Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015
A Sociedade do Espetáculo como linguagem1
José Isaías VENERA2
Universidade da Região de Joinville e Universidade do Vale do Itajaí, SC
Resumo
Este estudo parte da leitura de Giogio Agamben sobre a noção de sociedade do espetáculo,
conceito de Guy Debord. Desenvolve-se, sobretudo, o espetáculo como linguagem
destacando sua relação com o fetiche da mercadoria. A importância desse conceito pode ser
também observada no debate de Bauman sobre a sociedade de consumidores. Em outro
momento, são estabelecidas as relações do espetáculo com o conceito de Império, de Hardt
e Negri. Além desses conceitos, que operam sobre uma mesma realidade, a noção de Outro,
em Lacan, funciona como instância onipresente na constituição subjetiva. O que se busca
neste artigo é estabelecer uma análise da contemporaneidade tendo como ponto central
Debord, autor importante para o campo das Teorias da Comunicação.
Palavras-chave: Linguagem;
subjetividade; Outro.
sociedade
do
espetáculo;
fetiche
da
mercadoria;
“Não somente, vinte anos depois de A sociedade do
espetáculo, os Comentários (1988) puderam registrar em
todos os âmbitos a exatidão dos diagnósticos e das
previsões; mas, nesse ínterim, o curso dos
acontecimentos se acelerou em toda parte tão
uniformemente na mesma direção que, apenas dois anos
depois da publicação do livro, se diria que a política
mundial não é, hoje, nada mais do que uma apressada e
paródica encenação do roteiro que ele trazia”
Agamben – Meios sem fim.
A vida por se fazer
O filósofo Renato Janine Ribeiro faz uma observação sobre a sociedade do
espetáculo, conceito de Guy Debord, que quebra a dicotomia simplista entre representação
e vida, ou da substituição do contato com “a vida” pela mediação dos simulacros.
1
Trabalho apresentado no GP Teorias da Comunicação, XV Encontro dos Grupos de Pesquisas em
Comunicação, evento componente do XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.
2
Doutorando em Ciências da Linguagem pela Unisul. E-mail:
[email protected].
1
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015
Ele [Debord] pressupõe que exista uma vida autêntica que é inatingível na
sociedade moderna, capitalista. Mas essa autenticidade não existiu antes e, talvez,
jamais tenha existido. Por isso, ao contrário de outros franceses de sua época,
‘heideggerianos de esquerda’, que valorizavam as sociedades não-européias e o précapitalismo, Debord deixa clara sua opção por uma história entendida como
progresso. A vida autêntica está por se fazer (RIBEIRO, 1997, p. 5).
O que Ribeiro adverte é que, em vez de resumir seu debate na mediação incessante de
simulacros, no qual a televisão teria destaque, Debord pensa o espetáculo a partir do
fetichismo da mercadoria. Ou seja, o que passa a ser foco é a linguagem que define o valor
de troca e sua sobredeterminação na vida. Nesse sentido, a crítica ao espetáculo é uma
exaltação da vida por ser fazer – é afirmação da vida.
O que se pode observar no debate de Debord é que a vida é algo positivo e que se
desenvolve em oposição aos simulacros. Por perceber a importância de Guy Debord para as
Teorias da Comunicação, é que se desenvolve neste artigo uma análise da nossa
contemporaneidade. Por isso, a articulação com outros autores como Agamben, Lacan,
Bauman, Hardt e Negri, com objetivo de abrir caminha para uma nova reflexão sobre o
campo da comunicação que dê destaque para os processos comunicacionais que escapam ao
espetáculo, que desafiam o Império (Hardt e Negri) e que fragilizem o grande Outro
(Lacan).
O espetáculo é a linguagem
Em 1990, Agamben publica La comunità che viene e, em 1996, Mezzi senza fine: note
sulla politica. Nas duas obras, A sociedade do espetáculo, de Guy Debord, publicada em
1967, ganha centralidade. Não por acaso Meios sem fim é dedicado a Debord. O que o
filósofo italiano observa é que “[...] o espetáculo é a linguagem, a própria comunicabilidade
e o ser linguístico do homem” (AGAMBEN, 2015, p. 79).
Em cena, no (anarco)marxismo muito próprio de Debord, a crítica
[...] é integrada no sentido de que o capitalismo (ou qualquer outro nome que se
queira dar ao processo que domina hoje a história mundial) não estava voltada
somente à expropriação da produtividade, mas também e, sobretudo, à alienação da
própria linguagem, da própria natureza linguística e comunicativa do homem,
daquele logos no qual um fragmento de Heráclito identifica o Comum. A forma
extrema dessa expropriação do Comum é o espetáculo, isto é, a política na qual
vivemos. Mas isso significa também que, no espetáculo, é a nossa própria natureza
linguística que vem ao encontro invertida (AGAMBEN, 2015, p. 79).
As considerações levam para uma questão difícil, a da linguagem enquanto
dispositivo de alienação, mas não, simplesmente, do discurso ideológico que falseia uma
2
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015
dada realidade para capturar a subjetividade alheia (assujeitamento). Para além, a
linguagem aqui é tomada como constituidora do sujeito de tal forma que o único modo de
desalienar-se é, ao mesmo tempo, dessubjetivar-se. O caminho seria por meio de um gesto
político de combater a linguagem na sua função de captura do sujeito, fazendo, dela própria,
não uma inversão de um mundo já dado que se estende sobre a paisagem do nosso ser, mas,
ao contrário, um desdobrar-se em ato de um novo evento que deixa à lógica do espetáculo
nauseada, como nos sucessivos protestos de junho de 2013, quando a grande mídia teve
dificuldade de assimilar o que estava acontecendo.
Ora, dizer que o espetáculo é a “própria natureza linguística que chega até nós
invertida” coloca-nos na posição de meio sem fim que reverbera o espetáculo. Podemos,
então, entender a Tese 12, que afirma que, no espetáculo, “‘o que aparece é bom, o que é
bom aparece’” (DEBORD, 1997, p. 16-17), na medida em que toda a extensão subjetiva é
assujeitada pela aparência mediada.
É evidente que a onipresença da televisão estava no olho do furacão, assim como a
internet está na atualidade. Aqui não cabe o debate “do sexo dos anjos” - se é a televisão
que forma os telespectadores, ou se é ela que se adequa ao gosto das massas. Não é do
conteúdo de que se fala, mas da pura aparência como regulador do que é bom.
Juremir Machado dos Santos, na abertura do Intercom Sul 2015, ao citar a Tese 12 da
Sociedade do Espetáculo, fez referência às mudanças recentes do Jornal Nacional, da Rede
Globo, para aumentar o IBOPE: Willian Bonner agora se levanta e caminha para frente da
bancada, de onde conversa com a moça do tempo, a Maju. Não houve mudança de
conteúdo, mas isso foi suficiente para alavancar o IBOPE. Pura aparência que não se
encerra neste duplo (jornal e espectador), mas se estende em comentários na imprensa, nas
redes sociais etc.
Com isso, podemos inverter o axioma de Descartes de que “penso logo existo” para
“sou visto logo existo”, o que atribui maior importância às 221 Teses sobre o espetáculo de
Debord. O conteúdo perdeu toda sua importância. Sobrou somente a aparência que chega
até nós invertida. É a aniquilação da potência.
Na advertência de Meio sem fim, Agamben, ao citar o campo de concentração como
zona de indiferença entre público e privado, percebe que esse modelo acaba por funcionar
como “matriz escondida do espaço político em que vivemos” (AGAMBEN, 2015, p. 79).
3
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015
Não há mais separação do público e do privado, do fora e do dentro; é a espetacularização
das sociedades democráticas como fim do espaço privado.
O fetiche é uma linguagem pervertida
A conhecida Tese 4 da Sociedade do Espetáculo tem a mesma estrutura do fetiche da
mercadoria, desenvolvida por Kal Marx. “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas
uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens” (DEBORD, 1997, p. 14),
enquanto a fetichização da mercadoria é “determinada relação social entre os próprios
homens que para eles [...] assume a forma fantasiosa de uma relação entre coisas” (MARX,
1996, p. 198).
Não é de estranhar que, em “O caráter fetichista da mercadoria e seu segredo”, de O
Capital, Marx estabeleça um deslocamento para o mundo da religião, na medida em que, no
sagrado, “os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras
autônomas, que mantêm relações entre si e com os homens” (MARX, 1996, p. 198).
A análise de Marx, ao prever esse deslocamento, soa para nós, hoje, como profética.
Agamben, em entrevista concedida a Peppe Salvá 3, soube observar, a partir de Walter
Benjamin, esse caráter messiânico: “O capitalismo é uma religião, e a mais feroz,
implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção nem
trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o trabalho e cujo objeto é o
dinheiro”. E, ainda, afirma: “Deus não morreu, ele se tornou dinheiro”.
A premissa parte do “caráter místico”, como o próprio Agamben aponta em
Estâncias:
[...] o produto do trabalho adquire logo depois que assume a forma mercadoria,
depende, segundo Marx, de um deslocamento essencial na relação com o objeto,
pelo qual ele já não representa apenas o valor de uso (ou seja, a sua aptidão para
satisfazer uma determinada necessidade humana), mas tal valor de uso é, ao mesmo
tempo, o suporte material de algo diferente que é seu valor de troca (AGAMBEN,
2007a, p. 67).
O ponto nevrálgico no debate marxista é que o valor de troca sobrepõe o valor de uso.
Esse valor é simbólico e instaura um corte em relação ao uso normal do objeto. Nessa
3
A entrevista foi publicada por Ragusa News em 16 de agosto de 2012. Tradução de Silvino J. Assmann para
o portal Instituto Humanitas Unisinos: Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/noticias/512966-giorgioagamben>. Acesso em: 20 jun. 2015.
4
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015
divisão, abre-se uma fissura pela qual se forma o “caráter místico”. Essa sobreposição do
valor simbólico caracteriza a perversão do objeto e a posição pervertida do fetichista.
E assim como o fetichista nunca consegue possuir integralmente o seu fetiche, por
ser o signo de duas realidades contraditórias, assim o possuidor da mercadoria
nunca poderá gozar completamente enquanto objeto de uso e enquanto valor; ele
poderá manipular de todas as maneiras possíveis o corpo material em que ela se
manifesta, poderá até alterar-se materialmente chegando a destruí-lo, mas, nesse
desaparecimento, a mercadoria voltará a afirmar mais uma vez a sua
inapreensibilidade. (AGAMBEN, 2007a, p. 67).
Em síntese, poderíamos dizer que, em Marx, toda relação é sempre social (entre
pessoas), mas a fetichização cria a ilusão (aliena) de que o sujeito estabelece uma relação
individual com a mercadoria. Nessa ilusão, o sujeito vive a experiência de não se satisfazer
com a mercadoria que adquiriu, já que seu desejo foi mobilizado pelo conteúdo simbólico,
que oculta a divisão entre o valor de troca (os modos de produção) e o de uso.
A mesma percepção de Agamben sobre a alienação da própria linguagem, como um
passo a mais da expropriação da atividade produtiva, serve para a Tese 4. As
representações, ou o espetáculo, destituídas de experiências mobilizam as relações sociais.
Temos nessa fissura aberta entre o valor de troca e o valor de uso a conhecida fala de
Lacan, desenvolvida por Žižek (1996): a de que Marx, e não Freud, foi quem inventou o
sintoma. Žižek estabelece as relações do marxismo com a psicanálise:
O entendimento teórico da forma dos sonhos não consiste em desvendar, a partir do
conteúdo manifesto, seu ‘cerne oculto’, os pensamentos latentes do sonho; consiste
na resposta à pergunta: por que os pensamentos latentes do sonho assumiram essa
forma, por que foram transpostos para a forma de um sonho? O mesmo acontece
com as mercadorias: o verdadeiro problema não é penetrar no ‘cerne oculto’ da
mercadoria – na determinação de seu valor pela quantidade de trabalho consumida
em sua produção –, mas explicar por que o trabalho assumiu a forma do valor de
uma mercadoria, por que ele só consegue afirmar seu caráter social na formamercadoria de seu produto (1996, p. 297).
O trabalho, como aponta Žižek, afirma-se no valor simbólico da mercadoria. Ao
mesmo tempo, foi o próprio Marx que identificou que o trabalhador já não se reconhece
mais no que produz – o trabalhador não se realiza em seu trabalho. Estamos de volta ao
âmago da fissura que desencadeia as “patologias” do social. Ou seja, nem o sonhador se
reconhece no sonho, por isso o analista ocupa o lugar de “suposto saber” (expressão de
Lacan); nem o trabalhador se reconhece no que produz, por isso o sindicato ocupa (ou
ocupava) esse lugar de saber sobre os direitos da classe. Nesse desalinhamento, o sujeito
constitui-se fragmentado, descentralizado.
5
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015
Esse é o ponto que serve para compreender, e aqui é a aposta, porque a subjetividade
fragmentada identifica-se tanto com o espetáculo. No final da Tese 17, quando Debord
afirma que toda a realidade individual tornou-se dependente da realidade social,
encontramos: “Só lhe é permitido aparecer naquilo que ela não é” (DEBORD, 1997, p. 18).
Não é o mesmo que dizer que a experiência individual é sobredeterminada pelas
representações (unificada pelo espetáculo), como se o sujeito fosse constituído neste fora de
si que caracteriza o espetáculo? Na Tese 3, Debord entende que “por se algo separado, ele
[o espetáculo] é o foco do olhar iludido e da falsa consciência; a unificação que realiza não
é outra coisa senão a linguagem da separação generalizada” (DEBORD, 1997, p. 14).
A lógica remete-nos ao grande Outro lacaniano como instância especular de
unificação do sujeito – o Outro na cadeia significante: o pai, a escola, a igreja, o estado etc.
O que se pode observar no estágio de domínio do valor de troca, ou da vida subordinada à
mercadoria, é que o capital recobriu todas as figuras de autoridade. O espetáculo tornou-se
o Outro. O que isso implica? Que as figuras de autoridade foram substituídas pelas imagens
mediadas que se constroem sobre a vida e que, no processo de interação, formam a
consciência (por isso Debord fala de falta de consciência) entre as pessoas.
Um bom exemplo vem de uma campanha publicitária da Folha de S. Paulo, que
circulou a partir de agosto em 2014, coincidindo com o período da campanha eleitoral.
Ocupando uma página inteira do jornal, uma imagem de uma mulher negra e sobre seu
peito a afirmação: “A Folha é contra as cotas raciais. Eu também”. Quem é esse sujeito
oculto – “Eu também” – na campanha da Folha intitulada Sistema de cotas: o que a Folha
pensa, que circulou em diferentes mídias? Não teria aí uma versão irônica da Folha se
colocando onipresente no imaginário social? Não seria esse o foco do olhar iludido e da
falsa consciência? E, aqui, podemos retomar o debate marxista de que a ilusão advém do
desconhecimento dos modos de produção.
Em lacanês, a Folha reivindicaria para si o lugar semelhante ao de grande Outro, só
que, ao invés de um Outro que fala por meio do sujeito, é a Folha, em um gesto publicitário
– usando a modelo Carol Prazeres como interlocutora –, que se apresenta como o superego
do leitor ausente.
Em seguida, outra frase, agora entre aspas: “Não deve haver reserva de vagas a partir
de critérios raciais, seja na educação, seja no serviço público. São bem-vindas, porém,
experiências baseadas em critérios sociais objetivos, como renda ou escola de origem”.
6
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015
Qual a função das aspas, já que, no lugar do autor, lê-se: “Essa é a posição da Folha”. Ora,
para quem desconhece a função das tipologias discursivas, confunde-se facilmente o
enunciado como sendo a opinião da modelo da imagem. Poderíamos arriscar que o Outro
presente no discurso da Folha é o que sustenta a moral burguesa.
Com isso, chegamos ao destinatário da mensagem da Folha. “Eu também” funciona
na mesma posição discursiva da frase entre aspas, cuja mensagem adquire sua
reversibilidade, como se fosse a expressão de um desejo mobilizado pelo Outro. Lacan
percebeu no Seminário A carta roubada (1998) que “uma carta sempre chega ao seu
destino”, mesmo quando extraviada. A quem então se destina a peça publicitária? Ao
Outro, mas não de carne e osso, mas a esse Outro pelo qual sustentamos nosso imaginário,
ancoramos nossas crenças. O que a Folha faz, mais do que tomar partido em período
eleitoral, é afirmar sua posição para este Outro que sustenta o imaginário do grupo e que
está na genealogia do Estado moderno.
Não é de hoje que se ouve que as instituições clássicas da modernidade, como a
família, a igreja, o sindicato, o partido, o Estado, estão enfraquecidas. Mas qual instância
funciona na nossa atualidade como unificadora do sujeito fragmentado? O espetáculo ou a
afirmação da aparência (valor simbólico) como afirmação do capitalismo. O espetáculo
deslizando nas séries metonímicas da cadeia significante. Ou, para torcer mais ainda a
lógica, todas as instâncias do Outro estão sob a égide do espetáculo.
Podemos então compreender a Tese 10, quando Debord considera que o “[...]
espetáculo é a afirmação da aparência e a afirmação de toda a vida humana – isto é, social,
como simples aparência” (DEBORD, 1997, p. 16). Enquanto afirmação da aparência na
vida – por meio da unificação do social (só há unificação na linguagem) –, o sujeito tem sua
potência aniquilada, tornando-se meio sem fim do espetáculo.
Para sair do espetáculo é preciso profanar as imagens construídas sobre o social.
Como exemplo, a leitura de Paulo Arantes, a partir de um artigo de Silvo Mieli sobre os
protestos de junho de 2013, que aponta que “[...] a insurgência de um corpo social
caracterizou-se por ‘uma série de atos profanatórios’” (ARANTES, 2014, p. 390). As
insurgências de junho teriam levado parte do país a profanar no sentido que Agamben dá ao
termo: “Profanar significa abrir a possibilidade de uma forma especial de negligência, que
ignora a separação, ou melhor, faz dela um uso particular” (AGAMBEN, 2007b, p. 59).
7
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015
Como mostra Agamben, “Religio não é o que une homens e deuses, mas aquilo que
cuida para que se mantenham distintos” (2007b, p. 59). A profanação vem como gesto de
subverter a manutenção do capitalismo por meio do trabalho social separado de si mesmo
na forma-mercadoria.
Dessa forma, a crítica, e aqui referindo-se, em especial, à sociedade do espetáculo
feita por Debord, equivaleria à profanação. Em Agamben, a passagem do sagrado ao
profano dá-se por meio de um uso totalmente incongruente. O caminho que o filósofo usa
são os jogos de brincadeira, seguindo as pistas de Walter Benjamin.
O paradoxo do tempo no gesto de consumir
A análise da modernidade como “sociedade do espetáculo” difere do esclarecimento
como mistificação das massas, desenvolvido por Adorno e Horkheimer (1985) como
“indústria cultural”. Adorno e Horkheimer supervalorizam a arte moderna em detrimento da
arte para reprodução, bem diferente da posição pessimista de Debord, que não vê saída do
espetáculo. No entanto, há um ponto que aproxima as críticas: a subordinação da cultura ao
valor de troca, que pode ser observada no “[...] momento em que a mercadoria ocupou
totalmente a vida social” (DEBORD, 1997, p. 42).
No fim, o que está sempre em questão é um velho espectro que ronda a filosofia
desde Platão: a dualidade entre ser e aparência. Contudo, essa dualidade aos moldes de
Marx, ou seja, a aparência como encobridora das condições materiais de produção e, ao
mesmo tempo, produtora de relações fetichizadas.
Nessa cisão, há um paradoxo que se inicia com um dos símbolos da modernidade: o
tempo controlado pelo relógio. O tempo que controla a produção e a força de trabalho e a
mercadoria que satisfaz parcialmente o consumidor. Essa abordagem é desenvolvida pelo
sociólogo Zygmunt Bauman (2008) em Vida para o consumo, no qual o tempo na passagem
da sociedade de produtores para a sociedade de consumidores é a chave para compreender
o debate.
É no domínio da técnica, na produção de bens e do capital simbólico mobilizando
desejos que um certo ritmo dá plasticidade às formas de habitar na modernidade (sociedade
de produtores). Ritmo que se acelera na pós-modernidade (sociedade de consumidores). O
desejo não mais ancorado na crença de satisfação no ter (em uma certa duração de tempo
8
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015
que o sujeito se satisfaria com a mercadoria), mas no próprio movimento do desejo de
desejar, que encontra seu equivalente do gesto incessante de consumir.
Para Bauman, a sociedade de consumo (equivalente à sociedade do espetáculo) se
diferencia da sociedade de produtores na medida em que o “consumo prospera enquanto
consegue tornar perpétua a não-satisfação de seus membros (e assim, em seus próprios
termos, a infelicidade deles)” (BAUMAN, 2008, p. 60).
O que caracteriza uma sociedade de consumidores não é o fato de realizar a compra
de mercadorias, mas sim o movimento compulsivo de consumir e a busca constante do
novo, quase como se estivéssemos à deriva e puxássemos a âncora antes mesmo que ela
chegasse ao fundo do mar (em uma versão psicanalítica, não haveria fundo, apenas um
vazio que se expressa enquanto falta). É o que Bauman chama de “eterno recomeço”.
Essa noção já aparece com Debord:
[...] a fase atual [anos 60], em que a vida social está totalmente tomada pelos
resultados acumulados da economia, leva a um deslizamento generalizado do ter
para o parecer, do qual todo ‘ter’ efetivo deve extrair seu prestígio imediato e sua
função última (DEBORD, 1997, p. 18).
Extrair o prestígio imediato não estaria relacionado ao grau zero do tempo? O aqui e o
agora? É o equivalente ao que Bauman identifica como o motor do consumismo – a
“perpétua não satisfação” –, já que ela só pode ser parcialmente satisfeita neste instante,
neste gesto que caracteriza o próprio consumismo.
Diante da tese de que a sociedade de consumo (ou do espetáculo) tem como
movimento central o gesto de consumir, o que no plano subjetivo seria o desejo de desejar,
busca-se na sequência trabalhar com o conceito de Império, que reforça a hipótese de Marx
de que o capitalismo caminha para a sua realização universal.
O espetáculo é a afirmação do Império
As Teses de Debord sobre a sociedade do espetáculo apontam para o domínio do
valor simbólico sobredeterminado às relações sociais - sobredeterminação como realização
plena do capital. O “declínio do Estado-nação é, num sentido profundo, a plena realização
da relação entre o Estado e o capital” (HARDT; NEGRI, 2004, p. 256). Seguindo as pistas
de Marx, os autores de Império analisam um movimento imanente de expansão do próprio
capital, na direção de sua realização universal.
9
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015
Para dar conta de um movimento descentralizado e desterritorializado, Hardt e Negri
(2004) criam um novo conceito, o de Império, a partir de um problema contemporâneo – a
configuração de uma “nova ordem mundial” como expressão do declínio do Estado
enquanto unidade fundamental. Essa aparente unidade já não ocupa mais o lugar de
pertencimento de uma “comunidade imaginária” (ANDERSON, 2008), o que, no
paradigma da modernidade, seria responsável pela instituição de uma ordem simbólica.
Em certa medida, Hardt e Negri (2004) desenvolvem suas análises a partir dos
acontecimentos da última década do século XX para destacar uma nova ordem mundial,
principalmente com as guerras do Golfo e de Kosovo. Entretanto, de forma quase
visionária, a obra se tornou ainda mais atual com os atentados de 11 de setembro de 2001,
nos EUA, que resultam, primeiro, na guerra no Afeganistão e, depois, na invasão ao Iraque.
Poderíamos ainda agregar os esforços, em 2013, do presidente estadunidense Barack
Obama em aprovar, no encontro (04/09) do G20, em São Petersburgo, na Rússia, o ataque à
Síria após suspeitas de uso de armamento químico pelo governo no conflito social de 21 de
agosto de 2013. Entre os argumentos para um ataque militar, justifica-se que o uso de
armamento químico violaria o direito internacional.
No entanto, o Império não é um processo para outorgar representações da ONU ou do
G20, mas se constitui nas relações de forças que querem dominar e não querem ser
dominadas. Se o Império se movimenta em uma plasticidade para universalizar o capital,
ele se expande no confronto com as forças da Multidão, outro conceito desenvolvido
posteriormente e que corresponde, sobretudo, ao fluxo molecular, das intensidades, dos
devires. É nesse fluxo sem coordenadas da energia da Multidão que deixou a grande mídia,
com boa parte dos especialistas sem chão para analisar os protestos de junho, algo bem
diferente dos protestos que se seguiram em 2014 e 2015, os quais, nitidamente, estavam sob
o foco do olhar iludido – para retomar a expressão de Debord.
O Império, enquanto conceito, opera a partir das relações de poder em escala
globalizada, alterando as funções do Estado em relação aos fluxos de produção e troca 4.
“Através das transformações contemporâneas, os controles políticos, as funções do Estado,
e os mecanismos reguladores continuaram a determinar o reino da produção e da permuta
econômica e social” (HARDT; NEGRI, 2004, p. 12).
4
Um exemplo recente foram as alterações das leis no Brasil para a realização da Copa do Mundo, entre elas a
liberação para consumo de bebidas alcoólicas dentro dos estádios.
10
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015
A mudança impõe uma nova relação do Estado-nação com o que Hardt e Negri
chamam de Império. As relações de poder são constituídas a partir de um outro sem
território, sem fronteiras, sem homogeneidade, mas que faz funcionar o mundo da produção
e da troca, produzindo novas subjetividades. O Império é descentralizado e seu fluxo molar
é da ordem da biopolítica (Foucault), ao passo que seu fluxo molecular é da ordem da
Multidão.
Essa dimensão desterritorializada do Império não funciona no mesmo território
conceitual do espetáculo, nessa dimensão do valor de troca, por isso a plena realização do
capital?
A potência da multidão como vida por se fazer
“A multidão é o único sujeito social capaz de realizar a democracia, ou seja, o
governo de todos por todos” (HARDT; NEGRI, 2005, p. 141). Enquanto no Império os
autores formularam um novo conceito para dar conta das linhas que tecem uma nova
cartografia política da contemporaneidade, em Multidão (2005) a diferença aparece
sobretudo na substituição do proletariado pela Multidão que se move na direção de uma
democracia global (como resistência ao Império, ao mesmo tempo em que é parte
integrante). Contraditoriamente a uma democracia global, a Multidão não se reduz a uma
unidade. Ela é múltipla. “A multidão é composta de inúmeras diferenças internas que nunca
poderão ser reduzidas a uma unidade ou identidade única [...]” (HARDT; NEGRI, 2005, p.
12). Nada mais pertinente do que as imagens das ruas tomadas pela multidão nos protestos
de junho de 2013 com uma infinidade de cartazes levantados, mas as temáticas se
multiplicavam tanto quanto os cartazes – definitivamente, não havia unidade.
A Multidão também difere do povo, que pressupõe representantes. A Multidão
constitui-se nesse novo arranjo de enfraquecimento da democracia representada, podendo
culminar em um devir revolucionário; a democracia direta. “O ‘povo’ é único. A multidão,
em contrapartida, é múltipla” (HARDT; NEGRI, 2005, p. 12).
Considerações
A sobredeterminação do espetáculo nas relações sociais faz com que o próprio
espetáculo torne-se necessário. A Tese 21 de Debord sintetiza bem que “o espetáculo é o
11
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015
sonho mau da sociedade moderna aprisionada, que só expressa afinal o seu desejo de
dormir” (DEBORD, 1997, p. 19). O que se buscou neste artigo é mostrar uma leitura que,
ao mesmo tempo em que coloca Debord no centro do debate com seu tom pessimista, há
nele mesmo um gesto de afirmação da vida, de uma vida por se fazer fora do espetáculo.
Ancorado no debate marxista, sobretudo do fetiche da mercadoria, o espetáculo
representaria o estágio de plena realização do capital. Nesse sentido que se buscou
estabelecer relações com o conceito de Império de Hardt e Negri, que apontam para o
enfraquecimento do Estado-nação como sendo também a plena realização entre o Estado e
o capital.
Essas mudanças observadas já nos anos 60 do século passado fez do livro A sociedade
do espetáculo uma das principais referências nos acontecimentos de maio de 1968.
Enquanto há uma mudança em curso, seja na dimensão do espetáculo ou do Império
afetando as relações sociais, há, por outro lado, alterações na produção de subjetividades.
Referências
AGAMBEN, G. Estância: a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte:
UFMG, 2007a.
______. Meio sem fim: notas sobre política. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
______. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007b.
ARANTES, P. O novo tempo do mundo. São Paulo: Boitempo, 2014.
ANDERSON, B. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do
nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
BAUMAN, Z. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de
Janeiro:Jorge Zahar, 2008
DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
HART, M.; NEGRI, A. Império. Rio de Janeiro: Record, 2004.
______; ______. Multidão: Guerra e Democracia na era do Império. São Paulo: Record,
2005.
LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
12
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015
RIBEIRO, R. J. Feitiçarias do capital. Folha de S. Paulo. São Paulo, 17 ago. 1997.
Especial para a Folha. Caderno Mais!, p. 6.
ŽIŽEK, S. Como Marx inventou o sintoma? In: ______ (Org.). Um mapa da
ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. p. 297-330.
13