A POÉTICA DA TRANSGRESSÃO DE GILKA MACHADO
Júlio César Tavares Dias1
Universidade Federal de Juiz de Fora
[email protected]
"os degredados filhos de Eva"
Salve Rainha
RESUMO
A poética de Gilka Machado é transgressora à medida que não se adéqua às expectativas sociais de sua
época referentes ao que uma mulher poderia dizer/escrever. Nos versos dessa autora vemos ser
constante a temática do desejo, o que lhe causou a rudez da crítica, por romper com os pudores que
condenavam que a mulher expressasse desejar, restando-lhe o lugar de esperar ser desejada pelo
homem. Neste nosso artigo buscamos ler os poemas de Gilka Machado relacionando-os com os mitos
de transgressão. Verificamos, curiosamente, que quando nesses mitos é um homem que transgride a
sua ação é vista como positiva e heróica, ainda que sofra sanções, já a transgressão feminina é sempre
mal vista. Propomos então ler a transgressão feminina de uma forma positiva.
Palavras-chave: poesia feminina, erotismo, transgressão, Gilka Machado.
INTRODUÇÃO
Tomamos o termo "poética da transgressão" de Viviana Gelado (2006) que o usou
para se referir às vanguardas literárias dos anos 20 do século passado na América Latina.
Aprendemos com Bataille (1980, p. 13) que o erotismo transforma o que é meramente sexual
(e portanto, meramente animal) em "uma busca psicológica" (portanto, humana), em que se
questiona o ser (BATAILLE, 1980, p. 27), assim o erotismo é um aspecto da vida interior
sempre vivido como transgressão (BATAILLE, 1980, p. 27-35; p. 56-62). A transgressão
(como desencadeadora de um tumulto) vem a ser um conceito complexo, ela possui um
vínculo extremo com a existência legal da interdição, de modo que o sentimento da
transgressão não condiz exatamente mais com a mera liberdade das leis, normas, etc.
1
Doutorando em Ciência da Religião pela UFJF. Bolsista CNPQ. Mestre em Ciências da Religião pela
UNICAP. Bacharel em Filosofia pela UFPE. Licenciado em Letras pela UPE.
(BATAILLE, 1980, p. 101). A poesia gilkiana é eminentemente erótica e, por conseguinte,
eminentemente, transgressora.
Sobre Mulheres e Serpentes
Se era permitido à mulher escrever e publicar, não significava que elas poderiam se
colocar na posição de desejante sem sofrer sanções sociais. A poesia feminina nos fins do
século XIX era vista como o “sorriso da sociedade”, representando conforme um crítico da
época, “eterna mesmice” (COELHO). Michelle Perrot em sua obra Minha História das
Mulheres nos afirma que:
Então as mulheres têm uma alma. Mas teriam espírito, isto é, a capacidade da razão?
Sim, diz Poulain de la Barre, um dos primeiros a afirmar, no século XVII, a igualdade
dos sexos, na esteira de seu mestre Descartes, para quem "o espírito não tem sexo".
(...) Mas as mulheres são suscetíveis de criar? Não, diz-se frequente e continuamente.
Os gregos fazem do pneuma, o sopro criador, propriedade exclusiva dos homens. (...)
[Assim, durante muito tempo] Recusam-se às mulheres as qualidades de abstração (as
ciências matemáticas lhes seriam particularmente inacessíveis), de invenção e de
síntese. Reconhecem para elas outras qualidades: intuição, sensibilidade, paciência.
(...) Escrever, pensar, pintar, esculpir, compor música... nada disso existe para essas
imitadoras. (...) Escrever, para as mulheres, não foi uma coisa fácil. Sua escritura
ficava restrita ao domínio privado, à correspondência familiar ou à contabilidade da
pequena empresa (PERROT, 2008, p. 96-97).
Se escrever era difícil, devemos considerar que "Outras fronteiras são ainda mais
resistentes: as ciências, principalmente a matemática, cuja abstração foi, por muito tempo,
considerada um redibitório ao exercício das mulheres. E a nata do pensamento: a filosofia"
(PERROT, 2008, p. 100). Assim, conquistar a fronteira da literatura deve ser considerado um
passo importante para que outras fronteiras fossem conquistadas. "Assim, o papel das
mulheres na criação artística, ontem e hoje, precisa ser reavaliado" (PERROT, 2008, p. 106).
A grande transgressão de Gilka Machado se caracteriza pela ousadia da mulher em suas
poesias atrever-se a falar aos homens o que deveria esperar que os homens falassem a ela, ou
seja, o lugar da mulher é o lugar da espera. Tendo ficado viúva cedo, a motivação erótica de
Gilka Machado é a ausência e não a presença, lembremos pois que a ausência
comumentemente faz parte do discurso feminino:
Historicamente, o discurso de ausência é sustentado pela Mulher: a mulher é
sedentária, o Homem é caçador, viajante; a Mulher é fiel (ela espera), o homem é
conquistador (navega e aborda). É a mulher que dá forma à ausência: ela tece e ela
canta (...) De onde resulta que todo homem que fala a ausência do outro, feminino se
declara: este homem que espera e sofre está milagrosamente feminizado (BARTHES,
2000, p. 53).
O que é ser mulher? Conforme Chauí, “A mulher, ambiguamente, é vista
essencialmente como corpo (virgem, mãe, esposa, prostituta) ou como “fêmea” – isto é, como
um ser que permanece determinado pela Natureza – e, ao mesmo tempo, como um “bem” –
isto é, como coisa natural” (apud DURIGAN, 1986, p. 16). Assim, a obra de Gilka Machado
representa uma “corajosa transgressão das expectativas sociais com respeito à mulher”
(MOISÉS, 1984, p. 255), ao ousar romper com essa mesmice: “É contra o panorama dessa
“mesmice” (...) que vão se fazer ouvir as primeiras vozes transgressoras, - as que expressam
um eu que se busca dono de sua própria verdade” (COELHO). A voz de Gilka é transgressora
à medida que se diz por si mesma e a si mesma, vejamos o poema seguinte:
Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada
Para os gozos da vida: a liberdade e o amor;
Tentar da glória a etérea e altívola escalada,
Na eterna aspiração de um sonho superior...
Ser mulher, desejar outra alma pura e alada
Para poder, com ela, o infinito transpor;
Sentir a vida triste, insípida, isolada,
Buscar um companheiro e encontrar um Senhor...
Ser mulher, calcular todo infinito curto
Para a larga expansão do desejado surto,
No Ascenso espiritual aos perfeitos ideais...
Ser mulher, e oh! Atroz, tantálica tristeza!
Ficar na vida qual uma águia inerte, presa
Nos pesados grilhões dos preceitos sociais!
(MACHADO, 1978, p. 56)
Assim, Gilka se mostra consciente da sua situação de gênero. Todo poema se constrói
na base da antítese entre o desejo e a força da lei que interdita a sua execução. O uso das
reticências frequente nas estrofes parece indicar, todavia, que mesmo sofrendo a repressão o
desejo permanece. O que Gilka Machado parece querer nos mostrar é que além da repressão
do super-ego e da repressão externa imposta pelas várias instituições sociais, a mulher sofre a
carga repressiva de que as leis sempre foram feitas pelos homens (SOARES, 1999. p. 97). Sua
crítica à condição social da mulher aparece em imagens fortes, como a referência que ela faz a
um mito de transgressão, o mito grego de Tântalo que “castigado por roubar os manjares dos
deuses e entregá-los aos homens, não podia mais beber água nem comer frutos, já que os rios
se retraíam e as árvores encolhiam os galhos, à sua aproximação” (HOUAISS) e a imagem da
águia presa por grilhões enormes.
No poema Volúpia outro mito de transgressão é evocado, o mito do Éden (Gênesis 2 –
4):
Tenho-te, do meu sangue alongada nos veios,
à tua sensação me alheio a todo o ambiente;
os meus versos estão completamente cheios
do teu veneno forte, invencível e fluente.
Por te trazer em mim, adquiri-os, tomei-os,
o teu modo sutil, o teu gesto indolente.
Por te trazer em mim moldei-me aos teus coleios,
minha íntima, nervosa e rúbida serpente.
Teu veneno letal torna-me os olhos baços,
e a alma pura que trago e que te repudia,
inutilmente anseia esquivar-se aos teus laços.
Teu veneno letal torna-me o corpo langue,
numa circulação longa, lenta, macia,
a subir e a descer, no curso do meu sangue.
(MACHADO, 1978, p. 71)
Nesse poema é retomada a figura bíblica da serpente vista sempre como tentadora. A
volúpia aí é recriada pela sensação do veneno percorrendo todo o corpo, essa sensação parece
reforçada pelo recurso das anáforas. Porém, a alma pura repudia essa volúpia, consciente, ao
contrário de Eva no mito bíblico2, da letalidade que a tentação oferece, porém mesmo assim a
alma cede a tentação sem poder ou sem querer resisti-lhe para o desgosto da crítica da época.
Vemos, o eu-lírico (feminino) se unir à serpente (símbolo do masculino) e desse adquirir algo:
“Por te trazer em mim, adquiri-os, tomei-os,/ o teu modo sutil, o teu gesto indolente”. Uma
das formas que Freud viu da mulher resolver seu Complexo de Castração foi o dela se unir ao
homem para assim possuir o seu falo. Parece ser isso que é apontado nesse texto. Em Gilka
Machado o homem aparece como objeto do desejo e a mulher assume o papel de sujeito do
desejo. No poema Ser Mulher, contudo, o verso "Buscar um companheiro e encontrar um
Senhor", parece já fazer eco ao mito edênico, quando Deus dirigindo-se à mulher fala: "teu
desejo será para o teu marido e ele te dominará". Essa fala, tão amplamente tomada para
justificar a dominação masculina, seria o castigo da transgressão feminina, no entanto,
atentemos para ambiguidade dela: por quem a mulher será dominada? Por seu marido? Ou
pelo desejo que ela sente? Em um verso de Gilka lemos "Cedo casei. Fui pelo sexo vencida"3
(MACHADO, 1978, p. 274), assim a mulher vive o paradoxo de que viver o desejo não é
gozá-lo, mas ser vencida por ele, o que constituiria uma "gloriosa ruína".
Mas evoquemos outro mito de transgressão, o de Pandora que movida por sua
curiosidade abre a caixa que lhe foi dada espalhando males por sobre a Terra, e ainda
lembremos o mito de Prometeu, que rouba o fogo dos deuses para dá-lo aos homens e como
castigo é amarrado e uma ave lhe come todo dia o fígado, que após regenerar-se a noite, é
comido novamente no dia seguinte. Assim, temos mitos de transgressão onde as personagens
são tanto homens como mulheres, no entanto, enquanto os homens são heroicizados pelas
suas ações, embora sofram dos deuses sanções, as mulheres são vistas sempre de forma
negativa. Parece que isso demonstra o pensamento de que transgredir é próprio dos homens
que são movidos pelo ímpeto e pelos ideais de coragem e virilidade, mas a transgressão não
pode ser aceita quando vinda da parte das mulheres, pois a elas cabe ser submissas (Efésios
5,22). Cientes disso, não deveríamos ler os mitos de transgressão femininos de uma forma
positiva? Esse é um desafio:
Vide 1 Timóteo 2,14: “E Adão não foi enganado; mas a mulher é que foi enganada e caiu em transgressão.”
"Na Nova Aliança, o dever conjugal parece mera concessão à concessão à sensualidade, "pois é melhor casar
do que arder" (1 Coríntios 7,9). Esse desinteresse pela sexualidade e pela procriação pode estar relacionado com
o ambiente apocalíptico da época: muitos, certos de que o fim dos tempos se aproximava e a volta do Messias
era iminente, não se preocupavam com o futuro de suas famílias e de seu povo" (VALLET, 2002, p. 69).
2
3
A narrativa mitológica contada a partir do seu final nos diz: Adão e Eva, fora do
Jardim, fizeram sexo e desta relação de amor nasceu o seu primeiro filho. Este
primeiro orgasmo da vida humana mitológica só foi possível porque Adão e Eva
transgrediram a ordem de Javé e foram expulsos do Jardim. O decreto de expulsão de
Javé ocorreu porque Eva e Adão tiveram, dentro do Jardim, desejo sexual um pelo
outro. Este desejo nasceu em razão de terem comido do fruto da árvore do bem e do
mal, que lhes era proibido e lhes foi ofertado por um Deus concorrente, em forma
fálica de Serpente, o qual despertou neles o desejo da sexualidade. Antes do desejo, a
vida de Adão e Eva era sem graça, eles não tinham identidade, ficavam nus um diante
do outro e nada sentiam. Esta castração era promovida pela lógica da ordem e da
obediência cega imposta por Javé dentro do Jardim. Ficar no Jardim significaria
morrer. A vida em plenitude estava fora dele. É possível perceber nesta narrativa que
há uma grande alternativa religiosa que mora fora do Jardim e não dentro dele. Esta
alternativa proposta pelo Deus Serpente, alimentada pelo sentimento do desejo, fez
romper não só com a ordem imposta pela tirania do Deus Javé, mas também lhes
permitiu desfrutar da sexualidade e, mais ainda, lhes abriu o portal para um novo
mundo, muito mais amplo do que a morada restrita e restritiva do Jardim.
(VERGARA).
Claro que ler ou sugerir ler de outra forma um mito de transgressão é também uma
transgressão, dessa vez contra a ortodoxia, esta consiste na interpretação oficializada por uma
tradição, que se esforça por fazê-la parecer a mais natural e a única possível. A ortodoxia é
reducionista, porque contraria o princípio de que o texto é polissêmico. Ela se estabelece não
por ser a interpretação mais coerente, mas pelo "poder dizer" que têm os que a sustentam: os
que não concordaram foram mortos, assim que nasceu a sã doutrina. Mas pode ser sã uma
doutrina que não promova uma vida sã? Baseado na transgressão de Eva, ou na narrativa dela
ter sido criada a partir da costela de Adão4, tem-se justificado a dominação masculina e "os
pesados grilhões dos preceitos sociais" impostos à mulher dos quais Gilka fala: "as grandes
religiões monoteístas fizeram da diferença dos sexos e da desigualdade de valor entre eles um
de seus fundamentos. A hierarquia do masculino e do feminino lhes parece da ordem de uma
Natureza criada por Deus" (PERROT, 2008, p. 83). No entanto, isso não seria considerar que
a mulher seja menos imagem de Deus do que o homem? O que significa que "macho e fêmea
os criou, à imagem de Deus os criou"? Isso não significa que toda humanidade, composta dos
4
Uma versão do mito bíblico da criação mostra homem e mulher sendo criados ao mesmo tempo (Gênesis 1,27),
noutra versão (Gênesis 2,21-22) a mulher teria sido criada a partir do homem "'vinda de um osso sobressalente',
como lembra Bossuet para incitá-las à humildade, tendo a Igreja Católica [e grande parte do mundo cristão]
adotado essa segunda visão" (PERROT, 2008, p. 84).
elementos feminino e masculino, compõem o retrato de Deus?
A transgressão de que falamos é o "pecado original". Original não por ser o primeiro,
mas por ser a partir dele que se origina nossa existência como ela é: já nascemos culpados na
doutrina cristã. Vista como responsável pelo pecado original é natural que a mulher se sinta
como pecadora. É isso que vemos neste soneto de Gilka Machado:
Eu sinto que nasci para o pecado,
se é pecado, na Terra, amar o Amor;
anseios me atravessam, lado a lado,
numa ternura que não posso expor.
(MACHADO, 1978, p. 151)
Neste soneto, há a confissão do pecado, mas o pecado no decorrer do texto se
transforma em virtude, a maior das virtudes: o amor. No entanto, embora se assuma a virtude
e o pecado, ambos não estão pacificados, o que se assume é o conflito e a angústia que causa,
não a sua resolução. Cria-se um paradoxo entre erotismo e pudor: amor e pecado estão em
conflito, mas não se abre mão de um em prol de outro, o que seria mutilar a personalidade que
é composta pelos dois.
Em Carne e Diabo, a poética de Gilka Machado "afronta ousadamente a costumeira
exaltação da virtude, considerando, paradoxalmente, que o diabo, autor de todos os males,
deve ser bendito por essa mesma razão, pois dá ao homem e a mulher motivos para
fortalecerem suas virtudes" (PY, 1978, p. XXVI). Assim, Gilka Machado faz o que propomos
fazer aqui: ler o mito de transgressão de uma forma positiva.
o velho anjo rebelado
- criação invejosa5
de seu próprio Criador começou a plagiá-lo,
e, ansiando ineditismo,
deu ao corpo a volúpia,
deu ao espírito a astúcia,
Vide Sabedoria 2,24: “Mas, pela inveja do diabo a morte entrou no mundo e a experimentaram os que são do
seu partido”.
5
(...)
e, olhos tediosos
a passear
pelas distâncias,
súbito, estremeceu de pasmo,
divisando
a obra-prima de Deus,
a inspiração suprema,
na fresca e frágil
formosura de Eva.
(...)
Deus criou o céu,
a terra,
(...)
o Diabo engendrou
apenas o pecado,
com ele revolucionando
toda a epopéia divina.
(...)
O Diabo é o estímulo de Deus:
não existisse o monstro encantador,
e, ensimesmado,
em tudo e em todos se encontrando,
nunca evoluíra Deus em sofrimento,
descendo à humanidade
em Jesus
em perdão.
(...)
Bendito seja o Diabo
(...)
pois, o pecado criando,
fez Deus maior,
humanizou-o,
sugeriu-lhe a ternura
sugeriu-lhe a piedade
e o homem divinizou com o sofrimento,
e às almas deu uma alma nova
- o amor.
(MACHADO, 1978, p. 208-211)
Fernando Py (1978, p. XXVI, grifo do autor) considerou esse poema como "o ponto
crucial da sublimação". Esse poema é seguido em Sublimação por outros dois cujos títulos
também dão sugestões de tema religioso: Quarta-Feira de Cinzas e Viagem ao Sétimo Céu.
Em Quarta-Feira de Cinzas há o encontro do santo e do profano, pois nesse dia ao mesmo
passo que os amados acordam ressacados de prazer e da folia de Carnaval, é o dia que na
tradição cristã começam as penitências para a Páscoa, a Quaresma: a alegria é uma máscara
da Mágoa, é hora de tirar a máscara de pagar a penitência que é a própria vida, na qual amar é
dar as mãos e juntar as tristezas:
- "Mas os braços estendes para mim
e guardas minhas mãos nas tuas presas;
vão ser mais tristes nossas tristezas,
juntas assim."
(MACHADO, 1978, p. 212).
Já Viagem ao Sétimo Céu é um poema orgásmico: o êxtase religioso é tomado como
metáfora do orgasmo sexual.
vislumbrei o desejo humano
de se precipitar
sobre o céu novo da cidade
infernalmente iluminada.
E em meus membros senti
uma súbita fuga,
um desagregamento de mim mesma,
uma ânsia de adormecer
nos teus braços
esta velha fadiga de ser alma.
(MACHADO, 1978, p. 213, 214).
Enquanto no cristianismo, "com suas idéias neoplatônicas sobre a dualidade do
espírito e da matéria" (VALLET, 2002, p. 196), o sexo é falado lembrando pecado, os
religiosos da Índia, desenvolveram a "oração do corpo", que se dá através da prática do ioga e
do tantrismo: "Na comparação com a ascese cristã dos Pais da Igreja, a ioga e o tantrismo
pressupõem que é preciso dominar o corpo, mas sem modificar a carne (...) relacionam-se
mais a prática do que com a renúncia" (VALLET, 2002, p. 196). Assim, "Essa interioridade
não separa o aspecto sensível do inteligível" (VALLET, 2002, p. 197). As "idéias
neoplatônicas sobre a dualidade do espírito e da matéria", é que causam a "fadiga de ser
alma", precisando descansar sendo corpo junto a outro corpo: "uma ânsia de adormecer nos
teus braços". Assim, como na espiritualidade indiana, a Viagem ao Sétimo Céu aparece como
uma oração do corpo, num desejo que opostos se completem: "sobre o céu novo da cidade/
infernalmente iluminada". O inferno e o Diabo são reabilitados, então, na poesia gilkiana, que
aceita elementos do paradoxo sem tentar resolver o paradoxo.
Se é verdade que a exigência de submissão feminina foi legitimada pela religião, a
poética gilkiana é transgressora ao ousar uma nova forma de dizer os termos da religião, uma
nova forma de dizer "Deus", é o que vemos no soneto seguinte, que foi dedicado ao crítico
João Ribeiro, onde ela questiona a metáfora de Deus como luz:
Deus é luz? mas por que? (minha razão trepida,
e, exânime, baqueia, e desfalece quase).
Deus é causa da luz, Deus é causa da vida,
a luz vem pois de Deus, sem que lhe seja a base.
(...)
Sinto Deus, muita vez, ouço-lhe a voz sombria,
mas na treva compacta e na calma absoluta,
não ao fulgor do Sol, aos ruídos do dia.
Verás a gestação da vida, a tua alma eleva,
Homem! penetra a noite, o amplo silêncio escuta:
não poderás negar que seja Deus a treva.
A luz, normalmente associada a Deus, é um elemento-simbólico masculino, como a
chuva, desce dos céus, onde está o "Pai nosso". Já associar Deus a treva é associá-lo a um
elemento feminino, o que para nós é muito importante, na medida que permite ao self
identificar-se como imago Dei. Mas o poema não se constitui apenas da oposição entre luz e
trevas. Nele também está a oposição equivalente de silêncio e som. É na treva e no silêncio
que se ouve "a voz sombria" de Deus. Esta não é uma imagem intra-uterina?
Mea Culpa, Felix Culpa – ou Juízo Final – ou à guisa de uma conclusão
O último livro de Gilka Machado, Velha Poesia, foi publicado em 1965, "já velha e
doente, ainda assim, Gilka Machado inseriu grande cópia de inéditos no volume, os quais sem
exceção, falam de seus desenganos, suas reminiscências, da proximidade da morte" (PY,
1978, p. XXVII). Um dos últimos poemas desse livro chama-se, o que é muito sugestivo,
Juízo Final:
Aqui me tens horrivelmente nua,
(...)
Perdoa-me Senhor,
por ter amado tanto o amor
(...)
Perdoa-me Senhor,
pelo que sou
sem que o tivesse desejado,
(...)
Perdoa-me Senhor,
os pecados conscientes
que te trago de cor!
Perdoa-me Senhor,
porque não te perdôo
o não me haveres feito
um ser perfeito,
uma criatura melhor
É forte a imagem da mulher "horrivelmente nua", uma vez que, "a novidade do
cristianismo era justamente a afirmação da igualdade espiritual entre homens e mulheres, que
estarão iguais e nus no Juízo Final" (PERROT, 2008, p. 83). Mas agora, dirige-se a Deus "não
mais aquela que cantava outrora o seu belo corpo despido e jovem" (PY, 1978, p. XXVII).
Entre pedir perdão e não perdoar (nos últimos versos) vemos a razão que move a transgressão:
o espírito feminino não cabe nos planos predestinados para ele.
REFERÊNCIAS
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edição. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2000.
BATAILLE, Georges. O Erotismo. 2ª edição. Tradução João Bernard da Costa. Lisboa: Moraes,
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Janeiro: Objetiva, 2001.
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p. 255-258.
PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres. Tradução de Angela M.S. Corrêa. 1ª. ed. 1ª
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PY, Fernando. Prefácio. In: MACHADO, Gilka. Poesias Completas. Rio de Janeiro: Cátedra;
Brasília: INL, 1978.
SOARES, Angélica. A Paixão Emancipatória: vozes femininas de liberação do erotismo na poesia
brasileira. Rio de Janeiro: DIFEL, 1999.
VALLET, Odon. Uma Outra História das Religiões. Tradução e edição de Rosemarie Ziegelmaier e
Silvio Fudissaku. São Paulo: Globo, 2002.
VERGARA, Elias Mayer. Visões Religiosas Alternativas Sobre Sexualidade. Disponível em:
<http://www.sxpolitics.org/pt/wp-content/uploads/2009/10/revjan-vergara-visoes-religiosasalternativas-sobre-sexue280a6.pdf> Acesso em: 12/02/2014.