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EROTISMO DE GILKA MACHADO

Gilka Machado, before entitled "poetest of Brazil" in literary (1933), was hardly afflicted since her by the criticism (she was considered like a "immoral matron"), getting, in some way, to suffocate her. Revisit her verses demonstrate a notable lirism in period of "middle decadence" of Symbolism. She belongs to last corrent of Symbolism, the New Parnassianism, with poets like Hermes Fontes, Francisca Júlia e Augusto dos Anjos. Our purpose is to read Gilka Machado"s poems, notable by her liberty of saying more things, a reading in a large discussion about the Erotic and Literature and about essence of the feminine and the seek of her liberation. The present paper aims to demonstrate like a vision of feminine relations to eroticism in Gilka"s poetry, and the conscience of situations of genre of woman is always present in it. Her hard sincerity is mark of liberation of feminine desire. Our project contributes for more comprehension of period of decadence of Brazilian symbolism, and also, comprehension to representations of feminine and eroticism in Brazilian feminine literature. Key Words: erotic literature, feminine poetry, woman and literature, Brazilian Symbolism. 1 O título de nosso trabalho está inspirado num artigo de Angélico Soares: Gilka Machado: um marco na liberação da mulher. No entanto, nos afastamos em muito, embora às vezes a citemos, da forma como ela tratou a questão.

EROTISMO DE GILKA MACHADO: MARCO DA LIBERAÇÃO DA MULHER NA LITERATURA1 Júlio César Tavares Dias2 RESUMO Gilka Machado, outrora intitulada "a maior poetisa do Brasil" num concurso literário (1933), foi duramente afligida pela crítica desde sua estreia (foi considerada, inclusive como uma "matrona imoral") até que esta chegou, de certa forma, a sufocá-la. Revisitar seus versos mostra um arrebatamento lírico notável no período de "meia-decadência" do Simbolismo. Fez ela parte da última corrente do Simbolismo, o Neo-Parnasianismo, ao lado de nomes como Hermes Fontes, Francisca Júlia e o grande Augusto dos Anjos. Propõe-se ler os poemas de Gilka Machado, notável pela sua liberdade de dizer das coisas mais íntimas, dentro de uma discussão ampla sobre os pontos em que se tocam Erotismo e Literatura e sobre o conceito de Feminidade e a busca de sua liberação. A presente comunicação objetiva demonstrar como a visão de feminilidade relaciona-se com o erotismo na poesia gilkiana, estando nela sempre presente a consciência das situações de gênero da mulher. Sua sinceridade rude é marca da liberação do desejo feminino. O trabalho contribui para maior compreensão da fase de decadência do simbolismo brasileiro como também das representações do feminino e erótico na literatura feminina brasileira. Palavras-Chave: literatura erótica, poesia feminina, mulher e literatura, simbolismo brasileiro. ABSTRACT Gilka Machado, before entitled “poetest of Brazil” in literary (1933), was hardly afflicted since her by the criticism (she was considered like a “immoral matron”), getting, in some way, to suffocate her. Revisit her verses demonstrate a notable lirism in period of “middle decadence” of Symbolism. She belongs to last corrent of Symbolism, the New Parnassianism, with poets like Hermes Fontes, Francisca Júlia e Augusto dos Anjos. Our purpose is to read Gilka Machado‟s poems, notable by her liberty of saying more things, a reading in a large discussion about the Erotic and Literature and about essence of the feminine and the seek of her liberation. The present paper aims to demonstrate like a vision of feminine relations to eroticism in Gilka‟s poetry, and the conscience of situations of genre of woman is always present in it. Her hard sincerity is mark of liberation of feminine desire. Our project contributes for more comprehension of period of decadence of Brazilian symbolism, and also, comprehension to representations of feminine and eroticism in Brazilian feminine literature. Key Words: erotic literature, feminine poetry, woman and literature, Brazilian Symbolism. 1 O título de nosso trabalho está inspirado num artigo de Angélico Soares: Gilka Machado: um marco na liberação da mulher. No entanto, nos afastamos em muito, embora às vezes a citemos, da forma como ela tratou a questão. 2 Mestrando em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. Licenciado em Letras pela Universidade de Pernambuco – UPE. Professor da Rede Pública de ensino do Estado de Pernambuco. Email: [email protected] 369 PRIMEIRAS PALAVRAS É no Banquete que Platão levanta uma questão interessante. Embora haja tantos cantores/poetas no mundo, poucos deles se dedicaram a cantar o deus Eros: não é um escândalo que estes e aqueles entre os deuses tenham inspirado aos poetas a composição de hinos e cantos, enquanto, para o Amor, deus tão antigo, tão importante, jamais houve um poeta, entre aqueles que conseguiram para si um lugar importante (apud AULAGNIER-SPAIRANI, 1990, p. 67). Não são poucos, porém, os exemplos da História da Literatura do quanto a crítica se mostrou severa com textos e escritores que ousaram tecer um canto revelador do deus Eros. G. Flaubert com seu Madame Bovary, James Joyce com seu Ulisses, D. H. Lawrence com O Amante de Lady Chatterley, Bocage e seus versos, são, entre outros, exemplos da restrição que se pode fazer a esse tipo de literatura. Gilka Machado, cujos versos foram torcida e retorcidamente lidos, é um nome a mais na lista dos incompreendidos, justamente ela de quem lemos no poema Aspiração, que “quisera viver cantando com as aves/ em vez de fazer versos/ sem poderem assim os humanos perversos/ interpretar/ perfidamente/ meu cantar”. Tendo estreado ruidosamente em 19153, aos seus vinte e dois anos, com os seus Cristais Partidos, chocou o público com sua lira amorosa-erótica. Na época que Gilka publica seu primeiro livro, duas mulheres já tinham alcançado destaque no mundo das letras brasileiras: a poetisa Francisca Júlia (1871-1920) e Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), jornalista, romancista e autora de livros infantis. Ambas não revelam, entretanto, como Gilka Machado, um Eu feminino que se declara e se revela intimamente. A poesia gilkiana mostra-se, então, mais do que erótica, um “pioneirismo na abertura de espaços contra o paradigma masculino dominante” (SOARES, 1999, p. 93). Em 1933, foi eleita “a maior poetisa do Brasil”, por concurso da revista O Malho. Já João Ribeiro (1957, p. 262), considerava-a “uma das maiores poetisa brasileiras, e eu não digo a maior, porque não tenho autoridade bastante”. No entanto, algum tempo depois, caiu num quase esquecimento. Esquecimento esse, é bom que se diga, não usual. O que ocorre é que 3 Uma curiosidade observada pela colega prof. Jéssica de Oliveira numa oficina sobre Erotismo e Poesia que organizamos na UPE esse ano, é que Gilka publicou um ano antes de Florbela Espanca, e também nasceu uma ano antes que a portuguesa (Gilka nasceu em 1893, Florbela em 1894), mostrando assim que Gilka pode ser realmente considerada um marco iniciador, e isso não somente na poesia brasileira, mas mesmo na de língua portuguesa. 370 desde o início sua obra causou um mal-estar com a crítica, devido a fugir ao paradigma do que uma mulher poderia dizer naquele momento. A marginalização em que caiu sua obra se deve a atuação da crítica4 que a considerou desde sua estreia uma „matrona imoral‟ (MACHADO, 1978, p. IX). Temos visto, porém, uma nova posição atualmente em relação a obra gilkiana. Mas desde a publicação de suas Poesias Completas em 19785, Ela vem ganhando novos admiradores, e a presença de uma questão do ENEM6 desse ano (2011) sobre um de seus poemas demonstra isso. CÂNONE E MARGINALIZAÇÃO: SOBRE O QUE UMA MULHER PODE DIZER A semi-exclusão ou marginalização em que caiu a produção de Gilka talvez se deva a três fatores. O primeiro desses encontra-se, como é evidente, na sua lírica erótico-amorosa. Com certeza, os vôos alçados por Gilka Machado parecerão ingênuos a muitos no nosso tempo, aliás, fala-se hoje do sexo de uma forma tão aberta, que beira-se (ou atravessasse) a fronteira do vulgar muitas vezes. Os voos de Gilka não foram, porém, ingênuos na sua época, valendo-lhe ser considerada “marco de liberação da mulher” (SOARES, 1999, p. 93), ou, como na primeira crítica que recebeu, “matrona imoral” (MACHADO, 1978, p. IX). Aliás, vale lembrar, à sua época mal começara a Revolução Feminista na Europa e nos Estados Unidos, e ela obviamente só poderia chocar com seu dizer das sensações proibidas a mulher (COELHO, 2002, p. 228). Muitas das controvérsias surgiram não baseadas no conteúdo dos versos, antes por confundirem o eu-poético/eu lírico neles expresso com a vivência da autora7. Massaud Moisés (1984, p. 257) põe a questão nesses termos: 4 Os que se interessarem nas formas como a obra gilkiana foi encarada pela critca devem consultar de Cristina Ferreira-Pinto “A mulher e o cânon poético brasileiro”. 5 Os direitos autorais pertencem a sua filha que tem embaraçado novas edições, mas os admiradores podem ter acesso ao download a uma antologia da autora na internet: www.rosanycosta.com.br/.../1-ebooks.html?...154%3Agilka-machado Conforme Lobo: “Até hoje a filha, detentora de seus direitos autorais, cria obstáculo para edições póstumas de sua obra, procurando preservar uma imagem idealizada da mãe, ainda na perspectiva de que vida é igual a obra.” (LOBO) 6 Nessa questão aparecia o poema Lépida e Leve. 7 “É possível que Gilca, já viúva, falasse do imaginário do corpo - mas os críticos sempre leram sua obra não como metáfora mas como representação do real” (LOBO). Considerando esse argumento, parece-nos que Gilka fala do corpo por ser ele ausente, presente só mesmo na palavra. Uma forma, diríamos, de sublimação. 371 a franqueza rude da poetisa, que tantos desgostos lhe causou, correspondia a vivências reais ou imaginárias? Na verdade, é questão ociosa: à semelhança dos poetas de Orfeu, a autora de Mulher Nua praticava a sinceridade fingida ou o fingimento sincero, fingindo “que é a dor/ A dor que deveras sente” A crítica não se cansava de lhe maldizer o nome. Um exemplo disso é uma caricatura da autora publicada em um jornal do Rio de Janeiro, onde se vê uma mulher com a saia levantada e o verso “Sinto que nasci para o pecado”, de um soneto da série de poemas Reflexões, do livro Mulher Nua (GOTLIEB, 1982). Com certeza, o povo poderia ter feito uma melhor interpretação sobre a autora se fosse acrescentado o verso seguinte do soneto: “se é pecado na terra amar o Amor”. Teve Gilka a sorte de terem vindo ao seu encontro para defesa de seu nome alguns críticos da época. Cristina Ferreira-Pinto elenca trechos de críticos da época para mostrar a disparidade entre a obra poética e a pessoa de Gilka Machado: “[Haverá aqueles que] Objetarão haver em seus poemas uma inversão de papéis, apressando-se ela em dizer aos homens, como poetisa, certas coisas que deveria esperar que eles lhe dissessem primeiro. Mas isso é apenas nos domínios da arte e, em sua vida modesta e altiva, nunca ninguém a viu tomar a atitude de certas madamas desabusadas” Agripino Grieco “Leal com sua musa, imaginou a ilustre carioca que poderia externar em versos, impunemente, no Brasil, todo o ardor de sua mentalidade de crioula. E foi uma temeridade. Ao ler-lhe as rimas cheirando a pecado, toda gente supôs que estas subiam dos subterrâneos escuros de um temperamento, quando elas na realidade, provinham (...) de uma bizarra imaginação”8 Humberto de Campos No Rio de Janeiro, a par de grande admiração, o nome glorioso de Gilka Machado tem igualmente despertado o rancor e o despeito dos seus pequeninos, venenosos e malevolentes rivais. É odiada e invejada por alguns, que não se pejam de afrontá-la covardemente com as mais repugnantes e mais nojentas “maldades” Osório Duque Estrada(apud FERREIRA-PINTO) A sua aderência ao Simbolismo pode ter também contribuído para a marginalização que sofreu, sendo o segundo fator que apresentamos. Embora haja quem a considere neo-parnasiana9 (Marie Pope Wallis), representante da “Nova Poesia”10 (João Ribeiro), ou até pré-modernista (Manuel Bandeira, Fernando Góes), preferimos estar com os que a definem como simbolista (Sônia Brayner, Fernando Py). 11 É 8 Essas duas primeiras citações também aparecem no dicionário de Nelly Novaes Coelho (2002, p. 228). Sobre alguma „aparência‟ parnasiana em Gilka Machado, João Ribeiro (1957, p. 266) comentou: “Por vezes, a poetisa parece-me uma parnasiana, mas está longe de afetar a absurda impassibilidade da escola”. 10 “É verdade que esta nova poesia (simbólica? ou mística?, não sei que nome tenha) é em si mesma uma coisa juvenil e, para os mais pessimistas, é, pelo menos, uma diversão agradável” (RIBEIRO, 1957. P. 273). 11 Sobre essa discussão sobre o enquadramento da produção de Gilka Machado a alguma escola literária vê o prefácio que Fernando Py escreveu para as suas Poesias Completas (1978) 9 372 com particular desgosto que vemos as tentativas de arredar12 do Simbolismo os nomes além de Gilka Machado, de Augusto dos Anjos e Raul de Lêoni, para denominá-los prémodernistas13. Aliás, pensamos como Péricles Ramos (1979, p. 230), Pré-modernismo não é movimento nenhum, não é anunciação, não é nada senão indefinição crítica. O que houve antes de 1922 foi por um lado o próprio Simbolismo e por outro o Parnasianismo (e o neo-parnasianismo, para aqueles poetas parnasianos que estrearam posteriormente ao advento do Simbolismo.). O resto é confusão. Para se firmar, o Simbolismo teve que se haver como toda a força do Parnasianismo que “apresentava a rara circunstância de, em apenas quinze anos (1883-1898), empreender a luta anti-romântica e galvanizar o gosto artístico” (DAMASCENO, 2002, p. 593). Além da forte influência desse movimento, Gilka Machado teve que se haver como o Modernismo nascente. O grande alarde com que estreou o Modernismo fez com que fossem marginalizados muitos nomes do Simbolismo. A bem dizes, na mente de muitos de nossos alunos, o Simbolismo resume-se aos nomes de Cruz e Souza e (olhe lá!) Alphonsus de Guimaraens. Gilka seria um nome entre vários (quase) esquecidos. Alguns desses seriam depois relidos pela crítica. É o caso de Sousândrade, relido por Manuel Bandeira. Há, entretanto, uma grande dívida do Modernismo para com o Simbolismo, já que este, além de ser o precursor daquele, é também do Concretismo (cf. PY, 1978, p. XX) e vários representantes do Modernismo foram-no primeiro do Simbolismo. Manuel Bandeira e Ronald de Carvalho são significativos exemplos desse fato. Já Francisca Júlia14, a única a conseguir adequar-se completamente aos moldes do Parnaso, passou desde 1892 a ser nefelibata (cf. RAMOS, 1979, p. 230). Ou seja, a poesia de Gilka entrou em choque com a crítica não apenas devido ao seu conteúdo, mas também à sua forma: Ao analisar a poesia de Gilka Machado, percebe-se que esta quebra as expectativas em relação à poesia produzida por mulheres, tanto em função 12 Essas atitudes só fazem para nós esvaziar o simbolismo brasileiro, que para nós foi extremamente revolucionário. 13 Alguns acharão sem grande valia essas discussões para enquadrar um autor numa escola literária e concordarão com a opinião de João Ribeiro (1957, p. 266-267): “As escolas literárias são boas para espíritos de segunda ordem, sem a independência que caracteriza o verdadeiro gênio, ou servem apenas a inópia dos críticos que procuram distribuir os mártires de sua censura, em classes de seus estéreis catálogos”. Todavia, acreditamos que tal exercício nos permite entender melhor a obra e o autor dentro de uma rede de influências e atitudes próprias de um período. A aderência a uma escola, ressalvamos, não confere mais glória ao verso, aliás, “A poesia é sempre a mesma, mas tem as suas modas” (RIBEIRO, 1957, p. 272). 14 Achamos também Francisca Júlia uma injustiçada da crítica, recebendo apenas algumas linhas nos manuais de História da Literatura. Justamente ela que domou com maestria o verso parnasiano. 373 dos temas abordados como da qualidade dos versos, levando em conta os critérios dos críticos mais conservadores a respeito da forma (VAZ) O terceiro motivo que apresentamos para a marginalização de Gilka Machado reside no simples fato dela ser mulher. Na década de trinta é que surgem mulheres que assumem destaque inexorável no cânon literário brasileiro, a maior parte delas vinculada à prosa (Clarice Lispector, Rachel de Queirós, por exemplo). Na poesia, Cecília Meireles é geralmente o único nome que se menciona. Mas e antes dos anos trinta? A mulher não ousava atuar na literatura?15 Claro que sim! Mas suas vozes foram pelo tempo ou com o tempo abafadas para poucos ouvirem-nas. Um exemplo da presença da mulher na literatura na época de Gilka Machado é a Antologia Feminina organizada por Cândida de Brito, diretora da revista A dona de casa, e publicada em 1928, da qual participaram quarenta e uma escritoras de diferentes gêneros versando sobre diferentes temas (FERREIRA-PINTO). Assim, a nossa poetisa à Safo parece ser uma entre muitas marginalizadas pelo simples fato de ser mulher intrometendo-se num campo sagrado dos homens. Porém, seu nome aparece com uma apresentação de poucas palavras nas primeiras edições, e na terceira edição, uma apresentação mais longa existe, citando críticos, e se publica o soneto Helios e Heros, dedicado a seus filhos, que serve “para apresentar a poeta como “mãe de família” e não como uma voz sensual, erótica ou rebelde” (FERREIRA-PINTO). A verdade é que o desempenho de atividades literárias por parte das mulheres era aceito pela ideologia dominante, mas estas atividades seriam sempre subordinadas às suas funções domésticas e familiares. A poesia feminina era vista pela crítica da época como o “sorriso da sociedade” (NOVAES COELHO). Foi essa ordem que Gilka ousou desafiar. A obra gilkiana traz em seu bojo características peculiares, oriundas da forma possante como ela soube “na terra amar o Amor”. Vale a pena revisitar uma poetisa que soube cantar o deus Eros ora com intensidade, ora com uma intensa culpa, num estilo quase barroquizante. Visitar uma mulher que soube ser mais que objeto do desejo, sujeito desejante, ousando encarar a poesia, não como mero “sorriso da sociedade”, mas para quem “a poesia é tão indispensável à existência como a água, o ar, a luz, a crença, o pão e o amor” (1978, p. XI). 15 Cristina Ferreira-Pinto (2009, p. 628) considera que há uma tradição da literatura de autoria feminina, mas só foi ganhar volume no século XIX e estabelecer-se como profissão no século XX. 374 Se, como sabemos, há coisas que não podem ser abertamente ditas, havendo a elas repressão, Gilka Machado irrompeu num duplo erro: falou as coisas que não podem ser ditas e as coisas que uma mulher não pode dizer. Isso podemos depreender da citação acima de Agripino Grieco: “apressando-se ela em dizer aos homens, como poetisa, certas coisas que deveria esperar que eles lhe dissessem primeiro”. Embora ele reconheça depois, “Mas isso é apenas nos domínios da arte”, temos nós que convir que “A ficção ainda é uma astúcia da razão para falar do proibido” (KOTHE, 1981, p. 236). A MULHER, O MARCO, A LIBERAÇÃO “Sempre fomos o que os homens disseram que nós éramos. Agora somos nós que vamos dizer o que somos.” Esse era o grito de uma personagem de Lygia Fagundes Telles no romance “As meninas”, de 1973 (RODRIGUES). Esse é um marco na literatura de autoria feminina: o dizer a si mesmo. Numa anedota que se conta de Freud, ele com frequência escrevia a sua noiva pedindo que ela lhe contasse tudo, revelasse a ele seus desejos e planos, mas o doutor sempre continuava dizendo: “mas minha noivinha com certeza quererá...”, e assim, fechava a possibilidade da sua noiva dizer-se. A mulher com sua feminidade é para Freud, “O enigma sobre o qual os homens sempre meditaram”, já Lacan escreveu: “Não é vão observar que o desvendamento do significante mais oculto, que era o dos mistérios, era reservado às mulheres” (apud AULAGNIER-SPAINARI, 1990, p. 69). E por isso, “a feminidade é, antes de mais nada, uma invenção dos homens” (AULAGNIER-SPAINARI, 1990, p. 69). É o homem que pergunta pela feminidade, como Freud na anedota, mas, na verdade, ele não espera uma resposta, “Veremos porque, chegando ao ponto extremo de sua interrogação, o homem foge; lembrando-se da experiência de Édipo, ele prefere conservar os olhos para não ver” (AULAGNIER-SPAINARI, 1990, p. 69). Ao invés de ver, o homem prefere manter a mulher nessa aura de magia e mistério. Assim, ao ser colocado um interdito a possibilidade da mulher dizer-se, o enigma é mantido. Desvelar esse enigma, ou seja, a mulher ousar dizer-se é já uma transgressão. Justamente foi o que Gilka fez, como no poema seguir, “onde fala ela de sua alma de mulher, tão incompreendida de nossos preconceitos” (RIBEIRO, 1957, 262): 375 Esta alma que eu carrego amarrada tolhida, num corpo exausto e abjeto há tanto acostumado a pertencer à Vida como um traste qualquer, como um simples objeto, sem gôzo, sem confôrto, e indiferente como um corpo morto; esta alma acostumada a caminhar de rastos, quando fito êstes céus, estes campos tão vastos, aos meus olhos ascende e deslumbrada avança, tentando abandonar os meus membros já gastos, a saltar, a saltar, qual uma alma de criança. E, analisando então meus movimentos, indecisos e lentos, de humanizada lesma, eu tenho a sensação de fugir de mim mesma, de meu ser tornar noutro, e sair a correr, qual desenfreado potro, por estes campos escampos. De que vale viver, trazendo na existência emparedado o ser? Pensar e, de contínuo, agrilhoar as idéias dos preceitos sociais nas torpes ferropéias; ter ímpetos de voar, mas prêsa me manter no ergástulo do lar, sem a libertação que o organismo requer; ficar na inércia atroz que o ideal tolhe e quebranta....... ................................... Ai! antes pedra ser, inseto, verme ou planta, do que existir trazendo a forma de mulher. Vemos no poema a completa consciência da situação de gênero da mulher no início do século XX. Interessante em Gilka Machado a sua constante referência a elementos do mundo animal, e justamente a liberação da mulher aparece como requerimento do organismo (da biologia, da animalidade, podemos dizer) em um desses versos. A repressão a mulher ocorria também na sua parte animal, na sua sexualidade. Por isso, a liberação do prazer acompanha, e no caso de Gilka, mesmo precede, outras na pauta das feministas de início desse século, “De um modo que não surpreenderia Sigmund Freud, a maior revolta se deu onde era maior a repressão: do erotismo sutil às abordagens gráficas que flertam com a pornografia, o tema do sexo foi o grande campo de batalha dessa revolução” (RODRIGUES). À mulher foi feito um interdito ao prazer e ao desejo que, pensando em termos freudianos, seria, ao lado da vontade de poder, o real „falo‟ do homem. Porém, na poesia de Gilka Machado é sempre o Eu feminino quem deseja enquanto o homem é objeto do desejo. 376 Isso vai de encontro à moral socialmente instituída onde o homem é sempre o sujeito do desejo, enquanto a mulher é vista como imoral ao expressar que deseja. O homem quer sempre reivindicar seu status de desejante: “o homem quer acreditar que foi ele quem escolheu, nem que seja para rejeitar sua opção” (AULAGNIER-SPAIRANI, 1990, p. 76). Esse interdito feito à mulher, como também a natureza fálica do homem justifica-se no mito bíblico da queda16 do homem. Nesse mito a mulher é tentada pela serpente a desobedecer à ordem divina. A tentação é bem característica, “sereis como Deus”, ou seja, é, ao nosso ver, uma proposta de superação da ansiedade feminina de castração (aliás, a serpente é um símbolo eminentemente „fálico‟), propondo-lhe saciar sua “vontade de saber”, tornandoa “conhecedor do bem e do mal”. Ora, a serpente era mais astuta que todas as alimárias do campo que o SENHOR Deus tinha feito. E esta disse à mulher: É assim que Deus disse: Não comereis de toda a árvore do jardim. E disse a mulher à serpente: Do fruto das árvores do jardim comeremos, mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Não comereis dele, nem nele tocareis para que não morrais. Então a serpente disse à mulher: Certamente não morrereis. (Gênesis 3:1-4) Como punição a essa transgressão a dominação masculina foi estabelecida, não adiantando alegar que fora enganada pela serpente17: Então disse Adão: A mulher que me deste por companheira, ela me deu da árvore, e comi (...) E disse o SENHOR Deus à mulher: Por que fizeste isto? E disse a mulher: A serpente me enganou, e eu comi. (...) E à mulher disse: Multiplicarei grandemente a tua dor, e a tua conceição; com dor darás à luz filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará. (Gênesis 3:10-16) Essa figura da serpente vai aparecer no poema Volúpia, onde podemos perceber como que a recriação do ambiente da tentação, como se fosse o momento em que seduzida pela serpente, “caída no pecado”, a mulher goza: Tenho-te, do meu sangue alongada nos veios, à tua sensação me alheio a todo o ambiente; os meus versos estão completamente cheios do teu veneno forte, invencível e fluente. Por te trazer em mim, adquiri-os, tomei-os, o teu modo sutil, o teu gesto indolente. 16 De forma semelhante à Eva, Pandora aparece na mitologia grega como o princípio originador do caos e da desordem, devido igualmente á sua “vontade de saber”. 17 Interessante notar, que Paulo reconhece que a mulher realmente foi enganada, diferente do homem, porém ele não expõe um motivo para que o homem, não-enganado, comesse do fruto da desobediência (1 Timóteo 2,14). John Milton no seu Paradise Lost imagina como razão do homem comer do fruto é seu amor à mulher, não querendo que ela sendo expulsa como pecadora ocorresse a separação dos amantes iniciais da raça humana. 377 Por te trazer em mim moldei-me aos teus coleios, minha íntima, nervosa e rúbida serpente. Teu veneno letal torna-me os olhos baços, e a alma pura que trago e que te repudia, inutilmente anseia esquivar-se aos teus laços. Teu veneno letal torna-me o corpo langue, numa circulação longa, lenta, macia, a subir e a descer, no curso do meu sangue. A volúpia aí é recriada pela sensação do veneno percorrendo todo o corpo, essa sensação parece reforçada pelo recurso das anáforas. Porém, alma pura repudia essa volúpia, consciente, ao contrário de Eva no mito bíblico, da letalidade que a tentação oferece, porém mesmo assim a alma cede a tentação sem poder ou sem querer resisti-lhe para o desgosto da crítica da época. Vemos, o eu-lírico (feminino) se unir a serpente (símbolo do masculino) e desse adquirir algo: “Por te trazer em mim, adquiri-os, tomei-os,/ o teu modo sutil, o teu gesto indolente”. Uma das formas que Freud viu da mulher resolver seu Complexo de Castração foi o dela se unir ao homem para assim possuir o seu falo. Parece ser isso que é apontado nesse texto. Uma das lições que aprendemos de Freud é sobre o embate entre o princípio de prazer e o princípio da realidade. “Na teoria da psicanálise não hesitamos em supor que o curso tomado pelos eventos mentais está automaticamente regulado pelo princípio de prazer” (FREUD, 1978, p. 17), é assim que Freud inicia Além do Princípio de Prazer. Porém, o princípio de prazer entra em embate com o princípio da realidade, este impede ou leva o sujeito a adiar o prazer, ainda que suportando momentaneamente o sofrimento. Não podendo viver o desejo, então o sujeito o sublima. Mas o objeto de prazer em Gilka Machado se transforma logo em objeto de desprazer, pois ser mulher é “buscar um companheiro e achar um Senhor” (MACHADO, 1978, p. 56). Etimologicamente, erótico provém de erotikós e deriva de Eros, o deus do amor dos gregos, vindo depois a psicanálise transformá-lo em símbolo da vida e do desejo cujo oposto é Tanatos (cf. DURIGAN, 1986, p. 30). Assim, em Gilka Machado a busca erótica gera desencanto, pois, como no mito de Eros e Psiquê, conhecer Eros é vir a distanciá-lo, o que também é visto num verso de Ser Mulher: “Ser mulher, e oh! Atroz, tantálica, tristeza!”: Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada Para os gozos da vida: a liberdade e o amor; 378 Tentar da glória a etérea e altívola escalada, Na eterna aspiração de um sonho superior... Ser mulher, desejar outra alma pura e alada Para poder, com ela, o infinito transpor; Sentir a vida triste, insípida, isolada, Buscar um companheiro e encontrar um Senhor... Ser mulher, calcular todo infinito curto Para a larga expansão do desejado surto, No Ascenso espiritual aos perfeitos ideais... Ser mulher, e oh! Atroz, tantálica tristeza! Ficar na vida qual uma águia inerte, presa Nos pesados grilhões dos preceitos sociais! Assim, Gilka se mostra consciente da sua situação de gênero. Todo poema se constrói na base da antítese entre o desejo e a força da lei que interdita a sua execução. O que Gilka Machado parece querer nos mostrar é que além da repressão do super-ego e da repressão externa imposta pelas várias instituições sociais, a mulher sofre a carga repressiva de que as leis sempre foram feitas pelos homens (SOARES, 1999. p. 97). Ora, Tântalo é figura mitológica cujo suplício por roubar manjar dos deuses para os homens era estar perto da água e esta se afastar dele quando queria bebê-la. Esse é o suplício em que se encontra o sujeito desejante em poemas de Gilka. Ora, como podemos deduzir de Freud, a vivência do desejo tem o seu preço, mas o contrário é manter os “pesados grilhões”. CONCLUSÕES O lugar de Gilka Machado na produção da autoria feminina é marcado sobretudo historicamente, por ter sido ela quem, numa época onde a literatura feminina era mero “sorriso da sociedade”, ousou demonstrar em sua lira erótico-amorosa uma sinceridade rude e uma forma de dizer abertamente das coisas mais íntimas. Como sabemos, isso provocou da parte da crítica uma abafamento do seu nome na história da literatura, algo que tem sido revisto desde os anos de 1978 com a publicação de suas Poesias Completas. A despeito do novo interesse que tem visto sobre suas obras, permanece ainda muito pouco conhecida, porém, tem sido tomada e lida, principalmente por pesquisadoras, 379 justamente no empenho de se construir um marco para os estudos da mulher na literatura brasileira. Revisitar seus versos nos mostram como essa mulher é constituída tanto a partir da consciência de gênero como a partir da consciência erótica. REFERÊNCIAS AULAGNIER-SPAINARI, Piera. 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