qualidade e a qualificação profissional dentro
do sistema penal para dar ao preso condições de exercer uma profissão para o sustento da
sua família.
A Condição de agente, baseado na teoria de Amartya Sen, em que cada indivíduo
deve por meio da qualificação, educação tornar-se o sujeito ativo da sociedade,
modificando a realidade e visando o bem comum a todos é uma das oportunidades que o
homem tem de contribuir para a vida em sociedade.
Porém evidenciou-se na narrativa da Obra e também é percebível na sociedade
contemporânea que é muito mais fácil retirar e abominar algo que pode dar trabalho (como
a reinserção) do que investir. No que tange os relacionamentos humanos não se pode mais
tolerar o preconceito e a discriminação, o direito penal, está no meio da sociedade pois é a
ela que se destina, logo todas as pessoas são consideradas e podem vir a serem potenciais
criminosos por dois motivos: o primeiro por vontade própria e o segundo independente de
vontade, mas por acaso.
Para responder tais problemas, o presente artigo tem como objetivo, através da
pesquisa doutrinária, apresentar a Obra de Victor Hugo, bem com analisar o alcance da
pena privativa de liberdade sob o enfoque da Lei de Execução Penal Brasileira, analisando
as escolhas e oportunidades do indivíduo ou a sua negação na reinserção do apenado na
sociedade bem como a vulnerabilidade da mulher na sociedade. Para a execução da
pesquisa utilizou-se o método de abordagem dedutivo, aliado ao método de procedimento
monográfico e como técnica de pesquisa a bibliográfica.
Dividiu-se o trabalho em três partes: O primeiro capítulo abordará a Obra literária
Os Miseráveis com a narrativa do conto (Jean Valjean em Os Miseráveis). O segundo
capítulo busca analisar a continuidade da pena além de seu cumprimento decorrente da
rotulação. (Pena Restritiva de Liberdade e a punição além da pena). E o terceiro capítulo
242
busca analisar a Condição de Agente da mulher em Amartya Sen sendo objeto de análise
outra personagem chamada Fantine que é vítima da sociedade e da falta de oportunidades.
2. JEAN VALJEAN
Jean Valjean é o personagem principal da obra, que restou condenado a pena de
prisão por furtar um pão, que serviria de alimento para seus sete sobrinhos e sua irmã que
estavam vulneráveis e famintos.
No período em que permaneceu no cárcere cumprindo pena de prisão, era também
submetido a trabalhos forçados e desumanos, mas ainda assim destacava-se pela força e
coragem que possuía ao realizar as tarefas impostas. O personagem era muito generoso e
fazia questão de proteger seus colegas de cela. Há um episódio na obra que presos colocam
fogo em uma das alas da cadeia e Jean Valjean arrisca sua vida para salvar os outros presos
que certamente iriam morrer queimados por estarem embaixo de escombros de concreto.
O presídio era comandado pelo personagem Sr. Javert o comissário de polícia.
Também era ele que dava todas as ordens e os castigos atribuídos aos presos. No episódio
narrado acima do incêndio o comissário não ficou nada satisfeito com a atitude heroica de
Valjean e passou então a persegui-lo. Para o comissário a ressocialização do preso era
impossível, visto que deveria morrer na cadeia por que não lhe restava outro caminho a não
ser a morte pois os criminosos padeciam de uma doença incurável.
Após longos anos de cárcere a tão sonhada liberdade chegou para Valjean e depois
de todo o sofrimento que passou na prisão em que recebera torturas e tratamentos
desumanos, agora surgia um novo desafio, a sua reinserção na sociedade que um dia o
expulsou.
O procedimento adotado naquela época com o preso que conseguisse chegar ao fim
do cumprimento da sua pena era a substituição da certidão de nascimento por outra da cor
amarela que caracterizava e demonstrava que ele havia cumprido pena de prisão.
Pelo fato de portar uma certidão amarela, sempre que procurava abrigo, emprego
243
ou informações ele era reconhecido como apenado e então sofria a discriminação, e de que
adiantava bater em várias portas pedindo ajuda já que sempre receberia como resposta um
não.
Em meio as suas andanças, desanimado e se entregando a fome e ao frio Valjean
conhece o Bispo Myriel conhecido como Benvindo, pessoa de bom coração, que acolhia aos
necessitados em sua paróquia e tinha uma filosofia de vida muito humana além da postura
adotada na época.
O Bispo representava na sociedade uma figura fraterna, que sabia como lidar com a
vida e a morte tratando seu povo como seus filhos buscando reduzir a dor das famílias que
perdiam seus entes queridos para a doença, à fome e a guerra. Fazia com que seus
seguidores entendessem a morte afirmando: “A morte só pertence a Deus! Com que direito
os homens põem a mão nessa coisa desconhecida4?” E ainda sobre a morte:
Atentem bem ao modo como se voltam aos mortos. Não ocupem o pensamento com o que
apodrece. Olhem fixamente. Verão no fundo do céu a chama viva de seu amado ente que se
foi. Ele sabia que a crença é sadia. Procurava aconselhar e acalmar o homem desesperado,
apontando-lhe o homem resignado, e transformar a dor que olha uma sepultura na dor que
olha uma estrela. 5
O povo então o respeitava e o idolatrava como conselheiro, acreditando que o
Monsenhor Bienvenu tinha um coração iluminado e sábio pois a sua sabedoria era
conhecida como “[...] sabedoria era feita da luz que nele existia”. 6
Então numa noite fria Valjean recebe abrigo na casa paroquial do Bispo, ganhando
alimentação que foi servida com a melhor prataria da casa e uma cama para dormir. O padre
sabia que ele havia cumprido pena e que estava em liberdade, foi a primeira pessoa a
estender a mão, servindo-lhe uma mesa farta com dois candelabros de prata para enfeitar
a mesa.
4
HUGO, Victor. Os Miseráveis: texto integral 1802 -1885. Vol. I. Trad. Regina Célia de Oliveira. São Paulo: Martin Claret,
2007. p.41.
5
HUGO, Victor. Os Miseráveis: texto integral 1802 -1885. Vol. I. Trad. Regina Célia de Oliveira. São Paulo: Martin Claret,
2007. p.41.
6
HUGO, Victor. Os Miseráveis: texto integral 1802 -1885. Vol. I. Trad. Regina Célia de Oliveira. São Paulo: Martin Claret,
2007. p.77.
244
No meio da madrugada Valjean revoltado por tudo que já havia passado e perdido
as esperanças de arrumar emprego e voltar a sociedade furta toda a prataria do padre e
foge pelas ruas, voltando para a vida do crime. É encontrado por guardas que o conduzem
até a igreja para fazê-lo devolver a prataria furtada e após o levariam para prisão.
O Bispo já sabendo que aquilo iria acontecer manda que os guardas o soltem
mentindo que havia dado de presente aquelas pratarias para Valjean, os guardas o soltam
já que não existia crime algum. Antes de Valjean partir o padre entrega a toda a prataria
que havia furtado e mais dois candelabros para que pudesse então recomeçar a sua vida.
Acostumado com a represália que vinha sofrendo da sociedade e diante de uma
conduta fraterna do qual ele jamais esperava, surge em Valjean sentimentos de esperança,
fraternidade e amor ao próximo. Então decide dedicar a sua vida a ajudar os excluídos da
sociedade.
Com o pouco dinheiro que recebeu na venda das pratarias ele chega a pequena
cidade de Montreuil-sur-Mer, que vivia da fabricação de correntes soldadas, mas carecia de
mão de obra, lá desenvolveu uma inovação de correntes simplesmente engatadas que o
tornou um homem rico e adotou um novo nome chamando-se Sr. Madelaine.
A fábrica era composta apenas de operárias, mulheres casadas ou solteiras que
necessitavam ajudar suas famílias. Fantine era uma das funcionárias da fábrica que escondia
seu passado, pois tornou-se mãe solteira ao se entregar a um homem que ao saber da sua
gravidez a abandonou deixando apenas uma carta.
Abandonada e expulsa da sua família por estar grávida Fantine parte em busca de
um lar e uma vida digna para sua pequena filha Cosette. Saindo de Paris encontra uma
taverna bem decadente, mas que seu dinheiro poderia pagar por uma noite de sono, é
muito bem recebida pela família Thénardier, o que não poderia imaginar era que se tratava
de uma horrorosa família de vigaristas.
Fantine decide deixar Cosette sob os cuidados dos Thénardier com a promessa de
mandar dinheiro todos os meses assim que arrumar emprego. Cumpriu com sua promessa
245
mandando tudo que ganhava, mas era pouco por que cada vez mais era exigido que
enviasse um valor maior alegando que Cosette era muito doente e para ser bem cuidada
necessitava de muitas coisas.
Então um dia o diretor da fábrica lê uma correspondência de Cosette e descobre que
é mãe solteira e a demite da fábrica. Valjean agora com o nome falso de Sr. Madelaine
recebia naquele instante o novo inspetor de polícia da cidade e para sua surpresa era o seu
inimigo conhecido o Sr. Javert então não pode saber nem defender Fantine pois estava
ocupado.
O comissário de polícia não o reconheceu, mas Valjean temia que sua identidade
fosse revelada, então passou a controlar os passos do comissário. Fantine sem trabalho
vendeu alguns de seus dentes e seu cabelo. Restando ainda como única alternativa para
ganhar dinheiro para a filha a prostituição.
Fantine desesperada passou a implorar para fazer programas e logo foi presa, por
coincidência o Sr. Madelaine estava na delegacia conversando com Javert quando chegou
com os guardas. Ele a reconheceu como operária da sua fábrica e ordenou que a soltassem,
de lá foi levada a um convento para cuidados médicos pois a sua saúde já estava bem
debilitada, Valjean então se sentiu culpado por ter deixado com que chegasse a este ponto.
No leito de morte Fantine pede a Valjean que traga sua filha Cosette para que possa
despedir-se, mas não havia mais tempo e ela morre. Se sentindo muito culpado Valjean
decide encontrar Cosette e cuidar dela como uma filha para tentar se redimir do seu
pecado.
Fantine não sabia que Cosette era maltratada e tratada como uma empregada, vivia
rasgada, humilhada, e passava fome aos cuidados dos Thénardier. O dinheiro enviado por
sua mãe era para os caprichos da família e não para o cuidado com a menina.
O comissário de polícia, Javert, descobre que o Sr. Madelaine é na verdade Jean
Valjean e percebe que ele está vivendo foragido na figura de um prefeito. Mas Javert, o
policial, não tinha provas e então passa a seguir todos os seus rastros. Vivia na sombra de
246
Jean Valjean criando espertas armadilhas para que a verdadeira identidade do excondenado fosse revelada.
Valjean foge de Montreuil-sur-Mer para assumir uma nova identidade, mas antes vai
até a taverna dos Thénardier e compra Cosette. A menina então passa a viver em fuga e a
trocar de nomes, cresce com muito conforto e com boa educação, quando moça conhece
um jovem chamado Marius que logo seria seu grande amor.
Marius Pontmercy era estudante de direito e tinha ideias revolucionárias, pertencia
a aristocracia, porém, seguia o conceito do liberalismo, era amigo de Enjolras estudante e
líder do grupo político que aclamavam na luta pela democracia, liberdade, igualdade e
justiça: os “Amigos do ABC”. Grande parte dos integrantes desse grupo político
correspondiam a burguesia.
As reuniões clandestinas desses jovens revolucionários ocorriam no Café ABC. A cor
que representava a revolução era o vermelho a mesma cor usada para identificar a
aristocracia. O simbolismo representado pela cor vermelha era o sangue derramado pelo
proletário e os burgueses na tentativa de derrotar a Guarda Nacional, construindo
barricadas e utilizando armas, além do anseio de acabar com o absolutismo.
Após um grande planejamento realizado pelo movimento ABC, chega o momento de
lutar com o povo todo unido pelos objetivos a serem alcançados. No combate surge um
menino corajoso Gavroche, o pequeno revolucionário, filho abandonado pela família
Thénardier que havia ido à falência luta por uma vida mais digna e é morto por levantar a
bandeira do movimento.
As barricadas não foram suficientes para conter a Guarda Nacional. Javert surge no
lado dos revolucionários para controlar os passos do movimento, mas é descoberto. Nesse
momento, o líder do movimento o amarra e decide acabar com a sua vida, mas é impedido
por Jean Valjean que afirma que teria motivos suficientes para ter o prazer de matá-lo, mas
quando sozinho com Javert o liberta.
A maioria dos participantes e os integrantes do movimento do ABC são mortos no
247
confronto, exceto Marius que é salvo por Jean Valjean por descobrir que Cosette estava
apaixonada por ele, e então vê em Marius a oportunidade da filha poder viver uma vida boa
e feliz com alguém que a ame e cuide dela.
Jean Veljean tratou Cosette como sua filha por todos os anos com muito conforto,
tinha roupas novas e boa educação. Mas Valjean não imaginava que poderia se apaixonar
pela própria filha, menina que cuidou e aprendeu a amar por todos os anos que passaram
juntos.
Cosette então casa-se com Marius passando a morar na casa da família aristocrata
do marido. Valjean conta a Marius que não poderia mais ver Cosette por que nutria por ela
um sentimento de amor além de pai e filha, assim se afasta e continua morando na casa em
que viveu com a filha mentindo que estaria viajando para não vê-la com outro homem.
Javert passou sua vida dedicando-se a colocar Valjean na cadeia, usou de todas as
artimanhas possíveis para desmascara-lo, nutriu seu ódio a cada dia iniciando uma caçada
que parecia não ter mais fim. Mas sua não obteve o efeito esperado, pelo contrário aflorou
a dúvida em sua consciência, então ficou dividido em fazer justiça prendendo um inocente
ou deixando um criminoso à solta afirmando:
Via diante de si dois caminhos, ambos retos, mas via dois; e isso o apavorava, a ele, que
nunca em sua vida conhecera senão uma única linha reta. E, angustia pungente, esses dois
caminhos eram opostos. Qualquer uma dessas linhas retas excluía a outra. Qual delas era a
verdadeira? 7
O comissário sentia dúvidas que o desesperavam pois passou a sua vida acreditando
que aquele que comete um crime por mais ínfimo que seja, se torna um criminoso e jamais
deverá voltar a sociedade por que representa risco a segurança do povo. Acreditava que
era impossível a reinserção de um ex-presidiário na sociedade, já que para ele uma vez
criminoso sempre como o tal. Assim suas dúvidas o consumiam como podemos perceber
pelo trecho da obra:
7
HUGO, Victor. Os Miseráveis: texto integral 1802 -1885. Vol. I. Trad. Regina Célia de Oliveira. São Paulo: Martin Claret,
2007. p.478.
248
Dever a vida a um malfeitor; aceitar essa dívida e reembolsá-la; achar-se, contra a
própria vontade, no mesmo nível de um foragido da justiça, e pagar-lhe um favor com outro
favor; deixar que lhe dissessem:
Vá embora, e por sua vez dizer: Está livre; sacrificar por motivos pessoais o dever, essa
obrigação geral, sentir nesses motivos pessoais algo de geral também, e talvez superior; trair
a sociedade para permanecer fiel a sua consciência; que todos esses absurdos se realizassem
e se acumulassem sobre ele mesmo, eis com o que estava aterrado. Uma coisa o deixara
admirado, que Valjean o tivesse poupado; e outra coisa o havia petrificado, que ele Javert,
tivesse poupado Jean Veljean.8
Após essa passagem Javert suicida-se afogando-se no rio Sena, por não suportar a
dor da dúvida e sentimentos de compaixão e arrependimento.
Jean Valjean passa seus últimos anos sozinho na casa que vivera com Cosette, o tio
de Marius é quem manda alimentos e médico para cuidar da sua saúde bastante debilitada.
Por agradecimento por Valjean ter salvado a vida de seu sobrinho atingido na guerra,
somente o tio sabia a identidade do herói que o teria salvado.
No último dia da sua vida recebe no leito de morte a visita de Cosette, uma
despedida breve, mas carregada de muita emoção. Seu pai deseja a felicidade aos dois e
após pedir para que formem uma família feliz morre. Cosette então avista os dois
candelabros de prata acesos que viu o pai carregar por toda sua vida a cada mudança. Ela
não sabia o significado que eles representavam.
Os candelabros para Valjean representavam a sua verdadeira liberdade, não só a
liberdade da sua pena cumprida, mas de uma vida miserável em todos os sentidos de amor,
afeto, fraternidade, honestidade, compaixão que o Bispo Benvindo resgatou em seu
coração transformando Jean Valjean em um homem bom.
8
HUGO, Victor. Os Miseráveis: texto integral 1802 -1885. Vol. I. Trad. Regina Célia de Oliveira. São Paulo: Martin Claret,
2007. p.41.
249
3. PENA RESTRITIVA DE LIBERDADE E A PUNIÇÃO ALÉM DA PENA
A obra Os Miseráveis mostra as dificuldades que um ex-apenado enfrenta para ser
reinserido na sociedade de que um dia fez parte. O personagem principal deixa a prisão
carregado de esperança com a sensação de que o pior já havia acontecido, mas quando
posto em liberdade descobre que estava completamente equivocado.
Em pleno século XXI muitos Valjean que erraram em algum momento de suas vidas
independente se forem um pão ou qualquer outro crime leve ou grave vai enfrentar o
estigma da pena. Alguns apenados durante o cumprimento da pena buscam regenerar-se
para voltar para a sociedade, mas quando podem voltar para a sociedade o que eles
encontram é uma sociedade que não os quer novamente inseridos no corpo social.
Ao lermos uma obra fictícia literária achamos que aquilo que está dentro do livro
foge a nossa realidade e não passa de uma história inventada e contada. Pode ser que
muitas obras se adequem a este pensamento, mas a obra estudada perpassa séculos e
continua a despertar uma inquietude diante da semelhança que representa com a realidade
atual, é como se a obra tivesse sido escrita em 2015, pois o cenário pode mudar, mas a pena
ainda representa um paradigma a ser superado por esta e outras gerações que virão.
Se o escritor Vitor Hugo escrevesse a sua obra nos dias atuais, poderíamos afirmar
que se baseou em conflitos que ocorrem na atualidade em muitos países,
inacreditavelmente ainda em pleno século XXI Estados continuam em guerra com seu povo
lutando por um regime democrático, suplicando pela paz por estarem cansados de ver
inocentes morrendo, famílias destruídas e o drama dos refugiados que não termina.
O rótulo de ex-predidiário gruda na imagem de quem cumpre pena e continua
enraizada na nossa cultura. Por mais evoluídos que acreditamos ser, assim como a ilusão
de livres de pré-conceito a realidade denota a complexidade da vida de um preso e o quanto
a sociedade necessita de evolução e da reforma do pensamento e dos valores atuais.
No que tange a realidade, o preso enfrenta seu primeiro obstáculo no cumprimento
da pena por que a violação a direitos e garantias individuais positivadas em lei é gravemente
250
infringida. Como por exemplo, a não observância de alguns artigos previstos na Lei de
Execuções Penais Lei Nº 7.210, de 11 de Julho de 1984 que aduz:
Art. 1º- A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão
criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do
internado.
Art. 40 - Impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos
condenados e dos presos provisórios
Art. 85. O estabelecimento penal deverá ter lotação compatível com a sua estrutura e
finalidade.
Art. 88. O condenado será alojado em cela individual que conterá dormitório, aparelho
sanitário e lavatório.
Parágrafo único. São requisitos básicos da unidade celular:
a) salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e
condicionamento térmico adequado à existência humana;
b) área mínima de 6,00m2 (seis metros quadrados).
Art. 102. A cadeia pública destina-se ao recolhimento de presos provisórios.
Art. 103. Cada comarca terá, pelo menos 1 (uma) cadeia pública a fim de resguardar o
interesse da Administração da Justiça Criminal e a permanência do preso em local próximo
ao seu meio social e familiar.
Art. 202. Cumprida ou extinta a pena, não constarão da folha corrida, atestados ou certidões
fornecidas por autoridade policial ou por auxiliares da Justiça, qualquer notícia ou referência
à condenação, salvo para instruir processo pela prática de nova infração penal ou outros
casos expressos em lei.9
A legislação brasileira na Lei de Execuções Penais, busca por meio dos seus artigos a
garantia de que o preso quando inserido no sistema carcerário trabalhe, se profissionalize,
estude para quando retornar a sociedade já tenha um caminho a ser seguido.
Talvez a afirmação acima pareça um grande avanço na legislação penal, mas se
formos olhar a realidade dos nossos presídios no Brasil e as condições que a pena restritiva
de liberdade é cumprida então podemos passar a olhar a realidade que está diante de nós
com outros olhos.
9
BRASIL.
LEI
Nº
7.210,
DE
11
DE
JULHO
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7210compilado.htm>.
251
DE
1984.
Disponível
em:
O problema do egoísmo humano é que só cumpre pena o outro, somente o outro é
que é criminoso, se por ventura for um pai, irmão, qualquer ente querido aí já é injustiça.
Isto demostra a hipocrisia hereditária que vivemos, não no caráter biológico, mas em uma
herança secular social.
A importância que damos para a nossa liberdade só é realmente importante quando
não somos mais o titular da liberdade. Durante a trajetória de cada indivíduo o significado
da liberdade denota diferentes formas, despertando ao longo das nossas vivências
sentimentos e preocupações com a nossa liberdade como afirma Sen:
Ao avaliarmos nossas vidas, temos razões para estarmos interessados não apenas no tipo
de vida que conseguimos levar, mas também na liberdade que realmente temos para
escolher entre diferentes estilos e modos de vida. Na verdade, a liberdade para determinar
a natureza de nossas vidas é um dos aspectos valiosos da experiência de viver que temos
razão de estimar. O reconhecimento de que a liberdade é importante também pode ampliar
as preocupações e os compromissos que temos. 10
Uma sociedade que afasta os pobres da região central os mandando para as
periferias por que a pobreza é feia e suja não consegue admitir que um ex-apenado possa
pagar pelo erro que cometeu e voltar livre para o lugar de onde saiu.
Não estamos educados a ajudar o próximo, a perdoar como fez o Bispo que recebeu
Valjeam em sua casa mesmo sabendo do risco que corria de ser furtado, mas que sabia
também que ele merecia uma chance e também uma lição.
Quantos Jean Valjean voltam para sociedade cheios de planos de uma vida melhor,
de recuperar o tempo perdido, de tentar fazer tudo de novo, mas de forma honesta e são
barrados pelo pré-conceito pela discriminação. Quem nunca ouviu alguém rotular uma
pessoa por ter cumprido pena? É uma reflexão difícil de fazer por que para nós não faz
diferença este rótulo a não ser que seja para nós.
A superlotação dos presídios brasileiros é um ponto crucial da problemática nacional
dos sistemas penitenciários, conforme demonstram dados fornecidos pelo Departamento
10
SEN, Amartya. A Ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p.261
252
Penitenciário Nacional, em estatísticas realizadas anualmente. São casas sem o mínimo de
higiene com a capacidade muito acima do limite, com ratos, baratas e esgoto a céu aberto.
Para relembrarmos: na pena de prisão o direito suprimido é somente o direito à
liberdade que não englobam os direitos inerentes a condição humana. A realidade
apresentada são pessoas sem o mínimo de higiene, dormindo no chão, dividindo a cela
superlotada e assim como outras práticas abusivas cotidianas. Nesse sentido, cumpre
assinalar que para Ingo Sarlet:
Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser
humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da
comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais
que assegurem a 56 pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e
desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida
saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos
da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. 11
Além de todos os problemas já mencionados surge ainda a violência e o tráfico de
drogas dentro dos presídios, em razão da superpopulação surgem as rebeliões, motins e
greves de fome, os quais expõem à sociedade o estado caótico do sistema prisional.
A dignidade é inerente a pessoa, e constituída de forma pessoal e intransferível, é
um dever do Estado a garantia ao preso no sistema prisional que a pena não ultrapasse os
limites do mínimo de respeito e dignidade para cada cidadão para Alexandre de Moraes
todo regramento jurídico deve incluir meios de assegurar que os limites sejam respeitados
enquanto indivíduos pois é um valor espiritual e moral e aduz:
A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente
na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a
pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo
invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente
excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas
sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto
seres humanos.12
11
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na
perspectiva constitucional. 10. ed. ver. atual e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 60.
12
ROSA, Alexandre Morais da. Direito Constitucional. 27 ed. São Paulo: Atlas, 2011. p.24
253
As deficiências apresentadas no sistema, é o resultado da falência e do descaso com
as pessoas que cumprem pena. Como poderemos devolver a sociedade um indivíduo
melhor do que quando entrou no sistema? Essa e muitas outras perguntas não possuem
resposta, por que é assim que a sociedade deseja. Lacunas para não ter o trabalho com
aqueles que acreditamos não terem “cura”.
A impossibilidade e o alcance dos objetivos de reeducação e reinserção do egresso
na sociedade se tornam cada vez mais fictício quando dentro do sistema carcerário.
Para alguns pensadores do direito penal como César Bitencourt a partir do século
XIX, persistia a crença de que a prisão era o meio mais adequado para conseguir a reforma
do detento, mas atualmente a realidade é muito pessimista, pois o sistema prisional está
em crise nos mais diversos setores, o que torna inviável a ressocialização por que o contato
recebido na privação da liberdade não é positivo então não tem o poder de modificar a
situação do egresso e sim apenas de prejudicá-lo ainda mais, a partir da experiência
prisional. 13
Assim a rotulação é inerente na sociedade globalizada em que os meios de
comunicação para terem audiência fazem questão de expor e condenar antecipadamente
as pessoas aumentando ainda mais o estigma da pena. No que tange passa a virar a sombra
do ex-apenado que passa a vida carregando nas costas seu passado mesmo que só tenha
cometido um furto famélico como Jean Valjean.
4. A CONDIÇÃO DE AGENTE DA MULHER EM AMARTYA SEN
Além do personagem principal de Os Miseráveis o Sr. Valjean, surge com tamanha
riqueza de detalhes a história de Fantine uma moça jovem e bonita que se entregou antes
do casamento a um oportunista que a iludia acreditando ser o amor da sua vida. Fantine
desesperada por ter sido abandonada e expulsa por sua família por estar grávida sai da
13
BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão: causas e alternativas. São Paulo: Saraiva, 2004. p.154
254
cidade de Paris em busca de emprego e condições para a filha Cosette.
Deixa sua filha com uma família e parte em busca de emprego sofrendo todos os
tipos desprezíveis de discriminação que a mulher recebia antigamente. Quando descobrem
ser mãe solteira é jogada na sarjeta, desgraçada, prostituindo-se e restando-lhe a morte.
O resuma da vida de Fantine representa a mulher sem direitos e garantias mínimas,
denota a não condição de agente da mulher que era vista e utilizada somente com o
objetivo de servir aos caprichos dos homens.
Cosette, sua filha teve uma infância muito triste de sofrimento e escravidão. A
família adotiva que deveria dar amor apenas a ofereceu desprezo. Diante dessas
circunstâncias sendo discriminada pela família e recebendo só coisas negativas em nenhum
momento da obra descreveram os sentimentos de ódio e rancor que a menina poderia ter
pelos Thénardier, pois sabia que eles eram tão desgraçados pela pobreza quanto ela e sua
mãe.
Para Janusz Korczak as crianças enfrentam os obstáculos que a vida apresenta de
forma mais positiva elas vivem o sol e a tempestade, já os adultos não conseguem se libertar
de um nevoeiro, passam a vida divididos entre a tristeza e a alegria não se deixam sentir o
momento e fazer aquilo que os deixa em paz e aduz:
A criança é que nem primavera. Ou tem sol, tempo bom, tudo é alegre e bonito. Ou, de
repente, vem a tempestade, relâmpagos, trovões, raios que caem. Já adulto é como se
estivesse dentro do nevoeiro. Envolto numa triste névoa. Não tem nem grandes alegrias,
nem grandes tristezas. Tudo cinzento e sério. Pois não é que me lembro. Nossas alegrias e
tristezas correm que nem o vento, e as deles vivem arrastando. 14
As mulheres como a personagem Fantine demonstram historicamente a não
condição de agente da mulher que para Amartya Sen é a oportunidade de crescimento e da
relação de pertença e empoderamento na sociedade para que ocorra a mudança social e
afirma:
14
KORCZAK, Janusz. Quando eu voltar a ser criança. São Paulo: Grupo Editorial Summus, 1981. p.31
255
Já não mais receptoras passivas de auxílio para melhorar seu bem-estar, as mulheres são
vistas cada vez mais, tanto pelos homens como para elas próprias, como agentes ativo de
mudanças: promotoras dinâmicas de transformações sociais que podem alterar a vida das
mulheres e dos homens. 15
Dessa forma a mulher passa do estado passivo para o ativo, que significa dizer que
além da preocupação com as oportunidades também é necessárias práticas de cuidado e
garantias do bem-estar social da mulher evitando um tratamento desigual.
A teoria de condição de agente de Sen engloba ambos os gêneros, responsabilizando
tanto homens como mulheres por suas ações e não ações. Para Zambam a Condição de
Agente dependendo da situação que está sendo analisada apresenta diferentes
necessidades:
A condição de agente é um conceito amplo, que influência os variados aspectos da vida de
uma pessoa e nas relações que decorrem do contexto onde está inserida. Por isso, em
situações peculiares, a busca do bem-estar e a própria compreensão da condição de agente
adquirem diferentes prioridades. 16
As conquistas alcançadas ao longo dos anos pelas mulheres representam conquistas
e oportunidades que ganham força por movimentos feministas e sociais. A luta pelos
direitos iguais e liberdades faz da mulher um agente na sociedade a partir do momento que
assume sua própria vida.
As taxas de fecundidade diminuem significativamente diante da condição ativa das
mulheres, que hoje tem a opção de gerenciarem suas próprias vidas vindo a ser mãe
somente no momento que julgarem oportuno. Uma mãe solteira como Fantine por
exemplo poderá viver livremente na sociedade, trabalhar e criar sua prole. Pode não estar
livre da discriminação popular, mas não é marginalizada podendo exercer seus direitos na
sociedade.
Há um fator expressivo da Condição de Agente da Mulher que é a limitação religiosa,
política e cultural. Dependendo do país, ainda no século XXI muitas mulheres continuam na
15
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p.246
16
ZAMBAM, Neuro José. Amartya Sen: Liberdade Justiça e desenvolvimento Sustentável. Passo Fundo: IMED, 2012. p.68
256
condição passiva, com casamentos forçados, poligamia, tortura, mutilação, tratadas como
objetos.
Alguns aspectos apresentados por Sen são os responsáveis pela guinada social que
as mulheres receberam ao longo dos anos tais como: o trabalho e a geração de renda,
alfabetização e instrução, que geraram uma voz ativa quando a dependência é reduzida. O
direito a propriedade também representa a voz ativa já que para Sen “Analogamente, a
instrução da mulher reforça a sua condição de agente e tende a torná-la mais bem
informada e qualificada. A propriedade de bens também pode tornar a mulher mais
poderosa nas decisões familiares17”.
As famílias patriarcais, que tradicionalmente trazem a figura masculina como cerne
do contexto familiar mudam de figura, a mulher passa a assumir o lugar que já vinha
exercendo como coadjuvante no cuidado da instituição familiar assumindo o controle e
tomando decisões.
A assertiva acima é uma das grandes conquistas da mulher, que sai da escuridão
sendo a sombra do marido passando a ser a luz da família.
Fantine é o resumo da segregação que a mulher representava, hoje podemos ver
mulheres em todos os lugares da sociedade. A discriminação ainda não acabou homens são
mais bem pagos que mulheres e a violência contra mulher é ainda muito recorrente. A
sociedade caminha para a mudança, e as “Fantines” deixarão de existir.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Acima de tudo, o enredo de Os Miseráveis mostra a triste realidade de quem cumpre
pena restritiva de liberdade e ao término recebe tão somente da sociedade discriminação
e descaso. Não há condições passadas e presentes para acreditar que a ressocialização que
é um objetivo do cumprimento da pena possa realmente ser eficaz na realidade do sistema
17
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 249
257
penitenciário do Brasil. A dificuldade de garantir o mínimo de direitos humanos no cárcere
representa a total falência do sistema penitenciário, vale destacar que a limitação da pena
é a restrição apenas do direito de ir e vir não está tipificado ou definido em lei brasileira que
o apenado no cumprimento da pena possa ou deva ter seus direitos mínimos existenciais
restringidos.
A perseguição e o pré-conceito que assola o apenado quando colocado em liberdade
é uma das maiores dificuldades, pois não consegue trabalho que é uma das formas de evitar
a reincidência. Se não se pode trabalhar e ainda é visto por outros indivíduos como um
criminoso não fica difícil perceber que o crime é a opção ou a única forma de mantença,
voltando a delinquir e fazer parte de uma cadeia que não tem volta.
As consequências e as marcas que o cumprimento de uma pena podem deixar em
um indivíduo vão além de uma certidão criminal positiva, o cárcere molda as pessoas, e tira
as esperanças de um dia retornar para sua família e retomar seu lugar na sociedade.
A obra faz emergir sentimentos opostos para o leitor, como a esperança e a vingança
que são muito bem descritos pelo autor, assim podemos afirmar que o direito penal é por
vezes utilizado como instrumento de vingança, e a esperança é de que as pessoas têm o
dever de receber e inserir os indivíduos que cumprem pena como exercício da alteridade e
da compaixão com os vulneráveis.
A revolução Francesa palco da trama policial dos Miseráveis mostra como o preso
não consegue se livrar do estigma da pena, e como uma pessoa pode se transformar graças
à ação de outra, como no caso do Bispo e sua bondade que contagiaram Valjean e o fizeram
pensar em retribuir apenas o bem, apesar de ter sofrido uma vingança quase eterna. No
caso, um simples acolhimento, compreensão e generosidade transformam a vida
desgraçada de uma pessoa.
Todos aqueles do grupo do ABC que lutaram por uma democracia para trazer luzes
ao povo que vivia nas trevas morreram com seus sonhos de liberdade, mas lutando por um
mundo melhor. No momento do confronto suas expectativas são frustradas pela morte e
258
por perderem a guerra, mas mesmo assim posteriormente surge a democracia para a
renovação das esperanças do povo.
Ao se analisar a pena privativa de liberdade e sua função social da pena como
estratégia de diminuir a reincidência, percebe-se que a realidade do sistema carcerário
Brasileiro está distante do mínimo ideal, por apresentar problemas estruturais e
instrumentais. Podendo ser reforçada por incansáveis documentários, artigos, matérias
apresentadas na mídia e em bancos escolares mostrando a realidade de quem cumpre pena
nos Estados brasileiros reforçando a falência do sistema.
O direito através da literatura, cumpre com seu caráter de união, e partindo de uma
obra com uma grande carga histórica e social como Os Miseráveis é possível discutir um
tema que atravessa séculos que é o alcance da pena e a inobservância dos Direitos Humanos
tanto durante o cumprimento da pena quando posteriormente na liberdade do indivíduo.
E por fim, a Condição de Agente na filosofia de Amartya Sen, como requisito para a
transformação de agente passivo em agente ativo dialogando com a realidade social da
mulher com o passar dos séculos.
Cumpre destacar que a mulher passa a ter voz ativa quando é inserida no trabalho e
aufere renda e como consequência a mulher também passa a ter direito de propriedade e
é neste momento que passa a ter relevância social como cidadã deixando de ser uma
coautora na vida dos homens.
A partir da obra com a personagem Fatine é possível contextualizar o tratamento
que as mulheres recebiam da sociedade, seu repudio, e a sua (não) condição de agente. No
século atual é possível perceber que já houve um grande avanço da mulher nos bancos
escolares, trabalho e família, mas que ainda há uma competitividade e distribuição de
salários e atribuições diferentes entre homens e mulheres, Os Miseráveis representam um
conteúdo social e de direito complexo que podem ser discutidos das mais variadas formas
e paradigmas.
259
REFERÊNCIAS DAS FONTES CITADAS
BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão: causas e alternativas. São Paulo:
Saraiva, 2004.
BRASIL.
Constituição
Federal
(1988)
-
Disponível
em:
www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituiçao.htm. Acesso em: 2 de outubro de
2015.
BRASIL.
Lei
nº
7.210,
de
11
de
julho
de
1984
-
Disponível
em:
www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7210.htm. Acesso em: 2 de outubro de 2015.
HUGO, Victor. Os Miseráveis: texto integral 1802 -1885. Vol. I. Trad. Regina Célia de
Oliveira. São Paulo: Martin Claret, 2007.
HUGO, Victor. Os Miseráveis: texto integral 1802 -1885. Vol. II. Trad. Regina Célia de
Oliveira. São Paulo: Martin Claret, 2007.
KORCZAK, Janusz. Quando eu voltar a ser criança. São Paulo: Grupo Editorial Summus,
1981.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 27 ed. São Paulo: Atlas, 2011.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos
fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. ver. atual e ampl. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2009. 493p.
SEN, Amartya. A Ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
ZAMBAM, Neuro José. Amartya Sen: Liberdade Justiça e desenvolvimento Sustentável.
Passo Fundo: IMED, 2012.
260
O ATIVISMO JUDICIAL COMO CONSEQUÊNCIA DA CRISE DA JURISDIÇÃO:
UM OLHAR PARA A ATUAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Priscila Prux1
INTRODUÇÃO
A crescente intervenção do Poder Judiciário nas questões de âmbito social e político
é um dos temas mais debatidos no campo jurídico, isto porque a valorização da jurisdição,
após a consolidação do Estado Democrático de Direito, ensejou inúmeras consequências,
principalmente na concretização de direitos fundamentais.
Esse acentuado protagonismo judicial traz à tona a necessidade de um debate acerca
da legitimidade da atuação dos magistrados em determinados casos, principalmente
quando se fala em ativismo judicial e judicialização da política, pesquisas voltadas a
compreender a atual crise vivenciada pela jurisdição.
Alguns julgados do Supremo Tribunal Federal (STF) fomentam a discussão em torno
desses dois fenômenos (ativismo e judicialização), justamente pelo intenso papel que
desempenha em diversas questões de importância social e política. Ainda, porque é uma
corte que possui um papel político-institucional voltado à jurisdição constitucional.
Assim, este trabalho, por meio de pesquisa doutrinária e jurisprudencial, tem como
objetivo analisar a crescente intervenção do Poder Judiciário na concretização de direitos,
em especial a do Supremo Tribunal Federal.
Para isto, faz-se, primeiramente, uma rápida análise histórica acerca das mudanças
nos modelos de Estado, a fim de se demonstrar como a consolidação do Estado
Democrático de Direito interferiu para o protagonismo judicial. Após, faz-se uma
1
Mestra em Direito pelo PPGD da Faculdade Meridional - IMED. Especialista em Direito Pública pela UCS. Advogada. Email:
[email protected].
261
conceituação do termo ativismo judicial, a partir dos ensinamentos de Lenio Streck e
Clarissa Tassinari, para, ao fim, analisar três decisões específicas do STF que foram alvo de
críticas doutrinárias.
2. O PODER JUDICIÁRIO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A CRISE DA JURISDIÇÃO
O protagonismo do Poder Judiciário tem sido alvo de muitos debates
contemporâneos na sociedade brasileira, principalmente acerca da sua legitimidade e das
consequências dessa incessante atuação judicial, em especial quando se trata do Supremo
Tribunal Federal, que exerce uma jurisdição constitucional.
Contudo, o destaque dado ao Poder Judiciário tem suas raízes na consolidação do
Estado Democrático de Direito, ou seja, no Brasil, com a promulgação da Constituição
Federal de 1988. Assim, para melhor compreensão, cabível um rápido levantamento
histórico acerca das mudanças nos modelos de Estados.
Primeiramente, insta referir que primeira grande mudança nos modelos de Estado,
foi a passagem do Estado Liberal para o Estado de Bem-Estar Social, o qual foi decisivo para
transferir as tensões do poder Legislativo para o Executivo. No modelo Liberal, o papel
central era do Legislativo, ou seja, a legislação era o foco do Estado e abarcava questões
intersubjetivas, sendo que o Judiciário exercia um papel neutro e inatingível pelo ambiente
externo e pelas influências políticas, econômicas ou sociais.2
O marco do Estado Liberal foram as revoluções americana e francesa, cujos slogans
eram os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. É tido como o primeiro regime
jurídico-político da sociedade, pois propagou os direitos fundamentais, a separação de
poderes e o império das leis. 3 Assim, fica claro que nesse paradigma há uma divisão do
público e o do privado, ao passo que os direitos eram garantidos por intermédio do Estado,
2
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico e decisão judicial. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 27.
3
GRADOS, Guido Aguila. Hacia um (Neo) Neoconstitucionalismo? In: GRADOS, Guido Cesar Aguila; STAFFEN, Márcio
Ricardo (orgs.). Constitucionalismo em mutação - Reflexões sobre as influências do Neoconstitucionalismo e das
Globalização Jurídica. Blumenau: Nova Letra, 2013. p. 24.
262
que com a legislação, assegurava a certeza das relações sociais por meio do exercício estrito
da legalidade.
Entretanto, com o surgimento das ideias socialistas, advindas com a Revolução
Mexicana e com o fim a Primeira Guerra Mundial, as lutas pelos direitos coletivos e sociais
ensejaram a criação de um Estado Social, objetivando, principalmente, a promoção social e
organização econômica. 4 A ideia era de associação, sendo que o estamental partia do
coletivo para chegar ao indivíduo, ou seja, o Executivo passou a ser fundamental, pois é ele
o Poder capacitado para buscar mecanismos coletivos capazes de conduzir a sociedade.
Quanto à atuação dos poderes nos modelos de Estado, Campilongo ressalta que
tanto no modelo jurídico liberal quanto no social, o Legislativo e o Executivo exerceram um
papel hierarquicamente superior ao assumido pelo Judiciário no sistema jurídico. Ou seja,
durante anos, “o Estado nacional e sua legislação foram os protagonistas de um processo
político que dependia de um Judiciário que operasse com categorias cerradas e, em
contrapartida, detivesse o monopólio das funções judicantes”. 5
Veja-se que foi na transformação do Estado Social para o Estado Democrático de
Direito que houve o deslocamento do papel central do Executivo para o Judiciário. 6 O
período pós Segunda Guerra Mundial trouxe a necessidade de uma ampliação
constitucional, a qual foi permeada principalmente pela defesa da dignidade da pessoa
humana, da qual advém os inúmeros direitos fundamentais e sociais previstos nas
Constituições. De acordo com Streck,
Em síntese, é a situação hermenêutica instaurada a partir do segundo pós-guerra que
proporciona o fortalecimento da jurisdição (constitucional), não somente pelo caráter
hermenêutico que assume o direito, em uma fase pós-positivista e de superação e de
superação do paradigma da filosofia da consciência, mas também pela força normativa dos
textos constitucionais e pela equação que se forma a partir da inércia na execução de
políticas públicas e na deficiente regulamentação legislativa de direitos previstos nas
4
GRADOS, Guido Aguila. Hacia um (Neo) Neoconstitucionalismo? op. cit., p. 25.
5
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico e decisão judicial, op. cit., p. 28.
6
TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e Ativismo Judicial: limites da atuação do Judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado
Editora, 2013, p. 31.
263
Constituições. É nisto que reside o que se pode denominar de deslocamento do polo de
tensão dos demais poderes em direção ao Judiciário. 7
Assim, após esse marco histórico, a democracia e cidadania, “reapareceram” com a
Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembleia Geral da
Organização das Nações Unidas, em 1948, e, como consequência, houve a promulgação de
novas constituições que positivassem os direitos fundamentais e sociais. Tais fatos
provocaram um crescimento da intervenção e participação do Estado na sociedade e um
redimensionamento da relação entre os Poderes, o que, diante da inércia dos demais, abriu
caminho para a extensão da jurisdição e para a participação do Judiciário no âmbito político.
A jurisdição constitucional transformou-se em uma peça fundamental na
consolidação do Estado Constitucional de Direito, cumprindo papel de protagonista na
defesa da supremacia normativa das constituições democráticas e dos direitos
fundamentais que permeiam sobre o princípio da dignidade humana.
Nesse diapasão, Carvalho suscita que, até então, o Judiciário era idealizado como
órgão responsável pela mera pronúncia da norma preestabelecida pelo legislador, porém,
depois da Segunda Guerra Mundial, “ele se desenvolveu, na grande maioria das
democracias ocidentais, como instância responsável pela garantia dos direitos
fundamentais e pelo controle dos atos do poder público”, ou seja, transformou-se em
importante interveniente do processo democrático. 8
O modelo democrático de Estado supera as noções anteriores de Estado Liberal e
Estado Social. Ele remete a um novo tipo de Estado, cunhado pela profunda transformação
do modo de produção capitalista para uma organização social de características sociais,
voltadas a implementar efetivamente os níveis de igualdade e liberdade. Há uma verdadeira
práxis política e uma atuação dos Poderes públicos, de forma que a noção de Estado
Democrático de Direito é indissociavelmente ligada à realização dos direitos fundamentais9.
7
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teoria discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva,
2011. P 190.
8
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Entre o guardião de promessas e o superego da sociedade - Limites e possibilidades
da jurisdição constitucional no Brasil. Revista de Informação Legislativa. Ano 51. Número 202. abr./jun. 2014, p. 159.
9
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11.ed.
264
Para Gervasoni,
O Estado Democrático de Direito é marcado pela instrumentalidade e pela normatividade
(força normativa) da Constituição, já que oferece aos cidadãos mecanismos jurídico-legais
(constitucionais) para exigir o cumprimento dos direitos (agora também ampliados)
previstos desde o modelo anterior. 10
Como já referido, no Brasil, o marco de um Estado Democrático de Direito foi a
promulgação da Constituição Federal de 1988, pois ela estabeleceu um rol imenso de
direitos fundamentais e sociais, bem como a obrigação da realização de políticas públicas
que assegurem e implementem tais direitos. Assim, a Magna Carta é reconhecida como a
força normativa brasileira, tendo aplicabilidade imediata e obrigatória, isto é, tem
característica dirigente e compromissória. Motta explica que,
Isso implica dizer que a “constituição programático-dirigente não substitui a política, mas
torna-se premissa material da política”, donde resulta que as “inércias do Executivo a falta
de atuação do Legislativo passam a poder a ser supridas pelo Judiciário, justamente
mediante a utilização dos mecanismos jurídicos previstos na Constituição que estabeleceu
o Estado Democrático de Direito”. A reunião destas premissas configura o fenômeno do
(neo)constitucionalismo, tradição [...] na qual estamos inseridos, e que convive com a
anunciada concepção de que o Direito é um instrumento de transformação da sociedade. 11
Ou seja, a vida política brasileira sofreu um acentuado deslocamento do centro de
decisões do Legislativo e do Executivo para o plano da justiça constitucional. O Judiciário
começou a ser chamado a suprir as lacunas dos demais Poderes, calhando a solucionar
conflitos de âmbito social, político e jurídico e a implementar o conteúdo das normas
constitucionais que promovem direitos, gerando, assim, o chamado protagonismo judicial.
Este conceito de Estado Democrático de Direito, que pressupõe uma valorização do
jurídico, traz a necessidade de uma rediscussão do papel da jurisdição e dos problemas
oriundos desse fenômeno, como a crise do Judiciário e o protagonismo judicial. No decorrer
dos anos, a judicialização ficou ainda mais evidente, isto porque, em razão da ineficácia dos
rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 53/54.
10
GERVASONI, Tássia Aparecida. A jurisdição constitucional brasileira entre Judicialização da Política e Ativismo Judicial.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC.
11
MOTTA, Francisco José Borges. Levando o direito à sério: uma crítica hermenêutica ao protagonismo judicial. 2.ed.
rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 27.
265
demais Poderes, o Judiciário tem sido chamado de maneira incontrolável para concretizar
direitos.
Pode-se compreender, com base no acentuado por Carvalho, que a promulgação de
uma Constituição cidadã acarretou uma abertura procedimental da jurisdição
constitucional. A era da democratização e a facilidade de acesso à justiça (ampliada com a
previsão de alguns benefícios aos mais necessitados, como a assistência judiciária gratuita
e a advocacia gratuita), ensejou progressivo aumento na judicialização dos conflitos sociais.
De tal modo, “a facilitação do acesso à justiça, associada à ampliação dos parâmetros para
o controle de constitucionalidade, acarretou o fortalecimento da jurisdição constitucional
no Brasil”. 12
Percebe-se que a vertente processual vem se tornando a via principal para a
obtenção de direitos fundamentais e sociais. Isto fica evidente quando contabilizadas as
inúmeras ações que visam assegurar direitos que as políticas públicas são insuficientes para
tanto, como é o exemplo da judicialização da saúde. Para se ter uma ideia, foi noticiado que
o Ministério da Saúde, no perídio de 2012 para 2014, teve um aumento de 129% com os
gastos advindos de ações judicias, as quais são motivadas pela falta de acesso à tratamentos
no Sistema Único de Saúde. 13
Este dado serve como uma pequena amostra de como tem crescido as demandas
judiciais e o se confirmado a valorização do judiciário como protagonista da sociedade.
Contudo, essa constante intervenção do Poder Judiciário tem ocasionado à chamada crise
do Poder Judiciário, assim intitulada em razão de vários elementos que permeiam a sua
atual atuação, tais como o excesso de intervenção/judicialização, a morosidade na solução
de litígios, a falta de acesso à Justiça, o alto custo operacional da atividade jurisdicional,
entre outros.
12
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Entre o guardião de promessas e o superego da sociedade - Limites e possibilidades
da jurisdição constitucional no Brasil. op. cit. p. 163.
13
Notícia publicada na Maxpress, a qual teve como base as informações prestadas pelo Fundo Nacional de Saúde.
Disponível
em:
<http://www.maxpressnet.com.br/Conteudo/1,
751921,
Gasto_do_Ministerio_da_Saude_com_acoes_judiciais_cresce_129_em_tres_anos, 751921,9. htm> Acessado em 15 de
junho de 2015.
266
Para Campilongo, a crise do Judiciário ocorreu porque a relação entre decisão judicial
e sistema político sempre foi mediada pelas características do Estado. No entanto, com a
chamada globalização, houve um “brutal esvaziamento” da territorialidade, de forma que
os Estados Nacionais têm perdido o conceito de serem os polos do poder político. O que,
consequentemente, gerou uma necessidade de uma redefinição e discussão acerca da
utilidade, função, necessidade e razão de ser do Judiciário. 14
Assim, conforme o autor, toda a problematização em torno do Judiciário vem do fato
de que o Estado e a política foram sempre indicados pela teoria política como o centro de
controle da sociedade. Entretanto, a sociedade moderna não possui mais os mesmos
parâmetros, sendo um sistema sem porta-voz e sem representação interna, ou seja, o
Estado deixou de ocupar uma posição central.
Dessa forma, tendo em vista que toda a estrutura da teoria da divisão dos poderes
e toda a literatura constitucional acerca da posição dos tribunais no sistema político partem
da ideia de que o Estado ocupa uma posição central e de controle da sociedade, gerou-se
um conflito nessa divisão, em especial em razão do poder de controle de
constitucionalidade do Judiciário. Assim, as estruturas tradicionais adquirem sentido
diverso e sofrem grande transformação, de forma que requer um estudo acerca do impacto
disso sobre o Judiciário.
3. ATIVISMO JUDICIAL O ACENTUADO GRAU DA ATIVIDADE JURISDICIONAL
3.1. Ativismo Judicial x Judicialização da Política
Antes de conceituar o ativismo judicial e elencar as características que tornam uma
decisão ativista, é necessário distanciá-lo da judicialização da política, vez que aqui adotase a concepção de que se tratam de fenômenos distintos e que são caracterizados a partir
14
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico e decisão judicial, op. cit.
267
de diferentes causas.
De fato, o sistema jurídico tem interferido em algumas questões de larga
repercussão política e social através das decisões das cortes judiciais. Tal fenômeno,
chamado de judicialização da política, vem ocorrendo em razão de os tribunais serem
chamados a se pronunciar quando o funcionamento do Legislativo e do Executivo se
mostram falhos, insuficientes ou insatisfatórios.
Como bem conceitua Streck, a judicialização da política pode ser entendida como
“um fenômeno, ao mesmo tempo, inexorável e contingencial, porque decorre de condições
sociopolíticas, bem como consiste na intervenção do Judiciário na deficiência dos demais
poderes”. 15
A judicialização da política é permeada por circunstâncias históricas, sociais e
jurídicas. Veja-se que, no estado brasileiro, as instâncias políticas tradicionais – Congresso
Nacional e Poder Executivo – estão sendo substituídas pelo órgão maior do judiciário, o
Supremo Tribunal Federal, ocorrendo, inclusive, significativas alterações na linguagem,
argumentação e modo de participação da sociedade. 16
Carvalho ensina que, no Brasil, este fenômeno ficou mais evidente a partir da
Constituição Federal de 1988, pois a redemocratização trouxe consigo a preconização da
dignidade humana, da igualdade e liberdade, permitindo o acesso à justiça a todos e
revigorando a importância do Judiciário, “que se tornou o grande guardião das garantias e
direitos humanos fundamentais e, literalmente, a última guarida para busca dessas
prerrogativas”. 17
Outra causa da judicialização, segundo Barroso, é a constitucionalização abrangente:
15
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5. ed., rev., mod. e ampl.
São Paulo: Saraiva, 2014, p. 65.
16
BARROSO, Luis Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Disponível em: <
http://www.oab.org.br/editora/revista/users/revista/1235066670174218181901.pdf> Acessado em 15/06/2015.
17
CARVALHO, Carlos Eduardo Araújo de. Judicialização e legitimidade democrática. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n.
2620. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/17325/judicializacao-e-legitimidade-democratica> Acessado em
17/06/2015.
268
[...] que trouxe para a Constituição inúmeras matérias que antes eram deixadas para o
processo político majoritário e para a legislação ordinária. Essa foi, igualmente, uma
tendência mundial, iniciada com as Constituições de Portugal (1976) e Espanha (1978), que
foi potencializada entre nós com a Constituição de 1988. A Carta brasileira é analítica,
ambiciosa, desconfiada do legislador. Como intuitivo, constitucionalizar uma matéria
significa transformar Política em Direito. Na medida em que uma questão – seja um direito
individual, uma prestação estatal ou um fim público – é disciplinada em uma norma
constitucional, ela se transforma, potencialmente, em uma pretensão jurídica, que pode ser
formulada sob a forma de ação judicial. Por exemplo: se a Constituição assegura o direito de
acesso ao ensino fundamental ou ao meio-ambiente equilibrado, é possível judicializar a
exigência desses dois direitos, levando ao Judiciário o debate sobre ações concretas ou
políticas públicas praticadas nessas duas áreas.18
Veja-se que, na medida em que a Administração Pública deixa de realizar ações com
vistas à efetivação dos direitos fundamentais sociais, o Poder Judiciário tem atuado no
sentido de obriga-la a efetivá-los, com o objetivo de garantir direitos e construir uma
sociedade justa e equilibrada.
Para Tassinari, a judicialização da política trata da interação de três elementos:
Direito, Política e Judiciário. É um fenômeno que surgiu por causa das transformações
ocorridas no Direito e no texto constitucional, que passou do Estado Social para o Estado
Democrático de Direito, havendo, dessa forma, o deslocamento do polo de tensão do
Executivo para o Judiciário. No Brasil, é entendida como uma ampliação do papel políticoinstitucional do Supremo Tribunal Federal. 19
Dessa forma, a judicialização apresenta-se como uma questão social, ou seja, não
depende da vontade do órgão judicante e sim é derivado de diversos fatores alheios à
jurisdição. A judicialização da política advém do amplo reconhecimento de direitos e da
ineficácia do Estado em implementá-los e resguardá-los, de forma que a diminuição deste
fenômeno não depende apenas de medidas a serem realizadas pelo Poder Judiciário, mas,
sim, de medidas a serem adotadas por todos os poderes constituídos. Também, em razão
da democracia, os conflitos sociais foram ampliados, pois o poder passa a ser distribuído de
18
BARROSO, Luis Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Disponível em: <
http://www.oab.org.br/editora/revista/users/revista/1235066670174218181901.pdf> Acessado em 20/06/2015.
19
TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e Ativismo Judicial: limites da atuação do Judiciário. p. 23-46.
269
forma mais ampla, permitindo a diversidade, que deve conviver em equilíbrio com a
igualdade jurídica. Dessa forma, é certo concluir que a intensidade e dimensão de tal
fenômeno não estão relacionadas à vontade dos juízes, de modo que o fenômeno não se
confunde com o do ativismo judicial.
3.2. O Que é Ativismo Judicial e o Que Torna uma Decisão Ativista
Assim como a judicialização, o ativismo também é empregado para demonstrar o
acentuado grau da atividade jurisdicional após a adoção do modelo de Estado Democrático
de Direito. Além disso, no Brasil, o ativismo também tem como marco a Constituição
Federal de 1988, caracterizada pelo processo de redemocratização, que rompeu com a
ditadura e fez surgir uma Constituição mais garantidora em todos os sentidos. Como bem
resumido por Barroso,
A judicialização e o ativismo judicial são primos. Vêm, portanto, da mesma família,
frequentam os mesmos lugares, mas não têm as mesmas origens. Não são gerados, a rigor,
pelas mesmas causas imediatas. A judicialização, no contexto brasileiro, é um fato, uma
circunstância que decorre do modelo constitucional que se adotou, e não um exercício
deliberado de vontade política. Em todos os casos referidos acima, o Judiciário decidiu
porque era o que lhe cabia fazer, sem alternativa. Se uma norma constitucional permite que
dela se deduza uma pretensão, subjetiva ou objetiva, ao juiz cabe dela conhecer, decidindo
a matéria. Já o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo
de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance.20
Streck também diferencia o ativismo judicial da judicialização da política. Para ele, a
judicialização é contingencial, não é um mal em si, e ocorre na maioria das democracias,
sendo um problema de (in)competência para prática de determinado ato (políticas públicas,
por exemplo). Já o ativismo é a “vulgata da judicialização”. “É um problema de
comportamento, em que o juiz substitui os juízos políticos e morais pelos seus, a partir de
sua subjetividade”. 21
20
BARROSO, Luis Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. p. 6.
21
STRECK, Lenio Luiz. O que é isto, o ativismo judicial, em números? Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013out-26/observatorio-constitucional-isto-ativismo-judicial-numeros> Acessado em 01/07/2015.
270
Verifica-se que, por causa da previsão do controle de constitucionalidade, forma de
revisão judicial dos atos dos demais poderes no texto constitucional, o STF, tido como
garantidor da Constituição, vem conferindo sentenças que vão além das previsões
constitucionais e, muitas vezes, vão de encontro a elas. Por isso, o debate sobre o ativismo
judicial brasileiro deve girar em torno dos termos em que o controle de constitucionalidade
ocorre.
Assim, se o judiciário concretiza o texto constitucional, conferindo às demandas as
respostas constitucionalmente adequadas, alcança a sua legitimidade. Contudo, se o
controle que realiza se baseia na vontade ou na consciência dos próprios juízes, ocorre um
desvirtuamento da Constituição e, portanto, o ativismo judicial.
Logo, o ativismo judicial é a extrapolação dos poderes do juiz por meio da sua
conduta como intérprete constitucional; é um fenômeno originalmente interno do sistema
jurídico, pois deriva da conduta do magistrado no exercício da sua atribuição, decidindo a
aplicação do direito a partir das suas convicções pessoais, mas que tem consequências em
todas as demais esferas da sociedade. Streck afirma que:
[...] um juiz ou tribunal pratica ativismo quando decide a partir de argumentos de política,
de moral enfim, quando o direito é substituído pelas convicções pessoais de cada magistrado
(ou de um cônjuge do magistrado); já a judicialização é um fenômeno que exsurge a partir
da relação entre os poderes do Estado (pensemos, aqui, no deslocamento do polo de tensão
dos Poderes Executivo e Legislativo em direção da justiça constitucional [...]).
Desse modo, Tassinari afirma que a concepção de ativismo pode ser resumida como
“a configuração de um Poder Judiciário revestido de supremacia, com competências que
não lhe são reconhecidas constitucionalmente”.22 Nesse sentido, faz quatro apontados a
fim sintetizar as diferenças entre ativismo judicial e a judicialização da política no Brasil:
Primeiro, não há como negar o elo existente entre Direito e Política; Segundo, a inter-relação
entre Direito e Política não autoriza a existência de ativismos judiciais; Terceiro, há um
equívoco em considerar judicialização da política e ativismo judicial como se fossem o
mesmo fenômeno; E quarto, a judicialização da política é um ‘fenômeno contingencial’, isto
é, no sentido de que insurge na insuficiência dos demais Poderes, em determinado contexto
22
TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e Ativismo Judicial: limites da atuação do Judiciário. p. 36.
271
social, independente da postura dos juízes e tribunais, ao passo que o ativismo diz respeito
a uma postula do Judiciário para além dos limites constitucionais. 23
Para a referida autora, o ativismo judicial é um problema exclusivamente jurídico,
isto é, criado pelo Direito, visto que é gestado dentro da sistemática jurídica. Para verificar
se alguém realiza uma conduta ativista, faz-se necessário analisar uma determinada postura
adotada por um órgão/pessoa na tomada de uma decisão que, de forma, é investida de
juridicidade. 24
Diante disso, pode-se afirmar que o ativismo judicial é um problema da teoria do
direito, mais especificamente, da teoria da interpretação jurídica, ao passo que a sua análise
e definição dependem da maneira como se olha para o problema da interpretação no
Direito. A interpretação não pode ser vista como um ato de vontade do intérprete, mas sim
como “o resultado de um projeto compreensivo no interior do qual se opera constantes
suspensões de pré-juízos que constitui a perseguição do melhor (ou correto) sentido para a
interpretação”. 25
Isto porque, se a decisão judicial for compreendida como ato de vontade, a aplicação
do direito se torna um ato interpretativo subjetivo e discricionário do juiz, abrindo espaço
para interpretações autoritárias, que invalidam o pacto democrático e todas as conquistas
dele oriundas. Por isso, essa concepção deve ser combatida continuamente, para que se
desconstrua a prática do ativismo judicial e se construa o Direito a partir do texto
constitucional.
Por todo o exposto, pode-se concluir que a judicialização da política é legítima, ao passo
que o ativismo não é legítimo, pois se trata de uma postura que ultrapassa os limites
constitucionais. Ademais, deve-se atentar para o fato de que o ativismo é sempre provocado
pelo judicialismo, mas o judicialismo não gera, necessariamente, uma postura ativista.
Assim, adota-se a concepção de que ativismo judicial é uma conduta do Judiciário que
extrapola os seus poderes e deveres constitucionais ou não observa os preceitos e normas
23
TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e Ativismo Judicial: limites da atuação do Judiciário. p. 36/37.
24
TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e Ativismo Judicial: limites da atuação do Judiciário. p. 56.
25
TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e Ativismo Judicial: limites da atuação do Judiciário. p. 56.
272
constitucionais, sendo que uma decisão será ativista sempre que for fundamentada em
argumentos de política ou de moral, pois se evidencia que o direito acaba sendo substituído
pelas convicções pessoais do magistrado.
4. UMA ANÁLISE CRÍTICA DAS DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: EXEMPLOS DE
JULGAMENTOS ATIVISTAS
4.1. ADPF 132/RJ e ADI 4277/DF: A Legalização dos Casamentos Homoafetivos
A homossexualidade é, sem dúvida, sempre pauta de grandes discussões morais e
sociais, principalmente porque as leis brasileiras não reconhecem esse tipo de união.
Contudo, o STF, ao proferir julgamento nas ADPF 132 RJ e ADI 4277 DF 26, entendeu por
conceder às uniões homoafetivas o mesmo regime jurídico das uniões estáveis
heteroafetivas.
As ações foram julgadas conjuntamente, reconhecendo-se por unanimidade a
constitucionalidade da união estável entre casais do mesmo sexo e conferindo-se
interpretação conforme a Constituição Federal para excluir qualquer significado do artigo
1.723 do Código Civil que impeça o reconhecimento desta união. Contudo, a Constituição
Federal ao reconhecer a união estável, no parágrafo 3º do artigo 226, é bem clara ao falar
em “homem e mulher”. Senão, vejamos:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. [...] § 3º Para efeito
da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como
entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. (Grifei)
Dessa forma, sem uma lei ou uma emenda constitucional, não poderia haver a
equiparação das uniões estáveis entre casais homossexuais e casais heterossexuais,
conforme os preceitos da própria Constituição. Porém, mesmo assim o STF, motivado por
argumentos morais, acabou legislando sobre um tema que deveria ficar restrito ao
26
Relator: Min. Ayres Britto, Tribunal Pleno, julgadas em 05/05/2011, DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011
EMENT VOL-02607-01 PP-00001. Ementas disponíveis no site do STF: <http://www.stf.jus.br> Acessado em 05/07/2015.
273
Congresso Nacional.
Trata-se, assim, de uma atuação ativista do STF, que desrespeita o legislador
constituinte e, consequentemente, à soberania popular expressa pela regra majoritária.
Percebe-se que a Corte invadiu função privativa do legislador ao assegurar tratamento
igualitário aos homossexuais através de decisões proferidas em dois julgados.
Ademais, o único procedimento legítimo e democrático para garantir o
reconhecimento jurídico da união homoafetiva como entidade familiar seria a atuação
legislativa através da alteração do texto constitucional, por isso, a crítica à atuação do STF.
Nesse sentido, ensina Streck:
No caso em pauta, é a Constituição que estabelece um limite semântico-pragmático. A
questão que preocupa, portanto, na decisão do STF, é o tipo de interpretação conforme feita
pelo STF. Primeiro, não seria uma interpretação conforme e, sim, no modo como dito pelo
Min. Ayres Brito, uma Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung (nulidade parcial sem
redução de texto); segundo, como fazer uma interpretação conforme (sic) de uma lei que
diz exatamente o que diz a Constituição? Levemos o texto da Constituição a sério, pois.
Como se sabe, a "fórmula" da ICC é: este dispositivo somente é constitucional se
interpretado no sentido da Constituição...! Logo, a fórmula fica assim: o dispositivo que fala
"homem e mulher" somente é constitucional se interpretado e lido no sentido da
Constituição (que fala exatamente a mesma coisa)...!.27
Por fim, insta referir que tal discussão não está relacionada à aceitação da
homossexualidade, ao contrário, não se adota aqui qualquer concepção racista ou de
descriminação. De fato, o ordenamento jurídico brasileiro deve abarcar esta realidade
social, respeitando os direitos dos envolvidos. Contudo, o que se questionou é apenas a
maneira como essa equiparação das uniões foram inseridas no campo jurídico, consoante
fundamentos expostos.
27
STRECK, Lenio Luiz. Sobre a decisão do STF (uniões homoafetivas). Disponível
http://leniostreck.blogspot.com.br/2011/06/sobre-decisao-do-stf-unioes.html> Acessado em 19/06/2015.
274
em:
<
4.2. HC 91952: O Uso das Algemas e a Alteração da Súmula Vinculante nº 11
O STF ao julgar o Habeas Corpus 91.952/SP32728 entendeu, em decisão unânime,
por anular a decisão condenatória do Tribunal do Júri porque o réu foi mantido algemado
durante toda a sessão, sem qualquer justificativa convincente ou fundamentação para que
fosse submetido a tal constrangimento. Assim o fizeram sob a afirmação de que essa
situação poderia influenciar negativamente a decisão dos jurados e prejudicar o réu, pois o
acusado, ao ser mantido nessa condição, imprime uma imagem de pessoa perigosa.
Porém, a discussão gerada por esta decisão é quanto aos seus efeitos, isto porque
ela serviu como único embasamento para a alteração da Súmula Vinculante nº 11, que
passou a dispor o seguinte:
Súmula Vinculante n.º 11: “Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado
receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de
terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade
disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato
processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”.
Durante o julgamento do HC 91.952, a Corte também decidiu alterar a súmula acima
transcrita, de forma a deixar explícito o seu entendimento sobre o uso generalizado de
algemas. Porém, ao fazer a referida alteração, o STF deixou de observar a Constituição
Federal, em especial o artigo 103-A, que prevê a necessidade de reiteradas decisões sobre
a matéria constitucional para que esse tipo de súmula seja aprovado. Vejamos:
Art. 103-A, caput, da Constituição Federal: O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou
por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas
decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na
imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e
à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem
como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.
Dessa forma, percebe-se que os requisitos obrigatórios não foram observados, ao
passo que a súmula vinculante foi aprovada com base em apenas um único julgamento e
28
HC 91952, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 07/08/2008, DJe-241 DIVULG 18-12-2008
PUBLIC 19-12-2008 EMENT VOL-02346-04 PP-00850 RTJ VOL-00208-01 PP-00257. Ementa disponível no site do STF:
<http://www.stf.jus.br> Acessado em 05/07/2015.
275
não em reiteradas decisões conforme determina a Magna Carta. Isto vai de encontro ao
artigo 103-A, pois, “[...] para que uma súmula possa ser editada, deverá haver uma sucessão
de casos, que, reconstruídos, darão azo a uma ‘coagulação de sentido’ (é isso que é uma
SV, em síntese)29”. Em razão disso, Streck e Oliveira bem concluíram:
Por tudo isso, a súmula não é um ‘mal em si’. Insisto: é um ‘mal’ como é qualquer enunciado
ou lei ‘injusta’ e/ou inconstitucional. A propósito, a doutrina deve iniciar a discussão acerca
do que fazer com as SV inconstitucionais (formal ou materialmente). No fundo, não há
maiores diferenças entre uma lei e uma súmula; a diferença é que, por incrível que pareça,
as SV os juristas respeitam. E a lei? Bem, a lei acaba tendo menos força que as SV. Por
exemplo: antes da SV 10, os tribunais eram useiros e vezeiros em não suscitar incidentes de
inconstitucionalidade. Isto é, não obedeciam aos arts. 97 da CF e os arts. 480 e seguintes do
CPC. Com a edição da SV n. 10, passaram a obedecer. Aliás, até demais, uma vez que agora
nem mais fazem interpretação conforme e nulidade parcial sem redução de texto. E olha
que a SV n. 10, examinada em seu ‘DNA’, nem trata desses dois mecanismos hermenêuticos.
Sintomas da crise, pois não? Ainda, por fim, há um outro enigma a ser decifrado. E qual
seria? É que as súmulas representam um paradoxo. E por quê? Porque elas não diminuem,
mas, sim, aumentam a competência dos juízes. Os tribunais é que ainda não se deram conta.
O que é lamentável é que talvez nem venham a perceber isso. E nem os juízes. Tudo
dependerá de que paradigma estão ‘olhando’ as súmulas...! Uma preocupação final: alguém
já reparou que o mesmo movimento que se deu com as codificações introduzindo os
‘conceitos jurídicos indeterminados’ já se mostra presente nas súmulas vinculantes do STF?
Especialmente a do uso abusivo de algemas... Só que agora, seguindo a via de deslocamento
da tensão de poderes, o Judiciário assume o papel de protagonista. E corremos o risco de o
discurso do judiciário substituir a legislação democraticamente elaborada.30
Dessa feita, além do fundamento dessa decisão não poder ser deduzido a um
elemento normativo-constitucional, ela não observou as normas constitucionais e nem os
requisitos necessários para a utilização do instrumento da Súmula Vinculante, tornando-se,
assim, uma decisão ativista.31
29
STRECK, Lenio Luiz; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Garantias processuais penais e a jurisprudência do STF. In: GERVASONI,
Tássia Aparecida. A jurisdição Constitucional Brasileira entre Judicialização da Política e Ativismo Judicial. op. cit.
30
Ibidem.
31
GERVASONI, Tássia Aparecida. A jurisdição Constitucional Brasileira entre Judicialização da Política e Ativismo Judicial.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado da Universidade de Santa
Cruz do Sul – UNISC.
276
4.3. HC 105538: Da Validade do Artigo 212 do Código de Processo Penal
A nova redação do artigo 212 do Código de Processo Penal 32 , introduzido pelas
alterações promovidas pela Lei nº 11.690/08, alterou decisivamente a ordem de oitiva das
testemunhas na audiência de instrução e julgamento do processo penal.
O referido dispositivo, desde então, passou a ser objeto de discussão também nos
Tribunais, isto porque, em determinados casos, a ordem do artigo 212 do CPP não é
devidamente obedecida pelos magistrados, que acabam fazendo as perguntas antes das
partes.
Assim, o STF, no HC 105538, firmou posicionamento no sentido de que o referido
dispositivo não impede que o juiz indague as testemunhas antes das partes. Veja-se a
ementa:
EMENTA: JUÍZO – PARCIALIDADE – DECISÕES CONTRÁRIAS AOS INTERESSES DA PARTE –
NEUTRALIDADE. A parcialidade do Juízo há de ser demonstrada, sendo elemento neutro o
fato de haver implementado decisões contrárias à parte.
TESTEMUNHAS – AUDIÇÃO –
PERGUNTAS – ORDEM. O disposto no artigo 212 do Código de Processo Penal não
obstaculiza a possibilidade de, antes da formalização das perguntas pelas partes, dirigir-se o
juiz às testemunhas, fazendo indagações.
SENTENÇA DE PRONÚNCIA – NATUREZA –
TERMOS. A pronúncia faz-se mediante decisão interlocutória, cabendo ao Juízo
fundamentar a submissão do acusado ao Tribunal do Júri. (HC 105538, Relator: MIN. MARCO
AURÉLIO, Primeira Turma, Sessão Ordinária, julgado em 10.4.2012, DJ Nr. 76 do dia
19/04/2012)
Em outras palavras, o STF se negou a cumprir e aplicar a norma do CPP, e,
consequentemente, negou validade ao artigo, sem qualquer arguição sobre a
inconstitucionalidade do dispositivo.
Contudo, os julgadores só podem afastar a aplicação de norma quanto essa se
apresenta, de alguma forma, em contradição com a Constituição, até porque, conforme
parecer no Ministro Gilmar Mendes, “tanto o poder do juiz de negar aplicação à lei
32
Art. 212. As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que
puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida.
(Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008)
Parágrafo único. Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição".
277
inconstitucional quanto a faculdade assegurada ao indivíduo de negar observância à lei
inconstitucional (mediante interposição de recurso extraordinário) demonstram que o
constituinte pressupôs a nulidade da lei inconstitucional”.33
Porém, há de salientar que o artigo 212 não contradiz os preceitos constitucionais,
ao contrário, institucionaliza o sistema acusatório no CPP com base nas garantias
fundamentais do contraditório e ampla defesa. Outrossim, caso seja considerada
inconstitucional, crível que seja através dos institutos de controle constitucional previstos
nos artigos 97 da CF e artigos 480 a 482 do Código de Processo Civil. Assim, ensina Streck:
[...] quando o legislador institucionaliza o sistema acusatório no Código de Processo Penal,
mediante a aprovação de uma alteração significativa do artigo 212, o STJ e o STF negam
validade ao dispositivo, sem qualquer arguição sobre a inconstitucionalidade do novel
dispositivo. Simplesmente se negam a cumprir o dispositivo. Isso é ou não é ativismo? O sol
nascerá amanhã? O produto do legislador não está conspurcado pelo Poder Judiciário? E
veja-se o alcance desse tipo de decisão (por todos, o HC 103.525 – STF). Com isso,
diariamente, milhares de acusados têm seus direitos violados por falta do cumprimento de
um dispositivo que trata de direitos fundamentais. 34
Percebe-se que, mais uma vez, o STF não utilizou dos mecanismos previstos na
norma constitucional e está deixando de aplicar uma norma que, até o momento, é
considerada constitucional, atitude aqui entendida como ativista.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percebe-se que o modelo de Estado adotado atualmente no Brasil, o Estado
Democrático de Direito, em muito contribuiu para a valorização do Poder Judiciário como
protagonista da concretização de direitos. A Constituição Federal de 1988 trouxe um
imenso rol de direitos fundamentais, bem como a obrigação da realização de políticas
públicas que assegurem e implementem tais direitos.
Em razão dessas garantias constitucionais, o Judiciário começou a ser chamado a
33
RE 348.468, voto do rel. min. Gilmar Mendes, julgamento em 15-12-2009, Segunda Turma, DJE de 19-2-2010.
34
STRECK, Lenio Luiz. O que é isto, o ativismo judicial, em números? op. cit.
278
suprir as lacunas dos demais Poderes, calhando a solucionar conflitos de âmbito social,
político e jurídico e a implementar o conteúdo das normas constitucionais que promovem
direitos, gerando, assim, os fenômenos da judicialização da política e ativismo judicial.
Embora ambas tenham suas raízes na crise da jurisdição, tratam-se de distintos
acontecimentos. A judicialização da política é legítima, vez que gerada por causa da
ineficácia da atuação dos demais poderes, ou seja, os tribunais são chamados a se
pronunciar e efetivar direitos quando o funcionamento do Legislativo e do Executivo se
mostram falhos, insuficientes ou insatisfatórios.
Já o ativismo judicial é uma postura que ultrapassa os limites constitucionais, sendo,
portanto, ilegítima, vez que geralmente é causada pela ânsia do juiz de ir além do que diz a
lei e fazer prevalecer a sua consciência. Trata-se de uma conduta do Judiciário que extrapola
os seus poderes e deveres constitucionais ou não observa os preceitos e normas
constitucionais, sendo que uma decisão se torna ativista sempre que fundamentada em
argumentos de política ou de moral, pois se evidencia que o direito acaba sendo substituído
pelas convicções pessoais do magistrado.
Ao analisar as três decisões acima transcritas, verifica-se que elas se configuram
ativistas, havendo, em cada uma delas, alguma atitude que extrapola os limites do Supremo
Tribunal Federal. De fato, o sistema jurídico tem sido crucial para a concretização de alguns
direitos fundamentais e sociais e é claro que nem toda a intervenção do Judiciário nos
campos social e político caracteriza ativismo. Há inúmeras decisões da Corte que poderiam
ser citadas como legítimas, pois são casos de judicialização e não de ativismo, como, por
exemplo, as decisões voltadas à concretização do direito à saúde.
Contudo, não se pode confundir judicialização com ativismo, pois, diferentemente
das decisões judicializadas, as posturas ativistas atingem a democracia e a própria atuação
estatal. Ao amenizar as falhas deixadas pelo sistema representativo através de decisões
baseadas na consciência do magistrado, o Judiciário está é contribuindo para a ampliação
da própria crise da jurisdição e da democracia, e, por isso, devem ser evitadas.
279
REFERÊNCIAS DAS FONTES CITADAS
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Disponível
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<
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4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e Ativismo Judicial: limites da atuação do Judiciário. Porto
Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013.
281
A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E A EFETIVIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS
Regiane Nistler1
INTRODUÇÃO
Inegável que fixar o sentido e o alcance de uma determinada lei, na sua aplicação a
um caso concreto, de algum modo implica poder normativo não muito distinto daquele
existente no próprio ato de legislar 2 . Assim, temos como relevante a análise realizada
quanto a relação existente entre os universos jurídico e político.
Ocorre que se cria uma problemática trazida pelo paradigma do Estado Democrático
de Direito consistente na tensão entre jurisdição e legislação.
Todavia, embora a judicialização da política seja capaz de causar inúmeras
discussões no que tange a necessidade de se evitar o fenômeno, observando, em especial,
a separação dos três poderes que delimita as competências, imprescindível registar que
judicializar questões de natureza política, que deveriam estar sendo efetivadas em outra
esfera (Poder Executivo e Legislativo), mas que acabam desaguando no Poder Judiciário tem
seus aspectos positivos, como a garantia de direitos, acerca dos quais para a presente
pesquisa, frisam-se os sociais, previstos na Constituição de 1988.
No que tange aos direitos sociais, amplitude dos temas inscritos no art. 6º da
Constituição deixa claro que os direitos sociais não são somente os que estão enunciados
1
Mestranda em Direito pelo PPGD da Faculdade Meridional - IMED. Bolsista (taxa) pela Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal do Ensino Superior – CAPES - PROSUP. Especializanda em Direito Empresarial pela Universidade Estácio de
Sá. Especialista em Direito e Processo do Trabalho (2015) e graduada em Direito (2013) pela Universidade para o
Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí - Unidavi. Líder do Grupo de Pesquisa Direito, Constituição e Sociedade de Risco
da Unidavi. Membro do Grupo de Pesquisa Transnacionalismo e Circulação de Modelos Jurídicos do PPGD da Faculdade
Meridional - IMED. Associada ao Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito - CONPEDI. Professora
substituta do curso de Direito da Unidavi. Advogada. E-mail:
[email protected].
2
FARIA, José Eduardo. Os desafios do Judiciário. Revista USP. Coordenadoria de Comunicação Social (CCS) / USP, 1994.
São Paulo, n. 21, p. 47-57.
282
nos artigos 7º, 8º, 9º, 10 e 11. Eles podem ser localizados, principalmente, no Título VIII Da Ordem Social, artigos 193 e seguintes.
Ademais, é de notório conhecimento que direitos como concessão de medicamentos
e vagas em escolas, por exemplo, somente são garantidos em fase judicial, ou seja, o Poder
Judiciário, de natureza subsidiária, acaba por fazer o papel primeiro, aquele que seria da
implementação efetiva do direito com normas capazes de assegurar a população, bem
como, de políticas públicas pelo Poder Executivo. Eis a crítica.
No entanto, a judicialização da política quem sabe esteja sendo um caminho de
efetivação dos direitos sociais, rol extenso prometido pela democracia de 1988.
2. JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA: CONCEITO, CARACTERÍSTICAS E SUA ABORDAGEM PELO
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
A Judicialização da Política tem sido notada nos Estados Unidos, de fato, desde o
paradigmático caso Marbury v. Madison, quando a atuação do Poder Judiciário, no controle
da constitucionalidade das leis, passou a exercer um papel de destaque na vida política e
social daquele país. Apesar disso, foi a partir do século XX que a Suprema Corte norteamericana revelou uma atuação mais explicita em favor da efetivação dos direitos
individuais, por meio do acolhimento de teses nesse sentido, notadamente em sede de
revisão judicial (o século XX, na história da Suprema Corte, apenas para citar – e antecipar
– alguns exemplos, for marcado pela Era Lochner e pela lendária Corte Warren). Na
verdade, a capacidade de os juízes e de os tribunais estadunidenses influírem no
funcionamento das suas instituições é enorme e parece aumentar com o passar do tempo3.
Todavia, este não é um fenômeno exclusivo ou particular do modelo norteamericano; pelo contrário, o constitucionalismo europeu, notadamente no segundo pós-
3
NUNES JUNIOR, Amandino Teixeira. A judicialização da política no contexto da Constituição de 1988. In: ARAÚJO, José
Cordeiro de; PEREIRA JÚNIOR, José de Sena; PEREIRA, Lúcio Soares; RODRIGUES, Ricardo José Pereira (Orgs.). Ensaios
sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira: consultoria legislativa. Brasília: Centro de
Documentação e Informação, 2008. p. 755.
283
guerra, também passou a apresentar característica bastante ampliativa da atuação dos
Tribunais Constitucionais, vindo de fenômenos como constitucionalização do direito,
eficácia horizontal e vertical dos direitos fundamentais, ampliação (e “reforço”, pois os
Tribunais Constitucionais, apesar de já existirem antes disso, ganham novo ânimo após os
regimes totalitários, sendo a grande “aposta” para a preservação dos direitos fundamentais
contidos nos textos constitucionais) dos instrumentos de controle de constitucionalidade,
ampliação dos conteúdos constitucionais, ampliação dos direitos fundamentais, etc.4.
Assim, importante lembrar a secular relação de alternância de dominação: ora do
Direito sobre a política, ora desta sobre aquele, cuja necessidade de equilíbrio (para que o
poder fosse, ao mesmo tempo, racional e exercido de forma limitada) encontrou resposta
na Constituição, que é direito positivo (determinado pelo homem e não como um dado da
natureza), mas também contempla exigências de conteúdo (direitos constitucionais
vinculantes) a serem observados (e impõe limites à política).5
Desta forma, pode-se afirmar que a Constituição é, como pondera Streck, o “elo
conteudístico” que une “política e direito” na conformação do Estado 6 , confirmando a
intuição de Barroso de que constitucionalizar uma matéria é, na verdade, transformar a
Política em Direito7.
De todo modo, verifica-se uma infinidade de discussões no que tange a (in)
separabilidade desses dois sistemas e das interferências recíprocas que podem ou não ser
admitidas, sendo o deslinde desse quadro e, em especial, a fixação de algumas diferenças
terminológicas, o primeiro passo para a delimitação conceitual da judicialização da política.
No contexto do positivismo jurídico passou-se a considerar “Direito” o que está
4
GERVASONI, Tássia Aparecida. LEAL, Mônia Clarissa Hennig. Judicialização da política e ativismo judicial na perspectiva
do Supremo Tribunal Federal. Curitiba: Multideia, 2013.p. 75.
5
GRIMM, Dieter. Constituição e política. Tradução de Geraldo de Carvalho. Coordenação e supervisão de Luiz Moreira
Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 3 – 10.
6
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do Direito. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2002. p. 105.
7
BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Disponível em:
<http://www.oab.org.br/editora/revista/users/revista/1235066670174218181901.pdf> Acesso em: 01 jul. 2015.
284
inserido no texto da lei, a qual na situação atual é feita segundo o jogo das forças políticas,
especialmente considerando-se seu âmbito de origem: o Poder Legislativo. Daí que o termo
política incorporou uma conotação muito próxima das ações de natureza político-partidária
e a lei, por sua vez, passou a ser expressão da vontade do grupo que predomina em
determinado momento na vida de um povo – a maioria (ainda que seja muitas vezes um
instrumento de interesses individuais ou grupais contrários aos do próprio povo)8.
Nesse sentido, repisa-se a problemática implícita trazida pelo paradigma do Estado
Democrático de Direito consistente na tensão entre jurisdição e legislação. Ocorre que as
normas jurídicas e, em especial, as normas constitucionais, em muitos casos não podem ser
interpretadas sem o recurso a valorações políticas, porém, tais valorações são, em regra,
subjetivas / pessoais (daí a mencionada relação tensionante entre o Direito e a política, já
que, não obstante o juiz constitucional aplique o Direito, a sua aplicação conduz a
valorações politicas)9.
De todo modo, sustenta-se que os juízes exercem atividade política em diferentes
sentidos: por serem integrantes do aparato de poder do Estado, que é uma sociedade
política, e por aplicarem normas do Direito, que são necessariamente políticas. Ainda, antes
de tudo, o juiz é cidadão e, portanto, também vota. Assim, não se pode ignorar que possui
suas próprias preferências políticas, embora não as externe por considerar-se “apolítico”,
condição que se reputa indispensável para o reconhecimento de sua imparcialidade e
independência. Isso se deve, contudo, ao equívoco de se atribuir à palavra “política” o
sentido estreito de “política partidária”. No entanto, a título de adendo, todos os juízes
fazem opções político-eleitorais, sendo preferível reconhecer isso que fingir uma
neutralidade absoluta, que seria sinônimo de indiferença pelos destinos do país e da
comunidade, inaceitável em qualquer cidadão. Esse é apenas um dos aspectos da
policiticidade.10
8
DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva. 1996. p. 57.
9
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do Direito. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2002. p. 102.
10
DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva. 1996. p. 85 e 87.
285
De outro lado, a separação entre Direito e política pressupõe uma vinculação legal
que se revela problemática no atual estágio de complexidade das relações sociais. Há uma
exigência implícita de que a política forneça realmente programas decisórios a aplicação do
Direito, por meio dos quais possam ser resolvidos, no âmbito do Judiciário, os conflitos
instaurados. O que se verifica na prática, contudo, é uma extrema dificuldade de se manter
essa regulamentação atualizada. Isso se deve, basicamente, a dois fatores: a) ao fracasso
parcial do auto redirecionamento da sociedade por meio do mercado, que precisou ser
substituído pela regulamentação estatal (em níveis extremamente altos); e b) a acelerada
mudança social, que aumenta a velocidade com a qual o direito existente envelhece e
reclama substituição (ou atualização). Descritos elementos tornam complexa essa atividade
estatal, que já não consegue se antecipar por completo e, consequentemente, não pode
oferecer uma regulamentação de forma normativa11.
A propósito, a pretensão de autonomia absoluta do Direito em relação à política é
impossível de se realizar, haja vista que as soluções para os casos concretos nem sempre
(se não raramente) são encontradas prontas no ordenamento jurídico, mas precisam ser
construídas argumentativamente por juízes e tribunais. Nesses casos, a experiência
demonstra que os valores de natureza pessoal e a ideologia do intérprete desempenham,
conscientemente ou não, papel decisivo nas suas conclusões12.
Importante destacar a advertência acerca do caráter eminentemente político da
jurisdição constitucional, cuja elucidação ora se vale das constatações de Queiroz no
sentido de que não se pode confundir o caráter (objeto) político da jurisdição constitucional
com uma atuação de cunho político, tendo em vista que sua atuação, apesar do caráter
político, deve ser jurídica13.
11
GRIMM, Dieter. Constituição e política. Tradução de Geraldo de Carvalho. Coordenação e supervisão de Luiz Moreira
Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 17 – 18.
12
BARROSO, Luis Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo.
Disponivel
em:
<
http://www.oab.org.br/editora/revista/revista_11/artigos/constituicaodemocraciaesupremaciajudicial.pdf> Acesso
em: 10 jul. 2015.
13
GERVASONI, Tássia Aparecida. LEAL, Mônia Clarissa Hennig. Judicialização da política e ativismo judicial na perspectiva
do Supremo Tribunal Federal. Curitiba: Multideia, 2013.p. 84.
286
No entanto, uma coisa é a justiça constitucional poder refletir-se indiretamente na
política, influenciando a toada das decisões políticas e outra bem distinta é que passe
conscientemente a atuar funções de “indirizzo politico” em todas ou algumas de suas
decisões principais. O “indirizzo político” seria a síntese da constituição atuada, uma espécie
de “direito constitucional constituído”, um “direito constitucional concretizado”. Nesta
última hipótese, os tribunais de justiça constitucional não desenvolveriam uma atividade
política “stricto sensu”, não podendo por isso ser considerados como “co-legisladores”
antes procederia a uma “atuação constitucional” com o fim de revelar o diálogo entre as
instâncias legislativas e o poder judicial14. Desta forma, o conceito trazido por Barroso é
esclarecedor, no sentido de que a
Judicialização significa que algumas questões de larga repercussão política ou social estão
sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais:
o Congresso Nacional e o Poder Executivo. Como intuitivo, a judicialização envolve uma
transferência de poder para juízes e tribunais, com alterações significativas na linguagem,
na argumentação e no modo de participação da sociedade15.
O fenômeno em apreço tem causas diversas (as quais, de certa forma são “externas”
ao Judiciário, isto é, decorrem de outros fatores que escapam ao seu controle), das quais
pelo menos três merece destaque, quais sejam: a primeira grande causa da judicialização
(“olhando” para a realidade brasileira), foi a redemocratização do país, que teve como
ponto culminante a promulgação da Constituição de 1988, já que, em síntese, esse processo
fortaleceu e expandiu o Poder Judiciário, bem como aumentou a demanda por justiça na
sociedade brasileira; a segunda causa foi a constitucionalização abrangente, que trouxe
para a Constituição inúmeras matérias que antes eram deixadas para o processo político
majoritário e para a legislação ordinária e agora passam a ser tratadas (pelo menos há essa
possibilidade em sede jurisdicional; e, por fim, a terceira, e última causa a ser destacada, é
o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, um dos mais abrangentes do
14
GERVASONI, Tássia Aparecida. LEAL, Mônia Clarissa Hennig. Judicialização da política e ativismo judicial na perspectiva
do Supremo Tribunal Federal. Curitiba: Multideia, 2013.p. 83.
15
BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Disponível em:
<http://www.oab.org.br/editora/revista/users/revista/1235066670174218181901.pdf> Acesso em: 01 jul. 2015.
287
mundo, possibilitando que quase qualquer questão política ou moralmente relevante possa
ser alçada ao Supremo tribunal Federal16.
Um primeiro sentido em que a Suprema Corte brasileira refere-se à locução
“judicialização” mostra-se distante daquele que tem agitado os bancos acadêmicos e
acalorado os debates políticos. Trata-se da singela e quase literal significação de
judicialização como matéria judicializada, ou seja, posta em juízo por meio de um processo
judicial. Esse sentido teria sido constatado em um acordão, trinta e duas decisões
monocráticas e dois informativos17.
Diferentemente ocorre, por exemplo, quanto à segunda significação encontrada na
jurisprudência do STF, que faz menção a um tema bastante específico, avançando rumo aos
conceitos lançados anteriormente. Trata-se da ideia de judicialização do direito à saúde –
sendo que no referido sentido foram identificados dois acórdãos18; vinte e quatro decisões
da Presidência; e sete decisões monocráticas – pela qual se passa todo um debate acerca
da atuação do Poder Judiciário na implementação dos direitos sociais, o que, por sua vez,
traz à tona a problemática sobre a efetividade desses direitos, a sua realização mediante
políticas públicas, a natureza de suas normas consagradoras e as suas respectivas
competências para tanto, com reflexos diretos na teoria da separação de Poderes.
Ou seja, o Poder Judiciário acaba por efetivar as políticas públicas ou até mesmo
substitui-las, à medida que finalmente faz valer direitos elementares a população, por
exemplo, e em especial (para o presente estudo), os direitos sociais previstos na
Constituição de 1988.
16
BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Disponível em:
<http://www.oab.org.br/editora/revista/users/revista/1235066670174218181901.pdf> Acesso em: 01 jul. 2015.
17
GERVASONI, Tássia Aparecida. LEAL, Mônia Clarissa Hennig. Judicialização da política e ativismo judicial na perspectiva
do Supremo Tribunal Federal. Curitiba: Multideia, 2013.p. 127.
18
SL 47 Agr., Relator(a): Min. Gilmar Mendes (Presidente), Tribunal Pleno, julgado em 17.03.2010, DJe-076 Divulg.
29.04.2010. Public. 30.04.2010 Ement vol-02399-01 PP-00001; e STA 175 AgR, Relator(a): Min. Gilmar Mendes
(Presidente), Tribunal Pleno, julgado em 17.03.2010, DJe-076 Divulg 29.04.2010 Public 30.04.2010 Ement vol-02399-01
PP 00070.
288
3. DIREITOS SOCIAIS
Os direitos sociais têm por objetivo garantir aos indivíduos condições materiais tidas
como imprescindíveis para o pleno gozo dos seus direitos, por isso tendem a exigir do
Estado uma intervenção na ordem social que garanta os critérios de justiça distributiva,
assim diferentemente dos direitos a liberdade, se realizam por meio de atuação estatal com
a finalidade de diminuir as desigualdades sociais.
Por volta do século XIX, nasce a substituição do homem pela máquina, gerando
grande índice de desemprego, miséria e mão-de-obra excedente, causando desigualdade
social, fazendo com que o Estado se visse diante da necessidade de proteção ao trabalho e
a outros direitos como: saúde, educação, lazer, alimentação, trabalho, moradia, segurança,
entre outros.
Entretanto, os direitos sociais tiveram realmente sua plenitude com o marxismo e o
socialismo revolucionário, já no século XX que trouxe uma nova concepção de divisão do
trabalho e do capital, por isso entende-se que os direitos sociais foram aceitos nos
ordenamentos jurídicos por uma questão política, e não social isso é para evitar que o
socialismo acabasse por derrubar o capitalismo.
Todavia, a declaração de direitos nas Constituições teve como marco inicial a
Constituição Mexicana de 1917, no qual a ordem social, como a ordem econômica, adquiriu
dimensão jurídica, pois passaram a disciplina-la sistematicamente.
No Brasil, a primeira Constituição a apresentar um título sobre a ordem econômica
e social foi a de 1934, sob a influência da famosa Constituição de Weimar (1919), o que
perdurou nas Constituições posteriores.19
O artigo 6º da Constituição Federal de 1988 se refere de maneira bastante
abrangente quanto aos direitos sociais por excelência, como o direito a saúde, ao trabalho,
ao lazer, a educação, a alimentação, a moradia, a segurança, a previdência social, a proteção
à maternidade e a infância, a previdência social e assistência aos desamparados.
19
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 30ª Ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2008. p. 285.
289
Examinando a partir disso, pressupõe-se que os direitos sociais buscam a qualidade
de vida dos cidadãos, no entanto apesar de estarem interligados faz-se necessário, ressaltar
e distinguir as diferenças entre direitos sociais e direitos individuais. Portando os direitos
sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas
proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas
constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que
tendem a realizar a equalização de situações sociais desiguais, são, portanto, direitos que
se ligam ao direito de igualdade.
Na sua grande maioria, o atendimento aos referidos direitos sociais exige uma
atuação do Estado, razão pela qual grande parte dessas normas é de eficácia limitada.
Importante destacar que a implementação desses direitos ocorre mediante políticas
públicas concretizadoras de certas prerrogativas individuais e/ou coletivas, destinadas a
reduzir as desigualdades sociais existentes e a garantir uma existência humana digna20.
Alexandre de Moraes afirma que, os direitos sociais fundamentais do homem,
caracterizam-se como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória de um
Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria de condições de vida
hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, e são consagrados como
fundamentos do Estado democrático, peto art. 1º, inc. IV da Constituição Federal de 198821.
Aponta, ainda, que os direitos sociais dos cidadãos são genéricos e abstratos e
existem também os direitos sociais do trabalhador, os quais se encontram dispostos no art.
7º da Constituição Federal de 1988, tais direitos apresentam conceito infraconstitucional.
O autor conceitua trabalhador aquele que trabalha ou presta serviços por conta sob direção
da autoridade de outrem, pessoa física ou jurídica, entidade privada ou pública22.
Argumenta, também, que os direitos sociais são normas de ordem pública, com a
20
NOVELINO, Marcelo. Manual de Direito Constitucional. 9 Ed. rev. e atual, Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO,
2014. p. 619.
21
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 26. ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 197
22
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. p. 197.
290
característica de imperativas, invioláveis, portanto, pela vontade das partes contraentes da
relação trabalhista23.
Nesse sentido, José Afonso da Silva, define os direitos sociais, como dimensões dos
direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado
direta e indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores
condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações
sociais desiguais24.
Finaliza indicando que são direitos que se ligam ao direito de igualdade. Equivalem
como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições
materiais mais propícias ao aferimento da igualdade real, o que proporciona condição mais
compatível com o exercício efetivo da liberdade25.
3.1 Características e Classificação dos Direitos Sociais
A Constituição de 1988 estabelece no artigo 6º, que “são direitos sociais a educação,
a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à
maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição26.”
A amplitude dos temas inscritos no art. 6º da Constituição deixa claro que os direitos
sociais não são somente os que estão enunciados nos artigos 7º, 8º, 9º, 10 e 11. Eles podem
ser localizados, principalmente, no Título VIII - Da Ordem Social, artigos 193 e seguintes.
José Afonso da Silva classifica os direitos sociais à luz do Direito positivo, agrupando em seis
classes, sendo elas:
a) Direitos sociais relativos ao trabalhador; b) direitos sociais relativos à seguridade,
compreendendo os direitos à saúde, à previdência e assistência social; c) direitos sociais
23
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. p. 197.
24
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 30. ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2008. p. 286287.
25
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. p. 286-287.
26
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 45. ed. atual. e ampl.
São Paulo: Saraiva. 2011.
291
relativos à educação e cultura; d) direitos sociais relativos à moradia; e) direitos sociais
relativos à família, criança, adolescente e idoso; f) direitos sociais relativos ao meio
ambiente27.
Relata em sua obra, que há uma classificação dos direitos sociais do homem como
produtor e como consumidor, entram na primeira categoria: a liberdade de instituição
sindical, o direito de greve, o direito de o trabalhador determinar as condições do seu
trabalho, o direito de cooperar na gestão da empresa e o direito de obter emprego (artigos
7º a 11 da Constituição Federal de 1988)28.
No tocante aos direitos sociais do homem consumidor listou os seguintes: os direitos
à saúde, à segurança social, ao desenvolvimento intelectual, o igual acesso das crianças e
adultos à instrução, à formação profissional e à cultura e garantia ao desenvolvimento da
família, que são os indicados no artigo 6º29·.
Por ser didática, facilitando o entendimento, mencionamos essa classificação. Os
direitos sociais relativos ao trabalhador são de duas espécies:
a) os direitos dos trabalhadores em suas relações individuais de trabalho: CF de 88,
art. 7º; b) os direitos coletivos dos trabalhadores: CF de 88, arts. 9º a 11. Os direitos sociais
relativos à seguridade, compreendendo os direitos à saúde, à previdência e assistência
social, estão no título da Ordem Social, artigos 193 e seguintes30.
Os direitos sociais relativos à família, criança, adolescente e idoso poderão ser
encontrados em capítulos da Ordem Social: art. 201, inc. II, art. 203, inc. I, II, arts. 226 e 227,
art. 230. Finalmente, nos direitos sociais relativos ao meio-ambiente, deve ser incluído o
direito ao lazer (CF de 88, art. 6º, art. 227) e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder
público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras
gerações (C.F., art. 225). O direito ao meio ambiente integra a disciplina urbanística.
27
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. p. 286-287.
28
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. p. 286-287.
29
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. p. 287.
30
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. p. 286-287.
292
Constitui, também, espécie de interesse difuso, direito fundamental de 3ª geração31.
A Constituição Federal de 1988 teve grande preocupação quanto aos direitos sociais,
estabelecendo uma série de dispositivos que assegurassem ao cidadão todo o básico
necessário para uma vida digna e para que tenha condições de trabalho e emprego ideais.
Em suma, todas as formalidades para que se determinasse um Estado de bem-estar social
do cidadão foram realizadas, e estão descritas na Constituição Federal de 1988.
4. INFLUÊNCIA DA JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA NA EFETIVIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS
Inegável que fixar o sentido e o alcance de uma determinada lei, na sua aplicação a
um caso concreto, de algum modo sempre implica poder normativo não muito distinto
daquele existente no próprio ato de legislar 32 . Assim, temos como relevante a análise
realizada quanto a relação existente entre os universos jurídico e político.
Ainda, embora esse contexto seja intitulado de “judicialização da política” e capaz
de ensejar inúmeras discussões no que tange a necessidade de se evitar o fenômeno,
observando, em especial, a separação de poderes em seu conceito original, diga-se na
perspectiva de Montesquieu, imprescindível registar que judicializar questões de natureza
política, que deveriam estar sendo efetivadas em outra esfera (Poder Executivo e
Legislativo), mas que acabam desaguando no Poder Judiciário tem seus aspectos positivos,
como a garantia de direitos, acerca dos quais para a presente pesquisa, frisam-se os sociais,
previstos na Constituição de 1988.
Aliás, já afirmou Celso de Mello, que – “é a necessidade de fazer valer a Constituição,
muitas vezes transgredida e desrespeitada por pura, simples e conveniente omissão dos
poderes públicos” – que, dentre outras causas, justifica “esse comportamento afirmativo
do Poder Judiciário”33. Extrai-se, assim, do voto em exame, que apreciava caso de direito a
saúde, que o entendimento da efetivação do respectivo direito pela jurisdição
31
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. p. 288.
32
FARIA, José Eduardo. Os desafios do Judiciário. Revista USP. Coordenadoria de Comunicação Social (CCS) / USP, 1994.
São Paulo, n. 21, p. 47-57.
33
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. SL 47 AgR, Relator: Min. Gilmar Mendes (Presidente), Tribunal Pleno, julgado em 17
mar. 2010.
293
constitucional (inclusive mediante a determinação de políticas públicas), quando supre
omissões inconstitucionais dos órgãos competentes, nada mais é do que o cumprimento de
uma missão institucional, em demonstração de respeito incondicional a Constituição; ou
seja, na verdade, o Supremo Tribunal Federal, ao adotar tais medidas de ordem “afirmativa”
sustenta que objetiva apenas restaurar a ordem (constitucional) violada pela inércia dos
demais Poderes (cuja omissão, inclusive, o Ministro qualifica como uma das causas
geradoras dos processos informais de mudança da Constituição, que deve ser repelido)34.
O sistema judicial, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, vem
presenciando a expansão tanto do escopo dos direitos sociais quanto de um padrão
descentralizado de intervenção pública na área social, envolvendo, inclusive, significativas
mudanças na estrutura tributária e nas atribuições do Estado. Tais alterações, no entanto,
por vezes não conseguem ser implementadas por falta de leis complementares e/ou por
uma forma extremamente formal de administração da justiça, “a ponto de não se
preocupar com a solução dos litígios de modo a um só tempo legal, eficaz e legítimo”35.
Eis aí, de modo esquemático, o dilema hoje enfrentado pelo Judiciário brasileiro, ao
menos em suas instâncias inferiores: cobrir o fosso entre esse sistema jurídico-positivo e as
condições de vida de uma sociedade com 40% de seus habitantes vivendo abaixo da linha
da pobreza, em condições subumanas, na consciência de que a atividade judicial extravasa
os estreitos limites do universo legal, afetando o sistema social, político e econômico na sua
totalidade. Com a expansão dos direitos humanos, que nas últimas décadas perderam seu
sentido “liberal” originário e ganharam uma dimensão “social”, ficou evidente que
pertencer a uma dada ordem político-jurídica é, também, desfrutar do reconhecimento da
“condição humana”. Quando essas condições não são efetivamente dadas, os segmentos
mais desfavorecidos se tornam parias. Esse tem sido o grande paradoxo dos direitos
humanos – e também dos direitos sociais – no Brasil: apesar de formalmente consagrados
34
GERVASONI, Tássia Aparecida. LEAL, Mônia Clarissa Hennig. Judicialização da política e ativismo judicial na perspectiva
do Supremo Tribunal Federal. Curitiba: Multideia, 2013.p. 132.
35
FARIA, José Eduardo. Os desafios do Judiciário. Revista USP. Coordenadoria de Comunicação Social (CCS) / USP, 1994.
São Paulo, n. 21, p. 48.
294
pela Constituição, em termos concretos eles quase nada valem quando os homens
historicamente localizados se veem reduzidos à mera condição genérica de “humanidade”;
portanto, sem a proteção efetiva de um Estado capaz de identificar as diferenças e as
singularidades dos cidadãos, de promover justiça social, de corrigir as disparidades
econômicas e de neutralizar uma iníqua distribuição tanto de renda quanto de prestígio e
de conhecimento36.
O poder hermenêutico do juiz é fundamental na construção do sentido ao ser
imprimido ao ordenamento jurídico, sendo que o termômetro do desgaste de um sistema
judicial é o próprio Judiciário posto que é o poder responsável por exercer a função de
decidir, concretizando as normas abstratas, atendendo, assim, as demandas reais e
históricas nas quais agentes sociais se encontram envolvidos. Trazendo este tema para um
enfoque a partir da realidade brasileira, temos que o Poder Judiciário é aquele que mais se
vê acossado pela enormidade dos problemas, sendo constantemente instigado a decidir
conflitos de natureza social, que deveriam ser tratados e implementados politicamente (a
priori), e não jurisdicionalmente (a posteriori), diga-se de passagem, lidando com questões
dessa natureza dentro de uma cultura liberal, de conflitos individuais, de demandas de
interesse privado, sem aparelhamento e/ou preparo devidos, bem como dentro de um
sistema engessado por formalismos e procedimentos processuais incapazes de satisfazer a
questões de dimensão difusa e/ou coletiva37.
No entanto, embora persista a crítica é inegável que o Poder Judiciário exerce papel
imprescindível na sociedade nos dias de hoje. Por essa razão, mostra-se acertada a
afirmação de que o progresso da democracia se mede especialmente pela ampliação dos
direitos e pela sua afirmação em juízo.
A multiplicação de subsistemas jurídicos diferenciados e que rejeitam a intervenção do
Direito estatal traz consigo uma perigosa arma de invalidação do Direito por meio de
ameaças privadas. A universalização dos direitos sociais é trocada pelo favorecimento de
36
FARIA, José Eduardo. Os desafios do Judiciário. p. 48.
37
BITTAR, Educado Carlos Bianca. O direito na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. p. 47 – 48.
295
setores sociais específicos. Se a ordem jurídica aspirar à supressão de seus vazios de eficácia,
longe do caminho da regulação auto referencial, poderá encontrar no resgate da norma
jurídica um importante critério objetivo de redistribuição de direitos e de justiça social. Daí
a importância, para a consolidação da democracia entre nós, da afirmação de um Judiciário
sintonizado com as características do seu tempo38.
Em todo caso, é própria do contexto contemporâneo de cultura democrática, a
projeção do papel do juiz em quase todos os aspectos da vida social. Essa projeção, todavia,
não tem derivado como em certas avaliações apressadas, de pretensões do próprio
Judiciário. Antes, pelo contrário, o fato de que os juízes, crescentemente, ocupem lugares
tradicionalmente reservados as instituições especializadas da política e as de auto regulação
social, longe de significar ambições de poder por parte do Judiciário, aponta para processos
mais complexos e permanentes que os limites de uma abordagem como essa não permitem
aprofundar39.
Por derradeiro, talvez valha parafrasear Dino de Castro e Costa no sentido de que os
juízes não podem tudo, nem devem poder. Mas podem muito, e devem exercer esse poder
em favor da grandiosa e inesgotável utopia de construção da felicidade de cada um e de
todos, o que serve para os direitos sociais, pois sem prejuízo da crítica ao instituto da
judicialização da política que não se quer suprimir, motivo pelo qual foi amplamente
abordada, o fenômeno pode estar servindo para finalmente efetivar direitos prometidos na
Constituição de 1988, promulgada na democracia, que como se sabe, costuma prometer
muito mais do que pode cumprir.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo dos tempos, o Poder Judiciário vem passando por inúmeras transformações
no perfil de sua atuação. Nesse sentido, a promulgação do texto constitucional de 1988
simbolizou um momento de uma radical modificação na forma como era concebido o
38
CAMPILONGO, Celso Fernandes. O Judiciário e a democracia no Brasil. Revista USP. São Paulo, n. 21, p. 124 - 125:
Coordenadoria de Comunicação Social (CCS) / USP, 1994.
39
GERVASONI, Tássia Aparecida. LEAL, Mônia Clarissa Hennig. Judicialização da política e ativismo judicial na perspectiva
do Supremo Tribunal Federal. Curitiba: Multideia, 2013.p. 90.
296
exercício da jurisdição constitucional no Brasil. Em resumo, é possível afirmar que a partir
de então uma das expressões que passou a estar diretamente ligada à atividade jurisdicional
é “judicialização da política”40.
A definição do termo, de forma simples e objetiva, significa dizer a judicialização de
questões políticas. Isso mesmo. Direitos e questões que deveriam ser tratados com
efetividade e garantidos na esfera legislativa e principalmente na executiva, com a criação
e execução de políticas públicas acaba por desaguar no Poder Judiciário, que em vez de
atuar como o Poder subsidiário, acaba por ser a esperança de implementação dos direitos
mais elementares.
Aliás, exemplo perfeito e inevitável de ser tratado nesse contexto é os direitos
sociais, rol expressivo constante da Constituição Federal de 1988, valendo citar o direito à
saúde, alimentação e educação, que muitas vezes somente são garantidos por
determinação judicial.
Ou seja, em que pese exista grande volume de críticas ao instituto da judicialização
da política, tendo em vista a separação de poderes de Montesquieu e até mesmo o
transpasse dos limites de competência dos juízes, o que pode ensejar outros fenômenos e
diversos longos ensaios, é inegável que judicializar questões políticas pode estar sendo uma
saída para a garantia e efetividade dos direitos sociais prometidos na carta democrática de
1988, que muito prometeu nesse sentido, mas tem falhado ao cumprir.
REFERÊNCIAS DAS FONTES CITADAS
BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática.
Disponível
em:
<http://www.oab.org.br/editora/revista/users/revista/1235066670174218181901.pdf>
Acesso em: 01 jul. 2015.
40
TASSINARI. Clarissa. Jurisdição e Ativismo Judicial: limites da atuação do judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2013. p. 27.
297
BITTAR, Educado Carlos Bianca. O direito na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2005.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de
1988 / obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Antonio Luiz de
Toledo Pinto. Marcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Lívia Céspedes. 45 ed. atual. e ampl.
São Paulo: Saraiva. 2011.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. SL 47 AgR, Relator: Min. Gilmar Mendes (Presidente),
Tribunal Pleno, julgado em 17 mar. 2010.
CAMPILONGO, Celso Fernandes. O Judiciário e a democracia no Brasil. Revista USP. São
Paulo, n. 21, p. 124 - 125: Coordenadoria de Comunicação Social (CCS) / USP, 1994.
DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva. 1996.
FARIA, José Eduardo. Os desafios do Judiciário. Revista USP. Coordenadoria de
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GRIMM, Dieter. Constituição e política. Tradução de Geraldo de Carvalho. Coordenação e
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MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 26. ed. São Paulo: Atlas, 2010.
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de 1988. In: ARAÚJO, José Cordeiro de; PEREIRA JÚNIOR, José de Sena; PEREIRA, Lúcio
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Documentação e Informação, 2008.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 30ª Ed., São Paulo:
298
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STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do Direito.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.
TASSINARI. Clarissa. Jurisdição e Ativismo Judicial: limites da atuação do judiciário. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2013.
299
MULTICULTURALISMO, PLURALISMO JURÍDICO E O NOVO
CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO: HORIZONTES DEMOCRÁTICOS
Giulia Signor1
Larissa Borges Fortes2
Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino3
“Me detuve en el Perú y subí hasta las ruinas de Macchu
Picchu. Ascendimos a caballo. Por entonces no había
carretera. Desde lo alto vi las antiguas construcciones de
piedra rodeadas por las altísimas cumbres de los Andes
verdes. Desde la ciudadela carcomida y roída por el paso
de los siglos se despeñaban torrentes. Masas de neblina
blanca se levantaban desde el río Wilcamayo. Me senti
infinitamente pequeño en el centro de aquel ombligo de
piedra; ombligo de un mundo deshabitado, orgulloso y
eminente, al que de algún modo yo pertenecía. Sentí que
mis propias manos habían trabajado allí en alguna
1
Graduanda em Direito pela Faculdade Meridional – IMED. Membro do Grupo de Pesquisa Ética, Cidadania e
Sustentabilidade. Membro do Grupo de Pesquisa Pluralismo Jurídico e Multiculturalismo. Bolsista voluntária de
iniciação
científica
do
projeto
“Dicionário
da
Sustentabilidade”.
Currículo
Lattes:
http://lattes.cnpq.br/6380850649791969 – E-mail:
[email protected]
2
Mestranda em Direito pela Faculdade Meridional - IMED, na linha de pesquisa "Fundamentos do Direitos e da
Democracia". Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Faculdade Meridional - IMED. Membro
do grupo de pesquisa Ética, Cidadania e Sustentabilidade, sob orientação do Prof. Dr. Sergio Ricardo Fernandes de
Aquino.
Bolsista
CAPES/PROSUP.
Passo
Fundo.
RS.
Brasil.
Advogada.
Currículo
Lattes:
http://lattes.cnpq.br/6228368628395288 - E-mail:
[email protected]
3
Doutor e Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI. Professor Permanente do Programa
de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestrado – em Direito da Faculdade Meridional – IMED. Pesquisador da Faculdade
Meridional. Membro do Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciências Humanas, Contingência e Técnica na linha de
pesquisa Norma, Sustentabilidade e Cidadania da Universidade Federal do Maranhão - UFMA. Membro associado do
Conselho Nacional de Pós-Graduação em Direito - CONPEDI. Coordenador do Grupo de Pesquisa em Ética, Cidadania e
Sustentabilidade no Programa de Mestrado em Direito (PPGD) da Faculdade Meridional - IMED. Membro do Grupo de
Pesquisa sobre Direitos Culturais e Pluralismo Jurídico da Faculdade Meridional - IMED. Membro do Grupo de Pesquisa
sobre Transnacionalismo e Circulação de Modelos Jurídicos da Faculdade Meridional - IMED. Vice-líder no Centro
Brasileiro de pesquisa sobre a teoria da Justiça de Amartya Sen. Membro da Associação Brasileira de Ensino de Direito
- ABEDi. Membro do Grupo de Pesquisa em Direito Empresarial e Sustentabilidade, do Instituto Blumenauense de Ensino
Superior.
Passo
Fundo.
RS.
Brasil.
Currículo
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1318707397090296 Email:
[email protected]
300
etapa lejana, cavando surcos, alisando peñascos. Me
sentí chileno, peruano, americano. Había encontrado en
aquellas alturas difíciles, entre aquellas ruinas gloriosas
y dispersas, una profesión de fe para la continuación de
mi canto4”.
INTRODUÇÃO
A história da América Latina demonstra as profundas desigualdades vivenciadas
pelos seus povos. As vozes que habitam esse continente tiveram poucas oportunidades de
se expressarem ou terem espaços próprios para expressar as suas necessidades, as suas
ideias, os seus saberes. Pouco a pouco, o desenvolvimento dessas regiões ocorreu sob a
marca da exploração, da oligarquia, da eliminação cultural. Não é possível que ocorra
qualquer manifestação de autonomia, de aperfeiçoamento civilizacional a partir do signo
colonial.
No entanto, o que se observa, não obstante as dificuldades ainda persistam, é que
as vozes esquecidas e silentes, tornam-se, mais e mais, audíveis. Aos poucos, as identidades
e identificações latino-americanas retomam as suas características sócio-histórico-culturais
a fim de demonstrar, no século XXI, como é possível constituir a integração desses povos e
trazer diversas e diferentes contribuições para uma vida humana razoável.
Duas categorias podem ser citadas como vetores da descolonização dos saberes do
Sul: Socialidade e Multiculturalismo. A primeira expressa uma diferença significativa,
especialmente no âmbito da Sociologia Clássica, com outra expressão, qual seja, a
Sociabilidade. A dimensão da Socialidade 5 revela o viver e conviver como um theatrum
mundi, em outros termos, a flexibilidade dos vários papeis e figurinos permite a elaboração
4
NERUDA, Pablo. Confieso que he vivido: memórias. p. 75. Disponível em: http://www.librodot.com. Acesso em 13 de
jun. de 2016.
5
“[...] a pessoa (persona) representa papéis, tanto em sua atividade profissional quanto no seio das diversas tribos que
participa. Mudando o seu figurino, ela vai, de acordo com os seus gostos (sexuais, culturais, religiosos, amicais), assumir
o seu lugar, a cada dia, nas diversas peças do theatrum mundi”. MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do
individualismo nas sociedades de massa. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014,
p. 138.
301
serena de uma fala sensata, capaz de reunir as virtudes humanas latino-americanas e
produzir horizontes desejáveis para se disseminar e articular a Dignidade Humana.
No âmbito do Multiculturalismo, por outro lado, exercita-se, de modo permanente,
o reconhecimento necessário acerca da importância (ontológica) de cada saber, de cada
cosmovisão6, desde as sociedades industriais às comunidades indígenas. Essa proximidade
tira o véu de uma perspectiva mais relativa sobre a categoria estudada. Pode-se afirmar que
cada povo tem a sua marca cultural, as suas tradições. No entanto, a sua autonomia, a sua
identidade7 não pode servir como parâmetro de imobilidade ao desenvolvimento social ou,
ainda, permitir o retrocesso. Aquelas práticas nas quais degradam o humano e/ou o não
humano jamais podem ser a justificativa para classificar algo como “cultura”, nem,
tampouco, ser apreciadas como fenômeno a permitir a melhoria da democracia. Nenhuma
expressão cultural é imutável e absoluta dentro as linhas do tempo8.
Por esse motivo, a conjugação Socialidade e Multiculturalismo expressa a
6
“Todas las culturas tienen una forma de ver, sentir percibir y proyectar el mundo, al conjunto de estas formas se conoce
como Cosmovisión o Visión Cósmica. Los abuelos y abuelas de los pueblos ancestrales, hicieron florecer la cultura de la
vida inspirados en la expresión del multiverso, donde todo está conectado, interrelacionado, nada está fuera, sino por el
contrario “todo es parte de...”; la armonía y equilibrio de uno y del todo es importante para la comunidad. Es así que en
gran parte de los pueblos de la región andina de Colombia, Ecuador, Bolivia, Perú, Chile y Argentina, y en los pueblos
ancestrales (primeras Naciones) de Norteamérica pervive la Cosmovisión Ancestral o Visión Cósmica, que es una forma
de comprender, de percibir el mundo y expresarse en las relaciones de vida. Existen muchas naciones y culturas en el
Abya Yala, cada una de ellas con sus propias identidades, pero con una esencia común: el paradigma comunitario basado
en la vida en armonía y el equilibrio con el entorno”. HUANACUNI MAMANI, Fernando. Buen vivir/ Vivir bien: Filosofía,
políticas, estrategias y experiencias regionales andinas. Peru: CAOI, 2010, p. 27.
7
"[...] a descoberta da minha identidade não significa que eu me dedique a ela sozinho, mas sim que eu a negoceie, em
parte, abertamente, em parte, interiormente, com os outros. É por isso que o desenvolvimento de um ideal de
identidade gerada interiormente atribui uma nova importância ao reconhecimento. A minha própria identidade
depende, decisivamente, das minhas reacções dialógicas com os outros". TAYLOR, Charles. A política do
reconhecimento. In: TAYLOR, Charles. Multiculturalismo. Tradução de Marta Machado. Lisboa: Instituto Piaget, 1994,
p. 54.
8
"[...] creio que coerência é, enfim, o termo correto e que lança ponte [...]: o que descubro no pensamento de alhures ou
daqui é sempre 'co-erente', uma vez que resistindo efetivamente em conjuntos e justificando-se. Assim, com efeito, a
inteligência é esse recurso comum, sempre em desenvolvimento, bem como indefinidamente partilhável, de apreender
coerências e comunicar-se através delas. Heráclito já dizia: 'Comum a todos é o pensar', phronein. O que estabeleceu
como princípio que não existe nada, de qualquer cultura que seja, que não seja em princípio inteligível - é este
efetivamente, mais uma vez, o único transcendental que reconheço: não em função das categorias dadas, em nome de
uma razão pré-formada, mas como exigência que forma horizonte e jamais se detém (e correspondendo, a esse título,
ao universal). Isso, portanto, sem resíduo. De maneira absoluta. Ainda que os esforços dos antropólogos nunca sejam
plenamente recompensados; ainda mesmo que eu mesmo nunca tenha certeza de ter conseguido ler o suficiente...".
JULLIEN, François. O diálogo entre as culturas: do universalismo ao multiculturalismo. Tradução de André Telles. Rio de
Janeiro: Zahar, 2009, p. 175/176.
302
importância da vida latino-americana, da emergência plural das vozes do sul, as quais
enaltecem essa convivência entre Homem e Natureza. Na perspectiva jurídica, ambas
categorias sinalizam a Sensibilidade Jurídica destas terras a partir do Pluralismo Jurídico
como vetor de elaboração das Constituições Latino-Americanas. O Novo Constitucionalismo
Latino-Americano apresenta, numa dimensão ética, a presença das vozes marginalizadas e,
numa dimensão normativa, rememora os desafios e adversidades no exercício e
reinvindicação de novos direitos os quais retratam o rico mosaico cultural, cujo alcance já
transborda as fronteiras da soberania nacional.
A partir desses argumentos, o critério metodológico utilizado para a investigação de
abordagem e a base lógica do relato dos resultados apresentados reside no Método
Dedutivo9, cuja premissa maior é a existência do Multiculturalismo e a premissa menor se
manifesta pela aplicação dessa condição por meio do Pluralismo Jurídico e o Novo
Constitucionalismo Latino-Americano. A coleta e tratamento dos dados será feito por meio
do Método Cartesiano10. A técnica utilizada nesse estudo será a Pesquisa Bibliográfica11 e
Documental, a Categoria12 e o Conceito Operacional13.
O problema de pesquisa formulado para este estudo pode ser descrito pela seguinte
indagação: Qual a importância do Multiculturalismo na América Latina o qual permite a
manifestação do Pluralismo Jurídico como condição de elaboração do Novo
Constitucionalismo Latino-Americano?
A hipótese para essa pergunta demonstra, inicialmente, que é preciso observar qual
9
“[...] base lógica da dinâmica da Pesquisa Científica que consiste em estabelecer uma formulação geral e, em seguida,
buscar as partes do fenômeno de modo a sustentar a formulação geral”. PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa
jurídica: teoria e prática. 13. ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2015, p. 213.
10
“[...] base lógico-comportamental proposta por Descartes, [...], e que pode ser sintetizada em quatro regras: 1. duvidar;
2. decompor; 3. ordenar; 4. classificar e revisar”. PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática.
p. 212.
11
“[...] Técnica de investigação em livros, repertórios jurisprudenciais e coletâneas legais”. PASOLD, Cesar Luiz.
Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. p. 215.
12
“[...] palavra ou expressão estratégica à elaboração e/ou à expressão de uma ideia”. PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia
da pesquisa jurídica: teoria e prática. p. 205.
13
“[...] definição estabelecida ou proposta para uma palavra ou expressão, com o propósito de que tal definição seja aceita
para os efeitos da ideia exposta”. PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. p. 205.
303
o entendimento cultural sobre a perspectiva multicultural no referido continente, o qual
não se assemelha a outros modelos como é o caso europeu ou norte-americano. Aos
poucos, as vozes antes silentes, diante de um cenário histórico de exploração desmedida e
desprezo pelos seus saberes ancestrais, se expressam pela sua pluralidade e diversidade na
perspectiva jurídica. Essa difusão de conhecimentos, essa conversação polifônica denota
como a dimensão constitucional não pode – nem deve - se isolar nos seus limites soberanos,
mas se amplia pelo transconstitucionalismo14.
O Objetivo Geral deste estudo é investigar como as vozes multiculturais do sul foram
institucionalmente reconhecidas a partir do Pluralismo Jurídico e do Novo
Constitucionalismo Latino-Americano.
Os Objetivos Específicos são: a) Esclarecer a importância do Multituculturalismo; b)
Identificar o desenvolvimento do Pluralismo Jurídico a partir da Socialidade; c) Avaliar a
necessária integração – e cooperação – entre os latino-americanos por meio do Novo
Constitucionalismo Latino-Americano, não obstante as suas absolutas diferenças no
exercício da liberdade e tolerância15.
14
“O que caracteriza o transconstitucionalismo entre ordens jurídicas é, portanto, ser um constitucionalismo relativo a
(soluções de) problemas jurídico-constitucionais que se apresentam simultaneamente a diversas ordens. Quando
questões de direitos fundamentais ou de direitos humanos submetem-se ao tratamento jurídico concreto, perpassando
ordens jurídicas diversas, a ‘conversação’ constitucional é indispensável”. NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo.
São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 129.
15
“A Tolerância torna visíveis os limites de nossas certezas e acolhe essa diferença que está além das fronteiras perceptivas
do ‘Eu’. Essa postura é inexistente por aquele que pratica o seu contrário – a intolerância27 –, porque a ausência desse
terreno fértil, de se acolher a diferença humana alheia, impõe um modus vivendi sem liberdades, sem proximidade. É
a negação da condição (e natureza) humana. Tolerar exige, sob esse argumento, o Perdão, pois, como salienta Voltaire,
é o fundamento que se manifesta a partir do reconhecimento no qual se comunga nossas fragilidades, nossos erros. Ao
se admitir essa condição, intrassubjetiva e intersubjetiva, resta a indagação: Por que não perdoar? Percebe-se nessa
ação uma aposta de regeneração, ao contrário da intolerância, que dissemina atitudes destrutivas. O improvável se
corporifica e resiste, manifesta-se contra a violência, a crueldade, as imposições culturais arbitrárias e regenera as
relações humanas tornando-as mais amistosas e sadias. Esse é o vínculo de Responsabilidade na qual se constitui
historicamente por meio do ‘estar junto’, e se torna o sedimento que amplia o exercício habitual da Tolerância”.
ZAMBAM, Neuro José; AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes de. Tolerância: reflexões filosóficas, políticas e jurídicas para
o século XXI. Revista da AJURIS. Porto Alegre, v. 142, n. 137, p. 374, março de 2015. Disponível em:
http://www.ajuris.org.br/OJS2/index.php/REVAJURIS/article/view/389/323. Acesso em 19 de jul. de 2016.
304
2. SOB O HORIZONTE DA ESPERANÇA: A FORÇA DO CONSTITUCIONALISMO A PARTIR DA
IDENTIDADE DAS TERRAS DO SUL
A partir do final da década de 1980, começa-se a perceber um giro constitucional
significativo na América Latina. As intensas e diferentes formas de exploração e submissão
– seja ideológica ou política, de caráter interno ou externo – que não favoreceram o pleno
desenvolvimento das nações deste continente aos poucos cede espaço para se assegurar
vida qualitativa, liberdade como pressuposto básico às reivindicações históricas, bem como
o exercício de direitos e deveres, igualdade e justiça como fontes de equilíbrio para as sadias
relações cotidianas entre as pessoas e solidariedade como o fundamento social e
institucional do esclarecimento acerca da experiência sobre a Dignidade Humana16.
Todos esses fatores, no entanto, não podem ser compreendidos como satisfeitos,
não obstante haja expressa previsão legal a fim de se exigir o seu cumprimento. A exclusão
social, os cenários de intensa pobreza, a persistência histórica de dominação pelas
oligarquias, as ausências de serviços públicos capazes de contribuir para a mitigação dessas
dificuldades, entre outros fatores, demonstram como a América Latina não superou as
desigualdades, a exploração e a eliminação – humana e não humana – as quais desenharam
os contornos sociais e políticos deste continente.
No horizonte de tanta violência, surgem algumas esperanças sensatas17, as quais
renovam as forças necessárias para se apostar em outros vetores de desenvolvimento
humano capazes de resgatar essa difícil tarefa de, mesmo numa perspectiva regional,
ocorrer: humanizar a humanidade 18 . Se existe uma palavra apropriada para que as
indignações19 se transformem em vias positivas no intuito de se expressar vida digna para
16
“[...] A dignidade humana é o nosso produto maior, não somente como vida, mas como razão de viver. A dignidade não
se confunde, tampouco, com uma ânsia de santidade ou uma conquista de honrarias: ela é, essencialmente, uma
posição de respeito do homem para consigo mesmo em defesa da qualidade moral que representa”. LONGO, Adão. O
direito de ser humano. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 175.
17
As “esperanças sensatas” devem ser capazes de responder a três indagações: “[...] temos diante de nós razões de
esperança? Há razões que podem nos poupar do desespero? Que fazem com que continuemos no caminho?”. ROSSI,
Paolo. Esperanças. Tradução de Cristina Sarteschi. São Paulo: Editora da UNESP, 2013, p. 85.
18
HERRERA FLORES, Joaquín. A (re)invenção dos direitos humanos. Tradução de Carlos Roberto Diogo Garcia et al.
Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009, p. 42.
19
“A indignação não é um ímpeto de raiva ou desespero, nem um impulso oportunista ou egoísta, mas um
305
todos, para que haja, de modo duradouro, uma convivência eticizada e estetizada20 entre
os diferentes povos latino-americanos, é a Utopia21.
Nesse caso, a força transformadora da Utopia 22 é o que favorece as necessárias
mudanças latino-americanas no sentido de se proporcionar, mais e mais, não apenas o
reconhecimento de suas culturas, seus saberes ancestrais, as suas tecnologias, mas a
integração de diferentes povos em torno dessa identidade e identificação comum latinoamericana, a qual já se expressa, pelo menos, no cenário externo – como é a caso da União
de Nações Sul-Americanas – UNASUL – e, no cenário interno, pelo Novo Constitucionalismo
Latino-Americano.
A experiência constitucional, como se observa a partir da dimensão histórica em
várias nações, representa, no seu significado sensato, o registro das mais importantes
conquistas humanas para se identificar quais as formas de privações impedem as pessoas
de conviverem, de terem vida com qualidade, de terem acesso a serviços indispensáveis
para o aperfeiçoamento dos espaços democráticos e dialogais, de reconhecerem a
importância de suas raízes históricas e culturais para estimular novas perspectivas éticas,
nossas possibilidades de transformação dessas culturas a fim de estabelecer uma paz cada
vez mais duradoura. Eis o desafio das bases materiais23 do Novo Constitucionalismo Latinoreconhecimento natural de nossa condição humana. É o primeiro passo e necessário para nos alcançarmos por inteiro”.
LONGO, Adão. O direito de ser humano. p. 175.
20
“[...] O que chamamos de estetização da convivência é fenômeno que só se torna sensível, ou seja, algo que só pode
tornar-se perceptível como atributo de beleza, quando, ao invés da tentativa amoral de justificar-se pelo delírio de uma
ideologia qualquer, se fundamente naquilo que o homem consegue deixar de mais sublime na sua passagem por este
Planeta, que é o seu consciente procedimento ético”. MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica.
Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1994, p. 63.
21
“Podemos dizer que utopia é também ideologia em ação, pois ela não restringe a decodificar possibilidades para então
alcançar-se ao plano das abstrações. Em verdade, ela surge da consciência de que não basta identificar desacertos e
desvios daquilo que convencionamos ser a linha reta do viver. Assim, não é suficiente criticar falhas e aparentes
iniqüidades no comportamento das pessoas e das instituições, pois aquelas sempre existiram, embora recrudesçam em
determinados períodos históricos. No pensamento utópico só se justificam tais posturas e tais juízos se eles tiverem o
condão de ser o ponto de partida para procedimentos mais favoráveis para que o futuro não seja tão só maquiagem do
passado e do presente”. MELO, Osvaldo Ferreira de. O papel da política jurídica na construção normativa da pósmodernidade. In: DIAS, Maria da Graça dos Santos; MELO, Osvaldo Ferreira de; SILVA, Moacyr Motta da. Política jurídica
e pós-modernidade. Florianópolis: Conceito Editorial, 2009, p. 88.
22
“As utopias, unindo inteligência e emoção, razão e sentimento, funcionam como projetos sociais de transformação e
mudança, melhor dizendo, como projeção da sociedade que deve ser”. MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da
política jurídica. p. 55.
23
“[…] Es interesante señalar que – quizás a la inversa de lo que constituye nuestra realidad actual – los ‘padres
306
Americano, o qual se funda pela descolonização dos saberes do Sul, ou seja, reivindica como
pressuposto desse cenário um giro decolonial24.
O leitor ou leitora, ao verificar essas primeiras linhas, imagina como o Novo
Constitucionalismo Latino-Americano25 surge como horizonte de esperança no sentido de
que todo esse cenário de desigualdade, exclusão, misérias (humanas, sociais e
institucionais) possa desaparecer a partir do momento no qual esse fenômeno jurídico
expresse não apenas uma vontade legal, como desdobramento, ainda, dos próprios Direitos
Humanos, mas, principalmente, na medida em que se verifica seus principais – e complexos
– desafios.
Por esse motivo, a atitude de esperança latino-americana, fonte de suas principais
fundadores’ del constitucionalismo regional dedicaron mucho tiempo y energía a estas cuestiones, reflexionando no
solo en torno de la Constitución (qué incluir, qué cambiar), sino también acerca de las condiciones materiales necesarias
para que esta prosperara. Sin duda alguna, sintieron la necesidad de embarcarse en estas discusiones a raíz de la pesada
herencia impuesta por el pasado colonial”. GARGARELLA, Roberto. La sala de máquinas de la Constitución: dos siglos
de constitucionalismo en América Latina (1810-2010). Buenos Aires: Katz, 2014, p. 91.
24
“[…] el giro des-colonial se trata pues, de una revolución en la forma en que variados sujetos colonizados percibían su
realidad y sus posibilidades tras la caída de Europa en la Segunda Guerra Mundial. Ya las bases del giro des-colonial
estaban planteadas de antemano, en el trabajo de intelectuales racializados, en tradiciones orales, en historias,
canciones, etc., pero, gracias a eventos históricos particulares, se globaliza a mitad del siglo veinte. De ahí en adelante
puede decirse que se planteó un giro, ya no solo al nivel de la actitud de sujetos o de comunidades específicas, sino al
nivel del pensamiento mundial. El tema de la descolonización adquirió vigencia para distintos grupos que ahora se veían
más seriamente entre sí, en vez de buscar en Europa las claves únicas para elaborar su futuro”. TORRES, Nelson
Madonado. La descolonización y el girodes-colonial. Revista Comentario Internacional, Equador, n. 7, 2006/2007, p.
76. Disponível em: http://revistas.uasb.edu.ec/index.php/comentario/article/view/130/138. Acesso em 04 de agosto
de 2016.
25
“[...] el nuevo constitucionalismo va más allá y entiende que, para que tenga efectiva vigencia el Estado constitucional
no basta con la mera comprobación de que se ha seguido el adecuado procedimiento constituyente y que se han
generado mecanismos que garantizan la efectividad y normatividad de la Constitución. Defiende que el contenido de la
Constitución debe ser coherente con su fundamentación democrática, es decir que debe generar mecanismos para la
directa participación política de la ciudadanía, debe garantizar la totalidad de los derechos fundamentales incluidos los
sociales y económicos, debe establecer procedimentos de control de constitucionalidade que puedan ser activados por
la ciudadanía y debe generar reglas limitativas del poder político, pero también de los poderes sociales, económicos o
culturales que, producto de la Historia, también limitan el fundamento democrático de la vida social y los derechos y
libertades de la ciudadanía. Pues bien, ese nuevo constitucionalismo teórico ha encontrado su plasmación, com algunas
dificultades, en los recientes procesos constituyentes latinoamericanos llevados a cabo en Venezuela, Bolivia y Ecuador.
Al menos, en cuanto a la fundamentación de la Constitución. Está por ver si también se consigue llevar a la práctica todo
lo diseñado en esos textos constitucionales con respecto a su efectividad y normatividad. Aunque comienzan a percibirse
distorsiones importantes que pueden volver a frustrar un intento de recuperación integral de una teoria democrática de
la Constitución. Estos procesos con sus productos, las nuevas constituciones de América Latina, conforman el contenido
del conocido como nuevo constitucionalismo latino-americano”. VICIANO PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ DALMAU,
Rúben. Aspectos generales del nuevo constitucionalismo latino-americano. In: ÁVILA LINZÁN, Luis Fernando. Política,
Justicia y Constitución. Quito: Corte Constitucional para el Período de Transición, 2012, p. 163/164.
307
transformações, não é caracterizada como passiva/pessimista, porém, sim, ativa/realista26
na medida em que a experiência da sua “invisibilidade” – epistêmica, ideológica e cultural
– é a força na qual põe as ações como vetor de integração e alteração dessas realidades que
exploram, oprimem e negam às pessoas o seu “direito à existência”. A esperança na qual
surge com o Novo Constitucionalismo Latino-Americano é vetor de resistência contra aquilo
que desumaniza.
Esse fenômeno jurídico mencionado se traduz como o oposto da tradição liberal
europeia e norte-americana – especialmente na perspectiva da Cidadania 27 - porque
questiona a validade e eficácia desses modelos nas terras do sul. Trata-se do resgate
daqueles que, mesmo sob a proteção da legalidade28 , eram destituídos de vozes29 para
exercitar e reivindicar direitos. A colonialidade do poder30 na América Latina não permitiu
26
“[...] Partimos, então, do reconhecimento de nossa capacidade humana de fazer e desfazer os mundos que nos são
dados. Com isso, assumimos uma visão estritamente ‘real’ da realidade, pois somos conscientes das quebras, fissuras e
porosidades do mundo em que vivemos. Logo, realista significa saber onde estamos e propor caminhos para onde ir.
Ser realista exige, portanto, apostar na construção de condições materiais que permitam uma vida digna de ser vivida”.
HERRERA FLORES, Joaquín. A (re)invenção dos direitos humanos. Tradução de Carlos Roberto Diogo Garcia et al.
Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009, p. 61/62.
27
“[...] A cidadania liberal, advinda da influência do jusnaturalismo racionalista e da positivação dos direitos de liberdade
desde as revoluções burguesas, irá evoluir para uma cidadania de cunho social, desde a transição do Estado liberal ao
Estado social, com base nas reivindicações dos trabalhadores. [...] No antigo regime não podemos falar de cidadania
nem de direitos, sim de deveres, de obediência do súdito aos privilégios dos estamentos superiores. A situação dos
trabalhadores do século XIX termina sendo uma situação de extrema desigualdade com relação ao burguês e ao Estado
liberal de Direito, com o advento do sufrágio censitário, que tinha como característica a divisão da cidadania em duas:
em primeiro lugar, a chamada cidadania ativa – direito de sufrágio relegado somente ao burguês proprietário – e, em
segundo lugar, a cidadania passiva – que era exercida pelos menos favorecidos economicamente, os trabalhadores – e
a não existência das normas reguladoras das relações de trabalho e demais direitos sociais, como a saúde e educação;
assim, a impossibilidade de participação política leva os trabalhadores a ficarem relegados a uma cidadania de segunda
classe; a cidadania passiva de nada servia”. GARCIA, Marcos Leite. Direitos Fundamentais e a questão da
Sustentabilidade: reflexões sobre Direito à Saúde e a questão da qualidade da água para consumo humano. Revista
FSA,
Teresina,
v.
10,
n.
4,
art.
8,
p.
136,
Out./Dez.
2013.
Disponível
em:
«http://www4.fsanet.com.br/revista/index.php/fsa/article/view/313». Acesso em 03 de jun. de 2016.
28
“[…] la ilegalidad comenzó a ganar terreno simplemente porqué se estableció un cerco legal demasiado estrecho, y no
porque la ciudadanía esté más ansiosa por desafiar la legalidad. En la actualidad, incluso los más inocentes gestos de
desafío resultan traducidos como graves, directas […]; una situación semejante nos exige repensar y poner bajo cuestión
la totalidad del derecho como lo conocemos”. GARGARELLA, Roberto. La sala de máquinas de la Constitución: dos siglos
de constitucionalismo en América Latina (1810-2010). p. 342.
29
“[…] muchas de las protestas […] – típicamente, los cortes de ruta, el incendio de neumáticos, la producción de escándalos
en las plazas públicas – aluden a la desesperada necesidad de algunos grupos por colocar en la escena pública sus
cuestionamientos, demandas, conflictos que de otro modo resultarían simplemente ignorados. Así, la demanda por una
‘voz’ – una voz que pueda expresar la existencia de violaciones gravísimas de derecho – pasa a ocupar un lugar central
en el conflicto social regional”. GARGARELLA, Roberto. La sala de máquinas de la Constitución: dos siglos de
constitucionalismo en América Latina (1810-2010). p. 342.
30
“[...] a colonialidade do poder estabelecida sobre a ideia de raça deve ser admitida como um fator básico na questão
308
encontrar – nem reconhecer – a sua “razão interna31” nos seus cantos, nas suas tradições,
no seu cotidiano, no seu imaginário, no seu pensamento acadêmico. Sem esse pressuposto,
não é possível cogitar a viabilidade das esperanças, dos devires sociais e constitucionais os
quais nascem da efervescência silenciosa dos anseios de cada povo, de cada comunidade,
conforme as suas identidades e identificações.
Por esse motivo, ao se resgatar a voz dos “esquecidos”, dos “marginalizados” latinoamericanos, a força histórica de seu Constitucionalismo ganha vigor, especialmente no
século XXI. Nesse momento, e especialmente devido à presença da União de Nações SulAmericanas – UNASUL – o desenho constitucional deste continente sinaliza a importância
da integração entre tantas e diferentes comunidades e povos. Dentre as principais
características, verifica-se que a principal tonalidade na composição desta aquarela é a
indígena. As práticas e sabedorias ancestrais – como é o caso do Buen Vivir 32 - já não
pertencem mais a uma dimensão regional, mas, aos poucos, se torna vetor de integração
transconstitucional33.
nacional e do Estado-nação. O problema é, contudo, que na América Latina a perspectiva eurocêntrica foi adotada pelos
grupos dominantes como própria e levou-os a impor o modelo europeu de formação do Estado-nação para estruturas
de poder organizadas em torno de relações coloniais. Assim, ainda nos encontramos hoje num labirinto em que o
Minotauro é sempre visível, mas sem nenhuma Ariadne para mostrar-nos a ansiada saída”. QUIJANO, Aníbal.
Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber:
eurocentrismo e ciências sociais – perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005, p. 125.
31
"[...] Trata-se de algo que permanece ou, melhor, preexiste no coração de todo homem antes de qualquer construção
intelectual. É propriamente isto que chamarei 'razão interna' de todas as coisas. Razão esta que é tanto uma constante,
de certo modo uma estrutura antropológica, quanto, ao mesmo tempo, só se atualiza, se realiza, neste ou naquele
momento particular. Para dizer o mesmo em outras palavras, trata-se de uma racionalidade de fundo que se exprime
em pequenas razões momentâneas". MAFFESOLI, Michel. Elogio da razão sensível. Tradução de Albert Christophe
Migueis Stuckenbruck. 4. ed. Petrópolis, (RJ): Vozes, 2008, p. 58.
32
“[...] el ‘paradigma comunitario de la cultura de la vida para vivir bien’, sustentado en una forma de vivir reflejada en
una práctica cotidiana de respeto, armonía y equilibrio con todo lo que existe, comprendiendo que en la vida todo está
interconectado, es interdependiente y está interrelacionado. Los pueblos indígenas originarios están trayendo algo
nuevo (para el mundo moderno) a las mesas de discusión, sobre cómo la humanidad debe vivir de ahora en adelante, ya
que el mercado mundial, el crecimiento económico, el corporativismo, el capitalismo y el consumismo, que son producto
de un paradigma occidental, son en diverso grado las causas profundas de la grave crisis social, económica y política.
Ante estas condiciones, desde las diferentes comunidades de los pueblos originarios de Abya Yala, decimos que, en
realidad, se trata de una crisis de vida. HUANACUNI MAMANI, Fernando. Buen vivir/ Vivir bien: Filosofía, políticas,
estrategias y experiencias regionales andinas. p. 6. Grifos originais da obra em estudo.
33
“O que caracteriza o transconstitucionalismo entre ordens jurídicas é, portanto, ser um constitucionalismo relativo a
(soluções de) problemas jurídico-constitucionais que se apresentam simultaneamente a diversas ordens. Quando
questões de direitos fundamentais ou de direitos humanos submetem-se ao tratamento jurídico concreto, perpassando
ordens jurídicas diversas, a ‘conversação’ constitucional é indispensável”. NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. p.
129.
309
O Novo Constitucionalismo Latino-Americano, sob essas premissas, não admite tão
somente uma perspectiva monista, concentrada, das tomadas de decisão e
desenvolvimento de atividades realizadas exclusivamente pelo Estado. Ao contrário, a
partir de um cenário pluralista34, com diferentes fontes de elaboração do Direito – o qual,
sob esse ângulo, não se exaure pela dimensão legislativa estatal – verifica-se, mais e mais,
a necessidade de uma conversação multicultural para se expressar quais condições se
tornam indispensáveis para garantir a estabilidade social, seja, por um lado, pela
participação das funções de Estado, seja, por outro, pela autonomia das comunidades que,
em sintonia com princípios éticos e jurídicos, consigam, igualmente, encontrar meios de se
aperfeiçoarem e resolverem os seus conflitos.
A partir desses argumentos, a via constitucional latino-americana já não é
semelhante aos modelos europeus ou norte-americanos, mas sinaliza o registro de suas
identidades e identificações, de seus anseios para solucionar as suas profundas
desigualdades sociais as quais persistem historicamente. O surgimento do Pluralismo
Jurídico como crítica ao Monismo Jurídico e orientação ao desenvolvimento do plano
constitucional torna viável a composição desse novo cenário na América Latina que
assegura a participação, a presença, a “voz” daqueles que, por muito tempo, foram
marginalizados na elaboração de tempos mais “civilizados”.
3. PLURALISMO JURÍDICO E(M) CONTRAPONTO COM O MONISMO JURÍDICO
A ideia do Pluralismo Jurídico não é uma invenção do pensamento moderno. Na
Idade Média, percebia-se com o Pluralismo Feudal diferentes tipos de Direito35 (canônico,
34
Nesse momento, é interessante trazer a advertência de Hespanha: “[...] Enquanto as concepções pluralistas não
cultivarem um ecumenismo que lhes permita reconhecer, sem discriminação, todas as formas de manifestação
autónoma de direito e de dar a todas elas a mesma capacidade de se exprimirem na comunidade jurídica, a garantia do
um pluralismo verdadeiramente pluralista não está realizada. E, por isso, não estão garantidas nem a legitimidade, nem
a justeza das soluções jurídicas que decorrem de um diálogo, que deveria ser igualitário, entre os vários ordenamentos
jurídicos”. HESPANHA, António Manuel. O caleidoscópio do direito: o direito e a justiça nos dias e no mundo de hoje.
Coimbra: Almedina, 2007, p. 65/66.
35
Para fins deste estudo, essa categoria deve ser entendida como o “[...] conjunto de normas que o Estado torna
incondicionais e coercitivas, capaz de regular as relações sociais e econômicas com vistas à paz social e à aplicação da
310
real, urbano, da plebe), todos eles reconhecidos e válidos. Diferentemente da sociedade
moderna, que visa interesses particulares, o Direito Medieval valorizava os fenômenos
coletivos e reconhecia a desigualdade de interesse para assegurar a autonomia de cada
fenômeno como expressão do Direito. A relação entre essa pluralidade se apresentava na
dicotomia de complementariedade versus exclusividade e contrariedade.
É a partir do aparecimento da indústria e a consolidação do comércio que o
Pluralismo Feudal teve seu fim. No intuito de representar as ideias da nova sociedade
burguesa, houve a unificação do poder, da lei e do Direito, caracterizando o modelo atual
de Estado e Direito: o Monismo Jurídico. Nessa linha de pensamento, o Estado é o único
criador legítimo da lei e essas leis são legítimas pelo fato de seguirem os procedimentos
estabelecidos para a sua elaboração. Nas palavras de Hespanha, “[...] assim, o direito do
Estado era todo o direito ou, pelo menos, dispunha de forma absoluta, sobre o que era
direito. Isso porque o Estado era tido como sendo a única entidade com legitimidade para
dizer o direito36”.
Na perspectiva monista, não é possível admitir a existência de outros poderes
capazes de promover a organização social. Somente o Estado, por meio de sua atividade
legislativa e judiciária, regula as relações sociais e aplica a legislação aos casos nos quais
demandam respostas para a sua pacífica resolução; o Estado se torna a única fonte
normativa nesse contexto moderno.
É possível concordar com Carvalho quando se observa que “[...] o monismo fundase na tese da autossuficiência do ordenamento jurídico: o direito legitima-se por si mesmo,
independentemente de referências a valores morais ou políticos e dos limites e
insuficiências empíricas das se instituições estatais 37 ”. Majoritariamente, as normas
jurídicas não exprimem a realidade social, muito menos são acessíveis para a população que
justiça”. MELO, Osvaldo Ferreira de. Dicionário de direito político. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 36.
36
HESPANHA, António Manuel. Pluralismo jurídico e direito democrático. São Paulo: Annablume 2013, p.18
37
CARVALHO, Lucas Borges de. Caminhos (e descaminhos) do Pluralismo Jurídico no Brasil. In: WOLKMER, Antonio Carlos;
NETO, Francisco Q. Veras; LIXA, Ivone M. Pluralismo Jurídico: Os novos caminhos da contemporaneidade. São Paulo:
Saraiva, 2010, p.15
311
está à margem da Sociedade38.
A ideia de que o Estado é o único ente legítimo para se criar as leis expressa a
garantia certos interesses de um setor econômico. Percebe-se como a classe burguesa
influencia a produção normativa, como, por exemplo, o Código Penal Brasileiro a partir de
suas penas mais severas para crimes referentes a propriedade privada do que aqueles que
agem contra a vida. De acordo com Wolkmer:
A lei projeta-se como o limite de um espaço privilegiado, onde se materializa o controle, a
defesa dos interesses privados e os acordos entre os segmentos econômicos. Ocorre que,
ao criar as leis, o Estado obriga-se, formalmente, diante da sociedade, a aplicar e a
resguardar tais preceituações sob a égide do falso discurso da neutralidade. Ao respeitar
pretensamente certos direitos dos indivíduos proprietários e ao limitar-se à sua própria
legislação, o Estado moderno oficializa uma de suas retóricas mais aclamadas: o ‘Estado de
Direito'39.
Em contraponto com o vigente Monismo Jurídico, o Pluralismo Jurídico surge como
forma de denunciar a ineficiência das instituições estatais que não são capazes de
responder às demandas sociais de maneira que o Direito estatal se torne inacessível àqueles
que compõem as margens da Sociedade. Não se pode acreditar que o “contrato social”
abrange os interesses de toda a Sociedade e que as normas coercitivas do Estado são
legítimas somente pelo fato de advirem do Estado, sem que contemple a todos e promova
a igualdade.
Todos os dias surgem, de modo organizado, diferentes grupos culturais, com suas
pautas de reivindicações, de valores para estabelecer, naquele território, condições de se
estimular, de se desenvolver capacidades para que a comunidade tenha aptidão para,
dentro de seus limites sociais e jurídicos, resolver seus conflitos. Nem sempre a prescrição
normativa abstrata tem capacidade de reconhecer as diferenças culturais e trazer uma
38
“A sociedade, enquanto fenômeno humano, decorre da associação de homens, da vida em comum, fundada na mesma
origem, nos mesmos usos, costumes, valores, cultura e história. Constitui-se sociedade no e pelo fluxo das necessidades
e potencialidades da vida humana; o que implica tanto a experiência da solidariedade, do cuidado, quanto da oposição,
da conflitividade. Organização e caos são pólos complementares de um mesmo movimento – dialético – que dá
dinamismo à vida da sociedade”. DIAS, Maria da Graça dos Santos. Sociedade. In: BARRETO, Vicente de Paulo. Dicionário
de filosofia política. São Leopoldo, (RS): Editora da UNISINOS, 2010, p. 187.
39
WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito. 4. ed. São Paulo: Saraiva.
2015, p.49.
312
resposta satisfatória aos seus anseios de segurança e preservação40.
O Pluralismo se caracteriza como uma alternativa de emancipação daqueles
diferentes grupos humanos, geralmente minoritários, que não são protegidos, nem
reconhecidos, pelo Direito Positivo. Trata-se de um cenário no qual representa as
necessidades das classes esquecidas, das vozes marginalizadas pelo Monismo Jurídico. Por
esse motivo, o Direito que se autorregula e emerge dentro das comunidades tem como
objetivo a sua autopreservação quando a Norma Jurídica estatal não se faz presente no seu
dia a dia. De acordo com a definição de Wolkmer:
[…] a formulação teórica e analítica do “pluralismo” designa a existência de mais de uma
realidade, de múltiplas formas de ação prática e da diversidade de campos sociais com
particularidade própria, ou seja, envolve o conjunto de fenômenos autônomos e elementos
heterogêneos que não se reduzem entre si41.
A partir desses argumentos, Santos42, em 1973, retomou a tradição do Pluralismo
Jurídico e analisou uma comunidade no Rio de Janeiro, a qual denominou “Pasárgada”. O
mencionado autor demonstrou que há um conflito com o direito oficial, na medida em que
os moradores criaram mecanismos para resolução de conflitos, uma vez que o fato de
serem “ilegais” no seu local de moradia fazia com que o acesso aos serviços dos órgãos
estatais de promoção de justiça se tornassem inviáveis.
Nessa linha de pensamento, denominou-se como “Direito de Pasárgada” um direito
não oficial, reconhecido pela própria comunidade, promovido a partir de uma linguagem
mais próxima da realidade a qual vivem, além de mais acessível, cujo modelo de promoção
40
“O Pluralismo Jurídico, aliado à concepção do Multiculturalismo, demonstra a necessidade de se reconhecer,
especialmente ao Direito, as práticas, as culturas e os locais que, pelos seus consensos ou dissensos, promovem novos
sentidos para o aperfeiçoamento da convivência, o esclarecimento sobre o exercício da Liberdade e Igualdade diante
de violências como a miséria, a fome, o encobrimento do Outro (ou a sua eliminação) por não pertencer a um
determinado status político, cultural ou econômico, o cerceamento abusivo de liberdades por entidades estatais, entre
outros fenômenos”. AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes de; ZAMBAM, Neuro José. Elogio à diversidade: globalização,
pluralismo jurídico e direito das culturas. Revista Universitas Jus, Brasília, v. 27, n. 1, p. 60. Disponível em:
«http://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/index.php/jus/article/view/3914/2996». Acesso em 19 de agosto de
2016.
41
WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito. p.185.
42
SANTOS, Boaventura de Sousa. O Direito dos Oprimidos. São Paulo: Editora Cortez, 2015.
313
de justiça é a mediação. Santos43 afirma que “[…] o direito de Pasárgada tende a apresentar
um espaço retórico mais amplo que o do direito estatal44”, justamente por ser construído a
partir da percepção e experiência dos próprios beneficiários e responsáveis pelo “Direito de
Pasárgada”.
Verifica-se que o Direito deve ser compreendido e elaborado por meio de consenso
comunitário e que englobe as diversas manifestações de vontade social de modo que seja
promovida uma legitimidade maior e consequentemente, um melhor exercício da
democracia. Nas palavras de Hespanha, “[…] se observarmos fielmente a pluralidade de
direitos em vigor numa comunidade, possamos legitimar todos esses direitos do ponto de
vista democrático, ou seja, afirmar que todos eles decorrem de uma vontade generalizada
dos destinatários45”.
O Pluralismo Jurídico, no contexto da América Latina, se apresenta como uma forma
de uma visão jurídica mais democrática, uma vez que a forma de desenvolvimento
capitalista intensifica os mecanismos de dominação de países menos desenvolvidos, com a
finalidade exclusiva de exploração de bens e serviços, acentuando a desigualdade nesses
territórios, mantendo a condição histórica de colonialismo. Nesse sentido é que Rubio
refere que tal situação “[...] provoca uma crise de legitimidade e de funcionamento da
justiça baseada na supremacia e a exclusividade estatista de Direitos e nos valores do
individualismo liberal46”.
Considerando que a América Latina é composta por uma diversidade cultural
imensa, destacando-se a cultura indígena com suas várias tribos e populações, o Pluralismo
Jurídico se torna inevitável para que se caminhe num horizonte mais harmônico e
democrático.
43
SANTOS, Boaventura de Sousa. O Direito dos Oprimidos. São Paulo: Editora Cortez, 2015.
44
SANTOS, Boaventura de Sousa. O Direito dos Oprimidos. São Paulo: Editora Cortez, 2015, p. 34.
45
HESPANHA, António Manuel. Pluralismo jurídico e direito democrático. p.118.
46
RUBIO, David Sánchez. Pluralismo jurídico e emancipação social. In: WOLKMER, Antonio Carlos; NETO, Francisco Q.
Veras; LIXA, Ivone M. Pluralismo Jurídico: Os novos caminhos da contemporaneidade. São Paulo: Saraiva, 2010, p.5455.
314
O Novo Constitucionalismo Latino Americano tem importante papel no resgate do
Pluralismo, eis que muitas das novas constituições reconhecem as diversas manifestações
do Direito, que podem ser observadas através da Filosofia Andina – integrante do texto
constitucional do Equador e da Bolívia –, consagrando, dessa forma, importantes mudanças
estruturais no modelo de Estado moderno, promovendo a emancipação e a descolonização
dos povos latino-americanos47.
4. O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO AMERICANO COMO EXPRESSÃO VIVA DO
PLURALISMO JURÍDICO
O Novo Constitucionalismo Latino Americano é marcado por uma perspectiva
participativa e pluralista, com o seu auge na Constituição da Venezuela de 1999 e, em um
segundo momento, conta com as Constituições da Bolívia e Equador. A primeira fase do
ciclo do Novo Constitucionalismo Latino Americano é caracterizada pela Constituição
Brasileira de 1988 compondo um constitucionalismo multicultural. A segunda fase é
referente a Constituição da Venezuela acima citada e traz um constitucionalismo
pluricultural. Na terceira e última fase se encontram as Constituições da Bolívia e do
Equador e é chamado de constitucionalismo plurinacional. A partir disso, Cademartori e
Costa afirmam:
Para o novo constitucionalismo o conteúdo da Constituição deve ser coerente com a sua
fundamentação democrática, isto é, deve gerar mecanismos para a direta participação
política da cidadania, gerando regras que limitem os poderes políticos, sociais, econômicos
47
“O fluxo da vida plural, no seu sentido mais amplo, demonstrou a necessidade de se registrar essas preocupações
comuns - derivadas, historicamente, de um modelo pautado no pensamento político, econômico e jurídico europeu –
como indispensáveis para ampliar a força democrática que se iniciar pelo Estado-nação, avança para fora das fronteiras
e deságua em todos os territórios sul-americanos. Se o(a) leitor(a) não observou, é necessário frisar: esses novos
movimentos constitucionais que se projetam para constituir a unidade Latino Americana iniciam e ganham fôlego,
primeiramente, nos países sul-americanos”. AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes de. A importância da sustentabilidade
como critério de desenvolvimento do constitucionalismo latino-americano. In: AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes de;
DE BASTIANI, Ana Cristina Bacega. As andarilhagens da sustentabilidade no século XXI. Florianópolis: Empório do
Direito, 2015, p. 230.
315
e culturais, de modo a enfatizar o fundamento democrático da vida social e os direitos e
liberdades da cidadania. Este novo constitucionalismo além de pretender garantir um real
controle sobre o poder por parte dos cidadãos busca solucionar o problema da desigualdade
social48.
Desse modo, a partir da incorporação das diversas culturas presentes no território
latino-americano nas constituições, também como as mudanças que garantiram a
participação política direta dos cidadãos, podemos identificar uma busca para compor um
cenário mais democrático. Assim, o reconhecimento das diversas comunidades indígenas e
suas manifestações culturais visa romper com as heranças colonialistas e valorizar as
culturas dos povos originários latino-americanos.
O Novo Constitucionalismo Latino Americano surgiu em um momento pós-ditatorial
dos países que compõem tal movimento. Surge de uma necessidade de mudança dos textos
constitucionais dos países latino-americanos, bem como das lutas travadas pelos
movimentos sociais, nascido, portanto, da participação popular quando da elaboração de
tais textos normativos.49
A Constituição Colombiana de 1991 foi pioneira nesse processo do Novo
Constitucionalismo, eis que surgiu por meio de um plebiscito organizado por estudantes em
meio de um grande conflito político no país. Vale ressaltar que, como sendo uma
constituição que surgiu da necessidade e da reivindicação popular, a Assembleia
Constituinte foi composta por representantes das mais diferentes áreas da sociedade,
sendo indígenas, estudantes ou diferentes partidos políticos. Segundo Dalmau e Pastor:
Podríamos referirnos largamente a las características materiales de la Constitución
colombiana que la diferencian ampliamente del constitucionalismo anterior, no sólo
colombiano — particularmente falto de reflexiones globales— sino latinoamericano.
Algunas de estas características son la inclusión, en aquel momento innovadora, de
mecanismos de democracia participativa—que han sido mejorados y ampliados en textos
48
CADEMARTORI, Daniela Mesquita Leutchuk de; COSTA, Bernardo Leandro Carvalho. O novoconstitucionalismo latinoamericano: uma discussão tipológica. Revista Eletrônica Direito e Política, Itajaí, v.8, n.1, 1o quadrimestre de 2013.
Disponível em: «www.univali.br/direitoepolitica». Acesso em 13 de jun. de 2016.
49
CADEMARTORI, Daniela Mesquita Leutchuk de; COSTA, Bernardo Leandro Carvalho. O novoconstitucionalismo latinoamericano: uma discussão tipológica. Revista Eletrônica Direito e Política, Itajaí, v.8, n.1, 1o quadrimestre de 2013.
Disponível em: «www.univali.br/direitoepolitica». Acesso em 13 de jun. de 2016.
316
constitucionales latinoamericanos poste- riores—, la mejora en el reconocimiento y la
protección de los derechos fundamentales o la compleja regulación del papel del Estado en
la economía50.
Inspirando-se nas mudanças constitucionais ocorridas na Colômbia, a Venezuela
acabou por promover um novo processo constituinte, fazendo com que nascesse, em 1999,
a nova Constituição venezuelana. Ao garantir que as alterações no texto constitucional só
poderiam ser feitas a partir do consentimento popular, a Constituição venezuelana reforça
a ideia de soberania popular, criando assim um marco no Novo Constitucionalismo Latino
Americano. Nas palavras de Dalmau e Pastor, a Constituição venezuelana “[…] consolidó un
avance democrático en el país y en la región. La vigencia de los derechos sociales, los
cambios institucionales planteados, la nueva configuración de los partidos políticos, la
inclusión de mecanismos de democracia participativa [...]51”.
As constituições da Bolívia e do Equador são as mais recentes nesse movimento do
Novo Constitucionalismo, destacando-se na integração do Pluralismo Jurídico como
elemento constitutivo no novo modelo de Estado. Na Constituição do Equador (2008)
podemos encontrar, em seu artigo 5752, o reconhecimento do direito indígena e a garantia
de seu livre exercício, porém obedecendo direitos constitucionais.
Já a Constituição Boliviana (2009) propõe um Estado Plurinacional, o qual é
composto por 36 etnias reconhecidas como nações. Além disso, essa Constituição conta
com a existência da Jurisdição Indígena Campesina. Segundo Holliday:
[...] o Tribunal Constitucional Plurinacional, em decisão inédita, trouxe um novo
entendimento quanto à dimensão da atuação dessa justiça ancestral, hoje reconhecida pelo
Estado. O Tribunal, ao decidir uma questão de competência, utilizou como critérios
50
DALMAU, Rubén Martinéz; PASTOR, Roberto Viciano. Los procesos constituyentes latino americanos y el nuevo
paradigma constitucional. Revista del Instituto de Ciencias Jurídicas de Puebla A.C., México, n. 25, 2010, p.18.
51
DALMAU, Rubén Martinéz; PASTOR, Roberto Viciano. Los procesos constituyentes latino americanos y el nuevo
paradigma constitucional. Revista del Instituto de Ciencias Jurídicas de Puebla A.C. p. 20.
52
Art. 57. -Se reconoce y garantizará a las comunas, comunidades, pueblos y nacionalidades indígenas, de conformidad
con la Constitución y con los pactos, convenios, declaraciones y demás instrumentos internacionales de derechos
humanos, los siguientes derechos colectivos: (...)9. Conservar y desarrollar sus propias formas de convivencia y
organización social, y de generación y ejercicio de la autoridad, en sus territorios legalmente reconocidos y tierras
comunitarias de posesión ancestral. 10. Crear, desarrollar, aplicar y practicar su derecho propio o consuetudinario, que
no podrá vulnerar derechos constitucionales, en particular de las mujeres, niñas, niños y adolescentes.
317
informações culturais e antropológicas, com base em estudos realizados pela Unidade de
Descolonização do Tribunal Constitucional Plurinacional, que, por meio de nota técnica,
demonstra a origem étnica e formação cultural da população. Além de dirimir conflito de
competência entre a Justiça Comum e a Justiça Indígena Campesina por critérios culturais
antropológicos, estabeleceu a coexistência de bases jurídicas distintas, de cada nação
indígena e a ordinária, onde não há hierarquia entre elas, para em conjunto formar um
modelo de jurisdição multifacetado que respeita a formação histórica de cada povo e ao
mesmo tempo estabelece limites, tendo em vista os direitos humanos, tratados
internacionais e garantias constitucionais.53
Nesse sentido, reafirma-se que o Estado não é o único garantidor de justiça,
tampouco pode ser o único produtor normativo. O Novo Constitucionalismo Latino
Americano instaura um novo modelo constitucional, rompendo com as concepções
monistas e legitimando as formas de expressão do direito nas diversas culturas,
promovendo um constitucionalismo emancipador, descolonial.
Além disso, o Novo Constitucionalismo Latino-Americano se mostra se maneira mais
democrática, na medida em que surge a partir das lutas sociais e da participação política
direta da população para a construção dos textos legais, fazendo com que a pluralidade de
concepções, culturas, saberes, seja ouvida, tendo espaço para sua livre manifestação e
consequentemente, voz dentro do Direito até então “surdo” para vozes do sul.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Pluralismo Jurídico evidencia o cenário multicultural da América Latina. Não é
possível que tantas vozes sejam ignoradas, especialmente pelo Direito no seu sentido
normativo. A persistência do Monismo Jurídico em detrimento ao Pluralismo demonstra
como são plurais as fontes de expressão do Direito. Nenhuma pode ser esquecida ou
marginalizada. Em cada local, a Socialidade se manifesta em diferentes papéis e figurinos.
A concentração da resolução de conflitos pelo Estado-nação ou a organização e os
limites sociais postos pela lei não devem retirar a autonomia coletiva no enfrentamento de
53
HOLLIDAY, Paulo Alberto Calmon. A identidade étnica, o pluralismo jurídico e os fundamentos para uma jurisdição
indígena diferenciada no Brasil. Revista Derecho y Cambio Social. Lima, Perú, n. 41, 2015, p. 12.
318
suas dificuldades. Sob igual critério, nem sempre a norma jurídica cumprirá seus objetivos
de proteção quando não reconhece as particularidades da vida cotidiana que se manifesta
silenciosamente.
Quando o Novo Constitucionalismo Latino-Americano resgata as identidades e
identificações deste continente e assegura condições para que todas as vozes, as sinfonias
culturais das terras do Sul estejam presentes na determinação de direitos e deveres,
conforme as principais manifestações culturais - seja da cidade ou do campo -, percebe-se
a revitalização civilizatória para a necessária e desejada integração entre os povos latinoamericanos.
Não obstante o exercício permanente da Socialidade estimule uma conversação
multicultural constitucional, deve-se alertar para que todas as pessoas, por meio de sua
participação, criem espaços e mecanismos a fim de preservar e elaborar os sentidos da
democracia. A ausência dessa condição ou a persistência da eliminação, marginalização,
opressão, bem como o silêncio das vozes do Sul, importa no retrocesso civilizatório, cujo
horizonte ético e estético, determinado com tanto esforço sócio-histórico-cultural, será tão
somente uma vaga lembrança de uma época na qual as utopias cheias de esperança jamais
se tornaram “de carne e osso”.
O desafio de uma integração multicultural não é tarefa simples, nem imediata. A sua
viabilidade, como se visualiza pela dimensão histórica, começa, aos poucos, se materializar.
No entanto, a sua fragilidade perante forças e interesses diversos dos democráticos ou
republicanos pode favorecer a amplitude e disseminação dos mesmos vetores que
constituíram uma “identidade às avessas” na América Latina.
Por esse motivo, a hipótese desta pesquisa confirma-se ao se demonstrar como o
Pluralismo Jurídico, exercitado pela Socialidade e o Multiculturalismo, permitiram ao Novo
Constitucionalismo Latino-Americano a revitalização, o reconhecimento das vozes antes
silentes no território meridional. O exercício e a reivindicação desses direitos, de um lado,
a identificação de outros nos quais expressem, fortemente, a Dignidade Humana, de outro,
indica uma tarefa árdua que aguarda todos os povos latino-americano no século XXI. É
319
preciso, nesse momento, de uma paciência e esperança fervorosa, bem como de uma
indignação lúcida para se evitar a repetição daquilo no qual motivou as misérias humanas,
sociais e institucionais deste continente.
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