SIM
VICENTE CECIM
Carta ao Construtor de Labirintos
A serenidade e a transcendência do ser
que você encontrou é para mim exemplar.
SONTAG
O que acontece quando um crítico literário, em vez de usar seu rigoroso direito
auto-atribuído de julgar a obra de um autor, manifesta emocionado a esse autor sua
gratidão pela beleza e originalidade de sua literatura? Raro acontecimento, que merece
ser celebrado. Foi o que fez Susan Sontag, na carta que escreveu a Jorge Luis Borges, o
Vidente Construtor de Labirintos que inaugurou uma nova dimensão na Literatura e
através dela nos transporta para dimensões antes dele nunca antes navegadas. Nesta Sim,
nem eu falarei de Borges nem ele falará de si. E todos nós, inclusive você que a lê,
apenas ouviremos a voz de Susan Sontag falando a Borges, quando ele já nem podia lêla – não porque foi perdendo a visão desde a meia idade, mas porque não se encontrava
mais entre nós. O que acrescenta encanto às palavras de encantamento de Susan. Mas
que ele não a tenha lido não é uma verdade conclusiva, isso não. Susan Sontag também
se foi pouco depois de Borges. E - como de certas coisas nada, ou quase nada sabemos –
nada nos proíbe de a imaginar entregando, e mesmo lendo pessoalmente para ele, sua
carta. Nos transportemos para o Lá de onde tudo vem e para onde tudo regressa.
Enquanto aqui, nesta página, até parece que apenas estamos lendo a carta de Susan
Sontag a Jorge Luis Borges.
Susan Sontag: Carta a Jorge Luis Borges
Uma vez que eles sempre colocaram sua literatura sob o signo da eternidade, não
parece muito estranho lhe enviar uma carta. Se alguma vez um contemporâneo parecia
destinado à imortalidade literária, era você. Você foi em grande parte o produto de seu
tempo, sua cultura, e ainda sabia como transcender o tempo e cultura, de uma maneira
que é muito mágica. Isto teve algo a ver com a abertura e a generosidade de sua atenção.
Você foi o menos egocêntrico, o mais transparente dos escritores... e o mais artista. E
isso também tinha algo a ver com uma pureza natural do espírito. Embora tenha vivido
entre nós por muito tempo, aperfeiçoou a prática de aborrecimento e a indiferença que
também fez de você um andarilho mental especialista em outras eras. Você tinha uma
sensação diferente do tempo. Ter ideias do passado, presente e futuro parecia banal sob
seu olhar. Você gostava de dizer que cada momento do tempo contém o passado e o
futuro, citando o poeta Browning. (...)
Você era um descobridor de novas alegrias. (...) De um péssimo sereno, para não
ser ultrajante. Você era, acima de tudo, inventivo. A serenidade e a transcendência do
ser que você encontrou é para mim exemplar. Você mostrou como não há nenhuma
necessidade de ser infeliz, embora se possa ser completamente perspicaz e esclarecido
sobre como tudo é terrível. (...)
Você era um grande recurso para outros escritores. (...) Por isso ainda estão
imitando Borges. Você ofereceu às pessoas novas formas de imaginar, ao proclamar,
uma e outra vez, a nossa dívida com o passado, especialmente com a literatura. Você
disse que nós devemos à literatura quase tudo o que somos. E que se os livros
desaparecerem, a história vai desaparecer e os seres humanos. Tenho certeza de que
você está certo. Livros não são apenas a soma arbitrária de nossos sonhos e nossa
memória. Eles também nos dão o modelo da auto-transcendência. (...) Os livros são
muito mais.
Mas eles estão cada vez mais mergulhando no grande projeto contemporâneo de
destruir as condições que tornam possível a leitura e repudiar o livro e os seus efeitos.
Não mais um retiro na cama ou sentado em um canto quieto de uma biblioteca, virando
lentamente as páginas sob a luz da lâmpada. Em breve, eles nos dizem, vamos chamar
de "tela-book" qualquer "texto", e você pode mudar sua aparência, fazer perguntas,
"interagir" com o texto. Quando os livros tornam-se "textos" com a qual "vão interagir"
de acordo com os critérios de utilidade, a palavra escrita se tornará apenas mais um
aspecto da nossa realidade regida por publicidade televisiva. (...). Claro que você e eu
sabemos que não significa nada menos do que a morte da introspecção... e do livro.
Não haverá necessidade de uma grande conflagração. Bárbaros não terão que
queimar livros. O tigre está na biblioteca. Caro Borges, por favor, entenda que não me
dá prazer reclamar. Mas a quem mais fazer essas queixas sobre o destino de leitura de
livros? (...) Nós o perdemos. Eu sinto sua falta. (...) Estamos entrando em uma era
estranha, o século XXI. Vai testar a alma de uma forma sem precedentes. Mas eu
prometo a você, alguns de nós não vão deixar a Grande Biblioteca. E você permanecerá
o nosso modelo e herói.
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