FILOSOFIA JURÍDICA – PROFESSOR CELLA 20/10/15
GOVERNO DOS HOMENS OU GOVERNO DAS LEIS?1
José Renato Gaziero Cella2 www.cella.com.br A ausência histórica do Estado em sua missão de garantir a cidadania às pessoas menos favorecidas no Brasil tem sido por elas respondida com o desprezo à autoridade estatal e com o surgimento de organizações à margem do Estado e que não raro se associam a práticas ilícitas (ver escritos do jurista português BOAVENTURA SOUZA SANTOS), e cujos resultados são catastróficos, como é o caso, por exemplo, da calamidade por que passa atualmente a população da cidade do Rio de Janeiro-RJ, que não se sente segura. Nessas circunstâncias, proliferam argumentos para que o Estado responda com rigor e sem limites às agressões que sofre, com um forte clamor popular pela vingança indiscriminada contra moradores de um morro, de uma favela, de um presídio ou seja lá de que local ou de que grupo. Ademais, em circunstâncias críticas como a presente é comum a proliferação de argumentos que tentam justificar a vingança privada como resposta legítima contra criminosos, além de idéias de implantação de pena capital, do recrudescimento das sanções penais e a redução, ou até mesmo a suspensão, de determinados direitos civis. Porém a vingança privada não se justifica em nenhum país civilizado. A experiência traumática de quem sofre uma tragédia que gere sentimentos fortes de resposta não é argumento válido para justificar respostas ilícitas do Estado, como por exemplo o modo pelo qual os Estados Unidos têm respondido aos ataques de 11 de setembro. O Estado pressupõe a prevalência do governo das leis e não do governo dos homens, sob pena de retornarmos à selva. Recentemente, na última campanha para o governo estadual do Paraná, o então candidato ÁLVARO DIAS afirmou que no seu governo a polícia "atira" primeiro. Em São Paulo a polícia de GERALDO ALCKMIN fez emboscada em pedágio da Rodovia Castelo Branco e executou, no interior de um ônibus, um grupo de pessoas que estaria se dirigindo a Sorocaba-SP para a prática de algum crime. Quem não se recorda da chacina de 111 presos no Carandiru, agora recordada em filme dirigido pelo HECTOR BABENCO? Em recente entrevista à Rádio CBN de Curitiba-PR, uma mulher que havia sido refém de três assaltantes — que após relato dos policiais acerca de um tiroteio que teria acontecido antes de sua libertação, e que teria sido a causa da morte dos assaltantes — foi questionada sobre os detalhes do tiroteio, quando respondeu que não teria ocorrido nenhuma troca de tiros e que, uma vez rendidos, os assaltantes saíram caminhando normalmente de sua casa: ato contínuo a jornalista encerrou abruptamente a entrevista, em clara demonstração de omissão (ou seria conivência?), pela imprensa, de apuração e divulgação da notícia de uma presumível execução, pelos policiais, de pessoas que já haviam sido capturadas e rendidas. É comum ouvirmos a frase: "bandido bom é bandido morto", e há um sem número de programas policiais, em rádios e televisões, que professam esse pensamento, além de desdenharem da postura daqueles que por eles são enquadrados como defensores dos direitos humanos. Em suma, o tema da violência está na ordem do dia de nossas preocupações, e as respostas ao problema parecem se distanciar das fórmulas garantidas pelo Estado de Direito. Todo aquele que pôde refletir sobre a contínua presença da violência na história, não obstante a sua milenar e natural condenação de todas as religiões e de todas as éticas, sabe que o modo mais comum de justificar a própria violência é afirmar que ela é uma resposta, a única resposta possível em dadas circunstâncias, à violência alheia. De resto, esse argumento é usado pelo Estado para justificar o uso da própria violência, da chamada violência institucionalizada frente à violência criminosa ou revolucionária. É claro que a justificação da violência pela violência pressupõe que, das duas violências em oposição, uma seja originária e, portanto, injustificada. Não é nada excepcional a observação de que a violência originária e injustificada, entre dois contendores, é sempre a do outro. Qualquer pessoa que tenha assistido a uma discussão sabe que cada um se defende acusando o outro de ter começado. Como conseqüência, todo ato de violência é ao mesmo tempo justificado por quem o pratica e condenado por quem o sofre. Menos natural é que alguns políticos e intelectuais não exercitem seus cérebros para compreender a diferença existente entre as várias formas e os vários graus de institucionalização da violência, próprias dos vários tipos de regimes, e, descuidados disso, terminem por assumir a responsabilidade de encorajar atos de violência politicamente insensatos, além de moralmente abjetos. Que o Estado, qualquer que ele seja, é um instrumento de repressão ninguém contesta. Mesmo aqueles que crêem no fim do Estado pensam que sempre haverá Estado até o dia em que se justificar qualquer forma de repressão. Do ponto de vista de uma ética da não-violência, qualquer Estado é moralmente condenável; precisamente nessa necessidade do uso da violência está a impossível, e por vezes inutilmente tentada, transformação da política em moral. Isso não obstante todas as grandes correntes de pensamento político, incluindo as várias formas de anarquismo, serem concordes em afirmar que o único modo até agora cogitado pelos homens para limitar a violência é o de concentrá-la, distinguindo uma violência lícita de uma violência ilícita, considerando-se ilícita toda espécie de violência privada; assim, com o monopólio do uso da força conferido ao Estado e nele concentrado, seria impossível a guerra de todos contra todos. Em outras palavras: é verdade que o Estado, como dizem os adversários do regime que querem derrubar, é a violência institucionalizada; mas até agora ninguém conseguiu demonstrar que existe menor violência onde não existe um Estado ou onde cessou de existir, antes pelo contrário. Que o poder político se rege, em última instância, pela força, é inegável. O problema não está no fato de o Estado ser ou não força concentrada, nem a quem habitualmente pertence essa força concentrada. O problema é se, onde a presença do Estado é menor, há possibilidade de ser menor a presença da força. Qualquer que seja a solução dada ao problema pelos revolucionários de todos os tempos, não restam dúvidas: estes combatem o Estado não para destruir o aparelho de força, mas para se apoderar dele ou para criarem um novo, como todas as revoluções vitoriosas o demonstraram até hoje. A guerra civil é, para um revolucionário, um mal necessário. Para o revolucionário, o Estado, o novo Estado, em relação à guerra civil, é um mal menor, exatamente porque representa o fim da violência, "sem freios e sem leis". Que todo Estado seja, enquanto tal, um instrumento de repressão, não quer dizer que todos os Estados sejam igualmente repressivos. Esse é um ponto sobre o qual aquele que crê na democracia não deve deixar zonas de sombra e permitir conclusões precipitadas, como a que circulava entre marxistas e especificamente entre marxistas-leninistas, segundo a qual todos os Estados são ditaduras. 1 Em homenagem a NORBERTO BOBBIO, grande mestre da democracia.
2 Doutorando em Teoria e Filosofia do Direito na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná - UFPR; Professor de Filosofia Jurídica e de Introdução ao Estudo do Direito na Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUC/PR.
A diferença entre esses dois tipos extremos de regime político que costumamos designar pelos nomes de democracia e de ditadura é, em relação ao uso da força e ao exercício da função repressiva, enorme. Já o primeiro grande teórico do Estado liberal, JOHN LOCKE, havia repetidamente defendido que só através do governo civil fundado no consenso dos indivíduos é que estes saem realmente do estado de natureza (ou seja, do estado de guerra civil permanente); já o Estado despótico, cujo poder se baseia na simples força sem consenso, não é senão a continuação ou a quase cristalização do estado de natureza. É tão grande a diferença que toda a tradição do pensamento político ocidental, primeiro liberal e depois democrático, sempre considerou como autêntico salto qualitativo não a passagem do estado de natureza para o Estado enquanto tal, mas a passagem do estado de natureza para o Estado fundado sobre o consenso: "... O que é essencial é que, sejam quais forem os motivos do início da reflexão filosófica, ela não se concebe, a meu ver, sem uma ruptura da comunhão do homem com o seu meio, sem os primeiros questionamentos daquilo que, até então, era óbvio, tanto na visão do mundo como naquela do lugar que nele ocupamos; primeiros questionamentos tanto de nossas crenças como de nossas modalidades de ação. Ora, do questionamento ao desacordo, e do desacordo ao uso da força para restabelecer a unanimidade, a passagem é tão normal que quase não necessita de comentários. O que é excepcional, em contrapartida, e constituiu uma data na história da humanidade, é que se tenha permitido que, em matérias fundamentais, reservadas à tradição religiosa e aos seus porta-vozes, o uso da força possa ser substituído pelo da persuasão, que se possam formular questões e receber explicações, avançar opiniões e submetê-las à crítica alheia. O recurso ao logos, cuja força convincente dispensaria o recurso à força física e permitiria trocar a submissão pelo acordo, constitui o ideal secular da filosofia desde Sócrates. Esse ideal de racionalidade foi associado, desde então, à busca individual da sabedoria e à comunhão das mentes fundamentada no saber. Como, graças à razão, dominar as paixões e evitar a violência? Quais são as verdades e os valores sobre os quais seria possível esperar o acordo de todos os seres dotados de razão? Eis o ideal confesso de todos os pensadores da grande tradição filosófica do Ocidente."3
O pensamento ocidental vê a verdadeira linha de divisão entre o momento negativo e o momento positivo da história da humanidade não na diferença entre o estado de natureza infeliz e o Estado feliz, mas entre o Estado despótico — tão infeliz quanto o estado de natureza — e o governo civil, que é a forma de governo em que o uso da força é regulado por lei e submetido à decisão de juízes acima das partes. A diferença fundamental entre as duas formas antitéticas de regime político, entre a democracia e a ditadura, está no fato de que somente num regime democrático as relações de mera força que subsistem, e não podem deixar de subsistir onde não existe Estado ou existe um Estado despótico fundado sobre o direito do mais forte, são transformadas em relações de direito, ou seja, em relações reguladas por normas gerais, certas e constantes, e, o que mais conta, preestabelecidas, de tal forma que não podem valer nunca retroativamente. A conseqüência principal dessa transformação é que nas relações entre cidadãos e Estado, ou entre cidadãos entre si, o direito de guerra fundado sobre a autotutela e sobre a máxima tem razão quem vence é substituído pelo direito de paz fundado sobre a heterotutela e sobre a máxima vence quem tem razão; e o direito público externo, que se rege pela supremacia da força, é substituído pelo direito público interno, inspirado na supremacia da lei. A prova de fogo desse tipo de ordenamento acontece quando, como ocorre neste momento delicado da história brasileira, as pessoas se declaram em guerra contra o crime — como resposta à violência originária do crime contra o Estado. Muitos sofrem a tentação de raciocinar da seguinte maneira: a guerra é uma relação recíproca, portanto, como não se pode fazer a guerra sozinho, quem declara guerra a outro obriga o outro a ficar em guerra com ele, mesmo a contragosto. Com medo e preocupados com o alastramento dos atos de guerra, como as agressões a pessoas sem culpa individual, mas que representam o inimigo, tudo fazem para que o Estado responda com atos de guerra a atos de guerra. O fim da guerra, como se sabe, não é individualizar um eventual culpado e o condenar segundo as leis vigentes, mas sim render o inimigo, matando-o ou o fazendo prisioneiro, de forma generalizada. A prova de fogo do Estado democrático, portanto, não está em se deixar envolver num estado de guerra por nenhum de seus cidadãos, mas, sim, na capacidade de responder às declarações de guerra reafirmando solenemente as tábuas da lei (que são a Constituição). A fidelidade obstinada e coerente às tábuas da lei é o único e último baluarte contra os males extremos do despotismo e da guerra civil. O império da lei permite que se conheçam as regras, sempre preestabelecidas, que delimitam quando, de que modo, em que medida, por quem e contra quem pode e deve ser usada a força, de maneira que se garanta, mesmo àqueles que declararam guerra ao Estado, o devido processo legal no julgamento de seus atos, com sanções aplicadas de forma individualizada, onde vence quem tem razão e jamais quem tem a força, sob pena de, ao assumirmos a lógica impensada que defende e aceita a suspensão dos direitos civis em algumas circunstâncias — ainda que na forma de silêncio consentido, como o da imprensa paranaense e o de todos aqueles que timidamente aplaudiram a ação da polícia paulista no caso da Rodovia Castelo Branco, do Carandiru ou assim raciocinam em casos similares — estarmos também nós sujeitos a arbitrariedades nos casos em que entrarmos em conflito contra alguém mais poderoso que nós, sobretudo o Estado, que aí mostra sua face despótica que se afasta das conquistas do pensamento liberal e da democracia, que têm na segurança e na certeza do Direito a fórmula que permite que as garantias individuais dos cidadãos em relação ao Estado, limitado pela universalização de acesso ao Poder Judiciário4, sejam efetivas e não mero discurso vazio.
3 PERELMAN, C. Ética e direito. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira, São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 96. 4 Artigo 5° da Constituição federal de 1988: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.”
POSITIVISMO JURÍDICO NO SÉCULO XIX: RELAÇÕES ENTRE DIREITO E MORAL DO ANCIEN RÉGIME À MODERNIDADE
Introdução
No âmbito jurídico um dos grandes problemas existentes e que ainda persiste - que tem ocupado pensadores desde a Antiguidade - é a clássica questão da justiça. O que é a justiça? Para o enfrentamento desse problema, que impõe, no âmbito jurídico, o estudo das relações entre direito e moral, será percorrido o caminho que culminará no positivismo jurídico[1] do século XX, com destaque ao seu rompimento com o jusnaturalismo racionalista que teve lugar no século XVIII e cuja consolidação se operou no século XIX. Das várias discussões existentes quanto aos fundamentos do direito, é possível que uma das mais significativas segue sendo a das possibilidades ou não de se promover, pelo direito, a justiça, ou seja, a ideia do direito como instrumento[2] para a realização do valor[3] do justo. Mas o que é, afinal, a justiça? Também aqui o debate se põe, sendo que talvez nenhum outro tema tenha ocupado tanto a filosofia do direito como as relações entre o direito e a moral, ou, num sentido mais amplo, as relações entre o direito como é (o direito positivo) e o direito como deveria ser segundo os postulados da moral e da justiça (o direito natural ou racional).[4] A disputa entre essas duas concepções jurídicas, o positivismo e o jusnaturalismo, cobre vários séculos da história do direito e, apesar de amiúde ser declarada cancelada, revive em cada época sob o manto de novas fórmulas. Com efeito, a teoria de Hans Kelsen contra o direito natural parecia ter interrompido o velho debate para sempre. Kelsen, mediante uma bem sucedida metodologia em que se demonstra desnecessária a exigência de conteúdos prévios para que uma ordem da conduta humana seja ou não reconhecida como sendo uma ordem jurídica, desloca o problema da justiça para a política, ou seja, essas questões deixariam de ser um problema jurídico.[5] Para tanto, após enquadrar o direito natural como uma "...doutrina [que] sustenta que há um ordenamento das relações humanas diferente do Direito positivo, mais elevado e absolutamente válido e justo, pois emana da natureza, da razão humana ou da vontade de Deus"[6], chegando mesmo a denunciar a relatividade[7] dessa doutrina[8], Kelsen acusa de dualismo platônico a distinção entre direito positivo e direito natural: A doutrina do Direito natural é caracterizada por um dualismo fundamental entre Direito positivo e Direito natural. Acima do imperfeito Direito positivo existe um perfeito - porque absolutamente justo - Direito natural; e o Direito positivo é justificado apenas na medida em que corresponda ao Direito natural. Nesse aspecto, o dualismo entre Direito positivo e Direito natural, tão característico da doutrina do Direito natural, lembra o dualismo metafísico da realidade e a ideia platônica.[9]
No entanto, segundo Kelsen, ao contrário das leis da natureza que são regidas pelo princípio da causalidade (o mundo do ser), as normas jurídicas não têm seu cumprimento vinculado a determinações fatais e necessárias, vez que essas se regem pelo princípio da imputação (o mundo do dever-ser). Sob esse prisma, se houvesse normas causais (necessárias) para determinar a conduta humana, as normas de direito positivo seriam supérfluas: Caso se pudesse ter conhecimento da ordem absolutamente justa, cuja existência é postulada pela doutrina do Direito natural, o Direito positivo seria supérfluo, ou melhor, desprovido de sentido. Confrontada com a existência de uma ordenação justa da sociedade, inteligível em termos de natureza, razão ou vontade divina, a atividade dos legisladores equivaleria a uma tola tentativa de criar iluminação artificial em pleno sol.[10]
A separação entre direito e moral decorrente da relatividade desta última é um traço característico do positivismo jurídico lapidado no século XX. Gustav Radbruch, que chegou a ser um dos mais ferrenhos defensores do positivismo jurídico durante a década de 1930[11], dava clara preferência ao direito em caso de conflito com a justiça, "...pois é mais importante a existência da ordem jurídica que a sua justiça, já que a justiça é a segunda grande missão do direito, sendo a primeira, a segurança jurídica, a paz".[12] No entanto, a barbárie do nacional-socialismo levou a um sério questionamento da tese positivista ao final da Segunda Guerra Mundial.[13] A ideia kelseniana de que toda a norma legal é direito, sem consideração de seu conteúdo[14], foi duramente combatida no pós-guerra, tendo sido atacada como responsável pela legitimação dos regimes autoritários que tiveram lugar em várias nações durante o século XX. Essa circunstância trouxe novamente à tona aquilo que a teoria de Kelsen tinha posto em estado de latência[15]: as relações entre direito e moral, e o comprometimento deste com a realização da justiça. A saída daquele estado de latência provoca uma efervescência no debate jurídico[16], dando fôlego ao ressurgimento de algumas formas de jusnaturalismo[17], exigindo a reformulação de alguns conceitos por aqueles que se mantiveram no positivismo[18], permitindo, enfim, o surgimento de novas propostas[19] que têm demonstrado, mais do que nunca, a importância do debate filosófico na atualidade, debate esse que não é e não pode ser negligenciado, mas que está comprometido a encontrar soluções - ou pelo menos a questionar com a radicalidade própria da filosofia os modelos jurídicos postos - para que o direito possa se aproximar da justiça. Nesse sentido, para que se possa situar melhor na compreensão desse problema, é imprescindível a análise do contexto histórico em que a tentativa de separação entre direito e moral desabrochou, sendo esse o objeto central do presente artigo.
1. Predomínio da Moral sobre o Direito
1.1 O Pensamento Escolástico Medieval A ótica normativa que afirma que direito e moral são sistemas distintos, a exemplo do pensamento kantiano, permite o enquadramento das mais variadas teorias jurídicas nas três seguintes posições: a) predomínio da moral sobre o direito[20]; b) prevalência do direito sobre a moral[21]; e c) tentativas de buscar um suporte ao direito, por fora do próprio ordenamento jurídico, sem ter que recorrer ao direito natural.[22] A concepção de Perelman, por exemplo, divide as várias escolas jurídicas, enquadrando-as em períodos distintos, de forma semelhante à divisão acima: Podemos distinguir, a este respeito, três grandes períodos, o da escola da exegese, que termina por volta de 1880, o segundo o da escola funcional e sociológica, que vai até 1945, e o terceiro, que, influenciado pelos excessos do regime nacional-socialista e pelo processo de Nuremberg, se caracteriza por uma concepção utópica do raciocínio judiciário.[23]
O ponto de vista de Perelman, na síntese acima, não enquadra o pensamento que defende o predomínio da moral sobre o direito, em que podem ser incluídas várias doutrinas de direito natural. Outro prisma de pensamento é trazido por Antônio Manuel Hespanha, para quem as doutrinas filosóficas do direito têm oscilado entre o voluntarismo e o racionalismo, sendo possível enquadrar cada uma delas em uma dessas vertentes: A origem do direito, a natureza do justo, sempre constituíram, em todas as épocas e em todas as sociedades, questões em aberto; para lhes dar resposta têm-se elaborado mitos e doutrinas filosóficas de muitos matizes. Fundamentalmente, as posições têm oscilado entre o voluntarismo e o racionalismo. Para o voluntarismo, o direito é o produto de uma vontade - a vontade divina, a vontade do legislador ou do príncipe, a vontade geral - cujo conteúdo é, em princípio, arbitrário. Daí que o jurista apenas tenha uma forma de descobrir o que é justo - interpretar, da forma mais humilde possível, a vontade da entidade que quis o direito. Este torna-se, assim, num dado indisponível a que o intérprete apenas tem que obedecer. Para o racionalismo, pelo contrário, o direito constitui uma ordem preestabelecida - inscrita na natureza humana e na natureza das coisas - à qual se pode aceder mediante um uso adequado da razão. Os efeitos de uma e de outra atitude são opostos. Nas épocas em que predominam concepções do primeiro tipo, parece haver uma pequena margem para se exercitar uma atividade doutrinal autônoma sobre o direito. Pois esta consiste numa via raciocinante de acesso ao 'justo' (à solução justa ou jurídica dos problemas), via esta que o voluntarismo começa por negar. Toda a ars inveniendi (i.e., a técnica de encontrar a solução jurídica) se reduzirá, portanto, a interpretar, de forma mais ou menos subserviente, as fontes de direito sem qualquer intuito de criação jurídica autônoma. A atitude do voluntarismo não é, de modo algum, pensar o direito mas, em vez disso, obedecer ao direito. Já nas épocas em que domina uma concepção racionalista do direito, se propõe uma técnica, mais ou menos rigorosa, de encontrar racionalmente o justo. Como agora se acredita que o direito pode ser encontrado raciocinando, toda a preocupação dos juristas é fixar o caminho, o curso, que a razão terá que percorrer (discurso) para encontrar a solução jurídica. E vai surgir, assim, uma intensa atividade metodológica tendente a descobrir as corretas regras do pensamento jurídico. Mas, por outro lado, a questão tem uma outra face, documentada pela história. Esta demonstra, efetivamente, que algumas das grandes épocas da dogmática jurídica (i.e., aquelas de que datam a maior parte dos instrumentos lógicos, dialéticos e conceituais ainda hoje usados) são aquelas em que domina uma concepção voluntarista e positivista do direito, aquelas em que as normas jurídicas postas eram dotadas de um prestígio excepcional que impedia, inclusivamente, a sua derrogação. Como, nem sempre a solução normativa estabelecida autoritariamente correspondia às necessidades normativas vigentes no momento da sua aplicação e dada a impossibilidade de afastar, sem mais, a norma indesejada, nada resta à doutrina senão modificar o conteúdo desta norma através de uma interpretação sutil, levada a cabo mediante a utilização de complexos instrumentos lógico-conceituais. Por meio deste arsenal de instrumentos intelectuais o que se está é a alterar a norma indesejada, simulando que apenas se está a levar a cabo a sua interpretação. Concluindo. O nascimento da dogmática jurídica liga-se tanto a uma crença teórica no poder da razão como a uma necessidade prática de usar a razão, para atualizar, sub-repticiamente, normas consideradas inderrogáveis.[24]
Tanto o ponto de vista de Perelman quanto a ótica de Hespanha não se contrapõem à subdivisão proposta no início desse tópico, antes a complementam, de maneira que interessa, agora, situar historicamente algumas das doutrinas que podem ser enquadradas na concepção de prevalência da moral sobre o direito, já que foi justamente da ruptura com elas e a consequente centralização do direito nas mãos de um poder soberano que fez do uso da força e do poder de legislar o seu monopólio, que levou ao surgimento do positivismo jurídico contemporâneo. A prevalência da moral sobre o direito só é possível em sociedades que comungam (ou pensam comungar impondo essa comunhão) de ideais comuns sobre moral e direito, como, por exemplo, a ordem da Idade Média, que era unificada pela concepção religiosa cristã da vida. Trata-se aqui da tradição escolástica do jusnaturalismo, que tem nas tradições patrística de Santo Agostinho[25] e escolástica de Santo Tomás de Aquino[26] seus principais formuladores. O pensamento escolástico afirmava a existência de uma ordem natural[27] que estaria submetida à lei eterna que dirige todos os seus movimentos, sendo que seria a razão de Deus a criadora dessa ordem natural.[28] Ao homem, por ser uma criatura racional, seria dado participar da lei eterna, cujo conhecimento lhe permitiria formular os princípios da lei natural.[29] Dada a concepção escolástica de que o homem tem consciência da lei natural, direito natural é aquilo que é justo. É por isso que para o jusnaturalismo escolástico somente merece a denominação de lei aquilo que a razão discerne como sendo o bem comum. Assim, as legislações positivas, contanto que não contrariassem as leis naturais[30], eram tidas como perfeitamente legítimas.[31] Portanto o direito natural não tinha pretensões de substituir o direito positivo, mas sim de limitar, quando fosse o caso, as consequências injustas de sua aplicação.[32]
1.2 O Jusracionalismo Porém, com o advento do racionalismo nos séculos XVII e XVIII, nasce a ambição de se elaborar um sistema de direito justo, "...uma jurisprudência universal, inteiramente fundada em princípios racionais, independentes em sua formulação e em sua validade do meio, tanto social quanto cultural, que os viu nascer e daquele que deveriam reger.[33] Um sistema assim é que deveria ser ensinado nas Faculdades de Direito[34], na esperança de que aqueles a quem caberia elaborar e promulgar as leis positivas se afastassem o menos possível do modelo ideal que lhes era ensinado".[35] Houve, portanto, tentativas de se laicizar o direito natural, que passava a ser concebido como um sistema de direito puramente racional:[36] Daí resultava a pouca importância atribuída, no continente europeu, nas Faculdades de Direito do Antigo Regime, ao Direito positivo, que não passava, na melhor das hipóteses, de uma imitação imperfeita do direito ideal e que, como a sombra do Justo, na caverna de Platão, só podia ser uma pálida e imperfeita imitação da ideia da própria Justiça. A ideia de que o direito justo, da mesma forma que as leis da natureza, fosse apenas a expressão de uma razão universal, reflexo direto ou indireto (através da natureza criada) da razão divina, desenvolvera-se em duas tradições opostas, ambas de origem religiosa, a tradição racionalista e a tradição empirista. Fossem as leis naturais e aquelas que devem reger as relações entre os homens encontradas a priori ou a posteriori, graças às ideias evidentes ou graças à experiência, o papel dos homens deveria limitarse a descobrí-las ou registrá-las, pois toda a iniciativa humana neste terreno só pode levar ao erro e à arbitrariedade. Que a principal virtude do sábio cristão fosse a humildade, a submissão ao pensamento e à vontade divinos, essa é uma ideia sobre a qual insistem tanto Santo Agostinho quanto o chanceler Francis Bacon.[37]
2. Predomínio do Direito sobre a Moral
2.1 O Contratualismo e a Soberania Estatal Perelman sustenta que contra a ideia de jurisprudência[38] universal mencionada ao final do tópico anterior, elaborada por várias gerações de juristas, opuseram-se três teses, "...às quais estão ligados os nomes de Hobbes, Montesquieu e Rousseau"[39], a partir das quais será desenvolvido o positivismo jurídico cuja característica é o predomínio do direito sobre a moral. É justamente a partir desses pensamentos que vão estar presentes as ideias contratualistas e a teoria da soberania estatal, em que o direito positivo deve sua obrigatoriedade à imposição do poder do Estado e não à sua concordância com um direito supostamente anterior, no caso o direito natural. A doutrina política de Thomas Hobbes não compactua com a ideia jusnaturalista de que pode ser derivada da razão uma jurisprudência de caráter universal, pois para esse autor "...o direito não é a expressão da razão mas uma manifestação da vontade do Soberano".[40] Segundo Bobbio a doutrina política de Hobbes talvez seja a teoria mais completa e consequente do positivismo jurídico.[41] Para Hobbes, com efeito, não há outro critério do justo ou do injusto senão a lei positiva, ou seja, somente o que for ordenado pelo soberano é tido como justo, pelo simples fato de ter sido ordenado; e só é injusto aquilo que é proibido, só pelo fato de estar proibido:[42] Neste caso, o próprio direito natural desaparece com a instituição da sociedade política, justamente porque, uma vez instituído o soberano como único legislador, não há lugar para qualquer direito que não tenha origem nele. Leis naturais e costumes valem apenas enquanto não forem contrariados pelas suas leis positivas; e, neste sentido, se não provêm da vontade positiva do soberano, provêm, pelo menos, da sua paciência...[43]
Essas conclusões decorrem da ideia de um estado de natureza inicial, em que todos estariam a mercê de seus próprios instintos, sem que houvesse leis a prescrever os direitos de cada um, o que implica dizer que todos teriam direito a todas as coisas, decorrendo daí uma guerra de todos contra todos. Do estado de natureza só se pode dizer que é intolerável e que é preciso superá-lo: Mas este estado de guerra de todos contra todos torna-se, com o passar do tempo, insuportável para seres humanos que, dispondo de forças mais ou menos equivalentes, jamais estarão seguros de que outro homem não será capaz de matá-los ou de escravizá-los. Para evitar os inconvenientes da guerra permanente, eles concordam em estabelecer um pacto, no qual decidem, ao mesmo tempo, criar um Estado e pôr suas forças reunidas à disposição do Soberano, encarregado de manter a paz entre os cidadãos e de protegê-los contra os ataques do exterior. Renunciam, consequentemente, a solucionar suas divergências pelas armas e aceitam conformar-se às leis que o Soberano estabelecerá e fará respeitar com todos os meios em seu poder.[44]
Com efeito, a primeira lei da razão para Hobbes é a que prescreve a busca pela paz (pax est quaerenda). Para sair do estado de natureza de maneira definitiva e estável, os homens pactuam entre si a renúncia recíproca dos direitos que possuíam no estado de natureza e o cedem ao Soberano (pactum sobiectionis), o que se dá mediante: ...um pacto de cada homem com todos os homens, de um modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia de homens, com a condição de tranferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações. Feito isto, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas. É esta a geração daquele grande Leviatã, ou antes (para falar em termos mais reverentes) daquele Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa.[45]
O soberano, portanto, terá à sua disposição um poder quase absoluto sobre os súditos, o que lhe permitirá a elaboração das normas como melhor lhe aprouver, "...desde que não atente sem razão válida contra a vida dos súditos, pois o medo da morte é a própria razão do pacto social constitutivo do Estado".[46] Outro autor já mencionado acima que atacou a ideia de uma jurisprudência universal foi Montesquieu.[47] Apesar de ser contrário a ideia de jurisprudência universal, "...não rejeita a ideia de uma justiça objetiva"[48], conforme se pode verificar da seguinte passagem contida no Livro Primeiro de O Espírito da Leis: Dizer que não há nada de justo nem de injusto senão o que as leis positivas ordenam ou proíbem, é dizer que antes de ser traçado o círculo todos os seus raios não eram iguais.[49]
Para Montesquieu, caberia ao legislador a tarefa de tornar positivas, promulgando-as, as relações de justiça que cada um não poderia deixar de perceber não fossem os interesses particulares suscetíveis de confundir tal percepção. Nessa perspectiva, nada seria mais danoso do que a concentração de todos os poderes nas mãos de um só (como sustenta Hobbes), "...pois haveria o risco de ele impor leis que visassem essencialmente não a proclamar o que é justo, mas a considerar como legal o que favorece seu próprio interesse, o que lhe reforça o próprio poder".[50] Justamente para evitar tais abusos é que Montesquieu sustentará como ideal político a doutrina da separação das funções. Mas o que interessa aqui é o fato de Montesquieu não admitir a ideia de jurisprudência universal.[51] Outro traço característico desse pensamento - e que muita influência causaria nas escolas jurídicas futuras - diz respeito à tarefa limitada dos aplicadores das normas, pois quanto "...mais o governo se aproxima da república, tanto mais rígida se torna a maneira de julgar"[52], pois nos "...governos republicanos é da natureza da constituição que os juízes observem literalmente a lei"[53]: Quanto aos juízes, eles serão apenas 'a boca que profere as palavras da lei; seres inanimados que não podem moderar-lhe nem a força nem o rigor'. Essa é a condição da segurança jurídica, pois, escreve ele [MONTESQUIEU], 'se os tribunais não devem ser fixos, os julgamentos devem sê-lo a tal ponto que sejam sempre apenas um texto preciso da lei. Se fossem uma opinião particular do juiz, viveríamos em sociedade sem saber precisamente quais compromissos contraímos.[54]
Essa forte sujeição dos juízes à literalidade da lei é decorrência direta do princípio da separação das funções, que impede a delegação do poder legislativo ao executivo, "...que dele poderia aproveitar-se para contrariar seus adversários"[55], bem como tal delegação não pode ser conferida ao judiciário, "...que, por ocasião dos litígios, poderiam formular regulamentos que favorecessem, por razões muitas vezes inconfessáveis, alguma das partes".[56] O último dos três teóricos mencionados acima - cuja doutrina também rompe com a ideia de estabelecimento de uma jurisprudência universal - é Jean Jacques Rousseau. Suas ideias contidas no Contrato Social (1762) foram melhor recebidas que as de Hobbes.[57] Com efeito, embora inspirando-se neste último autor, para quem o direito é apenas a expressão da vontade do soberano, com uma consequente redução da justiça à força, Rousseau assevera: ... A força é um poder físico; não imagino que moralidade possa resultar de seus efeitos. Ceder à força constitui ato de necessidade, não de vontade; quando muito, ato de prudência. Em que sentido poderá representar um dever? Suponhamos, por um momento, esse pretenso direito. Afirmo que ele só redundará em inexplicável galimatias, pois, desde que a força faz o direito, o efeito toma lugar da causa - toda a força que sobrepujar a primeira, sucedê-la-á nesse direito. Desde que se pode desobedecer impunemente, torna-se legítimo fazê-lo e, visto que o mais forte tem sempre razão, basta somente agir de modo a ser o mais forte. Ora, que direito será esse, que perece quando cessa a força? Se se impõe obedecer pela força, não se tem necessidade de obedecer por dever, e, se não se for mais forçado a obedecer, já não se estará mais obrigado a fazê-lo.[58]
Contrapondo-se à ideia de um direito equivalente à força, Rousseau não identificou o soberano com
um monarca todo-poderoso, mas com a nação, com a sociedade política organizada, cuja vontade geral, oposta às vontades particulares dos cidadãos, decide do justo e do injusto, promulga as leis do Estado e designa aqueles que, em conformidade com essas leis, executarão as vontades da nação, administrarão o Estado e distribuirão a justiça. Portanto, quem detém o poder é a própria sociedade civil, cujo exercício é soberano e exprime a vontade do povo, não podendo esta ser limitada, desde que respeite uma dupla condição: a) que não haja sociedade parcial dentro do Estado e cada cidadão opine apenas por si próprio; e b) que essa vontade não se reporte a interesses particulares, mas seja movida pelo interesse geral: acordo admirável entre o interesse e a justiça que dá às deliberações comuns um caráter de equidade, que vemos desaparecer na discussão nas questões particulares, na ausência de um interesse comum que una e identifique a regra do juiz com a da parte[59]. Com essas condições, a lei será a expressão da justiça. Será justamente a partir da combinação das teorias de Hobbes, Montesquieu e Rousseau, mencionadas acima, que a Revolução Francesa "...chegará a identificar o direito com o conjunto das leis, expressão da soberania nacional, sendo reduzido ao mínimo o papel dos juízes, em virtude do princípio da separação dos poderes. O poder de julgar será apenas o de aplicar o texto da lei às situações particulares, graças a uma dedução correta e sem recorrer a interpretações que poderiam deformar a vontade do legislador".[60] Cabe dizer ainda, e isso é importante, que essa tarefa do aplicador da lei desde então tinha que ser motivada, as decisões tomadas deveriam ser justificadas.
2.2 A Escola da Exegese É no contexto que se seguiu à Revolução Francesa que vai surgir a escola da exegese[61], em que "...a interpretação da lei passou a ser objeto de estudos sistemáticos de notável finura, correspondentes a uma atitude analítica perante os textos segundo certos princípios e diretrizes..."[62] Segundo Miguel Reale, sob "...o nome 'Escola da Exegese' entende-se aquele grande movimento que, no transcurso do século XIX, sustentou que na lei positiva, e de maneira especial no Código Civil, já se encontra a possibilidade de uma solução para todos os eventuais casos ou ocorrências da vida social. Tudo está em saber interpretar o Direito. Dizia, por exemplo, Demolombe que a lei era tudo, de tal modo que a função do jurista não consistia senão em extrair e desenvolver o sentido pleno dos textos, para apreenderlhes o significado, ordenar as conclusões parciais e, afinal, atingir as grandes sistematizações."[63] Se a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 já dava importantes indícios de que as práticas sociais do Ancien Régime enfim chegaram ao ocaso, a grande consagração dos princípios do liberalismo se deu mesmo com o Código Civil Francês de 1804, que a partir da segunda edição (1807) passou a ser denominado Code Napoléon, em cujo início estava estampada a célebre sentença: "Existe um direito universal e imutável, fonte de todas as leis positivas; é a razão natural que governa a todos os homens."[64]
A partir de então a atitude metodológica do intérprete e aplicador do direito se limitava ao estabelecimento dos fatos e à sua subsunção sob os termos da lei, no caso a lei escrita a que o direito se viu reduzido: Os códigos napoleônicos constituíam, por um lado , a consumação de um movimento doutrinal que, partindo da doutrina tradicional francesa, fora enriquecido com as contribuições do jusracionalismo setentista. Neste sentido, apareciam como uma espécie de positivação da razão. Por outro lado, tinham sido o resultado de um processo legislativo conduzido pelos órgãos representativos na Nação francesa. Constituíam, neste sentido, a concretização legislativa da volonté générale. Uma coisa e outra contribuíam para lhes dar o ar de monumentos legislativos definitivos, cientificamente fundados e democraticamente legitimados. Perante eles, não podiam valer quaisquer outras fontes de direito. Não o direito doutrinal, racional, suprapositivo, porque ele tinha sido incorporado nos códigos, pelo menos na medida em que isso tinha sido aceite pela vontade popular. Não o direito tradicional, porque a Revolução tinha cortado com o passado e instituído uma ordem política e jurídica nova. Não o direito jurisprudencial, porque aos juízes não competia o poder de estabelecer o direito (poder legislativo, mas apenas de o ampliar (poder judicial). A lei - nomeadamente, esta lei compendiada e sistematizada em códigos - adquiria, assim, o monopólio da manifestação do direito. A isto se chamou legalismo ou positivismo legal (Gezetzpositivismus).[65]
Antônio Manuel Hespanha prossegue em sua descrição da Escola da Exegese: Perante isto, à doutrina apenas restava um papel ancilar - o de proceder a uma interpretação submissa da lei, atendo-se o mais possível à vontade do legislador histórico, reconstituída por meio dos trabalhos preparatórios, dos preâmbulos legislativos, etc.. Quanto à integração das lacunas, a prudência devia ser ainda maior, devendo o jurista tentar modelar para o caso concreto uma solução que pudesse ter sido a do legislador histórico se o tivesse previsto. Esta supremacia estrita da lei sobre a doutrina e a jurisprudência já fora proposta por Montesquieu, ...(Espirit des lois, XI, 6). Mas, com o advento da Revolução, da legitimidade política que ela trouxera à lei e da desconfiança que lhe é característica quanto ao corpo dos magistrados e dos juristas, a ideia do primado da lei ganha tanta força que chega a levar à pura e simples proibição da interpretação, obrigando os tribunais a recorrerem ao legislativo 'sempre que entendessem necessário interpretar uma lei' (référé législatif, lei francesa de 16-24 de agosto de 1790). São estes os pontos de vista largamente predominantes na doutrina francesa dos inícios do século XIX. Os grandes juristas limitam-se a fazer uma exposição e interpretação (exegese) dos novos códigos. É a Escola da Exegese, cujos principais representantes (Duranton, Demolombe, Troplong) foram autores de grandes comentários ao Code civil.[66]
O ensino jurídico nas Universidades também tinha a mesma índole dos postulados da Escola da Exegese, conforme já confirmava o decano Aubry, em 1857, "...em um relatório oficial sobre o espírito do ensino da Faculdade de Direito de Paris: 'toda a lei, tanto no espírito quanto na letra, com uma ampla aplicação de seus princípios e o mais completo desenvolvimento das consequências que dela decorrem, porém nada mais que a lei, tal foi a divisa dos professores do Código de Napoleão'".[67] A lei positiva será, portanto, a fonte única e exclusiva do direito, representando mesmo o direito natural, perpétuo e imutável deduzido pela razão.[68] O positivismo de quase todo o século XIX tentou fazer da ciência do direito e da interpretação uma tarefa mecânica de hermenêutica exegética, já que o código não deixaria nada ao arbítrio do intérprete, o qual não teria por missão criar o direito, uma vez que todo o direito já estava feito. A lei era tida como a própria razão escrita, o que tornou desnecessárias preocupações com o direito natural, a justiça ou a moral, já que a lei já era o todo. Mas logo começaram a surgir tensões entre a lei escrita, por um lado, e a realidade em transformação, por outro.[69] Com efeito, aos aspectos positivos que podiam ser extraídos do positivismo legalista da Escola da Exegese, Antônio Manuel Hespanha aponta certos pontos negativos: A aceitação da lei como produto da vontade do povo pressupunha a transparência democrática do Estado, ou seja, que a lei fosse, de fato, a expressão, tanto quanto possível direta, da vontade geral dos cidadãos. Ora, o caráter restrito da base social das democracias representativas, a partidocracia, a manipulação da vida política pelos governantes, a erupção da mediação dos burocratas, destruíram estes pressupostos. Com o universo dos cidadãos em contato com o direito oficial, torna-se mais evidente que este é uma ordem estranha às convicções sociais de justiça. Paralelamente, a complexificação e tecnificação do discurso legislativo destruíram esse ideal de colocar, por meio de leis claras e códigos sintéticos, o direito ao alcance do povo. Deve ainda acrescentar-se que as correntes exegéticas limitaram drasticamente a inovação doutrinal. A inovação só podia provir de modificações da vontade política, e esta competia exclusivamente ao legislador. De resto, grandes codificações tinham um caráter epigonal. Na verdade, os códigos contemporâneos são um trabalho final de síntese de ciclos doutrinais muito longos, neste caso, o ciclo jusracionalista dos séculos XVII e XVIII. Daí que se tenha verificado a tendência para crer que nada mais havia a acrescentar do ponto de vista doutrinal. Por uma razão e por outra, a doutrina perde a sua função de experimentação, de orientação e de inovação. Enquanto a doutrina estiola, a inovação legislativa faz-se de jato, a golpes legislativos. Este mesmo fato, depositando o direito na vontade sempre mutável dos legisladores, convidada a soluções dependentes das maiorias parlamentares, nem sempre muito amadurecidas e frequentemente inspiradas por uma arrogância legislativa pouco atenta aos limites da regulação social por meio da lei. A lei banaliza-se e torna-se efêmera. O poder político substitui-se à autoridade científica como fundamento e legitimação do direito. Este fica dependente das maiorias parlamentares, tornando-se perigosamente vizinho da política. Tudo isto dá origem a uma perda de prestígio do direito, quando não a uma desconfiança em relação a ele, induzidas ambas pelo desprestígio da política e desconfiança que ela progressivamente suscita.[70]
Diante dessas deficiências da Escola da Exegese, aliadas ao fato de que naquelas nações em que o Estado Nacional ainda não tinha sido estabelecido - tais como Alemanha e Itália - a sua implementação era impossível[71], brota uma forte reação antilegalista contra o movimento de codificação, cujos resultados levarão ao surgimento de novas escolas que acabarão por assumir a tarefa de complementar o edifício positivista dos representantes da escola francesa, conforme adiante se verá.
2.3 A Escola Histórica Alemã e o Conceitualismo
As grandes transformações que se deram no decorrer do século XIX, sobretudo nas relações entre capital e trabalho, levaram a um desajuste entre a lei que havia sido codificada no início daquele século e a vida. Nesse contexto: As pretensões de 'plenitude legal' da Escola de Exegese pareceram pretensiosas. A todo instante apareciam problemas de que os legisladores do Código Civil não haviam cogitado. Por mais que os intérpretes forcejassem em extrair dos textos uma solução para a vida, a vida sempre deixava um resto. Foi preciso, então, excogitar outras formas de adequação da lei à existência concreta.[72]
Em suma, o monopólio legislativo do direito nas mãos do Estado gera um certo artificialismo que distancia as pessoas do direito oficial, que passa a lhes parecer, conforme dito acima, distante das convicções sociais de justiça, conforme aduz Antônio Manuel Hespanha: O Estado, tal como surgira dos movimentos políticos contratualistas, era, de fato, uma abstração. Produto de um contrato idealizado, realizado entre sujeitos puramente racionais, cujo conteúdo decorria das regras de uma Razão a-histórica. O Estado (e o Código) não têm nem lugar, nem tempo. São formas universais, indiferentes a quaisquer particularidades culturais ou nacionais. Era isto que uma cultura de raízes nacionalistas, ancorada nas especificidades culturais dos povos, não podia aceitar. Uma organização política e jurídica indiferenciada, exportável, universalizante, aparecia, quando confrontada com os particularismos das tradições nacionais, como um artificialismo a rejeitar. Este artificialismo decorria precisamente do papel estruturante atribuído à vontade política dos soberanos ou das assembléias representativas, pela teoria constitucional estadualista. Libertos do império da tradição, os órgãos do Estado tinham a ilusão de tudo poderem querer. A Nação, essa realidade intemporal em que os mortos mandavam mais do que os vivos, era identificada com a geração atual ou, mais restritivamente ainda, com os órgãos de soberania ou com as assembléias dos eleitos do povo. E estes, considerando-se depositários exclusivos dos destinos nacionais, transformavam-se em 'fábrica de leis', pensando poder 'meter todo o direito em leis'... Esta pretensão pan-normativa dos órgãos do Estado seria tanto mais arrogante quanto é certo que ...'os letrados do direito, que apresentam à assinatura dos monarcas as suas opiniões, não devem ser, em média, mais avisados do que os seus contemporâneos. Na Alemanha, é uma sensibilidade cultural e político-jurídica deste tipo que está na origem da Escola Histórica Alemã, que domina o panorama do saber jurídico alemão durante a primeira metade do século XIX e que, no seu desenvolvimento pandectista, o influencia até aos inícios do século XX.[73]
Nasce assim a denominada Escola Histórica e seu método, que busca na consciência jurídica popular a única verdade do direito positivo. Friedrich Carl von Savigny foi um dos grandes teóricos dessa corrente, o qual sustentava que o direito positivo emana do espírito geral que anima a todos os membros de uma nação, em que cada direito é a síntese de forças, crenças, sentimentos e atividades do seu povo: sua unidade não é produto casual, pois responde à sua própria história: O programa da Escola Histórica era, justamente, o de buscar as fontes não estaduais e não legislativas do direito. A sua pré-compreensão da sociedade - subsidiária da filosofia da cultura organicista e evolucionária de Herder e do ambiente cultural e político do romantismo alemão - levava-a a conceber a sociedade como um todo orgânico, sujeito a uma evolução histórica semelhante à dos seres vivos, em que no presente se lêem os traços do passado e em que este condiciona naturalmente o que vem depois. Em toda esta evolução, peculiar a cada povo, manifestar-se-ia uma lógica própria, um espírito silenciosamente atuante, o "espírito do povo" (Volksgeist), que estaria na origem e, ao mesmo tempo, daria unidade e sentido a todas as manifestações histórico-culturais de uma nação. O espírito do povo revelar-se-ia nas produções da sua cultura. Na sua língua, desde logo. Também na poesia popular, nas tradições folclóricas, no direito histórico, nas produções de seus intelectuais, nas suas tradições literárias. Seriam justamente estas manifestações da 'alta cultura' aquelas que, um pouco paradoxalmente, melhor revelavam a alma nacional. Pois eram aquelas em que, justamente pela qualidade intelectual dos seus autores, se conseguia atingir, com uma maior profundidade, sistematicidade e plenitude, o espírito de uma nação. Na sua "inocência", o povo exprimir-se-ia numa "multiplicidade" de registros, que só as elites culturais conseguiam reduzir a um "sistema científico".[74]
A tese básica dessa nova corrente, que segundo Alf Ross é caracterizada por uma filosofia da história romântico-conservadora, "...constitui em afirmar que o direito não é criado conscientemente por deliberações racionais, desenvolvendo-se, sim, de forma cega e orgânica como uma expressão do espírito do povo e da consciência jurídica popular. O costume, e não as leis, é, portanto, a fonte suprema do direito".[75]
Daí decorrem as propostas da Escola Histórica: ...a repulsa à codificação, dada a consciência empírica de que codificar era, inevitavelmente, naufragar nas águas do racionalismo do Código de Napoleão; negação do direito natural, para evitar a submissão ao jusnaturalismo racionalista e sua pretendida universalidade e imutabilidade; exaltação do direito consuetudinário, a despeito do ideal positivista que aspirava plasmar na lei a razão escrita.[76]
Como resultado dessa postura, Antônio Manuel Hespanha aponta quatro consequências sob o ponto de vista da teoria do direito: A primeira é a do antilegalismo e, sobretudo, a da reação contra o movimento de codificação. A lei - e, ainda mais, o código sistemático - são encarados como fatores, não de construção do direito, mas da sua destruição. Em primeiro lugar, porque introduzem um elemento conjuntural e decisionista (a decisão legislativa tomada, conjunturalmente, por um governo ou uma assembléia) num mundo de normas orgânicas, indisponíveis e duráveis (o direito, como emanação do espírito do povo). Em segundo lugar, porque congelam a evolução natural do direito que, como toda a tradição, é uma realidade viva, em permanente transformação espontânea. Esta animosidade em relação à codificação ficou bem traduzida numa famosa polêmica entre Savigny e Thibaut, este último favorável a uma codificação geral do direito alemão, que o primeiro considerava artificial e "inorgânica". A segunda consequência é a da valorização dos elementos consuetudinário e doutrinal do direito. Quanto ao primeiro, isso aparece como normal, dado que o costume é a forma paradigmática de o direito se manifestar espontaneamente. Já para compreender o papel outorgado à doutrina - que fez com que o direito, tal como era definido pela Escola Histórica, se identificasse com um Professorenrecht (direito dos professores) - é preciso recordar a função que esta escola atribuía aos intelectuais e literatos na revelação organizada e sistemática do espírito do povo. De fato, Savigny, concedendo embora que o direito provém da alma da nação, salienta o papel que o corpo dos juristas e juízes letrados, bem como a literatura especializada por eles desenvolvida, tiveram na revelação, aperfeiçoamento e tratamento orgânico ou sistemático do direito. De fato, embora com outros pressupostos metodológicos, o saber jurídico universitário alemão vinha desenvolvendo, desde o séc. XVII, em relação à tradição romanística, um trabalho muito semelhante ao que a Escola Histórica propunha se fizesse em relação ao direito alemão. Com base no trabalho das escolas medievais, os juristas do usus modernus pandectarum vinham induzindo dos textos categorias dogmáticas gerais que manifestariam o espírito do direito romano. A romanística, como Savigny e Jhering reconhecem, estava mais adiantada que a germanística nessa reconstrução do espírito (do 'sistema') do direito. Isto explica a atenção dedicada por Savigny ao direito romano, ao direito romano medieval e ao usus modernus alemão, bem como ao fato de ter ensinado - com o seu System des heutigen römischen Recht [Sistema do direito romano atual, 1840] - no âmbito do legado da tradição romanística a tentativa de uma construção orgânica do direito. Bem como explica que o resultado do trabalho desta escola 'germanista' venha a ser conhecido como 'pandectística', o que realça o peso que nela acaba por ter o legado da tradição romanística alemã e, mais em geral, européia. A terceira consequência é a da revalorização da história do direito e do seu papel dogmático, como reveladora, não de um passado morto e separado do presente (antiquarismo), mas de um passado que, pela tradição, fecundava o presente. Daí que a historiografia influenciada por esta escola, se bem que também tenha os seus monumentos antiquaristas, revele evidentes preocupações dogmáticas. Finalmente, uma quarta consequência é a da sistematicidade e organicidade da jurisprudência..."[77]
Buscava-se, portanto, construir um sistema da razão que se realiza na história, a partir do que Ihering (que militara na escola histórica de Savigny antes de alterar seu posicionamento[78]) vai fundar a "...escola conhecida como a da jurisprudência de conceitos que reduz o direito a categorias racionais"[79], a qual, à diferença do positivismo racionalista exegético (submissão à lei escrita), constrói um sistema conceitual (racional) a partir do direito positivo.[80] "Para ambos o direito positivo é um prius, mas enquanto o positivismo explica a lei, o conceitualismo constrói os conceitos jurídicos pretensamente universais a partir dela".[81] Para o conceitualismo a ciência jurídica é dogmática, sendo que dogmática jurídica "...é lógica e tem por objetivo integrar o material positivo a partir do qual opera - o direito positivo em conceitos jurídicos..."[82] para depois fixar os princípios gerais (dogmas) que formam as linhas dominantes do conjunto[83]: Ou seja, o trabalho intelectual dos juristas devia consistir sobretudo na construção de um sistema de conceitos jurídicos. Mas não se tratava de conceitos obtidos pela reflexão puramente abstrata, como no jusracionalismo. Tratava-se antes de conceitos obtidos por indução a partir das máximas do direito positivo. Rudolf v. Jhering distingue claramente estas duas fases do trabalho do jurista. A primeira fase, a que chama 'jurisprudência inferior', consistiria pela 'ligação imediata à forma com que o direito aparece na lei, graças a uma relação puramente receptiva em relação às fontes'... A partir daqui, desenvolver-se-ia a 'jurisprudência superior' que produziria, por destilação e síntese da matéria-prima antes obtida, 'uma matéria absolutamente nova'..., o conceito. A função dos conceitos é, ao mesmo tempo, (i) facilitar a apreensão do direito, já que eles se tornam sintéticos e intuitivos', e (ii) tornar possível a produção de novas soluções jurídicas por meio do desenvolvimento conceitual, do chamado 'poder genético dos conceitos'. Ao proceder deste modo, o jurista estaria a adotar um método semelhante ao dos cientistas da natureza que, a partir da observação do real e da elaboração lógica dos resultados dessa observação, extraem princípios gerais subjacentes aos fatos empíricos (como a lei da atração universal, a velocidade da luz, as leis que presidem às combinatórias químicas). Princípios que, por sua vez, não apenas explicam as observações feitas, mas podem ser ainda logicamente combinados, produzindo novos princípios e teorias que, por seu turno, produzem conhecimentos novos sobre a realidade. Ou seja, princípios que não são apenas verdadeiros do ponto de vista formal, mas ainda ontologicamente fundados. No caso do direito, os princípios e conceitos obtidos pelo tratamento formal do material histórico e legislativo de um direito nacional seriam princípios como o princípio da vontade (Willensprinzip) no domínio dos negócios jurídicos, o princípio da elasticidade no domínio da propriedade, o da irrecuperabilidade da anulação de um ato jurídico, etc. Estes princípios explicariam e gerariam consequências normativas. Por exemplo, a de que devia ser absolutamente garantida a liberdade negocial, a de que ninguém pode ser representado por outrem sem um mandato correspondente, a de que a extinção de um direito real limitado (v.g., uma servidão ou um usufruto) reverte a favor do proprietário da coisa sobre que incidia, a de que um negócio jurídico nulo não pode ter quaisquer consequências (nem sequer aquelas com que as partes ou terceiros, de boa-fé, contavam) nem ter uma eficácia reduzida ou lateral (redução ou conversão de negócios jurídicos). Estas soluções seriam não apenas formalmente lógicas, mas ainda materialmente justas, porque os princípios de que elas decorriam existiriam de fato, embora a um nível não explícito, na realidade cultural de que o direito se alimentava.[84]
Portanto, o conceitualismo pretende formular os conceitos jurídicos universais: a propriedade, o contrato, o vínculo obrigacional, o direito real; que são noções que se obtêm mediante uma reflexão lógica, e por abstração, que vão separando os elementos particulares dos gerais: Dada a influência que vão ter na evolução subsequente da dogmática jurídica contemporânea, é útil destacar alguns dos resultados mais característicos da doutrina pandectística. (a) A teoria da subsunção (Subsumtionslehre) O primeiro deles é a 'teoria da subsunção', ou seja, a teoria segundo a qual a realização da justiça nos casos concretos seria assegurada subsumindo os 'fatos' ao 'direito', nos termos de um raciocínio de tipo silogístico, em que a premissa maior era um princípio de direito e a premissa menor a situação de fato (Tatbestand) a resolver. A teoria da subsunção - que conhece também uma versão legalista em que a premissa maior é a lei - tende a reduzir a atividade jurisprudencial a uma tarefa estéril de aplicação automática dos princípios jurídicos. Mas, por outro lado, teve um importante papel na contenção do arbítrio e do subjetivismo jurisprudencial. (b) O dogma da plenitude lógica do ordenamento jurídico. Embora o conjunto das normas legislativas não cubra todo o campo do juridicamente regulável (i.e., embora o ordenamento legislativo tenha lacunas), o ordenamento jurídico, concebido como sistema conceitual, já o cobriria. Na verdade, o caráter geral dos conceitos e a possibilidade de, por meio de operações lógicas, obter deles outros conceitos torna-os elásticos. Construído o sistema e definidas as suas regras de transformação (a sua 'gramática generativa'), pode-se projetá-lo sobre qualquer caso jurídico imaginável, por meio de uma jurisprudência 'criadora' ou 'construtiva'. Assim, ao juiz (que também não pode deixar de decidir com fundamento em que não existe direito aplicável) fica vedada, mesmo perante a existência de uma lacuna na lei, a avaliação do caso concreto segundo critérios autônomos de valoração. O que ele deve fazer, nesse caso, é estender, por dedução e combinação conceitual, o sistema normativo, de modo a cobrir o caso sub judice. (c) A interpretação 'objetivista'. A ideia de que o direito formava um sistema coerente de conceitos, hauridos do material legislativo empírico, fazia com que o sentido decisivo das normas jurídicas fosse o seu sentido sistemático. Por isso, o sentido de qualquer norma decorria da sua referência ao sistema normativo em que se integrasse. Enquanto que o positivismo legalista propunha uma interpretação da lei de acordo com as intenções do seu legislador histórico, o positivismo conceitualista propõe o recurso à ficção de um legislador 'razoável', i.e., de um legislador que vai integrando ('reescrevendo', 'reinterpretando') continuamente cada uma das normas no seu contexto sistemático, de modo que o ordenamento jurídico - de fato constituído por uma miríade de normas contraditórias - conserve sempre a sua integridade e coerência como sistema conceitual. O sentido da norma decorre, assim, não de intenções subjetivas (do seu legislador histórico), mas dos sentidos objetivos do seu contexto.[85]
Nessa perspectiva, resulta que os conceitos jurídicos não estão divorciados da realidade, vez que na verdade "...a realidade constitui uma realização da razão: todo o real é racional e todo o racional é real, como propunha Hegel".[86] A escola da exegese e o conceitualismo, que surgiram, respectivamente, em momentos sucessivos e que tiveram lugar em praticamente todo o século XIX, constituem autênticas etapas de consolidação do positivismo jurídico.[87] Antônio Manuel Hespanha traça uma característica comum às formas de positivismo jurídico analisadas acima: a recusa de subjetivismo e de moralismo: Para uns, positiva era apenas a lei, pelo que o saber jurídico tinha que incidir unicamente sobre ela, explicando-a e integrando-a (positivismo legalista). Para outros, positivo era o direito plasmado na vida, nas instituições ou num espírito do povo que se objetivava nas formas quotidianas observáveis de viver o direito (positivismo histórico)... Finalmente, para outros, positivos eram os conceitos jurídicos, genéricos e abstratos, rigorosamente construídos e concatenados, válidos independentemente da variabilidade da legislação positiva, obedecendo ao novo modelo de ciência como discurso de categorias teoréticas, estabelecido pelo kantismo (positivismo conceitual). O saber jurídico escaparia, assim, quer ao império da lei positiva, mutável e arbitrária, quer ao subjetivismo do doutrinarismo jus-teológico ou jusracionalista. Com isto, ganhava uma firmeza e universalidade que eram características das outras ciências. Ao mesmo tempo, instituía-se como um saber acumulativo, i.e., que ia acumulando certezas e progredindo sucessivamente - como as outras ciências - para formas mais perfeitas e completas de conhecimento. Ou seja, a ciência jurídica partilhava com as restantes a crença otimista no universalismo e no progressismo dos seus resultados. Todas estas formas de positivismo têm em comum a recusa de quaisquer formas de subjetivismo ou de moralismo. O saber jurídico (agora, a ciência jurídica) deve cultivar métodos objetivos e verificáveis, do gênero dos cultivados pela ciência "dura", dela devendo ser excluídas todas as considerações valorativas (políticas, morais). Estes juízos de valor em matéria jurídica teriam, decerto, o seu lugar. Mas esse não era o da ciência jurídica, mas sim o da filosofia do direito ou da política do direito.[88]
Mas então começa a surgir uma questão: o que ocorre, porém, quando as possibilidades de integração do texto legal não comportam um atendimento a contento de novos fatos emergentes?[89] Desse problema resultou o surgimento de inúmeras escolas críticas que, já no século XX, acabaram por gerar os mais interessantes, e quiçá mais importantes, debates jusfilosóficos da atualidade.[90]
3. Considerações Finais
O presente trabalho procurou salientar, logo de início, a importância perene que o problema da justiça ocupa no pensamento jurídico, a cujo respeito a filosofia kelseniana havia tentado afastar do espectro de preocupações dos juristas. A partir dessas considerações, foi percorrido o caminho, com ênfase nas relações entre direito e moral, que moldou o positivismo jurídico do século XIX e, em consequência, as teorias críticas que contra ele foram dirigidas; para, ao final, dada a recriação do cenário jurídico encontrado no início do século XX, abrir espaço para que o leitor tenha uma melhor compreensão do positivismo jurídico que veio a se sedimentar nos desenvolvimentos jusfilosóficos que se seguiram à doutrina de Kelsen.
Advirta-se que não se pode fazer nenhuma analogia entre o chamado positivismo jurídico e o positivismo filosófico, sob pena de se cair em erros grosseiros. Com efeito, segundo os ensinamentos de Norberto Bobbio, a "expressão 'positivismo jurídico' não deriva daquela de 'positivismo' em sentido filosófico, embora no século passado [século XIX] tenha havido uma certa ligação entre os dois termos, posto que alguns positivistas jurídicos eram também positivistas em sentido filosófico: mas em suas origens (que se encontram no início do século XIX) nada tem a ver com o positivismo filosófico - tanto é verdade que, enquanto o primeiro surge na Alemanha, o segundo surge na França. A expressão 'positivismo jurídico' deriva da locução direito positivo contraposta àquela de direito natural. Para compreender o significado do positivismo jurídico, portanto, é necessário esclarecer o sentido da expressão direito positivo" (BOBBIO, N. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, p. 15). Para Miguel Reale, "diz-se Direito Positivo aquele que tem, já teve, ou está em vias de ter vigência e eficácia" (REALE, M. Filosofia do direito, p. 601), o que é confirmado por Tercio Sampaio Ferraz Jr., para quem "Direito positivo (...) é aquele que vale em virtude de uma decisão e que só por força de uma nova decisão pode ser revogado" (FERRAZ JR., T.S. Direito, retórica e comunicação, p. 157). [2] Segundo Antônio Manuel Hespanha, uma das características da pós-modernidade é a de ter uma postura cética em relação ao caráter instrumental do direito, haja vista que "...muitos dos autores que se alinham nesta corrente assumem uma atitude cética e desiludida quanto às virtualidades reformadoras do direito oficial ou doutrinário em relação à sociedade", sendo essa uma perspectiva que "...conduz à crítica do 'instrumentalismo'- ou seja, à ideia ou pretensão de que o direito pode servir para modificar a sociedade..." (HESPANHA, A.M. Cultura jurídica européia: síntese de um milênio, p. 353). [3] Não se trata aqui da justiça em sentido formal, mas sim como uma questão moral. [4] Veja-se, por exemplo, a série de questões que Miguel Reale propõe acerca do problema da justiça: "Por que o Direito obriga? Quais as razões pelas quais nós, que nos temos em conta de seres livres, somos obrigados a nos subordinar a leis que não foram postas por nossa inteligência e por nossa vontade? É lícito contrariar as leis injustas? Qual o problema que se põe para o juiz ou para o estadista, quando uma lei positiva se revela, de maneira impressionante, contrária aos ditames do justo? Qual o fundamento do Direito na sua universalidade? Repousa ele apenas no fundamento empírico da força? Reduz-se o Direito ao valor utilitário do êxito? Brotará a estrutura jurídica, inexoravelmente, dos processos técnicos de produção econômica, ou representa algo capaz de se contrapor, muitas vezes, às exigências cegas da técnica? Ou o Direito terá fundamento contratual?" (REALE, M. Filosofia do direito, p. 308). [5] "O positivismo jurídico, oposto a qualquer teoria do direito natural, associado ao positivismo filosófico, negador de qualquer filosofia dos valores, foi a ideologia democrática dominante no Ocidente até o fim da Segunda Guerra Mundial. Elimina do direito qualquer referência à ideia de justiça e, da filosofia, qualquer referência a valores, procurando modelar tanto o direito como a filosofia pelas ciências, consideradas objetivas e impessoais e das quais compete eliminar tudo o que é subjetivo, portanto arbitrário" (PERELMAN, C. Lógica jurídica, p. 91). [6] KELSEN, H. Teoria geral do direito e do estado, p. 12. [7] Norberto Bobbio, por exemplo, define o direito natural como sendo a doutrina que "...considera poder estabelecer o que é justo e o que é injusto de modo universalmente válido", questionando logo em seguida as possibilidades dessa pretensão: "Mas, tem base essa pretensão? A julgar pelos desacordos entre os diferentes seguidores do direito natural sobre o que se deve considerar justo ou injusto, a julgar pelo fato de que o que era considerado natural para alguns não o era para outros, dever-se-ia responder que não" (BOBBIO, N. Teoría general del derecho, p. 28). Clássica é a definição de Cícero para o direito natural, para quem: "Existe uma lei verdadeira, que é a reta razão, que concorda com a natureza, difusa em todos, imutável e eterna; que nos reclama imperiosamente o cumprimento dos nossos deveres e que nos proíbe a fraude e nos afasta dela; cujos preceitos e proibições o homem bom (honestus) acatará sempre, enquanto que os perversos lhe serão surdos. Qualquer correção a esta lei será sacrílega, não sendo permitido revogar alguma das suas partes; não podemos ser dispensados dela nem pelo Senado nem pelo povo; não é necessário encontrar um Sextus Aelius para a interpretar; esta lei não é uma em Atenas e outra em Roma; mas é a única e mesma lei, imutável, eterna e que abrange em todos os tempos todas as nações. Um Deus único, senhor e imperador de todas as coisas, por si só, imaginou-a, deliberou-a e promulgou-a [...]" (citado por HESPANHA, A.M. Cultura jurídica européia: síntese de um milênio, p. 210, nota n. 347). [8] "Declarar a propriedade como um direito natural, porque é o único que corresponde à natureza, é uma tentativa de tornar absoluto um princípio especial que, historicamente, em certo tempo e sob certas condições políticas e econômicas, tornou-se Direito positivo. ...Por esse método sempre é possível sustentar e, pelo menos em aparência, provar postulados opostos. Se os princípios do Direito natural são apresentados para aprovar ou desaprovar uma ordem jurídica positiva, em qualquer dos casos, sua validade repousa em julgamentos de valor que não possuem qualquer objetividade. Uma análise crítica sempre demonstra que eles são apenas a expressão de certos interesses de grupo ou classe. Dessa maneira, a doutrina do Direito natural é às vezes conservadora, às vezes reformista ou revolucionária em caráter. Ela ou justifica o Direito positivo proclamando sua concordância com a ordem natural, racional ou divina, uma concordância afirmada, mas não provada; ou põe em questão a validade do Direito positivo sustentando que ele se encontra em contradição com algum dos pressupostos absolutos. A doutrina revolucionária do Direito natural, assim como a conservadora, preocupa-se não com a cognição do Direito positivo, da realidade jurídica, mas com sua defesa ou ataque, com uma tarefa política, não científica" (KELSEN, H. Teoria geral do direito e do estado, p. 16-17). [9] KELSEN, H. Teoria geral do direito e do estado, p. 17. [10] KELSEN, H. Teoria geral do direito e do estado, p. 18-19. Kelsen deu tanta importância ao problema da justiça que, além de inúmeros artigos, escreveu várias obras sobre o assunto, tais como A Ilusão da Justiça, O que é Justiça, O Problema da Justiça (na edição italiana dessa obra há um excelente ensaio de Mário Losano em que são descritas as principais críticas formuladas contra a Teoria Pura do Direito de Kelsen), além de um estudo que foi publicado como apêndice à 2ª edição (1960) alemã da Teoria Pura do Direito (Reine Rechtslehre) publicado em separado, na língua portuguesa, com o título A Justiça e o Direito Natural. [11] Depois da 2ª Guerra Mundial, diante das consequências funestas que a ideia de primazia da lei sobre a moral acarretou, Radbruch se converte à doutrina do direito natural, conforme salientado por Norberto Bobbio: "Uma formulação recente e exemplar dessa doutrina é oferecida por GUSTAV RADBRUCH na seguinte passagem: 'Quando uma lei nega conscientemente a vontade de justiça, por exemplo, quando concede arbitrariamente ou rechaça os direitos do homem, adoece de validez (...) os juristas também devem levar em conta o valor para negar-lhe o caráter jurídico', e em outra parte: 'Podem dar-se leis de conteúdo tão injusto e prejudicial que se faça necessário negar-lhes seu caráter jurídico (...) posto que há princípios jurídicos fundamentais que são mais fortes que qualquer normatividade jurídica até o ponto que uma lei que os contradiga venha a carecer de validez'; e mais ainda, 'quando a justiça não é aplicada, quando a igualdade, que constitui o núcleo da justiça, é conscientemente negada pelas normas do direito positivo, a lei não somente é direito injusto mas sim, em geral, carece de juridicidade' (Rechtsphilosophie, 4ª ed., 1950, págs. 336-353)" (BOBBIO, N. Teoría general del derecho, p. 27-28). [12] RABDRUCH, G. Introducción a la ciencia del derecho, p. 34. Vale dizer que nesse período Radbruch via no relativismo a razão mesma de ser do direito, conforme se depreende das seguintes passagens da sua obra que talvez mais influências tenha causado nos juristas, a qual, aliás, tem vários pontos convergentes com o pensamento de Kelsen: "O relativismo não é um simples e puro agnosticismo, é algo mais: uma fonte fecunda de conhecimento objetivo. Sobretudo, é o relativismo a única base possível para a força vinculante do direito positivo. Se existir um direito natural, uma verdade jurídica unívoca, reconhecível e comprovável, não seria possível ver de nenhuma maneira a razão da força vinculante do direito positivo, que apareceria em contradição com essa verdade absoluta. Deveria então desaparecer como o erro desmascarado ante à verdade desvelada. A força obrigatória do direito positivo somente pode fundar-se precisamente no fato de que o direito justo não é nem reconhecível nem demonstrável. Porque um juízo sobre a verdade ou falsidade das diferentes convicções jurídicas é impossível; posto que, de outra parte, se se requer um direito único para todos os sujeitos de direito, o legislador se vê desafiado à necessidade de cortar em um golpe o nó górdio que a ciência não consegue desatar. Posto que é impossível verificar o que é justo, deve-se estabelecer o que deve ser jurídico. Em vez de um ato de verdade, que é impossível, é necessário um ato de autoridade. O relativismo desemboca no positivismo. ...a decisão do legislador não é um ato de verdade, mas sim um ato de vontade, de autoridade. Este pode conferir a uma determinada opinião força obrigatória, porém nunca força convincente. (...) O relativismo desemboca no liberalismo. (...). O relativismo é a tolerância geral. Somente não é tolerância frente à intolerância" (RADBRUCH, G. Relativismo y derecho, p. 3-8). [13] Com relação a essa reação contra as teses positivistas, ver a seguinte obra de François Rigaux, em que o autor trata dos mais variados problemas de interpretação e aplicação das leis típicos do século XX: RIGAUX, F. A lei dos juízes. Tradução de Edmir Missio, São Paulo: Martins Fontes, 2000. [14] Para Kelsen a única possibilidade de se falar objetivamente em justiça seria equipar justiça e legalidade: "Nesse sentido, a 'justiça' significa legalidade", retirando-se a partir daí a regra formal da justiça, segundo a qual é "'justo' que uma regra geral seja aplicada em todos os casos em que, de acordo com seu conteúdo, esta regra deva ser aplicada. É 'injusto' que ela seja aplicada em um caso, mas não em outro caso similar. E isso parece 'injusto' sem levar em conta o valor da regra geral em si, sendo a aplicação desta o ponto em questão aqui. A justiça, no sentido de legalidade, é uma qualidade que se relaciona não com o conteúdo de uma ordem jurídica, mas com sua aplicação" (KELSEN, H. Teoria geral do direito e do estado, p. 20). Veja-se que o que se denomina igualdade na lei não significa outra coisa senão a aplicação da lei em conformidade consigo mesma, quer dizer, "...aplicação correta, qualquer que seja o conteúdo dessa lei. A igualdade na lei não é, pois, igualdade, senão conformidade à norma" (ABELLÁN, M.G. La técnica del precedente y la argumentación racional, p. 57). Essa interpretação do pensamento de Kelsen também é dada por Celso Antônio Bandeira de Mello: "Com efeito, Kelsen bem demonstrou que a igualdade perante a lei não possuiria significação peculiar alguma. O sentido relevante do princípio isonômico está na obrigação da igualdade na própria lei, vale dizer, entendida como limite para a lei. Por isso averbou o que segue: 'Colocar (o problema) da igualdade perante a lei, é colocar simplesmente que os órgãos de aplicação do direito não têm o direito de tomar em consideração senão as distinções feitas nas próprias leis a aplicar, o que se reduz a afirmar simplesmente o princípio da regularidade da aplicação do direito em geral; princípio que é imanente a toda ordem jurídica e o princípio da legalidade da aplicação das leis, que é imanente a todas as leis - em outros termos, o princípio de que as normas devem ser aplicadas conforme as normas.' (Teoria Pura do Direito, tradução francesa da 2a edição alemã, por Ch. Einsenmann, Paris, Dalloz, 1962, p.190)" (MELLO, C.A.B. de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, nota 2, p. 10). [15] Não se pode afirmar, no entanto, que essas preocupações haviam se extinguido durante a primeira metade do século XX. No Brasil, por exemplo, mesmo na época de maior esplendor da teoria pura do direito, Miguel Reale não admitia o que chamou de divórcio entre direito e justiça: "...não, a norma jurídica é a indicação de um caminho, porém, para percorrer um caminho, devo partir de determinado ponto e ser guiado por certa direção: o ponto de partida da norma é o fato, rumo a determinado valor. Desse modo, pela primeira vez, em meu livro 'Fundamentos do Direito' eu comecei a elaborar a tridimensionalidade. Direito não é só norma, como quer Kelsen, Direito não é só fato como rezam os marxistas ou os economistas do Direito, porque Direito não é economia. Direito não é produção econômica, mas envolve a produção econômica e nela interfere; o Direito não é principalmente valor, como pensam os adeptos do Direito Natural tomista, por exemplo, porque o Direito ao mesmo tempo é norma, é fato e é valor" (REALE, M. Teoria tridimensional do direito, p. 118-119). [16] "O vigor antilegalista das décadas que se seguiram à II Grande Guerra não é uma simples consequência de movimentos de natureza filosófica no domínio do direito. O trágico contexto político (ou mesmo civilizacional) dos totalitarismos contemporâneos e do cotejo de catástrofes por eles causados - ditaduras ferozes, genocídios, guerras - teve um enorme impacto sobre a consciência jurídica e obrigou a repensar a função do direito como garante de valores civilizacionais. Uma coisa ficou clara. O formalismo..., com o relativismo axiológico que lhe andava ligado..., não armava suficientemente os juristas para, enquanto juristas, se oporem a projetos políticos e jurídicos que negassem os valores fundamentais da cultura européia. A demonstração disto vinha da observação da realidade alemã, no período de entre guerras. A constituição e a cultura jurídica da república de Weimar eram filhas da ética formalista e axiologicamente neutral do kantismo e da pandectística. A legitimidade do direito (e do poder) fundava-se exclusivamente no fato de ser estabelecido de acordo com os processos constitucionalmente prescritos. Os seus valores de referência eram desprovidos de conteúdo (uma ética, um sistema de valores, uma crença religiosa, um sistema filosófico, uma visão de mundo) e apontavam apenas para a necessidade de observar uma forma (constitucionalidade orgânica e formal). O nacional-socialismo subiu ao poder respeitando basicamente essa forma e, uma vez no poder, instaurou uma nova forma que, por sua vez, legitimava a sua ação política. (...). No fim da Guerra, gerou-se, portanto, um movimento espontâneo de refundamentação do direito em valores suprapositivos, indisponíveis para o legislador. Os grandes julgamentos dos criminosos de guerra (de Nuremberg e de Tóquio) já pressupunham a existência de um direito suprapositivo, em face do qual se pudessem ser considerados, como criminosas, ações permitidas pelas ordens jurídicas à sombra das quais tais ações tinham sido praticadas" (HESPANHA, A.M. Cultura jurídica européia: síntese de um milênio, p. 333-334). [17] Como, por exemplo, a nova postura de Radbruch, anteriormente citada; ou a retomada do pensamento patrístico segundo o qual uma lei injusta não é lei: "non videtur esse lex quae non fuerit" - Santo Agostinho I, De Libero Arbitrio, 5; Santo Tomás de Aquino, Summa Theologica, Qual, XCX, ARTS. 2, 4, citados por HART, H. O conceito de direito, p. 12, nota n. 1), cuja aplicação se faz sentir, por exemplo, em algumas teorias de uso alternativo do direito. Ainda quanto a esse renascimento do direito natural, vale mencionar a seguinte constatação de Alf Ross: "...não é de se surpreender que o direito natural tenha voltado a prosperar em princípios do século XX e que tenha, desde então, se expandido em tal medida que é comum falar-se de um renascimento do direito natural. Os abalos tremendos da política e da economia que caracterizam este século [século XX] têm fomentado a ânsia de descobrir algo absoluto num mundo em dissolução e mergulhado no caos" (ROSS, A. Direito e justiça, p. 296). [18] Norberto Bobbio e Herbert Hart são bons exemplos de autores que podem aqui ser enquadrados. Vejase, por exemplo, a seguinte passagem em que Bobbio admite ao intérprete a possibilidade de considerar o valor do justo, em alguns casos, quando da aplicação da norma: "A jurisprudência, por outro lado, enquanto coloca como objeto próprio proposições normativas já dadas (resultado elas mesmas de um estudo empírico precedente que o jurista deve respeitar até o limite do absurdo manifesto ou da injustiça escandalosa), consta exclusivamente da parte crítica própria de todo sistema científico, quer dizer, da construção de uma linguagem rigorosa com fins de plena comunicabilidade das experiências fixadas de antemão" (BOBBIO, N. El objeto de la jurisprudencia y la jurisprudencia como análisis del lenguaje. In: Contribuición a la Teoría del Derecho, p. 181-184). [19] Como, por exemplo, o que se tem denominado por alguns como o pós-positivismo de Dworkin; o agir comunicativo de Habermas; a nova retórica de Perelman. [20] Aqui podem ser inseridas as várias doutrinas de direito natural. [21] Aqui se enquadra o positivismo jurídico e seus desdobramentos, que acabaram por culminar no normativismo jurídico de Hans Kelsen. [22] Aqui têm sido enquadradas teorias como as de Dworkin, Habermas, Perelman, Rawls e Viehweg, se bem que o pensamento de Dworkin pretende, em verdade, a busca de uma moral dentro, ou seja, imanente ao sistema, aspecto que o aproxima mais do positivismo. [23] PERELMAN, C. Lógica jurídica, p.29. [24] HESPANHA, A.M. Cultura jurídica européia: síntese de um milênio. p. 162-163. Na continuidade, o autor trata especificamente das características do pensamento medieval relativamente às nominadas vertentes voluntarista e racionalista: "...É isto mesmo que podemos verificar na formação do saber jurídico medieval: se, por um lado, a podemos ligar à 'libertação da razão'consequente à revolução escolástica, não parece menos correto relacioná-la com a atitude respeitosa dos juristas perante os textos da tradição jurídica, o que os obrigava a uma atividade que, sendo profundamente inovadora, se desenvolva sob a capa de uma mera interpretação, só possível, no entanto, com o desenvolvimento de um imponente instrumental lógicodogmático. Sintetizando as duas posições, podemos dizer que convergem na produção do ambiente favorável à constituição da doutrina jurídica medieval dois tipos de fatores: (i) fatores 'filosóficos', que contribuem para a crença do poder da razão, e (ii) fatores ligados ao modo de ser do sistema das fontes de direito, que cria aos juristas a necessidade de se servirem da razão. Para além destes, são ainda relevantes (iii) fatores 'institucionais', os quais vêm constituir o ambiente institucional favorável ao exercício e ao desenvolvimento da 'razão jurídica'" (idem, p. 163). [25] "Toda a Alta Idade Média até o advento da escolástica aceitou, sem grandes desacordos, a síntese teológica e filosófica de Santo Agostinho (354-430 d.C.). O agustinianismo jurídico traduz-se precisamente num voluntarismo. Na verdade, para o bispo de Hipona, a única fonte do direito é a vontade de Deus; vontade em geral insondável, mas revelada parcialmente pelas Escrituras e manifestada em cada momento pela ordenação providencial da história. Daqui decorrem várias consequências. Primeiro, a inexistência de uma ordem jurídica objetiva, natural, na qual certos atos estivessem inevitavelmente condenados e outros necessariamente permitidos. Assim, Santo Agostinho acaba por admitir a legitimidade de certos atos (à primeira vista injustos) por se inserirem no plano divino da Salvação inacessível à razão humana. Nesta perspectiva, as coisas não são queridas por Deus porque sejam justas, mas são justas porque queridas por Deus. Depois, como segunda consequência, a importância da razão para atingir o critério de justiça. Efetivamente, este critério consiste na, digamos, vontade arbitrária de Deus e esta - já o dissemos - não pode ser atingida por meios humanos, restando apenas, como último recurso, a submissão aos Livros Sagrados e aos poderes constituídos na terra por graça da Providência. Por último, esta aceitação dos poderes constituídos (postos), que retiram a sua autoridade de uma espécie de mandato divino ('É por Mim que os tiranos reinam'), implica a aceitação dos direitos positivos terrenos (por injustos e imorais que sejam), pois eles teriam uma razão de ser escondida, um sentido oculto, na história da Salvação. Voluntarismo, antiracionalismo, positivismo tais são os ingredientes que o agustinianismo traz ao entendimento do direito da primeira Idade Média. Qual deles o mais contrário à constituição de uma 'ciência do justo e do injusto'. De fato, a esta luz, a única atividade legítima do jurista era a leitura humilde e a submissão passiva em relação ao direito revelado ou positivo ('Aderindo a Ele vivemos com justiça; e somos tanto mais ou tanto menos justos, quanto mais ou menos a Ele aderimos', Ep., 120, 4)" (HESPANHA, A.M. Cultura jurídica européia: síntese de um milênio, p. 164). Conforme afirmado acima, o "...agustinianismo está na origem do pensamento filosófico e filosófico-jurídico dos franciscanos Duns Scott e Guilherme de Ockham, os quais ...estão na origem do pensamento jurídico moderno, concretamente, das orientações positivistas dos dois últimos séculos; ainda nesta direção, a filosofia jurídica da Reforma (Lutero e Calvino)" (Idem, p. 164, nota n. 162). [26] Em contraposição à postura agustiniana segundo a qual a atitude racional se confundiria com uma submissão passiva ao direito revelado ou positivo, o pensamento escolástico - vide Abelardo e Santo Tomás de Aquino - ao restabelecer a ideia medieval, recuperada do período que antecedeu ao pensamento de Santo Agostinho, "...de que a razão era limitada, de que - em muitos domínios - não podia haver uma posse definitiva da verdade das coisas", "...mas que apenas se podia peregrinar para a verdade", concluiu que, por essas razões, "...não se podia excluir, de antemão, qualquer ponto de vista teórico sobre um certo problema. A investigação intelectual adquire, assim, um tom dialogante, em que as várias opiniões são confrontadas e em que, mais do que uma solução definitiva, interessa o pôr da questão. O alcance da verdade é encarado, não como tarefa que possa ser levada a cabo isoladamente por meio da razão individual, mas como uma obra coletiva em que todos colaboram, na discussão e confrontos de opiniões. É esta humildade perante a 'verdade' das coisas que torna simpático o pensamento medieval, embora não seja deste gênero a ideia que dele se faz, comumente. Assim, o pensamento medieval dos séculos XII e XIII - e, concretamente, o seu pensamento jurídico - é um pensamento de tipo problemático, e não sistemático. Isto é, não se preocupa com que as soluções dadas aos problemas surgidos num dos ramos do saber constituam um todo lógico isento de contradição (ou seja, que constituam um sistema). Mais do que a perfeita integração das soluções numa unidade lógica e sistemática, interessa-lhe a adequação destas aos dados concretos do problema a que visam responder. Daí que o ensino e a própria literatura teórica não se apresentassem como a forma - hoje corrente - de exposições sistematicamente ordenadas, dotadas de uma arquitetura lógica bem visível, mas como coletâneas de soluções de problemas controversos (casus, quaestiones disputatae, etc.). Tudo isto se reflete no pensamento jurídico. Agora que a razão tem a sua 'carta de alforria', a teoria agustiniana das fontes do direito deixa de ser aceitável. Para o pensamento escolástico, cuja figura maior é S. Tomás de Aquino, o direito contido nas Escrituras (direito divino) ou aquele editado pelos reis (direito positivo) não eram os elementos decisivos para encontrar o iustum, a solução justa, que constituía o corpo do direito (ius est quod iustum est, o direito é o que é justo). Esse iustum, esse direito decisivo, era anterior a todo o direito positivo, estava inscrito numa ordem natural, estabelecida por Deus, mas à qual Ele próprio obedecia. E esta ordem era desvendável por um uso correto da razão (recta ratio), i.e., por um uso da razão disciplinado por certas regras de discorrer. O direito, portanto, deixa de estar todo feito nas fontes de direito (escrituras ou legais), onde só falta ir colhê-lo. Pelo contrário, a solução jurídica deve ser encontrada em cada momento, através de uma específica e precisa técnica de investigação (ars inveniendi, arte de encontrar) que, já sabemos, concede um grande papel à discussão e à investigação casuísticas. São os processos específicos desta ars inveniendi que explicarão, juntamente com outras razões referidas, o modo de ser do pensamento jurídico, do ensino jurídico e da literatura jurídica dos séculos XII e XIII" (HESPANHA, A.M. Cultura jurídica européia: síntese de um milênio, p. 165-166). A ideia escolástica segundo a qual também Deus está vinculado ao iustum inscrito na ordem natural decorre da teoria, de inspiração aristotélica, das causas segundas, em que "...Deus, Causa Primeira de tudo, se abstém de agir sobre cada fato particular; como por economia de meios, entrega uma parte da Sua tarefa ao funcionamento automático das leis naturais que imprimiu na natureza, só as violando em caso de milagre" (idem, p. 166, nota n. 265). [27] Aqui não uma ordem social deduzida da razão, mas sim uma ordem natural que a ela se impõe. [28] "O direito, como em geral a organização da cidade (grego, polis), tinham como fundamento a ordem divina da Criação. Por isso, os juristas identificavam a justiça com a natureza e esta com Deus. Num célebre texto do Digesto (D., 1, 1, 1, 3) em que se define o direito mais fundamental e inderrogável - o chamado 'direito natural' - explica-se que 'o direito natural é o que a natureza ensinou a todos os animais'(ius naturale est quod natura omnia animalia docuit). E um comentador medieval do texto esclarece, numa curta glosa à palavra 'natureza', que esta não é senão Deus (natura, id est Deus). Daí o êxito de um outro texto do Digesto que definia a prudência (= saber prático) do direito (que, então, desempenhava o papel de teoria política) como uma 'ciência do justo e do injusto, baseada no conhecimento das coisas divinas e humanas' (divinarum atque humanarum rerum notitia, iusti atque iniusti scientia, D, I, 1, 10, 2). E foi por isso também que os juristas foram tidos como quase sacerdotes, também na esteira de um texto do início do Digesto" (HESPANHA, A.M. Cultura jurídica européia: síntese de um milênio, p. 75). [29] Alf Ross demonstra a forma pela qual, segundo o pensamento escolástico sobretudo de Santo Tom[as de Aquino, era possível apreender as leis naturais: "Qual é, então, a lei que a razão seguirá a fim de guiar a vontade para o verdadeiro bem? Em sua perfeição é a lei eterna, idêntica à razão soberana de Deus, a sabedoria divina, que governa todos os seres criados, que rege todos os movimentos da natureza e todas as ações. As leis restantes extraem sua força dessa lei. Porém, a lei eterna não pode ser captada em sua perfeição pelo ser humano. Na medida em que pode ser apreendida pelo ser humano com o auxílio exclusivo da luz natural (razão) chama-se direito natural. Mas isto não é o bastante para capacitar o ser humano a alcançar seu propósito divino. E, consequentemente, Deus, por revelação, concedeu ao ser humano, a título de orientação adicional, uma participação na lei eterna: tal é a lei divina (a lei mosaica e o Evangelho). Finalmente, há a lei humana estabelecida pelo ser humano com a ajuda da razão e necessária para permitir a concreta aplicação daqueles princípios básicos que estão expressos na lei divina e na lei natural" (ROSS, A. Direito e justiça, p. 285). Segundo o pensamento de Antônio Manuel Hespanha, já se falou por várias vezes de "...direito natural e de natureza das coisas. São ideias que, nascidas entre os gregos, atravessaram toda a Idade Média com fortuna e sentidos diferentes, e se reinstalaram na Época Moderna. Encontramo-nos com o direito natural, por exemplo, quando nos referimos a São Tomás de Aquino... Na esteira de Aristóteles, São Tomás aceitava a existência de uma ordem natural das coisas, tanto físicas (entia physica) como humanas (entia moralia), ordem já constatada pelos clássicos e que era confirmada pela crença cristã num Deus inteligente e bom, criador e ordenador do mundo. Pelo menos, a teoria escolástica das 'causas segundas' era neste sentido. A cada espécie teria atribuído Deus (como 'Causa Primeira') uma lei natural ('causa segunda') o fogo sobe, por natureza, os corpos pesados caem, etc. - salvo caso de milagre (i.e., salvo intervenção extraordinária de Deus). Estas naturezas das várias espécies harmonizar-se-iam todas em função do Bem Supremo, de tal modo que o mundo estaria cheio de ordem e os movimentos dos seres ou das espécies de seres obedeceriam a uma regulação cósmica. E o mesmo se diga do homem. Também a espécie humana teria uma certa natureza, ou seja, estaria integrada de certo modo na ordem e no destino cósmicos. A ideia de direito natural parte precisamente daqui. A partir de uma pesquisa dos fins do homem e do seu contributo para o plano da criação, elaborar as regras que deviam presidir à prática humana, de modo a que esta resultasse adequada aos desígnios de Deus quanto à vida em sociedade e quanto ao lugar do homem na totalidade dos seres criados. Tais regras, umas formuladas nas Escrituras (direito divino), outras daí ausentes mas manifestadas pela própria ordem do mundo e atingíveis pelo intelecto, se bem ordenado (recta ratio, boa razão), constituem o direito natural. Simplesmente, São Tomás combinava a sua confiança na capacidade do homem para conhecer a ordem do mundo com o sentimento de que este conhecimento não podia ser obtido por processos estritamente racionais... Por um lado, a descoberta da ordem natural das coisas não podia provir de um acesso direto às ideias divinas, vedado ao homem, em virtude do pecado. Por outro lado, não seria atingida por uma especulação meramente abstrata. Começava por pressupor um trabalho de observação dos fatos, dos resultados restritos e imperfeitos da nossa experiência. Esta observação devia ser orientada e complementada pela elaboração intelectual.. Mas o intelecto não se compunha apenas de faculdades de raciocínio (razão), mas também de faculdades morais (virtudes). Nomeadamente, o raciocinar sobre a ordem das coisas dependia da virtude da bondade, ou seja da capacidade moral de perceber o sentido global da ordem e, por isso, de distinguir o justo do injusto. Daí que a razão tenha que ter um qualificativo moral para ser eficaz - tem que ser uma 'boa razão'(recta ratio). Por outro lado, a mobilidade essencial das coisas humanas, provocada pela existência de liberdade no homem, levava a que não fosse possível encontrar princípios invariáveis de justiça. E, daí, que fosse impossível estabelecer uma ciência do direito natural que desembocasse na formulação de um código de regras permanentes. Tudo o que se podia afirmar, neste domínio, era a existência de um vago e formal princípio de que 'se deve fazer o bem e evitar o mal'. Se, pelo contrário, se passasse para a regulamentração concreta, tudo seria mutável e sujeito a um contínuo exame de ponderação. À pretensão de uma ciência do natural, substitui, portanto, São Tomás a proposta de uma arte de, em cada momento, para cada caso, encontrar o justo (ius suum cuique tribuere). E nisto também se encontrava com o ensinamento de Aristóteles" (HESPANHA, A.M. Cultura jurídica européia: síntese de um milênio, p. 206-207). [30] Assim, admite-se a existência de uma legislação positiva fruto da vontade humana, desde que não se choque com a lei natural: lei injusta não é lei. Essa concepção é afinada com as ideias de Aristóteles, para quem a "...justiça política é em parte natural e em parte legal; são naturais as coisas que em todos os lugares têm a mesma força e não dependem de as aceitarmos ou não, e é legal aquilo que a princípio pode ser determinado indiferentemente de uma maneira ou de outra, mas depois de determinado já não é indiferente..." (ARISTÓTELES. Ética a nicômacos, p. 103). Porém os escolásticos já não admitiam que as leis postas pudessem ser indiferentes à lei natural, que nesse momento passa a ter a primazia. [31] "Salientava-se então, de fato, a ideia do caráter natural da constituição social, i.e., de que a organização social depende da natureza das coisas e de que está, por isso, para além do poder de disposição da vontade. As leis fundamentais ('constituição') de uma sociedade (de um reino) dependiam tão pouco da vontade como a fisiologia do corpo humano ou a ordem da natureza. É certo que soberano e vassalos podem temporariamente afastar-se das leis naturais de ordenação social, pela tirania ou pela revolução; mas o mau governo, 'contra o qual as próprias pedras clamarão', é sempre um episódio político passageiro. O que os povos já poderão é eleger - embora de acordo, também, com características objetivas das várias nações, por sua vez ligadas às particularidades da terra e do clima - as formas de governo: a monarquia, a aristocracia, a democracia ou qualquer forma de governo misto, proveniente do cruzamento destes regimes-tipo referidos por Aristóteles. Como podem explicitar e adaptar às condições de cada comunidade, através do direito civil (ius civile, isto é, do direito da cidade) os princípios jurídicos decorrentes da natureza das sociedades humanas (direito natural, ius naturale). Mas a constituição natural conserva-se sempre como o critério superior para aferir a legitimidade do direito estabelecido pelo poder, sendo tão vigente e positivo com o este. Nestes termos, o direito - todo ele, mas sobretudo o natural - desempenha uma função constitucional. Impõe-se a todo o poder. Não pode ou, pelo menos, não deve ser alterado. E isto porque se funda nos princípios necessários de toda a convivência humana (affectio societatis)" (HESPANHA, A.M. Cultura
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jurídica européia: síntese de um milênio, p. 77). [32] "...O direito divino (ius divinum) - que decorria diretamente da Revelação - estava tão intimamente embebido no direito secular (ius civile) que o último não podia contrariar no essencial os comandos do primeiro. Daqui decorriam as limitações ético-religiosas do direito secular ..., a fundamental indistinção entre crime e pecado, a competência indistinta de ambas as ordens para lidar com certas situações, bem como o seu apoio mútuo..." (HESPANHA, A.M. Cultura jurídica européia: síntese de um milênio, p. 33). [33] "A ideia do direito natural, neste novo sentido, vem a impor-se decisivamente na cultura jurídica européia do século XVII. De alguma forma, o novo direito natural, fundado na razão, é o correspondente do antigo direito natural, fundado na teologia. O pensamento social e jurídico laicizara-se. O que não é estranho ao fato de, pela primeira vez, se ter quebrado a unidade religiosa da Europa (com a Reforma) e de se ter entrado em contato com povos totalmente alheios à tradição religiosa européia. Uma e outra coisa tornavam, de fato, necessário encontrar um direito que pudesse valer independentemente da identidade de crenças. E, com esta laicização, o fundamento do direito passara a residir em valores laicos, tão comuns aos homens como as evidências racionais. (...). Trata-se, como se disse, de um novo jusnaturalismo. Desde logo, emancipado de uma fundamentação religiosa, ainda que os seus fundadores, na sua maior parte, fossem deístas ou mesmo cristãos. Seja como for, prescindiram, por um lado, da onipotência da vontade de Deus, limitando-a pela Sua razão, ou seja, concebendo um Deus sujeito a princípios lógico-racionais que lhe seriam 'anteriores', o que corresponde, não a uma atitude religiosa, mas a uma atitude racionalista. Por outro lado, os fundamentos de que partiam para encontrar uma ordem imanente na natureza humana não eram qualquer vocação, destino ou finalidade sobrenaturais do homem, ou quaisquer dados da fé sobre isso, mas antes as suas características puramente temporais, como o instinto e a capacidade racional. Ao prescindirem dos dados da fé, estes jusnaturalismos ficam a poder contar apenas com a observação e com a razão como meios de acesso à ordem da natureza. A observação - histórica e atual - das sociedades humanas é muito utilizada por estes autores, estando as suas obras plenas de exemplos tirados da história ou da observação contemporânea, com os quais apoiavam, tanto os traços permanentes da natureza humana e social, como as suas variantes 'locais'. Mas, ao lado da observação, funcionava a razão que, à maneira do que acontecia na física ou na matemática, (i) identificava axiomas sobre a natureza do homem - v.g., o homem é dirigido pelo instinto de conservação (Locke), o homem tem um direito natural à autodefesa e ao castigo das injúrias que lhe são feitas (Locke), a justiça é o que se conforma, ao mesmo tempo, com a justiça e com a bondade (Leibniz), a vontade geral é mais do que a soma das vontades particulares (Rousseau) - e (ii) definia os procedimentos intelectuais capazes de deduzir desses axiomas outras normas. Estes procedimentos eram, em geral, os que correspondiam ao raciocínio da física ou da matemática"(HESPANHA, A.M. Cultura jurídica européia: síntese de um milênio, p. 213-214). [34] "...o jurista culto e formado numa filosofia sólida compreende que a 'natureza da justiça não é mudar segundo a vontade dos homens mas conformar-se com a lei natural'(Jean Bodin), lei essa que se encontra nos ditames da razão" (HESPANHA, A.M. Cultura jurídica européia: síntese de um milênio, p. 189). [35] PERELMAN, C. Lógica jurídica, p. 17. [36] Foi esse o ideal de Grotius, Pufendorf, Leibniz e Christian Wolff. Tal concepção vê a possibilidade de enunciar o direito a partir de um sistema dedutivo, sendo que em "...tal acepção diz-se que um dado ordenamento é um sistema enquanto todas as normas jurídicas daquele ordenamento são deriváveis de alguns princípios gerais (ditos 'princípios gerais do Direito'), considerados da mesma maneira que os postulados de um sistema científico. Essa acepção muito trabalhada do termo 'sistema' foi referida historicamente somente ao ordenamento do Direito natural. Uma das mais constantes pretensões dos jusnaturalistas modernos, pertencentes à escola racionalista, foi a de construir o Direito natural como um sistema dedutivo. E uma vez que o exemplo clássico do sistema dedutivo era a geometria de Euclides, a pretensão dos jusnaturalistas resolvia-se na tentativa (verdadeiramente desesperada) de elaborar um sistema jurídico geometrico more demonstratum. Citemos um trecho muito significativo de Leibniz: 'De qualquer definição podem-se tirar consequências seguras, empregando as incontestáveis regras da lógica. Isso é precisamente o que se faz construindo as ciências necessárias e demonstrativas, que não dependem dos fatos mas unicamente da razão, como a lógica, a metafísica, a geometria, a ciência do movimento, a Ciência do Direito, as quais não são de modo nenhum fundadas na experiência e nos fatos, mas servem para dar a razão dos fatos e regulá-los por antecipação: isso valeria para o Direito ainda que não houvesse no mundo uma só lei'. 'A Teoria do Direito faz parte do número daquelas que não dependem de experiências, mas de definições: não do que mostram os sentidos, mas do que demonstra a razão" (BOBBIO, N. Teoria do ordenamento jurídico, p. 77-78). [37] PERELMAN, C. Lógica jurídica, p. 17-18. [38] Jurisprudência entendida aqui no seu sentido primordial, ou seja, como ciência do direito. [39] PERELMAN, C. Lógica jurídica, p. 18. [40] PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica, p. 18. [41] "Se quisermos encontrar uma teoria completa e consequente do positivismo jurídico, devemos nos remeter à doutrina política de THOMAS HOBBES, cuja característica fundamental, no meu entender, na verdade consiste em lhe ter dado um golpe fatal no jusnaturalismo clássico" (BOBBIO, N. Teoría general del derecho, p. 31). [42] Bobbio apresenta uma boa descrição dos passos que permitiram a Hobbes chegar a uma conclusão tão radical como a acima descrita, em que inclusive o conteúdo dos valores morais e da justiça são tidos como convencionais (portanto contingentes) e não pré-existentes ou decorrentes da razão (inatos e necessários), como sustentavam os jusnaturalistas: "Como chega HOBBES a esta conclusão tão radical? HOBBES é um
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dedutivo e, como todos os dedutivos, para ele o que conta é que a conclusão se desprenda rigorosamente das premissas. (...). Ora, o direito fundamental que assiste aos homens no estado de natureza é o de decidir, cada um segundo seus próprios desejos e interesses, sobre o que é justo ou injusto, o que faz com que no estado de natureza não exista critério algum para fazer esta distinção, a não ser o arbítrio e o poder do indivíduo. Na passagem do estado de natureza para o estado civil, os indivíduos transferem todos os seus direitos naturais ao soberano, inclusive o direito de decidir o que é justo ou injusto e, portanto, desde o momento em que se constitui o estado civil, o único critério do justo e do injusto é a vontade do soberano. Esta doutrina hobbesiana está ligada à concepção da pura convencionalidade dos valores morais e portanto da justiça, segundo a qual não existe o justo por natureza, mas sim unicamente o justo de maneira convencional (também por este aspecto a doutrina hobbesiana é a antítese da doutrina jusnaturalista). No estado de natureza não existe o justo nem o injusto porque não existem convenções válidas. No estado civil o justo e o injusto residem no acordo comum dos indivíduos de atribuírem ao soberano o poder de decidir sobre o justo e o injusto. Portanto para HOBBES a validade de uma norma jurídica e de sua justiça não se diferenciam, porque a justiça e a injustiça nascem juntas com o direito positivo, ou seja, concomitantemente com a validade. Enquanto se permanece em estado de natureza não há direito válido, como tampouco há justiça; quando surge o Estado nasce a justiça, mas nasce concomitantemente com o direito positivo, por isso que onde não há direito tampouco há justiça e onde há justiça é porque há um sistema constituído de direito positivo" (BOBBIO, N. Teoría general del derecho, p. 31-32). No mesmo sentido, vejam-se as palavras de Antonio Carlos Wolkmer: "... Ora, enquanto Maquiavel distinguiu a política da moral e da religião, Hobbes põe a política acima da moral, redefinindo o exercício da autoridade através do princípio do absolutismo. Pode-se afirmar que Hobbes não só é um dos fundadores do moderno Estado absolutista, como, sobretudo, o principal teórico da formação do monismo jurídico ocidental, ou seja, um dos primeiros a identificar o Direito com o Direito do soberano e, igualmente, o Direito Estatal com o Direito Legislativo" (WOLKMER, A.C. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito, p. 50).
A inexistência de uma jurisprudência universal é constatada por Montesquieu a partir das comparações que fez entre os sistemas normativos de vários povos, em que se revelaram imperfeições no trabalho do legislador, que deve se adaptar às sociedades em que atua.
Segundo Antônio Manuel Hespanha, a Revolução Francesa "...tinha sido feita também contra a tirania dos juízes que, apoiados no caráter casuísta e flexível do direito tradicional..., tornavam o direito num saber hermético, cujos resultados eram imprevisíveis e incontroláveis pelo cidadão", o que suscitou ..."um movimento de crítica à incerteza e hermetismo do direito doutrinal e jurisprudencial e reclamando leis claras e reformas judiciárias que amarrassem os juízes ao cumprimento estrito da lei. Daí que o legalismo e a desconfiança no direito jurisprudencial - que já vinham de trás e tinham marcado a política do direito do Estado absoluto - se tenham transformado em componentes essenciais das propostas revolucionárias. Pois, se havia lugar a falar nos perigos do 'espírito de facção', era decerto legítimo fazê-lo em relação aos juristas e aos juízes, tanto como em relação aos funcionários ou às elites políticas. Princípio democrático e sensibilidade anti-'letrada' explicam que - no contexto europeu (mas não no contexto americano) - as decisões dos juristas e os veredictos dos juízes sejam tidos em suspeição e as suas decisões não possam senão visar a aplicação estrita da lei; agora, os juízes não são mais do que a 'longa mão da lei', a 'boca que pronuncia as palavras do legislador'" (HESPANHA, A.M. Cultura jurídica européia: síntese de um milênio, p. 246). [57] "Uma outra versão de contrato social é a de John Locke (1632-1704), segundo o qual a constituição do estado político não cancela os direitos de que os indivíduos dispunham no estado de natureza. Na verdade, o estado político apenas garantiria uma melhor administração dos direitos naturais, substituindo a autodefesa e a vingança privada pela tutela de uma autoridade pública. Por isso mesmo, o soberano, que não era a fonte nem do direito de natureza nem dos direitos individuais daí decorrentes, estava obrigado a respeitar o direito natural e os direitos políticos dos cidadãos: '[...] sendo o legislativo apenas um poder fiduciário para agir no sentido de certos fins, continua a permanecer no povo um poder supremo para remover ou alterar o legislativo, quando achar que o legislativo age contrariamente à confiança que se lhe deu [...]. E, assim, a comunidade retém permanentemente o poder supremo de se libertar dos atentados e desígnios de qualquer um, mesmo dos seus legisladores, desde que eles sejam tão estultos ou danados para formar ou levar a cabo desígnios contra as liberdades e propriedades dos súditos... Assim, do ponto de vista das formas políticas, vamos ver o jusracionalismo desdobrar-se em duas grandes orientações: a demo-liberal, inaugurada por John Locke e desenvolvida pelos jusracionalistas franceses, e a absolutista, com origem em Thomas Hobbes e com um representante de nota em Samuel Pufendorf" (HESPANHA, A.M. Cultura jurídica européia: síntese de um milênio, p. 218). [58] ROSSEAU, J.J. Do contrato social, p. 59-60. [59] Cf. ROUSSEAU, J.J. Do contrato social, p. 92. [60] PERELMAN, C. Lógica jurídica, p. 23. [61] "Desde os meados do século XVIII que a lei estadual tendia a monopolizar a atenção dos juristas. Este monopólio era, no entanto, temperado pelas ideias jusracionalistas, ou seja, pela crença na existência de um direito suprapositivo com origem na razão. Já nos finais do século XVIII, alguns Estados europeus incorporaram em reformas legislativas amplas os principais resultados das doutrinas jusracionalistas. (...). Mas foi sobretudo em França que a codificação, produto (embora não na sua fase inicial) da Revolução, mudou mais radicalmente a face do direito, fazendo tábua rasa do direito anterior e promovendo, por isso, a identificação do direito com os novos códigos. De fato, já a Assembléia Nacional Constituinte de 1790 tinha concebido o projeto de um código que sintetizasse, de uma forma acessível a todos, o novo direito revolucionário. Mas foi só em 1804, já durante o Consulado e sob a influência direta de Napoleão I, que o Code civil conheceu a sua versão definitiva e foi promulgado (1804). Seguiram-se os Código de processo civil (1806), o Código comercial (1807), o Código penal (1810), etc." (HESPANHA, A.M. Cultura jurídica européia: síntese de um milênio, p. 267).
"A Escola da Exegese estava intimamente ligada ao ambiente político e jurídico francês, ou seja, a um Estado nacional revolucionário, em corte com o passado, dotado de órgãos representativos e que tinha empreendido uma importante tarefa de codificação. Isto determina a disseminação dos princípios desta escola noutros países, retardando-a, nomeadamente, nos casos em que estes requisitos não estivessem realizados. É este, nomeadamente, o caso da Alemanha e da Itália, nações não só sem código, mas também sem Estado. O balanço da orientação exegética que dominou o saber jurídico europeu na primeira metade do século XIX não pode ser feito apenas à luz das ulteriores experiências negativas do legalismo... Deve começar por se valorizar de forma adequada a medida em que (sic) a ideia de um código 'civil' geral (i.e., dos cidadãos) reflete o pathos da ideia de igualdade dos cidadãos, típica dos novos Estados pós-revolucionários, igualdade que os códigos pretendiam garantir justamente pela sua generalidade e pela estrita subordinação dos juízes aos seus preceitos. Por outro lado, a ideia de um código, compacto, organizado e claro, visava facilitar a democratização do direito, pela generalização do seu conhecimento, evitando, deste modo, que os juristas tivessem que ser os mediadores forçosos entre o direito e o povo. Para além de que não se deve esquecer que as grandes e rápidas mudanças sociais e políticas dos finais do séc. XVIII e inícios do séc. XIX só podiam ser institucionalizadas por via legislativa. De fato, o costume, a jurisprudência ou a doutrina são meios inadequados, pela sua própria natureza, para estabelecerem rupturas revolucionárias. Por outro lado, é cada vez mais claro como se possa justificar a ideia de que a Escola da Exegese impediu o desenvolvimento de um direito jurisprudencial bastante autônomo em relação aos códigos. Na verdade, para além de que o direito francês contemporâneo é, de entre os direitos continentais, o que mais se funda em decisões judiciais, teria sido impossível, sem uma jurisprudência criativa, manter em vigor, praticamente inalterado no decurso dos últimos 200 anos, o Code Napoléon" (HESPANHA, A.M. Cultura jurídica européia: síntese de um milênio, p. 269). [69] "É preciso lembrar que, quando foi promulgado o Código de Napoleão, a França ainda era um país agrícola por excelência, e a Inglaterra apenas ensaiava os primeiros passos na mecanização indispensável ao capitalismo industrial" (REALE, M. Lições preliminares de direito, p. 283).
"...um dos pressupostos políticos do positivismo legalista era a existência de um Estado-Nação que os cidadãos reconhecessem como portador dos valores jurídicos da comunidade" (HESPANHA, A.M. Cultura jurídica européia: síntese de um milênio, p. 270).
Título: Realismo Jurídico Norte-Americano e Ceticismo
Autor: José Renato Gaziero Cella
Palavras Chaves: HISTÓRIA DO DIREITO – CRISE DA RAZÃO – CETICISMO – RELATIVISMO – REALISMO JURÍDICO – ERRO JUDICIÁRIO – JUSTIÇA
RESUMO
A filosofia, na sua origem, buscava encontrar respostas racionais para explicar o devir do mundo e o sentido da vida, sendo que, no decorrer da história da civilização ocidental, foi suplantada, sob a ótica das massas, pela tecno-ciência relativamente às explicações do mundo e pelo cristianismo relativamente ao sentido da vida. Porém a modernidade leva ao desencanto da segurança que era proporcionada pela metafísica – em especial aquela do cristianismo – e a ciência, sobretudo a partir da explosão de bombas atômicas, deixa de ser o porto seguro que prometia ser no século XIX. Diante disso o ceticismo filosófico, que havia sido relegado ao ostracismo sobretudo a partir de DESCARTES, retorna com vigor no século XX, o que gera influências significativas também no pensamento jurídico que se produziu no século que se findou recentemente. Essa influência se faz presente no positivismo jurídico que teve lugar no século XX, mas também na corrente de pensamento produzida nos Estados Unidos da América denominada de realismo jurídico, cujas características são o objeto central desta comunicação. Para os realistas, a forma como os juízes tomam suas decisões não se dá por meio de uma dedução lógica, ainda que a forma das sentenças se assemelhe a um silogismo. Para esses autores, com efeito, o juiz não parte de alguma regra ou princípio como sua premissa maior, toma os fatos do caso como premissa menor e chega a sua resolução mediante um puro processo de raciocínio. Para eles, ao contrário, o juiz — ou os jurados — tomam suas decisões de forma irracional — ou, pelo menos, arracional — e posteriormente as submetem a um processo de racionalização. A decisão, portanto, não se baseia na lógica, mas nos impulsos do juiz que estão determinados por fatores políticos, econômicos, sociais e, sobretudo, por sua própria idiossincrasia. Diante dessa constatação, os realistas sustentam que a grande preocupação dos juristas não se deve prender a questões de direito, mas sim a juízos de fato, haja vista que é exatamente na fixação das provas que as maiores injustiças são cometidas em face de possíveis erros judiciários, e isso em virtude das seguintes razões pelas quais a comprovação dos fatos é problemática: a) as testemunhas não raciocinam uniformemente ante os fatos passados objeto de seu testemunho; b) habitualmente as testemunhas dão ao tribunal versões contraditórias sobre esses acontecimentos; c) os fatos de um caso são declarados tais pelos juízes de primeira instância ou pelo júri, em função da credibilidade que concedem a alguns testemunhos e que negam a outros; d) há pouca uniformidade na formação dessas crenças de juízes ou júris; e) essas crenças determinam a sorte da maioria dos litigantes porque: quando se apela das decisões, os tribunais superiores aceitam usualmente as crenças dos tribunais de primeira instância; f) essas crenças são, amiúde, as crenças dos juízes e dos júris, pois as convicções reais permanecem ocultas sob a intuição integral e indiferenciada dos diversos testemunhos produzidos ante os juízes e os júris; e g) por último, as sentenças não enunciam explicitamente em seu corpo, ou seja, a ninguém é dado conhecer, as crenças, reais ou aparentes, que determinaram a decisão. Isso coloca o tribunal na completa tarefa de adivinhar as razões pelas quais os juízes e os júris deram credibilidade a alguns testemunhos e a negaram a outros. Disso decorre sua renúncia em revisar os fatos declarados pelo tribunal inferior, limitando-se a efetuar um exame do direito aplicável aos fatos do caso, declarados tais pelo juízo de primeiro grau.
REALISMO JURÍDICO NORTE-AMERICANO E CETICISMO
Introdução
Um dos grandes problemas existentes e que ainda persiste no âmbito jurídico — que tem ocupado pensadores desde a antigüidade — é a questão, já clássica, da justiça. O que é a justiça? Essa que já foi uma pergunta recorrente no âmbito de atuação daqueles que, no decorrer da história, fizeram do direito seu objeto de trabalho ou de estudo, com o advento do positivismo jurídico e, principalmente, a forma por ele assumida no século XX, deixou quase que completamente de se fazer presente no cotidiano do foro, em que o advogado, quando invoca o texto apropriado da lei, fica relativamente tranqüilo porque esta constitui ponto de partida seguro para o seu trabalho profissional. Da mesma forma, quando o juiz prolata a sua sentença, e a apóia cuidadosamente em textos legais, tem a certeza de estar agindo corretamente, pois fundamenta sua convicção em cânones que devem ser reconhecidos como obrigatórios. Ocorre que, sobretudo a partir da década de 1950, o problema da justiça volta à tona e se insinua, inclusive, no âmbito de atuação dos juristas. A busca da solução mais justa possível para pôr termo a conflitos sociais, sobretudo a procura de algum critério que indique os caminhos para que isso se torne possível, volta a estar, mais do que nunca, na ordem do dia dos juristas, implicando mesmo a reconciliação entre filósofos e juristas, antes divorciados. A presente comunicação buscará traçar um paralelo entre a postura cética e relativista do realismo jurídico norte-americano e a crise por que passou e tem passado a razão a partir do século XX, crise que, ao perturbar os alicerces do grande edifício do pensamento ocidental que teve origem com o surgimento da filosofia na Grécia, tem posto cheque as possibilidades de defesa de um agir racional nas amplas áreas do conhecimento, inclusive no âmbito jurídico no pertinente à sua incessante busca pela justiça. Para tanto, o tema será tratado sob uma perspectiva histórica, em que será vista a forma pela qual os realistas norte-americanos lidaram com as conseqüência do niilismo ocidental. Em termos metodológicos, acredita-se que é possível reconstruir de maneira razoavelmente objetiva uma corrente filosófica, ainda que muitos pontos possam permanecer indeterminados e sujeitos à controvérsia. Diferentemente da filosofia jurídica, a história do direito é uma ciência empírica. Enquanto a filosofia discute sobre seu objeto, a história do direito tem um objeto bem definido: aquilo que foi pensado e escrito por filósofos do passado. Os problemas mesmos que o filósofo e o historiador do direito tentam resolver são bastante diferentes. Para o historiador do direito, o problema a ser interpretado tem mais ou menos a seguinte forma: como o conceito X se articula no interior do pensamento de Y? Por exemplo, qual a concepção de substância na filosofia de Aristóteles? No entanto, o filósofo buscará responder a uma pergunta diferente: o que é X? Ou seja, no exemplo, o que é uma substância? Assim, os meios pelos quais se tenta responder a cada uma dessas questões serão diferentes. Tudo isso não significa que o trabalho do historiador não seja relevante para o filósofo e vice-versa. Parece bastante óbvio que sim, não somente porque sem o filósofo do direito e sem os juristas não haveria uma história da filosofia jurídica e uma história do direito a serem estudadas, mas também porque não haveria filosofia do direito sem uma profunda reflexão sobre o legado do passado filosófico. Contudo, a mútua relevância não deve obscurecer as evidentes diferenças entre a tarefa do historiador e as tarefas do jurista e do filósofo do direito. Propõe-se, neste trabalho, somente a tarefa do historiador, que, embora menos pretensiosa que a do filósofo, nem por isso deixa de ser árdua, complexa e apaixonante.
1. Crise da Razão no Século XX Quando se fala em crise da razão logo vem à tona, ao menos em meios acadêmicos, a idéia de um fenômeno que teve lugar no século XX3, crise essa que tem sido associada como uma característica típica — senão a mais importante — da pós-modernidade, ainda que até hoje não haja um acordo acerca do vem a ser essa pós-modernidade e se os
3 “A situação filosófica contemporânea (...) tem sido marcada, desde os finais do século XIX, pelo estigma da crise e, muito particularmente, da crise do sujeito e da razão” (CARRILHO, Manuel Maria. Jogos de Racionalidade, p. 9).
tempos modernos efetivamente chegaram ao fim, ou ainda, como no caso do Brasil, chegaram a se iniciar de fato. Sem entrar nessa polêmica, a questão que ora se coloca é a de saber o motivo pelo qual se tem dado tanta importância aos ataques que a razão sofreu no século que acaba de terminar e que parece que continuará sofrendo inclusive neste novo século, uma vez que desde os primórdios do pensar filosófico a razão convive com o incômodo da dúvida cética, dúvida essa que em determinado momento (com o racionalismo inaugurado por DESCARTES) — paradoxalmente — tornou-se o ponto de partida do pensamento filosófico. Por que então somente agora, após mais de dois milênios de ataques constantes, a razão entra em crise? A tentativa de uma resposta a essa questão pode ser feita a partir de uma análise do próprio surgimento da filosofia, da sua meta e de que forma essas metas foram (se é que foram) alcançadas ao longo da história do pensamento. Não se pretende aqui fazer uma análise rigorosa e exaustiva do contexto de surgimento e desenvolvimento da filosofia, mas sim partir de algumas impressões que podem levar a uma compreensão da crise sofrida pela razão no século XX. Segundo ARISTÓTELES, a filosofia nasce do espanto causado em face dos acontecimentos do mundo4, daquilo que é imprevisível, do devir. Em um primeiro momento o homem cria o mito para que este dê conta do caos existente, buscando um sentido de ordem. Porém, os mitos sobrevivem de crenças que facilmente podem ser destruídas e não possuem a radicalidade que a filosofia, desde o início, propôs-se a buscar, ou seja, “a idéia de um saber que seja irrefutável; e que seja irrefutável não porque a sociedade e os indivíduos nele tenham fé ou vivam sem dele duvidar, mas porque ele próprio é capaz de rebater todos os seus adversários. A idéia de um saber que não pode ser negado nem por homens nem por deuses, nem por mudança dos tempos ou dos costumes. Um saber absoluto, definitivo, incontroverso, necessário, indubitável.”5 Através da episteme, prevendo e antecipando o devir da vida, o homem liberta-se do terror, tornando previsível o que antes era imprevisível. A episteme surge como o grande remédio contra o terror da vida. Essa tentativa de tornar previsível o imprevisível vai culminar na ciência moderna e na organização contemporânea científico-tecnológica da experiência, que tornou-se um outro grande remédio contra o terror da vida, mesmo não tendo a mesma pretensão da episteme, ou seja, um conhecimento que dê conta da totalidade, que possua a pretensão de verdade incontroversa. Também o cristianismo se apresentou como um remédio contra a infelicidade e a dor, mas um remédio ultramundano e transcendente. Daí a capacidade que o cristianismo teve de se comunicar com as massas que a filosofia não possui. Porém, tanto o cristianismo quanto a tecno-ciência, ou ainda, toda a civilização ocidental, cresce no seio da dimensão aberta, de uma vez por todas, pela filosofia grega: a busca de um saber irrefutável que torne previsível o devir da vida, a episteme. É justamente contra a idéia da filosofia como episteme que, desde a antigüidade, passando pela Idade Média e pela modernidade, que vão se insurgir os pensadores contemporâneos, dentre os quais Friedrich Wilhelm NIETZSCHE parece ser o mais radical. Para NIETZSCHE, o gigantesco edifício construído pela cultura e pela civilização ocidentais para proteger o homem do caos e da irracionalidade do devir (edifício que culminaria e se resumiria no conceito de Deus) acabou por sobrecarregar a existência do homem, dotando-a de um peso ainda mais insuportável do que aquele que é constituído pela própria ameaça do devir. A origem, o sentido, a causa, o fundamento, a lei, a realidade imutável e divina evocados pela episteme formam o remédio contra o terror provocado pela imprevisibilidade do devir, mas por vezes possuem uma aparência terrível, pois ao prever e antecipar o devir, acabam por o anular e por destruir juntamente com ele a própria vida do homem. O homem surge assim perante si próprio como a mais inquietante e imprevisível das coisas, mas o remédio que ele encontra acaba por lhe surgir como um suicídio. O remédio destrói a vida, pois sendo o homem imprevisibilidade, ao querer se tornar previsível, acaba por libertar-se de si próprio mediante a destruição de si mesmo. Daí a afirmação de NIETZSCHE de que o remédio foi pior do que o mal, de onde Jean-Paul SARTRE pôde dizer que se Deus existe, o homem não pode viver.6 Esse é o pensamento que pode ilustrar o aspecto mais característico do niilismo contemporâneo. O niilismo mostra que a humanidade está aqui, no mundo, literalmente abandonada, porém, este niilismo está voltado para a realização do homem, para libertá-lo das correntes que o impediam de viver, para libertá-lo de Deus. O niilismo é justamente a recusa de resposta aos porquês metafísicos, pois percebe que não há um fim a ser atingido.
Segundo NIETZSCHE, todas as grandes construções do saber tradicional acerca dos princípios, da metafísica, da arte, da moral, dos valores da sociedade, das normas de conduta dos indivíduos, permitem tornar suportável a vida. São os instrumentos fundamentais com os quais o homem tentou atingir o prazer, fugindo à dor, instrumentos esses que permitiram também ao homem sobreviver. Mas são uma grande simulação, pretendem se passar por verdade, porém nada mais são que mentiras e ilusões úteis à sobrevivência, erros vitais disfarçados de verdade. A busca de um fim, uma verdade que dá sentido à existência, já é o próprio niilismo, por ser esta tarefa impossível de ser atingida. Por isso Deus, como criador de um sentido, também é desmascarado. Desse modo, o erro vital, o nada que move a cultura ocidental, é o próprio Deus. O único mundo é esse que se apresenta ameaçador e aterrorizante, em que a certeza do homem tem como conteúdo a ameaça e a imprevisibilidade caótica e irracional das coisas. Para NIETZSCHE, a história do Ocidente é a história de um grande erro, em que a grande mentira culminou em Deus, à medida que houve a pretensão de afirmá-lo como causa e finalidade do mundo. Na origem já se encontra o fim, mas o mundo, tal qual é, não tem sentido e nem um fim a ser alcançado: “O mundo subsiste; não é nada que venha ser, nada que perece. Ou antes: vem a ser, perece, mas nunca começou a vir a ser e nunca cessou de perecer, — conserva-se em ambos... Vive de si próprio: seus excrementos são seu alimento.”7
Vale dizer que não só o pensamento filosófico abalou a auto-estima do homem e a sua razão, mas também a própria Ciência Moderna. Com efeito desde GALILEU, quando se revelou que não estávamos no centro do universo como imaginávamos, nossa vaidade já ficara abalada. Mas isso foi pouco se comparado às teorias de Sigmund FREUD e Charles DARWIN que, respectivamente, expulsaram-nos do centro da criação e do controle de nossas faculdades mentais. As filosofias da linguagem igualmente abalaram o edifício das crenças do homem moderno ao demonstrarem a arbitrariedade dessas crenças a partir de análises lingüísticas. No entanto não se quer afirmar que foram as reflexões filosóficas e as descobertas científicas que geraram a crise da razão no século XX. Ao contrário do que se possa imaginar, as teorias não surgem do acaso, mas em função de circunstâncias historicamente situadas numa área geográfica: o Ocidente. O início do século XX foi também o início de uma crise entre as potências neocolonialistas, cujas conseqüências fizeram daquele século, segundo Eric HOBSBAWM, o “...mais assassino de que temos registro, tanto na escala, freqüência e extensão da guerra que o preencheu, mal cessando por um momento na década de 1920, como também pelo volume único de catástrofes humanas que produziu, desde as maiores fomes da história até o genocídio sistemático”.8 Certamente o pensamento contemporâneo, que afirma o colapso da razão — ao menos da razão como episteme9 — foi condicionado pelo já nascente colapso dos sistemas políticos vigentes e conseqüentes crises internacionais. O fato é que, ainda segundo HOBSBAWM, material e moralmente os grandes Impérios Europeus chegaram ao século XX em declínio: “... Ao contrário do ‘longo século XIX’, que pareceu, e na verdade foi, um período de progresso material, intelectual e moral quase ininterrupto, quer dizer, de melhoria nas condições de vida civilizada, houve, a partir de 1914, uma acentuada regressão dos padrões então tidos como normais nos países desenvolvidos e nos ambientes da classe média e que todos acreditavam piamente estivessem se espalhando para as regiões mais atrasadas e para as camadas menos esclarecidas da população.”10
HOBSBAWM prossegue: “Ainda mais óbvia que as incertezas da economia e da política mundiais era a crise social e moral, refletindo as transformações pós-década de 1950 na vida humana, que também encontraram expressão generalizada, embora confusa, nessas Décadas de Crise. Foi uma crise das crenças e supostos sobre os quais se apoiava a sociedade moderna desde que os Modernos ganharam sua famosa batalha contra os Antigos, no início do século XVIII: uma crise das teorias racionalistas e humanistas abraçadas tanto pelo capitalismo liberal como pelo comunismo e que tornaram possível a breve mas decisiva aliança dos dois contra o fascismo, que as rejeitava. (...). Contudo, a crise moral não dizia respeito apenas aos supostos da civilização moderna, mas também às estruturas históricas das relações humanas que a sociedade moderna herdara de um
8 HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século xx: 1914-1991, p. 22. 9 “Voltemos, então, à ‘crise da razão’. Se confinada ao domínio da filosofia, ‘crise da razão’ é uma expressão que só é pertinente à razão clássica, isto é, àquela que, dizendo que este mundo da nossa vida comum é mero aparecer, pretendeu transcendê-lo e descobrir o mundo do ser. O diagnóstico de que há uma tal crise reflete a tomada de consciência de que a tentativa de transcender o terreno metafisicamente neutro não logrou os resultados desejados de conhecer a ‘estrutura do mundo’ ou de estabelecer teses incontestes sobre a ‘natureza das coisas’. Essa tomada de consciência, contudo, só tem o sabor de uma crise quando ainda se deseja uma outra racionalidade que estabeleça, de alguma maneira, uma tese metafísica. A possibilidade de se falar em uma ‘crise da razão’ mostra que a filosofia atual, em que pese sua ‘virada lingüística’, ainda não se acha completamente livre de alguma forma de dogmatismo, o que talvez possa explicar boa parte das discussões e da ambigüidade de alguns pensamentos. Para o cético, essa situação antes expressa a própria condição da filosofia dogmática e a necessidade de sua vigilância constante: uma vez que se perdem os parâmetros da nossa racionalidade e se penetra nas trevas da imaginação delirante, nada mais natural do que a proliferação insensata de opiniões” passado pré-industrial e pré-capitalista e que, agora vemos, haviam possibilitado seu funcionamento. Não era a crise de uma forma de organizar sociedades, mas de todas as formas. Os estranhos apelos em favor de uma ‘sociedade civil’ não especificada, de uma ‘comunidade’, eram as vozes de gerações perdidas e à deriva. Elas se faziam ouvir numa era em que tais palavras, tendo perdido seus sentidos tradicionais, se haviam tornado frases insípidas. Não restava outra maneira de definir identidade de grupo senão definir os que nele não estavam. Para o poeta T. S. Eliot, ‘é assim que o mundo acaba — não com uma explosão, mas com uma lamúria’. O Breve Século XX se acabou com os dois.”11
Ceticismo e Tolerância Segundo Eduardo A. ZANNONI, a crise que se abateu sobre a razão, por outro lado, também teve bons frutos: “Neste estado de coisas sobrevem (...) a angústia que vive o primeiro quarto do século XX com a primeira guerra mundial que, na ordem jurídica e filosófica, implicou uma revisão profunda das verdades que a razão havia pretendido extrair de seu próprio afã dedutivo. Contudo, esta mesma razão era impotente para conduzir a realidade, a história, a humanidade, pelos caminhos da paz, da solidariedade, da justiça. Esta angústia será frutífera para o pensamento”
Um dos frutos decorrentes da crise sofrida pela razão — sobretudo em face dos acontecimentos históricos acima narrados — foi justamente o abandono da defesa da possibilidade de uma ciência dogmática encastelada em princípios normativos rígidos e inflexíveis, que deveria se impor como verdade monolítica.13 Com efeito, as tentativas dogmáticas de se fundar conhecimentos ficaram abaladas. Os dogmáticos passaram a ser acusados de absolutistas, fundamentacionistas,
11 HOBSBAWM, E. Idem, p. 20-21. 12 ZANNONI, Eduardo A. Crisis de la razón jurídica, p. 76. 13 Bento PRADO JR. menciona a crise por que passaram as ciências dogmáticas ao falar do neopositivismo: “Mas, nos Estados Unidos, pelo menos, que acolheu no fim da década de 30 muitos filósofos de língua alemã inspirados pelo Círculo de Viena, que fugiam do nazismo, instalou-se uma inegável hegemonia do neopositivismo na epistemologia em geral, da física às ciências sociais. Mais do que isso, a filosofia importada parecia encontrar terreno propício, como se houvesse uma harmonia preestabelecida entre o empirismo lógico, de um lado, e, de outro, o behaviorismo de origem norte-americana ou a prática de uma economia positiva limitada e quantificável. Fora dos modelos matemáticos e das evidências empíricas não haveria salvação. Logo, todavia, o programa neopositivista começou a fazer água por todos os cantos, e a exibir suas limitações com a crise dos dogmas da imaculada concepção e da imaculada observação. Quine, por exemplo, acerta seu tiro no coração, mostrando a impossibilidade de traçar uma linha nítida entre proposições analíticas e proposições sintéticas, entre o que é puramente lógico e o que é puramente empírico. Por outro lado, os filósofos como N. R. Hanson, uma nova filosofia da ciência caminha na mesma direção, insistindo na ‘impregnação teórica’ dos dados observacionais. Na Alemanha a querela do positivismo opunha dialética e hermenêutica ao ‘pós-positivismo’ de Popper (já que sacrificara o famoso princípio da verificação), substituindo-o pelo oblíquo critério da falsificabilidade, que fornece uma idéia mais dúctil de demarcação. Nos países de língua inglesa, os filósofos da física — recuperando a epistemologia comparada de Duhem e de Alexandre Koyré — reintroduzem a história da ciência no coração da epistemologia e, com ela, a idéia da multiplicidade dos paradigmas. Em todos os casos, é o ideal da unicified science que entra em crise. É para uma concepção mais larga da Razão e da Ciência que se voltam então os espíritos. Ou, pelo menos, para o reconhecimento do fato incontornável de um mínimo de pluralismo ou de perspectivismo metodológico, que compromete a hegemonia do ideal de toda a ciência unificada no estilo da hard science” objetivistas. Em contrapartida os céticos e seu relativismo ganham um novo fôlego e passam a resgatar toda a sua tradição milenar.14 Segundo Osvaldo PORCHAT Pereira, todas as tentativas até hoje de se fundar um saber racional em busca da verdade nada mais foram que esforços de combate contra o ceticismo. Para tanto: “...a filosofia dogmática inventou a teoria do conhecimento: elaborou a temática da verdade, distinguiu entre o evidente e o não-evidente e formulou uma noção de evidência, introduziu a noção de critério da realidade e verdade e distinguiu espécies de critérios, construiu uma concepção do ser humano enquanto sujeito do conhecimento e procedeu ao estudo de suas faculdades, demorou-se na análise da sensibilidade e entendimento enquanto fontes privilegiadas do nosso alegado conhecimento e apreensão do real, desenvolveu uma doutrina da representação e, particularmente, da representação ‘apreensiva’, analisou cuidadosamente os procedimentos inferenciais que alegadamente nos conduzem da esfera da evidência comum ao domínio das realidades não-evidentes, por meio de signos ou de demonstrações. E construiu toda uma teoria dos signos e toda uma lógica da demonstração.”15
Diante das novas circunstâncias históricas que caracterizaram o século XX, as filosofias dogmáticas, antes prestigiadas, passaram a ser vistas com desconfiança, ocorrendo o inverso com o ceticismo. Com efeito, a partir da crise de auto-estima que afligiu a humanidade em face do impacto causado por obras como as de DARWIN, FREUD, NIETZSCHE, bem como pelas filosofias da linguagem, crise que se agravou a partir das explosões de duas bombas atômicas no Japão em 1945, a partir do que a própria tecno-ciência perdeu a credibilidade de que dispunha, foi o fundamentacionismo que passou a ser visto como uma postura insana (predicado este que tradicionalmente era atribuído ao ceticismo), sendo que as pretensões de “...querer tudo justificar, tornar-se-ia um empreendimento insensato, porque completamente irrealizável, não podendo senão levar a uma regressão ao infinito. O exercício hiperbólico da crítica é insensato porque, na sua ânsia de absoluto, dissocia pensamento e contexto, negligencia as exigências da ação no pensamento, as suas interações constantes e deixa, afinal, escapar a exigência de continuidade sem a qual o exercício da razão se tornaria incompreensível.”16
14 “O ceticismo como concepção filosófica e não como uma série de dúvidas relativas a crenças religiosas tradicionais, teve sua origem no pensamento grego antigo. No período do helenismo as várias observações e atitudes de filósofos gregos de períodos anteriores foram desenvolvidas, formando um conjunto de argumentos, estabelecendo que (1) nenhuma forma de conhecimento é possível; ou que (2) não há evidência adequada ou suficiente para determinar se alguma forma de conhecimento é ou não possível e que, portanto, devemos suspender o juízo acerca de todas as questões relativas ao conhecimento”
Conforme mencionado acima, a própria tecno-ciência, antes vista como um campo dotado de uma saber inabalável17, sofreu a interferência desse “...novo terreno aberto pela crise do ideal da unified science ou do ‘modernismo’ (...). Os limites desse novo terreno são bem definidos: crítica do positivismo, mas a partir de pontos de vista diferentes. Tais pontos são o neopragmatismo de Rorty, a teoria crítica na sua versão habermasiana, a integração ricoeuriana dos instrumentos da filosofia analítica, da fenomenologia e da hermenêutica, a epistemologia kuhniana, com suas idéias de revolução científica e de mudança de paradigma.”18 Uma vez conhecida a extensão e a força do golpe sofrido pela razão, não é difícil concluir que não só a tecno-ciência foi abalada, mas também outros ramos da cultura humana não ficaram incólumes, tais como a religião, a política, a moral e o direito. Vale dizer que a relevância do problema do relativismo não se restringe aos campi universitários. Com efeito, enquanto já na década de 1920 ORTEGA Y GASSET costumava dizer que esse é o problema de nosso tempo, nos dias correntes, em que os avanços nos transportes e nas comunicações nos fazem interagir cada vez mais com pessoas de todo o globo, não se pode ignorar que não há consenso no mundo senão talvez, paradoxalmente, quanto ao fato de que não há consenso. Para um, a verdade absoluta é uma; para outro, outra; e para terceiros, cada vez mais numerosos, essa mesma divergência indica de forma singela que não há verdade absoluta. Assim, a afirmação de que toda a verdade é relativa, mesmo não sendo nem de longe consensual, é proclamada hoje por qualquer estudante de ensino médio, com ar de quem diz uma verdade absoluta.
17 Sobretudo com o advento do positivismo filosófico, que se originou no século XIX com a obra de Augusto COMTE (1782-1857), a partir do que surgiram posteriormente outras vertentes, como por exemplo as de John STUART MILL (1806-1873) e Herbert SPENCER (1820-1903). Aqui se torna necessário fazer uma advertência: não se pode fazer qualquer analogia entre o chamado positivismo jurídico e o positivismo filosófico, sob pena de se cair em erros grosseiros. Com efeito, segundo os ensinamentos de Norberto BOBBIO, a “expressão ‘positivismo jurídico’ não deriva daquela de ‘positivismo’ em sentido filosófico, embora no século passado tenha havido uma certa ligação entre os dois termos, posto que alguns positivistas jurídicos eram também positivistas em sentido filosófico: mas em suas origens (que se encontram no início do século XIX) nada tem a ver com o positivismo filosófico — tanto é verdade que, enquanto o primeiro surge na Alemanha, o segundo surge na França. A expressão ‘positivismo jurídico’ deriva da locução direito positivo contraposta àquela de direito natural. Para compreender o significado do positivismo jurídico, portanto, é necessário esclarecer o sentido da expressão direito positivo” (BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, p. 15). Para Miguel REALE, “diz-se Direito Positivo aquele que tem, já teve, ou está em vias de ter vigência e eficácia” (REALE, Miguel. Filosofia do direito, p. 601), o que é confirmado por Tércio Sampaio FERRAZ JR., para quem “Direito positivo (...) é aquele que vale em virtude de uma decisão e que só por força de uma nova decisão pode ser revogado” (FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Direito, retórica e comunicação, p. 157). 18 PRADO JR., Bento. Obra citada, p. 8-9.
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Ora, se tudo é relativo, não há certo ou errado absoluto; se tudo é relativo, não há verdade absoluta. O “...dogmatismo não se sustenta sem argumentação conclusiva, mas o ceticismo mostrou que nenhuma argumentação é conclusivamente verdadeira”.19 As conseqüências do relativismo são, do ponto de vista ético, o cinismo e, do ponto de vista gnoseológico, o ceticismo. Ainda segundo PORCHAT, o dogmático, cuja argumentação se atribui uma força de persuasão absoluta, “...deveria reconhecer o caráter eminentemente relativo de seus argumentos, que persuadem tão-somente alguns poucos auditórios particulares. O ideal do consenso universal dos homens de razão, obtido por via de argumentos, se revela um mito”20. Não há possibilidade de consenso pela via da argumentação? Não há verdade? De fato, a aceitação desses pontos de vista leva à característica dominante da cultura contemporânea: o cinismo e o ceticismo. Talvez por isso o antropólogo Ernest GELLNER costumasse afirmar, parodiando Karl MARX21, que “um espectro assombra o pensamento humano: o relativismo”.22 Esse espectro é justamente a tese de que não há verdade absoluta, isto é, de que a verdade de uma proposição é relativa às circunstâncias em que esta é formulada. Uma das expressões clássicas do relativismo talvez seja a máxima de PROTÁGORAS, para quem “o homem é a medida de todas as coisas; das coisas que são enquanto são, das coisas que não são enquanto não são”.23 Vale dizer que essa postura relativista foi sempre muito combatida na antigüidade — talvez a razão de ser da filosofia platônica, que se contrapunha aos sofistas — porém a disputa era acirrada, pois os filósofos que punham em suspenso a razão dada a impossibilidade de verdade, eram muito populares na época. Há inúmeros exemplos, além de
PROTÁGORAS, de filósofos da Grécia clássica com posturas relativistas, tais como a de XENÓFANES, de Colofão: “Mas se mãos tivessem os bois, os cavalos e os leões e pudessem com as mãos desenhar e criar obras como os homens, os cavalos semelhantes aos cavalos, os bois semelhantes aos bois, desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles próprios têm.”24
Ou ainda a postura de GÓRGIAS25, que, segundo a síntese elaborada por Enrico BERTI, considerava a razão incapaz de apreender a verdade: “... 1) o ser não é; 2) ainda que fosse, não seria cognoscível; 3) ainda que fosse cognoscível, não seria comunicável. A conseqüência dessas três teses era que o lógos, ou seja, o discurso, não tem mais a função de tornar possível a comunicação, transmitindo de uma pessoa a outra o conhecimento e significando, por meio do conhecimento, a realidade. Ele, ao contrário, se substitui à realidade, a instaura, por assim dizer, ele mesmo, cria-a e, em vez de comunicar pensamentos, produz diretamente os efeitos, isto é, causa das paixões, dominando assim completamente a pessoa.”26
Mas nada se compara ao ceticismo que fora professado por PIRRO27, cuja crítica é dirigida expressamente contra os que pretendem ter encontrado a verdade. São eles os filósofos a quem se convencionou denominar dogmáticos, os que pensam ter um conhecimento exato de como as coisas são por natureza. Os dogmáticos põem como realmente existentes as coisas sobre as quais discorrem; seu discurso se pretende a expressão verdadeira de uma realidade como tal conhecida. Esse discurso assume com freqüência a forma de um sistema doutrinário que compõe e articula dogmas uns com os outros e com os fenômenos que se impõem a nossa aceitação comum.28 Contra essas tentativas dogmáticas é que os céticos, a partir das mesmas premissas aceitas pelos dogmáticos — no interior da lógica destes últimos, vão estabelecer uma série impressionante de argumentos contrários:
Com isso, o cartesianismo deu um passo decisivo para a incorporação da mensagem cética ao pensamento moderno, o que nos permite mesmo falar adequadamente de um modelo cético-cartesiano estabelecido no início das Meditações”
“...que não existe a verdade, tal qual os dogmáticos a conceberam, nem há algo verdadeiro; que não há realidade evidente, que nada é evidente; que não há critério de verdade, porque nenhuma das espécies de critério propostas pelos dogmáticos nos provê de conhecimento seguro; que é inconcebível e inapreensível o sujeito humano, como o entendem os dogmáticos; que não se pode descobrir a verdade nem julgar as coisas pela sensibilidade ou pelo entendimento, ou pela operação conjunta de uma e outro, isto é, por nenhuma de nossas faculdades pretensamente cognitivas; que a representação (phantasía) dogmática é inconcebível, inapreensível, nem se podem julgar por ela os objetos; que o signo, tal como o dogmatismo o define, é inconcebível, irreal, não existe signo; que argumentos conclusivos são inapreensíveis, que não se podem descobrir argumentos verdadeiros, nem é possível descobrir um argumento que deduza algo ádelon (não-evidente) a partir de premissas evidentes, dada a relação mesma que conecta conclusão e premissas; que não há realmente demonstrações e as demonstrações são portanto irreais, são nada; que a demonstração é, de fato, inconcebível, é algo não-evidente...”29
Portanto, os céticos questionam: “...a aceitabilidade das premissas da argumentação proposta e das premissas dessas premissas, renovadamente exigindo justificação e fundamento, acenando portanto com uma regressão ao infinito. Cuidará também de prevenir qualquer circularidade dissimulada na argumentação adversária, que eventualmente introduza nas premissas matéria decorrente da tese a ser provada. E, sobretudo, não permitirá que os oponentes se proponham a deter o processo de fundamentação, assumido algo ex hypothéseos, isto é, à maneira de um ‘princípio’ ou axioma, pretextando tratar-se de um enunciado indemonstrável e que de si mesmo se impõe à nossa apreensão, de uma verdade que por si mesma se faz aceitar pela razão e que prescinde de fundamento outro. Os dogmáticos, com efeito, pretendem que não somente a demonstração, mas toda a filosofia, procede ex hypothéseos.”30
Essa relatividade manifesta de todas as coisas sempre foi reconhecida pelos céticos como uma das razões determinantes que os induzem a suspender o juízo (a epokhé) sobre a verdade e a realidade absoluta delas. A epokhé é, portanto, esse “...estado de repouso do entendimento devido ao qual nada negamos nem assertamos, impossibilitados de escolher algo como verdadeiro ou falso, o equilíbrio das razões contrárias incapacitando-nos para dogmatizar”.