O FRAGMENTÁRIO EM “TRESAVENTURA”,
DE GUIMARÃES ROSA
COSTA, Aline Guimarães1
AQUATI, Claudio2
RESUMO: O artigo busca nas teorias do fragmento/fragmentário elementos que permitam a proposição
de uma interpretação de um conto de Tutameia, de João Guimarães Rosa. Tida como uma obra
fragmentária pelo próprio autor, a personagem infantil de “Tresaventura” amolda-se pela interferência
alegórica de três outras estórias, além de outros aspectos de cultura, língua e linguagem trazidos para
um texto em que o número três norteia toda a travessia da aventura da menina.
PALAVRAS-CHAVE: fragmentário; alegoria; lenda; mito.
THE FRAGMENTARY IN “TRESAVENTURA”,
BY GUIMARÃES ROSA
ABSTRACT: The article aims in theories of the fragment/fragmentary elements that allow the analysis
of a tale from the book Tutameia, by João Guimarães Rosa. Regarded as a fragmentary work by the
author himself, the child character of “Tresaventura” is shaped by the allegorical interference of three
other stories, in addition to other aspects of culture, native tongue and language brought to a text in
which the number three guides the entire adventure crossing from the girl.
KEYWORDS: fragmentary; allegory; legend; myth.
Na Alemanha, por volta de 1800, os teóricos Novalis e Schlegel, distanciando-se da tradição
clássica, e, com novas discussões acerca do desenvolvimento da teoria da literatura, em
particular com as proposições sobre o romantismo, fomentaram bases para a formação do
1
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Letras do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas de São
José do Rio Preto (IBILCE – UNESP). E-mail
[email protected]
2
Professor Doutor do Programa de Pós-graduação em Letras do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas
de São José do Rio Preto (IBILCE – UNESP). E-mail
[email protected]
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pensamento moderno. Scheel (2010) não somente aponta como os românticos encurtaram a
distância entre criação e crítica, entre obra e teoria, como também explana a maneira de esses
dois teóricos recriarem as obras fragmentárias da Antiguidade, “fazendo surgir o fragmento
literário, (...) um novo modo de desenvolver o pensamento teórico sobre o ato de criação” (p.
17). A concepção de fragmento literário levaria, portanto, à ideia de um gênero nascido de uma
nova teoria, de um novo olhar sobre a obra de arte.
Os românticos conceberam uma teoria da literatura afirmando a individualidade,
problematizando a “visão ideal de natureza, de equilíbrio, de contenção e padronização dos
sentimentos, do gosto, da criação” (SCHEEL, 2010, p. 20), tendo tomado a obra literária como
“uma realidade individual, única, unitária, que se desliga da totalidade do mundo e que procura,
a partir de sua própria singularidade, alcançar uma totalidade em devir (...)” (SCHEEL, 2010,
p. 21). Contudo, de maneira alguma pode-se dizer que esse processo tenha se restringido ao
fazer poético do verso e, a partir do pensamento de Novalis (apud Scheel, 2010), entendemos
que a poesia extravasou o universo dos metros, tendo invadido outros gêneros discursivos.
Esse entendimento nos remete a pensar na obra de Guimarães Rosa, em seu percurso
exercitado em prosa poética que perpassa não apenas seus contos e suas novelas, mas, também,
seu romance Grande Sertão: Veredas, e estilhaça-se a seguir nos pequenos contos, intensos e
impactantes, de Tutameia, sua última obra, de caráter fragmentário em diversos aspectos.
Entendemos o termo fragmento como polissêmico em pelo menos três direções. Uma
delas é a que caracteriza fragmento como o trecho de um texto ou obra maior perdida, e que,
portanto, o que resta — o fragmento em si — constitui ruína, restos, rastros daquilo que pode
ser reconstruído. Numa segunda vertente, tomamos o termo a partir de seu significado como
trecho de uma obra completa, isto é, como a citação, tomada a uma obra não perdida, conhecida
em sua integralidade. De toda forma, segundo seu caráter de incompletude, será o fragmento
um trecho de uma obra completa. Enfim, já numa terceira direção, segundo nossa abordagem
do termo fragmento neste trabalho, ele pode ser entendido como um gênero textual, donde se
apreende que o fragmento literário consiste num texto acabado, escrito no formato de ensaio,
aforismo, diário, ou mesmo como um conto com características inacabadas, inconclusas,
parciais.
Os escritores românticos, no anseio de promover novas formas de escritura, perceberam
a necessidade de olhar outros aspectos da tradição, motivo que leva Scheel (2010) a considerar
que há “aqueles que escolherão, conscientemente, o fragmentário como possibilidade de
expressão” (p. 56) e que, embora o fragmento já existisse vindo dos gregos e latinos, “os
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alemães recuperarão (...) alterarão sua estrutura mais íntima e o difundirão como forma de
expressão não mais filosófica apenas, mas literária, crítica e poética também” (SCHEEL, 2010,
p. 55). Como gênero aberto, ainda segundo Scheel (2010), temos a impressão de inacabamento,
representado pelo “estilhaçamento de uma totalidade constantemente buscada, mas
decisivamente perdida” (p. 63), ou de “uma síntese perfeita, uma manifestação potencializada
do pensamento que depende de sua própria concisão, de sua inviolável imediatez, de sua
completa pontualidade para germinar (...)” (SCHEEL, 2010, p. 64). Por fim, investindo na
consistência da fragmentação literária, Scheel (2010) aponta que ela constitui “a essência
absoluta do mundo, dos seres, das coisas e da própria linguagem” (p. 66).
A ideia do absoluto é tão generalizada que tudo seria semente, a qual faria germinar e
florescer as ideias de um gênero inacabado. No entanto, entendendo-se o fragmento como um
texto que não necessariamente obedece a uma ordem lógica, com sequência ou consequência
na construção do discurso, ao contrário do que acontece com o ensaio, começamos também a
compreender o quanto Guimarães Rosa mantinha as tradições e, ao mesmo tempo, inovava. Na
verdade, não há um desmonte na sequência, na ordem lógica ou na consequência da sua estória,
mas uma fragmentação no nível textual e um objeto de intensa reflexão.
Como explica Scheel (2010, p. 73), o fragmento não pode ser confundido com um trecho
que o autor não concluiu, mas, sim, ele deve ser considerado como uma reflexão contínua,
perene, inacabável. A essência fragmentária marca uma individualidade, centro da criação
artística: “a singularidade definidora dos modernos diz respeito à afirmação da individualidade
como potência criadora da arte” (SCHEEL, 2010, p. 75). Isso se dá sobretudo em relação à
linguagem, pois, se a singularidade do fragmento está no plano da expressão, então haverá
infinitas possibilidades e interpretações; ao mesmo tempo, seu conceito de individualidade
orgânica nos coloca frente a um ouriço fechado sobre si mesmo, dado que cada fragmento é
também um todo suficiente em si mesmo.
Novalis (apud SCHEEL, 2010) revela que a fragmentação “é uma forma de reencontrar
a totalidade perdida; daí seu caráter paradoxal — forma inacabada, incompleta, que procura, no
diálogo secreto que se estabelece entre cada fragmento, o acabamento e a completude (...)” (p.
78). Se o fragmento é gênero e forma de composição, tal acontece porque ele nasce do
fenômeno poético, transcende o tempo e a historicidade, e, adentrando o universo da linguagem
criadora, vai além dos limites de sua origem, em infinitas possibilidades: sendo atemporal e
incompleto, como já mencionamos, busca, no entanto, a completude.
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Refletindo sobre a literatura moderna, Scheel (2010) observa que seu caráter é
essencialmente fragmentário, dado que as bases de seu processo criativo se situam em
características como “a descontinuidade, a ruptura, o choque e a não linearidade como
características determinantes da criação”. Tratar-se-ia, continua o pesquisador, da “grande
herança de nossa modernidade literária” (p. 150).
E, se Bense (2014) afirma que, no ensaio ,“o objeto é posto em evidência por via
experimental, à luz de uma combinatória de conceitos e ideias, imagens e comparações (...)” (p.
3); Barrento (2010) anexa o fragmento como uma variante do ensaio, havendo neles uma
vontade de silêncio, dado que, durante a fala não se conclui um pensamento sequer, nem se
deixa pensar, como um “pacto da linguagem com a presença que não está nela, mas naquilo que
se retira para deixar restos, ruínas, resíduos” (p. 45). Assim é que o fragmento recai sobre o
não-dito, seu centro é afastado de seu eixo e sua lógica interna é tão peculiar que “conta com o
leitor e as potencialidades comunicativas do silêncio” e divide com o ensaio o desejo de se
“reduzir ao caroço (...)” (BARRENTO, 2010, p. 70).
Chegamos, isso posto, a uma parte importante das teorias que, se são também apenas
fração, fragmentos de uma totalidade, elas nos inserirão no conto de Rosa e nos fornecerão
lentes por meio das quais é possível enxergarmos algumas potencialidades do texto e
perquirirmos o núcleo da linguagem desse escritor que, em sua obra, contempla a essência
fragmentária.
No conto “Tresaventura”, a personagem infantil, tratada pelas pessoas da casa como Dja
ou Iaí, inventava-se como Maria Euzinha e desejava ver o arrozal, entendido como espaço de
plantação familiar. Contudo, por mais familiar que fosse, para lá ninguém a levava. O irmão
incutia-lhe medo, falava do espantalho e dos pássaros, da água e dos bichos peçonhentos. Como
Dja não acreditasse, um dia deixou a segurança da casa da família e seguiu em direção ao
arrozal, onde viu os pássaros e a água toda. Ao avistar a cobra e o sapo, foi então chamada pela
mãe e, por força desse chamado, retornou para casa sem ter chegado ao lugar dos sonhos, como
entendemos em “A mãe, de lá gritando, brava ralhava. Volveu. Travestia o garbo tímido, já de
perninhas para casa.” (ROSA, 2001, p. 246). No entanto, o primeiro sono, depois, ela o dormiu
em estado fantasia, tal como se representa no conto, “entre os gradis de ouro da alegria” (ROSA,
2001, p. 246).
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O título “Tresaventura” sugere, já de início, o tripartido ciclo de vida do ser humano,
que nasce, vive e morre,3 uma tripartição na história com referência ao cultivo do arroz,
composto do ciclo de semeadura, floração e colheita: (a) por efeito do prefixo tres- tomado falsa
ou errônea, mas sugestivamente com o significado de “três”;4 (b) por efeito do prefixo trestomado com propriedade como alomorfe do prefixo trans-, cujo significado aponta para
“situação ou ação além de” (cf. HOUAISS, 2009, s.v.), indicativo de transcendência; e (c) com
o prefixo tres- tomado com propriedade em seu significado, menos frequente em língua
portuguesa, de negação (cf. HOUAISS, 2009, s.v.), indicativo exato daquilo que Dja não
alcançou, isto é, uma aventura. Além disso, nos remete a uma transcendência quando nos
deparamos com a meia volta que faz com que a menina não alcance seu objetivo de ver o arrozal
e permaneça menininha, ao mesmo tempo que retorna e mantém seu jeito, seu lugar, seu estado
de criação, segundo entendemos em “Ia dali a pouco adormecer – ‘Devagar, meu sono...’ –
dona em mãozinha de chave dourada, entre os gradis de ouro da alegria.” (ROSA, 2001, p. 246),
isto é, adormecer seria permanecer distante do arrozal, ou, metaforicamente, distante do
crescimento, da revelação que seria conhecê-lo.
Inicialmente, não se propõe especificamente pela família um nome para a personagem,5
embora tripartidas sobejem formas de tratamento para com a personagem — Dja, Iaí, menininha
—, tal como se observa em “Só a tratavam de Dja ou Iaí, menininha, de babar em travesseiro.
Sua presença não dominava 1/1.000 do ambiente. De ser, se inventava: — ‘Maria Euzinha...’
— voz menor que uma trova, os cabelos cacho, cacho.” (ROSA, 2001, p. 243).
Analisando, os nomes, entendemos que Djá aponte para uma corruptela de “já”,
advérbio que indica o imperativo das ordens e imposições a que se devia submeter a criança,
mas que não aceita em virtude de sua ingente capacidade de se inventar, inventar o mundo, seu
mundo, e de contrariar a proibição de ir até o arrozal. Na verdade, situa-se aqui uma ironia: a
menininha, cuja “presença não dominava 1/1.000 do ambiente” (ROSA, 2001, p. 243),
impunha-se como vontade, pois, para ela, somente com a vontade satisfeita o ser humano se
construía como tal, segundo fala ela com seu irmão, indivíduo fraco, sem personalidade, ele
3
De todo modo, ressaltamos que na Bíblia não são poucas as passagens em que figura o número três e
remete à ideia de equilíbrio, união e perfeição: a Santíssima Trindade de Pai, Filho e Espírito Santo; os
três reis magos; a ressurreição de Jesus depois de três dias; Pedro, que nega Jesus por rês vezes; a
composição do homem: corpo, alma e espírito.
4
Nessa acepção, em língua portuguesa, temos a forma tri-.
5
Segundo Motta (2007), Dja vem de Djim, que em árabe significa entidades benfazejas ou maléficas,
superiores aos homens e inferiores aos anjos; enquanto Iaí “numa inversão do sufixo de diminutivo da
linguagem indígena (i-a’ i-ai=pequeno) para uma posição de prefixo, indicando (...) a abertura para o
impulso lendário (...) (p. 473).
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que não era ele — “Disse ao irmão, que só zombava: − ‘Você não é você, e eu queria falar com
você...’ − Maria Euzinha.” (ROSA, 2001, p. 246).6 Isto é, Maria Euzinha existia (de ser) e
queria crescer, mas cresceria somente se alcançasse a transcendência do simbólico arrozal, a
mesma da qual o irmão era incapaz, motivo pelo qual a procurava evitar com a prosaica
desculpa do excesso de trabalho, “o ror” de tarefas que tinha a cumprir, a lida com “os pássaros
mixordiosos”, “o vira-bosta”, que nem se importavam com a presença de um espantalho.
Pelo mesmo caminho, apontamos Iaí como uma corruptela da expressão “E aí?”, com
que se inquire o resultado de uma situação — seria o próprio resultado da quase-visita ao
arrozal? —, ou uma ordem cumprida (já sugerida em Djá). Quanto a menininha, esse termo
insinua uma branda forma de chamamento e referência à criança sem, contudo, dizer-lhe o
nome. Sua família não lhe oferecia uma denominação pessoal, mas, como ela mesma tivesse a
consciência de que existia como pessoa: “De ser, se inventava: — ‘Maria Euzinha...’” (ROSA,
2001, p. 242) — ela própria resolvia a questão, atribuindo-se a designação de Maria Euzinha,
a qual julgamos ser amplamente significativa, pois, se, por um lado, Maria é um nome muito
generalizado na cultura brasileira, como “denominação de pessoa comum indeterminada (p.ex.,
em Maria vai com as outras, Maria meu bem)” (cf. HOUAISS, 2009, s.v.) tanto que, na prática
significando “mulher”, chega a formar epítetos os mais diversos como Maria Gasolina, Maria
Sapatão, Maria Chuteira; por outro lado, Euzinha é maximamente restritivo, pois, em que pesem
a afetividade e o caráter infantil marcados pelo diminutivo, representa o termo mais próximo
possível a quem pertence o nome, dada a referência direta ao pronome pessoal de primeira
pessoa, sem, no entanto, discriminá-lo com algum referente da realidade imediata.
Acerca de Maria Euzinha, todavia, a intertextualidade com a literatura oferece outros
elementos significativos, sobretudo em relação ao fragmentário, pois essa personagem é o ser
cuja invenção atrairá para a memória do leitor a lembrança de várias histórias infantis, como a
do conto infantil Cachinhos de Ouro 7 (“os cabelos cacho, cacho”) (ROSA, 2001, p. 243); Alice
no país das maravilhas8 (“inquieta como um nariz de coelhinho, feliz feito narina que hábil
dedo esgravata”) (ROSA, 2001, p. 243); e As reinações de Narizinho9 (“ao narizinho de
6
O jogo gramatical na linguagem rosiana desta passagem torna a intelecção muito difícil, pois não se
determina exatamente o sujeito dos verbos disse e zombava, de quem emana o discurso (se da menininha
ou do irmão) e quem seria o referente de você, isto é, se é a menininha referida pelo irmão, ou se é o
irmão referido pela menininha. É digna de nota a oposição espacial que se faz nesse trecho entre o
pronome de tratamento você e o nome da personagem Euzinha.
7
Do original inglês The Story of The Three Bear, de Robert Southey, 1837.
8
Do original inglês Alice in Wonderland, de Lewis Carroll, 1865.
9
Do original brasileiro As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, 1931.
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rebeldias”) (ROSA, 2001, p. 244). Composto de fragmentos inteiros, a estória da menina e seu
universo infantil e diminuto é o desmonte de um trajeto narrativo completo, isto é, estranhar o
arrozal (na verdade, encantar-se com ele), partir para esse local e de lá voltar, cumprido o
reconhecimento do mundo maravilhoso. E o reduzido tamanho físico da personagem menininha
causa um estranhamento justamente porque o olhar infantil, mágico, simples e até entrecortado
manifestará a dualidade de dois mundos: o do adulto e o da criança. Representa o conflito do
mundo mágico com o mundo de desencantos, o bem com o mal, o vilão com o herói. A
fragmentação dá-se no atalhar da empreitada com o susto causado à menininha pela cobra e o
sapo, clímax da história, momento em que ela atira uma “pedrada paleolítica” (ROSA, 2001, p.
245) e a cobra larga o sapo.
Com base na particularizada apresentação da personagem principal do conto,
evidentemente em conjunto com outras noções que a estas se juntarão, como veremos,
aventamos ser esta uma personagem que não se constitui no presente do narrado, que não se
encontra em integralidade, senão que é um fragmento do que seja (sempre no encalço da
expressão rosiana, de ser), isto é, “Ficava no intato mundo das ideiazinhas ainda. Esquivava o
movimento em torno, gente e perturbação, o bramido do lar. — ‘Eu não sei o quê.’ Suspirinhos.
Sabia rezar entusiasmada e recordar o que valia.” (ROSA, 2001, p. 243).
Ela só encontrará integralidade no devir, este entendido com a aventura descumprida da
atalhada visita ao luzente, luminar (imaginado) arrozal — “Antes e antes, queria o arrozal, o
grande verde com luz, depois amarelo ondeante, o ar que lá. Um arrozal é sempre belo.
Sonhava-o lembrado, de trazer admiração, de admirar amor.” (ROSA, 2001, p. 243-244) —, o
qual, quase visitado “...no não perdido”, só completará a totalidade do sentimento de existência
da personagem “no além-passado...” (ROSA, 2001, p. 243, na epígrafe do conto).
Como menina tinha íntima necessidade do movimento da travessia pela linguagem
(MOTTA, 2006), ela “precisava de ir, sem limites. Não cedia desse desejo, de quem me dera.
Opunha o de-cor de si, fervor sem miudeio, contra tintim de tintim.” (ROSA, 2001, p. 244).
Assim, a julgar pela expressão do título — “Tresaventura” —, a transcendência de aventura
como um movimento da travessia constitui a busca do espaço mítico pela menina. Dja inventase — Maria Euzinha — e, nessa criação, transcende a realidade do seu mundo para o mundo
mítico, representado pelo arrozal, que também é projeção da passagem do mundo infantil para
o mundo adulto, a qual não se conclui, é a meia volta da ciranda, como ela não pudera alcançar:
“A mãe, de lá gritando, brava ralhava. Volveu. Travestia o garbo tímido, já de perninhas para
casa. E o arrozal não chegara a ver, lugar tão vistoso: neblinuvens.” (ROSA, 2001, p. 246).
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Como vemos, a simbologia do número coloca a estória a caminho dessa totalidade que
a menina está disposta a buscar, na travessia do cá para o lá, de casa para o arrozal, do real para
o ideal, do espaço conhecido, pragmático, em busca do espaço mítico. A travessia que opõe
contrários:
Antes e antes, queria o arrozal, o grande verde com luz, depois amarelo ondeante, o ar que
lá. Um arrozal é sempre belo. Sonhava-o lembrado, de trazer admiração, de admirar amor.
Lá não a levavam: longe de casa, terra baixa e molhada, do mato onde árvores se
assombram — ralhavam-lhe; e perigos, o brejo em brenha — vento e nada, no ir a ver...
(ROSA, 2001, p. 243-244).
Algo contraposto à alegoria do “Mito da caverna”, de Platão, como bem observa Motta
(2006), a menina vive esse estado do sonho e “terá que passar pelo rito invertido da luz e da
sombra, pois, ao atravessar a porta que a leva ao mundo exterior, a sombra desencadeará a ‘meia
volta’ do retorno ao plano ideal do mundo interior.” (p. 470). É a meia volta da ciranda que a
menina não completa ao voltar para casa, o mundo ideal e o crescimento humano continuaram
inacessíveis, pois ela não vê o arrozal: “E o arrozal não chegara a ver, lugar tão vistoso:
neblinuvens. — ‘A bela coisa!’ — mais e mais, se disse, de devoção, maiormente instruída.”
(ROSA, 2001, p. 246).
A menina cria, inventa um arrozal — “Antes e antes, queria o arrozal” (ROSA, 2001, p.
243) — que se apresenta verde, depois amarelo, e sempre belo. E, mais, ela o imaginava como
se já o tivesse visto, imaginava-o como se lembrasse dele, “sonhava-o lembrado, de trazer
admiração, de admirar amor” (ROSA, 2001, p. 244). Na verdade, era um devaneio poético seu,
no qual, segundo lembra Paro (2008) “uma menininha revela-se detentora de grande sabedoria,
da capacidade de criar um mundo além do real” (p. 799).
Além disso, sugere-se uma leitura do fragmento como arqueológico, com vestígios de
uma origem, desde primeiro parágrafo do conto, com “Tendo ali vestígios de pré-idade?”
(ROSA, 2001, p. 243). A pré-idade mencionada é, por sua vez, sugestiva do período da história
humana que se conhece exata e ironicamente como pré-história, a era dos povos pré-letrados
em que se insere facilmente o cenário da milenar cultura do arroz 10, um arroz que, no conto,
10
Arroz que aparece primeiro como fragmento, singular em terra de arroz, e, depois, sempre no coletivo,
arrozal.
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aparece primeiro como fragmento, singular em “Terra de arroz” (ROSA, 2001, p. 243), e,
depois, sempre como “arrozal”, imagem coletiva do que é integral.
Essa fase pré-histórica também vem sugerida pela própria personagem, que está em
idade pré-escolar, como sugere a descrição da personagem “mão na boca, manhosos olhos de
tinta clara (...) menininha, de babar em travesseiro.” (ROSA, 2001, p. 243), em fase ágrafa,
portanto, e, de maneira suposta, tida pela família como não detentora de vontade. Assim, é para
impor seus desejos que a menina acolhe no íntimo uma espécie de negação de tudo o que a
impede de buscá-los, como indicam os procedimentos apontados ao longo do conto, tais como
“esquivava o movimento em torno, gente e perturbação” (ROSA, 2001, p. 243); “via-se e vivia
de desusado modo” (ROSA, 2001, p. 243); “não dava fé; não o coração”; (ROSA, 2001, p. 244)
“não cedia desse desejo” (ROSA, 2001, p. 244). Seu desejo é buscar o ideal, e, por isso, negando
o domínio exercido pelo mundo adulto e a corrente linear dos acontecimentos, ela afirma e reza
o mundo que aspira.
Em oposição ao espaço em que figura seu mundo cotidiano, de realidade imediata,
enceta uma busca por um lugar que o nega, que idealiza a vida futura na imagem do luminoso
arrozal, alcançável somente se trilhar a trajetória do perigo de que lhe falavam mãe e irmão.
Alegoria, em nossa opinião, da trajetória humana, em que se opõem infância e mundo adulto;
no conto, o cá e o lá. O lá configura-se no espaço mítico, a busca da origem, a transcendência.
Para Barrento (2010) “a fragmentação do dito (que nega) alude à possibilidade de uma
totalidade do/no não-dito.” (p. 141). Nessa totalidade buscada pela personagem que pensa e
sonha com o arrozal, encontra-se o símbolo da vida. Dada a ruptura que promove com a viagem
ao arrozal, a menina opõe-se ao sistema de ordens com que sua família a mantém sob controle,
atitude que inaugura e busca uma nova forma do absoluto para ela, a fase do crescimento e
autonomia: “Sempre a ver, rever em ideia o arrozal, inquietinha, dada à doença de crescer.”
(ROSA, 2001, p. 245).
Para firmar-se na senda da ruptura, pois ela “não cedia desse desejo, de quem me dera.”
(ROSA, 2001, p.244), a menininha nega três vezes o que lhe dizem sobre o lugar para somente
então, depois, iniciar a travessia, que se constitui também em três etapas. Primeiramente o irmão
lhe apresentara o motivo realista do trabalho, “O ror...” (ROSA, 2001, p. 244),11 pois tinha ela
de afugentar os pássaros porque o espantalho não era suficiente. A menina fazia caretas e
demonstrava no seu mundo a comunhão com a natureza, isto é, “devia fazer o ninho no bolso
11
Ror, “grande porção de coisas ou de pessoas; quantidade”. Cf. HOUAISS, 2009, s.v.
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velho do espantalho!” (ROSA, 2001, p. 244). O segundo motivo, por causa do qual não devia
visitar o arrozal, seria a água suja da doença: “a água é feia, quente, choca, dá febre, com lodo
de meio palmo...” (ROSA, 2001, p. 244). Esse motivo a menina renegava, pensando justamente
o oposto daquela afirmação: “a água fria, clara, dada da luz, viva igual à sede da gente” (ROSA,
2001, p. 244). E o terceiro motivo, enfim, que lhe impediria a viagem eram os animais
peçonhentos e mortais que viviam naquele lugar: “tem o jararacuçu, a urutu-boi...” (ROSA,
2001, p. 244), os quais, contudo, a menina neutralizava, transformando tudo em paz — “Iaí
psiquepiscava. Arrenegava. Apagava aquilo: avesso, antojo.” (ROSA, 2001, p. 244). É preciso
sublinhar aqui que, se psique (da formação do neologismo rosiano psiquepiscava) é uma palavra
de origem grega usada para descrever alma ou espírito, separando o que é oposto ao corpo: “(...)
reencarnando a mitológica Psiquê, como uma alegoria da alma, ela transforma a guerra dos
animais peçonhentos e mortais no avesso da alegoria da vida regida pela «paz»” (MOTTA,
2006, p. 473).
Rompido o cerco das provações, inicia-se a travessia da menina, como se descreve no
conto: “soltou-se Iaí, Dja, de rompida, à manhã belfazeja, quando o gato se englobava.” (ROSA,
2001, p. 245). Scheel (2010) explora a ideia da criação de um eu lírico numa forma de
representação autocentrada que, como o gato, englobado, está voltado sobre si mesmo e como
a menina, está em conflito com o mundo que quer alcançar. O mundo criado é expresso com
ousadia pelo sagrado, pois os pássaros a abençoavam, e, além de escutar um chamado que não
é de ninguém, ela supõe que o sapo também reza. Iniciada a travessia, a menina acaba por
desconstruir os três empecilhos que se lhe opunham. O conto tem características do fragmento
como a colocada por Barrento (2010), a saber, desconstrucionista, pois se coloca a serviço de
uma nova totalidade que integra tendências opostas. Assim é que os pássaros se calam durante
seu percurso, e a água, que, mesmo suja, consegue ver seu rosto límpido, é a mãe-d´água. E se,
na última provação, depara-se com a voragem da natureza, isto é, cobra e o sapo na boca, tudo,
no entanto transcorre ao contrário: “aquilo desconcebeu-se (...) a cobra largara o sapo, e fugiase (...) o sapo, na relvagem, a rojo se safando (...)” (ROSA, p. 245-246). Era a morte que se
transformava em vida. Acontece sintomaticamente nesse momento a junção dos dois nomes da
menina na forma Djaiaí quando a personagem dá por si: “Djaiaí sustou-se e palpou-se – só a
violência do coração a bater.” (ROSA, 2001, p. 246). Não é demais lembrar que a personagem,
fragmentada pelo nome, dividida em Dja + Iaí, torna-se Djaiaí e torna-se integral, como se a
junção dos dois nomes representasse o arremate do círculo que formava o anel de sua vida.
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Como, contudo, não finaliza o trajeto, tendo volvido para casa, uma vez que a mãe lhe
gritava, brava, a personagem se materializa na própria linguagem, confirmando que esse é o
lugar do sujeito e que a narrativa em retalhos mal juntados é a metáfora da própria vida da
menina. Mas ela continuará no mundo ideal, pois, se não chegou a ver o arrozal — “A bela
coisa!” (ROSA, 2001, p. 246) —, isso se dera porque sua lógica era regida pela “oposição entre
o céu e o inferno, o microuniverso das imagens do fragmento narrativo, movimentando os
arquétipos do ideal.” (MOTTA, 2007, p. 442).
A inconclusão do percurso, com a meia volta da ciranda, representa junto ao ser humano
a travessia da linguagem do universo lendário e folclórico para o mundo mítico erudito. Mas,
também, para a personagem, “preserva a integridade da paisagem sonhada (...) preserva-se o
‘relembramento’ na esfera ingênua do sonho (...)” (MOTTA, 2007, p. 475-6): “E o arrozal não
chegara a ver, lugar tão vistoso (...)” (ROSA, 2001, p. 246). O arrozal tido como o belo espaço,
o lugar ideal, manteve-se nos devaneios sonhados da menina, e agora Djaiaí desdobra-se
também em Maria Euzinha, “a integração alegórica do autor (‘Euzinha’), unindo a criatura e o
criador nesse universo do sonho que abre o espaço da ‘terceira margem’ para a criação de
estórias (...)” (MOTTA, 2007, p. 476).
De acordo com Scheel (2010), dentro da narrativa há uma forma de apresentação da
personagem que representa uma ruptura, oposta ao sistema totalizante e com uma nova forma
de buscar o absoluto. Fragmentária pela essência absoluta do mundo, essa busca dos seres e das
coisas também ocorre na própria linguagem. Assim, se a menina está fragmentada em Dja e
Iaí, ela também acaba sendo, na junção de seus nomes, Dajaiaí, o desdobramento em Maria
Euzinha. E, ao longo do conto, na construção intensamente figurada da linguagem de Rosa,
enfim percebemos Maria Euzinha, sobretudo pelo eu fortemente salientado no sujeito da
narrativa. A grande transcendência que se dá é a passagem do mundo criativo e criado para o
mundo criador, isto é, passamos de Maria Euzinha para a persona poética que fala por meio de
toda essa alegoria figurada na incompleta travessia da personagem, a partir de tudo em que
acreditou, tudo que forjou e tudo que vislumbrou a caminho de seu crescimento.
Desse modo, segundo as possibilidades interpretativas que indicamos até aqui, o
conto traz um desfecho da personagem manipuladora de sua estória, leitura que encontramos
em “dona em mãozinha de chave dourada” (ROSA, 2001, p. 246). Fundem-se criador e criatura:
“devoção maiormente instruída” (ROSA, 2001, p. 246), nas palavras do narrador do conto, o
retorno de Maria Euzinha para o mundo das ideias, onde não perderá sua inocência, alenta a
continuidade de o arrozal permanecer como um espaço imaginável em meio ao “vistoso” e à
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“bela coisa”, “entre os gradis de ouro da alegria”. Como dona da “chave de ouro”, não fechará,
mas, ao contrário, abrirá sua estória para infinitas possibilidades e interpretações. Os vestígios
fragmentários deixados por Rosa, como vimos, passa por um processo de esfacelamento da
linguagem convencional e composição de uma linguagem recriada, fusão de prosa e poesia, em
que afirma as tradições lendárias e míticas ao renová-las. Todas as alegorias e intertextualidades
trazidas para o interior do conto adquirem significação nova e intensa, e ultrapassam fronteiras
entre o popular e o erudito. Enfim, “entre os gradis de ouro da alegria” está a criatura, o criador
e seu leitor, o triângulo perfeito da travessia do amor.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, M. L. O. A fragmentação do texto literário: um artifício de memória? In:
Interdisciplinar: v. 4, n. 4 – p. 122-131 – Jul/Dez de 2007.
BARRENTO, J. O Género Intranquilo: anatomia do ensaio e do fragmento. Lisboa: Assírio &
Alvim, 2010.
BENSE, M. O ensaio e sua prosa. Tradução de Samuel Titan Jr. In: Revista Serrote, Instituto
Moreira Sales, 2014. http//www.revistaserrrote.com.br/2014/o-ensaio-e-sua-prosa/
HOUAISS, A. e VILLAR, M. de S. Dicionário eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa [CDROM]. Rio de Janeiro: Instituto Antônio Houaiss, 2009, ISBN: 85-7302-396-1.
MOTTA, S. V. O engenho da narrativa e sua árvore genealógica: das origens a Graciliano
Ramos e Guimarães Rosa. São Paulo: Ed. Unesp, 2006.
PARO, S.R. O devaneio poético no conto Tresaventura, de Guimarães Rosa. In: Fragmentos
de Cultura, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 799-809, set. / out. 2008.
ROSA, J. G. Tresaventura. In: Tutameia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
SCHEEL, M. Poética do Romantismo: Novalis e o fragmento literário. São Paulo: Ed. Unesp,
2010.
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