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De Pinocchio a Harry Potter CILBELC

A renovação do gênero contos de fadas pode ser encontrado nos livros de J.K. Rowling, na série Harry Potter,em especial no primeiro livro Harry Potter e a Pedra Filosofal(ROWLING,2000),o qual, particularmente, abordamos nesse ensaio. Sem dúvida o cenário literário infantil mundial foi modificado pela publicação dos livros da escritora britânica que têm o mérito de conquistar as crianças porque as atingem na imaginação, seduzindo as por meio da fruição da leitura de histórias fantásticas. Harry Potter surgiu no cenário literário infantil para revigorar o maravilhoso existente tradicionalmente nos contos de fadas; revitaliza o mundo imaginário na literatura destinada à infância. Ele serve como “tônico” ao mundo da leitura da criança, no qual o sonho, a imaginação tem relações profundas, auxiliando o desenvolvimento da percepção de mundo dos leitores que estão iniciando um percurso no universo da leitura. Esboçamos das análises de Bruno Bettelheim (1978), Nelly Novaes Coelho (1991) e Jackeline Held (1980), entre outros, modelos e estruturas semelhantes em que se baseiam os contos de fadas. As teorias críticas do conto de fadas tradicional ajudam-nos a reconhecer em Harry Potter as características fundamentais desse gênero.

09/09/2016 btd! De Pinocchio a Harry Potter: faces do animismo e da metamorfose nos contos de fadas Adriana Carvalho Conde Mestre em Letras/UNESP­Assis Orientadora:Cleide Antonia Rapucci Os contos de fadas são conhecidos há séculos e continuam a encantar leitores pelo mundo até hoje. Os enredos dos contos chamados fantásticos se repetem em muitos continentes. São semelhantes até mesmo em detalhes, encontrados em culturas e mundos diferentes. São contos muito antigos e sofrem constante renovação. Dessas histórias emerge um mundo povoado de seres feéricos, encantados, o qual exerce grande influência na formação intelectual dos leitores da criança até o adulto. Estes contos infundem sentimentos peculiares, como o otimismo, o triunfo do bem sobre o mal. Porém a vitória sobre o mal só é conquistada após os heróis e heroínas superarem muitos obstáculos. Aguarda­se que no final da história, apesar dos contratempos, todos “sejam felizes para sempre”. Acreditamos que um bom exemplo de renovação desse gênero pode ser encontrado nos livros de J.K. Rowling, na série Harry Potter,em especial no primeiro livro Harry Potter e a Pedra Filosofal(ROWLING,2000),o qual, particularmente, abordamos neste trabalho. O mundo da literatura infantil ascendeu na escala de importância nos últimos tempos graças, também, a essa série britânica. Sem dúvida o cenário literário infantil mundial foi modificado pela publicação dos livros, que têm o mérito de conquistar as crianças, não apenas porque são produtos oferecidos pela indústria de entretenimento, mas porque as atingem na imaginação, seduzindo­as por meio da fruição da leitura de histórias fantásticas. Harry Potter surgiu no cenário literário infantil para revigorar o maravilhoso existente tradicionalmente nos contos de fadas; revitaliza o mundo imaginário na literatura destinada à infância. Ele serve como “tônico” ao mundo da leitura da criança, no qual o sonho, a imaginação tem relações profundas, auxiliando o desenvolvimento da percepção de mundo dos leitores que estão iniciando um percurso no universo da leitura. Esboçamos das análises de Bruno Bettelheim (1978), Nelly Novaes Coelho (1991) e Jackeline Held (1980), entre outros, modelos e estruturas semelhantes em que se baseiam os contos de fadas. As teorias críticas do conto de fadas tradicional ajudam­nos a reconhecer em Harry Potter as características fundamentais desse gênero. Escreve Bruno Bettelheim (1978), ao analisar claramente os contos de fadas, que os temas dos contos de fadas são “vivenciados como maravilhas porque a criança se sente entendida e apreciada bem no fundo de seus sentimentos, esperanças, ansiedades [...]”(p.26). Afirma, do mesmo modo, que a vida da criança é enriquecida pelos contos que “dão­lhe uma dimensão encantada”. Podemos nos referir como exemplos da literatura fantástica a Charles Perrault na França, no século XVII, aos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm na Alemanha do início do século XIX, a Hans Christian Andersen na Dinamarca e a Collodi na Itália, também no século XIX, escritores que recolheram os contos de fadas lidos por gerações, até os dias atuais. J.K.Rowling lança mão do fantástico e o homenageia com Harry Potter. Fantástico esse, reconhecido em histórias de heróis, bruxas e magos, seres encantados, lugares imaginários e misteriosos dos contos fantásticos tradicionais. Harry Potter foi escrito no século XX tendo como pano de fundo um vasto legado cultural da humanidade.Estão registradas nos livros referências a mitos e seres conhecidos nos contos tradicionais, juntamente com elementos novos e reais que conferem à obra uma característica original. A esse respeito Isabelle Smadja (2004) escreve: “Harry Potter é um conto de fadas, mesmo que a autora tenha preferido trocar o disfarce de fada pela capa do mágico. E, como em um conto de fadas, o ensinamento que transmite baseia a sua matéria nos mistérios do inconsciente”(p.10). Não tivemos dificuldades em reconhecer em Harry Potter indícios de sua relação muito próxima com os contos de fadas. Nelly Novaes Coelho (1991) declara que alguns elementos se repetem nas narrativas maravilhosas dos contos de fadas, tais como os temas da metamorfose, da transformação dos seres e objetos em animais; da utilização de talismãs, objetos mágicos que interferem na sorte das personagens (varinhas, pós mágicos); do determinismo, da sina onde tudo parece determinado a acontecer; do mistério ou “interdito”, enigma a ser decifrado geralmente pelo herói da história. Somos capazes de observar a ocorrência dos elementos que estruturam o conto de fadas nas aventuras de Harry Potter. Identificamos, por exemplo, os temas referentes à transformação, à metamorfose e ao animismo, os quais são explorados amplamente na literatura direcionada à infância. Podemos ilustrar a ocorrência do tema da metamorfose em Harry Potter com esta passagem: http://www2.assis.unesp.br/cilbelc/jornal/agosto06/content10.html 1/3 09/09/2016 btd! Dumbledore sentou­se no muro ao lado do gato. Não olhou para o bicho, mas, passado algum tempo, dirigiu­se a ele. – Imagine encontrar a senhora aqui, Profa. Minerva MacGonagall. E virou­se para sorrir para o gato, mas este desaparecera. Ao invés dele, viu­se sorrindo para uma mulher de aspecto severo que usava óculos de lentes quadradas exatamente do formato das marcas que o gato tinha em volta dos olhos [...] – Como soube que era eu? – perguntou. – Minha cara professora, nunca vi um gato se sentar tão duro. (ROWLING, 2000, p. 14). Muitos personagens de J.K. Rowling têm o dom de se transformar em animais. São nomeados por ela “animagos”− animagus, no original em inglês (a origem da palavra em latim é uma mistura de animal e mago). A professora da escola de magia, Minerva MacGonagall leciona “Transfiguração” na escola de Hogwarts. Esta disciplina consiste em ensinar, aos aspirantes a bruxo, a arte de transformar objetos em qualquer outra coisa. Tema recorrente nas histórias infantis, a transformação de seres atrai a criança que vê o mundo de maneira diversa da visão do adulto. Para a criança, tornar­se animal oferece, de certo modo, “poderes desejáveis” como a capacidade de voar, de mergulhar na vida submarina da sereia, conquistar mundos, e viver emoções imaginadas. Para ela, os seres transformados continuam a ter vida, pois apenas mudam de forma. A criança gosta da brincadeira da transformação, do lúdico contido nessa habilidade, e tem o costume de animar tudo o que toca, desde objetos, plantas ou animais. Desde muito cedo dão voz a seres inanimados. Segundo Jacqueline Held (1980), ao analisar os processos psíquicos e intelectuais da criança que entra em contato com os contos maravilhosos, afirma que: “Ela entra em contato com o animal, a planta, o objeto a partir dessa atitude global, não intelectual, primeira, que é o animismo”(p.125). O tema da habilidade de se transformar em bichos é bem antigo. Na mitologia celta muitos se transformavam em cervo, cisne, águia, corvo. Proteu da mitologia grega possuía essa habilidade e se transformava em diversos animais. David Colbert (2001,p.30) comenta que esse tipo de transformação é lembrado em A Espada Era a Lei – lenda do rei Arthur contada de maneira diferente – de T. H. White, em que há uma luta entre Merlin, tutor de Arthur e Madame Mim que se transformam em vários animais até que Merlin prova ser mais sábio que a bruxa transformando­se em diversos micróbios infectando sua oponente com “soluços, escarlatina, caxumba, coqueluche, sarampo e varíola. Tudo a um só tempo”. Essa artimanha extermina com a bruxa que não resiste a tantas doenças e morre. Os animais são utilizados amplamente na literatura infantil, e não raras vezes encontramos personagens que conversam com animais e vice versa. Personificar objetos e animais, dialogar com eles faz parte do mundo encantado dos contos de fadas. Ao olharmos brevemente pelo acervo mundial de contos fantásticos, encontramos como exemplo a personificação de um gato, companheiro e salvador, representado pela figura do espertíssimo, mentiroso, trapaceiro e pretendente a pícaro Gato de Botas, personagem conhecido dos contos de fadas de Perrault. Não foi ingênuo, do mesmo modo, o fato de Monteiro Lobato dar fala a muitos animais da saga do Sítio do Pica­pau Amarelo. O primeiro volume da série intitulada Reinações de Narizinho e publicada em 1931 traz a pílula da fala, do Doutor Caramujo. Com esta pílula, a boneca Emília começa a tagarelar e é consagrada, fazendo surgir na obra lobatiana idéias de extrema irreverência, pois através da boneca é que Lobato se manifesta. Lobato declara que a imaginação é a: [...] boa fada mobiliza a natureza, dá fala aos animais, às árvores, às águas e tece com esses elementos pequeninas tragédias donde ressurge a “moralidade”, isto é, a lição da vida. O maravilhoso é o açúcar que disfarça o medicamento amargo e torna agradável a ingestão. (In: AZEVEDO, 1998, p. 161). Não é por acaso, também, que o personagem Harry Potter é “ofidioglota”, pode compreender a linguagem das cobras. Os leitores admiram o herói bruxo em A Pedra Filosofal quando passeando no zoológico encontra –se com uma jibóia (única referência ao Brasil) em um viveiro e tem uma conversa telepática com ela. Não poderíamos deixar de lembrar a transformação lendária ocorrida em Cinderela, conto recolhido por Charles Perrault, na França do século XVII, onde uma abóbora é transformada em carruagem, ratos em cavalos e um cão velho em cocheiro. As semelhanças entre o conto francês e Harry Potter não param por aí.De acordo com Isabelle Smadja a construção da história de Harry Potter se baseia no modelo de A Gata Borralheira, pois do mesmo modo, Harry fica órfão depois da morte inesperada dos pais; é criado por pessoas que o rejeitam e o sujeitam à maldade, mas herda dos pais o caráter íntegro que possibilita o triunfo do herói sobre os perigos da vida. Entre as histórias recolhidas pelos Irmãos Grimm, identificamos a ocorrência do tema da metamorfose em O Príncipe Sapo onde um sapo viscoso se transforma num belo príncipe. O primeiro registro dessa história foi feito no século XIX e inspirou numerosas narrativas. Também chama­nos a atenção a presença da metamorfose no conto de Carlo Lorenzini (pseudônimo de C. Collodi) Pinocchio, publicado pela primeira vez em 1883, em que um “pezzo di legno” se transforma em um boneco de madeira que fala e mais tarde num garoto de verdade, desejado http://www2.assis.unesp.br/cilbelc/jornal/agosto06/content10.html 2/3 09/09/2016 btd! imensamente por seu criador, Geppetto. Nesse mesmo conto presenciamos o aparecimento do Grilo Falante, um inseto, espécie de consciência, que por meio de ataques verborrágicos tenta empurrar Pinocchio rumo ao crescimento e à maturidade. O tema da transfiguração também aparece no conhecido conto A Bela e a Fera em que um monstro, de alma generosa se transforma em príncipe depois que lágrimas de amor o livram do feitiço lançado por uma bruxa. A essência desse conto de origem francesa reside em reconhecer o que está além das aparências. A variação de forma é retratada também em O homem de muitas formas, história recolhida do folclore africano, precisamente no Quênia, em que é narrada a história de um homem – Mbokothe, que se transforma em muitos animais, touro, pássaro, antílope para fugir de um comprador enganado por ele (PHILIP,1998). No Brasil também reconhecemos esse mesmo tema no conto folclórico amazônico em que Idalina conta a Enrica a lenda do boto do rio em A Noite do Nunca­Mais que na lua cheia “o boto se transforma no homem mais lindo do mundo” (PRIETO,2000, p.29). Somos conscientes do valor do conto de fadas e sabemos que o maravilhoso é o “alimento essencial” para nutrir a imaginação, pois “exprime e nos faz reunir as necessidades primordiais da humanidade: a aprendizagem da vida, a busca incessante, a grande aventura humana”. Podemos dizer que J.K. Rowling restaura o imaginário em Harry Potter e faz ressurgir lugares e seres feéricos enraizados na sua imaginação.Isso acontece, prossegue Jacqueline Held, porque, talvez, “encontremos aí elementos primeiros, que alimentam o imaginário do homem, que desempenham papel decisivo em seu crescimento, elementos que envolvem a criança e que jamais cessam de envolver, talvez o adulto”(p.78). J.K.Rowling faz os leitores sonharem e reviverem as imagens que persistem em seus interiores. Harry Potter faz sonhar tanto as crianças como os adultos. É uma obra que “faz sonhar em nós a criança eterna”. Referências Bibliográficas: AZEVEDO, C. et al. Monteiro Lobato: Furacão da Botocúndia. 2 ed. São Paulo: SENAC/SP, 1998. BETTELHEIM, B. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. COELHO, N.N. Panorama Histórico da Literatura Infanto/Juvenil: das origens indo­européias ao Brasil Contemporâneo. 4 ed. São Paulo, Ática, 1991. COLBERT, David. O Mundo Mágico em Harry Potter : Mitos, Lendas e Histórias Fascinantes. Rio de Janeiro: Sextante, 2001. HELD, J. O Imaginário no Poder: as crianças e a literatura fantástica. São Paulo: Summus, 1980. PHILIP, N. Volta ao Mundo em 52 Histórias. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1998. PRIETO. H. Mata: Contos do Folclore Brasileiro. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2000. ROWLING, J.K. Harry Potter e a Pedra Filosofal. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. http://www2.assis.unesp.br/cilbelc/jornal/agosto06/content10.html 3/3