Connecting People and Ideas . Proceedings of EURO ELECS 2015 . Guimarães . Portugal . ISBN 978-989-96543-8-9
O conforto da habitação de terra
Leonardo Ribeiro Maia
Universidade de São Paulo, Departamento de Tecnologia de Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,
São Paulo, Brasil. Membro da Rede TerraBrasil.
[email protected]
ABSTRACT: This paper discusses the environmental comfort of earth-building dwelling
holistically: human body´s comfort, comfort of the soul, pleasure and well-being, culturally and
spiritually. Issues involving human being´s comfort and the pleasure of being in a place have
been the objective. It analyzes the dwelling and the earth (soil or building construction
material) through bibliographic review of diverse areas where the comfort concept could be
present (architecture, philosophy, history, medicine, biology, chemistry and religion). The
paper was developed in 4 "dimensions" (natural / genetic; spatial; spiritual; and physiologic.),
dealing the comfort concept widely and presenting its involvement with memory, perception,
physiology, spatiality and physical and psychological comfort. Earth-made dwelling can provide
more than comfort neutrality ("not discomfort"). It provides pleasure, well-being, food and
console of spirit to its residents, expansion and expression of their body and culture, and
expansion of their emotions and feelings, evoking human senses and feelings.
Keywords: earth construction, dwelling, comfort
RESUMO: Este artigo propõe a discussão do conforto ambiental na habitação edificada com
terra, de maneira holística, tratando dos aspectos do corpo físico e mental, abordando
questões subjetivas que envolvem o ser humano e o prazer de estar em um lugar. Analisa
habitação e terra através da revisão bibliográfica de diversas áreas nas quais o conceito de
conforto esteja presente (arquitetura, filosofia, história, medicina, biologia, química e
psicologia). O artigo foi desenvolvido em quatro "dimensões" (natural / genética; espacial;
psicológica e fisiológica), tratando o conceito de conforto amplamente e apresentando seu
envolvimento com memória, percepção, fisiologia, espacialidade e aspectos físico e
psicológico. A habitação construída com terra pode proporcionar mais do que a neutralidade
("não desconforto") exigida pelas normas: proporciona aos moradores prazer, bem-estar,
expressão de seu corpo e cultura, além da expansão de suas emoções e sentimentos,
evocando sentidos e sentimentos humanos e emocionando.
Palavras-chave: construção com terra, habitação, conforto
1
INTRODUÇÃO
Por que se sente confortável numa casa construída com terra? Por que é convidativo tomar
um café com uma boa conversa ali, diferente de outros lugares? Certamente essas questões
não têm respostas absolutas, muito menos objetivas. Esse artigo propõe discutir as questões
subjetivas que envolvem o ser humano e o prazer de estar em um lugar.
A terra é um dos materiais de construção naturais fartos e largamente utilizados em todo o
mundo, desde que o homem iniciou a construção de seu habitat (MINKE, 2001). Como a
maioria dos materiais naturais, a terra pode ser utilizada com tecnologia avançada e
sofisticação em qualquer tipo de edificação, quando bem exploradas as suas qualidades e
vantagens como: abundância do material, fácil trabalhabilidade, características físicas relativas
a condições ambientais de temperatura e umidade, etc. O conforto ambiental possibilitado
pela habitação de terra, por meio de um projeto aderente às características deste material,
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pode sup i as e essidades t
seus ocupantes.
i as e p o ove , al
do
ão des o fo to , o p aze aos
Neste artigo, utilizou-se como metodologia a revisão bibliográfica do tema de conforto e da
construção com terra nas diversas áreas de abrangência do assunto, não somente na
arquitetura e construção. Filosofia, história, medicina, biologia, química e psicologia, também,
foram fontes de conhecimento. O artigo foi desenvolvido em quatro temáticas principais,
tratando o conceito de conforto de forma sistêmica e apresentando conceitos que envolvem
memória, percepção, fisiologia, espacialidade e conforto físico e psicológico de maneira ampla.
Essas temáticas, chamadas aqui de "dimensões", serão: natural / genética, espacial, psicológica
e fisiológica.
Após as discussões e apresentações de bibliografias referentes a cada dimensão, será
apresentada a análise em conjunto das dimensões.
2
DIMENSÃO NATURAL / GENÉTICA
A memória genética e as experiências passadas fornecem ao ser humano um conceito de
conforto externo ao corpo físico; estão no psíquico, ligado à consciência interna de si. A
memória genética é a memória herdada através do código genético que vem a influenciar o
comportamento humano. Essa memória proporciona conforto enquanto segurança e proteção
quando relacionados à origem, na sua forma mais primitiva. Pallasmaa (2011, p. 57) reforça
esse conceito quando fala das "nossas sensações de conforto, proteção e lar [que] estão
enraizadas nas experiências primitivas de incontáveis gerações".
Segundo Morin (1974), desde Darwin, o homem sabe que é filho de primatas, porém não se
considera um primata. Foi convencido da fuga de sua árvore genealógica tropical de seus
antepassados, construindo o reino independente da cultura, fora da Natureza. Por outro lado,
o jovem Marx, em seu manuscrito de 1844, afirmava que "o primeiro objeto do homem - o
homem - é natureza" (MORIN, 1974, p.19). Mais recentemente, a ciência concebeu a noção de
ecossistema, no qual uma comunidade de seres vivos num espaço constitui uma unidade
global. Dessa maneira, é possível considerar a Natureza um organismo global, onde o homem
está inserido e faz parte de seus sistemas de restrições, interações e interdependências. Morin
(1974) afirma que a dependência/independência ecológica do homem se encontra em dois
graus sobrepostos e interdependentes, que são o do ecossistema social e o do ecossistema
natural.
Buscando ligações mais claras da origem do homem com a natureza, pesquisadores do
Instituto Médico Howard Hughes e do Hospital Geral de Massachusetts, em Boston,
encontraram indícios de que a vida teria surgido na argila. Segundo o estudo, a
montmorilonita (um dos tipos de argila, formado basicamente por camadas de sílica, SiO 2, e
hidróxido de alumínio Al2(OH)3), participa da formação de depósitos gordurosos e ajuda as
células a compor o material genético chamado RNA (ácido ribonucleico), indispensável para a
origem da vida. A argila pode ser o catalisador das reações químicas para a criação do RNA a
partir dos nucleotídeos (HANCZYC et al. 2003).
Em um estudo mais recente, na mesma linha de pesquisa, um grupo liderado por
pesquisadores da Universidade de Cornell (EUA) descobriu que algumas argilas formam um
hidrogel que possui muitos microporos capazes de absorver líquidos e inchar, sem se dissolver.
Esses pequenos espaços proporcionam a proteção adequada para facilitar os processos
químicos complexos, permitindo a síntese de proteínas, DNA, até que as primeiras membranas
celulares começaram a se formar (YANG et al. 2013).
A intuição de que a vida e o homem foram gerados a partir da terra não é nova. Na mitologia
grega e romana, pilares da cultura ocidental, encontra-se a origem do homem nos diversos
poemas épicos. O poeta Hesíodo (~ 750-650 a.C.) conta que após Prometeu roubar o fogo
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celeste e entregar aos mortais, Zeus, irado, dá aos homens uma mulher (Pandora), e com ela, o
fim da criação dos homens pelos deuses, agora pela procriação sexuada (HESÍODO, 1996, p.
27, v.59 - 63):
Disse assim e gargalhou o pai dos homens e dos deuses;
ordenou então ao ínclito Hefesto muito velozmente
terra à água misturar e aí pôr humana voz e
força, e assemelhar de rosto às deusas imortais
esta bela e deleitável forma de virgem.
Bulfinch (2006, p. 23), um dos autores mais respeitados em assuntos mitológicos, cita uma
versão diferente. Após um deus separar o ar das águas e da terra e depois de criar todos os
animais, necessitou de "um animal mais nobre, e foi feito o Homem. Prometeu tomou um
pouco dessa terra e, misturando-a com água, fez o homem à semelhança dos deuses".
A memória genética da criação da humanidade a partir da terra também se mostra nos livros
sagrados das religiões judaico-cristãs e islâmicas. No primeiro livro da Bíblia Sagrada, a Gênese,
Deus criou o homem no sexto dia e o mandou povoar toda a terra: "Então, formou o Senhor
Deus ao homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida, e o homem passou
a ser alma vivente." (BÍBLIA, Gênese 2:7, 1993, p. 3).
Segundo o livro sagrado islâmico, o Alcorão, o homem (Adão) foi criado a partir de uma porção
de barro contendo todas as suas variedades na Terra. Anjos foram mandados por Deus a todos
os locais para coletar os punhados de terra, e assim os descendentes de Adão teriam
apa
ias, at i utos e ualidades dife e tes. ‘e o da-te de quando o teu Senhor disse aos
a jos: De a o ia ei u ho e . Qua do o tiver plasmado e alentado com o Meu Espírito,
prostrai-vos a te ele. ALCORÃO, 2010, 38:71-72). Em outra passagem, o Alcorão refere-se à
Lúcifer, que, se negando reverenciar a criação divina, é expulso do Paraíso:
Todos os anjos se prostraram. Menos Lúcifer, que se negou a ser um dos prostrados. Disse (o
“e ho : Ó Lú ife , ue foi ue te i pediu de se es u dos p ost ados? ‘espo deu: É i ad issível
ue e p ost e a te u se ue iaste de a gila, de a o odelável. Disse o “e ho : Vai-te
daqui (do Paraíso), porque és maldito! E a maldição pesará sobre ti até o Dia do Juízo. ALCORÃO,
2010 15:30-35).
Os primeiros abrigos do homem para se proteger das intempéries foram os naturalmente
construídos (cavernas) e os construídos com materiais naturais disponíveis localmente, como
folhas, madeira, pedras e a própria terra. Construções foram edificadas com terra em quase
todas as civilizações passadas e estiveram em todos os continentes do planeta. Desde as
primeiras civilizações, entre o Nilo, o Tigre e o Eufrates, a terra é, ainda hoje, um dos principais
materiais de construção utilizados para edificar casas e edifícios, tanto na zona rural quanto
nas cidades (HOUBEN & GUILLAUD, 1995). As técnicas de construção que utilizam a terra como
matéria prima foram transmitidas através do conhecimento popular e da tradição, geração
após geração. Houve também transferências de conhecimento através das invasões e
colonizações, nas quais um povo entrava em contato com novas tecnologias ou diferentes
formas de execução trazidas pelos estrangeiros, unindo o saber local com o novo
conhecimento, e assim, gerando novas e variadas combinações entre elas (NEVES, 2011, p. 9).
Na arquitetura, Pallasmaa (2011, p. 30) afirma que os materiais de construção atuais não
reforçam o senso de materialidade, essencial para o conforto enquanto proteção; já os
materiais naturais "deixam que nossa visão penetre em suas superfícies e permitem que nos
convençamos da veracidade da matéria". O autor lembra, ainda, de outro fator de ligação do
homem com a natureza: a temporalidade (Fig. 1). Os materiais naturais contam sua origem e
seu uso histórico pelo homem, além de expressar história e idade.
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Figura 1: Parede construída com a técnica de taipa de pilão numa casa em São Paulo. Suas camadas simulam os
horizontes do solo, formados pelo intemperismo secular. (Fonte: arquivo do autor).
3
DIMENSÃO ESPACIAL
Nesta etapa, será tratado o conforto enquanto reduto do descanso, do devaneio; a ideia de
conforto será ligada ao sonho e à imaginação. Com a necessidade de abrigo, de acolhimento,
de segurança, o homem construiu sua habitação: "a casa acolhe, atende a um conjunto de
necessidades básicas de segurança, envolvimento, orientação no tempo e principalmente, no
espaço." (SCHMID, 2005, p.13).
A habitação é o lugar onde se pode melhor entender o significado do conforto. É nela que se
encontra o lugar seguro, de acolhimento, de abrigo. "A casa é o nosso canto do mundo. Tratase – como muitas vezes é dito – o nosso primeiro universo." (BACHELARD, 1965, p. 34). Ela é a
primeira referência espacial fora do útero materno. Esse último é o local de maior proteção já
desfrutada pelo homem e que permanece em seu inconsciente no ideal de conforto.
Na casa, o conceito de conforto assume vários significados, desde as necessidades de
segurança, prazer, privacidade e proteção por ali estar, mesmo quando uma tempestade se
aproxima. "A ideia de estar acolhido enfatiza o elemento protetor do conforto" afirma Schmid
(2005, p. 29). A simples expectativa de voltar para casa depois de um dia de trabalho conforta
e anima. "É como se oferecesse consolo interminável ao ser humano, lançado no mundo" diz
Schmid (2005, p.13). Pallasmaa (2011, p.55), citando Bachelard, escreve que somente aqueles
que aprenderam a aconchegar-se conseguem "habitar com intensidade".
Ao chegar à habitação e fechar a porta, abre-se uma dimensão completamente diferente
daquela que se deu as costas. É como estar num outro mundo, num mundo natural feito pelo
habitante. A casa, diferente do trabalho ou da cidade como um todo, traz a sensação de
segurança e bem estar. A cidade não é percebida como um elemento natural, mas sim um
elemento construído pelo homem. Spirn (1995, p. 21) fala sobre a natureza da cidade: "a
crença de que a cidade é uma entidade separada da natureza, e até contrária a ela, dominou a
maneira como a cidade é percebida e continua a afetar o modo como ela é construída". Ao
contrário da rua, dentro da casa é possível usufruir do prazer de fazer o que quiser, sem
preocupações de julgamentos alheios. Schmid (2005, p. 33) cita a "privacidade como uma das
primeiras exigências do conforto", nos Países Baixos do século XVII.
A terra - enquanto material de construção em si - não torna uma habitação confortável; é o
espaço que tem essa responsabilidade. O material pode alimentar estímulos sensoriais que
enriqueçam o espaço e o permitam reforçar a percepção de acolhimento, privacidade, prazer,
segurança, humanidade.
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Fora dos abrigos naturais e "tocas", o homem construiu sua habitação com os materiais que
tinha à mão: terra, pedra, madeira, palha, folhas, etc. Geração após geração, as técnicas de
construção foram se aprimorando, novas tecnologias foram desenvolvidas e a habitação
mantinha e reforçava seu conceito de conforto enquanto proteção das intempéries,
segurança, privacidade. Porém, as edificações que utilizam materiais "modernos" não possuem
o mesmo conceito de materialidade e temporalidade descrito acima. Segundo Bloomer e
Moore, citados por Pallasmaa (2011, p. 38), as habitações atuais não possuem "as transações
potenciais entre corpo, imaginação e ambiente".
As proporções do corpo humano orientam as construções das culturas tradicionais e a
arquitetura vernacular, especialmente aquelas feitas com terra. Segundo Pallasmaa (2011, p.
25) "as obras de arquitetura autóctones em argila e barro, de várias partes do mundo,
parecem nascer dos sentidos musculares e táteis, mais do que dos olhos". Uma habitação de
terra torna-se confortável e aconchegante ao proporcionar ao usuário a sensação de
construção feita por mãos humanas, quase como um artesanato. Exemplo marcante dessa
arquitetura são as casas obuses da tribo Musgum, etnia do norte de Camarões, que utilizando
a técnica de terra esculpida ou modelada realiza através da manipulação direta da matéria
prima em estado plástico, sem a utilização de formas ou equipamentos (Fig. 2). As edificações
são construídas com as mãos nuas ou com ferramentas simples e revelam a beleza das formas
arquitetônicas e acabamentos (HOUBEN & GUILLAUD, 1991).
Figura 2: Construção de uma casa obus, no norte de Camarões. (Fonte:
http://arquitecturasdeterra.blogspot.com.br/2010/03/arquitectura-musgumcamaroes.html, acessado em
12.05.2014).
4
DIMENSÃO PSICOLÓGICA
A psicologia ambiental, como ensina Morata e Pol (2005), aborda as ligações entre as pessoas
e os espaços, como uma construção social dos lugares, e destaca como principais conceitos o
espaço, a identidade e o apego simbólico do lugar. Conforme afirma Schmid (2005, p. 28), "os
contextos psico-espiritual e sociocultural estão intrinsecamente ligados à expectativa que as
pessoas normalmente têm de uma edificação". A terra como material de construção natural
traz o homem de volta as origens: na natureza (a Mãe Terra - útero), na origem sagrada
(mitologia, religiosidade) e na origem científica (argila como formação dos primeiros indícios
de vida). Ainda segundo Schmid (2008, p. 111), "as emoções funcionam como chaves de
memória".
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A percepção do espaço é atingida através dos estímulos sensoriais. Merleau-Ponty (2006)
afirma que essa percepção dos espaços não é percebida pelos sentidos separadamente, mas
sim em seu conjunto (estímulos materiais), e esses são influenciados pelas experiências
passadas e expectativas ou desejos futuros (estímulos imateriais). Assim, o tato percebe a
textura da terra, o olfato o cheiro dela e a liga à memória. Os sons são reverberados nas
superfícies das construções naturais de maneira diferente das outras. "Nunca vivo
inteiramente nos espaços antropológicos, estou sempre ligado, por minha raízes, a um espaço
natural e inumano." (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 393)
A apropriação - entendida aqui como interiorização da prática humana - do espaço é atingida
através de duas principais vias complementares: a ação-transformação e a identificação
simbólica. Segundo Morata e Pol (2005), a primeira relaciona territorialidade e espaço pessoal
ao considerar a apropriação com um conceito subsidiário da territorialidade. A identificação
simbólica é vinculada com processos afetivos, cognitivos e interativos. A apropriação do
espaço é um processo dialético no qual se vinculam as pessoas e os espaços, dentro de um
contexto sociocultural. Sendo a apropriação do espaço uma relação interdependente e
reciproca, do homem e o objeto (a casa), quando o homem não se identifica com o objeto,
este último se aliena.
Na aldeia de Tera, na África, a cerimônia de casamento inclui a construção da casa do novo
casal. O ancião escolhe a localização da edificação e toda a comunidade participa da
construção, das crianças até os mais velhos (KATIGURA Y AGANACHI, 2014). Desde a
manufatura dos adobes, seu assentamento, passando pelo revestimento das paredes até o
acabamento, cada pessoa da tribo executa uma tarefa, cantando e abençoando o novo casal
(Fig. 3). A apropriação do espaço aqui se faz no nível da casa e no nível da comunidade. A
identificação simbólica entre o casal e a casa (e entre as pessoas da tribo e a aldeia) está
vinculada à gratidão pelo presente (a edificação) e pelo simbolismo das formas desenhadas e
esculpidas nas paredes que simbolizam proteção.
O arquiteto argentino Jorge Belanko afirma que a família deveria construir sua própria casa (EL
BARRO, 2006), demonstrando o significado simbólico de participar da edificação da morada,
estreitando os laços afetivos com a casa desde o momento inicial. Nesse sentido, a
apropriação do espaço é atingida pelas duas vias citadas por Morata e Pol (2005): na açãotransformação enquanto elemento modificador da terra em parede (construtor) e na
identificação simbólica, processo de interação entre o objeto com a pessoa que cria o vinculo
cognitivo e emocional.
Figura 3: As mulheres da aldeia de Tera rebocam as paredes da casa do novo casal Katigura e Aganachi, em sua
cerimônia de casamento. (Fonte: Katigura y Aganachi, 2014).
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DIMENSÃO FISIOLÓGICA
O conforto fisiológico (térmico) é mais fácil de quantificar, ainda que sua avaliação seja
subjetiva. Estar confortável termicamente em relação a um acontecimento num espaço,
observando-o ou sentindo-o, implica em não ter preocupação ou incômodo. O conforto
térmico é obtido quando o organismo produz calor através do metabolismo (compatível com
sua atividade física) numa taxa equivalente à perda para o ambiente, sem necessitar de
nenhum mecanismo de termorregulação. Portanto, estamos num ambiente confortável
termicamente quando temos uma relação de neutralidade, porém sua avaliação é subjetiva.
A pele é o principal órgão responsável pelo regulamento da temperatura do corpo, chamada
termorregulação (a respiração também tem papel nesse mecanismo). Segundo Frota e Schiffer
(2009), ao sentir desconforto térmico, é ativado o mecanismo vasomotor do fluxo sanguíneo
(vasodilatação ou vasoconstrição). A resistência térmica da pele varia em função do fluxo
sanguíneo que a percorre, regulando sua temperatura. Além desse, há "outro mecanismo de
termorregulação da pele [que é] a transpiração ativa" (FROTA; SCHIFFER, 2009, p. 23).
Além disso, a pele é um dos órgãos receptores dos estímulos do tato. Esse sentido é tido como
o "pai de todos os sentidos", segundo opinião do antropólogo Ashley Montagu, citado por
Pallasmaa (2011, p. 10), que, também, afirma que a pele
é nosso órgão mais antigo e mais sensível, nosso primeiro meio de comunicação e nossa protetora
mais eficiente... Até mesmo a córnea transparente dos olhos é coberta por uma camada de pele
modificada... O tato é pai de nossos olhos, nosso nariz, nossa boca. Ele é o sentido que se
especializou e gerou os demais, algo que parece ser reconhecido pelo fato de ser considerado há
muito tempo 'o pai de todos os sentidos.
Adicionalmente, Merleau-Ponty (2006) argumenta que o indivíduo percebe os estímulos com
todos os sentidos humanos juntos. Cita que, ao ouvir as palavras "quente" ou "úmido", o
sujeito experimenta um sentimento de calor ou frio, e seu organismo se prepara para o
referido evento.
Assim, o organismo percebe o "espaço térmico" através dos sentidos e, somando algumas
variáveis tais como vestimenta, taxa metabólica, atividade, aclimatação, expectativa climática
entre outras, pode-se dizer se está ou não em conforto térmico. Ainda que exista a avaliação
subjetiva do conforto térmico (algumas pessoas preferem sentir mais frio ou calor que outras
num mesmo ambiente), índices de conforto térmico conseguem indicar uma maior predileção
das variáveis ambientais mais importantes, como temperatura, velocidade e umidade do ar.
As habitações de terra possuem características térmicas muito favoráveis à manutenção da
temperatura e umidade relativa internas mais estáveis. Conforme Minke (2001), o barro tem a
capacidade de absorver e repelir umidade mais rapidamente e em maiores quantidades do
que outros materiais de construção, oferecendo maior estabilidade da umidade relativa do ar
em relação à externa. Um estudo alemão feito numa habitação contemporânea mostrou que
em aproximadamente oito anos de medição, a umidade relativa do ar em seu interior foi de
50% durante todo o ano, com variação entre 5% e 10%, oferecendo condições de vida mais
saudáveis. A umidade relativa do ar entre 50% e 70% tem muitas influências positivas para o
homem: reduz o teor de poeira fina no ar, ativa os mecanismos de proteção da pele contra os
micróbios, reduz a vida de muitas bactérias e vírus e reduz odores e eletricidade estática nas
superfícies dos objetos (MINKE, 2001).
Ainda segundo Minke (2001), habitações construídas com terra podem armazenar calor por
ser um material denso, com resistência térmica relevante. Em regiões onde a amplitude
térmica é alta, a terra pode balancear a temperatura dos ambientes interiores por vias
passivas, diminuindo a quantidade de energia necessária à climatização artificial (MINKE,
2001).
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Figura 4: Comparação da flutuação das temperaturas do ar interna e externa para dois modelos construídos no
Cairo. (Adaptado de Fathy, 1986, p. 78-79).
Fathy (1986) cita um experimento feito no Cairo com seis modelos de dimensões idênticas e
materiais construtivos diferentes. Os resultados mais extremos são apresentados na Figura 4:
o primeiro foi construído com adobes de 50 cm de espessura e o segundo com placas de
concreto pré-fabricadas de 10 cm de espessura. Enquanto a amplitude térmica do ar externo
foi de 13°C, a variação da temperatura interna no modelo de terra foi de 2°C e no modelo de
concreto de 16°C, tendo seu pico de temperatura quase 5°C acima da maior temperatura do ar
externo. O contraste pode ser explicado pelo fato de que o concreto tem condutividade
térmica de 0,9, enquanto a de tijolos de barro é 0,4, e que a parede de tijolos de barro é cinco
vezes mais espessa do que a painéis pré-fabricados. Além disso, a parede de tijolos de barro
tem uma resistência térmica mais de 13 vezes maior que a parede de concreto pré-fabricado.
6
REFLEXÕES FINAIS
A terra foi um dos primeiros materiais que o homem aprendeu a modificar e utilizar na
construção. Esse tipo de edificação constitui, portanto, num dos saberes mais antigos de
conhecimentos relacionados com a forma de dominação do território. A preservação e
desenvolvimento do uso deste material, por meio da tradição oral ao longo da história,
permitiram sua adaptação ao longo do tempo e, hoje, faz parte do patrimônio cultural que
identifica diversas culturas.
A moradia construída com esse material abundante em diversas regiões do planeta, a terra,
oferece conforto aos seus ocupantes: conforto do corpo e da alma. Além das normas que
regulam o "não desconforto" e do ensino puramente físico e térmico da academia, o conforto
ambiental deve ser levado a outro patamar de estudo. A afirmação de Schmid deixa claro esse
conceito: "a caracterização de conforto ambiental sob uma perspectiva holística inclui (...) a
conveniência, o encanto e a leveza" (SCHMID, 2005, p. 37). E vai além quando cita o conforto
superando a linha da neutralidade, no nível da transcendência, que "está inseparável do
prazer, do êxtase, na extremidade oposta à do sofrimento, e aumenta sem limites aparentes.
Talvez não se consiga mais quantificá-lo" (SCHMID, 2005, p. 30).
A crescente preocupação em evitar a degradação ambiental encontra descanso na construção
com terra. Esse material permite seu reuso ininterruptamente, em novas formas, novas
edificações e construído com diferentes técnicas. E no limite, quando transformado em
resíduo e descartado, volta a ser incorporado a sua o ige , u i lo do e ço ao e ço .
Outro anseio da sociedade contemporânea é a busca de tecnologias que possibilitem maior
praticidade e velocidade à vida cotidiana. Quando não obtidas, tornam-se u
ovo ele e to
passível de suscitar irritação e desco te ta e to LIPOVET“KY, 200 , p.2 . A arquitetura de
terra contemporânea não busca retomar as práticas arcaicas de séculos passados, mas sim
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aprimorá-las e evoluí-las. O desenvolvimento de tecnologias voltadas à construção com terra é
tema de diversos centros de pesquisa pelo mundo, que criam novos maquinários e
equipamentos, industrializam processos e aumentam a eficiência na execução e a qualidade da
habitação.
Le Corbusier afirmou que a arquitetura é para emocionar. A qualidade da habitação junto à
capacidade de estímulos da terra podem proporcionar essa emoção: o conceito de conforto
apreendido pelo morador se expressa pelo prazer, pelo bem estar, pelo consolo do espírito,
pela expansão de seu corpo e cultura e expansão de suas emoções e sentimentos. Nas
palavras de Pallasmaa (2011, p. 11), "a arquitetura significativa faz com que nos sintamos
como seres corpóreos e espiritualizados".
A apropriação do espaço da habitação é também vinculada à identificação simbólica entre o
homem e a casa. Ela pode ocorrer quando o material – a terra - conta sua origem (dele e do
homem) e pela afeição ao objeto-casa construído de uma forma significativa aos ocupantes.
Assim como os sentidos estão interconectados, memória, percepção, corpo físico e psíquico
também estão e experimentam as sensações das dimensões acima descritas juntas e ao
mesmo tempo.
As "propriedades" sensoriais de uma coisa constituem em conjunto uma mesma coisa, assim como
meu olhar, meu tato e todos os meus outros sentidos são em conjunto as potências de um mesmo
corpo integradas em uma só ação. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 426)
Avaliar o conforto de uma habitação de maneira sistêmica é incluir um elemento
extremamente complexo à equação e que não pode ser deixado em segundo plano: o ser
humano. Os Modelos Adaptativos de conforto térmico (DE DEAR & BRAGER, 1998; NICOL
& HUMPHREYS, 2002; ASHRAE 55, 2010) incorporam à avaliação parte dessa complexidade,
como a aclimatação, adaptação genética, expectativa e a memória térmica além do controle
personalizado do ambiente. Pesquisas que relacionam os diversos campos do conforto
ambiental de forma quantitativa (térmico, luminoso, acústico, qualidade do ar, ergonomia)
devem incluir pesquisas qualitativas (cultural, econômica, social e psicológica). Uma
metodologia para avaliar o conforto com viés sistêmico deve basear-se na dependência da
ação e da interação das relações entre os indivíduos, a cultura, os espaços e as
memórias/expectativas.
Dessa forma, visto que este artigo não pretende encerrar o assunto sobre o tema, mas
apresentar novas questões como uma porta para sua discussão, sugere-se, portanto, que se
aprofunde essas questões em novos estudos contribuindo para o desenvolvimento científico.
7
REFERÊNCIAS
ASHRAE 55. 2010. Thermal Environmental Conditions for Human Occupancy, American Society of Heating,
Ventilating and Air Conditioning Engineers. Atlanta.
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Bachelard, G. 1965. La poética del espacio. México D.F.: Fondo de Cultura Económica.
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