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HISTORIASDAHISTORIA

Um escudo com quatro barras azuis e 3 amarelas e, nas barras amarelas, três flores-de-liz vermelhas dispostas em diagonal, da esquerda para a direita. Continuando, Mendes diz que lhe sucede o seu filho, nos inícios do século XVII, Francisco Rebelo Caminha. O brasão da família Caminha é: Foto 3: brasão da família Caminha. Retirado de https://pt.wikipedia.org/ Escudo vermelho com três barras brancas em diagonal, da direita para a esquerda. Das pontas das barras brancas, e do seu centro, saem três flores-delis douradas. A do meio é uma fechadura ou tranca. Santo diz que Caminha vem do hebraico: KaMu INH (kamina): agarra, colhe, liga; oprime, aperta. K-MNO (kaminoi): assim retém, segura, e mantem afastado. QaM INH (kamina): exterior, adversário, aperta. KaM M-INu (kammino): agarra, liga, colhe, pelo olho. KaM Ina/INH/INu (kamina/o): agarra, liga, quando, mediante, e de fora/ aperta, olho. K-MI Ina/INH/INu (kamina/o): de facto qualquer um, de fora/ aperta, olho. Notem-se os homófonos: INAde fora, e quando, e mediante INHaperta, oprime INuolho (1997, p. 136). Sucede o outro filho de Rebelo, em 1656, Gonçalo Rebelo da Silva. O brasão da família Silva é: Foto 4: brasão da família Silva. Retirado de https://pt.wikipedia.org/ Hsr aw > ghasarao (área cercada pelo mar, pátio do mar). Assim, Alfeizarão significa o castelo cercado pelo mar. Proponho a minha interpretação, que não colide com a de M. E. Santo: Alfeizarão vem de al (povoação, parentela) + phz (aventureiro, atrevido) e/ ou + pês (Júpiter) + rhm (Júpiter, donzela). Significa: povoação, parentela, de Júpiter, o aventureiro; e/ povoação, parentela, que distribui compaixão, que distribui orgulho. Alfeizarão também poderá vir de alp (aprender, ensinar) + eseru (desenhar, gravar). Significa: onde se aprende e ensina a gravar, a desenhar, a escrever. Uma escola. Alfeizarão seria uma povoação orgulhosa da sua ascendência Jupiteriana e que tinha uma famosa escola. Algumas ruas de Alfeizarão: Rua dos Arneiros « ar (luz, brihar) + nêru (matar). Significa: rua onde o brilho, a luz, mata, de brilho intenso, ou rua que esconde a luz e o brilho. Rua do Relego « ahl (ovelha) + hgh/ ègè (gemido): rua dos gemidos das ovelhas, rua dos bardos de recolha das ovelhas. Rua das Ramalheiras « ramu (desfazer-se) + laru (ramificações, bifurcações): Rua que se desfaz em ramificações.

0 Capa de Belmiro Gonçalves, 2024. ÍNDICE Índice …………………………………………………………………… 1 Introdução ……………………………………………………………... 3 1. «É comparar o olho do cu com a feira de Castro» ……………… 4 2. A Quinta dos Espadeiros, Almada: Resgate dos Cativos ………... 6 3. Alfeizerão e a Sua Região: História e Toponímia e Salir do Porto .. 14 4. São Martinho do Porto: Lenda e História ………………………... 26 5. Nossa Senhora de Asse Dasse (Folgozinho da Serra) …………. 33 6. Covide – Terras de Bouro: Santa Eufémia …………………….. 35 7. Pinhel: Brasão e Toponímia …………………………………… 39 8. Nossa Senhora de Alcamé: Uma Lenda da Serpente ………… 43 9. Viana do Alentejo: O Brasão e a Senhora D’Aires ……………. 47 10. O Palácio Real e a Vila de Vendas Novas: Razões de uma Construção. 56 11. A Freira e o Diabo: as Irmãs do Mosteiro de Odivelas ………... 72 12. Igreja Matriz de Bucelas: Nª Srª da Purificação e o Anjo Custódio . 89 13. Liturgia Católica Dominical : Simbolismo do Número Três ……. 101 14. Amato Lusitano: o Homem, o Médico Renascentista e as IST … 112 15. Amadora: Estudos para a Sua História ……………………… 118 15.1. Pedro Franco Pedro dos coelhos Segundo Eça de Queirós……. 118 15.2. Quinta do Assentista: Organização Agrícola Voltada para o Mercado. 119 15.3. Portas de Benfica: Construção e Simbolismo …………………… 121 15.4. Cemitério: a Org, do Espaço dos Mortos Segundo os Vivos …… 125 15.5. A Festa da Árvore na 1ª República: Rito Cívico, Culto Pagão … 129 15.6. Nª Srª da Lapa: Sex. de num Culto Antigo. Toponímia e Religião. 142 15.7. Toponímia da Amadora: a Língua Fenícia na Região ….……… 169 1 16. Alcoutim: Concelho e Região ……………………………………. 191 16. Terras Portuguesas com Nomes Curiosos ……………………… 201 17. Satan no Livro de Job ou a Solução Judia para o Sofrimento …….. 206 Fontes e Referências Bibliográficas …………………………………… 229 2 INTRODUÇÃO Durante uma trintena de anos, investiguei e escrevi. Este livro é a compilação de algumas dessas investigações e escritos no período de 1993 a 2024. Estes estudos, entre outros objectivos, pretendem explicar a origem dos nomes, que é fenícia, como já escrevi noutros livros e artigos, explicar factos, usos e costumes e, simultaneamente, mostrar que a historiografia oficial portuguesa omite, esconde e mente, porque é pró-romana e pró-católica. A linguagem popular, na esmagadora maioria dos vocábulos, deriva do fenício/hebraico/cananita e, mais tarde, também do cartaginês, que passo a designar apenas por fenício, e que era a língua falada pelos Lusitanos. Igualmente dezenas de expressões populares e da linguagem dos marinheiros, como bem mostrou Santo (1988, 1989, 1993, 2004). Mais tarde, a partir do século XII, o latim incute-se na linguagem, mas nunca abandonando o seu carácter restrito e os grupos clericais e intelectuais, passando a ser a língua oficial das Universidades. Assim, temos muitas palavras em duplicado: uma de origem fenícia, mais popular; outra, de origem latina, mais intelectual e muito mais tardia. É o caso de cara/face; sapata/pé; casa/lar ou habitação; ir de cana/ser preso; patranha/mentira; chanfrado/delirante; que vêm do fenício/ latim, respectivamente. Outro caso, para exemplificar: monte e herdade. Monte, no significado de elevação, colina, vem do latim mons, montis, cujo acusativo é montem; cai o m, como é vulgar, e fica monte. Monte, no sentido de organização agrícola, tipo monte alentejano, não vem de montem, mas sim do fenício mnt, que pode ler-se montu e significa «parte que coube em herança». O latim trouxe a palavra hereditas, hereditatis, cujo acusativo é heriditatem e deu herdade, que significa «parte que coube por herança». Exemplo de expressão popular é «sopa d’urso»/ «molhou a sopa», que significa alguém que entrou numa briga e bateu forte no outro. Sopa vem do fenício swpe, que pode ler-se sope, e significa «esmagar». Nota final: as fotos são do autor, quando não identificada a sua proveniência. 3 1 . «É COMPARAR O OLHO DO CU COM A FEIRA DE CASTRO» O Significado de uma Expressão Feira de Castro virá do fenício/ cartaginês: Feira < phr (acordo, coluio, assembleia, reunião). Castro < khs (negar, abandonar), khs (partir, desaparecer rapidamente) + trh (casar-se, pagar o preço pela mulher, coabitar). Castro significa: negar o casamento, negar a coabitação, negar pagar o preço pela mulher; desaparecer rapidamente do casamento, partir do casamento. Feira do Castro significa: assembleia onde se nega o casamento, assembleia onde o casamento desaparece rapidamente. Significa feira ou assembleia onde são permitidos à vista de todos, os actos homossexuais entre homens. Assembleia ou feira onde dominam os actos homossexuais à vista de todos sem receio, vergonha ou pudor. Não se deve dizer, porque errado, feira de Castro Verde, visto a feira do castro ser um acto não localizado ou datado. É como dizer feira de gado, feira da cebola, feira da cereja … As quadras, retiradas de https://terraruim.wordpress.com/2010/01/20/o-olho-docu-e-a-feira-de-castro/, comprovam a ideia que apresento. Quadras que confirmei serem conhecidas por todos os alentejanos mais velhos, e menos velhos: «Adeus oh feira de Castro «Adeus oh feira de Castro Nunca mais te vou esquecer que já te vou conhecendo Levo a ponta do pau gasto levo a ponta do pau gasto e as bordas do cu a arder» e as bordas do cu ardendo». Assim, a expressão «é comparar o olho do cu com a feira de castro» não significa comparar o pequeno com o enorme, nem faz sentido comparar cu com uma feira; se fosse comparar tenda com feira ou mercado com feira, faria sentido; trata-se, de comparar um acto homossexual, de quando em vez, com a frequência, o excesso orgiástico, um excesso sodomita. Como se pode ler no Gènesis: «Ainda não tinham ido deitar-se, quando todos os homens de toda parte da cidade de Sodoma, dos mais jovens aos mais velhos, cercaram a casa. Chamaram Ló e lhe disseram: “Onde estão os 4 homens que vieram à sua casa esta noite? Traga-os para nós aqui fora para que tenhamos relações com eles”. Ló saiu da casa, fechou a porta atrás de si e lhes disse: “Não, meus amigos! Não façam essa perversidade! Olhem, tenho duas filhas que ainda são virgens. Vou trazê-las para que vocês façam com elas o que bem entenderem. Mas não façam nada a estes homens, porque se acham debaixo da proteção do meu teto”. “Saia da frente!”, gritaram. E disseram: “Este homem chegou aqui como estrangeiro, e agora quer ser o juiz! Faremos a você pior do que a eles”. Então empurraram Ló com violência e avançaram para arrombar a porta. Nisso, os dois visitantes agarraram Ló, puxaram-no para dentro e fecharam a porta. Depois feriram de cegueira os homens que estavam à porta da casa, dos mais jovens aos mais velhos, de maneira que não conseguiam encontrar a porta». (Gn 19, 4 – 11). 5 2. A QUINTA DOS ESPADEIROS, ALMADA O Resgate dos Cativos Visitei a Quinta dos Espadeiros em Junho de 2021. Começo por analisar quatro factos: 1. Qualquer aluno do 7º ano, como qualquer português, sabe que os cristãos foram barbaramente perseguidos e mortos, do imperador Nero (54 d.C.) ao Imperador Constantino (306), que deu liberdade de culto aos cristãos (313). Contudo, poucos saberão, ou terão em conta, que os cristãos, logo após o imperador Teodósio ter declarado o cristianismo a religião oficial do Império, pelo Édito de Tessalónica (380), começaram a perseguir e a matar os fiéis das outras religiões, bem como a queimar e destruir os seus templos e bibliotecas, caso da de Alexandria. Esta perseguição e morte continuou até ao fim da Inquisição. Até 1821, milhares de homens e mulheres foram perseguidos e mortos, quase sempre queimados vivos, por professarem outra religião, lerem livros proibidos, realizarem rituais não católicos ou acusadas de bruxas. Dando crédito a Lea (1908), entre 1540 e 1794, os tribunais de Lisboa, Porto, Coimbra e Évora queimaram 1.175 pessoas vivas. Ainda, porque as vítimas haviam morrido, queimaram a efígie de 633 pessoas; castigaram e torturaram quase 30.000 pessoas. Há que não esquecer o número de processos desaparecidos, pela mão do tempo e do homem, bem como os que morreram nos cárceres da Inquisição devido a vários factores como doenças e maus tratos. 2. Como qualquer religião nova, o cristianismo pretendeu apagar tudo o que pudesse lembrar as antigas religiões. Por um lado, chama estas religiões, pejorativamente, de «religiões pagãs» e aos seus rituais de «superstições». Por outro, substitui a toponímia antiga por termos latinos. Ainda, constrói sobre antigos templos e sobre antigas lendas, ao mesmo tempo que substitui deusas e deuses por santas e santas, cujo nome e funções são semelhantes aos dos deuses, e por Maria, Nossa Senhora. É por isso que o catolicismo tem dezenas de santos e santas e Maria, diz Reis (1967), tem 1.315 invocações, e o deus do gado Aton passa a santo Antão, santo dos gados. 3. O significado actual de uma palavra pode não ser, e quase sempre não é, o significado original. Fiz as minhas investigações académicas, maioritariamente, na Beira Interior e, daqui retiro um exemplo: Pedrógão Grande e Pedrógão Pequeno. Segundo os historiadores, a fundação das povoações deve-se a um alto dignatário romano, o que está dentro da cultura mediterrânica, que coloca sempre um alto 6 dignatário, o herói, o rei ou o deus na sua fundação bem como coloca este acto, quase sempre, ab initio, desde o início dos tempos, do nada, como se duma criação divina se tratasse: «no princípio, criou deus o céu e a terra» (Gn 1,1). Este alto dignatário chamava-se Petronius; será, então, Petronius grande e Petronius pequeno; em latim, Petronius magnus e Petronius parvus. Vejo raiva na cara dos habitantes de Pedrógão Pequeno. Mas a verdade é que parvus significava pequeno no tamanho físico e, agora, por evolução semântica, significa pequeno no intelecto. Os monges da Ordem Militar de Santiago da Espada eram chamados espadários. Não por a espada ser um símbolo do seu escudo, mas porque espadário, lê-se no dicionário da Língua Portuguesa, significa «gladiador, soldado do rei de Bizâncio». Bizâncio foi Constantinopla e é Istambul. Contudo, não acho difícil que espadários possa ter dado espadeiros; embora os gregos e, mais tarde, os latinos, tenham fixado as vogais, o mecanismo da leitura permanece cananita: escrevemos vizinho, mas dizemos vezinho e arrastando o «z». Durante séculos, os mouros do norte de África, como os portugueses e como outros povos, assaltavam navios, atacavam cidades para saquear, fazer prisioneiros para escravos e alguns prisioneiros eram poupados à escravatura, e até a maus tratos, para poderem ser reféns e os donos receberem o resgate. Basta lembrar, para o caso português, os desastres de Tânger e Alcácer-Quibir. É fácil, pois, de compreender a alta importância que tinha a função de resgate dos cativos. Com esta quase exclusiva função foi fundada, por um espanhol, a Ordem da Santíssima Trindade ou Trinitários. Esta ordem teve papel muito activo no século XIII. Contudo, a sua função é esvaziada pelo rei Afonso V, falecido em 1485, que tomou em suas mãos esta função. É também fácil de compreender que o rei não tomou esta função para si próprio, antes a terá atribuído, delegado, a um alto dignatário da sua confiança. 1. Análise dos Nomes Pego agora nos nomes. a) Quinta dos Espadeiros Quinta « kin nht, que pode ler-se quineta e significa fixar residência, fixar o trono, local de repouso. 7 Espadeiros « ês/ is (onde, para onde) + padu (poupar, redimir) e/ou pdh (resgatar, libertar) + rôw (vontade, decisão) e/ ou roh (apascentar, guiar, liderar). Quinta dos Espadeiros significa: onde fixou residência o líder que redime; onde fixou residência quem lidera o resgate, quem lidera a libertação. b) A capela tem o orago de Nossa Senhora do Vale. Vale não tem a ver com o vale geográfico, ainda que possa, às vezes, coincidir. Se fosse esse o seu significado, o Alentejo teria centenas de Senhora do Vale e mesmo o Minho e Trás-os-Montes teriam dezenas. Como não é o caso, outro é o seu significado. Vale vem de bal, baal, bel e significa senhor (grande proprietário, juiz, príncipe, rei, deus); o senhor das nossas aldeias. Na aldeia, há o ti Jaquim e o senhor Jaquim ou senhor Joaquim. O primeiro é um aldeão igual a todos; o segundo é rico ou grande proprietário, ou o senhor padre, ou o senhor professor, ou o senhor juiz, ou o príncipe ou o rei, ou deus, Senhor Jesus, Nosso Senhor, Nossa Senhora. Nossa Senhora do Vale é Nossa Senhora do Senhor. Uma tentativa de cristianização. A propósito, o alfabeto fenício não tem vogais e apenas 22 consoantes. O V é substituído pelo B, como no Minho, vaca é baca e, no castelhano, Ivan lê-se Iban. Também não tem o F, que é substituído pelo P ou PH, como em português, era Pharmacia, e ainda o é em muitas línguas ocidentais. c) Vale de Mourelos De vale, ficou dito atrás. Os romanos designavam os fenícios por fenícios e os cartagineses por fenícios ou por púnicos. Mas utilizavam o termo mouros, com carácter pejorativo. A cultura é milenar, pelo que não é por acaso, embora o próprio não o saiba, que Pinto da Costa, pelo menos, desde que é presidente do F. C. do Porto, designe os do Sul por mouros. Mourelos « moros (fenícios, cartagineses) + los (falar língua estrangeira). Vale dos Mourelos significa: onde mora o senhor dos fenícios/ cartagineses, povo que fala uma língua estrangeira. Mourelos poderá também vir de mhr (guerreiro, soldado; dote, preço pago pela mulher) + la (ser forte; força, vencer). Significará: o senhor forte guerreiro. Juntando os três significados próximos, Vale de Mourelos significa: onde habita o senhor do povo fenício, senhor que é um forte guerreiro. 8 d) Caramujo Caramujo é o local onde estava construída a fábrica de cerâmica do Dr. José Elvas, a norte da quinta. Poderá vir de karmu (maninho, terra cultivada) + si (ruína, desolação; poço, pântano). Significa: terra em ruína, em desolação. Porém, se o local é abaixo da quinta, o local parece-me que tem, teve muita água. Assim, retiro o radical MU, e coloquei palavras semelhantes: corujais vem de krs ara/ qrasr (fonte que fala, fonte que insidia augúrios). corujeira vem de krs/ qr sr (casa de adivinhação, fonte de adivinhação). Introduzo o radical MU, que significa água, logo, reforça os significados anteriores. Concluindo: caramujo vem de krs mu ara e significará: local da água que fala, local da fonte/poço cuja água fala. O que concorda com o atrás referido si, poço, pântano. Lembro que, quando se queria abrir um poço, pedia-se a um homem, com o «dom», que pegava numa vara e onde essa dobrava, havia água, e abria-se o poço. Eram os vedores. Vedor < bd/ bad (haste, varal, ramo) + rhs (estar agitada). Significa: aqueles que confiam no ramo que se agita. Lembro ainda que, na Beira Interior, pelo menos, Caruja significa chuva miúda: «está a carujar». 2. Proprietários Mendes (2016) escreve que o proprietário da quinta, em 1488, sete anos depois da morte de Afonso V, é João Fernandes de Sousa. Sousa tem o brasão: Foto 1: Brasão da https://pt.wikipedia.org/ família Sousa. Tirado de Um escudo com quatro quartos crescentes, ou pétalas, encaixados em flor, brancos em fundo vermelho. José Matoso diz que a família Sousa, nos nobiliários medievais, é a família com mais prestígio. O seu nome vem de SwS (sôse) e significa resplandecer, desabrochar, brotar (flores e sementes). «Equivale ao quadrifólio, símbolo heráldico vulgar, mas este é mais imaginativo». (Santo, 1997, p. 217). 9 No final do século XVI, continua o autor, é proprietário Manuel Vaz Rebelo. O brasão da família Rebelo é: Foto 2: brasão da família Rebelo. Retirado de https://pt.wikipedia.org/. Um escudo com quatro barras azuis e 3 amarelas e, nas barras amarelas, três flores-de-liz vermelhas dispostas em diagonal, da esquerda para a direita. Continuando, Mendes diz que lhe sucede o seu filho, nos inícios do século XVII, Francisco Rebelo Caminha. O brasão da família Caminha é: Foto 3: brasão da família Caminha. Retirado de https://pt.wikipedia.org/ Escudo vermelho com três barras brancas em diagonal, da direita para a esquerda. Das pontas das barras brancas, e do seu centro, saem três flores-delis douradas. A do meio é uma fechadura ou tranca. Santo diz que Caminha vem do hebraico: KaMu INH (kamina): agarra, colhe, liga; oprime, aperta. K-MNO (kaminoi): assim retém, segura, e mantem afastado. QaM INH (kamina): exterior, adversário, aperta. KaM M-INu (kammino): agarra, liga, colhe, pelo olho. KaM Ina/INH/INu (kamina/o): agarra, liga, quando, mediante, e de fora/ aperta, olho. K-MI Ina/INH/INu (kamina/o): de facto qualquer um, de fora/ aperta, olho. Notem-se os homófonos: INA – de fora, e quando, e mediante INH – aperta, oprime INu – olho (1997, p. 136). Sucede o outro filho de Rebelo, em 1656, Gonçalo Rebelo da Silva. O brasão da família Silva é: Foto 4: brasão da família Silva. Retirado de https://pt.wikipedia.org/ 10 Escudo branco/ cinzento com um leão vermelho voltada para a esquerda. José Matoso escreve que «os Silvas radicam na região de Braga e Lanhoso mas, em meados do século XII um deles é alcaide de Santa Eulália, na Beira». (Santo, 1997, p. 213). Santo escreve a sua origem hebraica: Se LB’ (xeleba): o que é, leão. Si LB’ (xileba): dádiva, presente, do leão. Si LBi (xilebia): dádiva, presente, da leoa. Si LBu (xilebo): o que é, recto. Si LBH (xileba): o que é, chama, fulgor, raiva. Muitos são os brasões que ostentam um leão. Leão, escreve Santo, nome de cidade e do reino nortenho, é a tradução de Silva ou o inverso; pode o nome Silva ter origem no conteúdo do «escudo do leão» uniforme de Cavalaria lido em hebraico e/ ou ser o «leão» de origem totémica». (1997, p. 214). Sucede, escreve Mendes (2016), outro filho de Manuel Vaz Rebelo, Francisco Borges Coelho. O brasão da família Coelho é: Foto 5: brasão da família Coelho. Retirado de https://pt.wikipedia.org/ Um escudo com rebordo a azul com cinco coelhos brancos; um leão vermelho, voltado à esquerda, mas com quadrados azuis e dourados. Este brasão já não segue os antigos. Perdeu-se o significado intrínseco ao brasão, pois o nome da família Coelho tem coelhos no brasão. Conclusão Entre 1438 e 1481, o seu reinado, D. Afonso V nomeou um nobre da sua confiança para conduzir os processos de resgate dos reféns portugueses feitos por 11 muitos, mas, principalmente, pelos «piratas» do norte de África, uma das razões que levaram à conquista de Ceuta. Este alto dignatário é João Fernandes de Sousa que tem casa em Lisboa, mas terá, igualmente, a Quinta dos Espadeiros. Esta quinta tem, com certeza, algumas casas ou cabanas, onde morariam os caseiros e outros empregados. Fernandes é filho de Fernando; es tem em junior o seu equivalente latino. Em 1488, sete anos após a morte de D. Afonso V, João Fernandes de Sousa, por não se sentir bem em Lisboa e na Corte, ou por outra razão, muda-se para a sua Quinta dos Espadeiros. Para que esta seja digna de si e da sua família, procede a obras de fundo dando-lhe a o aspecto actual, ou próximo. Sousa é o nome familiar mais importante na Idade Média. Sousa significa, como disse, resplandecer, qual sol; e desabrochar, dar vida, a flores e a sementes. Há pois uma ligação simbólica à força divina na figura do sol e da criação. Depois de Manuel Vaz Rebelo, segue-se Francisco Rebelo Caminha, também filho do primeiro proprietário, referido. Caminha significa aquele que agarra, segura, aperta, oprime, alguém guerreiro, senhor de si e de sua força e poder. Sucede outro filho, Gonçalo Rebelo da Silva. Na linha dos seus antecessores, este Silva tem a força e a coragem do leão, e da leoa, que, sabido, é é ela que caça. Além da coragem e força, tem a rectidão no seu carácter. Foto 6: Azulejo com Santa Ana e São Joaquim, pais de Maria, e Maria. «Sta Ana Socorrei os Misaraves». Foto do autor. 2021. Pelos brasões, ligados à cultura hebraica, e pelos nomes, ligados à cultura fenícia, ambos 12 cananitas, estes nobres teriam ligações à comunidade judaica, geralmente, rica e culta. E saberiam bem o porquê dos nomes Vale de Mourelos, Quinta dos Espadeiros e Nossa Senhora do Vale. Isto é, a quinta é a residência do senhor dos resgates dos reféns, localizada numa região de povoamento fenício, e onde, desde há séculos, governava um senhor, alto dignatário, grande guerreiro, como no século XV e seguintes. Mais, o azulejo, em tons de amarelo por cima da porta, foto 6, é, nitidamente, de influência judaica. Para fugirem a castigos e prisões, os judeus, mais tarde, cristãosnovos, inventavam defesas. Uma delas era colocar quadros, azulejos … com personagens cristãs, mas, simultaneamente, judias. Outras vezes, apenas Ana, Maria e Jesus. Este facto em nada ofende a religião e cultura judaica, pois, em ambos os caos, são três judeus. Outras vezes são painéis e quadros com imagens do Antigo Testamento. Os anjinhos não são de origem cristã, mas muito mais antigos. Contudo, poderá dizer-se, que a pomba do Espírito Santo, que lança raios protectores sobre Ana e Maria, principalmente, é figura cristã. Sim, mas não só. O manto protector da Senhora da Misericórdia, por exemplo, é Shekina, a face protectora e feminina de Javé, o que, aqui, é simbolizado numa pomba. Pomba foi a ave que trouxe o ramo de oliveira a Noé. Miseráveis não eram apenas os pobres e outros, mas também os judeus assim se consideravam, pois eram constantemente perseguidos, presos e expoliados. 13 3. ALFEIZARÃO E A SUA REGIÃO História e Toponímia Já o escrevi em alguns estudos, pelo que, aqui, apenas reafirmo que a esmagadora maioria das palavras da linguagem popular, bem como centenas de expressões populares e, igualmente, dezenas de expressões marinheiras (gíria dos marujos), vem do cananita (fenício, hebraico, ugarítico, acádico), que, por facilidade, designo por origem fenícia. Apresento o nome das povoações, origem e significado do nome. De seguida, apresento algumas ruas, que ajudarão a esclarecer e a confirmar o significado das ruas, como da povoação. Por fim, uma conclusão. Quando não referenciado o livro, foi usado o Dicionário Fenício-Português, de M. E. Santo, de 1993. 1. Toponímia de Alfeizarão Escrevo Alfeizarão e não Alfeizerão, como actualmente. Na parede da igreja matriz e à saída, na direção das Caldas, estão dois azulejos com o nome da povoação: Alfeizarão. Serão do século XIX e este será o nome popular da povoação. Experimente-se pronunciar, com atenção, Alfeizerão e Alfeizarão; este nome é bem mais fácil de pronunciar; o primeiro exige mais músculos bocais. Foto 7: Alfeizarão, parede da Igreja Matriz, foto do autor, 2022 O topónimo é sempre de uso local e num processo de referência único, como diz Santo (2014). O Al no nome das povoações nada tem a ver com o al árabe, antes é um prefixo cananita e significa castelo, quinta, vila, palácio, mansão. Continuando com o autor referido, Hzr aw > gazarao, fazarão (castelo, reduto do mar, mansão do mar). 14 Hsr aw > ghasarao (área cercada pelo mar, pátio do mar). Assim, Alfeizarão significa o castelo cercado pelo mar. Proponho a minha interpretação, que não colide com a de M. E. Santo: Alfeizarão vem de al (povoação, parentela) + phz (aventureiro, atrevido) e/ ou + pês (Júpiter) + rhm (Júpiter, donzela). Significa: povoação, parentela, de Júpiter, o aventureiro; e/ povoação, parentela, que distribui compaixão, que distribui orgulho. Alfeizarão também poderá vir de alp (aprender, ensinar) + eseru (desenhar, gravar). Significa: onde se aprende e ensina a gravar, a desenhar, a escrever. Uma escola. Alfeizarão seria uma povoação orgulhosa da sua ascendência Jupiteriana e que tinha uma famosa escola. Algumas ruas de Alfeizarão: Rua dos Arneiros « ar (luz, brihar) + nêru (matar). Significa: rua onde o brilho, a luz, mata, de brilho intenso, ou rua que esconde a luz e o brilho. Rua do Relego « ahl (ovelha) + hgh/ ègè (gemido): rua dos gemidos das ovelhas, rua dos bardos de recolha das ovelhas. Rua das Ramalheiras « ramu (desfazer-se) + laru (ramificações, bifurcações): Rua que se desfaz em ramificações. Foto 8: Capela de Santo Amaro, Alfeizarão, 2022. Azinhaga do Rio « az (apertado) + nhh (caminho); Travessa Sousas dos «sws (florescer, brotar) ou swsh (égua). Significa algo relacionado com o brotar, a fertilidade) da terra ou fecundidade dos animas. Rua Nova « nb (profetas, adivinhos). Rua dos profetas, Rua dos adivinhos. 2. Outros Topónimos Próximos da Alfeizarão Casal é o mesmo que catraia, significando pena povoação, povoação miserável. 15 Macarga «mhqr (profundezas) + ga (voz). Onde se ouve a voz das profundezas; seria um oráculo? Casal do Sol Posto, primitivamente, seria Alto do Sol« Sulam» soleima ou salema ou Balsemão «balseiman (Senhor do Céu, Senhor do Sol). Pequena povoação onde mora o Senhor do Céu. Sapateira «sapattu (lua-cheia) ou spt (juiz. Governante) + ra (sopro, vento). Significa: onde sopra a lua-cheia; onde sopra, faz ouvir a sua voz, o juiz. Quinta dos Casais «kin nht (fixar residência, lugar de repouso, trono). Significa: onde fixaram residência pequenas povoações. Casais do Norte «nrt (campo de labor); nor (libertar-se) + th (ordenar). Pequenas povoações do (muito) trabalho; pequenas povoações onde foi ordenada a libertação. Quinta dos Carrascos «qrs (morada, fortaleza, pavilhão) + ka/ ki (teu, tua). Onde tem assento o teu pavilhão. Casal do Pinhão « pu (lei, boca, palavra) + nh (suspirar) ou nhh (conduzir, guiar). Pequena povoação dirigida, conduzida, pela lei; onde se suspira pela lei. Vale da Palha «bal (senhor) + pl, pal ou pilel ou pal’ l (juiz). Significa: onde habita o senhor juiz (das ordálias). O Tejo desagua no Mar da Palha. Casal da Macalhona «mkll/ mikelol (perfeição, beleza) + nunu (pesca, peixe). Significará: pequena povoação da pesca perfeita. Lombeiro «lwn (seguidor, discípulo) + biru (adivinho, jovem touro). O seguidor do jovem touro. Casal do Pardo «phr (acordo, assembleia), + dh (enfermo, doente); do (conhecimento). Significa: pequena povoação da assembleia sobre os doentes, uma espécie de hospital; pequena povoação da assembleia do conhecimento, do saber. A pequena povoação onde funcionaria uma espécie de faculdade de medicina. Casal da Fonte da Figueira e Casal das Figueiras «pgr (cansados): pequena povoação da fonte dos cansados. Cadassoeira «qadasu (purificar) + hr (concepção, parir; monte, montanha; caverna); qds (santo, santuário) + eru (gravidez). Significa: santuário da gravidez, monte da purificação, caverna da purificação. Ramalhiça «rm (alto, excelso) + lis (leão). Lugar do excelso leão. Sendo o leão uma hipóstase de Júpiter, é possível ser o lugar do excelso Júpiter. 16 Vale da Hoste «bal (senhor) + hôs (o que está fora) + ths (delfim). Significará: o senhor delfim atento. Casal do Aguiar «agr (recolher, armazenar). Pequena povoação do armazém, do celeiro. Mosgueiros «mhs (destroçar, esmagar) + geru (estrangeiro, inimigo). Significa: ode o inimigo foi destroçado. Casal da Venda «bnd (adivinhos, sacerdotes, augúrios). Pequena povoação onde habitam os sacerdote, adivinhos e /ou augúrios. Mestras «mhs (destroçar, esmagar) + tr (arrojar). Local onde se arrojaram e esmagaram. Casal da Malhada «ml ht (sítio de águas e alimentos). Pequena povoação onde há água e alimentos para os pastores. Casal Novo «nb, i (profeta). Pequena povoação onde habita o profeta. Casal da Cabana «Ka (teu, tua) + banu (progenitor, criador). Pequena povoação onde habita o progenitor, o criador da tribo. Vale da Quinta «bal + hi nht: pequena povoação onde o senhor vive, tem o seu trono. Malinha « maliim (doenças). Significará, próxima de outros nomes, local onde eram expostos os doentes? Casal Velho «bel (senhor). Pequena povoação onde mora (outro) senhor. Sapeiros – sapal «spl (lugar baixo, lugar fundo). Carrasqueiros «krs (morada, acampamento, pavilhão) + keru (jardim, forno). Significará lugar do pomar, lugar do forno. Charnais «zwr (esmagar) + nas/ is (ultrajar, intolerável). Onde o ultraje foi esmagado. Ribeira do Marete «marêtu (apascentar). Lugar maior das pastagens. Calmeiro «kalmaeru (machado) ? Peso «phz (aventureiro, atrevido, leviano). Alguma relação com o Júpiter avetureiro de Alfeizarão. Santana «smt (cornalina) + ana (para, até). Até à cornalina, pedra semipreciosa. Terá existido aqui uma mina. Casal da Ladeira «ldh (dar à luz, parto) + rh (sopro, alento). Significa: povoação pequena do bom parto. 17 Cruzes «qrs (morada, fortaleza, pavilhão). Semelhante a outras já referidas, local de acampamento de soldados. Salir de Matos «sa (de quem se diz) + matu/ metu (morrer) ou mtw (doença, enfermidade. Local de que se diz que cura as doenças. Tornada, rio Tornada «tôr (touro) + na’ adu (louvar, elevar): onde se eleva, onde se louva o touro. Valado De Santa Quitéria Valado é baladu,, pois o alfabeto fenício não tem o «v», que é substituído pelo «b». Balado, seguindo Santo (1989), significa circunscrição administrativa. Ainda hoje, na Beira Interior, um valado é um muro de terra, feito através de contínuas lavouras, ao longo dos anos, tombando a terra, com a aiveca, para a mesma linha.. Este valado divide os terrenos. Santa Quitéria é a cristianização da antiga deusa cananita Kythèria, Kiteria, Kuteria que, diz Santo (1989), significa vermelha. Kitéria, continua o autor, é o título dado pelos fenícios a Astarté, divindade guerreira, associada a krt, a senhora do berit/ parazu. Cabelo vermelho ou ruivo é a cor dos guerreiros, dos líderes. Kiterie está associada ao hebraico Qatar, que significa cortar de alto a baixo. Quitéria foi uma das nove gémeas que a mulher de um alto funcionário romano deu à luz. Descontente por ter dado à luz tão numerosa prole, mandou a criada afogá-las no rio. Porém, esta optou por entregar as bébés a nove famílias, para que as criassem, uma cada. Analisando este facto numa perpectiva históricocronológica, não faz sentido. O pai saberia da gravidez e do parto; em segundo lugar, é impensável que uma criada tomasse tal decisão por si mesma. Foto 9: Imagem de Santa Quitéria, uns 40 cm. Valado de Santa Quitéria, foto do autor, 2021. Numa perspectiva lendária, onírica, estes factos ganham coerência. Começando pelo número, nove representa o conceito gnóstico da perfeição; é o período da gestação no útero feminino: é a Santíssima Trindade a triplicar: 3 x 3, 3+3+3. 18 As nove filhas/ santas são, segundo Santo (1989), Quitéria (Eumélia ou Eufémia), Liberata (ou Virgeforte), Gema (ou Marinha), Margarida, Genebra, Germana, Basilissa, Márcia e Vitória. O autor escreve que as oito irmãs de Quitéria não passam de «adjectivos que se repetem: Liberata, a livre ou libertadora, ou Virgem forte; Marinha, Gema, Margarida, a que está no mar; Germana, irmã ou par da divindade masculina; Basilissa, a santa; Márcia, a guerreira; Vitória, a vitoriosa». (1989, p. 188). Em Felgueiras, as nove santas estão dispostas em triângulo, começando no vértice com Quitéria, Germaa e Liberata, Genera, Basília, Marinha, Eufémia, Victória e Marciana. O nome das ruas de Valado de Santa Quitéria confirmam o que escrevi. A rua que dá acesso à povoação é Rua da Moira. É a zona mais verdejante do Valado. Moira, escreve Santo (1989), vem do fenício môrh e significa gruta; de mwr, transformar-se, encantar-se; de m’rh, aparição, visão. Algo muito generalizado em Portugal: a moura encantada. Esta moura nada tem a ver com os mouros da nossa História. É a mãe iniciadora, é Astarte, é Shequina, a face amável e feminina de Javé. Rua do Porto Carro terá sido, originalmente, Rua Fonte do Carro. Carro, continuo com o mesmo autor, vem do fenício qar e significa fonte. Acontece aqui algo frequente na toponímia de origem fenícia/cananita, que é o nome original e a sua tradução: Rua da Fonte Fonte. Se o original é Porto Carro, porto é termo latino que significa porto (ancoradouro) e porto de abrigo. O que seria a Rua da Fonte de Abrigo. A esta fonte acorriam os viandantes e quem procurasse adivinhos e esconjuros, porque a rua conduz à povoação Casal da Venda. Casal, é o mesmo catraia, e significa povoação pequena, povoação sem importância; venda vem do fenício vnd e significa casa dos adivinhos, casa dos sacerdotes, casa dos esconjuros. Rua do Frade não tem a ver com qualquer frade antes vem de prh (ser frutífero, florescer, propagar-se) e/ ou pr (fruta) + di/ dei (o suficiente, o necessário). Rua do Frade é a rua onde floresce o suficiente. Algo ligado ao nascer, e florescer da natureza. Algo diretamente ligado a Astarte e Santa Quitéria. Rua do Santo vem de smt (destruir, destroçar, aniquilar), o que liga diretamente à Santa e Astarte, «cortar de alto abaixo. Vem de samtu (cornalina). Rua da Cornalina. Cornalina é uma pedra semi-preciosa de cor vermelha. Vermelha é Kiteria. Rua do Vale Simão é mais uma ligação direta a Quitéria e Rua do Frade: vem de bal (senhor) + smh (germinar) e/ ou smh/ sèmah (renovo, rebento, crescimento). 19 Outras ruas. Rua da Corredoura não é a rua onde se corre, mas a rua que serve de corredor, o principal, e às vezes, único acesso à povoação. Rua da Arneira, já explicámos atrás. Rua do Poço da Caseira « kasiru (tecelão). Será a Rua do Poço do Tecelão. SALIR DO PORTO Lê-se em http://porcaminhosdecister.blogspot.com/2010/04/salir-do-porto-suahistoria.html: «O seu toponímico “Salir”, além de significar “saimento” significa também em Português arcaico, “morrer”. E, de facto, ainda hoje, ali “morrem” as ribeiras de Alfeizerão e de Tornada, que se juntam para formar o rio Salir». Não! O significado da palavra não é o significado actual, na maioria esmagadora dos casos; tem de se procurar o significado da palavra quando ela foi inventada. Salir não é sair ou morrer; se assim fosse, metade das fozes dos rios portugueses seriam salir e a outra metade seriam entrar. A origem deste topónimo, como de quase todos entre o Douro e o Tejo, é fenícia, hebraica, ugarítica, cananita; fenícia, por facilidade de expressão. Salir < Sa (de quem se diz) + lir/ lim (onde se pernoita, onde se descansa). Significa: onde se diz que se pernoita. A confirmar este significado, vem o topónimo porto, de origem latina, mais tardio, que significa o mesmo: porto, apoio, abrigo, descanso. Será interessante verificar se abaixo e acima, +- 40 km. Há outros abrigos, pois os fenícios faziam esta diária. Foto 10: Capela de Santa Ana; foto do autor, 2022. O mesmo blogue diz: «Salir do Porto está situado no “sopé” de uma colina que se destaca das restantes. O nome popular desta colina é Castelo, pois no seu topo, de fácil acesso, existem algumas ruínas de uma antiga fortificação». Não! Castelo, primitivamente, não 20 designava a fortificação; esta apropriou-se do topónimo castelo, que significava e significa a parte mais alta da povoação. No concelho de Idanha-a-Nova, Zebreira e Segura têm rua com o nome Castelo, mas ambas nunca tiveram qualquer fortificação. Em https://www.tornadaesalirdoporto.pt/freguesia/heraldica, lê-se: «Escudo de prata, uma bandeira quadrada de azul com haste de ouro, carregada de uma estrela de cinco pontas de prata e acompanhada em chefe à dextra de um camaroeiro de vermelho e à sinistra de um livro de prata realçado de vermelho. Coroa mural de quatro torres de prata. Listel branco, com a legenda a negro, em maiúsculas: “SALIR DO PORTO”. Para além dos escusados latinismos dextra (direita) e sinistra (esquerda), a estrela de cinco pontas é a estrela de David; quanto ao livro, poderá ser a Thora, ainda que esta seja em forma de rolo. A capela de Santa Ana vem confirmar o que escrevemos. Santa Ana é uma mulher judia, mãe de Maria, judia também. Santa Ana, como acontece com santos e santas católicos, é a cristianização de antigos deuses e antigas deusas. Os cristãos escolheram o santo cujo nome mais se aproxima da sonoridade do nome do deus e fica com a sua função. As placas em madeira que, ao longo do caminho até à capela, indicam a direção a seguir, têm escrito «Capela Nª Srª Sant´Ana». Para que não fiquem dúvidas quanto à santidade, aproximam-na de Nossa Senhora (Nª Srª), a maior santa, mãe de Jesus. Foto 11: Ruinas da Alfândega, 2023. Santa Ana é a cristianização da deusa cananita Anat/ Anatu, a deusa da guerra, mas também da paz; é apresentada como deusa sexual e fértil, aquela que gera descendência (o que a aproxima de Santa Ana e Maria) mau grado, Anat continue a ser chamada de virgem e donzela, o que a aproxima de Maria. Salir do Porto teve Alfândega. 21 Em https://www.tornadaesalirdoporto.pt/freguesia/locais-a-visitar/10- pode ler-se: «aqui funcionou uma Alfândega que servia todo o concelho e na qual eram reparados e construídos barcos, com madeiras provenientes do Pinhal de Leiria. Rezam as lendas que aqui terão sido construídos alguns dos barcos que participaram na Campanha das Índias de Vasco da Gama e onde foi construída e abençoada a Nau São Gabriel». As Juntas de Freguesia, tal como as Paróquias, não devem publicar textos sobre a sua história sem que passem por um consultor científico. É claro e imediatamente visível não haver espaço para a construção naval na zona da Alfândega. A terra ergue-se em colina imediatamente depois do mar. O que aqui se escreve sobre a construção naval pertencerá à história de Alfeizarão e não à de Salir do Porto. Jaime Cortesão, um historiador dos Descobrimentos Portugueses muito conceituado, escreveu que, durante o século XV havia, na foz do rio de Alfeizarão, uma intensa construção naval. E. no século XVI, seguindo uma testemunha da época, citada por M. Alzira Marques, o porto era capaz de acolher 80 navios de alto bordo. Com o recuo do mar, 4/ 5 km., poderá ter passado o porto para São Martinho do Porto, e talvez a construção naval, mas não vislumbro em que local se situaria. O site atrás citado diz que a Alfândega é do século XVIII; o site http://www.aguas.ics.ul.pt/leiria_avelha.html diz que é do século XVI. A Torre do Tombo, em https://digitarq.arquivos.pt/details?id=8031244, aponta o primeiro documento escrito em 1846. Atenção, é apenas isso, é o primeiro documento escrito encontrado e seleccionado. A propósito da igreja matriz de Salir do PortoO SIPA – Sistema de Informação para o Património Arquitectónico coloca a fundação da Igreja de Nossa Senhora da Conceição nos séculos 18/19 e faz a descrição da Igreja, interior e exterior. Da igreja, escrevo apenas do sol radiante, no topo do altar-mor, e da imagem de Nossa Senhora da Conceição, o orago da paróquia. Conceição, palavra portuguesa; concepción, castelhana; conceptio, latina, significa aquela que concebe, aquela que está grávida e dará à luz. Parece haver vergonha de falar, e mostrar Nossa Senhora grávida, vergonha que não existiu durante séculos, mas não há qualquer hipótese de Maria não ter estado 22 grávida em Nazaré. Alguém pode imaginar uma mulher dar à luz sem ter estado grávida numa pequena cidade, numa cultura rural, em tudo semelhante à nossa aldeia? Nossa Senhora da Conceição é antecedida por Nossa Senhora do Ó, Nossa Senhora da Expectação e estas por antigas deusas-mãe, caso da muito cultuada deusa Cibele, que tem na Grécia a sua sucessora Afrodite. Foto 12: Nossa Senhora da Conceição, 2022. A Senhora veste túnica branca, a cor da pureza, e manto azul, a cor do céu. Se olharmos Nossa Senhora de lado, como mostra a foto, é claramente visível o estado de gravidez. O mesmo acontece, como disse, com Nossa Senhora do Ó e Nossa Senhora da Expectação: conheço, respectivamente, na capela do Castelo de Montemor-o-Velho e altar–mor da Igreja Matriz do Ladoeiro (Idanha-a-Nova), sendo seu orago. Encima o altar, em dourado, um sol radiante constituído por 16 raios, que brotam de um círculo, tendo um triângulo equilátero, lados e ângulos iguais (60º cada), como mostra a foto. Dezasseis é o quadrado de 4, pelo que contém toda a força deste e representa o poder das forças materiais. Por ser o dobro de 8, é, duplamente, o equilíbrio cósmico, símbolo do equilíbrio e da justiça. Foto 13: Sol radiante no altar-mor, 2022. O círculo será o olho de Hórus, ainda visível nalguns barcos na Nazaré e Aveiro. Deus está presente, tudo vê, e protege. O triângulo poderá ser a Santíssima Trindade, mas o Cristianismo/ Catolicismo tem dois mil anos e muitas 23 trindades houve antes desta, sendo Osíris, Ísis e Hórus a mais conhecida. Mas o que me parece mais ser é o triângulo da Maçonaria, do Maçon, do construtor de catedrais. Quem desenhou esta pequena escultura tina isto em mente? Não, certamente, Mas quando homem constrói algo, individual ou colectivamente, constrói obedecendo a modelos/ arquétipos multi-seculares recebidos da cultura como que por osmose e sonho. Por fim, o sol radiante, vulgar em muitas igrejas e capelas portuguesas, é de origem mitraica, tal como o hissope. Mitra foi a religião que rivalizou com o Cristianismo até ao imperador Constantino. À esquerda da Igreja, para quem entra, ergue-se uma capela particular. Às pessoas a quem perguntei o orago não me souberam dizer. Foto 14: Capela do Calvário, 2022. Contudo, apresento duas hipóteses assentes no desenho central que parecem ser três cravos saindo de uma corroa. Será a capela do Calvário, pois são os três cravos com que cravaram pés e mãos de Cristo à cruz e a coroa de espinhos. Acrescento que a capela do calvário, ou o Calvário, está no ponto (mais) elevado da povoação, como aqui. Se forem três setas, será a Capela de São Sebastião, que, ao que me disseram, tem imagem dentro da capela. Inclino-me para a primeira hipótese porque, das muitas capelas de São Sebastião que conheço, as setas desenhadas são claramente setas e, aqui, são claramente, cravos. Conclusão O Senhor (senhor rei, senhor príncipe, senhor grande proprietário, senhor juiz, senhor governador, senhor deus) mora no Casal Velho; no Vale da Quinta fixou residência, este ou outro senhor; um senhor, especialmente atencioso e preocupado com os seus súbditos, certamente, mora no Vale das Hoste; o senhor Sol, ou senhor Céu, é 24 adorado, e vive, no Casal do Sol Posto; igualmente na Ramalhiça, onde se adora o excelso leão, animal solar; o senhor das ordálias, o senhor juiz, mora no Vale da Palha. Mas o principal senhor viveria no valado de Santa Quitéria, onde haveria o culto da germinação das sementes, da flora e de Astarté. O exército, a fortaleza ou o pavilhão está nas Cruzes e Quinta das Carrascas. Os profetas, adivinhos e sacerdotes augúrios vivem no Casal da Venda, Casal Novo e Gaio; no Gaio também repousariam os peregrinos. Peregrinos que se dirigiriam a Salir de Matos, onde pernoitavam para saber da sua doença e cura; ligada à doença está Malinha; e/ ou no Casal da Ladeira, para virem a ter, aqui ou em casa, um bom parto; e/ ou no santuário (caverna ou monte) da Cadassoeira para purificação depois do parto ou para ajudar a engravidar; talvez também a Macarga, para ouvirem a voz das profundezas, um oráculo, possivelmente. Há dois deuses em evidência: Júpiter e o touro. Talvez mesmo um só, sendo o touro uma hipóstase animal de Júpiter. No Lombeiro habitam os discípulos do jovem touro, de Júpiter jovem. O touro é igualmente adorado na Tornada, e no Rio. Peso também está ligado a Júpiter. Alfeizerão, ou Alfeizarão, é a povoação de Júpiter, o aventureiro, certamente, um Don Juan. Também Calmeiro se encontra ligado a Júpiter (e a Démeter) pois significa «machado» e este é o símbolo do raio e da chuva, ligado à fertilidade. Sapateira também estava ligada a Démeter. Alfeizarão, mais fácil de pronunciar que Alfeizerão, e é o que está escrito nos painéis da entrada e saída da povoação, além de tempo central de Júpiter, seria também uma escola famosa onde se aprendia/ensinava a desenhar, a gravar. Povoações ligadas ao saber e à lei são Casal do Pinhão e Casal do Pardo. O celeiro da região seria em Casal do Aguiar. E o local de recolha e abrigo dos pastores e do gado seria em Casal da Malhada. As melhores pastagens seriam das do Casal do Marete. Santana teria mina de cornalina, pedra semipreciosa, tal como Vale de Santa Quitéria. Salir do Porto é o abrigo principal dos mareantes. Por fim, há povoações ligadas a duríssimas batalhas ou conflitos: Casais do Norte, Mosgueiros, Charnais e Mestras. 25 4 . SÃO MARTINHO DO PORTO E À SUA VOLTA Lenda e História A primeira questão a colocar é «que são Martinho» é este? São Martinho de Tours ou São Martinho do Dume? São Martinho de Tours foi bispo de Tours e viveu entre 316 e 397. São Martinho de Dume, ou de Braga, terá nascido a 518 e falecido a 579. Foi bispo de Braga a partir de 569; converteu os Suevos; traduziu várias obras, fundou alguns mosteiros e deu os actuais nomes aos dias da semana. As festividades acontecem no dia 11 de Novembro e a 20 de Março, respectivamente. 1. São Martinho Em https://paroquiadesaomartinhodoporto.pt/, pode ler-se: no interior da igreja matriz, o elemento mais relevante é a pintura a óleo com a imagem de São Martinho. A tela com dez metros quadrados representando São Martinho a dar metade da sua capa a um pobre, é uma reprodução do quadro de El Grego, executada pelos pintores Martim Avilez e António Mendes de Oliveira, durante as últimas obras de 1968. Está colocada no antigo Trono da CapelaMor, ladeada por talha dourada, que contem dois nichos com as imagens de São Martinho e de São Pedro Apostolo, encimando o altar com sacrário, também de talha dourada». Assim, oficialmente, a paróquia é de são Martinho (de Tours) do Porto. Contudo, há casas com azulejos de «São Martinho», bispo, com Mitra e Báculo, de Tours ou de Dume? Foto 15: São Martinho de Tours, Igreja Matriz; foto do autor, 2022. A paróquia diz que é São Martinho de Tour e, na religião popular não há santos intelectuais. Há santos mártires ou sofredores, ou velhos de barbas sexualmente inofensivos, casos de Santa Catarina de Alexandria, São Francisco de Assis e Santo Antão e, mesmo, são José 26 No respeitante a «Porto», designa, certamente, o porto de mar. Contudo, há séculos, o porto de mar, ainda no século XIV, era em Alfeizarão. Por isto, «Porto» será um acrescento mais recente. A propósito, o limite de São Martinho seria, a norte, o miradouro do Facho, pois Facho < patu fronteira, borda); < pâtu (território, distrito, região); o outro limite poderia ter sido Valado de Santa Quitéria, pois valado < baladu (limite administrativo). Valado, na Beira Interior e no Algarve, pelo menos, são divisórias dos terrenos. Apresento a lenda como é vulgarmente conhecida, isto é, São Martinho encontra um pobre a quem dá metade da sua capa, que cortara com a espada. Contudo, dar metade da sua capa e não toda, não parece ser comportamento de um santo, ou présanto. Para justificar este comportamento, há várias histórias e Rita Cipriano (2014), faz uma adenda à lenda, a pedido, isto é, apresenta o segundo mendigo à entrada da cidade, assim justificando a metade da capa anteriormente dada ao mendigo: « Num dia frio e chuvoso de inverno, Martinho seguia montado a cavalo quando encontrou um mendigo. Vendo o pedinte a tremer de frio e sem nada que lhe pudesse dar, pegou na espada e cortou o manto ao meio, cobrindo-o com uma das partes. Mais à frente, voltou a encontrar outro mendigo, com quem partilhou a outra metade da capa. Sem nada que o protegesse do frio, Martinho continuou viagem. Diz a lenda que, nesse momento, as nuvens negras desapareceram e o sol surgiu. O bom tempo prolongou-se por três dias». Na noite seguinte, continua a autora, Cristo apareceu a Martinho num sonho. Usando o manto do mendigo, voltou-se para a multidão de anjos que o acompanhavam e disse em voz alta: “Martinho, ainda catecúmeno [que não foi batizado], cobriu-me com esta veste”. Nitidamente, esta história está mal contada e, por isso, a autora contradiz-se pois Cristo deveria aparecer com as duas metades da capa. Elisabeth Hallam (1998), escreve que os emblemas do santo são o globo de fogo e os gansos. Sulpício Severo, aristocrata romano, culto e rico, e contemporâneo, fica fascinado com o comportamento pouco comum de Martinho e escreve, entre 394 e 397 a biografia, daquele que ficaria conhecido por São Martinho de Tours. 2. Análise do Nome Martinho e da Lenda Seguindo Moisés E. Santo, (1989): Martinho vem de mhrthm e significa dote pago/ dote contractado/ contactado. Martinela, mhrthm’l, dote de fiança de parente. 27 Martinhais, mhrthm’l, dote combinado. Martinho significará aquele que pagou o dote combinado. Talvez, aquele que pagou a fiança/ resgate de um parente. Consultando M. E. Santo, Dicionário Fenício-Português …, 1993: Martinho poderá vir de m’r/m’ôr/maurh, que significa lugar luminoso, corpo luminoso, luzeiro (sol, lua); lâmpada, + tnh, cantar, celebrar. Assim, Martinho significará aquele que celebrou o sol. Martinho poderá ter em mrtim a sua abreviatura, e significa obstinado, rebelde, o que está de acordo com o que pensou o seu biógrafo Suplício Severo. Martinho significará aquele que é obstinado, que é rebelde. Continuando com o mesmo autor, Martinho poderá vir de: Mhr/ mohor, que significa dia seguinte, amanhã, futuro + tnh, que significa cantar, celebrar. Martinho significará aquele que canta o dia seguinte. M’r, que significa doloroso, dorido, maligno+ thnh, que significa perdão, misericórdia. Martinho significará aquele que concede um doloroso perdão. 3. Simbolismos São Martinho de Tours foi enterrado três dias depois da sua morte e o sol brilhou três dias depois de ter cortado a capa e ter dado metade ao pobre. Assinalou-se a negro no texto três dias. O número três é a pedra angular sobre a qual se constrói a obra. A obra final não existe sem que tenha havido o três. Por isso é que este acto bondoso, referenciado pelo próprio Cristo, é realizado antes do baptismo, pois é a pedra angular sobre a qual vai assentar o templo, o baptismo que o tornará cristão. O Fogo, consultando o Dicionário de Símbolos, de Chevalier e Gheerbrant (1982), segundo os hindus, corresponde ao Sul, ao vermelho, ao Verão e ao coração. São Martinho, dizem os autores, escreveu que o homem é fogo. O fogo, continuam os autores, é a melhor imagem de deus. O Ganso selvagem é o mensageiro entre o céu e a terra. No Egipto, o faraó era identificado com o sol e a sua alma em forma de ganso. O ganso, dizem os autores, «é o sol saído do ovo primordial». Assim, com o fogo e com o ganso, se explica o «Verão de São Martinho». 28 4. Conclusão Rescrevo a lenda de São Martinho: um soldado romano, certamente um centurião, tinha um familiar refém de um dote ou dívida, ou até refém de algum pirata ou corsário, que não podia pagar, pois era muito pobre, miserável mesmo. Martinho, que servira 30 anos na legião romana, tinha algum dinheiro amealhado e com ele pagou a dívida do seu familiar. Mais, não quis que o familiar lhe ficasse a dever fosse o que fosse. Radiantes com este gesto, o Céu se abriu, o Sol sorriu e, por três dias, o Inverno se escondeu. 5. Igreja Matriz de São Martinho do Porto A igreja matriz (mater, matris: mãe) ou igreja paroquial (paróquia) é do século XVIII, diz o site paroquial. A torre sineira foi edificada em 1878 e tem nela inscrito, com algumas letras danificadas: O relógio foi colocado em 18 de Junho de 1908 e vendido por A. C. dos Santos, Lisboa. A torre sineira tem um catavento encimado por um galo e este por uma cruz latina. Interessante a análise simbólica masculino/ feminino. Foto 16: torre sineira. Igreja matriz, como disse, é mãe/ feminino; um etnólogo das religiões vê a missa dominical como o reentrar no ventre materno e tornar a sair, num processo de anamnese, de renovação física, metal e psicológica; a torre sineira é feminina e masculino é o sino e o galo que marcam o dia e a hora; o feminino é mãe, que abraça, que acolhe no seu colo, o masculino é pai disciplinador. Abaixo da torre sineira, à sua direita, uma placa rectangular com a seguinte inscrição: ~ 29 «FOI EDIFICADA A TORRE EM 1878 COM PARTE DO LEGADO DEIXADO Á CONFRARIA PELO EX.MO [EXCELENTÍSSIMO] S.NR [SENHOR] JOSÉ BENTO DA SILVA NATURAL DD’ESTA FREGUESIA» 6. Cemitério de São Martinho Jazigos e mausoléus ricos. Exemplo é os dois Jazigos no início, lado direito, do percurso até à capela: família Avellar. Um mausoléu de uma criança, que transcrevo: A MINHA QUERIDA FILHA LAURA ALICE D’ AVELLAR SILVA NASCEU EM 1 DE MAIO DE 1885 FALLECEU EM 19 DE AGOSTO DE 1888 Destes dois jazigos, o primeiro tem placa indicando «MANUEL MATIAS DE AVELLAR, HERDEIROS, ANO 1898; o segundo, por cima da porta, EDIFICADO EM -- 98 --- 902» E F. C. D’ AVE[LLAR]. Foto 17: símbolo na porta de um jazigo. O maior jazigo, salvo erro, é o do comendador José Bento da Silva que, à semelhança dos outros, foi construído com pedra facilmente deteriorável. A sua localização diz bem da importância social deste comendador: próximo da capela, o lugar central de um cemitério, e à sua direita, o lugar mais importante. Não é sem razão que a direita é positiva e a esquerda é negativa; até teve lugar a uma evolução semântica: do latim sinistra (esquerda), para a sinistra portuguesa que significa funesto, desgraçado, medonho.Os desenhos espalhados por jazigos e outros são semelhantes a todos os cemitérios: o tempo voa, diz a ampulheta, que 30 marca o tempo, encimada por duas asas; a morte é esqueleto, é caveira, é a tocha invertida, pois, erguida é fogo, é vida; a morte á a gadanha, não a foice, isto porque, ceifar com foice é possível selecionar o que se ceifa, mas não com a gadanha, por isso se diz que a morte leva todos a eito, sem distinção de idade, classe ou riqueza. A estes símbolos se junto imagens de santos, Maria e Jesus a par de anjos. Como exemplo da Teologia do Além (popular), transcrevo o texto de um mausoléu: AQUI JAZ JOAQUIM PEREIRA N(ASCIDO) EM MILHEIRADO FREGUESIA DE MAFRA A 17 – 6 – 1878 F(ALECIDO) EM S(ÃO) MARTINHO DO PORTO A 5 – 12 – 1935 ETERMA E SAUDOSA RECORDAÇÃO DE SUA ESPOSA MARIA JOSÉ PEREIRA «Aqui jaz Joaquim Pereira é um erro no ponto de vista da Teologia do Além eclesiástica, mas não da popular. Se o Homem é corpo e alma, o correcto seria aqui jaz o corpo de Joaquim Pereira. No dia do Juízo Final, os mortos se erguerão em corpo e alma. Outro aspecto típico da cultura/ religião popular portuguesa é expresso na linguagem tipo «já lá está», «até nem era má pessoa». E a esposa, ou filhos, que lhe escreve o epitáfio a mensagem deste é sempre elogiosa, quer para o defunto, quer para quem o escreve: «eterna e saudosa», mesmo que a esposa suspire de alívio por o não ter mais em casa e ainda acrescente que a saudade é eterna, como se ela fosse viver por toda a eternidade. 31 7. Origens. Análise Toponímica. A propósito, o limite de São Martinho, melhor, Vale Paraíso/ Alfeizarão, seria, a norte, o miradouro do Facho, pois Facho < patu fronteira, borda); < pâtu (território, distrito, região); < patu (bordo). A sul/ sudeste, seria valado de Santa Quitéria. Valado < baladu ( circunscrição administrativa). Santa Quitéria, segundo Santo 1989, que seguimos, < krt ( a que corta). Quitéria, diz o autor, é a Astarté guerreira dos fenícios associada a krt, a senhora do berit/ parazu (1989, p. 258). Ao centro e central, estaria Vale Paraíso. Raramente Vale está ligado ao vale geográfico. Vale < bal, bel, baal (senhor; o senhor da aldeia, grande proprietério, professor, sacerdore, príncipe, rei, deus). Paraíso que, repito está ligado a berit/ parazu (aliança/ contrato, paraíso) < parazu (convocação, acordo). Vale Paraíso seria a morada do senhor que convocava e dirigia a assembleia. A norte fica Famalicão < gamali kan ( exercício do direito). Mais a Norte, Venda Nova < bnt (casa, pessoa)/ bent (estrutura, gente). Nova < nawe/ nab (pastagens, adivinhos). Assim, casa, povoação onde moram e actuam os adivinhos.A norte, também, a serra dos Mangues < mn (espécie animal) + gos (bramir): serra onde vivem os animais que bramem. Mas mangues também pode < man/ mn (quem) + qs ( fatia, extrema borda). Assim, Serra das Mangues seria o limite nordeste. 32 5. NOSSA SENHORA DA ASSEDASSE (Folgosinho da Serra) Nossa Senhora de Assedasse é um nome raro para Nossa Senhora, a Senhora dos mais de mil nomes. Todos estes nomes e estes nomes raros e pouco compreensíveis se devem ao processo de cristianização que pretendeu tapar, esconder, antigos deuses e antigos cultos. A Capela fica próxima de Covão da Ponte e a festa anual ou romaria realiza-se a 8 de Setembro. Até há algumas dezenas de anos atrás, vinham muitos pastores e os seus rebanhos eram benzidos. Utilizando Santo (1993), AsseDasse virá de ash/ aisa (mulher, esposa, fêmea) + ds’ (reverdescer, brotar). Significa: a mulher do reverdescer. A deusa da Primavera, a deusa da fertilidade. Poderá ser continuidade a das deusas Cibele ou Astarte, deusas da fertilidade. Foto 18: capela de Nossa Senhora de AsseDasse, 2017, foto de Isabel Saraiva. Segundo as placas presentes, fora e dentro da capela, esta data do século XII e é gerida pela Irmandade das Almas de Folgozinho. Foi restaurada em 1965 e 2005. RESRAURADA PELO S(ENH)O(R) JOÃO TADEU E PELA IRMANDADE EM 1965 CAPELA ROMÂNICA DO SÉC(ULO) XII DEDICADA À SANTA MÃE DE DEUS SOB A INVOCAÇÃO: NOSSA SENHORA DA ASSEDASSE Mantendo a traça original sofreu vários restauros ao longo dos anos Administrada pela Irmandade das Almas de Folgosinho foi ela restaurada em 2005. O primeiro restauro teve a ajuda 33 de João Tadeu, presidente da Câmara Municipal de Gouveia. Ligada a Nossa Senhora de AsseDasse, com bandeira na procissão de 09 de Agosto de 2013, aparece Nossa Senhora da Sardaça, também designada de Nossa Senhora de Sardacha, em 1265. Tem escrito na bandeira «padroeira dos agricultores. Utilizando Santo (1993), Sardaça ou Sardacha virá de sr/sar (cantar, assediar; príncipe; banda, grupo) + ds’/ dèsèa (relva tenra, erva nova). Significa: cantar a erva nova, cantar a relva tenra; o príncipe da erva nova, o príncipe da relva tenra. Um nome próximo da Senhora DasseDasse. Este príncipe poderia ser Adónis, o símbolo da vegetação que morre no Inverno (permanecendo com Perséfone, no mundo inferior) e regressa à terra na Primavera (onde fica com Afrodite). Outros nomes: VALE DO ROSSIM: ros (tremer, abalar-se, sacudir-se, ser abundante) + imm (fontes termais, víboras) ou ym (dia, mar, Yammu- deus do mar). Significa: vale abundante em fontes termais, vale abundante em águas. Relaciona-se com os anteriores. VIDEMONTE: bi (por favor, com permissão) + di/ dei (o suficiente, o necessário, de acordo com, quanto possível) + montu (parte que cabe em herança). Significa: herança de acordo com a permissão. PORTELA DE FOLGOSINHO: portela, escreve Almeida, existe em mil lugares em Portugal e é um dos casos em que há junção de um termo semita e outro latino. Vem de pr + tl (ugarítico) e significa romper colina, romper outeiro, por + tel (hebraico antigo) e significa abrir colina, escancarar colina; paru + têlu (acádico e assírio-babilónico) e significa trespassar colina, cortar colina, dividir colina; porta (latim) e significa passagem, saída, desfiladeiro, garganta. (2009, p. 28). CASAIS DE FOLGOZINHO: casal é o mesmo que catraia e significa povoação pequena. 34 6. COVIDE, TERRAS DE BOURO Santa Eufémia Este artigo foi criado durante o período da quarentena por causa do Covid 19, Abril de 2020. Covide tem perto de 300 habitantes e fica no Parque Nacional Peneda-Gerês. Se Covide vem do fenício-cartaginês, a língua falada pelos nossos Lusitanos, poderá vir: Covide « kbd (honrar, ser glorificado; ser duro, ser insensível). e/ou de Covide « kbd /kobed (pesado, opressivo, cruel). e/ou de Covide «kbd/ kôbèd (peso, fardo). Foto 19: brasão de Covide, retirado de Google, 2020. As línguas cananitas não têm vogais: a leitura e o significado variam conforme as sonoridades vocálicas introduzidas, mas sempre significados próximos; e o v e o f não existem. O F é p ou ph, tal como a pharmacia portuguesa, até ao acordo de 1911, como centenas de palavras do francês e outras línguaseuropeias; o V é b, tal como no Minho, onde vaca é baca; tal como no castelhano, onde Ivan é Iban, como já escrvi. Tal como em mais de trinta palavras portuguesas em que o adjectivo é, por exemplo, sustentável e o substantivo é sustentabilidade. Assim, Covide significará o insensível/ o cruel e glorificado. Parece apontar para a glorificação do sagrado negativo, vulgo, o maligno, o demónio. Não esquecendo que a diabolização do diabo é eclesiástica, dogmática. O diabo dos contos populares é um bom homem. É compadre de muitos camponeses pobres e cheios de filhos e, coitado, é sempre enganado pelas mulheres. Para finalizar este estudo, seria necessário passar uns dias em Covide, percorrer caminhos e montes e falar com pessoas. O Site da Câmara Municipal diz: «A veiga da Santa, em Covide, clareia entre o casario de muitas gerações e a sombra de bosquetes de carvalhal sobrevivente. Recordam-nos estes sítios as memórias piedosas do dealbar do cristianismo, cristalizadas aqui no martírio e no milagre da Santa Eufémia. 35 A Matriz, com orago de Santa Marinha, é uma construção com cerca de 4 séculos que apresenta um altar de estilo renascentista. Do conjunto de nichos religiosos sobressai a capela do Calvário, construída no ano de 1887, dedicada ao Senhor dos Desamparados e à Senhora das Angústias. A capela de Santa Eufémia, provavelmente edificada no século XVII, apresenta um altar de estilo renascentista. Existe, ainda, a capela de S. Silvestre, em Freitas e Nossa Senhora dos Remédios pertencente à propriedade da chamada “Casa da Venda”. No enquadramento do património histórico fazse referência ao cruzeiro do Outeiro do Rei, ao Penedo de Santa Eufémia, ao Cruzeiro de Sá, à Casa do Passadiço e à Casa do Latim.» (O negro é meu). Foto 20: Santa Eufêmia. por Mantegna, século XV, no Museo e Gallerie Nazionali di Capodimonte, em Nápolis. De: wikipedia 2021. Peguemos nos santos, que continuam deuses e deusas antigos. Lembrem que quando Cristo veio ao mundo já a religião egípcia, por exemplo, tinha 3.000 anos! Eufémia viveu no século III d.C. Desde a sua infância que consagrou a sua virgindade a Cristo. Fui torturada na roda para renegar a sua fé e veio a morrer na arena atacada por um urso ou um leão, como mostra o quadro. Tem uma espada cravada no peito, sinal de suplício; na mão direita, a palma do martírio; na esquerda, a açucena, branca, da pureza, da virgindade. Noutras imagens, o leão aparece ao seu lado direito, o positivo, como nesta e como se fosse um animal de companhia. Aliás, mesmo mordendo, este leão não parece querer decepar o braço da santa! Assim, vamos por outro caminho. O leão a hipóstase animal do evangelista São Marcos. Os leões são um símbolo de realeza e eram representados montados por heróis, reis e deuses, ou junto aos seus tronos. O carro da deusa-mãe Cibele era puxado por leões. (Ver filme Crónica de Nárnia). Assim, o leão dá a santa Eufémia o estatuto de deusa-mãe, da poderosa, daquela que pode ser colocada ao lado de Maria, mãe de Cristo. 36 Em 451 reuniu-se o concílio de Calcedónia, o quarto concílio ecuménico da Igreja Católica, na catedral dedicada à santa. O Concílio repudiou a doutrina eutiquiana do monofisismo. Eutiques, fundador do monofisismo, negava que, depois da encarnação, Cristo tivesse duas naturezas, humana e divina; antes, uma só, a divina. A santa, no seu túmulo fez o milagre, provando que o Concílio tinha razão: duas naturezas. Há aqui a clara diabolização da «seita» monofisista, uma das muitas dezenas nos primeiros dez séculos de Cristianismo e Catolicismo. Não esquecendo que os seguidores das «seitas» saídas do Catolicismo eram perseguidos e mortos. Isto é, durante séculos os católicos fizeram aos outros o que lhes havia sido feito a eles. A diabolização de quem não se gosta é milenar e cultural. Permanece a expressão «é o diabo em forma de gente». Santa Marinha ou santa Marina foi a santa que foi combater, e bem, pelo seu pai. História bem explorada por Disney, em Mulan, igualmente virgem. Aqui, luta contra o demónio. Não há homem por aqui? Não. Desde quando uma deusa precisa de homem para procriar?! Mais, sendo o demónio o único homem, podemos avaliar a importância que as santas lhe atribuem, ao homem. O mesmo que as abelhas ao zangão ou algumas espécies de aranha Senhor dos Desamparados faz lembrar o Senhor a quem recorrem os perdidos, mas arrependidos, isto é, que andam ou andaram por outras religiões, menosprezadas pelos cristãos com o nome de «seitas». A Senhora das Angústias completa este cenário, ao lado do seu filho. E quem seriam estes desamparados estes que, lembrem Covide, glorificam o sagrado negativo? São os que viviam na Casa da Venda. Casa, ou casal, e mesmo catraia, significam povoação pequena, povoação sem importância, mas onde vivem famílias com parentesco próximo. Venda, nada tem a ver com venda, taberna, e muito menos com estalagem como querem os de Vendas Novas, pois ter origem numa taberna não é coisa apreciada! Santo escreve que Vendas Novas vem do fenício. Venda vem de bnt (casa, pessoa). Há aqui uma repetição, comum nas línguas cananitas: o original e a sua tradução: casa-casa, como acontece, por exemplo, porta da ravessa, porta-porta; porto de mós: porto-porto. Continuando com Santo (1989), Vendas Novas poderá vir de bent nab (casa dos profetas ou juízes; local da profecia ou dos oráculos). Ora, Casa da Venda seria o local 37 onde viviam algumas famílias dedicada à profecia, aos oráculos, coisas diabolizadas pelos cristãos. Não admira que os considerassem desamparados. Continuando. As antigas religiões, diabolizadas pelos católicos com o nome de «pagãs», cultuavam deus, como muitos judeus o fizeram, a começar por Abrão ou Moisés, nos lugares altos e nas grandes rochas. Ora, para fazer esquecer antigos cultos nada melhor que cristianiza-los, os cultos e os lugares: outeiro do rei, não é monte do rei, é monte do senhor, monte de Baal, que é o senhor, o senhor deus, o senhor grande juiz, o senhor grande sacerdote, o senhor grande proprietário. Algo que permanece na cultura portuguesa e mediterrânea visível nas formas de tratamento: quem são os senhores na aldeia? O penedo de santa Eufémia está explicado. Lembro que da rocha brota a água, como fez Moisés, água que mata a sede do corpo, mas também a sede de conhecimento. Um cruzeiro cristianiza um lugar sagrado, há muito: um centro, uma encruzilhada, o lugar onde alguém morreu (assassinado, fulminado por um raio…); hoje, colocam um ramo de flores no local onde alguém morreu atropelado ou por acidente auto. Sá vem s/ sa/ sè (que, do qual se diz que). Assim, o cruzeiro do qual se fala, o lugar do qual se fala. Continuamos, pois, com referência repetida a um lugar pequeno, onde há oráculos, feitiçarias. Casa do Passadiço e casa do Latim: casa já foi dito; Latim poderá vir de ltn (Latanu, monstro ou demónio do mar), pequeno lugar do demónio do mar, pequeno lugar das famílias do monstro, do demónio. Com menor certeza, passadiço virá de pasu (moer, derreter) + dis (pisar, destruir). Pequeno lugar onde se destrói, onde se derrete. Concluindo, Covide significará o insensível/ o cruel e glorificado. Pequeno lugar de famílias próximas, pelo parentesco e profissão, onde um deus cananita é adorado e onde são feitos oráculos e profecias, e mesmo danças orgiásticas, e onde havia sacerdotes que passavam o seu saber a iniciados. O deus seria Lotanu, demónio dos mares é fácil de diabolizar por parte dos cristãos. Contra este deus e todos os seus adoradores se ergueram, lutaram e venceram Santa Eufémia e Santa Marinha. 38 7. PINHEL Brasão e Toponímia Lê-se em https://pt.wikipedia.org/wiki/Pinhel que o nome de Pinhel se deve aos muitos pinheiros que existem, ou existiam, na região. Hoje, poucos são os que aceitam esta explicação. De facto, a ser verdade, Leiria seria Pinhel, a partir do século XII. E o que dizer da zona do pinhal do distrito de Castelo Branco? Oleiros, Sertã e Proença-aNova seriam Pinhel, Pinhel e Pinhel. Pinhel virá de bin (compreender, saber, considerar) + hl (eis aqui): Significaria: eis o local onde se é considerado, eis o local onde se é compreendido. Ou de pu (embocadura, lei, conteúdo de um escrito) + nhl (dirigir, conduzir, guiar cuidadosamente, abastecer, suprir). Significaria: conduz à embocadura; ou local onde se dirige de acordo com a lei, de acordo com o que está escrito. Este significado relacionase com o primeiro, onde se é compreendido. Santo (1988) escreve que Pinhel vem de pinah (juntura, encruzilhada). Pinhel é a encruzilhada. Nesse caso, terá mais a ver com embocadura. 1. O Brasão O brasão mais antigo de Pinhel era constituído por um pinheiro, uma lebre a seus pés, e um falcão em cima dele. Em http://www.ointerior.pt/noticia.asp?idEdicao=809&id=47308&idSeccao=11383&Actio n=noticia lê-se a lenda que o explica: «Corria o ano de 1385, os castelhanos batiam em retirada após a derrota em Aljubarrota, quando os corajosos pinhelenses capturaram o falcão de estimação do rei invasor, D. Juan. O gesto mereceu elogios de D. João I, o Mestre de Aviz, que descreveu a cidade como “Pinhel Falcão, Guarda-mor de Portugal”. Luciano Monteiro, o diretor do Museu Municipal, continua a ler-se, «não compro esta história: kisso é claramente uma lenda, porque se eles tivessem capturado o falcão o mais provável era terem-no comido”, afirma, sorrindo». Na verdade, é uma lenda, mas a lenda não é uma mentira. A lenda é uma verdade real no campo do mitológico, simbólico, onírico, no tempo litúrgico e na geografia sagrada. Enquanto o que chamamos História é uma verdade real no campo do tempo cronológico e da geografia científica. 39 Mas o que mais surpreende nesta lenda é a discrepância entre o pequeno acto de capturar um falcão e a valiosa recompensa de tornar Pinhel a «Guarda-Mor de Portugal». Em linguagem popular, «não dá a neta com a pataneta». Voltemos ao brasão. Foto 21: de http://kliqueseolhares.blogspot.pt/2010/03/brasao-com-asarmas-de-pinhel.html. O autor da foto 21 escreve no seu blogue que em Pinhel Falcão, de Ilídio da Silva Marta, o coelho está do lado esquerdo. Chevalier e Gheerbrant (1982) escrevem que o falcão era, no Antigo Egipto, o rei das aves, devido à sua beleza. Simbolizava o princípio celeste. Era a encarnação de Horus. Era o sol. O falcão é um símbolo solar, uraniano, masculino e diurno. A lebre – coelho, dizem Chevalier e Gheerbrant, porque dorme de dia e cabriola de noite, é lunar. A lebre, continuam, «é muitas vezes considerada como cratofania da lua […] Quando não é a própria lua, o coelho ou lebre é seu cúmplice ou um seu familiar próximo». Mas tudo o que está ligado à ideia de abundância e multiplicação dos seres e bens transporta igualmente a ideia de «incontinência, de desperdício, de luxúria, de desmedida». (1982, pp.402-403). Na Idade Média, continuam os autores, o falcão, por vezes, era representado a despedaçar lebres. Em heráldica, lê-se em http://portugaldelesales.pt/pinhel-cidade-falcao-lendahistoria-se-cruzam/, pinheiro é protecção. O pinheiro é símbolo da imortalidade, o que se explica quer pela folha persistente, quer pela resina, que é incorruptível. Os imortais taoistas, escrevem Chevalier e Gheerbrant, «alimentam-se das sementes das agulhas e da resina». É o seu único alimento e torna-os leves e capazes de voar. (1982, p. 527). Face ao exposto, o que se vê neste brasão é a vitória do princípio masculino, solar e diurno sobre o princípio feminino, lunar e nocturno para todo o sempre. Porém, se houve necessidade de esculpir esta victória, sinal é que sucedeu a um domínio do feminino, a uma época matriarcal. Se a lebre - coelho estava do lado esquerdo e está no lado direito quer isto dizer que estava no lado negativo e está agora no lado positivo do positivo. 40 Contudo, a lenda diz que apanharam o falcão do rei João de Castela. Ora, falcão vem do fenício-cartaginês, a língua falada pelos nossos Lusitanos. Segundo Santo (1989) falcão < pl kan, falakan (juiz das leis, juiz das regras). E se os corajosos pinhelenses tivessem antes resgatado um João das Regras?! E se, em Pinhel, houvesse uma comunidade taoista que, acreditava-se, tal como o falcão, e porque comiam as sementes das agulhas e a resina dos pinheiros, tinham a capacidade de voar?! 2. Ribeira da Pega e Ribeira das Cabras Estas duas ribeirras limitam Pinhel. A pega é sinónimo de tagarela e de ladra. Chevalier e Gheerbrant escrevem que se sacrificavam pegas ao deus Baco a fim de que, com ajuda do vinho, «as línguas se soltassem e se revelassem os segredos». (1982, p. 515). Na Índia, a cabra é a mãe do mundo. Os autores referem que a ideia de associar a cabra à manifestação de deus é muito antiga. Nem pega tem a ver com prostituta, nem cabras com cabras, outro nome de prostituta ou mulher de cama incerta. Utilizando o Dicionário Fenício-Português, de Santo (1993), cabras poderá vir de kbr (multiplicar) ou de qabru (sepulcro) ou qbr (sepultura). No primeiro caso, será a ribeira dos múltiplos afluentes e de muita água e, por este facto, se multiplica a riqueza agrícola; no segundo, a mais aceitável, ribeira junto à qual se sepultam, há cemitérios. Seriam sepulturas escavadas na rocha e/ou no chão. A ribeira das Cabras nasce próximo da povoação Rapoula. Rapoula, utilizando o dicionário de Santo (1993), vem de rhp (tremer, estremecer, pairar) + oli/ olai (superior, altíssimo). Significa: onde paira o altíssimo. Será um local alto e onde o(s) deus(es) eram venereados. Desagua junto ao local denominado Santa Maria de Porto de Vide. Reis (1967) não refere esta invocação de Nossa Senhora nas 1.300 invocações apresentadas. Os cristãos e católicos utilizaram os nomes de Nossa Senhora e dos santos para cristianização de certos lugares, cultos e deuses que apelidaram, pejorativamente, de pagãos. Vide, utilizando Santo (1993), virá de pid (coração, sentimento, bondade; decadência, destruição, infortúnio). Significa; porto da bondade; ou porto do infortúnio. Entenda-se porto no sentido específico de porto marítimo ou fluvial; ou, no sentido geral, abrigo, apoio. 41 Seguindo Almeida (2013), pega, no sentido de pegar, vem de pahu ou pehu, que se lêem pague e pegue e significam fechar, aprisionar. Seria a ribeira fechada, aprisionada; teria muros?! Rio Côa, seguindo Santo (1993), vem de kh/ kôh (força, poder, capacidade, habilidade, recursos). Significa: rio da força, rio do poder, rio poderoso. Rio Massueime virá de massu (príncipe) + hmh (fazer ruído, bramir, gemer, inquietar-se). Significará: príncipe que brame, príncipe que faz ruído, príncipe que afirma a sua autoridade em tom forte. 42 8. NOSSA SENHORA DE ALCAMÉ Uma Lenda da Serpente A Ermida de Nossa Senhora Alcamé (Porto Alto – Vila Franca de Xira) foi mandada construir em 1746 pelo 1º Patriarca de Lisboa, D. Tomás de Almeida. Iniciada em 1746, terá terminada a construção por volta de 1796. A igreja é dedicada a Nossa Senhora da Conceição, lê-se em https://amateriadotempo.blogspot.com/2011/06/padroeira-dos-campinos.html, «mas o povo deulhe o nome de Nossa Senhora de Alcamé. Este nome Alcamé é de origem árabe (como é uso nos hidtoriadores !) e significa "trigo". Nossa Senhora de Alcamé é a padroeira dos campinos do Ribatejo e a ela está associada uma lenda, que reza assim: Em tempos, um pastor encontrou uma pequena cobra e dedicou-se a criá-la, alimentando-a com o leite das ovelhas. A certa altura terá adoecido, ficando vários meses sem ir ao campo. Quando lá voltou, foi ao mouchão e assobiou pelo réptil, como costumava fazer. A cobra apareceu, mas não o reconhecendo, atacou-o de goelas abertas. Aflito, o homem invocou a protecção da Virgem, que apareceu em sua glória, e lançou para a boca da serpente uma maçã. Engasgada e sufocada, a cobra morreu e o pastor salvou-se. Esta lenda é de uma tal simplicidade que ela afirma a sua veracidade. Veracidade no campo do onírico, que não no campo do real, como todas as lendas. Contudo, relata também um processo de cristianização de um culto bem mais antigo. Coloquem-se algumas questões: nem cão algum, nem cobra alguma esqueceria o seu criador ao fim de alguns meses, como provam dezenas de cães fiéis. E a prova está na lenda: o pastor assobiou e a serpente reconheceu o assobio e veio ter com o pastor. Isto contradiz que não o reconheceu, como contradiz que o atacou. A virgem atirou-lhe uma maçã à boca e a cobra morreu sufocada. Pouco provável este facto, pois é do conhecimento geral a capacidade das cobras engolirem volumes muito superiores à capacidade da sua boca. Em terceiro lugar, atirou uma maçã e não uma pera, um figo ou outro fruto. Sigo os Contos Populares Portugueses, (1977) volumes 2 e 3 e Carvalho (2007). Segundo um conto popular, está uma moira encantada na torre-de-dona-chama. Essa moira é mulher da cintura para cima e serpente da cintura para baixo. Um dia, passou por lá um homem e ela disse-lhe que não tivesse medo quando a visse totalmente, de alto-a-baixo, pois lhe daria muito dinheiro. Ele prometeu, mas, ao vê-la, teve medo e atirou-lhe o casaco. «Ah! Que me dobraste o encanto», disse a moira. Lá continua encantada e conta-se que, na manhã de São João, se ouve um tear a trabalhar. Um outro, conta que um rei tinha três filhos e o mais novo, conta o conto «A Linha Azul e a Linha Branca», era o mais esperto. Um dia, num castelo, matou uma enorme serpente, cortando-lhe a cabeça. Era a serpente que ameaçava o rei, sua 43 esposa e suas três filhas. Como paga, os três irmãos casaram com as três filhas do rei, cabendo a mais nova ao mais novo, «pois que era esta quem recebera do príncipe o beijo». Um beijo que o príncipe lhe havia dado na noite anterior, quando ela estava adormecida, antes de matar a serpente. A serpente do conto «A Princesa Encantada em Cobra» é uma princesa. Um dia, um rapaz muito pobre, que andava a arranjar lenha, viu-a e esta pediu-lhe para que a levasse ao colo e a passa-se para lá do ribeiro. Mais tarde, terminado o encantamento, enamoraram-se e casaram. A tradição popular também apresenta a serpente como uma mãe protectora e uma terna namorada. Conta Eliano, historiador antigo, que um doce rapaz da Arcádia se criou juntamente com uma terna serpente, dormindo juntos. À medida que iam crescendo, a serpente tornou-se enorme e familiares e amigos do rapaz, temendo o pior, levaram a serpente para muito longe, para um lugar semi-deserto, aí a abandonando. Passados anos, passou por aí o rapaz e foi assaltado por ladrões. Ferido, gritou por ajuda. A serpente reconheceu a voz e silvou. Correu a ajudar o seu amigo, matando e afugentando os ladrões. Esta serpente, passados que foram tantos anos, não só reconheceu a voz do seu amigo como esqueceu que fora abandonada ao esquecimento. Interessante é igualmente a história de um bonito rapaz da comarca egípcia criado por Hércules. Este rapaz, escreve Eliano (1989), guardava gansos e apaixonou-se por uma áspide fêmea. Esta correspondeu-lhe e foi de tal modo a sua relação que a serpente, através de sonhos, avisava o seu amado das tramas que seu marido, áspide macho, urdia para o matar. A serpente é, sem qualquer dúvida, a Grande Mãe e a senhora do subsolo. Fazer-lhe mal é fazer mal à própria Mãe e isto paga-se caro. Um certo lavrador, conta Eliano, estava a fazer uma cova na sua vinha. Sem querer, cortou ao meio uma serpente que se ocultava debaixo da terra. Metade da serpente ficou ali, mas a metade com a cabeça, sangrando, fugiu. O lavrador enlouqueceu. Ao fim de algum tempo de loucura, os familiares levaram-no ao templo de Serápis que, condoído, o curou. Contudo, a serpente havia-se vingado. Outra história refere uma mulher que comeu ovos de serpente. Em virtude de tal ficou corroída de dores e a toda a hora se esperava a sua morte. Uma vez mais, Serápis, condoído, salvou-a. Não deixa de ser interessante que, pelo menos em português, Serápis é palavra próxima de serpente. Donde veio este culto da serpente. Originário da Frígia, escreve Alvar (1995), tal como Cibele e aparentada com ela veio Sabazio, um deus bem conhecido no mundo grego no século IV a.C. Nos ritos deste deus «a serpente desempenha um papel fundamental, pois simboliza a própria divindade, na sua dimensão ctónica e sexual, pois o contacto do iniciado com o animal divino sugere um contacto hierogâmico». Por esta razão, Sabazio afirma-se como o deus da 44 fertilidade e da reprodução. Diodoro da Sicília menciona ritos nocturnos, «pois o comércio carnal não deve realizar-se à luz do dia,» que culminavam em íntimas relações sexuais. A cobra ou a serpente possuem hoje aquele misto de repulsa e atracção, antagonismo já existente na Antiguidade Clássica, onde é possível observar claramente a coexistência destes dois sentimentos. Por um lado, a serpente é tida por um animal perverso. Tão perverso que nasce do tutano, da espinal-medula, do cadáver humano à medida que entra em putrefacção. É o que dizem Plínio e Eliano (1989), acrescentando este que, sendo a serpente tão perversa, só pode nascer de cadáver de homem perverso. A serpente é o animal de mais aguda visão e ouvido, o que ajuda a esta perversidade. Daqui e desta opinião se entende já o Gênesis. Serpente é o mesmo que dragão. Para além de o dragão morto pelo Arcanjo Gabriel ser a serpente do Gênesis, isto é, o Diabo, é vulgar a mesma lenda ter ora uma serpente ora um dragão. É o caso da lenda do grego Cadmo. A serpente da fonte onde fundou Tebas é, em Apolodoro (1985), um dragão. Face ao exposto, parece correcto, finaliza Carvalho (2007), afirmar que há ligação entre a Serpente, a Grande Mãe e a Moira, sendo as três a mesma iniciadora, e que a noite orgiástica de São João é hoje a sublimação de muito antigos cultos. A noite de São João é a porta da sexualidade, da noite, da Lua e dos seus segredos. Assim, a virgem atira uma maçã à boca da serpente por ser (tradicionalmente) a maçã a fruta descrita no Gênesis (3, 1-6): «Ora, a serpente era mais astuta que todas as alimárias do campo que o Senhor Deus tinha feito. E esta disse à mulher: É assim que Deus disse: Não comereis de toda a árvore do jardim? E disse a mulher à serpente: Do fruto das árvores do jardim comeremos. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Não comereis dele, nem nele tocareis para que não morrais. Então a serpente disse à mulher: Certamente não morrereis. Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se abrirão os vossos olhos, e sereis como Deus, sabendo o bem e o mal. E viu a mulher que aquela árvore era boa para se comer, e agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento; tomou do seu fruto, e comeu, e deu também a seu marido, e ele comeu com ela». Claramente, não se refere qual o fruto, ainda que o começo da garganta humana seja denominado «a maçã-de-Adão». É bem provável que o fruto fosse o figo, pois que se lê em Gn 3,7: «Então foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus; e coseram folhas de figueira, e fizeram para si aventais». Ambos estariam debaixo de uma figueira e não de uma macieira. A colocação da maçã tem a ver com a mudança do fruto símbolo da sexualidade que foi durante milénios, e ainda o é, o figo. É o catolicismo que introduz a mação como símbolo da sexualidade e também da tentação. Assim, a virgem atirar uma maçã à cobra é um acto de dupla diabolização: da cobra (a grande das religiões antigas) e da maçã (o fruto da tenção e da introdução do pecado no mundo pela mulher). 45 Prova final, e fruto do processo de cristianização, várias vezes aqui referido, é o orago da capela: Nossa Senhora da Conceição. Conceição é a que concebe, anda grávida e dá à luz. É a continuação cristã da Grande Mãe. Por isso tem o crescente lunar sob os seus pés, continuando Cibele; mas é apresentada com os pés sobre a serpente, isto é, a diabolização desta e daquela e a consequente cristianização de milenar rito, crença e divindade. Dir-se-á que a capela é apenas do século XVIII, muito séculos depois de Cibele. A construção de uma capela é executada sobre um outro templo ou lugar de culto e um acto de cristianização, o que diz do lugar sagrado e do culto prestado. O blogue atrás citado diz que Alcamé é árabe e significa «trigo». Dois reparos: Al ser árabe não passa de um cliché, como escreve Santo (1993). Al é fenício e significa povoação, castelo; parentela; segundo, que palavra árabe? No entanto, fico com o significado trigo. Utilizando o Dicionário Fenício-Português, Santo (1993), Alcamé virá de alu (povoação, castelo, mansão; parentela, gente da mesma linhagem) + qmh/ quèmah (farinha) ou + qemu (moer, farinha em pó). Significará: a parentela da farinha. Isto quer dizer que toda aquela vasta área era semeada de trigo. Agora, não se vislumbra trigo, antes tomate, melão e pimentos. Mas até à década de 1970, todos estes campos eram semeados, maioritariamente, de trigo e esta seria a cultura predominante durante séculos. Ainda em 1943 e 1944, escreve Madaleno (2006), a Companhia das Lezírias colheu, entre a produção própria e a dos rendeiros, 1.270.000 kg e 908.985 kg, respectivamente. O significado «parentela da farinha», hoje, poderia chamar-se «confraria da farinha», compreende-se perfeitamente se se ler Chevalier e Gheerbrant: «a farinha designa um alimento homogéneo, material, intelectual, afectivo, de que se alimentam certos grupos e que torna os seus membros semelhantes, como se ouve dizer «são farinha do mesmo saco». (1982, p. 317). Assim, teria lugar neste lugar da capela de Nossa Senhora de Alcamé a reunião destes confrades num repasto alimentar-social-religioso à base de farinha. É bem da lembrança dos mais velhos a alimentação à base do pão, seja em pão, em biscoitos, doces ou farinha que era diluída em água quente, como sopa, e à qual se juntava, ou não, um pouco de açúcar. Concluindo, Nossa Senhora de Alcamé é a cristianização do que hoje se chamaria Confraria da Farinha. 46 9. VIANA DO ALENTEJO O Brasão e a Senhora D’Aires 1. O Brasão O Brasão de Viana do Alentejo, lê-se no portal da Câmara Municipal, http://www.cm-vianadoalentejo.pt/pt/site-municipio/cmunicipal/Paginas/Brasao.aspx, é composto por «um escudo com um leão acompanhado lateralmente por dois escudetes carregados cada um, pela Cruz de São Jorge ou pela Cruz de Cristo. O escudo central é ainda acompanhado em cima e em baixo por uma estrela formada por dois triângulos com seis RAIOS». Ora, são de facto duas Cruz de Cristo e as estrelas são estrela de David, o símbolo mais conhecido de Israel, como bem diz http://www.ngw.nl/heraldrywiki/index.php?title=Viana_do_Alentejo_(city): «Escudo de negro, em abismo um escudete de vermelho, carregado de um leão de ouro e acompanhado nos flancos de dois escudetes de prata, carregado cada um de uma cruz pátea de púrpura e em chefe e em contra-chefe de duas estrelas de David, de ouro. Coroa mural de prata de quatro torres. Listel branco com os dizeres a negro : " VIANA DO ALENTEJO ". Contudo, o brasão colocado na fachada da actual Repartição de Finanças e que foi, certamente, Casa da Câmara e sede da Câmara Municipal é bem mais sugestivo. Ao centro, um leão; de lado, duas Cruzes de Cristo; alto e baixo, duas Estrelas de David. A de baixo tem o ano 1683, com dois dígitos de cada lado. A mesma data mais em baixo. A legenda diz: « o DEA ENTEIO o CONCELHO DO DE VYIANNA ». Foto 22: brasão de Viana do Alentejo, 2017. Interpreto da seguinte forma: (i) há influência judia no município, e a dupla Estrela de David confirma tal facto. Além disso, na 47 toponímia de Viana, há a Rua do Adro dos Judeus, segundo o Google. Rua do Adro, largo do Adro. No início, escreve Carvalho, «o Adro seria apenas o lajeado frente à porta da entrada principal da igreja matriz. Durante séculos, era já lugar sagrado, ou présagrado. Quem tivesse praticado crime e aí se refugiasse, não poderia aí ser preso. Mais tarde, o Adro ter-se-á alargado a todo o espaço à volta da igreja e, depois, ao largo onde se localiza a igreja matriz. Este é o Adro, Largo do Adro, Largo da Igreja». Almeida (2013), continua o autor, escreve que Adro não vem do latim atriu, que significa sala de entrada, o nosso átrio, mas do fenício adr (ader), que significa cerca, cercado. Adro será um cercado de árvores grandes. E/ou será um cercado de parede com ou sem árvores como acontece em Alcafozes, Rosmaninhal e Ladoeiro». (2017). Assim, Adro seria o local privilegiado de reunião ou encontro dos judeus de Viana. Contudo, investigando no local, observei que é Rua A dos Judeus e Largo A dos Judeus, ainda que, a meio da rua, esteja a placa com rua Adro dos Judeus. É natural que, pronunciando «A dos», se ouça «Adro», principalmente quando não se conhece o significado de «A», que é frequente em Portugal: A dos Cunhados, A dos Melros, A dos Francos, A da Beja,… «A» significa comunidade, aldeia. Assim, Rua e Largo A dos Judeus é Rua e Largo da comunidade judaica.Será interessante investigar se, antes de ser hospital da Misericórdia de Viana, século XVI, não terá sido sinagoga. Mais, se ROIZ é nome de origem hebraica, quatro estão sepultados na igreja matriz de Viana. Lado esquerdo da porta de entrada: «S.D.Dº. Roiz E D S.M.»; lado direito: «S.D.D. ROIZ»; lado esquerdo da capela-mor: «S.D. LOPO ROIZ DE CASCONSELOS FIDALGO DE COTA DARMAS E SEVS ERDºs»; lado direito: «S.D. DºI ROIZ RABELO PROVEDOR Õ FOI DA FAZ da DE REI E D. SEVS E D. FALECEO DOMINGO DO ANNO D 1569 E DE Mª DES OBITO MAIOR E DO SOCEPES DA PELA ÕI EM NSTE RVIDOP». (ii) A legenda, DEA ENTEIO é latim aporteguesado. Dea é o nominativo (sujeito) de Dea, deae (a deusa); Enteio é a palavra portuguesa do adjectivo Entheus, Enthea, Entheum que, por sua vez, vem do grego, e significa (inspirado por uma divindade, cheio de entusiasmo); a expressão mater entheia significa (a deusa que inspira, Cibele). Proponho para dea (deusa) significado próximo a mater (mãe). Proponho as traduções: a deusa que inspira, a deusa cheia de entusiasmo. Chamando a deusa pelo seu nome, proponho: Cibele inspira, sob inspiração de Cibele. Assim, lendo 48 toda a legenda: «a deusa Cibele inspira o concelho de Viana», «a deusa Cibele é a inspiradora do Concelho de Viana». Quem foi Cibele? Chevalier e Gheerbrant escrevem que Cibele é esposa de Saturno e mãe de Júpiter, Juno, Neptuno e Plutão, os deuses dos quatro elementos, «simboliza a energia encerrada na terra». É a fonte de toda a fecundidade. Este facto liga-a à lenda da Senhora d’Aires, como à frente se diz. «O seu carro é puxado por leões; o que significa que ela domina, ordena e dirige a força vital».(1989, p. 80). O leão do brasão de Viana do Alentejo é o animal de Cibele, é a sua hipóstase animal. O seu culto foi trazido da Frígia para a Grécia e daqui para Roma no século III a.C. Cibele é a Deusa Mãe, a Magna Mater. Na época da decadência do império, «Cibele será associada ao culto de Átis, o deus morto e ressuscitado periodicamente, num culto dominado pelos estranhos amores da deusa por ritos de castração e pelos sacrifícios sangrentos no taurobólio». (1982, p. 193). Cibele não aparece no Antigo Testamento, mas aparece Astarte que, na Fenícia, escreve Feraudy (1995), era a encarnação de Cibele. Aparece com o nome de Asterot. Aparece em Jz 2,13; 3,7; 10,6; 1 Sm 7,3-4; 12,10; 31,10; 1 Rs 11,5; 2 Rs 23,13; 23,4. Ambas são deusas da fertilidade e ambas têm na torre um símbolo. Cibele tem uma coroa na forma de duas torres, é a guardadora das torres e, segundo http://teolovida.blogspot.pt/2015/10/semiramisastarte-e-cibele-evolucao.html, Astarte significa «a mulher que faz torres». A Igreja Cristã, repito, cristianizou este culto com Santa Bárbara que é a santa da torre. Viveu numa torre, conforme imposição do pai, para proteger a sua virgindade. O que se compreende, pois a torre, sem porta, é o símbolo da virgindade. Mas não se compreende, por nada o indicar, que seja protetora contra raios e trovoadas. Compreender-se-á, porém, se Santa Bárbara continuar, que continua, Cibele e Astarte, pois as divindades do trovão são as divindades da chuva e da vegetação, isto é, da fertilidade. Por esta razão, se pode ligar Cibele aos judeus, no brasão de Viana. Debaixo do brasão a placa seguinte: 49 O CONCELHO DE VIANNA DO ALENTEJO CUJO PRIMEIRO FORAL DATA DE 1255 SUPRIMIDO EM 12 DE JULHO DE 1895 FOI RES TAURADO EM 13 DE JANEIRO DE 1898, GRAÇAS AO MOVIMENTO MUNICIPALISTA POR ELLE INICIADO. EM MEMORIA DE TÃO FAUSTOSO SUCESSO, O POVO VIANNENSE MANDOU COLOCAR ESTE PADRÃO, AOS 17 DE MAIO DE 1898 Dois reparos. Primeiro, a rapidez como foi conseguida a anulação da lei que extinguiu o Concelho, 2 anos, 6 meses e 1 dia. Sabendo do peso da burocracia em Portugal, foi mesmo rápido. Segundo, a força do movimento municipalista. O que permite afirmar que havia, ao tempo, pessoas com poder, dinheiro e influência na capital do império. Um deles terá sido o primeiro presidente da Câmara Municipal,13 de Janeiro de 1895, AntónioIsidoro de Sousa (1843- 1914). Assim se compreende a vaidade («faustoso sucesso») de quem o conseguiu e o mandou escrever. 2. Senhora D’Aires. Lê-se em http://roteirocva.blogspot.pt/ que andava «um agricultor de nome Martim Vaqueira a lavrar a sua terra, a relha do arado levantou uma caixa que continha a imagem da Senhora. Ficou o lavrador muito impressionado, pois já anteriormente sonhara com aquela mesma imagem, e logo decidiu construir no local uma ermida onde o precioso achado ficasse exposto à veneração dos fiéis. Esta tradição harmoniza-se, aliás, com uma inscrição latina gravada na pedra existente sobre a porta principal da actual igreja». Em complemento a esta versão, Quintas (2003) escreve que «o aparecimento da imagem da Senhora d’Aires também tem uma lenda, e encontra-se expressa numa inscrição na portada do Santuário. É um verso em latim, que relata que após a expulsão dos mouros destas terras, um lavrador arava o campo quando encontrou dentro de um pote de barro a imagem que se vê no altar. Sobre esta lenda, diz-se que a imagem foi descoberta por Martim Vaqueiro quando este lavrava o campo». Deduzo que ambos não leram a inscrição, pois são três frases em seis linhas. 50 Quintas (2003) escreve em http://www.pontosdevista.net/expoi.php?id=108 que há duas lendas que o povo conta. «Naquela herdade, chamada dos Vaqueiros, morava um lavrador rico, supõe-se que Martim Vaqueiro, que possuía uma manada de bois. Foto 23: placa sobre a porta de entrada da capela de Senhora D’Aires, 2017. Na herdade existia um curral onde todas as noites os bois eram recolhidos. A certa altura os empregados do lavrador repararam que durante a noite os bois saiam do curral para irem pastar, mas que no outro dia de manhã estavam todos lá dentro, com a porta fechada. Foram então contar o mistério ao patrão que se dispôs a ir dormir uma noite à porta do curral. Nessa noite apareceu-lhe em sonhos Nossa Senhora, que lhe disse que era Ela que abria a porta aos bois e que era de Sua vontade que fizessem naquele local uma casa de Deus e que para isso Ela própria o ajudaria. O lavrador tratou logo de juntar os materiais necessários para dar início à igreja e como era preciso muito dinheiro vendeu alguns dos seus bois. Porém, quando os voltou a contar, após a venda, tinha na manada a mesma conta, tendo sido um milagre de Nossa Senhora». O negro é meu. Peguem-se as lendas que não podem ser analisadas pelas lentes do cronológico, mas pelas do mito; não da história, mas do onírico. Em ambas as lendas a Senhora não aparece a Martim Vaqueiro/a. É Martim Vaqueira que sonha com a Senhora. Isto é, a Senhora prefere aparecer, manifestar-se corporalmente, a crianças, que são inocentes, puras, e não a adultos, que são pecadores, sujos. Assim, Martim Vaqueira sonha com a Senhora. Lendo ao contrário, a Senhora aparece em sonhos a Martim Vaqueira. Vaqueira ou Vaqueiro? O local chama-se Vaqueira e só o facto de ser homem leva à tendência para chamar Vaqueiro. Creio que Vaqueira será mais correcto. Aliás, a 51 primeira lenda pode ser a mais antiga/ original pela simples razão de ser mais pequena, concisa e simples, e diz Vaqueira. A relha do arado levantou uma caixa, ou um pote de barro, que continha a imagem da Senhora D’Aires, que está no altar. A imagem medirá uns 30 cm. Tanto o tamanho, como o facto de ter sido desenterrada, me faz pensar tratar-se de uma virgem negra, embora hoje não o seja. As virgens negras eram enterradas para que a sua força vivificadora da fertilidade fizesse, qual cornucópia, reproduzir as searas. Arrancada pela relha do seio da terra, a senhora é «a energia arrancada da terra». A senhora desta energia é Cibele, como atrás referi. Achada a imagem, Martim Vaqueira logo aí decidiu construir um templo. Numa outra versão, lê-se que Martim Vaqueira logo aí «reivindicou» construir um templo. Se o seu nome estivesse ligado ao gado, seria mais correcto ser Martim Boieiro, pois a lenda fala em bois e não em vacas. Utilizando o dicionário Fenício-Português de Santo (1993), Vaqueira, aliás baqueira, que as línguas cananitas não têm o «v», que é «b», tal como, no Minho, a vaca é baca, virá de baqâru (reclamar, reivindicar, pretender). Que ele pretendeu, reclamou, reivindicou, decidiu, aí construir um templo. O que está de acordo com as lendas. Mas a placa, escrita em latim, colocada sobre a porta de entrada da capela, que alguns referem, mas não a apresentam, não fala em Martim Vaqueira, mas em Mauro. Ora, Mauro, diz o dicionário de Latim-Português, significa Mouro da Mauritânia. Pelo que, depois de expulsos os mouros, alguns cá terão ficado e com reconhecida importância na sociedade. Transcrição da placa: 52 HICMAVROEXPULSOPROSCISSUSVOMERECAMPUS VIRGINISEFFIGIEMQUAMTENETARADEDIT QUAETRAHITACCELOCOGNOMENTERRASALVBRI UTDARETEFFIGIEMVIRGINISAPTAFVIT OFELIXTELLUSFAECVNDIOROMNIBUSUNUS PLUSTIBIDATSVLCVSQUAMSEGESULLADEDIT Separação das palavras: HIC MAVRO EXPULSO PROSCISSUS VOMERE CAMPUS VIRGINIS EFFIGIEM QUAM TENETA RADEDIT QUAE TRAHITA CCELO COGNOMEN TERRA SALVBRI UT DARET EFFIGIEM VIRGINIS APTA FVIT O FELIX TELLUS FAECVNDIOR OMNIBUS UNUS PLUS TIBI DAT SVLCVS QUAM SEGES ULLA DEDIT Tradução, um pouco livre, onde os parêntesis, meus, ajudam à compreensão do texto: ESTE MAURO (MOURO) ARRANCOU, COM A RELHA, COM FORÇA, NO CAMPO DE ALQUEIVE, A IMAGEM DA VIRGEM QUE, DELICADAMENTE, RESPLANDECEU. A QUAL TRAZIDA DO CÉU (COM O) COGNOME TERRA (SENHORA) DA SAUDE, A IMAGEM DA VIRGEM FOI COLOCADA ASSIM (TAL) COMO (FOI) DADA (APARECIDA). O’ FELIZ TERRA FECUNDA ONDE UM (SO’) SULCO DÁ MAIS A TI, A TODOS E CADA UM DO QUE SEARA ALGUMA (JAMAIS DEU). Quanto à origem do nome Aires, Quintas (2003) diz que haveria no local, ou próximo, uma povoação romana chamada «Arês» ou «Ares». Antigamente, escreve a autora, «quando se fazia referência à Santa, escrevia-se Ares («ares de Santíssima Maria», etimologicamente) em vez de Aires. O nome atribuído à Santa, conclui, «pode 53 ser consequência da localização do Santuário no local dessa possível povoação antiga designada «Arês». É sabido a submissão que a historiografia e historiadores portugueses têm pelos romanos. Como se antes dos romanos nada houvesse ou o que havia era bárbaro, sem importância. Ares, aris é palavra latina e significa o deus grego Ares, que os romanos baptizaram de Marte. Sabe-se que, no processo de cristianização, a Igreja baptizou os antigos deuses e deusas colocando-lhes santos e santas e Nossa Senhora com nomes de sonoridade próximos. Utilizando Santo (1993), D’Aires virá de dhr (correr, galopar, galope) + ês (onde, para onde). Significará: para onde galopam, para onde correm. Aires virá de ay (qualquer, todo) + resu/rws (ajuda, aliado) ou + rws (correr, mensageiro) ou + rws (ser pobre). Assim, é possível semelhantes retirar e significados complementares: qualquer/ toda a ajuda; qualquer/ todos correm; todos os que são pobres. Assim, a Senhora d’Aires é a Senhora a quem todos acorrem, todos pedem ajuda, o santuário para onde galopam, para onde vão a correr. Foto 24: «Cruzeiro» da Senhora D’Aires, 2017. Parece-me possível que o santuário da Senhora D’Aires tenha sido construído sobre um bem mais antigo dedicado à deusa Cibele. Quanto ao nome Viana, poderá vir, repito, poderá vir de bi (por favor, com permissão) + ana/ na a (por, mediante). Significará: por permissão, mediante favor. Povoação construída por permissão, mediante favor. Poderá ser povoação construída por permissão, por favor, da deusa Cibele. O que prova e é provado pela legenda do brasão de Viana: «por inspiração de Cibele». O seu crescimento, lê-se em https://www.infopedia.pt/$viana-do-alentejo, «deve-se ao facto de se localizar sobre a via romana que 54 unia Évora a Beja. Seria denominada Viana de Fosin ( Fosen ou Fochem ) e Viana de Alvito». A infopédia não dá a tradução para português. Também não são palavras latinas. Se vier do fenício, consultando Santo (1993), virá de po (fala, dizer, conteúdo de uma lei, lei) + sin (ovelha, gado lanígero); sênu(s’n) – (gado miúdo, carneiro, ovelha). Significaria: lei do gado lanígero, lei das ovelhas. Este significado faz supor que Viana seria sede de alguma confederação de criadoresde gado. 55 10. O PALÁCIO REAL E A VILA DE VENDAS NOVAS Razões de uma Construção O actual quartel da Escola Prática de Artilharia, de Vendas Novas, foi um palácio mandado construir pelo rei D. João V, em 1728, para nele repousarem, descansarem, as princesas de Espanha e Portugal, Maria Anna de Bourbon e Maria Bárbara, e suas comitivas, nas deslocações, em sentido oposto, com troca em Caia, para casamento com o príncipe do Brasil, futuro Rei D. José I, e com o príncipe das Astúrias, respectivamente. Esta é a versão histórica actual e bastamente copiada, reproduzida e divulgada. Contudo, coloquem-se cinco questões: (i) Como foi possível esta planificação a curto prazo, num povo tão pouco habituado a planificações? Planear «em cima do joelho» é uma expressão portuguesa. (ii) Como foi possível tão rápida construção? É que, a par da planificação em «cima do joelho», os portugueses são considerados como trabalhadores de baixa produtividade. (iii) Era necessário tamanha construção para descanso de duas princesas e respectivas comitivas, uma de cada vez, mesmo sabendo o gosto esbanjador do Rei D. João V? Afinal, D. Dinis, dependurou a sua espada num freixo e descansou à sua sombra, dando origem ao nome da povoação Freixo de Espada à Cinta; e Isaac Newton descansava à sombra de uma macieira, quando descobriu a lei da gravidade. (iv) Se não foi esta a verdadeira razão, exclusiva ou parcial, da construção do Palácio Real de Vendas Novas, qual foi? É que a história portuguesa, do convento de Mafra ao porto de Sines, tem vários casos de megalomanias ou «elefantes brancos». (v) Porquê Vendas Novas e não Pegões, onde o Rei, escrevem Coelho e Marques (1991), mandou construir uma casa para o almoço seu e de sua comitiva; e não Montemor-oNovo, mais a meio caminho, mais racional, ou Elvas, já com Badajoz à vista? Em resumo, uma razão racional, emocional ou satisfação do pedido de alguém influente? Com a justificação de construir habitação para o repouso de duas princesas se satisfaz o ego narcísico e esbanjador do rei D. João V e, por motivo ainda desconhecido – da parte do rei ou de outro – se construiu em Vendas Novas e não noutra povoação. Através do estudo no terreno, Vendas Novas e Montemor-o-Novo, pesquisa bibliográfica e cartográfica em bibliotecas e arquivos, pretende-se questionar e apurar as razões e a própria construção do Palácio Real de Vendas Novas e, «à boleia», a origem 56 do nome de Vendas Novas. Isto porque não há Vendas Velhas e vendas serem tabernas e não estalagens. 1. História do Palácio Real e de Vendas Novas: Dúvidas e Interpretações. O Palácio de Vendas Novas foi expressamente construído por ordem de D. João V, em 1728, afirma o portal da Escola Prática de Artilharia (2013), por ocasião do duplo casamento do Príncipe do Brasil, futuro D. José I, com a Infanta de Espanha, D. Maria Anna de Bourbon; e de D. Fernand, Príncipe das Astúrias, com a Infanta de Portugal, D. Maria Bárbara, «servindo para nele pernoitar e descansar a família real e mais comitiva, quando se dirigiam a fim de realizar a troca das princesas e, depois de efectuados os casamentos, no regresso a Lisboa». Pelo escrito entende-se que cada uma das princesas dormiu por sua vez: a portuguesa, antes de sair de Portugal; a espanhola, depois de entrar. O Rio Guadiana percorre a Meseta Ibérica Sul, na direcção este-oeste e, perto da cidade espanhola de Badajoz, toma o sul até à foz. O Rio faz fronteira entre Portugal e Espanha, desde o Rio Chanca até à foz. Entre o Rio Caia e a Ribeira de Cuncos, ver Ilustração 1, a fronteira não está demarcada, devido ao antigo litígio entre os dois países referente a Olivença. Um litígio que hoje se mantém e a par de um outro, o conflito inglês – espanhol, a propósito de Gibraltar. O portal da Câmara Municipal escreve a mesma história, e escreve-a em jeito de conto popular ou de fadas, transportando a criação de Vendas Novas, ou o seu desenvolvimento, ou a saída do desconhecimento e a sua transação para o consciente histórico, como num sonho: "Vendas Novas viveu duzentos anos uma vida apagada quase sem história. Até que um dia, como num conto de fadas, um rei, dito Magnânimo, mandou erguer, na charneca, quase deserta, um palácio real...» […] Uma certa princesa, continua, ajudou a decidir da sua existência. Uma princesa que, em razão do seu casamento com um príncipe espanhol, desencadeou a decisão de seu pai, o rei D. João V, de mandar construir neste local um Palácio Real para que nele pernoitassem, de cá para lá e de lá para cá, a caminho de Lisboa. Duas princesas: D. João V foi levar D. Bárbara, noiva de D. Fernando VI de Espanha, e receber D. Mariana Vitória, noiva do futuro rei D. José I». (2013b). Para comemorar a existência deste arquétipo a que deve a sua existência (grande mãe, moura, princesa), os autocarros de azul celeste de Vendas 57 Novas trazem escrito nas laterais: «era uma vez uma princesa …» Certamente, dizemos nós, uma princesa de sangue azul! Estaríamos perante uma construção real, divina, como se fosse uma construção no início dos tempos, uma construção ab initio. A ideia a transmitir, e desejada, é a de uma criação a partir do nada, cujo arquétipo existe em todos os livros e tradições sagrados, caso da Bíblia: «no princípio, criou deus o céu e terra». (Gn 1,1). O significado de magnânimo, cognome do rei, é generoso, «mãos largas», em linguagem popular; mas, face ao que a História diz, será mais correcto chamar-lhe esbanjador; esbanjador de toneladas de ouro e prata vindos do Brasil. A construção do Palácio Real de Vendas Novas, escreve o portal da Câmara Muncipal (2013a), lembra «o milagre das mil e uma noites». O que se compreende. Foi ano em que choveu ouro na região, quando D. João V decidiu aqui construir um palácio. A construção do Palácio Real, mais tarde designado Palácio das Passagens, mas conservando ambos os nomes, aconteceu, como se disse, no ano de 1728. A sua construção encontra-se ligada a Custódio Vieira, arquitecto e engenheiro militar que, segundo a Infopédia, www.infopedia.pt/, foi arquiteto das Ordens militares de Santiago e S. Bento de Avis. Colaborou, no respeitante à engenharia, na edificação do Convento de Mafra. Dirigiu os trabalhos do Aqueduto das Águas Livres, numa das suas fases, planeando os grandes arcos das Amoreiras e o traçado desde o Monte das Três Cruzes até Lisboa. Em Fevereiro de 1728, foi destacado para o sítio de Vendas Novas, escrevese no portal do IGESPAR (2008), com a missão de assistir na edificação do palácio real, juntamente com o Coronel J. da Silva Pais. Mandaram-se vir, escreve-se no portal do Geocaching (2013), grande número de oficiais de Lisboa e de toda a província do Alentejo. Mestres-de-obras, oficiais de carpinteiro e pedreiro, pintores, ferreiros, entalhadores (gravadores em madeira) e ensembladores (carpinteiros?). Ao todo, continua o autor, um número superior a 1.300 trabalhadores: mais de 400 oficiais, 500 serventes e 400 infantes. Dos 127 acidentados e que deram entrada no hospital de Montemor-o-Novo, escreve Chinita (2006), 111 têm indicação da naturalidade: 55% são dos bispados de Braga e do Porto; da região de Montemor-o-Novo, apenas 3%. Extrapolando, o número de trabalhadores originário da região seria ínfimo. Trabalhava-se de dia e de noite, escreve Geocaching (2013), e chegaram a ser gastos mais de dez mil archotes. Iniciada a construção em Fevereiro de 1728, deu-se por 58 concluída a obra em Dezembro do mesmo ano, e nele se gastou cerca de 1 milhão de cruzados, o mesmo que 400.000 escudos. O palácio media, de frente, 1720 palmos e 740 de fundo. No frontispício abria-se uma porta monumental». É isto o que dizem, mas não aceitamos este relato, assim, sem mais. Várias dúvidas podem ser colocadas. Retirem-se os números e façam-se algumas observações. Mais de 1.300 trabalhadores, que trabalhavam dia e noite. O site da Câmara Municipal (2013b) fala em 2.000, e Pais (1985) fala em mais de 2.000, todos, certamente, no desejo de engrandecimento da obra, através do número de operários utilizados, e do engrandecimento de Vendas Novas por meio do engrandecimento da obra. Algo semelhante se passa com o enorme número de 10.000 archotes gastos nas noites de trabalho. No entanto, este número logo perde o seu fulgor, dividindo esta quantidade por todas as noites, o que dá 56 archotes por noite. Um número pequenino! Algo semelhante se passou com Heródoto e a construção da pirâmide de Gisé, salvaguardadas as devidas proporções. Diz Heródoto: consumiram-se dez anos na construção da calçada por onde deviam ser arrastadas as pedras. […] Aos dez anos gastos para construí-la, convém acrescentar o tempo empregado nas obras da colina sobre a qual se elevam as pirâmides, e nas construções subterrâneas destinadas a servir de sepultura e realizadas numa ilha cortada por um canal e formada pelas águas do Nilo. A pirâmide, em si, consumiu vinte anos de labuta […]. Utilizavam-se, de três em três meses, cem mil nesse trabalho. (2006, 2, 124). Para ter tal número de homens a trabalhar em exclusivo, o Egipto necessitaria de ter o dobro da população que teria na altura, uns 5 milhões. Voltando ao Palácio Real, e fazendo dois turnos, estariam, permanentemente a trabalhar, 650 homens. Que espaço é necessário para trabalharem 650 homens? Quantas pessoas, e onde viviam e onde semeavam e constituíam a logística de apoio alimentar, dormida e transporte de pedra e outros materiais? Segundo o portal da Câmara Municipal (2013a), 29 anos antes da construção, em 1699, a freguesia de Santo António tinha 224 pessoas e 4 estalagens. Pouca população auctótone que pudesse proporcionar os alimentos necessários. Muito espaço também seria exigido para nele trabalharem, em simultâneo, 630 homens, o que tornaria a logística de apoio deficitária face à extensão deste espaço. As pedras seriam aparadas no local, o mais natural, cada pedreiro necessitaria mais do que 6 m2, o que daria, no mínimo, 1.200 m2. Transportando as pedras até junto do palácio e retransportá-las até ao pedreiro, duplica o movimento e a logística, bem 59 como o espaço e homens necessários. Donde vieram as pedras e como vieram? Frei José da Natavidade (1752, citado por Coelho e Marques, 1991), escreve que a alvanaria vinha de mais de três léguas de distância [15 km.] e «andavam para cima de quinhentas carretas, não falando de outros singeleiros, ocupados no transporte de cal, vigas, tablados, cantarias, tijolo, telha, cavilhas, ferragens e todos os outros misteres, em que também se ocupavam para cima de duzentas bestas. Conduziam-se todos estes materiais de dez, doze e quinze léguas [50 a 75 km.] de distância». (p. 20). Foto 25: Fachada principal do palácio. 2013. Ora, um carro de bois, principalmente de Inverno, demoraria 2 horas a fazer uma légua. Três léguas, 6 horas. Ir e vir, 12 horas: 1 dia. Fazia um carro uma viagem diária. Todo este movimento de pessoas, bestas e materiais exigiriam um movimento e um espaço difícil de entender numa gestão de eficácia de construção. Para que mais de 2.000 pessoas trabalhassem no palácio, seriam necessários 200.000 por detrás da construção: culturas, comida, continuidade económica e social … Escreve o mesmo Frei José da Natavidade que, a uns 2,5 km, corria «uma bica de mais de uma telha de água de beber, e ali havia um tanque tão espaçoso que nele podiam beber de um jacto, sem algum estorvo, sessenta cavalgaduras». (1991, p. 20). Dando um metro a cada cavalgadura, seria um bebedouro de uns 60 metros de perímetro de três lados. Tudo em grande, demasiado em grande para ser possível uma gestão eficaz, mesmo sabendo que o arquitecto desta obra foi Custódio Vieira, o mesmo do palácio de Mafra. Onde fica(va) este chafariz? Na rua principal de Vendas Novas, e estrada nacional, está uma placa indicando «chafariz real», no sentido Sul. Uma placa junto às escolas diz «chafariz municipal». Este chafariz fica atrás das escolas e tem uma placa onde se lê: «PVN-1901»; certamente, povo de Vendas Novas, 1901. Fica a 1,5 km. Do Palácio. Embora seja um grande chafariz, podendo ser o chafariz real, não o é. 60 A construção do Palácio demorou 10/11 meses, de Fevereiro a Dezembro. Dez meses são 334 dias. Retirando o Domingo, que descansariam, serão 290 dias de trabalho contínuo, 6.960 horas. Pelo menos 6 destes dez meses são chuvosos, o que diminuiria a produtividade. Acrescentem-se as enormes dificuldades colocadas pela chuva e lama à circulação de homens, animais e veículos. Mais, a duração da noite é maior nestes seis meses e o trabalho nocturno, por mais archotes que ardam, é de menor produtividade que o diurno. Aliás, 56 archotes por noite, não parece um número suficiente para iluminar o espaço onde trabalhavam 630 homens. Mas Pais (1985) afirma que a construção, e o prazo dela marcado pelo rei, foi de 9 meses. O que coloca a construção do Palácio Real de Vendas Novas na lista dos milagres. A capela, por seu lado, do palácio terá sido construída na mesma data e dedicada a Nossa Senhora da Conceição. É um orago ligada à fecundidade feminina e cuja imagem se reproduz na foto 18. A riqueza de pormenor exigiu trabalho qualificado e ao longo de largo tempo. O seu espaço reduzido e a exigência profissional do trabalho não colocaria nela mais que um mestre e, talvez, dois outros profissionais. Tanto e meticuloso trabalho executado em dez meses, ou apenas nove, é, no mínimo, notável. A construção do palácio exigiu a construção de apoios, como escreve Pais (1985), «temporários». Isto é, antes da construção iniciada, foram gastos dias na construção as obras de apoio. Outro tema, quase nunca abordado, mas bem referido por Pais que escreve: «não se torna difícil de imaginar que estes milhares de pessoas, mal instaladas, sem hábitos de higiene e com poucos recursos médicos, as numerosas doenças que deviam ter surgido e os acidentes de trabalho […] devia ser elevada a mortalidade». (1985, p. 23). Assim, além de muitos dias gastos na construção dos apoios, vários trabalhadores teriam de ser substituídos. Chinita (2006) afirma que entraram 127 homens no hospital de Montemor-oNovo, durante a construção, sendo o pico nos meses de Julho a Setembro. Concluindo, há uma inflação dos números envolvidos e deflação do tempo gasto na construção. Como escreve Pais (1985), desde o início que se sabia que os nove meses eram apertados para esta construção, devido a duas razões: aos limites da técnica de então e o facto de ser necessário tudo transportar, dos materiais aos trabalhadores, para o meio da charneca. 61 As dimensões do palácio eram 1720 por 740 palmos. Considerando o palmo com 22 cm., tem-se 378,4 metros de cumprimento e 162,8 metros de fundo, respectivamente. As medidas são as de hoje, aproximadamente. 2. Razões da construção. Para melhor se compreender estas observações e a sua pertinência, analisem-se as razões apontadas para a construção do Palácio. A razão da construção tão monumental dever-se-á, escreve Geocaching (2013), ao desejo de D. João V querer impressionar a corte portuguesa e espanhola. Acrescente-se que também terá sido por gosto narcísico deste rei. O que não custa aceitar de quem construiu o Palácio de Mafra ou o Aqueduto das Águas Livres e que, atrás ficou escrito, recebia (e esbanjava) toneladas de ouro e prata do Brasil, em igrejas, capelas, palácios, corte faustosa e outros. Como afirma Chinita, esta construção foi prova mais que evidente «dessa vaidosa magnificência, desse fausto estéril». (2006, p. 57). Contudo, este esbanjamento por algumas noites de descanso, talvez duas, talvez quatro, supera tudo o que seria de esperar, mesmo de D. João V. Ou, talvez não, pois o esbanjamento, tido como investimento, é algo biológico na cultura portuguesa. Basta observar os gastos dos festeiros nas festas populares, a compra de carros, relógios e vivendas por parte dos jogadores de futebol, como falam títulos de jornais, caso o de Jorge Mendes, o super-empresário de futebol, que, em Maio de 2013, «investiu» numa vivenda de 3 milhões de euros. Se fosse um hotel, entendia-se «investimento», mas numa vivenda para a família, embora terminando em «mento», não é «investimento», mas «esbanjamento». Desejo de impressionar e satisfação do seu ego narcísico, terão sido as razões da construção do palácio Real de Vendas Novas por D. João V. Razões complementares e verdadeiras, sendo que a razão dada e dita foi a de proporcionar descanso às princesas portuguesa e espanhola. Razões estas que se confirmam com o que diz, em jeito de bajulação, de Frei José da Natividade (1572, citado por Coelho e Marques, 1991), a propósito da construção do Palácio Real: «jamais ficou a arquitectura mais gloriosa. Entre os sete milagres que admirou o mundo, envergonhara-se ele de falar no Palácio de Ciro, se tivesse estoutro à vista». (p. 20). Refere-se este frade às sete maravilhas do mundo antigo, segundo Heródoto. Não é palácio de Ciro, mas mausoléu. E, das sete, só se conhecem, e conheciam, as Pirâmides de Gisé. As restantes, como seriam, é pura 62 imaginação. Não nos admiremos, pois, que os números da construção do palácio Real de Vendas Novas, que têm os relatos deste frade como base, estejam inflacionados. Parece claro que o cronista de ontem e alguns historiadores de hoje escondem falhas quando falam do Palácio Real. Pais afirma que, apesar de todo o esforço e investimento, a obra ficou incompleta, pelo que, «para receber os reais hóspedes e respectivas comitivas, tiveram de ser feitas em madeira – por ser mais rápida a construção- algumas das dependências do palácio». (1985, p. 23). Porém, o desejo de glorificar Vendas Novas, pela divinização desta obra, o mesmo autor cita e escreve: Como testemunho da admiração e surpresa dos espanhóis, consta que terá escrito um cronista deste país da comitiva da princesa: «que espécie de magia tem este homem extraordinário que faz surgir num deserto um verdadeiro palácio encantado»? O homem extraordinário [continua Pais] era, por certo, D. João V, e a frase do maravilhado cronista espanhol demonstra bem os intentos do rei magnânimo de impressionar todos os que o acompanhavam naquele duplo casamento de príncipes foram plenamente atingidos. (1985, p. 26). O historiador não refere donde tira a citação, colocando um consta, aqui a negro, para, no passo seguinte, a achar verdadeira a fim de potenciar o espanto e o milagre da execução de tal obra. 3. Vendas Novas no Mapa de Estradas Nacional. O desenvolvimento de Vendas Novas, escreve o portal da Câmara Municipal (2013b), deve-se a três factos e todos eles ligados às estradas e aos transportes. A criação da Posta Sul através da charneca, por ordem de D. João III, em 1526, estabelecendo-se uma estação e uma sede da Posta em Aldeia Galega (Montijo). O segundo facto, continua o autor, foi a ordem de Luís Afonso, Correio-Mor do Reino, residente em Lisboa, com licença do rei, mandar abrir um caminho da Aldeia Galega (Montijo) a Montemor-o-Novo, «que atravessava uma vasta charneca que o rei utilizava para as suas caçadas reais, de maneira a diminuir o percurso e o tempo das viagens. Nesse caminho, o rei mandou construir uma estalagem, no sítio que hoje é Vendas Novas». Até esta data, e com referências escritas do século XIV e XV, escrevem Coelho e Marques (1991), o ponto de passagem obrigatório para Évora, Beja e Espanha era Landeira, aldeia do SW de Vendas Novas e hoje freguesia deste concelho. D. João I, a 10 de Abril e 1391, concede privilégio a Landeira; e, segundo Rui de Pina, D. João II passou por aqui, alterando o seu percurso, quando foi avisado que o Duque de Viseu se 63 preparava para o matar. No século XVII, continuam Coelho e Marques, embora continue ponto de passagem, Landeiro perdera já a sua importância para Vendas Novas. Em Dezembro de 1668, Cosme de Médicis passou por lá e, segundo os seus cronistas, Landeira estava reduzida a «poucas e miseráveis casas». (1991, p. 12). O terceiro facto é a construção, por ordem do Duque D. Teodósio I, em1540, de duas pousadas, uma em Evoramonte e outra nas Vendas Novas, perto das duas estações, para melhor se deslocar de Lisboa a Vila Viçosa. Baseados em documentos do século XVI, e seguintes, que referem os nomes de estalajadeiros e suas estalagens, Coelho e Marques não detectaram esta estalagem, pelo que «parece-nos destituído de fundamento as afirmações de que ao Duque de Bragança, D. Teodósio, deveria Vendas Novas a sua origem». (1991, p. 13). Foto 26: Palácio Real visto de Este, 2013. Três factos que têm tanto a ver com desenvolvimento economia portuguesas e o da comunicações e regionais, como com a satisfação do ego de três personagens com poder. Três construções para deleite dos que puderam mandar construir. Dizemos três, embora sejam duas, apenas. Isto porque a vontade e o desejo de ter uma origem nobre leva a acumular dons e 3, na cultura popular, é um número mais perfeito que 2. É o número «que Deus fez». Seja como for, Vendas Novas desenvolveuse graças a estas obras, embora tarde a ganhar importância regional, ou a vê-la reconhecida; em linguagem popular, tarda a «estar no mapa». E Vendas Novas, não aparece no mapa, tão cedo. O «boom» sócio-económico-populacional provocado, ou iniciado pela construção do Palácio Real, embora tenha contribuído de forma decisiva, para o desenvolvimento de Vendas Novas, mais não deixou que algumas bases para o seu desenvolvimento sustentado, sim, mas lento. Em 1768, passados 40 anos da construção, Vendas Novas tem apenas 55 fogos e uns 220-250 habitantes. No Mapa das Comunicações Postais de Portugal, de 1818, apresentado por Pacheco (2004), a ligação Lisboa - Elvas, passa por Aldeia Galega (Montijo), 64 Montemor, Arraiolos e Estremoz. Vendas Novas não é referenciada. Mesmo que económica e socialmente mais importante, é tida em segundo plano por quem determina e tem poder. Em 1843 e 1848, nos mapas das estradas previstas para o país, e apresentadas por Pacheco (2004), também não é referenciada, mesmo que por lá passe a estrada, e mesmo sabendo que em 1845 teve lugar a primeira viagem da Mala Posta entre a Aldeia Galega (Montijo) e Badajoz; ao contrário, nomeiam-se Estremoz, Portalegre, Elvas, Évora e Mourão. Ora, se a estrada passa por Vendas Novas e ela não aparece no mapa é porque há consciente intenção de minorizar a povoação. Talvez por influência de Montemor-o-Novo, freguesia sede de concelho que aglutina Vendas Novas. Contudo é um princípio do investigador do Social que o facto de não existirem documentos ou registos de uma povoação não quer tal dizer que não existisse, ou sequer que os seus habitantes se preocupassem que fosse conhecida nacional e internacionalmente. A sua existência não poderia estar dependente da pena de qualquer intelectual que por lá passasse e por ela se interessasse, ou desinteressasse, gostasse ou odiasse. Os homens e mulheres choraram e amaram, trabalharam e tiveram filhos independentemente de quem escrevesse. Mas Vendas Novas aparece em outros documentos escritos oficiais. A Fundação Portuguesa de Comunicações (2013) tem no seu portal 42 documentos que referem Vendas Novas como ponto da Mala-Posta. Um refere o pagamento ao Mestre da Posta (1800); outro, o mau estado da estrada de Aldeia Galega a Vendas Novas (1858); outro, o mau estado e necessidade de reparação do telhado da arrecadação do Palácio de vendas Novas, da Companhia das Mensagerias e Mala-Posta do Alentejo (1858). A passagem do Palácio para o Ministério dos Negócios da Guerra é ordenada em 30 de Agosto de 1852. Porém, a construção do Palácio real, mais tarde, escola Prática de Artilharia, foi e é, em Vendas Novas, se não de importância determinante, pelo menos de importância relevante. Tome-se pois o ano de 1728 como o primeiro de Vendas Novas. O passo segundo, de igual importância, é a passagem a Junta de Paróquia, em 1847; elevada a vila, em 1913; e, principalmente, a Concelho, em 1962. Quando uma povoação de um Concelho ameaça a importância da sede concelhia, esta, naturalmente e universalmente, reage de forma opressiva e esmagadora, por mais que tente camuflar ou esconder as 65 suas acções. Assim, a passagem a Concelho é a afirmação da autonomia e adultice, fugindo à tutela castradora da anterior sede concelhia. Vendas Novas muito deve a sua existência e afirmação regional e nacional ao Palácio Real. Tem de ser colocada uma dupla questão a juntar a todas as outras atrás enunciadas: porquê a escolha de Vendas Novas por D. João V, e não Elvas, ou Montemor-o-Novo? Seria o caminho alentejano o mais próximo da capital espanhola, Madrid? Não seria pela fronteira de Segura (Castelo Branco)? A distância, em linha recta, entre Lisboa e Segura (200 Km.) é maior que a de Lisboa a Elvas (173,18 km.). O melhor e mais rápido percurso, bem mais plano, é pelo Alentejo, mesmo sendo o Rio Tejo navegável, pelo menos, até Abrantes: Vendas Novas, Montemor-o-Novo, Elvas, Caia, Badajoz, Mérida, Talavera de la Reina, Fuenlabrada e Madrid. A distância, em linha recta, entre Lisboa e Vendas Novas é exactamente metade (86,1 Km.). Esta terá sido uma excelente razão da escolha de Vendas Novas. Contudo, face aos inúmeros exemplos que a História fornece, não seriam mais 25 km que impediriam a escolha de Montemor-o-Novo, que fica bem mais a meio caminho da fronteira que Vendas Novas? Que razões, pois, para a opção tomada? Parece-nos que terá havido alguém, com poder, ou influência, cujo parecer pesou na balança. Ou, então, perfeito acaso. Ou qualquer gosto pessoal do rei, mas não conhecido. 4. Capela real e Igreja Matriz de Vendas Novas A actual Capela da Escola Prática de Artilharia, escreve o seu portal (2013), é de invocação a Nossa Senhora da Conceição e foi, entre 1843 e 1969, igreja matriz da Vila de Vendas Novas. Em 1969, esta passou a ser dedicada a Santo António. A capela, continua o autor (2013), foi mandada edificar pelo Rei D. João V, como Capela Real do Palácio das Passagens, para aí terem conforto espiritual os hóspedes palacianos, provavelmente em 1728, no mesmo ano da construção do palácio. Esta capela terá herdado o património e recheio da capela-oratório, escreve o portal da E.P.A. (2013), dedicada igualmente a Santo António, e que existiu na Estalagem Real, mandada edificar por D. João III, em 1526. Para se perceber a importância da capela na construção da identidade de Vendas Novas, e a sua inclusão nestre trabalho, é necessário perceber o significado do santo orago de uma igreja e o significado de (uma) igreja Matriz. Matriz é Mãe. A igreja Mãe 66 recebe todos os seus filhos, pelo menos, ao Domingo, dia do Senhor (dominus). Os filhos entram nela, como entrassem no seu seio e saem renascidos. É como se de uma viagem ao ventre materno se tratasse. O filho renasce com um corpo e um espírito reanima-dos. Neste caso, sendo orago nossa Senhora da Conceição, mais se afirma este acto e simbolismo. Nossa Senhora, Maria, mãe de Cristo, é uma Senhora de muitas centenas de nomes. Reis (1967) apontou 1.037 nomes. Muitos deles, de Nossa Senhora da Conceição e Nossa Senhora do Bom Parto a Nossa Senhora da Expectação ou Senhora do Ó, encontram-se ligados à fecundidade. E, escreve Carvalho (2011), mesmo quando o nome parece não ter ligação a este atributo, o culto não mente. E compreende-se, quando, durante milénios, a alimentação, a fecundidade de homens e animais e a fertilidade dos campos constituíam a maior preocupação do Homem, pois significavam mesa farta ou fome e morte. Foto 27: imagem de Nossa senhora da Conceição, capela do Palácio real. Cremos ser esta a imagem original da capela do Palácio. Atributos de Nª Srª da Conceição: quarto crescente, serpente, coloca os pés num Globo, ou semelhante… anjinhos. O peso da coroa faz pender a cabeça da Senhora para a esquerda. O lado do coração? 2013. Conceição significa, não a imaculada, mas sim a que concebeu, ficou grávida e deu à luz, como qualquer mulher. Acrescente-se que, continua Carvalho (2011), Nossa Senhora do Ó, ao contrário do que se dizia, e ainda diz Almeida (2004), não vem das 7 Antifonias do Advento (17 a 23 de Dezembro), em que Deus, do Antigo Testamento, é chamado por sete nomes diferentes: Ó Sapientia, Ó Adonai, Ó Radix, Ó Clavis, Ó Oriens, Ó Rex, Ó Emmannuel; em português, sabedoria, supremo senhor (cananita), raiz, chave, estrela do oriente, rei e emmanuel; vem sim do aspecto da sua barriga. Aliás, o autor atrás referido, Almeida, acaba por escrever que «a forma arredondada do ventre da Senhora nas imagens reforçam e corroboram o designativo popular de Nossa Senhora do Ó». (2004, p. 167). Senhora da Conceição sucede a Nossa Senhora do Ó e da Expectação, como estas sucedem a Cibele e antigas deusas- mãe da fecundidade. 67 O site da Câmara Municipal (2013) reconhece esta importância afirmando que «a escolha da Capela Real ou Palatina para logo institucional do Concelho deve-se à mesma lógica de argumentos atrás exposta, [isto é, ser frequentada por reis e princesas] a Capela Real foi, desde então e durante muitos anos (até 1969), a Igreja Matriz, sendo portanto local de culto, não só da família real, mas de toda a população». Isto é, pela ligação à família real, ao sangue azul, Vendas Novas torna-se real e de sangue azul-ado. Por isso, continua o portal da Câmara Municipal (2013), «é facto fundamental para a unidade da aldeia de Vendas Novas, em Janeiro de 1844 dá-se a transferência da Matriz da Igreja de Santo António para a Capela Real». Esta ligação, esta dependência de reis e princesas é de tal ordem que se entra, queira-se ou não, num ambiente de contos de fadas e o portal da Câmara Municipal (2103) afirma que «...podemos pois até sonhar se Vendas Novas não será, ela própria, essa jovem princesa que decerto ajoelhou na Capela Real e viu o largo terreiro, então ainda deserto, onde hoje se situa o edifício da Câmara Municipal, o centro da vida política e social do concelho... » Até o edifício da Câmara Municipal foi profetizado! D. Maria II (1834-1853) cede a capela a Vendas Novas, em meados do século XIX. Eis uma data que pode ser reconhecida como da autonomia ou adultice de Vendas Novas. A igreja Matriz da povoação é sua e Vendas Novas começa a valer por si mesma e não já pelos reis que fundaram e geriram o palácio e a capela. 5. Vendas Novas: Origens de um Nome A toponímia é a ciência dos nomes. A procura da nascença ou criação nobre, divina ou heróica tem levado a erros e afirmações loucas, umas; ridículas, outras. Carvalho (2013) dá vários exemplos na sua tese de doutoramento, que retomou, mais tarde, num artigo. Pedrógão de São Pedro e outros dois Pedrógãos, Grande e Pequeno, devem os seus nomes aos fundadores romanos Petronius Grande e Petronius Pequeno. Há mesmo historiadores que confirmam a história de uma família de Petronius. Ora, em Latim, petronius pequeno seria Petronius Parvus, o que, certamente, não agradará aos seus habitantes ter um parvo na origem. Outro exemplo é Gafanha da Nazaré. O historiador Rezende recusa que Gafanha tenha nascido de uma povoação fundada por quatro criminosos. Afirma, o autor, de forma radical, que «muita gente é de opinião que nunca houve degredados na Gafanha, 68 ponhamos portanto de parte, pontos de divagação». Igualmente, o mesmo autor elimina a hipótese de Gafanha vir de gafaria, melhor, que gafaria signifique leprosaria. Significa, isso sim, local árido e estéril. Verifica-se que a submissão ao princípio de uma bela e heróica origem é de tamanho tal que até o próprio processo científico aceite pelo autor é negado, porque o mesmo não conduz ao pretendido. (1944, pp. 13, 42). Um terceiro é Ourentã que, escreve Marques (1992) tem na formação a palavra ouro (aurum). Contudo, escreve o autor, não há registo de ouro na região. Assim, continua, Ourentã deve o seu nome ao Sol que ilumina a povoação como ouro. Se isto é verdade, ou o Sol português se esqueceu do Alentejo ou os latinistas do aurum se esqueceram de metade do País. O nome de Vendas Novas, lê-se no portal da Câmara Municipal, terá provavelmente origem nas construções - "Estalagens" ou "Vendas", que por serem de recente construção, eram novas, denominadas pelos viajantes como "as Vendas Novas". (2013b, p. 1). Vendas Novas são duas palavras justapostas: Vendas e Novas; novas é novas, porque haveria alguma, ou algumas, velhas. Acontecendo aqui o que acontece por todo o país: Montemor-o-Novo e o Velho; Idanha-a-Nova e a Velha; Proença-aNova ou a Velha; ou, semelhante, Escalos de Baixo e de Cima; Pedrógão Grande e Pequeno; ou, a nível macro, York e New York. Onde se situavam as Vendas Velhas? Em segundo lugar, vendas é vendas, tabernas, não estalagens como alguns, caso da Câmara Municipal (2013b), querem fazer crer, talvez porque achem estalagem algo mais digno de seus avós que taberna. Na verdade, embora não conhecendo todo o país, não conhecemos região em que vendas seja, ou tenha sido, sinónimo de estalagem. É sinónimo, sim, de taberna. Ainda que não custe aceitar que, sendo o serviço e a sala principal da estalagem a taberna, ou venda, tenha ficado este nome como designativo do todo. A taberna medieval e, com certeza também a moderna, seria um multiusos. A taberna medieval, escreve Campos, Foi apresentada na literatura – nas canções e poemas dos goliardos, nas Canções de Gesta e, também nos Fabliaux – como um espaço de prazer. Esse espaço voltado principalmente para o consumo de bebidas – cerveja, vinho e sidra – acompanhada por porções de comidas simples como pães, carnes salgadas e sopas, existiu não somente como lugar de prazer e lazer, mas também, foi um local seguro para o descanso de comerciantes, viajantes e peregrinos oferecendo pouso, comida, bebida e diversão. (2013, p. 1). 69 A taberna, em resumo, seria local de bebida e, nalguns casos, comida e dormida, também; a estalagem seria a designação da casa que, no essencial, fornecia dormida. Conclusão. A construção do Palácio Real de Vendas Novas teve como objectivo, afirmado e justificável, receber as princesas, portuguesa e espanhola, nos percursos em direcção ao casamento com os príncipes de Espanha e de Portugal, respectivamente. Foi construído em 9/ 11 meses, conforme os historiadores consultados. Os relatos existentes, antigos e modernos, embora procurem afirmar a verdade histórica, não conseguem esconder uma faceta bajuladora do poder seja do poder real de setecentos, seja do poder autárquico do século XX e XXI. Com esta posição pretendem, consciente ou inconscientemente, engrandecer Vendas Novas através do engrandecimento do Palácio e da sua construção. Estes relatos inflacionam os números envolvidos na construção e deflacionam o tempo nela gasto, colocando a obra no rol dos milagres. O palácio demorou bem mais que um ano a construir e vários foram os pavilhões construídos, apressadamente, em madeira, para a «inauguração». Mas a razão principal da construção do palácio e do seu tamanho terá a ver com a necessidade de construir uma base de apoio e passagem para Vila Viçosa à comitiva real, que excedia sempre as 100 pessoas, o que se mistura com o narcisismo real, aproveitando-se o momento, a conjuntura, de dar pousada a duas princesas. Contudo, não se consegue vislumbrar o porquê da construção em Vendas Novas e não noutra povoação, casos de Montemor-o-Novo, Pegões ou outra. Isto é, o quê ou o quem terá pesado na decisão real da construção do palácio em Vendas Novas. No respeitante à toponímia, Vendas Novas não deve o seu nome a estalagens novas. Vendas não é sinónimo de estalagens, mas de tabernas. E, sendo Vendas Novas, onde se situam ou situavam as velhas? Donde vem o nome de Vendas Novas? Santo escreve que Vendas Novas vem do fenício. Vendas vem de bnt (casa, pessoa) + Novas que vem de nab (sacerdotes, iniciados). Assim, Vendas Novas foram a casa dos sacerdotes, a casa dos iniciados. Continuando com Santo (1989) Vendas Novas poderá vir de bent nab (casa dos profetas ou juízes; local da profecia ou dos oráculos). Nb significa vazio, insuflado pelo vento, saltar em danças extáticas. Nab significa acesso estático; naby significa profeta, iniciado; nebia significa profetiza; nebua 70 significa palavra profética. (1989, pp. 260 e 284). Esta variedade de vocábulos prova o significado original de Vendas Novas. Também topónimos próximos tem origem fenícia. Landeira, segundo Carvalho (2017), vem de lâm (antes, primeiro) + dr (família, geração). Significa: a primeira família, a primeira geração. Vidigal, escreve Santo (1989), vem de berit g’eul e significa aliança da reunião, aliança do pagamento. Piçarras vem de, seguindo o mesmo autor, pi ssaru e significa voz do rei, voz do juiz, voz do governador. 71 11. A FREIRA E O DIABO As Irmãs do Mosteiro de Odivelas A «Tadição», revista de Serpa, publicou um artigo acerca de Madre Teresa Maria de São José, abadessa do Mosteiro de São Denis e São Bernardo, de Odivelas, assinado por P. Azevedo (1904 a, b). O artigo tem uma «epístola em presopopeia» escrita pela abadessa. Pelo seu conteúdo (a relação da abadessa com o diabo) pensamos ser, no todo ou em parte, o que confessou, ou que foi obrigada a confessar, no Tribunal do Santo Ofício. Por outro lado, uma das lendas da nome-ação de Odivelas, nomeação que se confunde com a fundação, cabe ao par régio D. Dinis e Dª Isabel (de Aragão), Rainha Santa, mais tarde. Certa noite, o rei ia, uma vez mais, com uma pequena comitiva, ao mosteiro, para se encontrar com as freiras ou uma delas, em especial. Nessa noite, a rainha atravessou-se-lhe no caminho, de surpresa, e ter-lhe-á dito: «ides vê-las»? De «Ides vê-las» a «Odivelas» uma pequeno percurso na evolução fonética através da oralidade temperada por alguns séculos. A permanência deste fenómeno liguístico e cultural, que indica a verdade e a universalidade, é visível na publicidade a uma das marcas de cerveja nacional num out-door no IC 17, junto à cidade: «odibelas». Em terceiro lugar, é do conhecimento geral que, durante séculos, os mosteiros, masculinos e femininos, tinham muitos e muitas residentes sem vocação, mas por obrigação, isto é, sem outra alternativa. Basta saber que com a persistência do morgadio, o filho masculino primogénito era o único herdeiro da família. Aos irmãos, restava ser militar ou frade. Às irmãs, se não casavam, restava o mosteiro. Pretendemos neste trabalho, através de uma pesquisa bibliográfica e de arquivo e de uma investigação no local, com visita ao mosteiro, perceber o que se passaria no mosteiro e as razões culturais que o expliquem. 1. O Mosteiro de Odivelas: Narcisismo Dionisiano A carta de doação do mosteiro foi assinada pelo rei D. Dinis a 27 de Fevereiro de 1295. Eram presentes o Bispo de Lisboa, D. João Martins de Soalhães; Pedro Remígio, chantre da Sé; D. Frei Domingos, Abade de Alcobaça. A carta, continua Francisco Brandão (citado por Vaz, 2000), foi assinada pelo rei e pela primeira abadessa, Dª. Elvira Fernandes. 72 O rei fundou o Mosteiro de Odivelas, escreve Brandão (citado por Vaz), «para testemunho de sua grandeza». A autora afirma que a afirmação de Brandão, monge de Cister, «pode parecer-nos exagerada hoje, atendendo ao que nos resta da obra». Mas é possível que o mosteiro tivesse o dobro do tamanho, continua a autora, pois tem dois claustros. (2000, p. 64). Para além de uma razão narcísica, devem existir outras razões. J. M. Cordeiro de Sousa (citado por Vaz), escreve que o rei mandou construir este mosteiro também em honra de S. Luís, Bispo de Toloza, que o terá salvado de morrer às mãos de um urso, numa caçada perto de Beja. Grato, continua o autor, mandou o rei construir uma capela a São Luís, no mosteiro de S. Francisco de Beja. Uma decisão compreensível pois se constrói no local da manifestação do sagrado, positivo ou negativo, a exemplo de dezenas de outros factos semelhantes. Como escreve Carvalho (2008), constrói-se uma cruz onde apareceu um santo; constrói-se uma cruz onde alguém morreu cortado por um relâmpago; constrói-se o santuário de Fátima porque lá apareceu Nossa Senhora; coloca-se um ramo de flores atado a um poste de luz, onde bateu e morreu um motociclista. Foto 28: São Denis. Imagem do século XIV. De: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Le_Moiturier_%28circle%29_Saint_Denis.jpg, 2014. Será este urso e a imagem de um bispo que estão esculpidos no túmulo do rei. De seguida, porém, Brandão, citado por Vaz, afirma que «a imagem do bispo é do glorioso São Dionísio, de cuja invocação é o convento e, por devoção do qual, o rei o edificou como ele declara na carta de doação». (2000, p. 71). Há aqui uma explicação enrolada e nada clara. Isto porque o autor tenta justificar a construção do mosteiro por um milagre realizado a centenas de quilómetros, e noutro tempo, o que só se compreende por tentar lavar a imagem narcísica do rei. Isto mais se confirma pelo facto do rei, escreve Simas (1943), ter marcado, ele mesmo, o lugar do seu túmulo, a meio da igreja, no coro, que era no rés-do-chão. Foi mudado de lugar, duas vezes. A primeira, porque as freiras não conseguiam ver o celebrante. 73 Se é um louvor a São Luís, esculpir este bispo no seu túmulo é fraco pagamento do milagre. Até será humilhação pela diminuta visibilidade a um bispo e santo. Depois, o mosteiro não é dedicado a São Luís. Por fim, Brandão afirma que a referida imagem de bispo esculpida no túmulo do rei é, presumivelmente, de São Luís, para logo dizer que é do glorioso São Dionísio. São Denis e Dionísio existe no universo católico, mas Dionísio é deus greco-romano, que continua deuses mais antigos, mas sempre ligados a actos orgiásticos, sendo a nomeação de santos com o nome de Dionísio não mais que uma cristianização de um nome. Na carta de doação, diz Vaz, o rei escreve «em honra e louvor de São Dinis e São Bernardo…» (2000, p. 71). Dinis, ou Dionísio, não é um santo corrente em Portugal, ao contrário do que era em França, onde é padroeiro de Paris, a par de Santa Genoveva. A partir do reinado de Dagoberto (622-638), na França, os monges beneditinos divulgaram a veneração a São Denis. Fruto deste culto foi a construção da catedral em sua honra no local, onde terá sido martirizado. Quanto a Dionísio, era filho de Semele, princesa de Tebas, filha de Cadmo e Harmonia. No final da sua vida conseguiu lugar entre os deuses, no monte Olimpo. Em sua memória eram realizadas várias festas: Léneias, Dionísias urbanas e rurais, e as Anestérias. A característica comum a estas festas é o carácter orgiástico que contavam com um grande número de mulheres. Foto 29: Túmulo de D. Dinis: o urso da lenda, 2014. Dionísio, escrevem Chevalier e Gheerbrant, é um personagem complexo: é príncipe da fecundidade animal e humana; é o falo da procissão dos falos; «simboliza a ruptura das inibições, das repressões, dos recalcamentos […] Dionísio simbolizaria a regressão em direcção às formas caóticas e primordiais da vida, que provocam as orgias; um submergir da consciência no magma do inconsciente». (1982, p. 267). Tanto mais que, segundo Mestiça (1993), Dionísio não só ensinou a viticultura ao homem, como desceu ao inferno buscar sua mãe e elevá-la ao Olimpo. O nome assentaria bem ao sexto rei português. Simas, que abriu o túmulo do rei, em 1939, afirma que tinha barba e 74 cabelo ruivos. Embora falecido com 62 anos, bem mais que a esperança de vida para a época, o rei tinha todos os dentes e todos bem conservados. D. Dinis, além de rei, seria uma figura bem atraente junto do sexo feminino. Além disso, a dupla dedicação deste mosteiro, São Denis e São Bernardo, não é vulgar e, tratando-se de um mosteiro cisterciense, era natural ser dedicado, apenas, a São Bernardo. Não restam dúvidas que a construção e nomeação do mosteiro satisfaz o narcisismo real, como satisfaz a ideia de relação orgiástica entre o rei Dionísio e as mulheres. As freiras entraram no mosteiro no dia de ano novo, 1 de Março de 1296. Até 1536, o ano iniciava-se a 1 de Março, o mês da primavera. Residual e prova são os últimos quatros meses do ano actual (Setembro a Dezembro), cuja raiz diz Sete, Oito, Nove e Dez, respectivamente. A construção terá durado 10 anos. Bernardina da Encarnação Correia foi a última abadessa, falecida em 1886; a última freira foi Carolina Augusta de Castro e Silva. 2. Madre Teresa Maria de São José e o Diabo das Freiras Madre Teresa nasceu em Vila Ruiva, arcepispado de Évora, escreve Azevedo. Filha de Pedro Domingos de Moura. Pertenceu à seita de Molina, continua o autor, que afirmava a validade e licitude das más acções, quando os fins eram espirituais. Por esta razão, foi submetida ao Tribunal do Santo Ofício e participou no auto de fé que se realizou, em Lisboa, no dia 6 de Julho de 1732. A Madre Teresa, escreve Azevedo, viveu no tempo do «freirático D. João V, ao qual se seguiu a reacção purificadora do Marquês de Pombal». (1904a, p. 71). Consultando os autos no Arquivo Nacional, Azevedo afirma que Madre Teresa, confessou na Inquisição, e cita, «que todas as coisas extraordinárias que fez no decurso da sua vida foram obras do demónio, e que só no Santo Ofício viera neste conhecimento pela muita miudeza e clareza com que lhe falava». (1904a, p. 71). Por tudo, escreve Azevedo, Madre Teresa «foi declarada por convicta, confessa no crime de fingir virtudes e favores especiais de Deus, Nossa Senhora», bem como de seguidora de Molina. Foi condenada a reclusão no cárcere do Santo Ofício e degredada 10 anos na ilha de São Tomé. (1904a, p. 72). Pela análise das quadras, Madre Teresa confessa que enganou as irmãs e aproveita para chamar a atenção paras as freiras falsas, alcoviteiras e outras putas; 75 igualmente para as irmãs falsas beatas, pois a verdadeira virtude está escondida e não se proclama. Aquela que diz que é boa, não o é. (Quadras nº 17, 37, 73, 77-89 e 93). Não se escusa a referir-se à Inquisição. Os seus processos são obscuros e os clérigos inquisitores têm má aparência. Certamente que não se referiria apenas à aparência externa, ao aspecto físico, mas também ao moral. Torturam no preguiceiro. (Quadras nº 141-145, 197, 233, 249-257, 409). Vaticina a sua morte na fogueira. (Quadras nº 417, 421). Confessa ter tido trato e pacto com o diabo e ter sido seu instrumento no convento. Por amor de outro frade é acusada de feiticeira e alcoviteira. Teve, ainda, comportamentos de ditadora e dominadora, fazendo o que queria no seu mosteiro. (Quadras nº 313-321, 277, 325). Este diabo, de que nos fala Madre Teresa, nunca foi colocado em causa pelos inquisidores, bem como a sua maligna influência. O diabo, afirma Azevedo, era o feitio corporal que tomava a maldade […] Os nossos antepassados tinham larga experiência das acções demoníacas. As nossas crónicas contam numerosos episódios em que o diabo é a figura principal, o que denota a crença incontestada na existência dos espíritos infernais tão amantes das almas como os missionários de prosélitos». (1904a, p. 71). Contudo, este diabo (eclesiástico) é de criação recente, não podendo ser colocado antes do século XII, e muito diferente do diabo dos contos populares, que até é bom homem. Foto 30: Pegada ao campanário, seria a torre de Dª Paula. Resta a parede de pedra, ainda visível, 2014. Satan só aparece no Livro de Job, século V a.C., com o artigo definido, ElSatan, o Adversário. O pelagismo, é condenado pelo concílio de Cartago, em 412. Inocêncio I condena-o em 416, muito a pedido de Santo Agostinho. O bispo de Hipona, escreve Carvalho, «segue de perto São Paulo e afirma que negar o pecado original é negar a salvação de Cristo. Face à perigosa conjuntura na Igreja Católica, Santo Agostinho vai sistematizar e dramatizar este ponto, já que nem a teologia judaica teve o pecado de Adão como uma catástrofe, nem os cristãos do Oriente têm este pecado numa categoria maior». (2011, p. 20). Doravante, continua o 76 autor, a estratégia da Igreja Católica, nesta longa guerra contra as «religiões pagãs», passa por conotar as suas crenças com os demónios. É o que claramente transparece do De Corretione Rusticorum (572), de São Martinho do Dume, citado por Silva (1993). Satanás, que já estava integrado na visão cristã do além, passa agora a estar integrado na vida quotidiana. A imagem deste diabo é eclesiástico e o romancista de ficção científica, Barbet apresenta-o de forma ímpar. Barbet, desenvolve um enredo à volta do ídolo Baphomet, conutado aos Templários, na sua obra, cujo título original é Baphomet’s Meteor: Preparado para tudo, Hugues levou a mão ao punhal fixo ao cinto. Os cães, enraivecidos, ladraram, mostrando as presas, mas mantiveram-se a uma distância respeitosa como se compreendessem que não tinham o tamanho bastante para enfrentarem o perigo desconhecido que aquela abertura representava […] Depois uma estranha silhueta, não claramente visível no pálido luar, saiu da esfera […] Não, não estava a sonhar. A alguns passos na sua frente estava uma criatura deformada, barbada, com um crânio liso, calvo, do qual saíam dois chifres curtos. Dedos semelhantes a garras ainda estavam fechados sobre os contornos metálicos da abertura. Era evidente que o anão monstruoso estava completamente nu. Dois seios de mulher sobressaíam do seu peito. Asas curtas saíam-lhe das costas […] Não temas, miserável criatura, pregada a este planeta atrasado. Não sou Satanás. (1972, pp. 9-10). O diabo, na cultura popular portuguesa, aparece como uma boa pessoa e até como bom advogado, bem melhor que outros seres a quem habitualmente se reza. Como escreve Santo (2000), o diabo popular é «um personagem simpático e habilidoso». O diabo do conto «O Preço dos Ovos» salvou um embarcadiço de ser condenado em tribunal. No conto «O Diabo e o Pintor», salva o pintor dos desvarios da mulher. O diabo é boa pessoa e as pessoas gostam dele. Veja-se por exemplo, o caso do Diabo e da Diaba de Amarante, que são um exemplo do culto erótico e a devoção popular pelo diabo. O diabo que ensina a hierarquia eclesiástica foi pois formado e formatado pela Igreja Católica e pelo Santo Ofício. Não podendo culpar o rei e não ficando bem a uma freira entregar-se a práticas lascivas, culpa-se o diabo, que não pode defender-se, aqui servindo como saco de pancada. Outras freiras e madres serviram cama a reis e aristocratas. Muito conhecida ficou Paula Teresa da Silva (1701-1768), madre Paula, que teve direito a aposentos especiais, designados por «Torre de Madre Paula», mandados erguer por D. João V. 77 Não seria uma torre, mas a designação ficou pois nenhuma palavra melhor designaria a intocabilidade e a inacessibilidade de Madre Paula que ficar numa «torre», qual princesa dos contos de fadas. Quanto à família de Madre Teresa (a família fica sempre a ganhar!), D. João V, escreve Saraiva, «família de poucos teres, cumulou-a de tenças e mercês». (s.d., p. 43). Madre Paula teve, pelo menos, um filho, um dos «meninos de Palhavã», D. José, que chegou a Inquisidor Mor do Reino. As freiras Feliciana e Ana de Moura disputavam o leito de D. Afonso VI e trocavam décimas de ciúme: «que ainda soberana, tão endiozada está, Ana feliz será, mas nunca Feliciana». E, «ver que esta vossa afeição, motivo tem que a desdoura, pois adorais uma Moura, sendo vós um rei cristão». Cabem aqui algumas palavras acerca da moura e das mouras que são referenciadas em todo o país e Europa. A moira portuguesa nada tem a ver com as suas primas europeias. A Moira das aldeias, diz Santo, é uma deusa-mãe […] o mito sacraliza a terra e o trabalho agrário recorda a memória dos antepassados, revela o poder da mulher na agricultura e sugere representações da mãe que procura seduzir os filhos e praticar o incesto». (1984, pp. 3844). O dia e a hora primordial de aparecimento da Moura é a Noite de São João, à Meia-Noite. Nesta noite, a serpente, a moira, a grande mãe, que são uma e a mesma coisa, liberta-se da autoridade do pai, diz o mesmo autor. Liberta-se e acontece a noite de maior sensualidade de todo o calendário agroreligioso rural. Foto 31: estátua da moura, claustro da moura. A moura, de forma delicada, e algo provocante, parece querer passar um riacho, levantando o vestido. Juntando moura e água … Interessante que a moura, em local cristão, tenha resistido ao terramoto. 2014. Sobre a água e a fonte e as suas relações com as moiras, Carvalho descreve a 3ª e decisiva visão da curandeira do Pego (Abrantes), Maria Arminda. Diz ela, «eu passava por um ribeiro que se chamava Vale do Gato. Chegava ao ribeiro onde estava uma rocha, que ainda existe, onde a água corria, e às vezes bebia pelas mãos. Foi aí que me apareceu uma moira. Essa moira ainda lá vive encantada» A água brotando da rocha é regeneração e é conhecimento. Brota das entranhas da terra mãe onde vive a moira, que é ela própria. Santo (1984) 78 afirma que a água é um produto materno. Quanto aos mouros, são os primeiros habitantes da terra. São autóctones, isto é, diz Cabral, terão «emergido literalmente da terra». (1989, p. 280). Às portas, e dentro, do mosteiro realizavam-se os «outeiros». «Outeiros» eram improvisos que os poetas realizavam perante os motes que as freiras enviavam das janelas. Realizavam-se pelo São João, o que se compreende, pelo atrás escrito acerca deste santo. São João é uma festa ligada a antigos cultos orgiásticos. Eram acontecimentos muito concorridos, escreve Vaz (1997), e que proporcionavam vários escândalos. Na apreciação histórico-moralista à conduta das freiras do mosteiro de Odivelas, do dedo acusador à descupabilização, há posições extremadas. Saraiva escreve que «Borges de Figueiredo, como quase todos os escritores da sua geração, foi cruel para as pobres filhas de S. Bernardo, aceitando como boa quanta ignóbil historieta corria em seu desprimor». Continua a autora que a tão falada Madre Paula sobreviveu 18 anos ao rei D. João VI e já havia renunciado aos seus privilegiados aposentos, «para viver numa cela em recolhimento e modéstia». (s.d., p. 43). A Crónica de Cister, citada por Vaz, afirma que Violante de Sousa foi abadessa durante 28 anos e «era honestíssima em suas palavras e tão modesta em tudo que nunca se viu olhar para homem algum com a vista direita». (1997, p. 33). Os séculos XVII e XVIII, escreve Vaz, «permitiam uma certa liberdade de comportamento que se estendeu a estes mosteiros e alguns reis e nobres apreciavam o convívio e a companhia de donas amorosas e cultas, como eram estas senhoras». (1997, p. 81). Algo que se compreende, lembrando o que já aqui ficou escrito, que à maioria das nobres não restava saída que não fosse o convento, não tendo pois a ver com vocação a tomada de hábito. Não admira, assim, que estas senhoras, que tinham grande ascendente na corte, escreve Vaz, «nunca os abades de Alcobaça, seus superiores hierárquicos, se conseguiram fazer obedecer, nos aspectos mais rigorosos da disciplina cistercense». (1997, p. 85). Além disso, o convento era um mundo: freiras e servidoras, escreve Vaz, eram mais de 400; 9 frades e muitos servidores de fora; o coro da capela tem 70 mulheres e tocam vários instrumentos musicais. Haveria, de certo, um número de freiras que se opunha a este ambiente e a esta conduta. Num antigo manuscrito, citado por Vaz, escrito em verso e endereçado ao Rei, lê-se: «se vemos da nossa igreja os frades bernardos lá fora, louvaremos toda a hora o 79 vosso nome; a injúria tão atroa, de nos ir quebrar as portas, nem até depois de mortas perdoamos». (1997, p. 39). Doze padres cistercienses viviam em casa próprias próximo do convento. Este facto não parece abonar a castidade das freiras, frades e padres. Contudo, este era o ambiente e a conjuntura. Se quisessem ser castos poderiam sê-lo; se quisessem ser o que transparece, podê-lo-iam ser. Certo é que os exageros são evidentes. Não sabemos se seriam generalizados ou se a sua visibilidade daria mais nas vistas do que a sua substância. Contudo, este era o ambiente do século, esta era a conjuntura religiosa. 3. Outros Factos, Outros Símbolos, Outros Significados O mosteiro teve visitas importantes que, verdadeiras ou falsas, servem para elevar a sua grandeza. A mais célebre visita ao mosteiro, escreve Vaz, foi a de D. Filipa de Lencastre que aqui permaneceu alguns dias, com os seus filhos. Achando-se à beira da morte, fruto da peste que assolara Lisboa e arredores, a rainha, sabendo que os filhos iriam ser armados cavaleiros em Ceuta, pediu três espadas deu-as aos três filhos, Duarte, Pedro e Henrique, e a cada um especial conselho e pedido de dedicação ao Reino. Frei Bernardo de Brito, citado por Vaz, afirma que D. Filipa esteve 15 meses enterrada em Odivelas, sendo transladada para o mosteiro da Batalha. Realidade histórica eram as pestes quer na sua repetição quase anual, quer na mortandade que provocavam, quer na saída dos nobres para as regiões vizinhas de Lisboa, mais airosas. Quanto ao gesto e discurso heróico de D. Filipa de Lencastre é executado posteriormente, pois o infeliz D. Fernando, também filho da rainha, já é morto antes de ser. A neta de D. João I, filha de D. Pedro e D. Isabel, entrou no convento com 12 anos de idade, depois da infeliz derrota de seu pai na batalha de Alfarrobeira. Viveu santamente, diz Brandão, citado por Vaz (1997), embora nunca tenha tomado votos. Também santa Joana, filha de Afonso V, iniciou a sua clausura neste mosteiro, antes de entrar no Convento de Jesus, em Aveiro. 80 Na igreja do mosteiro, está o túmulo de uma filha bastarda de D. Dinis, Maria Afonso, segundo Borges de Figueiredo, citado por Vaz (1998), assassinada ainda criança. A arca tem dois escudos iguais, um de cada lado. O escudo está dividido em quatro partes: no primeiro quartel, um leão rompendo para a esquerda; segundo e terceiro quartéis, as quinas; quarto quartel, castelo de três torres. Segundo Vaz, as quinas provam que quem ali repousa tem sangue real; castelo é símbolo generalizado da nobreza portuguesa; o leão é o leão de família Valadares, indicando que a mãe seria D. Branca Lourenço, filha de D. Lourenço Soares, de Valadares, e indicaria bastardia. O estranho, diz também a autora, é a direcção do leão. De facto, o primeiro ergue-se para a direita; o segundo ergue-se para a Foto 32: brasão de D. Maria Afonso (Valadares). 2014. Foto 33: Brasão de esquerda. Valadares. Ambos de www.geneologias.org Por fim, no memorial de Odivelas. O memorial de Odivelas, e os memoriais, escreve Carvalho (2002), insere-se na tradição universal de demarcação humana do espaço, que é heterogénio: nosso/ outro; positivo/ negativo. Uma tradição, que é um arquétipo, e na qual cabem cruzes e cruzeiros, nichos e alminhas, e mesmo ermidas e capelas. A legitimação da sua construção é feita pelo nobre, que é o elemento mais próximo do deus, o que lhe confere um carácter sagrado. Terá sido construído para nele, ou por nele, ter poisado o caixão com os restos mortais de D. Dinis e/ ou de D. João I, a caminho da Batalha. Todos estes factos, históricos e lendários, do reino do cronológico ou do reino do onírico, mas ambos verdadeiros, contribuem para a grandeza do mosteiro, e de Odivelas, o local onde ambos se encontram. Conclusão O mosteiro de Odivelas, dedicado a São Dinis e São Bernardo de Claraval foi construído para satisfação narcisista do rei D. Dinis e perpectuação da sua memória. Face à sua figura, D. Dinis deveria ser muito caro no público feminino. 81 A maioria das freiras, de ascendência nobre e com influência na Corte, ao longo de séculos, tinham uma vida mundana, rodeadas de homens, frades, padres e criados. Não se deve lavar a imagem, por força de uma falsa pureza e modéstia. Era o que era. O memorial de Odivelas, construído ou não na mesma altura do mosteiro marca um limite da povoação e entra na história como local de pausa/ repouso de cortejo fúnebre real. 82 ANEXO A FREIRA E O DIABO Epístola em Presopopeia da Madre Theresa para Odivelas 1.Minhas Beatas que as luzes belas, lá de Odivelas, escureceis, 25. Mostrai agora os bons juízos, aos meus avisos não respingueis. 49. Eu fui beata e já está visto, fui tudo isto, que o confessei. 5. Deixai que brilhem sem tais vapores os resplendores, que todos têm. 29. Crede a verdade sem raiva e iras. já que as mentiras quiseste crer. 53. E as que comigo comunicaram, tudo isto andarão pé ante pé. 9. Negar não posso nesta mudança uma lembrança, que me deveis. 33. Se vires gente com a moquenquisse da beatisse, não vos fieis. 57. Pois toda aquela, fraca ou robusta, que santa e justa vos parecer; 13. Não foi possível, isto é constantes pois foi bastante por me esquecer. 37. Crede são p - - - e alcoviteiras e feiticeiras e o mais que eu sei. 6 1. Se em sinais mostra de que é beata, é patarata; e isto é, o que é. 17. Eu fiz vos tolas neste processo, porque confesso vos enganei. 41. Que este juízo será falsário e temerário, dirá alguém. 65. Crede o que eu digo : esse toucado de mim aprovado é Frei Manoel. 21. . Mais avisadas sede, é preciso que eu vos aviso, procedais bem. 45. Mas eu afirmo, que isto é o certo, e que é acerto tudo isto crer. 69. Foi um Demónio, o que me disse, que o aplaudisse por vos perder. 83 73. Tende entendido que a que se jacta de ser beata, que essa o não é. 97. Ao bom capelo que confessastes, e que o devastes ide outra vez. 121. Primeirarnente quis o tinhozo, que o Vimiozo me foi prender. 77. Porque o letreiro que isso publica, só nos indica ser má mulher. 101. Porque reforma com tão má capa, sem ser do Papa de m.... é. 125. Não disse nada, de que me peza nem à Marqueza nem ao Marquez. 81. He a virtude que mais avulta, a que se oculta e não se vê. 105. O gibão novo, à terca feira, vesti na feira posto ao revez. l29. Crêem que eu fui preza denunciada, mas que culpada isso não crêem. 85. A que se mostra com seus primores, pesa os amores é um desdém. 109. Leve castigo disso seria que eu merecia em fogo arder. 133. Para que os prodígios que obrei com eles, não são daqueles que hão-de esquecer. 89. Vossa virtude em vós caiba, só Deus a saiba e mais ninguém. 113. Estai me atentas, ouvi-me agora, sequer meia hora o que passei. 137. Fornos andando eu, mais. o Conde, e não sei d'onde . me foi meter. 93. Mas toalhinha que diz: «sou boa» Isto mal soa, nunca o sereis. 117. Na prisão dura, terrível, forte, aonde a morte cara me fez. 141. Mas depois soube que era chiton, de Inquisiçon,1 e não falei . 1 É provérbio bem conhecido. 84 145. Lá me fecharam numa casinha , triste e mesquinha não sei porquê. 169. Diz: «para que coma não é o convite, para que vomite será talvez». 193. Eu fui andando sem dar mais fala e numa sala escura entrei. 149. Estava lá aquilo tão mudo e quedo, que me fez medo de só me ver. 173. E eu respondi-lhe : «Isso assim enjoa, que cousa boa certo não é». 197. Clérigos tristes vi com más peles; diante deles ajoelhei. 153. Ao outro dia abrem-me a porta, com a alma torta então fiquei. 177. Diz: «mas será para que cante «com voz galante um minuete.» 201. Fui perguntada com vós que espanta, se eu era santa, não lho neguei. 157. Disse o Porteiro: «Madre Thereza chamam-na à mesa venha você » 181. «Não sei cantar», disse enfadada ; e ele «não é nada cantará bem.» 205. Dei por testigo sem mais medulas, vendia bulas por dois vintens. 161. Eu respondi-lhe, como quem chora: «não estou agora para, comer». 185. «Um tal compasso lá lhe levantam «que todos cantão sol, fá, mi, ré.» 209. Disse o milagre do enforcado tão celebrado como entremez. 161. O tal Porteiro rio de vontade eu na verdade não sei de quê. 189. «Madre Thereza aparelhar, que há-de cantar, em que lhe peze. 213. Só na garganta tinha o baraço feito num laço e eu lho cortei. 85 217. De uma senhora, que enviuvara e que ignorara sua prenhez. 241. Neste trabalho, o que vos toca., por coisa pouca só vos direi. 265. E que a soberba eu a ensinava e a aconselhava como de Lei. 221. Disse que eu fora, quem lho dissera e que a tal era Dona Isabel. 245. Por que é bem saibam as criaturas as diabruras que eu sei fazer. 269. Que is de capelo as desprezasse e que as trajasse com altivez. 225. Outro milagres, que são patentes, e as mais das gentes sabem mui bem. 249. Que de sete anos, disse sem gabo, vira o Diabo num bode em pé. 273. Disse da freira, de que as formigas eram inimigas e eu desterrei. 229. Relatei todos porém os clérigos, como galegos, não querem crer. 253. E de então tive com ele trato, mas não com pacto, por que o neguei. 277. Pois quando eu mando tudo obedece e não se esquece de obedecer. 233. Ao preguiceiro, logo me ataram e me apertaram bem os cordéis. 257. Disse que eu fora nesse Convento o instrumento de Lúcifer. 281. Mas as baratas, que há do Capelo, eu com desvelo deixar fiquei. 237. Tal cordalejo2 ali me deram, que me fizeram esmorecer. 261. Porque a vós todas as beatinhas, com toalhinhas vos enganei. 285. Também lá disse e esta pirraça tem sua graça e um certo quê. 2 Repreensão áspera, forte, desabrida. 86 289. Disse que eu fora, quem por travessa a uma abadessa a morte dei. 313. Disse que a um frade, Que é mui garrido, mui presumido, queria eu bem. 337. Um dos meus dentes, que um relicário . num santuário guardava bem. 293. E outra matava, sem piedade, se falta o frade de Sacavém 317. E amara a outro, que prevenia na sacristia um certo quê. 341. Lança um Ministro com confiança, . onde se lança o descomer. 297. Que à Portugal de alguma sorte à sua morte cooperei. 321. Disto inferiram, que feiticeira e alcoviteira eu vinha a ser. 345. Sempre me lembra, que o sentira,, se isto hoje vira Frei Manoel, 301. A oposicão que ela fazia, ao que eu dizia, tudo isto fez. 325. Mas os feitiços que eu os fizera nem que eu os dera, não o neguei. 349. De Deus era ele isto dizemos e não sabemos de quem hoje é. 305. Disse que eu sempre patrocinara a quem amara Luís Quifel. 329. A um dos frades que o meu retrato com bom recato, quis esconder, 353. Ele me honrava com grave intento, que mandamento era da lei. 309. Que eu fora a capa de seus amores e outras piores se podem ler. 333. Clérigos tristes lho apanharam e lho queimarão, não sei porquê. 357. Deves-me tudo em boa hora, que se eu não fora ele não é. 87 361. Do feito, e dito desse convento, com mau intento me retratei. 385. Fez dar-rne tratos de tão boa sorte, que hera urna morte cada cordel. 409. Não disse o pacto, que tenho feito dentro em meu peito com Lucífer. 365. Mas o retrato tende entendido, que é parecido a Lúcifer. 389. Fez dar-me açoites, que por apostas . atrás das costas sempre os deitei. 413. Alegrão novo raro e jucundo darei ao mundo daqui a um mês. 369. Nossas manicas (?) quu e eu do pecado, tinha livrado por comprazer. 391. Mas o que sinto com mais fadiga, é a cantiga que se me fez. 417. Qual borboleta que o fogo corre e nele morre, eu hei-de ser. 373. Basta de graça, porque os senhores Inquisidores em tal crêem. 397. Dá-me esta pena um tal cornudo, que só o agudo os cornos tem. 421- Se eu adivinho ou se eu me engano, dentro de um ano vos o vereis. 377. Traçado tinha Ser ainda agora reformadora dessa lista. 401. Eu quero a trunfa da carapinha, porque à carinha me há-de estar bem. 381. Mas S. Bernardo assim castiga uma inimiga de sua fé! 405. E que ma ponham o ponto está, antes que eu vá a S. Tomé. Da Revista «Tradição», Serpa. Arquivo Nacional, Lod. 1048, p. 14 Pedro A. D’Azevedo 88 12. IGREJA MATRIZ DE BUCELAS Nossa Senhora da Purificação e o Anjo Custódio Falemos da Igreja Matriz e das duas principais imagens que contém: Nossa Senhora da Purificação e Anjo Custódio de Portugal. Do lado esquerdo do altar-mor, o lado da Epístola, ergue-se uma imagem do Anjo Custódio de Portugal, em tamanho quase natural. De tamanho praticamente natural se pensarmos na altura média dos homens de quinhentos. E surge um pensamento: uma pequena povoação tem uma imagem em tamanho natural do Anjo Custódio de Portugal. Simultaneamente, o nome Custódio não é um nome, propriamente dito, antes uma função; é aquele que exerce a custódia sobre alguém, a tutoria, a responsabilidade individualizada. 1. Nossa Senhora da Purificação a Fundadora de Bucelas A Igreja Matriz de Bucelas tem Nossa Senhora da Purificação com orago. Peguemos nas palavras. Igreja é um colectivo (de crentes) e a matriz é a sede mãe. Igreja matriz significa sede, o centro no qual se juntam os fiéis, os irmãos na fé. Entrar e sair da Igreja Matriz é, simbolicamente, o re-entar e o sair (de) novo do ventre materno. Percebe-se, assim, a importância religiosa, social e cultural da igreja matriz de uma paróquia ou freguesia. Neste caso, a importância da igreja matriz de Nossa Senhora da Purificação na fundação e afirmação de Bucelas. Foto 34: Nossa Senhora da Purificação, 2012. Nossa Senhora é a santa dos mil nomes. Reis (1967) Apresenta 1.037 invocações à mãe de Cristo. Purificação não significa a que é pura, mas a que se purifica depois do parto. Há cinquenta anos, na aldeia, ainda eram os padrinhos que levavam o afilhado à pia baptismal. A mãe ficava em casa. Algo muito antigo (e que ainda aconteceu com o autor deste artigo). As mulheres, no judaísmo, eram consideradas impuras após o parto. Por isso, eram afastadas durante alguns dias do 89 convívio social e das actividades religiosas no Templo. Passado o tempo de resguardo, a mãe e a criança iam ao Templo. A mãe para ser purificada, conforme a Lei, a criança para ser apresentada a Javeh. Pode-se ler: «quando uma mulher der à luz um menino, será impura durante sete dias, como nos dias da sua menstruação. No oitavo dia far-se-á a circuncisão do menino. Ela ficará aina trinta e três dias no sangue de sua purificação; não tocará coisa alguma santa e não irá ao santuário até que se acabem os dias de sua purificação». (Lv 12, 2-4). No caso e dar à luz uma menina, seria o dobro. (A ditadura do masculino sobre o feminino!) Ainda: concluídos os dias da sua purificação, segundo a lei e Moisés, levaram-no a Jerusalém para o apresentar ao Senhor». (Lc 2,22). Foto 35: Anjo Custódio. Igreja Matriz de Bucelas, 2012. Nossa Senhora da Purificação aparece associada a outros nomes, casos de Nossa Senhora da Luz, Nossa Senhora da Candelária, Nossa Senhora das Candeias e Nossa Senhora da Apresentação. Nossa Senhora da Luz tinha festas e romarias por todo o país, escreve Reis (1967), a 8 de Setembro, o dia da natividade de Nossa Senhora. Dizia-se, continua o autor, que era neste dia que a azeitona começava a ganhar azeite; daqui, porque o azeite era o corburente das candeias, seria Nª Srª da Luz. Ligar Nossa Senhora da Luz à luz, ganha mais certeza sabendo-se que, afirma Reis (2012), os crentes de Nossa Senhora das Luzes, para os lados de Rio Zêzere, lhe ofereciam olhos de cera como ex-votos. É uma invocação que o autor apenas coloca nesta região, mas que ajuda a demonstrar que Luz tem a ver com luzes, velas, candeias, archotes e não com olhos. Nossa Senhora da Candelária é o mesmo que Nossa Senhora das Candeias. Esta tem grande expressão no Continente, aquela nas antigas províncias ultramarinas. Nossa Senhora das Candeias tem uma origem bem antiga. Segundo Santo, esta festa teve origem em Antioquia; «ora, festa das Luminárias no princípio da Primavera, era como se chamava a festa da deusa Síria Iasura, de Luciano, no qual os fiéis organizavam uma procissão com archotes no adro do templo de Hierápoles». Luciano, historiador romano 90 do século II, falecido em 195, escreve, em A Deusa Síria: «de todas as festas que vi, a mais importante é a que se celebra no começo da Primavera. Uns chamam-lhe A Festa das Fogueiras; outros, A Festa dos Archotes ou das Lâmpadas. Eis o sacrifício que se pratica nesse momento: cortam-se grandes árvores e erguem-se no pático; depois trazem cabras, ovelhas e outros animais vivos que suspendem das árvores. Põem também ali aves, roupas e objectos de ouro e prata. […] Lançam fogo ao montão e tudo arde imediatamente». (1993, pp. 135, 46-47). É uma das 27 festividades anuais inseridas na Regra dos Templários. Percebe-se a importância, desta procissão na religião popular e eclesiástica pois foi absorvida pela procissão das velas, na Cova de Iria, como se fosse coisa própria de Fátima. Reis escreve que Candeias é o nome «que vulgarmente se dá a Nossa Senhora da Purificação, cuja festa litúrgica é celebrada no dia 2 de Fevereiro». Esta festa é das mais antigas, «senão a mais antiga co calendário Eclesiástico. Faz-se neste dia a benção litúrgica das velas e a sua consequente procissão – a única procissão das velas determinada pela Liturgia. Por este facto, dá-se à Senhora da Purificação o título de Senhora das Candeias». (1967, pp. 133, 488). A Senhora da Apresentação tem a sua festa a 21 de Novembro. Segundo a tradição cristã, escreve Reis (1967), foi neste dia que Joaquim e Ana, pais de Maria, a apresentaram no Templo para se dedicar ao serviço de deus. Esta festa, continua o autor, era celebrada no oriente, já no século VI; no ocidente, só a partir de 1562. Sem dúvida que a Senhora da Purificação se encontra ligada à luz, às velas, às candeias. Diz a lenda, que uma imagem de Nossa Senhora apareceu numa mata de carvalhos, onde hoje está a igreja matriz. A imagem manifestou-se através de uma luz intensa. Segundo Pinho Leal (1873), «a Senhora apareceu com uma tocha na mão». O que aproxima esta santa à antiga Festa das Candeias, atrás descrita. Considerando que o local adequado à imagem era a ermida de São Roque, Vila de Rei, para lá a levaram. De noite, a imagem fugiu para a mata de carvalhos, reaparecendo no dia seguinte. Repetiram-se as cenas de levar e fuga. Até que, como acontece em dezenas de lendas semelhantes, (o que a torna verdadeira) decidiram erguer um templo, ali mesmo, e dedicá-lo à Senhora da Purificação ou Nossa Senhora do Carvalho. Esta lenda é verdadeira. Não na verdade histórico-cronológica, mas na verdade do tempo circular-litúrgico e do mito. Em primeiro lugar, assemelha-se a dezenas de 91 lendas de aparecimento de Nossa Senhora e outras santas espalhadas pelo país. Em segundo, como se referiu, é visível a continuidade milenar de antigos cultos. Em terceiro lugar, este aparecimento e teimosia em ficar no local pretende justificar, através da manifestação do divino, a criação de uma igreja matriz, e de uma nova freguesia, neste local. Pela lenda, parece que a ermida de São Roque, datada de 1460, e o lugar de Vila de Rei se sobrepõem, em importância regional, a este povoado que já existiria no local da mata de carvalhos. Foto 36: Capela de São Roque, Bucelas, 2012. Assim, deus determinou, por mão de Nossa Senhora, que este povoado tivesse indubitável existência. É como se fosse criado ab initio por deus e Nossa Senhora. Porque a Igreja Matriz é construída em 1522, tentando fundir os dois calendários, poder-se-á concluir que terá sido por volta deste ano que a aparição se concretizou. Porém, não se devem misturar os dois tempos, circular-litúrgico e cronológico, pois lidaremos com uma impossibilidade: não se constrói um templo num local, seja ele qual for, sem que o divino se manifeste, pois é esta manifestação que sacraliza o local e, por isto, se coloca, em cima dele, um templo; então, onde esteve a imagem durante a construção? Em São Roque, é possível, pois Pinho Leal (1873) diz que São Roque foi a primeira matriz. A lenda foi-se construindo, à medida que se construía o povoado, futura Bucelas (e cuja importância regional era patente em 1522), e se construiu um pequeno oratório ou uma pequena capela. Ou, até se pode ter aproveitado ruínas de um monumento sagrado pré-existente, como um templo «pagão». O exemplo de Fátima pode ajudar a compreender. Uma pequenina capela, chamada das aparições, é construída depois da manifestação do divino, ou sagrado. Mais tarde, o santuário, que hoje se conhece. Ao princípio, porém, o local sagrado foi localizado com uma simples baliza de três paus. As lendas devem ser interpretadas num universo simbólico, onírico e num tempo cíclico-litúrgico. E que se diz das lendas se diz também da análise dos símbolos de brasões e bandeiras. 92 A título de exemplo, a bandeira da freguesia. Segundo a Junta de Freguesia de Bucelas (2012), é «esquartelada de azul e amarelo; cordões e borlas de ouro e azul». Os seus elementos, continua o autor, têm o significado simbólico: A falcata celta – Símbolo de uma antiquíssima civilização. O gládio romano – Símbolo da dispersão das hostes romanas por esta região. A águia – Símbolo do desejo de progresso. A folha de videira – Símbolo da característica vitivinícola, então dominante nesta região». Coloquem-se algumas perguntas: (i) se a região é antiquíssima, porque não um machado de pedra? (ii) Se o gládio é romano, até pode ser lusitano, porque não antes a águia, símbolo romano espalhado pelo mundo e símbolo precioso da legião? Porquê um gládio romano se não constitui individualidade, pois os romanos estiveram em toda a Península e num imenso território? (iii) Águia símbolo de progresso? Segundo Chevalier e Gheerbrant (1994), a águia é um dos símbolos mais poderosos da liberdade e da expansão da consciência. Dado que designa um ser que voa, é a forma privilegiada de exprimir, a relação entre o céu e a terra, entre o espírito e a matéria, entre o plano horizontal e o plano vertical. A águia simbolizava o poder divino. Outro exemplo de interpretação descuidada. Lê-se em Assunção: «a presença do sol encimando o trono, numa clara alusão à luz divina, é a invocação do templo, Nossa Senhora da Purificação, relembra e reafirma a dedicação deste altar à Mãe de Deus, intercessora e advogada das preces dos crentes» (201, p. 18). E de que é advogada Nossa Senhora da Purificação? Que preces? Que crentes? Em segundo lugar, o sol radiante não e símbolo da Senhora, mas sim do deus masculino, de Cristo. Trata-se de um processo e cristianização de uma imagem mitraica. O sol radiante que aparece em muitas igrejas, capelas e até na custódia sagrada, representava o deus Mitra, na sua hipóstase de luz divina criadora. Voltando à lenda, um facto nela narrado na lenda parece(ia) inexplicável: Nossa Senhora apareceu numa mata de carvalhos. Ora, a mãe de Cristo costuma aparecer em árvore/ arbusto feminino e de bom fruto, pois a quase totalidade das árvores portuguesas, da azinheira à silva, de bom fruto, são femininas. Contudo, na Beira Interior - concelhos de Idanha-a-Nova, Penamacor, Castelo Branco, Proença-a-Nova – região que mais estudámos ao longo de duas dezena de anos – dá-se o nome de carvalho a um carvalho de grande porte, geralmente isolado ou na companhia de outro, e 93 carvalhas a uma mata de carvalhos pequenos, com, pouco mais de 2 metros, muito juntos uns aos outros, como rebentos. Poderá haver uma versão da lenda que fale em mata de carvalhas e que o erudito, porque não conheceria carvalhas, recolheu carvalhos. É que Assunção escreve: «o altar colateral do lado do Evangelho […] e uma escultura (finais do séc. XVI ?) evocativa da Senhora do Carvalho ou Carvalha». (2011, p. 40). Segundo Chevalier e Gheerbrant (1994), o carvalho é sagrado em várias tradições e «investido dos privilégios da divindade suprema do céu»; é símbolo da força física e moral; é eixo do mundo. Foi junto a um carvalho que Abraão recebeu a revelação de Javeh. (1994, p. 165). Para os mesmos autores, bolota ou glande significa a abundância, prosperidade e fecundidade; designa a potência do espírito e a virtude enriquecedora da verdade, essa verdade que vem de duas fontes: a natureza e a revelação». (1994, p. 354). Estamos, pois, perante uma mata de árvores sagradas, eixo do mundo e local sagrado onde a verdade foi revelada. Santo (1989) escreve que carvalho(a) vem do fenício qrb’l (clã, parentela), ou de qrb bal (perto do senhor). É o mesmo que Paços, que vem de pastum e significa distrito. Assim, o local do aparecimento da Senhora é o local onde vive o clã, perto do senhor (rei, juiz) é está dentro dos limites da terra do clã. A fundação de Bucelas não pertence a D. Dinis, como Odivelas, nem a D. Afonso Henriques, como Freixo de Espada à Cinta, nem a outro rei ou fidalgo. Foi acto de Nossa Senhora da Purificação que (re)criou Bucelas à semelhança do que fez com os tremoços ou com a teia de aranha, como contam os contos populares, geralmente, aquando da fuga da sagrada família para o Egipto. 2. O Anjo Custódio de Portugal Este é o anjo guarda de Portugal correspondente aos anjos de guarda individuais, cuja estampa está(va) generalizada pelo país. O culto do Anjo da Guarda, escreve Gandra, «radica na crença primeva e universal de que todos os seres humanos são assistidos pessoal e vitaliciamente por daimones ou génios protectores (equivalentes aos jinn corânicos), o mesmo sendo admissível dos lugares, bem como das nações». (2012, p. 1). O que se sabe dos Anjos? A palavra anjo vem do termo grego angelos que significa "Mensageiro". A palavra hebraica para anjo é Malakl, que, igualmente, significa "Mensageiro". Os egípcios terão explicado amplamente e com detalhes os anjos, mas tudo terá sido 94 perdido numa das fogueiras da biblioteca de Alexandria, uma delas por parte dos cristãos. Referências aos anjos aparecem tanto no Antigo como no Novo Testamento e sempre como mensageiros e guardas. Exemplo de guarda, depois do pecado de Adão e Eva, Deus «colocou ao oriente do jardim do Éden Querubins armados de uma espada flamejante para guardar o caminho da árvore da vida». (Gn, 3, 24). De guarda/ protecção, « o Anjo do Senhor encontrando-a no deserto junto de uma fonte que está no caminho de Sur, disse-lhe: Agar […] multiplicarei a tua posteridade de tal forma, que se não poderá contar». (Gn 16, 7-10). Um anjo, um homem: «Na ressurreição, os homens não terão mulheres, nem as mulheres maridos; mas serão como os anjos de Deus no céu». (Mt, 22, 30). No Auto da Alma, Gil Vicente coloca na boca da Alma, acompanhada do Anjo Custódio: «Anjo que sois minha guarda, olhai por minha fraqueza terreal! de toda a parte haja resguarda, que não arda a minha preciosa riqueza principal. Cercai-me sempre ò redor porque vou mui temerosa de contenda. Ó precioso defensor meu favor! Vossa espada lumiosa me defenda! Tende sempre mão em mim, porque hei medo de empeçar, e de cair». (2012). Mas a relação entre anjos e humanos terá sido bem mais profunda, o que explica a permanência, do que dizem os livros canónicos. Lê-se que «os filhos de deus viram que as filhas dos homens eram belas e escolheram esposas entre elas». (Gn 6, 2). Estes filhos de Deus são anjos: «E quando os anjos, os filhos do Céu, as virem, por elas se apaixonarão e dirão uns aos outros: escolhamos mulheres da espécie dos homens e tenhamos com elas filhos […] E ensinaram-lhes a feitiçaria, os encantamentos e as propriedades das raízes e das árvores». (Henoch 7, 2; 10). A auréola, que circunda a cabeça dos anjos é de origem oriental e, no Egipto foi atributo de Rá; na Grécia, de Apolo. Em 787 dogmatizou-se a existência dos arcanjos Miguel, Uriel, Gabriel e Rafael. No Livro de Henoch, (19, 1-7), os anjos que velam pelos humanos, cada qual com seu atributo, como os santos, são Uriel, Rafael, Raguel, Miguel, Sarakiel e Gabriel. Custódio/ Guarda é o nome (função) do anjo que, colocado à cabeceira do quase defunto, esgrime argumentos com o Diabo para salvar a alma do paciente. São as célebres e universais, pelo menos, na Península Ibérica, as 12 ou 13 (de acordo com as 95 versões) palavras ditas e (re)tornadas. Só podiam ser ditas na situação prevista. Seria diabólico, desafiador do divino, com o consequente castigo, utilizá-las noutra situação. Figura 37: Anjo da guarda, da custódia, da protecção; junto a um abismo protege duas crianças que, inocentes, apanham flores (ela) e borboletas (ele). O par é apresentado por referência cultural a ter filhos de ambos os sexos e por haver diferenciação cultural sexual quer nos gostos de brincadeiras e brinquedos, quer nos trabalhos e vestuário. O anjo da guarda é individual. Além da protecção ao longo da vida, responde connosco no final dela. Pagela retirada do Google.pt, 2012. Eis uma versão recolhida na Beira Interior: «Custódio, amigo meu. Custódio, sim; amigo não». − Diz-me as treze palavras ditas e tornadas. − Digo. − Diz-me a primeira. − A primeira é a Casa Santa de Jerusalém, onde Cristo, Senhor Nosso, morreu por nós. Amém! − Custódio, amigo meu. − Custódio sim, amigo não! − Diz-me as treze palavras ditas e tornadas. − Digo. − Diz-me as duas. − As duas: são as duas tabuinhas de Moisés, onde Cristo, Senhor Nosso, pôs os seus divinos pés. E a primeira é a Casa Santa de Jerusalém onde Cristo, Senhor Nosso, morreu por nós. Amém! − Custódio, amigo meu! − Custódio sim, mas teu amigo não! − Diz-me as treze palavras ditas e tornadas. − Digo. − Então, diz-me as três. − As três: são as três pessoas da Santíssima Trindade; e as duas, são as duas tabuinhas de Moisés onde Cristo, Senhor Nosso, pôs os seus divinos pés; e a primeira, é a Casa Santa de Jerusalém, onde Cristo, Senhor Nosso, morreu por nós. Amém! 96 − Custódio, amigo meu! Foto 38: Cartaz das festas em honra do Anjo Custódio, Bucelas, 2012. − Custódio sim, mas teu amigo não! − Diz-me as treze palavras ditas e tornadas. − Digo. − Diz-me as quatro. […] Diz-me as doze. − As doze: as doze são os doze são os doze apóstolos; as onze são as onze mil virgens; os dez, são os dez mandamentos; os nove, são os meses que o Menino Jesus andou dentro do ventre da sua mãe Maria Santíssima; os oito, são os oito guardiões; os sete, são os sete sacramentos; os seis, são os seis sarabentos; as cinco, são as cinco chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo; os quatro, são os quatro evangelistas; as três são as três pessoas da Santíssima Trindade; as duas, são as duas tabuinhas de Moisés onde Cristo, Senhor Nosso, pôs os seus divinos pés; e a primeira, é a Casa Santa de Jerusalém, onde Cristo, Senhor Nosso, morreu por nós. Amém! − Custódio, amigo meu! − Custódio o sim, mas teu amigo não! − Dizes-me as treze palavras ditas e tornadas? − Digo. − Então, diz-me Diz-me as treze! − As treze?! São sete com o Sol e seis com Lua, arrebenta pecado infernal, que esta alma não é tua! É de Deus e da Virgem Pura! Aleluia! Aleluia! Aleluia! A respeito do nome Custódio, lembramos que a função precede o nome. Mais tarde, fundem-se ambos. Exemplo é «Satanás». Até ao século VI a.C., à redacção do Livro de Job, escreve Carvalho, «Satan aparece com o artigo, O Hassatan (o Adversário), no sentido de acusador e, dentre de todos os filhos de Deus, ele é o fiscal das acções humanas e o distribuidor do mal». (2011, p. 20). Também os personagens centrais dos contos de fadas não têm nome individualizado, antes uma função ou situação: Branca de Neve, Gata Borralheira, Rapunzel … A pedido do rei Dom Manuel e dos bispos portugueses, escrevem AAVV (2012), o Papa Leão X instituiu em 1504 a festa do «Anjo Custódio do Reino» cujo 97 culto há muito existia em Portugal. Aliás, só existindo há muito e muita Assistência se compreende o pedido de legalização eclesiástica. Oficializada a celebração tradicional, continuam os autores, Dom Manuel expediu alvarás às Câmaras Municipais a determinar que essas festas em honra do Anjo da Guarda de Portugal fossem celebradas com a maior solenidade. Nesta festa deveriam participar as autoridades e instituições das cidades e vilas, além de todo o povo, muito à semelhança da (talvez) maior festa institucional, portuguesa, o Corpo de Deus. É isto mesmo que as Ordenações Manuelinas determinam. A celebração do Anjo Custódio de Portugal manteve o seu esplendor durante os séculos XVI, XVII e XVIII. A festa em honra do Anjo Custódio de Portugal, em Bucelas, Escreve Gomes é a mais importante da região, depois da festa em honra de Nossa Senhora de Vila de Rei. Realiza-se no 3º domingo de Julho, continua, desde 1566, altura em que a «igreja da vila foi sagrada pelo futuro bispo de Viseu, D. Jorge de Ataíde». (2012, p. 3). A ser verdade, isto supõe que este clérigo teve desempenho relevante neste caso e que a imagem e culto contribuíram para a afirmação e Bucelas no contexto regional. Noutros tempos, seria um indicador importante da hierarquia social e da sociabilidade de Bucelas. Há mais de um século atrás, escreve Gomes, os recémcasados eram mordomos do Anjo Custódio, no primeiro ano; da Comissão de Festas, no segundo; no terceiro ano, «ingressavam na Irmandade [ou confraria?] do Santíssimo. O título de irmão do Santíssimo obtinha-se depois de um serviço de três anos seguidos ao Anjo Custódio». (2012, p. 4). O facto de, como afirma o autor, os irmãos terem lugar de honra na procissão e um toque de finados especial, demonstra a importância socialreligiosa do lugar detido nesta hierarquia. Comparando com as Irmandades da Misericórdia da Beira Interior, aqui, revela-se determinante a entrada para irmão o facto de ter tratamento diferenciado no funeral. Por fim, o anjo Custódio, tal como os anjos da guarda e os santos jovens, é apresentado com espada e armadura, como se fosse um guerreiro. Contudo, o seu ar angelical não assusta ninguém, o que contradiz a representação iconográfica. Aliás, anjo ou anjinho ainda hoje significa inocente ou mesmo papalvo. De acordo com o testemunho dos Pastorinhos de Fátima, em 1915 e 1916 o Anjo de Portugal apareceu por diversas vezes a anunciar as aparições de Nossa Senhora. Contudo, no interrogatório oficial, a 8 de Julho de 1924, Lúcia não foi interrogada sobre 98 as visões do “vulto branco”, nem sobre as aparições do Anjo de Portugal, em 1916. Nem ela disse algo acerca do assunto. Se o facto tivesse acontecido, teria sido abordado. Ninguém se pronunciou sobre este assunto, nem sequer, lê-se em http://www.fatima2017.org/pt/menu-topo/textos-edocumentos/historia/as-aparicoes-do-anjo-em-1915-e-1916-pelo-p-luciano-cristino, donde é retirada a foto 5, no relatório final do processo canónico diocesano, redigido pelo Dr. Formigão, aprovado pela comissão, a 14 de Abril de 1930, e entregue ao Bispo de Leria, que nele se baseou, para redigir a carta pastoral de 13 de Outubro do mesmo ano. Só nas Memórias 2, Lúcia refere o episódio. Lúcia que foi colocada no mosteiro, logo após a última aparição, sem nunca ser entrevistada por alguém fora da alça apertada da hierarquia católica. Como escreve Santo, os primeiros escritos são de uma «impressionante singeleza». A segunda fase dos escritos sobre Fátima, inicia-se em 1927, com a aceitação das aparições por parte da Igreja Católica e são textos de «conteúdo muito diferente, de elaboração eclesiástica». (1995, p. 20). Estaremos perante uma formatação religiosa e política realizada a posteriori, que pretende centralizar em Fátima (Cova de Iria) um culto católico popular muito profundo e universal: Maria e Anjo Custódio (de Portugal). Conclusão Bucelas, à semelhança de centenas de outras povoações, afirma-se única ou, no mínimo, a melhor. Este facto é uma necessidade natural e doença seria não pensar assim. Trata-se de um natural endémico. É o usual amor à «nossa terra», que se assemelha e conotua com o «amor de mãe». Mas, para além de ser a «capital do Arinto», a casta de uva branca dominante na região e que torna o vinho branco de Bucelas tão apreciado, é de admirar o trabalho de restauro da Igreja Matriz e a presença das imagens e dos cultos de Nossa Senhora da Purificação e do Anjo Custódio. Por outro lado, o século XVI é determinante para Bucelas: construção da Igreja Matriz, a lenda e o Anjo Custódio. Nossa Senhora da Purificação, analisando a lenda, é a (re)fundadora de Bucelas, concedendo à povoação – em contraponto a Vila de Rei- a justificação divina da sua afirmação no domínio regional. Tal como a Senhora, Jesus e José, a caminho do Egipto vai (re)criando como se de um ab initio se tratasse. Isto é permitido, isto é natural, pois Jesus Cristo, como todo o filho, nada nega a sua mãe. 99 O Ajo Custódio, entendendo custódio como uma função de custódia, de guarda, de tutoria e não como nome próprio, apresenta-se como um jovem imperbe, de expressão cândida, onde a armadura e a arma não são mais que elementos decorativos. É a imagem universal dos santos portugueses que não são barbudos e velhos. Em ambos os casos, inofensivos face à mulher/ mãe. Contudo, ter a imagem do Anjo Custódio de Portugal, quase de tamanho natural, na Igreja Matriz, a par da festa anual, que é «de arromba», confere a Bucelas o direito natural de se considerar sacrário do anjo protector de Portugal. Tanto mais que, repetimos, como reza a lenda, a mãe de Cristo, Nossa Senhora da Purificação, se assume como a criadora de Bucelas, acto este que só um ser divino, ou alguém por deus enviado, pode ter realizado. 100 13. LITURGIA CATÓLICA DOMINICAL Simbolismo do Número Três O número 3, a par do 5, 7 e 12, é o mais utilizado na cultura popular portuguesa e em muitas outras culturas e escritos, a começar pela liturgia dominical católica. E compreende-se, pois o número cinco é a apropriação total do espaço horizontal: Norte, Sul, Este, Oeste e Centro. O número sete é a totalidade, a repetição até ao infinito; é a totalidade espacial, como escreve Cassirer (1953): Norte, Sul, Este, Oeste, Centro, Alto e Baixo. Quanto ao doze, diz Braga (1994), é o número e a nomeação completa dos deuses e dos demónios. Por isso é que o número 13 é considerado o número do azar: inicia, sem terminar, uma série. Foi por ter colocado a sua estátua ao lado das estátuas dos doze deuses que Filipe da Macedónia morreu. Doze são as «palavras ditas e tornadas», que só se podiam dizer à beira da cama do quase defunto, que não podiam ser interrompidas e que tinham de ser ditas e reditas: «Custódio, amigo meu. Custódio sim, amigo não. Das doze palavras ditas e tornadas, diz-me a primeira. A primeira é a Santa Casa de Jerusalém, onde Jesus Cristo nasceu para nos salvar, amém. Custódio, amigo meu. Custódio sim, amigo não. Das doze palavras ditas e tornadas, diz-me a segunda. A segunda são as duas tabuinhas de Moisés onde Jesus Cristo colocou os seus divinos pés. A primeira é a Santa Casa de Jerusalém, onde Jesus Cristo nasceu para nos salvar, amém.» Seguem as restantes: as três são as três pessoas da Santíssima Trindade; as quatro, os quatro Evangelistas; as cinco, as cinco chagas de Nosso Senhor; as seis, os seis círios bentos com que se alumia o Santíssimo Sacramento; os sete, os sete Sacramentos; os oito, os oito coros dos Anjos; os nove, os nove meses que a Virgem trouxe Nosso Senhor; os dez, os dez mandamentos da lei de Deus; as onze, as onze mil virgens; as doze, os doze apóstolos. Algumas versões, caso da recolha no Concelho de Idanha-a-Nova e as recolhidas em Serpa, por Nunes (1899), apresentam o 13º pedido, e Custódio responde ao Diabo: treze raios tem o Sol; treze raios tem a lua; rebenta pecado infernal que esta alminha é de Deus e não é tua. Os nomes dos doze deuses, continua Braga (1994), eram ditos na ordem crescente e os demónios na ordem decrescente, pois os demónios agem e movem-se em sentido contrário ao dos astros, como se acreditava na antiga Caldeia. 101 Carvalho (1993) escreve que, no Ladoeiro (Idanha-a-Nova), há a procissão dos homens, realizada nas sextas-feiras da Quaresma; o que ainda hoje acontece nesta e noutras freguesias da Beira Interior. É uma procissão semelhante à os penitentes, realizada no Paúl e Lavacolhos (Fundão), embora menos dramática. Mas, aquando de anos de fome, realizava-se a procissão das trevas. Esta, era às quintas-feiras da Quaresma e em sentido contrário à das outras procissões e feita a correr, sem olhar para trás. As procissões saem da Igreja Matriz e voltam à direita; esta, saía da Igreja Matriz e voltava à esquerda, pelo mesmo percurso. É sabido que, na Caldeia e Suméria, e em muitos outros povos da Antiguidade, caso dos Judeus, o nome dos deuses não podiam ser pronunciados, pois saber o nome de alguém era tomar posse sobre esse alguém. Por isso Javé nunca revelou o seu nome. Mesmo a Moisés, no Sinai, disse: «eu sou aquele que sou». (Ex 3,14). Eram os padrinhos portugueses, até há cinquenta anos, escolhiam o nome do afilhado e o levavam à pia baptismal. Era um tomar posse do filho por parte de segundos pais, os padres(inhos), isto é, pais(inhos). E o nome completo obedecia a regras não escritas mas aceites. Por princípio, os padrinhos eram os avós paternos ou maternos, conforme fosse menina ou menino. O primeiro nome era o da madrinha ou padrinho, conforme o sexo do baptizado; o segundo, do outro. O terceiro e o quarto eram os nomes das famílias da mãe e do pai. Não esquecendo que o número, mais até do que a palavra, constitui-se como uma ideia e uma força actuantes, coloque-se a hipótese, que se pretende demonstrar, em duas partes. Uma, o número três é um número perfeito e totalizante, mas não um número da realização final da obra, no sentido de que, com ele, a obra fica perfeita, total e para sempre. O número três é antes o número da obra perfeita e realizada, mas que, qual fermento, nela e a partir dela se realizará a obra perfeita e que durará para sempre. Diz Carvalho (1999, 2003), que o número três é a pedra angular sobre a qual assenta a grande obra arquitectónica. «Tirar os três» é o acto perfeito sobre o qual assenta a grande obra da criação humana, o filho. Três em um, um que são três, é o desenho triangular da Trindade, base da obra teológica de muitas religiões, do Antigo Egipto ao Cristianismo. Na liturgia católica, a segunda hipótese, o número três, que se apresenta repetido até à exaustão, é utilizado como elemento de submissão, louvor e de bajulação a Deus com o objectivo de obtenção de três graças, sem grandes trabalhos, por parte do crente: pão, perdão e salvação eterna. Para compreender esta visão 102 simbólica do número e o seu poder, lembra-se Silva: «os processos simbólicos não asseguram apenas o controlo afectivo e intelectual do mundo. As descontinuidades que introduzimos num espaço e num tempo contínuos […] operam imbricadamente como distinções, entre o normal e o normal, o legítimo e o ilegítimo, nós e os outros». (1994, p. 24). A utilização simbólica do número é, em suma, uma forma de domínio do mundo. Para este estudo, além da análise dos escritos litúrgicos, assistiu-se a missas e recordaram-se outras missas de tempos mais recuados, ainda quando a missa era em Latim. As igrejas frequentadas pertencem a paróquias do Concelho de Idanha-a-Nova, Castelo Branco e Amadora, procurando uma perspectiva rural e interior e urbana e litoral, pois que, embora a missa seja igual em toda as igrejas não o é, na verdade, pois os públicos, para além das igrejas e meio-ambiente, e dos próprios padres, não são os mesmos. Contudo, embora a religião e a missa possam não ter o peso social que teriam há cinquenta anos, é certo que continua a ser um acto central e congregador. Assim, partiu-se do princípio enunciado por Pina Cabral a propósito da missa: «a missa é uma afirmação da unidade sagrada que ocorre no centro simbólico». (1989, p. 163). Metodologicamente, seguiu-se a etnometodologia, como a definem Lessard-Hébert, Goyette e Boutin: «dá relevo às práticas discursivas na esfera do social, isto é, na utilização da linguagem». Analisando o conteúdo é possível compreender «a racionalização das práticas quotidianas através de determinados tipos de enunciados da linguagem comum». (p. 58). Entenda-se que linguagem é palavra, é número, é gesto e, como diz O’Dea (1966), a liturgia é uma expressão de atitudes. Igualmente, tomaram-se como verdades-base duas afirmações de etnólogos e antropólogos das religiões. A de que a religião popular não é de louvor gratuito, ante é interesseira. E a de que a repetição até «às mil vezes» permite a obtenção da graça. (Santo, 1984, 1995, Pina-Cabral, 1989). O que é visível em várias religiões, nomeadamente as que rezam o terço, o rosário ou semelhante. O terço católico, por exemplo, tem 53 contas e há quem o reze cinco vezes ao dia; os muçulmanos rezam um rosário de 99 contas dividido em 3 terços de 33 contas 1. O Número Três na Prosa e na Poesia. Muitos são os livros, laicos e religiosos, que utilizam simbolicamente o número com valor significante e actuante. Apresenmtam-se lguns exemplos. Os Evangelhos Apócrifos (1991, 1992) dizem que Maria fez 3 anos, os pais levaram-na ao templo para 103 que todos verificassem que estava sem mácula. Ana sentou-a no 3º degrau do altar. Maria engravidou e foi visitar a prima Isabel. Ficou lá 3 meses. Zacarias, o sacerdote, foi assassinado: «todas as tribos do povo se lamentaram e guardaram luto durante três dias e três noites». É o que contam os Evangelhos Apócrifos, que permanecem envoltos daquela frescura que possuem os contos tradicionais. Quanto a Lucas, um dos quatro evangelhos canónicos, conta-nos que Jesus, Maria e José que são três e a trindade familiar, foram a Jerusalém. Na volta, Jesus ficou para trás e eles foram procurá-lo. Descobriram-no, ao 3º dia, sentado no Templo, no meio dos doutores. Nos contos Populares Portugueses (1974), três são as pingas de sangue que se tiram do dedo para assinar o pacto com o diabo. Três é o número mais corrente de filhos que os casais dos contos populares têm, quando se quer referenciar um, o terceiro, como o mais esperto, belo ou com mais expediente. Três será o número mais frequente nos Contos de Fadas e Contos Tradicionais. A título de exemplo (Philip, 1997), são três as laranjas de Ouro; três são os anos que o chinês Urashima e a princesa dragão vivem, felizes, no fundo do mar; três meses, três semanas, três horas e três minutos era o tempo que a princesa deveria velar o príncipe que dormia como se estivesse morto. Exemplo da utilização do número 3 na medicina popular é «tirar o acidente». Se o azeite se espalhar pelo prato é porque o «acidente não ficou tirado. Há que voltar a fazer o mesmo 3 vezes e três dias a fio. Se continuar a não ficar tirado o «acidente», fazer 3 vezes, 6 dias a fio; se permanecer, 9 dias a fio, sendo que 6 e 9 são múltiplos de 3… Na medicina convencional é predominante a receita médica de tomar o remédio «três vezes ao dia». E não se pense que se toma três vezes ao dia, porque três são as refeições diárias. Toma-se três vezes ao dia e são três as refeições diárias, porque três é o número a partir do qual se realiza o trabalho total. Isto é, não é a refeição que sacraliza o número, é o número que sacraliza a refeição e o dia. O três, dizem Chevalier e Cheebrant (1982), está igualmente ligado ao ritual de tirar à sorte, através de lançar três flechas adivinhatórias; a terceira designava o local eleito, o tesouro. Freud, e outros psicanalistas, vêem no três um símbolo sexual. A própria divindade é concebida, pelo menos numa determinada fase, como uma tríade. Exemplo moderno e literário do «3» é o poema «Mostrengo», de Fernando Pessoa (1929), que nutria um grande apreço pela simbologia. O número três é aqui utilizado até à exaustão, como se resume no Quadro 1. Três são, desde logo, o número das estrofes. Três são os personagens (Mostrengo, homem do leme e D. João II); três 104 são as intervenções ou nomeações de cada um dos três personagens; três vezes o mostrengo roda à volta do navio e três perguntas faz; três respostas obtém do homem do leme, que treme três vezes e, por três vezes, as mãos coloca e tira do leme. Quadro 1: o número três no poema «Mostrengo». Mostrengo «À roda da nau voou três x »; «rodou três x » e disse três x : «quem…?» Homem do Leme El Rei D. João II «Três vezes do leme «O homem do leme disse as mãos ergueu, três tremendo [3 x]: «El-Rei x ao leme as D. João II». reprendeu e disse no fim de tremer três x». Passada está esta prova dos três, passado está o Cabo das Tormentas, a obra perfeita, não final, mas necessária para que se chegue à obra final: a Índia. O número três, resume Cassirer (1953), «é, universalmente, um número fundamental [...] É o acabamento da manifestação: o homem, filho do Céu e da Terra completa a Grande Tríade». Para os cristãos, é a unidade divinal e Deus é um só em três pessoas. Sendo o número fim da série numérica primitiva (um, dois, três), o três é «a expressão perfeita» e a «totalidade pura e simples». Assim se compreende que, repetese, para a primeira relação sexual, se diga «tirar os três» e não os quatro os trinta ou os quarenta e três. Três, por alguma profunda razão, é o único «número que Deus fez». 105 2. O Número Três na Liturgia da Missa Católica. Incidindo na Missa católica dominical, a saudação inicial, tal como os ritos de conclusão, são primeiro e derradeiro exemplo de uma utilização exaustiva do número 3 na liturgia missal, como se esquematiza na Figura 1. Começa pela Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo) atribuindo a ela e a eles a razão do acto que se inicia. Foto 39: Ladoeiro (Idanha-a-Nova): a Trindade Católica (Pai, Filho, Espírito Santo) em um-a só imagem, o Divino Espírito santo, 2013. E não se pense que assim começa porque no centro da teologia católica está a Trindade. O contrário é que é verdade: o centro é a Trindade, porque a Trindade (ou o número 3) é o centro, a base, o ponto central a partir do qual a grande obra, neste caso a Missa, se realizará. Trindade, que são três e um só, e necessitou de um dogma para se afirmar no catolicismo. A religião popular, escreve Carvalho (2008), há muito que tinha o problema resolvido com a imagem do Espírito Santo, espalhada por todo o país, e que são três em um: Pai, Filho e Espírito Santo na imagem do Divino Espírito Santo ou apenas «o Divino», como também é designado. Conhecidas na religião popular. Alias, «o Divino», «o Mártir» e «a Santa» são as três designações individualizadas conhecidas na religião popular, respectivamente, para o Espírito Santo, São Sebastião e Santa Maria Madalena. O triângulo de três ângulos iguais é a base geométrica da imagem do Espírito Santo. Quanto à conclusão, o padre lança a bênção final em três frases que suportam três mensagens: Deus está connosco, é todo-poderoso e acompanha-nos. Os fiéis, quais Servos perante o Senhor (Dominus) medieval, respondem «Bendito» e «Amén», isto é, Assim Seja. Segue-se o acto penitencial, rezando a «confissão», também ela suportada pelo número três: eu confesso a Deus e a «vós irmãos»; e eu peço à Virgem (anjos e santos) e a «vós irmãos». A Confissão mostra bem o salto a partir do três, que cai no quatro, a intenção ou a razão do três. Analise-se na primeira pessoa: eu peço perdão, porque pequei e peço a todos que rezem por mim. Os diálogos que se seguem mais confirmam 106 esta afirmação: «Deus todo-poderoso tenha compaixão de nós (1), perdoe os nossos pecados (2) e nos conduza á vida eterna (3)»; depois, o Kirié: Senhor (1), Cristo (2), Senhor tende piedade de nós (3). Pede-se a Deus, que é todo-poderoso que nos dê, perdoe e salve, não porque sejamos bons ou nos esforcemos, mas porque Ele tem todo o poder para o fazer. Podendo, qual deus ex-machina, intervir e mudar o rumo das nossas vidas, se e quando o desejar. Resume-se na Figura 1 o início e conclusão da Missa e o penitencial, onde Deus, todo-poderoso, cheio de compaixão, perdoa e conduz o fiel à salvação e à vida eterna: Figura 1: Saudação Inicial e Conclusão da Missa Assente na Trindade. PAI Amor, DEUS : todo poderoso (ex-machina) TRINDADE 3/1/3: FILHO A Graça, é poder, vive e acompanha os seus fiéis. ESPÍRITO SANTO Comunhão, Vida Eterna. Salvação e Vida Eterna Depois da humildade/humilhação do Servo perante o Senhor, segue-se a glorificação, que, bem dentro da cultura portuguesa, se pode apelidar de bajulação. Segue-se a Liturgia da Palavra, que são duas Cartas e o Evangelho: três que são a prancha para a palavra do padre, o representante de Cristo no acto. Depois, o «Credo», a 107 chamada «profissão de fé», um dos pontos centrais da Missa. E o católico acredita na Trindade que é um: um só Deus, um só Senhor Jesus Cristo e o Espírito Santo. Mas tem mais quatro fés: Igreja una, um só Baptismo, a Ressurreição dos mortos e a Vida Eterna. Ao todo, sete fés. E eis a obra perfeita, caminhando do 3 ao 7. Sete que é a totalidade espacial, segundo Cassirer (1953), já referida: Norte, Sul, Este, Oeste; Centro, Cimo e Baixo. A Preparação das oferendas é constituída por três diálogos entre o celebrante e os fiéis. E o Santo, Santo, Santo é triplo. Disto, o rito da Comunhão não destoa e o PaiNosso é exemplar, como mostra a figura 2, onde o Pai-Nosso vem em itálico. Figura 2: o Credo e o Pai-Nosso, o pedido e a bajulação. GLÓRIA A DEUS NO CÉU Senhor Deus, Rei dos Céus, Deus Pai Todo Poderoso. Cristo, Filho Unigénito, Senhor Deus, Cordeiro de Deus, Filho de Deus Pai. 1.Dai-nos o pão, 3 1.Santificado vosso nome, 2.Venha a nós o vosso reino, 3.Seja feita a vossa vontade. 2.Perdoai-nos, Vós, Vós, Vós que... 3.Fazei-nos bons de forma a ganharmos a vida Só Vós, Vós, Vós… PAZ AOS HOMENS NA TERRA Legenda: Bajulação: Acrescente-se que o actor central da Missa é o padre. Nele se focam todos os olhos presentes na igreja A sua figura de padre-pastor, referida por Silva (1998), e que ainda se mantém, mesmo na cidade, ainda que num círculo mais pequeno que na aldeia 108 – ao mesmo tempo que administra os bens da alma e difunde uma doutrina, hierarquiza(va) os espaços sociais e religiosos. O padre, continua o autor, dispõe «de instrumentos materiais e simbólicos poderosos e eficazes». (1998, pp. 326, 349). É isto que torna a figura do padre em alguém poderoso, único e capaz de usar o número como instrumento actuante. 3. O Número Três e a Bajulação na Cultura. Não está presente na Missa, mas a oração à maior santa do panteão católico, Nossa Senhora, é perceptível e apresenta o mesmo uso do número três e a mesma bajulação com o fim de obter o perdão e a salvação. A sua oração serve como complemento do que aqui se afirma: «Avé Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco. Bendita sois vós entre as mulheres. Bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus». Eatá aqui claramente presente o louvor a Maria através do número três: três personagens (Maria, Deus-Senhor e Jesus) e de três laudações (é bendita e única entre as mulheres, tem junto a si o Senhor e, dentro de si, Jesus). Louvores que se repetem na segunda parte da oração, instituída, crê-se, por Pio IX: «Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora e na hora da nossa morte, amén». Louva-se Maria de forma tão elevada que até se comete uma heresia, dizendo-a Mãe de Deus, que não é, nem pode ser, sob pena de Deus não ser Deus, pois Deus não tem mãe. Foto 40: Calvário, Segura (Idanha-aNova). Três cruzes. 2004. Este louvor justifica-se, e justificado está, pelo favor que se vai pedir: orai por nós, que somos desgraçados, agora e, principalmente, na hora da morte, pois que, embora com uma longa vida de pecado, Deus poder-me-á sempre salvar, mesmo que seja no último sopro de vida. Supremo laxismo cultural este que tudo desculpa, que compreende, acha possível, desejável e justa a salvação, assim Deus o queira, quando o mais justo seria a condenação. Uma vez mais, o número três da Avé Maria se apresenta como plataforma para o principal, que é o pedido de salvação eterna. 109 Este laudatório bajulante é característico da cultura e religião popular e da própria linguagem o demonstra. Os portugueses (e os católicos) dizem «Mãe de Deus», dizem «Festa do Corpo de Deus», o que é impossível e herético, pois Deus não tem corpo, nem mãe; mas, se vão pedir e meter uma «cunha», têm de louvar antes. Dizem «capela de São Salvador do Mundo» (Monsanto) ou o «Senhor Santo Cristo» (Açores), como se fosse necessário dizer mais que Salvador e Cristo. A verdade, porém, é que o número três (três nomes) é a indispensável plataforma para o pedido fundamental e a bajulação exige que se coloque no nome mais que este, que se coloquem qualidades ou títulos, qual rei D. Manuel, rei de Portugal e dos Algarves, d’aquém e d’além mar em África …, ou se trate com educação, eufemismo de bajulação, tipo Vossa Excelência, Vossa Eminência, Vossa Mercê…, ou se trate qualquer licenciado por senhor doutor, ou se refira de forma diferente o mesmo, consoante a pessoa, tipo reformado, o operário; aposentado, o funcionário público; jubilado, o professor catedrático. É claro que toda a característica cultural tem duas faces. A contra-face da bajulação é a inveja e maledicência, principalmente quando o pedido não é satisfeito. Isto é demonstrado no dia a dia, quando se pede um favor a alguém e se ouve o que diz, na frente e por detrás, quem pede. Com Deus, porém, é perigoso dizer mal, pois ele ouve. Como fazer para obviar este perigo? Simples, como tudo o que é cultura. Primeiro e por hábito, não se reza a Deus. Reza-se e pedese a um seu intermediário: Jesus, um santo ou santa com quem mais se identifique e melhor trate por tu ou à santa das santas, Maria. Se a bajulação não resultar e o pedido não for satisfeito, muda-se de oração ou de santo. Foto 41: Santa Ana, Maria e Cristo, outra trindade; capela do castelo de Montemor-o-Velho, 2004. Voltando à Missa, não se pode mudar de santo, pois que esta é a comemoração do facto principal do Catolicismo, o sacrifício de Cristo, facto este bem expresso no principal ícone católico, o crucifixo. Assim, Cristo é o principal e único intermediário neste acto, recaindo sobre ele todo o louvor e toda a bajulação para que, através dele, Deus conceda o que lhe é 110 pedido: o perdão e, com este, a salvação. Verdade e que sua mãe não passa despercebia. Até há uma trintena de anos era possível observar senhoras rezando o terço durante a missa dominical. Conclusão. A dificuldade em aceitar as afirmações feitas neste texto prender-se-á com o domínio secular do catolicismo na educação em Portugal, mas também terá a ver com a perda do significado dos gestos e dos números e, como escreve Carénini, «no enfraquecimento do seu poder intrínseco». Ao contrário, nas sociedades tradicionais, continua o autor, «toma-se o gesto coactivo». (1990, p. 115). Contudo, face ao exposto, parece inegável a utilização propositada, ainda que devido a algo presente no inconsciente cultural, do número três na missa católica (e na cultura popular), ainda que tal, repete-se, seja inconsciente. O que, em termos culturais, quer dizer que é verdade, pois o inconsciente colectivo funciona um pouco como o inconsciente individual, trazendo às claras as verdades profundas do «nós». Nesta utilização milenar, o número três tem servido como plataforma para alcançar o objecto maior que, no Catolicismo, é a Salvação Eterna. Ainda se pode concluir que, dentro das características da cultura portuguesa, que é laxista e desculpabilizante, sempre aguardando um D. Sebastião ou um Messias salvador, pretende-se alcançar este objectivo, mesmo sem o merecer, como menor esforço possível, mesmo que seja breves instantes antes do último suspiro, pois, diz o povo, «a Deus nada é impossível». 111 14. AMATO LUSITANO O Homem, o Médico Renascentista e as IST Sífilis é uma das ISD – Infecções Sexualmente Transmissíveis, e transmite-se por uma espiroqueta chamada Treponema pallidum, que evolui lentamente em três estágios e se caracteriza por lesões da pele e mucosas. Pode ser transmitida por contacto sexual e transmissão de mãe para filho. Figura 42: Treponema pallidum; de www.google.pt., 2020. A sífilis também é conhecida como lues (palavra latina que significa praga), cancro duro, avariose, doença-do-mundo, mal-de-franga, mal-de-nápoles, mal-desanta-eufêmia e pudendagra, entre outros. Amato Lusitano, além de Sífilis, chama-lhe morbus galicus, sarna gálica, lerpa gálica e úlcera serpentina. Originalmente, não havia nenhum tratamento efectivo para sífilis. O comum era tratar com guáiaco e mercúrio. No século XX surgiu o tratamento para a sífilis. Os tratamentos antigos ficaram obsoletos e esquecidos após a descoberta da penicilina, e sua difusão depois da Segunda Guerra Mundial, o que permitiu aos médicos, pela primeira vez, curar a sífilis efectivamente. Em 17 de Julho de 1998, na revista científica Science, um grupo de biólogos reportou a sequência exacta do genoma do Treponema pallidum. O seu nome, Sífilis, vem do poema Syphillis sive morbus gallicus, do médico de Verona, Fracastor, de 1530. 1. História A sífilis surgiu, repentinamente, no século XVI, e os europeus não apresentavam resistência contra ela, morrendo em números consideráveis e apresentando sintomas abruptos e floridos completamente diferentes dos observados hoje. Tudo terá começado deste modo. Em 1494-1495, eclodiu uma terrível peste no seio do exército que Carlos VIII, rei de França, levara até Nápoles. Graças à guerra, a doença espalha-se pela Itália, passa 112 à França, Suíça e Alemanha. Esta doença é propagada, escrevem Moulin e Delort, «pelas mulheres que, no campo, distraíam os soldados». (1991, p. 299). A sua transmissão entre soldados de vários exércitos, cursando com lesões de pele, fez com que surgissem outros nomes para a sífilis, "mal espanhol", "mal italiano", "mal polonês". A partir de 1495, houve uma vasta pandemia no Ocidente, da qual a sífilis, no mínimo, era uma das componentes. Após 10 anos, pára e deixa de matar. O sifilítico junta-se ao leproso, sarnoso e outras vítimas de doenças contagiosas que vagueiam pelos reinos de então. Sífilo era um pastor que ficou doente devido aos seus «amores porcos». Duas teorias explicam a eclosão de uma doença até aí, possivelmente, desconhecida. Uma defende que é uma doença americana trazida por Colombo, ou seus sucessores, da América para a Europa. A outra teoria é que a Sífilis é uma doença antiga do Velho Mundo que sofreu mutações que a tornaram mais virulenta no século XVI. O Ocidente conhecia, muito antes de Cristóvão Colombo, doenças sexualmente transmissíveis semelhantes à Sífilis e, face à pouca idade como esperança de vida, para a época, dizem Moulin e Delort (1991), haveria todas as hipóteses de morrerem de qualquer doença sem se ter declarado o estádio terciário da sífilis. Assim, continuam os autores, não há nos documentos escritos algo que contraria «a presença endémica da sífilis, na sua forma actual, no Ocidente medieval. Mas também nada nos dá uma certeza a tal respeito». (1991, p. 303). A hipótese americana servirá à Igreja Católica, segundo Moulin e Delort (1991), para lembrarem os males que poderiam vir do fascínio pelo Novo Mundo que a viagem de Colombo trouxe ao Ocidente. Isto porque é pouco natural esta doença não ter sido detectada antes da chegada dos marinheiros a Sevilha, tanto mais que a homossexualidade era praticada nos navios. Assim, é plausível, escrevem escrevem os autores, que os marinheiros tenham trazido a pinta e o pian. Pinta é uma doença cutânea própria dos Índios. Depois de passar à Ásia e África, devido ao clima quente e húmido, terá dado o pian, uma treponemose mais mutilante da pele e dos ossos que sua mãe. 2. Sífilis nas Centúrias. Várias são as curas que falam da doença. Salvo erro ou omissão, são 20, assim distribuídas: 113 Centúria 1, 26 Cura 5,22 1,49 1,50 1,54 2,54 3,4 4,15 4,55 4,59 5,25 5,49 5,56 5,60 5,72 6,22 6,43 6,45 6,48 6,85 Um homem anão foi atacado de doença Gálica «e tinha na perna um tumor cirroso». O remédio da cura foi: «vinho de passas branco, amoníaco, goma arábica, sumo de sagapeno, an. [em?] partes iguais; azougue vivo extinto uma dracma. Misture, faça-se um ceroto para o tamanho e forma do membro». (1,26). Um outro, atacado de morbo gálico, ficou curado, segundo os médicos. Passado algum tempo, casou. A sua mulher, que era casta, deu à luz gémeos e, passados sete anos, deu à luz um outro infectado pela doença. Ela própria, antes de parir, tinha, «perto do nariz, em direcção aos lábios» duas chagasitas. Depois do parto, as mamas foram infectadas de uns grumos, que a impediram de dar mama. A criança foi entregue a uma ama, que ficou infectada; que infectou o marido, após ter relações sexuais com ele. A ama deu de mamar a duas crianças mais, que ficaram infectadas, bem como suas mães. Num mês, escreve Amato, «ficaram contagiados disto nove». (1,49). Aqui, aplicou um unguento constituído por substâncias aromáticas e mercúrio. Um outro homem foi também atacado por morbo gálico e ficou curado. Contudo, passados 15 anos, a esposa, «mulher honesta e robusta, deu à luz uma menina infectada de exantemas gálicos». (1, 50). Um homem, que sofria de morbo gálico, «estava cheio de líquenes, isto é, erupções cutâneas». (1, 54). Um rapaz, de 11 anos, tinha uma chaga «que lhe consumia a garganta». Chamaram uma curandeira que rasgou a garganta e foi possível ver tratar-se de úlcera galacana, «visto que seu pai sofria dessa doença». Contudo, escreve Amato, a mulher ao ver aquilo, ficou apavorada e perdida, pois estas mulheres «não sabem indicar senão uma destas coisas, ou ter o doente a espinhela descida ou torta, de cima para baixo, ou estar o cóccix situado fora do seu lugar». (1, 74). Um rapaz, de vinte anos de idade, teve relações com uma mulher «conspurcada de sarna gállica, foi atacado de dois bubons na região inguinal». Esta doença ataca o fígado, diz Amato e os órgãos naturais. (2, 60). Por fim, um fâmulo (criado de serviço doméstico) do cardeal Farnésio, «forte rapaz», aparece «coberto de antigas chagas apanhadas com o morbo gálico. Estava a recuperar 114 com o remédio preparado por Amato Lusitano, quando, às escondidas, bebia vinho, o que fazia reaparecer as chagas. (3, 4). Amato Lusitano descreve o remédio que recomendou a uma mulher atacada de sífilis, da qual já, em tempos, sofrera: meia libra de pó de pau de guáiaco, 3 onças de polipódio quercirino recente e esmagado, onça e meia de sene, meia onça de cascas de mirabólanos da Índia e québulos; 3 onças de passas de Corinto, meia onça de sementes de cártamo, duas mãos cheias de sementes de raízes de buglosa, meia onça de sementes de funcho. «Faça-se uma decocção em dez libras de água segundo a arte, a meias. Depois de coada, junte-se meia libra de açúcar fino e ferva-se novamente, um pouco, ao lume. Deste decocto beberá todos os dias, em jejum, pela manhã, oito onças de cada vez». (4,15). Foto 43: Estátua deAmato Lusitano em Castelo Branco, 2020. 3. Análise. Temos como princípio, ético e de investigação, que a verdade é universal. Universal no espaço e no tempo. Isto é, apesar de ser impossível eliminar todas as linhas que a prendem ao seu tempo, a verdade abrange as coordenadas geográficas (norte, sul, este e oeste), bem como se torna atemporal ou, como diz o título do congresso, é intemporal. É isto que pensamos de João Rodrigues Castelo Branco. Amato Lusitano demonstra conhecer bem os sintomas da doença, o que revela um conhecimento de experiência feito, para além de excelente capacidade de dedução, porquanto compara e das comparações retira ilações e ensinamentos. Por exemplo, escreve que uma outra mulher tinha uma chaga maligna no joelho, resultante da doença. (4,55). Um rapaz, «estava desfeado por várias pústulas». (5, 22). Um jovem, tinha vários tumores nas pernas e nos braços e, na testa, tinha chagas que lhe chegavam ao nariz. (5, 25). Nesta cura, Amato retira o osso do nariz, para que a cura seja plena: «se primeiramente não tivéssemos retirado os ossículos delas [narinas], nunca chegaríamos a curá-los». (5, 25). Outro rapaz, trazia chagas do umbigo às partes podendas. Nesta cura, Amato mostra conhecer e diferenciar a Sífilis da Gonorreia: «sofria também de 115 gonorreia, que já lhe era familiar há muito tempo». (5, 56). Por fim, um jovem tinha papulas no queixo e na face e úlceras nas partes genitais. (6, 22). Por outro lado, conhece os benefícios da purgação ou evacuação, seja por urina ou fezes, seja pelo escarro. É o caso do rapaz «que evacuou muita coisa, mas a purgação por escarro foi pequena». (5,22). Não encontrámos evacuação pelo suor. Contudo, continuam presentes certas superstições, pois, na mesma cura, escreve que «de igual modo tratamos, com a Lua em posição, doenças rebeldes e as que têm humores difíceis de erradicar». Mas, quando a superstições, médico que não as tenha, ainda hoje, que atire a primeira pedra! Não parece que Amato Lusitano tenha licenciatura em nutrição, mas é permanente a sua preocupação em aliar o remédio à exigência de um regime alimentar adequado. Nalgumas curas há exemplos deste regime que apresenta como «um óptimo e sóbrio regime alimentar» (6, 85): «água ou decocto da raiz-dos-chinas», pão náutico; meio frango assado para o almoço com a referida água; uma mão cheia de passas de uvas e algumas amêndoas branqueadas, sem casca, para o jantar. (6, 22). Outro exemplo: meia galinha assada, ao almoço; ao jantar, galinha cozida, num segundo decocto; passas de uvas de Corinto, pão náutico embebido em segundo decocto de pauguaico. (6, 43). Em quarto lugar, não existe o conceito-palavra endémico, mas Amato Lusitano tem dele perfeita consciência, apresentando-o com a clareza e a simplicidade dos sábios, como atrás referimos a propósito da cura 1, 49: num mês, escreve Amato, «ficaram contagiados disto nove». Em quinto, este médico evita emitir juízos de valor sobre os pacientes e suas acções, salvo quando estão em causa os mais desfavorecidos da sorte, caso do anão, referido em 1, 26. Além disso, a humildade atravessa transversalmente os seus comentários, lembrando aquela célebre afirmação atribuída a Isaac Newton: «sou grande, porque estou aos ombros de gigantes». Em sexto, compreende perfeitamente o processo e a facilidade de contaminação da doença. Por isso, exige ao casal, esposo e esposa, «que fizessem esforços excepcionais para ambos ficarem completamente imunes à doença. De facto se, curando um o outro não fosse também restituído devidamente à saúde, seria o mesmo que o médico não ter feito nada, pois deixar-se-ia ocasião para o contágio». Mais, embora 116 casal, devem ter tratamento diferente, pois cada doente é um caso, escreve Amato que «o tratamento, porém, teve regime diferente». (6, 48). Em sétimo, é notório o esforço em analisar a doença e suas causas sob um olhar científico, próprio do Renascimento. Não atribui as pestes à ira divina, ainda que não a exclua totalmente: «agora não nos referiremos a Deus nem aos céus com os seus astros» de que tanto os livros divinos com os astrólogos atestam que a peste depende, pois estamos a tratar de prescrutar as coisas naturais. De qualquer forma que a peste surja, é preciso que os ares se infeccionem, para que uma causa comum da peste seja o ar que inspiramos, pela ira divina ou circunstâncias ocasionais e seus aspectos, quer por imundices de animais selvagens, ou abundância de cadáveres…». (7, 27). Amato Lusitano não parece conhecer a contaminação através de toalhas e lençóis de água. Conclusão Para além do humanismo e de uma cultura científica, o Renascimento traz uma revolução sexual, escreve Pettit-Skinner, introduzindo o nu na arte, «o princípio de intangibilidade do corpo humano é abolido na ciência. Os amantes munem-se de filtros para terem êxito no amor, as crianças ilegítimas são às chusmas, o sentimento de culpabilidade sexual diminui». (1990, p. 248). O século XVII, pelo menos a nível das classes mais privilegiadas, diz o autor, trouxe mais liberdade sexual. É nesta conjuntura de renovação da ciência e da moral que vive e cura Amato Lusitano: inovador, possuidor de saberes intemporais, mas ainda com algumas dependências supersticiosas, que são da idade do Homem. Quanto à origem da Sífilis, se europeia se americana, Amato Lusitano não se pronuncia. Por esta razão, será partidário de uma doença europeia endémica. Ou, simplesmente, trata-se de uma polémica de historiadores contemporâneos. Sem qualquer polémica é que Amato Lusitano foi homem e médico destacado e que muito nos honra a nós, filhos da Beira. 117 15. AMADORA: ESTUDOS PARA A SUA HISTÓRIA 15.1. PEDRO FRANCO: Pedro dos Coelhos Segundo Eça de Queirós «O break rodava na estrada de Benfica: iam passando muros enramados de quintas, casarões tristonhos de vidraças quebradas, vendas com o seu maço de cigarros à porta dependurado de uma guita: e a menor árvore, qualquer bocado de relva com papoulas, um fugitivo longe de colina verde, encantavam Cruges. Há que tempos ele não via o campo! Pouco a pouco o Sol elevara-se. O maestro desembaraçou-se do seu grande cache-nez. Depois, encalmado, despiu o paletó — e declarou-se morto de fome. Felizmente estavam chegando à Porcalhota. Foto 44: Rua Elias Garcia, 148A-158A, local onde se localizava a casa de pasto de Pedro Franco, 2015. O seu vivo desejo seria comer o famoso coelho guisado — mas como era cedo para esse acepipe, decidiu-se, depois de pensar muito, por uma bela pratada de ovos com chouriço. Era uma coisa que não provava havia anos e que lhe daria a sensação de estar na aldeia... Quando o patrão, com um ar importante e como fazendo um favor, pousou sobre a mesa sem toalha a enorme travessa com o petisco, Cruges esfregou as mãos, achando aquilo deliciosamente campestre. — A gente em Lisboa estraga a saúde! — disse ele, puxando para o prato uma montanha de ovo e chouriço. — Tu não tomas nada?...» (2006, pp. 220-221). Em 1873, escreve Calisto (1987), já a fama da casa tinha ultrapassado os limites do lugar. Num bom Domingo guisa 80 coelhos Faleceu por volta de 1906. A casa estava de pé em 1959. Em 1968, a casa está em ruinas. Acaba por ser deitada abaixo. O toldo verde, na foto 1 esconde os números polícia: antes, estão os números 146, 148 e 148A; daqui, salta para o número 158A e 158. Dez números em falta. Fica frente à Taberna Tia Rita, 87 e 87A, Rua Elias Garcia. 118 15.2. QUINTA DO ASSENTISTA Uma Organização Agrícola Virada para o Mercado Até finais do século XIX, escreve Correia (1991), a Amadora era povoada de quintas de repouso e veraneio das famílias ricas e aristocratas de Lisboa, bem como por casais agrícolas que produziam para Lisboa, nomeadamente o pão, quer em cereal, quer em pão. A Quinta do Assentista é uma Quinta do Século XVIII (1746) que em tempos foi também conhecida como Quinta dos Intendentes. Segundo o Dicionário on line de o Português, Assentista é o fornecedor de mantimentos para as tropas, mediante quantia assentada. Foto 45: Quinta do Assentista, tanque do sistema de rega, 2015. O Intendente é a pessoa que tem a seu cargo a direcção ou administração de alguma coisa. Funcionário que superintende em certos estabelecimentos públicos. Funcionário de serviço militar de intendência. São pois duas funções semelhantes. Do seu conjunto, destaca-se a entrada preciosa e monumental. Está ornada por uma pequena cartela onde se pode ler a data de 1746 e, por cima, um frontão barroco. No centro encontra-se um nicho com uma estátua de Nossa Senhora da Saúde, enfeitada com uma grinalda de anjos e no alto ergue-se uma cruz sobre um monte Gólgota em miniatura, onde se pode ver a porta do Santo Sepulcro. A Quinta do Assentista conserva, ainda, os tanques de rega, uma aerobomba, fontes e bancos de repouso, bem como o edifício da capela particular. Possui um excelente sistema de rega, por infiltração, com caleiras e tanques, muito bem planeado. 119 Tem oliveiras e laranjeiras em grande número. As oliveiras parecem-me com mais de trezentos anos, pelo que a quinta seria uma exploração mais antiga que o edifício. A organização do espaço agrícola/hortícola e a produção para o mercado revelam uma mentalidade capitalista rara em Portugal, para a época. Foto 46: Nicho sobre a porta de entrada da Quinta do Assentista, Nossa Senhora da Saúde rodeada de anos, 2015. Seguindo o portal http://www.cm- amadora.pt/patrimonio-cultura/309-outrosmonumentos/542-quinta-do-assentista, a quinta, no fim do Século XIX, foi leiloada por Manuel Junqueira Patrone, por nove contos e adjudicada a António Wenceslau da Silva. Em 1920, foi arrendada a uma das figuras mais marcantes da Amadora na época, o médico e político, professor João de Azevedo Neves. Em 2017 pertence a João Megre. Em 2022 é pertença da Câmara Municipal da Amadora. 120 15.3. PORTAS DE BENFICA Construção e Simbolismo El-rei D. Manuel I, em 1498, a pedido dos povos de Elvas, lançou o impostoReal d’Água, para o concerto dum poço que abastecia de água aquela cidade. Imposto incidia sobre o consumo da carne, bebidas alcoólicas e fermentadas, arroz descascado, vinagre e azeite expostos à venda. Primitivamente, o Real d’Água foi lançado exclusivamente sobre o vinho, mais tarde, sobre a carne e outros produtos, ao mesmo tempo que era lançado por todo o país, sendo este tributo, lê-se em http://www.arqnet.pt/dicionario/realagua.html, «de um real por cada canada, arrátel ou outra unidade, com destino ao arranjo de canos, fontes, aquedutos, para abastecimento de água das povoações, se ficou chamando real de água». Foto 47: Portas de Benfica, 2015. As Portas de Benfica, lê-se em http://www.cm- amadora.pt/pqs-e-jardins/638-portas-de-benfica «integravam um sistema de controlo das entradas de mercadorias na Cidade e de cobrança do imposto designado por Real da Água e dos direitos de consumo sobre os géneros alimentares vendidos na Capital fazendo parte da Alfândega Municipal, criada em Lisboa, em 1852, para fiscalizar os direitos de trânsito para a Cidade. O designado “imposto de barreiras” era aplicado a todas as viaturas, mercadorias e pessoas». As Portas de Benfica a par dos muros existentes em Vale Forno e Calçada do Carriche, continua o autor, «constituem os únicos sobreviventes das antigas barreiras fiscais e Estrada de Circunvalação construídas em torno da cidade de Lisboa, na sequência da reforma administrativa de 1885, que alargou substancialmente os limites da capital». Ao todo, no século XIX, eram 26 entradas em Lisboa. 121 Por curiosidade, Carriche é de origem fenícia (karhse) e significa calçada. Temos a repetição do nome: o original e a sua tradução. Comos vários outros casos, apontados por Santo (1993): Fonte dos Carros (qar), fonte - fonte; Cabo Raso (rasu), cabo cabo; Monte do Sameiro (smr), monte – monte, elevado. As Portas de Benfica foram construídas de 1886 a 1903, isto é, 7 anos durou a sua construção. São constituídas por dois blocos rectangulares com 4 torres cada. Cada bloco tem 3 portas de cada lado maior do rectângulo, sendo a porta central encimada por um frontão. Ao todo, 2 blocos, 8 torres e 12 portas. Estudemos o simbolismo quer dos números, quer do topónimo porta, quer do estabelecimento de limites, neste caso, de Lisboa, pois que, como escreve Carvalho, «o homem espacializa-se de acordo com a sua matriz cultural, materializando esta no espaço. Foto 48: Portas de Benfica, 2023. Os valores que induzem à organização do espaço ficam inscritos nele. O espaço vira, assim, uma matriz da existência». (2007, p. 19). Ao princípio, eram sulcos de arado e simples valas, como ilustra a lenda da fundação de Roma, quando Rómulo marca os limites da sua futura cidade com um arado puxado por uma junta de bois; estes terão precedido vedações, muros e muralhas e estes, igualmente no princípio, terão surgido mais para protecção face aos espíritos que face aos homens de quem, efectivamente, não protegiam. É que colocar um muro ou outra protecção dum espaço só tem valor na medida em que é percebido como tal. E, ao princípio, é percebido como uma defesa mágica, como indicador de que é perigoso passar além. Com a afirmação do Estado e do Direito, século XIX, continua Carvalho, «emerge o camponês como ser individual. O muro perde o seu significado mágico e passar a ser simples limite de propriedade. A propriedade é já uma instituição económica e política, “através da mediação do jurídico e do ideológico.» 122 Os atraentes portões, os muros esbeltos, as lindas construções distarão do simples sulco, ou até da inexistência física de qualquer traço, tanto quanto a afirmação de posse da propriedade individual e de status e poder social, distarão da propriedade colectiva e da dissolução do individual no colectivo. Assim, quando se fala em porta, pode esta nunca ter materialmente existido, mas todos saberem ser aquela a entrada e, por isso, lhe chamam porta. Mais tarde, como aqui aconteceu, construíram portas. As Portas de Benfica mostram outro caso cultural: serviram para cobrar o imposto aos que entram na cidade de Lisboa. Embora as portas sirvam para entrar e sair, a imagem primeira e dominante, quando pensamos a porta é a sua função de deixar entrar. Na verdade, como Carvalho (2008) afirma na sua tese, o rural organiza o seu espaço segundo uma estratégia guerreira, mais de defesa que de ataque. Para que o inimigo não penetre na cidade seja pelas muralhas, seja pelas portas, eram feitos sacrifícios humanos para as tornar vivas e impenetráveis: «no tempo de Acab, Hiel de Betel reconstruiu Jericó. Lançou-lhe os alicerces ao preço de Abirão, seu primogénito, e pôs-lhe as portas ao preço de Segub, seu último filho». (1Rs 16, 34). Foto 49: muro na Calçada da Carriche, 2023. Assim, as portas são 2, porque, escrevem Chevalier e Gheerbrant (1982), dois é o símbolo da oposição e do conflito; simboliza o dualismo e a primeira e mais radical das divisões: criador e criado, branco e preto, masculino e feminino…As portas de Benfica separam dois mundos antagónicos, opostos. Para este conflito e esta oposição, 8 torres, sendo que o número oito, escrevem Chevalier e Gheerbrant (1982), é o número do equilíbrio cósmico. Sendo que o quatro, e oito é o seu dobro, e cada bloco tem quatro torres, é o símbolo do «sólido, do tangível, do sensível». (1982, p.554). Assim, as torres de Benfica pretendem-se sólidas e tangíveis. 123 Doze são as portas e o número 12 é a totalidade. Como dizem escrevem Chevalier e Gheerbrant, é a «combinação do quatro do mundo espacial e do três do tempo sagrado medindo a criação-recriação dá o número doze, que é o mundo acabado». (1982, p.272). Esta totalidade sela e impede o desastre que é, poderia ser, o seis. Seis é o número, dizem Chevalier e Gheerbrant, da «oposição da criatura ao criador num equilíbrio indefinido». (1982, p. 591). Assim, as Portas de Benfica, bem dentro da simbologia e do mundo do antigo sagrado, são e marcam a solidez e a segurança entre dois mundos antagónicos. 124 15.4. CEMITÉRIO A Organização do Espaço dos Mortos Feito pelos Vivos O cemitério da Amadora foi construído entre 1928 e 1929 numa área de um hectar (10.000 m2). Foi alvo de obras de ampliação nas décadas de 60, 80, 90 e em 2005, para responder às necessidades do concelho, que tinha, em 2001, a maior densidade populacional do país: 7.393 habitantes por quilómetro quadrado. Sofre outra ampliação em 2009. Actualmente http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=278852, (2015), possui 5113 escreve sepulturas tradicionais, 1184 perpétuas e 400 aeróbias, sistema que acelera a decomposição orgânica dos restos mortais por acção do oxigénio. Embora recente, o cemitério obedece a um arquétipo/modelo de construção secular e que Carvalho (2007) resume na expressão o cemitério é a aldeia dos mortos segundo os vivos. Foto 50: A capela como o centro da organização espacial do cemitério. Perguntar-se-á o que tem o cemitério a ver com a aldeia ou povoado maior? O cemitério não é a «aldeia dos mortos», como é costume ouvir-se e ler-se. O cemitério é a aldeia dos mortos, segundo os vivos. É o local onde as lutas e as relações dos vivos assumem uma existência mais clara e onde o monumental é construído para a eternidade. As classes dominantes costumam inscrever na pedra a sua posição económica, social e política. Para lá do portão do cemitério, como se organizará então o mundo e o espaço dos mortos? Façamos uma viagem aos primórdios dos modernos cemitérios e utilizemos um contemporâneo, Júlio Dinis: «imagine-se um campo plano e raso, onde vegetavam algumas roseiras de toda a estação, e a murta e a alfazema, vivendo a custo naquele solo ingrato, que havia pouco alimentava apenas urzes, tojeiras e pinheirais. No centro deste espaço elevava-se, singelo mas elegante, o túmulo da família do Mosteiro [...] e nos 125 cantos principiavam a erguer-se, como obeliscos funerários, quatro jovens cipestres pontiagudos». (2005, p. 57). O nosso cemitério modelo tem o portão voltado para o caminho que conduz directamente ao povoado, como não poderia deixar de ser. O espaço interior está organizado segundo um polígono quadrilátero, antes dos aumentos e alterações das duas últimas duas décadas, e tem a rua principal ao centro, numa linha recta que vai do portão até ao centro do muro fundeiro. Aqui situa-se a capela, construída logo nos primeiros tempos, ou colocada lá bem posteriormente ou, não existindo capela, foi colocada uma cruz em cima do muro. Se o cemitério não pertence a uma muito pequena aldeia, foi feita uma outra rua fazendo cruz latina com a principal. Mais tarde, fez-se uma rua a toda a volta da parte interior do muro e fizeram-se ruas secundárias, cruzadas, paralelas ou perpendiculares às duas primeiras. Fotos 51 e 52: Tal como uma casa da aldeia, tal como uma janela dessa casa, o que prova: a organização espacial da aldeia dos mortos é em tudo semelhante à da aldeia dos vivos e a morte não é senão a continuidade da vida. Mesmo o céu é imaginado como uma cópia da aldeia. As sepulturas, jazigos e mausoléus dos mais ricos, poderosos ou figuras proeminentes colocam-se à direita, começando por ocupar o centro da distância que vai do portão de entrada ao muro fundeiro. Porém, se o ficar à direita é o importante, a direita tanto pode ser considerada a de quem sobe como a de quem desce, isto é, considerar a direita do portão ou a direita da cruz que encima o centro do muro fundeiro, tanto mais que, para fortalecer este centro, se contrói aqui a capela cemiterial. 126 Para além da referência direita e o fundo do cemitério (sítio onde se constrói a capela do cemitério, antes das ampliações) como locais preferenciais para a construção da «ultima morada», há que ter em mente duas outras referências: centro geométrico do espaço cemiterial, tendo em conta o centro da rua principal ou o centro da encruzilhada (tenham elas existência física ou não) e o «dar logo de caras com ela» mal se entra no cemitério. No fim de contas, passa-se na aldeia dos mortos o que se passa na aldeia dos vivos: as famílias mais poderosas e influentes têm as suas capelas particulares, que podem abrir ao público. Constroem capelas, reconstroem umas e apoiam outras. De muitas formas, procuram criar um centro, um seu centro, a ele chamando um público que constitui a sua clientela e é garantia da existência efectiva do seu poder e status. Fotos 53 e 54: aspectos da cultura e religião popular. O valor e a veneração da mãe é de tal ordem que é santa. Na ressurreição final, o defunto vai erguer-se corpo e alma. Na campa «jaz fulano de tal». Seguindo os ensinamentos da religião eclesiástica, deveria estar escrito «aqui jaz o corpo de fulano de tal». O cemitério não é, de forma alguma, o «campo da igualdade», como alguns ostentam. Será o «campo da paz», da paz dos mortos, mas, mesmo aqui, há desigualdades. Para além das diferenças quanto à riqueza e localização das sepulturas, havia espaços especiais onde eram enterradas pessoas não normais ou marginais. Logo à entrada, à esquerda, poderia ficar o espaço não benzido, dedicado aos suicidas. Aqui eram igualmente enterrados os que viviam «fora da lei de Deus», os que viviam «juntos». Ter lugar no cemitério, de forma normal e plena, é um direito ao mérito. Lugar especial têm os bébés, os Bombeiros e os Combatentes, tudo dependendo do espaço disponível e da importância das Corporações de Bombeiros e dos militares na povoação. 127 O cemitério da Amadora tem o talhão da Liga dos Combatentes, naturalmente, no lado direito, o principal, da capela. 128 15.5. A FESTA DA ÁRVORE NA PRIMEIRA REPÚBLICA Rito Cívico, Culto Pagão As forças vegetativas são uma epifania da vida cósmica». (Eliade, 1992, p. 404). A festa da árvore é introduzida em Portugal nos tempos finais da Monarquia, seguindo o exemplo da Revolução Francesa. Aliás, Portugal e os republicanos portugueses são muito influenciados pela cultura francesa. Basta lembrar que a «Portuguesa» é muito semelhante à «Marselhesa». É também possível que o exemplo norte-americano tenha exercido alguma influência. O Arbor Day, referem Vieira (2010) e Sanches (2003) foi um dia dedicado à plantação de árvores no Estado do Nebraska. Iniciado em 10 de Abril de 1872, é considerado feriado nacional do Estado, a partir de 1885. Introdução A primeira festa da árvore, diz Vieira (2010), foi no Seixal, em 26 de Maio de 1907, promovida pela Liga Nacional de Instrução, onde se destacavam ilustres maçons, casos de António Augusto Louro e Manuel Borges Grainha. Também em 1907, a 19 de Dezembro, realiza-se a primeira festa da árvore, em Lisboa, com o apoio da Câmara Municipal de Lisboa e com a participação dos estudantes das principais escolas da capital. A Partir de 1908, é a Liga Nacional de Instrução, presidida por Bernardino Machado, membro da Maçonaria, quem organiza a festa. Até 1912, a Liga será a dinamizadora da festa da árvore. Vieira (2010) escreve que, de 1908 a 1912, realizaramse festas da árvore por todo o País: Lisboa, Porto, Coimbra, Leiria, Aveiro, Santarém, Castelo Branco, Évora, Alcáçovas, Alcobaça, Lourinhã, Barreiro Seixal, Moita, Fundão, Almodôvar, Lousã, Montemor-o-Novo, Amadora, entre outras. A partir de 1912, «O Século Agrícola» lidera as Comemorações fazendo uma campanha a nível nacional. Desta época chegaram até nós árvores de excelente porte, como é o caso do choupo de Portalegre, plantado a sul do principal jardim da cidade e que é considerada a árvore de maior copa em Portugal. 129 O período auge da festa da árvore decorreu de 1912 a 1915. O seu ano de eleição, diz Vieira (2010), foi 1913. Com a entrada de Portugal no cenário da Primeira Grande Guerra, caiu em declínio e interrompeu-se mesmo a festa da árvore. Depois da Guerra, houve várias tentativas para recolocar a festa da árvore no calendário cívico português. Em 1923, o Ministro da Instrução Pública tentou ressuscitá-la, mas sem resultado. Com a entrada do Estado Novo, veio o fim definitivo da festa. Foto 55: cartaz da 1º festa da árvore na Amadora, 1909 (retirado de Vieira, 2010). Chegado o ano de 1970, comemorou-se o ano Europeu da Conservação da Natureza e várias instituições manifestam-se no sentido de se celebrar o dia mundial da árvore e da floresta, o que vem a acontecer. Hoje, um pouco por todo o país, plantam-se árvores neste dia. Uma forma de fazer a festa da árvore que, por razões culturais, o dia é 21 de Março, o início da Primavera. Também aqui resiste um ritual pagão. Era o início do ano rural e agrícola nas sociedades antigas. Algo ainda visível na designação dos meses actuais: (Sete)mbro, (Out)ubro, (Nove)mbro e (Dez)embro, meses sete, oito, nove e dez, contados a partir de Março. 1. Festa da Árvore e a República A festa da árvore foi introduzida em Portugal pelos Republicanos e, alguns deles pertenciam à Maçonaria. Esta festa inspira-se na festa das «Árvores da Liberdade», símbolo da Revolução Francesa (historia8). A influência francesa pode ser igualmente vista nos barretes, que o menino do cartaz de 1910 e o velho do cartaz de 1909 envergam, faz lembrar o barrete frígio adoptado pelos revolucionários franceses. A Convenção Francesa de 23 de Janeiro de 1794 oficializou o acto e decretou que todos os Concelhos plantassem uma árvore com raízes. Com raízes, como vai acontecer em Portugal, e não de estaca. Na verdade, são as raízes que ligam à terra e a seguram (e alimentam) permitindo que ela cresça para o céu. Mais, se raízes são símbolo feminino, estaca é símbolo masculino, como facilmente se percebe. As raízes 130 são a procura de alimento e alimentam a árvore tal como a mãe faz a seus filhos. Estaca é o falo. A festa da árvore insere-se num movimento de recuperação de certas festividades dando-lhes um cunho cívico, em vez de religioso, melhor, em vez de católico. Os primeiros governos republicanos, diz Leal (2009), «vão investir quer na politização do monopólio da força física [criação da G.N.R.] quer na politização do capital simbólico», casos dos símbolos nacionais. O meio escolar foi um campo privilegiado para a realização desta festa da árvore, diz Pintassilgo (2005), a par do culto de heróis nacionais, da bandeira e do hino nacional, a Portuguesa, que são os referidos símbolos nacionais. A prová-lo, a festa de1913, na Amadora, teve como finalidade, escreve AAVV (1987), a protecção e conservação da natureza. Contou com a presença do Presidente da República, Manuel Arriaga, houve um bodo para 50 pobres e merendas para 400 crianças. Paralelamente, foi inaugurada a escola primária da Mina. Foto 56: cartaz da 2ª Festa da Árvore na Amadora (retirado de Vieira, 2010). Mas a festa da árvore criou inimizades, principalmente no campo católico, que via nele um culto pagão e uma exploração de inocentes crianças. Há tentativas de boicote da festa, escreve Vieira (2010), campanhas na imprensa e arranque de árvores plantadas. O Jornal «democracia» da Covilhã, em 1914, ergue-se contra o que diz ser uma festa simpática das crianças explorada pela Maçonaria. Na verdade, a esmagadora maioria dos portugueses era católica e clamava, segundo o jornal, contra este abuso contra a liberdade de consciência. E havia razão nesta acusação. Em primeiro lugar, era uma festa pagã, na sua milenar origem, e porque não tinha padre que, em certa medida, funciona e é visto, nos dias de hoje, como o demiurgo ou feiticeiro das sociedades tradicionais. Em segundo lugar, a festa tinha as crianças das escolas como principais agentes e elas eram filhas de uma maioria católica contrária a este movimento republicano. 131 Contudo, esta luta parece ter serenado com o bom senso demonstrado por algumas pessoas. Na sessão do Parlamento, a 5 de Fevereiro de 1913, escreve Pintassilgo (2005), o orador Sá Oliveira demonstra já uma posição de consenso: louva a iniciativa, mas coloca algumas reservas, pretendendo a diminuição do papel das bandas militares, discursos reduzidos, devendo evitar-se questões político-religiosas. 2. Festa da Árvore: Culto Pagão A festa da árvore, na Primeira República, como as árvores da liberdade, na Revolução Francesa, é a continuidade de um culto pagão. E o que é o pagão e a sua subsidiária superstição? O Cristianismo/ Catolicismo, no processo designado por cristianização, apropriava-se do que não conseguia eliminar. Onde, por exemplo, havia deusa-mãe, de Cibele a Astarte, colocou Maria; onde havia lugar sagrado ou templo famoso, colocou templo cristão. Quanto a cultos, rituais e religiões milenares a quem estes deuses e lugares pertenciam, denominou de pagãs colocando neste termo uma carga diabólica, que, nos dias de hoje, permanece, pelo menos, com uma carga pejorativa ou de inferioridade. Quanto à superstição, o Catolicismo, que se apropriou do latim como língua sua, colocou o termo latino superstitio a significar uma fé contrária à fé católica. Ora, superstição não é mais do que diz o seu significado etimológico: «sobrevivente». A sobrevivência de antiquíssimos ritos e costumes e crenças. O historiador, o etnólogo ou qualquer outro cientista do social, deve observar os antigos cultos e religiões sem juízos de valor. Todas as religiões se situam num mesmo plano. E como as antigas religiões consideravam a árvore? A árvore é um cosmos vivo em perpétua renovação. Símbolo da vida. Mas a árvore não é objecto de culto. Não se pode falar de um «culto da árvores», diz Eliade (1992). É a figuração simbólica de uma entidade, esta sim, objecto de culto. Debaixo da figuração-árvore esconde-se sempre uma entidade espiritual, esta sim, objecto de culto. Porque a árvore manifesta uma realidade extra-humana, continua Eliade (1992), apresentando-se ao homem sempre da mesma forma, regenerando-se periodicamente, por causa deste poder, a árvore é o cosmos inteiro, nas sociedades tradicionais. A árvore, dizem Chevalier e Gheerbrant (1994), mantém em comunicação os três níveis do cosmos: o subterrâneo, a superfície da terra e as alturas, respectivamente, com as suas raízes, tronco e primeiros ramos e copa. Paralelamente, a árvore reúne os quatro elementos primordiais: a água, que circula por ela; a terra, que se integra nela 132 pelas raízes; o ar, pelas folhas; o fogo, que brota ao esfregarmos dois ramos. Pelo facto de as raízes se enterrarem no solo e os seus ramos e folhas subirem ao céu, continuam os autores, a árvore é um símbolo das relações que se estabelecem entre o céu e a terra. Neste sentido, a árvore é um centro do mundo, é um eixo do mundo. Assim se compreende que a árvore da vida e a árvore do conhecimento do bem e do mal estivessem no meio, ao centro, do Éden: «a árvore da vida no meio do jardim e a árvore da ciência do bem e do mal». (Gn 2, 9b ). «O que é essencial nas festas da vegetação, tal como se observa nas tradições europeias, diz Eliade, não é só a exposição cerimonial de uma árvore, mas também a bênção de um novo ano que começa». (1992: 394) O aparecimento da vegetação inaugurava um novo ciclo temporal. Por isso o ano começava com o equinócio de Março, com a Primavera. Assim se compreende que Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro mantenham a designação do mês sete, oito, nove e dez, e não os actuais nove, dez, onze e doze, que são. O santuário semita, escreve Eliade (1992), era sempre num local alto ou sob um frondosa árvore. Algo que permaneceu e permanece. Maria vem aparecendo, ao longo dos séculos, ou numa gruta, ou dentro do tronco de uma árvore, ou sobre uma árvore. Em todo o caso, sempre num símbolo da Deusa Mãe. Gruta e tronco aberto, símbolos do útero materno; árvore, símbolo da mãe, tanto mais que é sempre árvore feminina e de bom fruto: oliveira, silva ou azinheira, como na Cova de Iria. E como mãe que é, prefere crianças, que são puras. Às crianças cabem(iam) os principais papéis nas festas da Primavera, como era o caso do «Maios» ou «Maias». E as «Maias» eram festejadas por todo o país, como referem Braga (1994) e Oliveira (1984). Diz este autor que, as «Maias» se comemoram em todo o território nacional de duas formas: com manjares cerimoniais e com consagrações florais, «pela aposição de certas flores nas portas, janelas, aldrabas, das casas e currais, nas cancelas, carros, animais e barcos, hoje mesmo em camionetas e locomotivas». (1984: 110). Estas festas são, como diz Peixoto (1990), vestígios do velho mito solar, onde o Sol, derrotando o Inverno, permitia o deflagrar da natureza. Exemplar é a festa da Santa Cruz que pode ser observada, entre outros locais, em Monsanto (Idanha-a-Nova). Mas a festa da Santa Cruz é uma festa generalizada. «Os povos de muitas nações, escreve Baroja demonstram a sua alegria e regozijo no mês de Maio, desde a Festa de Santa Cruz e a Aparição de São Miguel, com bailes, adornos de 133 flores naturais [...] transportam árvores para dentro das povoações, enramam portas e janelas...» (1985: 32). Este costume milenar pagão foi cristianizado e não foi difícil. A Senhora Mãe é apresentada como a grande árvore de ramos, de largo manto, braços abertos, todos acolhendo no seu seio. O atributo mais frequente da Virgem é uma árvore e é nela, ou num arbusto envolvente (que possui igual significado), que ela costuma aparecer... a crianças. Pelo contrário, ao masculino, a cruz onde Cristo morreu, não chamam árvore, mas santo lenho, madeiro. A árvore é vida. O madeiro vai para o fogo. Baroja refere vários autores, do século XVII ao XX, que referenciam a Festa da Santa Cruz. Exemplar é a do sevilhano Blanco White (1860): no processo de cristianização, os sacerdotes cristãos, não conseguindo desenraizar o costume de colocar a árvore de Maio, começaram a santificar as pequenas cruzes com que «os meninos se adornam com flores e transportam mesas com velas, tantas quantas podem comprar e pedir aos amigos». (1985: 86). Em Monsanto, diz Dias, até os meninos permanecem: «a garotada (rapazes e raparigas), de menos de dez anos, vai nos dias 1 a 3 de Maio ao Castelo (de Monsanto) com as suas bonecas de trapos e ali dá vivas à Maia do Castelo». (1966: 272). Foto 57: Desfile da festa da árvore, na Amadora de: Foto: de www.skyscrapercity.com, 2013. Nestas festas, a chegada de Maio, diz Eliade (1992), era figurada por uma árvore e por figuras antropomórficas enfeitadas com ramos de árvores e folhagem e flores. Todas estas festas terminavam com dança de presentes. Estas figuras percorriam a aldeia e recolhiam presentes à porta de todas as casas: ovos, frutos secos, bolos, etc. Os que recusavam dar presentes eram alvo de chacota. Noutras regiões, o mês de Maio trazia os concursos para «rei» e «rainha», premiando o par mais bonito ou mais vigoroso. O cristianismo/ catolicismo, no processo de cristianização, como foi referido, não podendo acabar com determinados cultos e ritos, apropriou-se deles e cristianizou-os. Neste caso, como escreve Braga «a Igreja misturou com as Maias o mês de Maria». (1994: 199). O mês de Maio está 134 dedicado a Nossa Senhora e as crianças ofereciam-lhe flores. Com cestos cheios de pétalas, grupos de duas crianças, um de cada sexo, iniciavam um percurso que ia da porta de entrada da igreja matriz (igreja mãe) até ao altar da Virgem entoando «aceitai estas florinhas…» Na festa da árvore, em Tavarede, em 1916, planaram duas árvores e, perante muitos adultos e crianças, a professora recitou poesia; o mesmo fizeram a menina Maria Ribeiro e o menino Manuel Nogueira. A segunda parte iniciou-se com o Hino das Árvores. Na festa da árvore de 1910, Amadora, Delfim Guimarães recitou um pequeno poema em honra da árvore. (CNCCR, 1910). A estas manifestações de poesia, teatro e declamação chamavam-se jogos florais e realizavam-se em todas as escolas e liceus do país, durante o Estado Novo e até depois do 25 de Abril de 1974. Exemplo são os jogos florais realizados na Amadora, em 1986, integrados na festa da árvore. Há clara ligação linguística, e a língua é uma expressão da cultura, entre jogos florais, flores, floresta. Em síntese, o que se designa por «cultos da vegetação», diz Eliade, é algo mais complexo do que parece: «através da vegetação, é a vida inteira, é a natureza que se regenera por múltiplos ritmos, que é honrada, promovida, solicitada. As forças vegetativas são uma epifania da vida cósmica». (1992: 404). 3. Festa da Árvore: Os Cartazes. A primeira festa da árvore da Amadora, foi a 28 de Março de 1909. Para estas festas, produziramse lindos cartazes. O de 1913, o ano de eleição da festa da árvore, vai servir para uma análise do significado profundo desta festa e o milenar arquétipo que contém e transporta. Foto 58: cartaz da Festa da Árvore da Amadora, 1913 (retirado de Vieira, 2010). O Cosmos, diz Eliade, é visto como uma árvore gigante. «A epifania de uma divindade numa árvore é motivo corrente na arte plástica paleooriental […] a maior parte das vezes a cena representa a teofania de uma divindade da fecundidade». (1992: 350). Como foi dito, os principais papéis nas festas da Primavera, cabem às crianças. Confirma-se o princípio 135 implícito na hierogamia, diz Eliade, «na união primaveril dos pares jovens sobre a terra, nas corridas e nos concursos que estimulavam as forças vegetativas no decurso de certas festas da Primavera e do Verão, no Rei e Rainha de Maio, etc». (1992: 393). A árvore é um símbolo do feminino. Mas é, igualmente, símbolo da androginia. Se a copa e as raízes são femininas, o tronco é masculino. O tronco é verticalidade, é verga, é erecção. Assim, a árvore contém os dois princípios. Um pouco à maneira das antigas divindades, que eram masculinas um dia e femininas no dia seguinte, a árvore é andrógina e, também por isto, ela representa o cosmos por inteiro. Como diz Eliade, «o cosmos é visto sob a forma de uma árvore gigante». (1992, p. 335). E esta árvore do cartaz é uma grande árvore. Mas, mais que o tamanho, esta árvore é uma cornucópia de alimentos. Verdejante, esplendorosa e, simultaneamente, carregada de frutos. Em ambos os casos, a representação da mãe. Uma representação fortalecida pelo círculo de anjinhos. Anjinhos que são crianças, sem género, filhos dedicados da mãe. Os dois meninos do cartaz têm o (habitual) ar angelical próprio da candura e da inocência das crianças, que não têm género, são andróginos, como a própria palavra criança parece indicar. Criança não é masculino, nem feminino, é estar «debaixo das saias da mãe», uma forma de dizer, não só estarem ainda como que no ventre materno, como que, sob uma capa patriarcal e machista, é o matriarcado domina nesta cultura. O rapaz tem um sacho na mão. O sacho é um instrumento masculino. A pá, feminino. Estes instrumentos, sacho e pá, mais do que identificadores do género, que até nem é necessário, são um louvor ao trabalho e, talvez mais significativamente, a participação dos filhos na regeneração da mãe. Mãe natureza, que se regenera; mãe árvore, que, igualmente, se regenera. Por fim, o par é a representação da hierogamia, o casamento entre deuses criadores, o casamento entre o céu e a terra, que a árvore une. Os outros dois cartazes, figuras 1 e 2, confirmam o até aqui afirmado. O cartaz de 1910 apresenta a grande árvore protectora e cornucópia e o par de crianças. O primeiro, o de 1909, apresenta uma dança à volta de uma pequena árvore, mas próxima de uma grande árvore protectora, como se da mãe zeladora se tratasse. As crianças dançam de roda seguindo a mestra. Não se vislumbra o «pai». Na verdade, numa sociedade e cultura matriarcal como a portuguesa, gineocrática, empregando o eufemismo de Santo (1984), a mãe, com filhos, não necessita (mais) do pai. No canto inferior direito, parece haver um par de velhinhos. Este facto mais confirma a afirmação 136 anterior, pois o velho é sexualmente inofensivo. Em velho se volta a criança, diz o povo, com razão e (também) por esta razão. O festa da árvore da 1ª República Portuguesa não passa de um culto pagão milenar envolto em roupagem cívica republicana. Uma festa que, através da árvore, revitaliza o mais dominante e universal arquétipo, o da deusa mãe. Arquétipo é originário do grego (arche= primeiro + tipo=padrão). Arquétipos serão os primeiros padrões que constituem a base da «impressão da personalidade humana». (Ylimaki (2006: 627). Para Jung, os arquétipos são complexos vividos ou vivenciados que comparecem a modo de destino e Freud chamava-lhes «resíduos arcaicos», «formas mentais cuja presença não encontra justificação alguma na vida do indivíduo e que parecem antes formas primitivas e inatas representando uma herança do espírito humano». Jung chama-lhes arquétipos ou imagens primordiais. (1987: 67). Para este autor, há imagens semelhantes nos sonhos dos indivíduos humanos e as mitologias espalhadas por todo o mundo, pelo que, na opinião de Ylimaki (2006), as formas ou padrões arquétipos são colectivos, uma parte do psíquicos de todos, pelo que universais. Seguindo Jung, Santo diz que «na mitologia, na religião e muitas vezes na vida corrente, uma coisa material é a sombra de uma outra que não se consegue definir nem exprimir, é a sua imagem ou o seu símbolo». (1984: 19). Benoist considera o mito e o arquétipo como a mesma coisa: «os mitos são uma língua figurada das origens. Em resumo, Freud chamou-lhe complexos, Jung arquétipos e Platão denominava-os ideias. Ora, a árvore, para Jung, escreve Santo, é o símbolo preferencial da mãe, pois tudo o que é uma é a outra: «todos os atributos da mãe estão presentes na árvore: o crescimento, a vida, o desabrochar da forma, o crescimento para cima e para baixo, a protecção, a sombra, o tecto, flores, frutos, a fonte da vida, firmeza, duração, enraizamento e também a impossibilidade de mudar de lugar». (1984, p. 43). Para melhor se entender a relação profunda, qual hipóstase, entre a árvore e a Mãe, analisemse dois poemas e um conto, no Quadro 1. O poema é de Delfim Guimarães (1910) e, como ficou dito, foi por ele declamado na festa da árvore, na Amadora, em 1910. O conto é de Nuno Miguel Rodrigues (CCRG:1986), de 8 anos, e foi o vencedor dos jogos florais de 1986, Amadora, na categoria até aos 12 anos. O Hino das Árvores, é Olavo Bilac, publicado no Século Agrícola, de 25 de Janeiro de 2013, com música de Aboim Foios. 137 Quadro: Dois Poemas e um Conto. A Árvore, de Delfim A Festa, de Nuno Miguel Hino das Árvores, de Guimarães «De um pequenino disforme, inanimado, Rodrigues Olavo Bilac grão «Era uma vez uma árvore «Quem planta bebé acabada de nascer. árvore enriquece uma Que a terra agasalhou em seu Uma criança que ali ia regaço […] passar viu a árvore crescer e resolveu fazer uma festa. Do seio maternal, nasceu Mais tarde, a festa estava gracioso arbusto! […] pronta. Mais de 30 Que a terra, essa fecunda pessoas. A árvore sorria. A terra, mãe piedosa e boa: A árvore traduz quanto há de majestade, «Crescei, crescei, grande festa Todas as perfeições resume por encanto: Da luz, do aroma e da bondade, Beleza, Força, Dedicação, Bondade, Árvores – floresta! glória da – vida da E a terra aos homens agradece, A mãe aos filhos obreira […] Todos a admiravam e a abençoa». regavam. O amor do menino pela árvore era tão Ó terra, ó boa mãe, diz por grande que correu para «A árvore, alçando o que maneira, ela e beijou-a. A árvore colo cheio agradeceu e começou a Alquimista subtil cujo poder De seiva forte e de crescer, a crescer até ficar espanta, esplendor, muito grande; deu flores e Lograste conseguir, com arte frutos. Deixa cair do verde seio feiticeira, Transformar um Aquilo sim, era uma festa! A flor e o fruto, a sombra argueiro em soberba gigante! e o amor». […] Amor, A altivez d’um herói e a almazinha d’um santo. […] Bendita sejas tu, obra-prima da terra». Árvores cidade!» na «Crescei, crescei sobre 138 os caminhos, Nota: O negro é do autor do artigo. Árvores belas, maternas, Dando morada passarinhos, aos Dando alimento animais». aos «Outros verão os vossos pomos! Se hoje crianças, sois fracas Nós esperanças também somos: Plantamos esperanças!» outras «Para o trabalhamos: futuro Pois, no porvir, nossos irmãos Hão-de cantar sob estes ramos, E bem-dizer as nossas mãos!» A fusão entre a terra, a mãe, a natureza e a árvore é tal que, se for colocada a mãe onde está terra ou árvore, a poesia continua a fazer todo o sentido. Há mesmo esta identificação (terra = mãe) num verso. Nas quadras do hino, é ainda mais clara esta ligação/ identificação da árvore à terra-mãe. No conto, a criança identifica-se com a árvore que acabou de nascer. E corre para ela, como se corresse para os braços da mãe. Mais tarde, a árvore, qual mãe, dará flores e fruto, uma bela imagem para a fecundidade 139 maternal. Maio é o mês de Maria e a ela são ofertadas flores, como se canta: «aceitai estas florinhas…» 140 Conclusão A festa da árvore na Primeira República era uma festa dedicada à árvore, mas razões profundas se escondem por detrás da escolha deste ritual cívico para afirmação da autoridade simbólica republicana. A festa, para além de ser um facto social total, como lhe chamou Mauss (1993), na sua vertente ritual, é, geralmente, diz Silva, «associada ao sagrado, à componente simbólica ou até mística da relação do homem com o transcendente, o divino». (1998, p. 86). Por outro lado, a árvore é um símbolo religioso muito frequente, diz Santo (1984), fazendo parte de mitos e contos de todos os povos do mundo. A árvore será mesmo o mais antigo símbolo da Grande-Mãe. Não admira que o culto da árvore seja universal. Assim, este ritual festivo republicano, que envolvia a comunidade, revestia-se de carácter sagrado, porquanto ligava o homem ao divino utilizando a árvore como o centro e a razão da festa. Por outro lado, continuando enraizado o milenar arquétipo da Grande Mãe, sendo a árvore o símbolo preferencial dela e sendo matriarcal o ADN a cultura portuguesa, estava lavrada a terra para que esta semente republica frutificasse. Não frutificou porque a esmagadora maioria do povo português não era republicano, nem compreendia o republicanismo; a República era bebé; e, embora anti-clerical, o povo português não gosta de abdicar da presença do padre, qual feiticeiro, em rituais importantes da vida individual e colectiva. A chegada de Salazar ao poder, em 1928, e a sua ligação à Igreja Católica, matou o ritual. Como a melhor forma de matar o que imortal é apropriar-se dele e substitui-lo por outro semelhante, a Igreja colocou Maria onde estava a árvore. 141 15.6. NOSSA SENHORA DA LAPA Sexualidade num Culto Antigo. Ensaio de Religião e Toponímia 1. Templo e Orago. Como designar o templo: ermida, capela e igreja? Entendemos por ermida um pequeno templo, capela, isolado e, muitas vezes, longe da povoação, a quem esta, uma vez por ano, faz romaria. A ermida de Nossa Senhora da Lapa estava na povoação da Porcalhota. No entanto, em relação à igreja matriz de Benfica, da qual dependia, ficava distante. Capela é um pequeno templo inserido na povoação. Ermida e Capela dependem da igreja mãe, ou igreja matriz, ou igreja paroquial. Entendemos por igreja um templo, de bem maiores dimensões que uma capela ou ermida, semelhantes no tamanho, com o Santíssimo Sacramento e candeia em permanência. É a sede da paróquia. Assim, tanto poderia ser denominada ermida, pelos habitantes de Benfica, como capela, pelos habitantes da Porcalhota. Com elevação a paróquia no ano de 1986, passa a designar-se, com propriedade, igreja paroquial da Falagueira, ou igreja matriz (mãe) da Falagueira. Contudo, entre os populares, caso dos mais velhos da Quinta da Laje, continua a ser designada, e muito sentimentalmente, capela de Nossa Senhora da Lapa. A igreja de Nossa Senhora da Lapa, é também designada de Nossa Senhora da Conceição da Lapa. Simões (1986) designa-a por Ermida da Falagueira, mas a imagem designa-a ora por Nossa Senhora da Lapa, ora Nossa Senhora da Conceição da Lapa. Hormigo, citado por Simões, escreve que «a ermida da Lapa nasce da provisão de 1759 dada pelo cardeal de Lisboa, Francisco I». (1986, p. 20). Será construída entre 1759 e 1764. Depois, no mesmo texto, Hormigo chama-lhe igreja de Nossa Senhora da Conceição da Lapa. Proença (1964) chama-lhe ermida da Porcalhota e, à imagem, chamam-lhe Nossa Senhora da Conceição da Lapa. A paróquia tinha como orago Nossa Senhora da Conceição da Lapa. Em 1958, com a inauguração da igreja paroquial da Amadora, que tem como orago Nossa Senhora da Conceição, para não haver confusão, segundo informações do Padre Fernando de Cima, pároco da Falagueira, em 2015, passou a designar-se por paróquia de Nossa Senhora da Lapa, o mesmo acontecendo à imagem. A mistura e indecisão é tal que o livro de Azevedo, Hormigo e Cima (2013) tem na capa o título Igreja de Nossa Senhora da Lapa da Falagueira, Amadora mas, na página 2, na ficha técnica, o título é Igreja de 142 Nª Sª da Conceição da Lapa da Falagueira. Hoje é, decididamente paróquia e imagem de Nossa Senhora da Lapa. O Anuário Católico (2015) apresenta os contactos da Igreja Católica em Portugal e o orago da paróquia da Falagueira, Vigaria de Amadora, é Nossa Senhora da Lapa. Porquê a confusão? Porquê a invocação de Nossa Senhora da Conceição da Lapa, que só conhecemos na Amadora, e Nossa Senhora da Conceição da Rocha, em Carnachide, e que Reis (1967) desconhece qualquer uma, nas mais de 1.000 invocações que apresenta? Pensamos que o nome Conceição, colocado entre Nossa Senhora e da Lapa, pretende ocultar o profundo e muito antigo significado de Lapa, como o de Rocha. Significado este que desce a cultos milenares, anteriores ao Cristianismo/ Catolicismo, que designou, pejorativamente, de «pagãos». O culto de Nossa Senhora da Lapa, ou o de Nossa Senhora da Rocha, assenta na descoberta de uma imagem numa gruta, entre rochas, por crianças, seres inocentes. Nalguns casos, como o das Virgens Negras, a Senhora dos mil nomes pode aparecer dentro do tronco de uma velha oliveira, de significado semelhante. O templo é construído, caso de Nossa Senhora da Lapa de Sernancelhe, dentro da própria rocha e os fiéis seguem o ritual de passar por uma apertada saliência entre duas rochas. Foto 59: Frente da Igreja de Nossa Senhora da Lapa, Amadora, 2015. Estes templos possuem o sombrio, a humidade e, simultaneamente, a segurança da rocha. O sombrio, a humidade e a segurança da rocha, mas também o sombrio, a humidade e a segurança uterinas. O ritual atrás descrito, a apertada entrada/ saída do ventre materno, prova-o. Santo apresenta vários casos semelhantes e afirma que este rito «é a simulação do renascimento». (1988, p. 5). Eliade escreve que as fontes, as minas e cavernas são assimiladas ao útero da Terra-Mãe; por isso, «tudo o que jaz no «ventre» da Terra está vivo, ainda que em estado de gestação». (1987, p. 35). Principalmente no Norte, escreve Santo, existem «penedos do casamento» e o culto das pedras está relacionado com «a procriação e o aleitamento». (1990, p. 33). As 143 culturas, continua Molyneaux (2002), encaram a Terra como progenitora, sendo as grutas e outras cavidades no solo vistas como «vaginas, úteros ou outras aberturas para se penetrar na Mãe-terra». As rochas são residência de seres sobrenaturais e, às vezes, mesmo dotadas de propriedades sagradas. A pedra é imagem de um arquétipo, escreve Eliade, exprimindo a realidade absoluta, a vida e o sagrado. Muitos são os mitos dos deuses, continua o autor, «nascidos de petra genitrix, assimilada à Grande Deusa, a matrix mundi». (1987, p. 37). Santo afirma que «a gruta é um complemento das rochas. Simboliza o mundo iniciático, à saída do qual aparece a luz». (1988,p.9). Pretende-se, pois, esconder este antigo culto e esta antiga crença, que se apresentam a seus olhos como algo lascivo e pecaminoso, utilizando o seu oposto, o culto e crença da Imaculada Conceição. Segundo este dogma, Nossa Senhora concebeu sem pecado e sem pecado original. Esta crença faz crer e parecer que Maria não andou grávida e não deu à luz, como qualquer mulher. Maria-mãe, como qualquer mulhermãe, embaraça os partidários da absoluta pureza. O cristianismo, afirma Molyneaux, opôs «a terrena, carnal, e sedutora Eva à irrepreensível Maria, para quem o nascimento é um processo extra-natural». (2002, p. 20). Contudo, é impensável que Maria não tenha andado grávida e dado à luz como qualquer mulher de Nazaré. A Senhora da Conceição popular, afirma Santo, não é a mesma que a Imaculada Conceição, dogma de 1854, do papa Pio IX. «Um simples equívoco linguístico», continua. Não têm nenhuma relação entre si. Até são símbolos opostos». (2004, p. 88). A presença do crescente lunar na Senhora da Conceição, escreve Santo, «denuncia que esta sucedeu ao culto da Lua», que rege a vida dos homens e dos animais, bem como os ritmos naturais. Este culto dura até ao século XX. Santo escreve, ainda que, se as primeiras imagens de Maria são do século XII, quem adoravam os portugueses até este século? «Até então, o povo venerava directamente a Lua». (2004, p. 109). Também Bishop escreve que, «no culto popular, Maria pode perder o seu estatuto virginal. Dãose-lhe frequentemente atributos da deusa-mãe pagã que a precedeu». (1997, p. 88). Maria, Nossa Senhora e mãe de Cristo é uma Senhora de muitos nomes. Reis (1967) apontou 1.035 nomes. Muitos deles, talvez a maioria, de Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora da Lapa e Nossa Senhora do Bom Parto a Nossa Senhora da Expectação ou Senhora do Ó, encontram-se ligados à maternidade e à fecundidade. Nesta qualidade e com este atributo Nossa Senhora é orago de muitas paróquias. E compreende-se, pois que, durante milénios, a vida ou a morte de aldeias inteiras 144 estavam dependentes de uma boa ou má colheita, quando a única certeza que tinha o camponês era a incerteza do tempo e da colheita. Paralelamente, as religiões vão actualizando, modernizando, os seus deuses ou santos, num processo que vai do mais bárbaro ao mais civilizado, como do sacrifício humano ao pagamento em moeda, do santo feio e pesado ao santo lindo e leve. Assim, escreve Carvalho, de Nossa Senhora do Ó ou da Expectação, apresentada claramente grávida, a Nossa Senhora da Conceição que não apresenta gravidez, mas cujo nome não engana: Conceição = concepção. Acrescente-se que Nossa Senhora do Ó, ao contrário do que se dizia, e ainda diz Almeida (2004), não vem das 7 Antifonias do Advento (17 a 23 de Dezembro), em que Deus, do Antigo Testamento, é chamado por sete nomes diferentes: Ó Sapientia, Ó Adonai, Ó Radix, Ó Clavis, Ó Oriens, Ó Rex, Ó Emmannuel; em português, sabedoria, supremo senhor (cananita), raiz, chave, estrela do oriente, rei e emmanuel; o seu nome vem sim do aspecto da sua barriga. (2011, p. 11). Reis escreve que Nossa Senhora da Lapa é muito festejada em todo o País, mas só conhece duas freguesias que a têm como orago: a freguesia da Lapa (Estrela, Lisboa) e a freguesia da Amadora. Os pescadores da Póvoa de Varzim têm grande devoção à Senhora da Lapa, continua o autor, e porque não? «Acaso não é a Virgem da Lapa que lhes abençoa as redes, até estas se romperem de peixe?» (1967, p. 311) O culto da Senhora da Lapa está(va) de tal forma espalhado pelo País que o autor pergunta: «sabem os leitores quantas imagens de Nossa Senhora da Lapa há na Arquidiocese de Braga, distribuídas por igrejas e capelas? 36.» (1967, p. 312). Eis Nossa Senhora da Lapa qual Grande Mãe que alimenta os seus filhos, qual fecunda cornucópia. Que enche as redes de peixes, qual ventre cheio de uma mulher. Também Azevedo (2013) afirma que há muitas capelas com invocação de Nossa Senhora da Lapa, em Penafiel, Penajóia e Vila Pouca de Aguiar. Para a referida Arquidiocese de Braga, aponta 40 imagens desta Senhora. São muitos os crentes que tem atraído a si. A imagem de Nossa Senhora da Lapa é bonita, escreve Simões, «e a sua beleza mística atrai os fiéis, que a veneram com grande e viva devoção». (1986, p. 47). Irmãs de Nossa Senhora da Lapa são Nossa Senhora das Lapas, uma imagem que não chega a ter um palmo, escreve Reis (1967), na freguesia de Casais, junto ao Rio Nabão, e Nossa Senhora da Lapinha, freguesia dos Calvos, Guimarães, a quem fazem uma grande procissão a que chamam Clamor ou Ronda. 145 Almeida, no fim, acaba por concordar ao afirmar que «a forma arredondada do ventre da Senhora nas imagens reforçam e corroboram o designativo popular de Nossa Senhora do Ó». (2004, p. 167). Este autor vai mais longe e afirma, a propósito de Nossa Senhora da Expectação, que antecede Nossa Senhora da Conceição, que «se fossem alguns homenzinhos da minha terra diriam que esta Senhora era prima da Senhora do Ó, e comadre de Nossa Senhora Ante Natal; e os de Évora diriam que era muito amiga de Nossa Senhora do Anjo». (2004, p. 215). Todas estas Senhoras, do Ó, da Expectação, da Conceição, da Lapa… são primas igualmente de Nossa Senhora da Rocha. Não faltam templos dedicados a esta Senhora. Um deles é o de Nossa Senhora da Rocha, de Carnaxide. Comum, como ficou dito, é igualmente a história/ lenda associada à descoberta da imagem: por acaso, rapazinhos ou meninas encontram a imagem numa gruta. Em conclusão, sé se entende Conceição, em Nossa Senhora da Conceição da Lapa, para ocultar o significado profundo, milenar e «pagão» da Lapa (Laje e Rocha). Um processo designado de cristianização, através de actos, às vezes, inconscientes. Contudo, o lençol da cristianização não chega para tudo tapar. Puxando daqui ou dali, observando o que deixa descoberto, é possível vislumbrar e chegar, mais facilmente (caso do Adonai das 7 epifanias), ou mais dificilmente (caso do culto da Lapa ou da Rocha), ao que esconde. A confirmar a nossa afirmação quer na documentação consultada, quer na tradição oral, afirma Hormigo, o templo aparece designado por «ermida e capela da Falagueira, ou ermida da Porcalhota e, Ermida de Nª Sª da Lapa». (2013a, p. 19). Estas designações, continua o autor, fazem todo o sentido pois o templo está próximo destes lugares: Falagueira, Porcalhota e Laje. 2. Hipótese A ermida/ capela/ igreja de Nossa Senhora da Lapa, no culto e no lugar, sucede, através de um processo conhecido por «cristianização, a um culto dedicado à deusamãe, muitos séculos mais antigo. Neste culto, eram praticadas orgias, alimentar e sexual, que teriam lugar nos campos ao seu redor, direccionadas à fertilidade dos campos e à fecundidade dos gados e, principalmente, à fertilidade da mulher. O ritual último era chamado de «Festa das Ervas» e realizar-se-ia na Quinta da Laje, na encosta da Serra do Marco. 146 Analisando-se a toponímia dos locais próximos, bem como as festas e os cultos dos santos e santas presentes na capela; analisando-se as festas em sua honra e outras com claras ligações às religiões antigas, que os católicos designam de pagãs, é possível demonstrar a nossa afirmação. 3. Demonstração 3.1. A Pedra e a Laje. Ficou referido no ponto 1 que a Senhora da Lapa está ligado a um culto uterino de renascimento humano e, de uma forma mais geral, a um culto de fecundidade da mulher e fertilidade dos campos. Enfim, ao culto da Deusa-Mãe. Este culto, com o cristianismo, quase desapareceu, pois o cristianismo centra-se numa divindade masculina. Mas, afirma Molyneaux, a «Mãe-Terra mantem-se viva fora da igreja, através da religião popular e crenças tradicionais acerca do mundo natural. Já em plena era cristã, Cibele continuava a ser adorada sob o nome de Berecíntia», como confirmou Gregório de Tours que via os camponeses percorrerem os campos com uma imagem desta santa. (2002, p. 18). Madrid tem a praça Cibeles. Aliás, escreve Eliade, «que os homens são paridos pela Terra, eis uma crença universalmente espalhada». (1956, p. 149). A religião da Terra-Mãe, mesmo não sendo a mais velha religião do mundo, pertence ao mundo das que muito dificilmente morrem. Uma vez consolidada nas estruturas agrícolas, diz o mesmo autor, os milénios passam por ela sem a modificarem». (1992, p. 314). Na verdade, existe ligação directa entre a fertilidade dos campos e do homem. Como afirma Bishop, «a fertilidade da terra está inextrinsavelmente ligada fecundidade e, por extensão, aos costumes sexuais humanos». (1997, p. 16). No templo de Afrodite, em Pafos, Chipre, as mulheres da cidade tinham de se prostituir uma vez, com um estrangeiro, escreve Bishop, antes de se casar. «Mas elas eram ainda consideradas como virgens e toda a criança nascida nestas condições era dito «nascida de uma virgem» e levada ao templo». (1997, p.21). A prostituição sagrada estava espalhada pelo Médio Oriente e também o templo de Jerusalém a tinha. Por seu lado, as orgias, afirma Bishop, «permitiam o reviver do momento primordial da criação». (1997, p. 54). E o falo é adorado, desde tempos antigos até à actualidade, caso do Japão. Adorado somente em erecção, pois só neste caso era fecundador e emblema da divindade. Assim aparece em pinturas rupestres; em menires 147 fálicos; em peças de argila gregas; em frescos romanos, caso do deus da fertilidade Príapo; em bétilos fálicos estilizados colocados junto a portões e muros de casas senhoriais agrícolas, caso da de Carnide, próximo da igreja da Luz; e do culto actual no Butão e no Japão, já referido; em Portugal, há vestígios deste culto no culto a São Gonçalo de Amarante e nos bonecos, e demais artigos de cerâmica, das Caldas da Rainha. De forma mais estilizada, o culto fálico continua no culto de Santo António e, mais claramente, no culto de São João, como provam as quadras ao santo dedicadas. Apresentamos quatro: «O Baptista não vem hoje Há-de vir segunda-feira; Há-de achar a cama feita Coberta de erva cidreira». «Lá naquelas ervas verdes, Foi a minha perdição: Perdi o meu anel de oiro Na noite de São João». «São João comprou um burro Para pular as fogueiras; E depois das pular todas, Deu-o de presente às freiras». «São João adormeceu Nas escadinhas do côro. Deram as freiras com ele Depenicaram-no todo». No cristianismo, escreve Bishop (1997), este culto, que sobreviveu em todas as religiões, é desviado para Satanás, que aparece em figura de Pã. Lembremos que as sociedades tradicionais viviam/ vivem num cosmos sacralizado. O cosmos des-sacralizado, afirma Eliade, «é uma descoberta recente na história do espírito humano». (1956, p. 27). O cristianismo vem contribuindo para esta afirmação porquanto, escreve Eliade, sendo uma religião do homem moderno e do homem histórico, assenta os seus pilares no tempo contínuo, cronológico, enquanto as sociedades tradicionais assentavam os seus pilares no tempo cíclico e, para se defenderem «do terror da história, dispunham de todos os mitos, ritos» e demais comportamentos. (1969, p. 174). A razão pela qual demorou tantos séculos até esta dessacralização é que o cristianismo mantém alguns momentos de tempo cíclico, fruto de múltiplas influências religiosas e também porque, como diz Eliade, «os camponeses, pelo seu próprio modo de estar no Cosmos, não eram atraídos por um cristianismo «histórico» e moral. (1963, p. 144). Há vários costumes que lembram cultos mais antigos e que a mãe, afirma Eliade 1957), não é mais que a representante da Grande Mãe telúrica. É o caso da 148 «escorregadela» referido por Eliade (1992) e por Santo (1990), para o norte de Portugal, em que as jovens, para terem filhos, deixam-se escorregar por uma pedra consagrada. Outro é a fricção, praticado principalmente pelas mulheres estéreis. Por volta de 1880, escreve Eliade (1992), pessoas casadas que não tinham filhos, iam até um menir de Carnac, despiam-se e a mulher corria à volta do menir como se fugisse ao marido. É o caso do parto sobre o solo, como refere Eliade (1957), e que persiste até hoje. Braga dá mais exemplos. Escreve o autor que «as pedras e os lameiros pertencem ao culto ctoniano». Em São Domingos, Lamego, há a pedra comprida onde se deitam as mulheres estéreis para que fiquem fecundas. No Minho, no Monte de Santa Luzia, as raparigas vão ao nicho de Santo Elyseu, atiram uma pedra e dizem: «oh meu santo Elyseu, casar quero eu». Braga estabelece relação entre este santo e Elusia, «ou Ártemis de Éfeso, e com o epíteto de Elisa, a forte deusa, dado a Dido, hoje equiparada a Anath-Astarte, do culto heterista». (1994, p. 87). Em Peneda, continua, próximo de Arcos, há o penedo dos casamentos. Para pedir chuva, juntam-se nove donzelas e revolvem pedras num lameiro virgem, em Vila Nova de Foscôa. Braga termina afirmando que «a pedra que ainda hoje se revolve representa a pedra que simbolizava a Deusa-Mãe Cibele, cujas festas terminavam por leva-la a mergulhar num rio; daqui o rito popular supersticioso de levar os Santos à cerca da água». (1994, p. 88). Para que alguém ame outro ou outra, é comum fazer uma oração especial a Santa Marta. Martha, escreve Braga, é uma designação semita frequente para a MãeDivina. Por oposição a Madalena, diz o autor, «que representava o lado heterista desta Deusa-Mãe, Martha representava o seu aspecto virginal». (1994, p. 89). 3.2. A Festa da Árvore e a Festa das Ervas Neves (1991) escreve que a «Festa da Árvore», realizada nos anos 1909, 1910 e 1913, na encosta da Serra do Marco, «mais propriamente, na Quinta da Laje (ou da Lapa), era uma tentativa de cristianização dessa tradicional festa pagã?!» E, a propósito das duas festas, que diz terem origem em antiquíssimas festas pagãs, escreve que «é espantoso como certas tradições persistem na alma dos povos, apesar de invasões de outros povos, evangelizações, revoluções, etc.» (1991, p. 83). A «Festa das Ervas», continua Neves, realizava-se em Alfornelos e, até há bem pouco tempo, vinham muitas gentes de Lisboa, num determinado dia, fazer piquenique, comerem as suas merendas «e recolher os mais diversos géneros de plantas medicinais e 149 com algumas das quais ainda foi fácil falar». (1991, p. 83). Quer isto dizer que a «Festa das Ervas» ainda se realizaria na década de 1980. Pena o autor não ter escrito o dia e o mês. O piquenique era feito à volta e debaixo de um velho pinheiro, num determinado dia, onde «iam prestar culto e por fim comer merendas sem se saber bem porquê». (1991, p. 84). Neves apresenta dados interessantes para uma explicação destas duas festas. Nos rituais pagãos, diz, «Festa da Árvore» ou «Festa das Ervas», ornamentavam com ramos de árvore ou com ervas. Nas «Festas de Vénus» ornamentava-se com ramos de murta. Nas festas de Pã ou Pãa, «a ara era ornamentada com ramos de pinheiro». Aquele pinheiro, afirma, «não estava ali por acaso». Era pinheiro manso, o que permitia mais fácil colheita de ramos e porque tem vida mais longa que o pinheiro bravo. Interessante, conclui, é haver uma quinta próxima chamada «Quinta da Pãa ou Paiã». (1991, p. 85). E, como atrás ficou escrito, Pã é a diabolização do culto fálico levada a cabo pelos católicos. Coelho escreve que a Serra do Marco era, outrora, muito arborizada. Ali, continua, «existia o rei desta selva, que era um maravilhoso exemplar de pinheiro manso, redondo e bem formado, tendo a sua copa para cima de dez metros de diâmetro, e o tronco talvez fossem precisos dois homens para o abraçar». (1982, p. 20). Um dia, um forte vento tombou-o e lá ficou. Plantaram um outro pinheiro no local e até fizeram uma pequena festa e colocaram placa. Passado algum tempo, tudo desapareceu. Era na Serra do Marco, afirma Coelho (1991), que o povo dos lugares que formam a Amadora, no século passado [XIX], fazia uma festa ou romaria no dia da Senhora dos Prazeres. Era uma festa familiar e de trabalho, por começarem as sestas nesse dia da Primavera. O pinheiro ficava ao centro da Serra, num local de pouco declive, e aqui se fazia o baile. As famílias espalhavam-se pela encosta, às sombras de árvores ou arbustos e aí comiam as merendas. À tarde, continua Coelho, bem comidos e bem bebidos, a mocidade dançava debaixo do pinheiro, músicos cantavam e tocavam e «alguns pimpões com um grãozinho na asa, que às vezes rolavam pela encosta da serra». Ao Pôr-do-Sol, regressavam a casa, em grupos, «as belas moças rindo e gargalhando com os seus namoricos» levando um ramo de rosmaninho na mão. (1982, p.21). Esta festa continua na Primeira República, mas, diz o autor (1982), já sem a alegria de dantes. 150 Neves (1991) estabelece bem uma relação entre a alimentação e o culto de determinada árvore os plantas medicinais, a par de transportar as origens destes rituais a antigos tempos, às religiões ditas pagãs. Coloca o piquenique em Alfornelos e o pinheiro na Serra do Marco. Coelho, nascido e criado na Amadora, coloca o Pinheiro a meio da Serra do Marco, onde decorria a festa. Faz, na verdade, mais sentido. Foto 60: Quinta da Laje e Serra do Marco, 2015. Este rolar pela encosta abaixo denomina-se de «rebolão» e é a continuidade residual de antigas orgias sexuais. Um «rebolão» bem conhecido é o «rebolão do Vale Pereiro», relatado por Dias: Os habitantes de Salvaterra do Extremo vão ao bodo de Monfortinho. A meio do caminho, no Vale do Pereiro, paravam, desengatavam os animais, estendiam os farnéis e comiam e bebiam; «tudo comia e bebia, conversava e galhofava» e o vinho circulava a bem circular. Costume curioso, escreve Dias, «com cuja explicação não atino, antes que retomassem a marcha, os maridos com as respectivas consortes e os namorados com as namoradas, abraçavam-se e entrelaçavam as pernas e rebolavam-se desde o cimo até ao fundo do vale. (1948, p. 135). Os cultos agrícolas, afirma Braga, encontram-se «ligados a práticas orgiásticas do heterismo junto de ervas e juncos do charco; filho das ervas é o que pertence ao regime da prostituição ou da época heterista da maternidade». No romance de Dona Ausenda (Ausêa, Iseu ou Iseult), contido no Romanceiro de Almeida Garrett, continua o autor, há a quadra: «À porta de Dona Asenda/ Está uma herva fadada/ Mulher que ponha a mão nela/ Logo se sente pejada». (1994, p. 93). No Algarve, há a canção Engeitada, escreve Braga: «Eu não tenho pai, nem mãe,/ nem nesta terra parentes;/ Sou filha das pobres ervas,/ Neta das águas correntes». A estes filhos chamavam-se filhos das ervas e a mulher desta sociedade, heterista, era chamada ervoeira. Hoje, o carácter insultuoso de chamar alguém de «filho da mãe» vem, afirma o autor, do estado de hetairismo inicial correspondente a um culto 151 estoniano ou de prostituição sagrada […] este culto celebrava-se nos vales pantanosos, cujos templos eram in solo palustre». (1995, pp. 181, 180). Por fim, Nossa Senhora dos Prazeres, dia da realização da «Festa das Ervas». A sua festa é na pascoela, época de romarias por todo o País. Realiza-se no Domingo depois da Páscoa. É a Primavera e o renascer da natureza. Nestas romarias come-se a merenda e há baile e a pressão social sobre os costumes é mais leve. O culto de Nossa Senhora dos Prazeres foi introduzido em Portugal nos finais do século XVI, depois do aparecimento de uma sua imagem, em Alcântara, Lisboa, em 1590. Reis (1967) não dá explicação para a invocação. A Igreja diz que Maria teve sete prazeres na sua vida, daí o nome: a anunciação, a saudação a sua prima Isabel, o nascimento de Cristo, a adoração dos magos, o encontro de Cristo entre os doutores e a ressurreição de Cristo. O número 7 significa é a ocupação total do espaço, o final da obra e assim se compreende a escolha de sete; certamente que haveria oito ou seis apenas, assim se quisesse. Prazeres é a cristianização de um ritual de muitos séculos dos prazeres alimentar e sexual. Daqui a invocação de Nossa Senhora dos Prazeres. 3.3. Toponímia Dedica-se um capítulo à toponímia da Amadora. Aqui, abordam-se alguns topónimos, os necessários à demonstração e prova da nossa hipótese. Ficou atrás escrito que Laje, Lapa, Rocha e Gruta são sinónimos e significam a humidade e o sombrio, a par da segurança, uterinos; que Conceição significa conceber, engravidar e dar à luz; também, que Prazeres é invocação cristianizada da orgia alimentar e sexual de antigos cultos denominados pagãos. Analisemos outros topónimos próximos da Quinta da Laje. Alves Silva escreveu dezenas de artigos sobre a história da Amadora, no «Jornal da Amadora», e muitos deles são dedicados à toponímia da cidade. Lendo estes artigos é possível observar como não se deve e deve fazer o estudo da toponímia. Silva (2000a) escreve que os mouros estiveram na Amadora, como atestam os nomes árabes Alfornelos e Alfragide. Isto é, toda a palavra começada por al é de origem árabe. Um erro. Já Magro (1946), na sua tese de licenciatura em História, apontava o erro. Santo afirma que al é um prefixo caldaico e hebreu. O que encontramos em muitas povoações é o fenício alu, que significa «povoação», «castelo», «mansão» e «parentela», «gente da mesma linhagem», por vezes, em duplicado, caso de Alcaria = «mansão», «povoação». 152 (1998, p. 69). Cinco anos depois, Alfragide, ou Alfarragide, afirma Silva (2005d), que não será de origem árabe, mas romana. Montinel, escreve Silva (2006a) seria um monte pequeno. Ora o significado do topónimo hoje pode não ser o de há séculos ou há milénios. Segundo erro. Deve-se procurar o significado da palavra quando esta foi inventada. Terceiro erro é colocar alguém nobre ou importante a dar nome a povoação ou rua. Pode ser e pode não ser. A-da-Beja é um nome que remonta ao século XVI e significará, escreve Silva, «quinta da Madre que veio de Beja». (2006b, p. 3). Ora, «A» significa «pequena comunidade», «pequena aldeia»: A dos Namorados, A dos Judeus… Um quarto erro é fazer vir todas as palavras do latim, mesmo as que nunca existiram no original. Contudo, este autor faz análises e interpretações inteligentes. Silva escreve, a propósito de Nossa Senhora da Lapa, que «a santa com ermida, hoje igreja da Falagueira imagem a respeito da qual alguns historiadores dizem ter aparecido debaixo de um penedo no sítio onde foi erguido o templo […] Não terá sido este o caso, isto no nosso ponto de vista. A existência, ali perto, da Quinta da Laje estará [?] relacionada com a Senhora da Lapa». (1997, p. 5 ?) Colocam-se as duas interrogações por a folha do jornal consultado estar danificada. Quinta da Laje deve o seu nome, escreve Silva (2005b), ao facto de ter aí existido uma pedreira aquando da construção do Aqueduto das Águas Livres, «relativamente perto da capelinha de Nossa Senhora da Conceição da Lapa». Amadora teve muitas pedreiras. Logo, não está correcta a interpretação. O nome tem de individualizar. Se não individualiza a interpretação está errada, porque o nome perde a função para a qual foi criado. Porém, Silva parece fazer a aproximação entre Laje e Lapa, entre Quinta da Laje e Nossa Senhora da Lapa, como julgamos correcto. Hormigo escreve que «a Igreja de Nª Sª da Conceição da Lapa sobressai no centro de um adro, cercado por muro de pedra, e tem duas entradas: Estrada da Falagueira, e Travessa da Mãe d’Água». (20013a, p. 19). Mãe ou Mães d’Água designa o local onde se construiu a Escola Secundária Mães d’Água e proximidade, pegando com a Quinta da Laje. Não oferece dúvidas a designação: a água é mãe, é vida, que brota da rocha. Mais, o local escolhido para a construção do templo, afirma Hormigo, «foi o sítio da Lapa, mesmo ao lado da clarabóia homónima que já existia». (2013a, p. 21). Uma das parcelas de terra adquiridas pela comissão da construção da capela da 153 Falagueira, escreve AAVV (2000b), com o dinheiro de sobra, chamava-se «Varginha», pequena várzea, terra com muita água. Ficava próxima da capela. Há pois, uma vez mais, a cristianização de um lugar e de um nome através da construção de um templo cristão no local. O templo passa a ser sagrado por absorção da sacralidade do lugar. Uma pergunta se coloca: porquê a construção neste local? A actuação, os comportamentos individuais e colectivos obedecem a determinados arquétipos. Arquétipo é originário do grego (arche= primeiro + tipo=padrão). Arquétipos, diz Ylimaki, serão os primeiros padrões que constituem a base da «impressão da personalidade humana». (2006, p. 627). Freud chama-lhes «resíduos arcaicos», «formas mentais cuja presença não encontra justificação alguma na vida do indivíduo e que parecem antes formas primitivas e inatas representando uma herança do espírito humano». Para Jung, os arquétipos são complexos vividos ou vivenciados que comparecem a modo de destino. Chama-lhes arquétipos ou imagens primordiais. (1987, p. 67). Há imagens semelhantes nos sonhos dos indivíduos humanos e as mitologias espalhadas por todo o mundo, pelo que, na opinião de Ylimaki (2006), as formas ou padrões arquétipos são colectivos, uma parte do psíquico de todos, pelo que universais. Seguindo Jung, Santo diz que «na mitologia, na religião e muitas vezes na vida corrente, uma coisa material é a sombra de uma outra que não se consegue definir nem exprimir, é a sua imagem ou o seu símbolo». (1987, p. 19). Em resumo Freud chamou-lhes complexos, Jung arquétipos e Platão denominava-os ideias. Santo e Ylimaki seguem Jung. Assim, a capela é construída num determinado local por determinação arquetipícia. Porcalhota deve o seu nome, diz Silva (2005e), ao sobrenome de Sebastina, filha de certo Leitão, irmã de Isabel Leitoa, segundo documento de casamento e herança do Morgado da Falagueira, datado de 29 de Julho de 1636. Neves (1991) partilha a tradição oral que diz que Porcalhota é uma aldeia muito suja, em que todos faziam os despejos para a rua, como o autor observou por diversas vezes. A ser verdade, quase todas as aldeias de Portugal teriam nome de Porcalhota, ou semelhante, pois o costume esteve generalizado bem dentro do século XX. Se o nome não individualiza, não é esta a explicação. Verdade é que ninguém gosta que a sua terra tenha o nome de um animal conotado com a sujidade e a porcaria. Por isso, o nome vem do apelido de alguém ilustre, Porcalho, ou faz-se como Simões, dá-se a volta à palavra: «a Porcalhota é, sem embargo, uma povoação singularmente lavada de ares, e estes, no dizer dos mais 154 conspícuos higienistas, são os melhores, os mais autênticos colaboradores da higiene e da salubridade de uma povoação». (1982, p. 26). Por isso, também, é que se apressam a desfazer a ideia de Porcalhota e Amadora serem a mesma povoação. Havia três povoados: Amadora, Porcalhota e Venteira. A 28 de Outubro de 1907, o «Diário do Governo», nº 248, traz o Despacho de João Franco que, respondendo ao pedido dos moradores destes três povos, une todos na povoação de Amadora. Façamos a distinção entre porco e porca, tendo em conta o género e o simbolismo. O porco, afirmam Chevalier e Gheerbrant (1982), simboliza, de forma quase universal, a sofreguidão e a voracidade, aparecendo igualmente ligado às tendências obscuras, à ignorância, à luxúria, ao egoísmo e à impureza. A porca, em contrapartida, rivalizava com a vaca como símbolo deificado da fecundidade e da abundância. A deusa egípcia Nut era representada tanto como uma vaca, como uma porca. Divindade Selénica, continuam os autores, «a porca é a mãe de todos os astros que ela engole e cospe, alternadamente, conforme sejam diurnos ou nocturnos, para os deixar viajar pelo céu». (1982, p. 537). O mealheiro tinha a forma, generalizada de porco(a), não havendo qualquer conotação com a sujidade. Pensamos que Porcalhota foi local com templo, ou dedicação, à Deusa-Mãe, na hipóstase de porca. Porcalhota tem, assim, a Deusa-Mãe no seu nome e num culto local. Desenvolvemos esta matéria mais adiante. Falagueira, escreve Silva (2005c), vem de dois vocábulos: «fala» e «geira». Geira é o nome romano dado aos seus caminhos e estradas; Falo é um dos deuses romanos, continua o autor (2005c), que simbolizava «a força reprodutiva da natureza». Ainda hoje, continua, há a Nossa Senhora dos Caminhos [mais uma cristianização], com toponímia na Amadora. «Assim sendo, partimos, sem certezas absolutas, para a combinação da palavra Fala (deusa) gueira (estrada). Ou seja: Deusa da Estrada. Mas também poderá referir-se à Deusa da Fecundidade, considerando a Falagueira como um dos espaços agrícolas privilegiados pela natureza». (2005c, p.1). Concordamos, mas Fala não é deusa, sim deus. Falo é o nome do pénis, no campo do sagrado. Pelo que Falagueira será a estrada que conduz ao local do culto do Falo, o culto de Pã (Quinta da Laje), culto que se encontra interligado com o da Deusa-Mãe. Culto que existe para a fertilidade dos campos e não porque o local do culto é (ou não) fértil. 155 4. O Culto de Santo António e de São Sebastião Proença (1964) apresenta o inventário de 7 imagens na capela, referente ao ano de 1810: três imagens de Cristo crucificado, uma de Nossa Senhora da Conceição da Lapa e mais 3: de São Sebastião, Santo António e São Francisco. Além das imagens o inventário refere setas para a imagem de São Sebastião; dois cintos para a mesma, um para os dias vulgares e outro, «guarnecido de renda de prata fina, para os dias mais solenes». (1986, p.120). Foto 61: Capela-Mor da Igreja de Sª da Lapa, 2015: Nª Sª da Lapa ao centro; à sua direita, Santo António; à sua esquerda, São Sebastião. No inventário de 1912, Simões (1986) apresenta 5 imagens: duas da Senhora da Lapa, uma grande e uma pequena; São Francisco, Santo Antão e São Sebastião. O mesmo autor, em 1986, refere três imagens: Nossa Senhora, grande; Santo António e São Sebastião. Simões escreve que são «muito antigas e já figuravam no inventário de 1810». (1986, p.46). A estas imagens, continua, duas novas se acrescentam: Sagrado Coração de Jesus e Nossa Senhora de Fátima. Falemos do culto dos dois santos, pois a escolha de uns santos e não de outros diz da cultura de um povo. Porque um facto religioso puro, afirma Eliade (1969), é coisa que não existe. Um facto religioso é também, e sempre, um facto sociológico, histórico, cultural e psicológico, entre outros. Um mito vivo, escreve o mesmo autor, «está sempre ligado a um culto, que inspira e justifica um comportamento religioso». (1969, p. 94). E falemos das suas festas, porque a festa religiosa pode ser vista como a reactualização de um acontecimento primordial. Como diz Eliade (1956), a festa é uma história sagrada em que os actores são os deuses ou os seres semidivinos; neste caso, os santos. 4.1. Santo António Santo António, de Lisboa ou de Pádua, pouco ou nada tem a ver com o Santo António da adoração popular. Este é um santo casamenteiro e malandreco, que se mete com as moças, como contam as quadras recolhidas por Gomes e Santos (2007, p. 12): 156 “Oh! Meu santo Antoninho, Vou rezar o teu responso; Eu perdi o meu amor Que se chamava Afonso». “Santo António bailador o perdido faz achar; eu perdi o meu amor outro amor hei-de encontrar». “Santo António me acenou de cima do seu altar. Olha o maroto do santo que também quer namorar». “Minha avó tem lá em casa Um Santo António velhinho; Em as moças não me q’rendo Dou pancadas no Santinho». É também o santo invocado para achar objectos perdidos. A sua imagem de “ jovem efeminado”, como diz Santo, é apresentado com o menino ao colo, encontra-se nas igrejas, em encruzilhadas, em oratórios particulares e em azulejos sobre a porta de entrada de muitas casas. Este santo lembra de facto o deus greco-romano HermesMercúrio, protector de salteadores e assaltados, “encarnação de tudo o que requer astúcia e manhas”. (1990, p. 124). Embora com culto reduzido no geral do País, face a São João, outro «santo popular», em Lisboa, Santo António tem um culto de séculos, como referem viajantes estrangeiros. Estudemos Santo António através dos santos que se lhe assemelham. Um santo semelhante, tem o mesmo nome, é o de António, o Grande, eremita conhecido pela sua renúncia aos bens terrestres. Outro que se apresenta de hábito semelhante ao de santo António é Santo Antão. Santo (1990) afirma que o Santo António beirão é Santo Antão, protector do gado, que tem capelas nas “barradas”, em pequenas elevações, junto a caminhos onde passam os gados. Santo António será um santo mais novo e para ele terá passado um culto mais antigo, de santos mais velhos e de desenho masculino mais bruto. Acontecerá que, como refere Braudeau, «os santos mais gloriosos sobressaem mais, e encontramos muitas vezes a séculos de distância o eco do seu nome transmitido por outrem e brilhando com novo fulgor». (2004, p. 24). A adaptação e a versatilidade da figura do santo tem-lhe permitido que perdure no imaginário religioso popular. 4.2. São Sebastião São Sebastião é o advogado das pestes, das doenças e das pragas, seja nas searas e animais, seja nos homens. A força do santo foi de tal intensidade e permanência que, 157 já sem funcionalidade (pelo menos aparentemente), continua a sair nas grandes procissões, em quase todo o País. A procissão em honra especial de São Sebastião era um acto bastante frequente, ainda que não banal. Peste que caísse na aldeia e deitasse à cama novos e velhos era procissão realizada. Com a chegada do Estado de Previdência, das Casas do Povo e da Segurança Social, escreve Carvalho (2008), acompanhadas de uma melhoria generalizada das condições de vida, o santo foi perdendo funcionalidade. Uma perda não radical, porque surgiu a Guerra Colonial em África e, a guerra é «peste», tal como «peste» são a fome e a doença, a peste propriamente dita. São Sebastião passa a santo patrono dos soldados, principalmente nas freguesias onde a capela subsiste de pé. Residual da protecção contra pestes e maleitas é a fita vermelha que cruza o peito e as costas do santo. Quem quisesse curar-se ou não vir a ter estas doenças, colocava um cinto vermelho no seu dorso. Era para este ritual que serviam os dois cintos enumerados no inventário, atrás referido. São Sebastião é representado atado a uma árvore, setado e de tanga. Cristo crucificado é também apresentado com as cinco chagas e de tanga. Carvalho (2008) apresenta semelhanças e diferenças entre as representações de Cristo e São Sebastião. Cristo é apresentado como um adulto, principalmente na figuração de Senhor dos Passos, mas igualmente de barbas. Para além disso, a sua face, em ambas as imagens, é de sofrimento. São Sebastião apresenta-se como semelhante e diferente face a Cristo e, afirma Carvalho «na busca do arquétipo que se esconde debaixo de um santo, é fundamental ver estas semelhanças e diferenças. Semelhantes no sacrifício no tronco, um no lenho, outro na árvore; diferente na expressão facial. São Sebastião não sofre. São Sebastião tem uma face juvenil e serena» e, às vezes, até alegre. Neste aspecto, este santo é único e tal é estranho. Como pode não ter dor quando Cristo a teve e até, num momento de suprema dor, tentou afastar de si o cálice: «Pai, afasta de mim este cálice». (Lc 22, 42). Carvalho (2008) afirma que, enquanto Cristo se sacrificou pelo Deus Pai e mostra dor, São Sebastião sacrificou-se pela Deusa-Mãe, castrou-se, e mostra a face juvenil, serena e até sorridente. São Sebastião castrou-se tal como os galli, em honra da Deusa-Mãe, em Hierápolis, Síria. Como o fez Orígenes. Castravam-se no santuário da deusa, na Festa das Fogueiras, como se podiam castrar agarrados a uma árvore fazendo força e contraindo os músculos. O galo e o porco são os animais identificados a São Sebastião e ambos são (ou podem ser), geralmente, capados. 158 Cristo sofre e paga pelos homens, num misto de dedicação e dever. São Sebastião dedica-se de livre e alegre vontade à Grande Deusa Mãe. Assim, nem é homem, nem é mulher. Volta a criança. Regressa ao seio da mãe. É retomado por ela. Cristo sofre porque se sacrifica pelo Pai e não pela Mãe. Cristo tem disto perfeito conhecimento e consciência. É por isso que Cristo, continua Carvalho (2008), sabendo chegada a sua hora, de joelhos, no Jardim das Oliveiras, o Filho do Pai pede, por três vezes e nos três Evangelhos: “meu Pai, se é possível passe de mim este cálice. Todavia, não seja como e Eu quero, mas como tu queres”. Meses antes havia assim tratado Sua Mãe: “ quem é Minha Mãe e quem são os Meus irmãos?”. Instantes antes de expirar, na cruz, exclamou: “meu Deus, Meu Deus, porque me abandonaste?” Jesus conhecia bem a sua época e as tradições religiosas antigas, a crer no que disse: «Há eunucos que nasceram assim do seio materno, há os que se tornaram eunucos pela interferência dos homens, e há os que se fizeram eunucos a si mesmos por amor do reino dos céus”. (Mt 26,39-44, Mc 14,36-41, Lc 22,42; Mt 12, 48; Mt 19, 11-12). Carvalho (2008) conclui que há nestes dois cultos reminiscências das lutas entre matriarcado e patriarcado, melhor, entre o poder da mãe e o poder do pai, entre o culto da Deusa Mãe e o culto introduzido pelo Judaísmo e Cristianismo do Deus Pai. Assim se explicaria, continua o autor, que Cristo sacrificando-se pelo Pai e morre dolorosamente e adulto; Sebastião sacrificando-se pela Mãe, alegremente, e apresentase com um rosto de criança/ jovem. Em conclusão, o culto de Santo António e de São Sebastião estão ligados a antigos cultos da fertilidade, que tinham na figura da Deusa-Mãe o seu centro. A par disto, o culto destes dois santos afirma e confirma a centralidade da Mãe na cultura e religião popular portuguesa. 4.3. Festas e Capelas É possível que Santo António e São Sebastião tivessem capela, algures no tempo ido. Geralmente, as imagens antigas existentes nas igrejas matriz, muitas vezes no altarmor, e que até possuem referência toponímica, tiveram capela. Foram colocadas na igreja matriz depois do desaparecimento destas. 159 Foto 62: Festa de São Sebastião. Ilustração Portuguesa de 28 de Agosto de 1905. São Sebastião tem a praceta com o seu nome, junto à igreja, mas não há conhecimento de ter havido capela sua. Ao contrário, Santo António não tem referência toponímica, próxima da igreja, tem rua que vem dar do Sul à igreja matriz da Amadora, mas teve capela, até ao século XVIII e, diz Hormigo (2013a), era um pequeníssimo templo, dentro da Quinta do Bosque, que pertencia à família Mexia Falcão. Quanto às festas, a de Nossa Senhora da Conceição da Lapa, escreve Proença (1964), era no primeiro Domingo de Agosto; a do Mártir São Sebastião, no segundo Domingo de Agosto; e a de Santo António, no terceiro Domingo de Agosto. Hormigo (2013c) dá conta de uma festa em honra de São Sebastião, realizada de 9 a12 de Setembro de 1899. A Ilustração Portuguesa de 28 de Agosto de 1905 testemunha o brilho da festa, em honra do Mártir, realizada de 20 a 22 de Agosto de 1905. 5. Os 12 Painéis de Azulejo da Igreja de Nossa Senhora da Lapa Na nave central da igreja estão 12 painéis de azulejo com representações simbólicas. No lado direito do altar-mor, a palmeira, o cedro, o poço de Jacob, o girassol, o cipestre e a rosa mística; do lado esquerdo, a oliveira, a porta do céu, o espelho da justiça, a estrela da manhã, a Lua e o Sol. Hormigo (2013b) enumera-os e apresenta alguns excertos bíblicos que os referem, mas torna-se necessário maior aprofundamento e ligação a significados e cultos mais antigos e mais universais, bem como procurar no Antigo Testamento pois, como afirma Eliade, o cristianismo é uma religião histórica que tem as suas raízes na religião judaica, outra religião histórica. Por esta razão, para «para compreender certos sacramentos ou certos simbolismos, basta procurar as suas figuras no Antigo Testamento». (1952, pp. 156-157). Além disso, é 160 necessário uma explicação para o número de painéis, que são 12, 6 de cada lado, bem como a sucessão e o lado direito e o esquerdo onde foram colocados. A palmeira era considerada como o símbolo da árvore da vida, bem como da victória. As palmas, como mostram as palmas do Dia de Ramos, prefiguram a ressurreição de Cristo, o seu triunfo sobre a morte. O mesmo significado, afirmam Chevalier e Gheerbrant (1982), tem a palma que os santos mártires seguram numa das mãos. «O justo florescerá como a palmeira e crescerá como o cedro do Líbano». (Sl, 92,12). No Antigo Testamento, Jericó é chamada de «Cidade das Palmeiras» e a profetiza Débora, juiz de Israel, julgava debaixo de uma palmeira. (Jz 3, 13; 4, 5). O cedro mais famoso é o do Líbano. Aparece em vários versículos bíblicos caso da construção do templo de Jerusalém: Salomão «edificou a casa da floresta do Líbano»; «revestiu o interior dos muros do edifício com placas de cedro, do pavimento ao tecto». (1Rs 7,2; 6,15) Os Egípcios, escrevem Chevalier e Gheerbrant (1982), utilizavam a madeira de cedro na construção de embarcações, estátuas e ataúdes. Os Egípcios tinham também boas relações com os fenícios. As referências ao cedro do Líbano, continuam Chevalier e Gheerbrant (1982), fazem dele um exemplo de grandeza e de força e, como todas as árvores coníferas, caso do cipreste, que conservam a folhagem verde no Inverno, é símbolo da incorruptibilidade. Lê-se: «A que hei-de comparar a tua grandeza? Eis a um cedro do Líbano de belas ramagens, de folhagem espessa, de alta estatura, cujo cima se eleva por entre as nuvens». (Ez 31,3). Cristo, terminam Chevalier e Gheerbrant (1982), é representado, por vezes, no centro de um cedro, representando a sua vitória face à morte. O poço tem um carácter sagrado em todas as tradições. Chevalier e Gheerbrant afirmam que o poço «realiza como que uma síntese das três ordens cósmicas: céu, terra, infernos; dos três elementos: a água, a terra e o ar; é um meio vital de comunicação». (1982, p. 532). Para os povos em que a água é quase um milagre, caso dos Hebreus, o poço simboliza a abundância e a fonte da vida. O poço de Jacob, onde se encontraram Cristo e a Samaritana, continuam os autores, significa a água viva e que jorra e, por tal, é fonte de vida e de conhecimento. Jacob chegou à terra dos filhos do oriente. «Olhando em redor, viu um campo ao lado de um poço junto do qual estavam deitados três rebanhos». (Gn 29, 1-2). 161 O girassol, na China, dizem Chevalier e Gheerbrant (1982), é o alimento da imortalidade e o seu nome, gira-sol, diz bem do seu carácter solar. O girassol representa o Sol quer pelo nome, quer pelo formato e cor (dourado e castanho) da sua flor. O cipreste é uma árvore sagrada para muitos povos, devido à verdura persistente de seus ramos e folhas, como o cedro, atrás referido. É a árvore dos cemitérios em todo o Mediterrâneo, escrevem Chevalier e Gheerbrant (1982), por força da sua resina incorruptível. Por isto e pela folhagem persistente evoca a imortalidade e a ressurreição. Orígenes, continuam os autores, escreveu que o cipreste tem um cheiro muito bom, o cheiro da santidade. As sociedades secretas da China, «colocam-no à entrada da Cidade dos Salgueiros ou do Círculo do Céu e da Terra». (1982, p. 201). O templo de Jerusalém tinha revestido «com madeira de cedro todo o interior e [Salomão] cobriu o pavimento com tábuas de cipreste». (1Rs 6,15). Foto 63: o girassol. Painel de azulejo, igreja de Nª Sª da Lapa. 2015. A rosa é famosa em todo o Ocidente pelo seu perfume, forma e beleza. É a flor feminina por excelência e terá sido por esta razão que Umberto Eco chamou ao seu romance «O Nome da Rosa». No conjunto, dizem Chevalier e Gheerbrant (1982), corresponde à flor lótus na Ásia e ambas se aproximam do simbolismo da roda. Na iconografia cristã, continuam os autores, «a rosa é quer o cálice que recolhe o sangue de Cristo, quer a transfiguração das gotas de sangue, quer o símbolo das chagas de Cristo». A rosa mística, continuam, «evoca, quer o Graal, quer o orvalho celeste da Redenção». (1982, p. 575). A rosa, branca ou vermelha, é uma das flores preferidas dos alquimistas. Também na Bíblia: «Eu sou a rosa de Saron, uma açucena dos vales». (Ct 2,1). A oliveira tem significado semelhante em todos os países orientais e europeus. Tem uma enorme força simbólica, afirmam Chevalier e Gheerbrant: «paz, fecundidade, purificação, força, vitória e recompensa». (1982, p. 486). No Japão, seguindo estes autores, a oliveira simboliza a amabilidade; no Islão, é a árvore central, o eixo do 162 mundo. Na idade Média, era o símbolo do amor e do ouro. Segundo uma lenda antiga, dizem Chevalier e Gheerbrant (1982), a cruz de Cristo era de madeira de oliveira e de cedro. Não se pode desligar da oliveira o simbolismo do azeite, fruto do seu fruto. Em toda a sociedade tradicional, pelo menos católica, o azeite possuía um carácter sagrado por alumiar, permanentemente, o Santíssimo Sacramento, numa lâmpada pendente do centro do arco do altar-mor das igrejas. Para além de constituir um indicador de riqueza. Família que tivesse azeite para todo o ano era considerada família rica. Como se lê: «certo dia, as árvores puseram-se a caminho para ungir um rei que reinasse sobre elas. Disseram à oliveira: reina sobre nós. A oliveira respondeu; achais que vou deixar o meu azeite, que honra deuses e homens, para ficar balançando sobre as árvores»? (Jz 9,8). A porta abre-se para o desconhecido, para o mistério. A porta, escrevem Chevalier e Gheerbrant, é o lugar de passagem entre dois mundos em oposição: conhecido, desconhecido; luz, trevas. Estes autores afirmam que «a passagem da terra ao céu efectua-se pela Porta do Sol, que significa a saída do cosmos, para além das limitações da condição individual». (1982, p. 538). Assim, porta do céu será a porta que convida à passagem do domínio do profano para o domínio do sagrado, para a entrada no céu. É o que acontece, escrevem Chevalier e Gheerbrant, com o portal das catedrais, dos torana hindus, das portas dos templos ou cidades khmeres, dos torii japoneses, etc.». (1982, p. 537). Na construção da Torre de Babel, Javé disse: «vamos descer e confundir a língua deles…»; «Assim disse Javé: o céu é o meu trono e a terra é o apoio para os meus pés». (Gn 11,9; Is 66,1). No recinto sagrado existe sempre uma porta, diz Eliade (1956), que serve para os homens subirem ao céu e aos deuses descer dele. Por seu lado, Humphrey e Vitebsky (1998) afirmam que portões e aberturas indicam a passagem entre uma e outra espécie de espaço. Analisemos o espelho da justiça através das duas palavras que o compõem: espelho e justiça. O espelho, afirmam Chevalier e Gheerbrant (1982), reflecte a verdade e a sinceridade, o conteúdo do coração e da consciência. Como diz a expressão popular: «os olhos são o espelho da alma». O espelho, continuam os autores, é «símbolo da manifestação que reflecte a inteligência criadora; é também o do intelecto divino que reflecte a manifestação, criando-a, como tal, à sua imagem». (1982, p. 301). Por reflectir a inteligência divina, o espelho á apresentado, também, como símbolo solar e lunar. Tal 163 como a superfície da água, o espelho é utilizado na adivinhação, como mostra o espelho da madrasta do conto «Branca de Neves e os Sete Anões». A justiça, escrevem Chevalier e Gheerbrant (1982), representa a vida eterna; ainda, «o equilíbrio das forças desencadeadas, as correntes antagonistas, o resultado dos actos, o direito e o haver». (1982, p. 392). O seu símbolo é o número 8 (oito) que, deitado, é o infinito. Como afirmam estes autores, o oito é, universalmente, o número do equilíbrio cósmico. Assim, o espelho da justiça representará a inteligência criadora divina que colocou ordem no caos inicial dos tempos, o que se pode ler em Gn 1,1ss: «no princípio criou deus o céu e a terra». A estrela de manhã, estrela dos pastores e estrela d’alva, é o planeta Vénus, um planeta muito importante nas civilizações meso-ameríndias, nomeadamente entre os Maias e os Astecas. Vénus segue o percurso diurno do Sol, precedendo-o, pelo que é considerado a mensageira do Sol e, por este facto, escrevem Chevalier e Gheerbrant (1982), considerado um intercessor entre o Sol e os Homens. Já para os Sumérios, continuam os autores, «Vénus era aquela que mostra o caminho às estrelas. Deusa da tarde, favorecia o amor e a volúpia; deusa da manhã, presidia aos actos de guerra e de massacre […] É o astro da arte e da acuidade sensorial, do prazer e do divertimento […] Está ligado aos afectos de atracção voluptuosa e do amor, que nascem da apetência orgânica do lactente ao contacto com sua mãe, e prolongam-se até ao altruísmo sentimental». (1982, pp. 681-682). Esbatido este carácter voluptuoso, a estrela da manhã, stella matutina é Maria, aquela que é guia até ao seu filho-deus. É a mãe amorosa, da harmonia e da doçura. Na Bíblia lê-se: «como é que caíste do céu, estrela da manhã, filho da aurora? Como é que foste derrubado, agressor das nações»; «enquanto os astros da manhã aclamavam…» (Is 14,12; Job 38, 7). A Lua tem o seu simbolismo ligado ao Sol; a sua manifestação apenas acontece em correlação com o Sol. Por um lado, porque é privada de luz, sendo reflexo da luz solar; por outro, porque tem fases diferentes, quatro – Lua Nova, Quarto Crescente, Lua Cheia, Quarto Minguante - e mudar de forma. Por estas razões, dizem Chevalier e Gheerbrant, a Lua simboliza a dependência e o princípio feminino, «bem como a periocidade e a renovação». (1982, p. 418). Os israelitas, que seguiam um calendário lunar, no primeiro dia de cada mês ofereciam a Javé «dois bezerros, um carneiro e sete cordeiros de um ano, todos perfeitos». (Nm 28, 11-14). 164 A Lua é símbolo, continuam os autores, do tempo que passa, o primeiro morto e fonte e símbolo da fecundidade. Paralelamente, a Lua é simboliza todos os cultos ligados à Grande Mãe. Ainda, a Lua, afirmam Chevalier e Gheerbrant, «é também o símbolo do sonho e do inconsciente, bem como dos valores nocturnos». (1982, p. 421). A lua nova aparece no A.T.: «o pórtico do pátio interno, que dá para o Oriente, ficará fechado nos seis dias de trabalho, mas ficará aberto no sábado e no dia da lua nova»; «David respondeu: amanhã é lua nova, e eu deveria jantar com o rei». Ainda, «a Lua para governar a noite, porque o seu amor é para sempre». (Ez 46, 1; 1Sm 20,5; Sl 136, 9). Foto 64: Sol, painel de azulejo da Igreja de Nª Sª da Lapa. 2105. O Sol é uma manifestação da divindade e, escrevem Chevalier e Gheerbrant, pode ser concebido como filho do Deus supremo e irmão do arco-íris […] Os seus raios representam as influências celestes – ou espirituais – recebidas pela terra». (1982, p. 610). O Sol é fonte de a luz que ilumina, aquece e dá vida. O Sol é a própria vida. David escreveu: «Ele manifestará a tua justiça e o teu direito como o meio-dia». E «o Sol para governar o dia, porque o seu amor é para sempre». (Sl 37,6; 136,8). Em resumo, a palmeira é símbolo da árvore da vida e da victória. O cedro é símbolo de incorruptibilidade e foi uma das madeiras da cruz de Cristo. O poço de Jacob significa a água viva e que jorra e, por tal, é fonte de vida e de conhecimento. O girassol representa o Sol. Uma hipóstase vegetal do deus. O cipreste, da imortalidade, da ressurreição e da santidade. A rosa mística, além de simbolizar o feminino, é o cálice do sangue redentor de Cristo. Ainda, A oliveira simboliza a paz, a fecundidade, força, vitória, recompensa e uma das madeiras da cruz de Cristo. A porta do céu simboliza a passagem do domínio do profano para o domínio do sagrado, do místico. O espelho da Justiça simboliza a inteligência criadora e dominadora divina que criou ordem no caos. A Estrela da manhã é o planeta Vénus. No catolicismo, Vénus é Maria, que se apresenta como a mãe 165 amorosa e doce, que mostra aos homens o caminho até ao seu filho. A Lua é símbolo dos valores do feminino, da fecundidade e nocturnos. O Sol é o filho de Deus, que a tudo e a todos dá a vida e por todos deu a vida. Quadro : os 12 painéis de azulejos da Igreja de Nª Sª da Lapa. Direita Esquerda Palmeira Oliveira Cedro Porta do Céu Poço de Jacob Espelho da Justiça Girassol Estrela da manhã Cipreste Lua Rosa Mística Sol Domínio do elemento terra. Correspondência Bom futo, bom óleo. Sombras refrescantes. Ramos de alegria (Domingo de Ramos). A madeira do cedro é eterna. A porta do Céu é, com certeza, de madeira de cedro. Ambos são espelho: a água do poço e o espelho. Ligados ao Sol e ao dia. A flor do Sol e a sua anunciadora. Ligados à noite e à morte (cemitério). A rosa é o cálice do Graal. O Sol é o símbolo maior de Cristo. Domínio do elemento ar/ céu. Correspondência Analisemos sentido e número dos painéis de azulejos. A direita aparece, quase sempre, com conotação positiva, enquanto a esquerda, com conotação negativa. Cremos que houve uma evolução semântica, com o catolicismo, que usou o termo latino sinistra, significando esquerda, para o tornar sinónimo de algo obscuro, perigoso, diabólico. Na Bíblia, o defensor coloca-se à direita. No Juízo Final, para a direita irão os Eleitos, enquanto os condenados irão para a esquerda. Na Idade Média, e com a carga negativa colocada na mulher, a introdutora do pecado no Mundo, o lado esquerdo, dizem Chevalier e Gheerbrant (1982), seria o lado feminino e o direito, masculino. A esquerda seria, pois, feminina, nocturna e satânica, por oposição à direita, masculina, diurna e divina. No Ocidente cristão, continuam os autores, a direita tem um sentido activo e significa o futuro, enquanto a esquerda é passiva e significa o passado. Por tudo isto, na aldeia portuguesa, até há bem pouco tempo, os filhos com tendência a usar a mão esquerda, eram educados levando fortes palmadas nessa mão e braço. São doze os painéis, divididos em duas séries de seis. O número 6, no Apocalipse, é o número do pecado. Mas, nos contos de fadas, escrevem Chevalier e 166 Gheerbrant, o número 6 «é o homem físico sem o seu elemento salvador», não podendo, por isso entrar em contacto com o divino. Na Antiguidade, o número 6, continuam, «era dedicado a Vénus-Afrodite, deusa do amor físico». Seis foram os dias da Criação. O número 6 exprime-se na estrela (de seis pontas) de Salomão. Para os sucessores dos Maias, seis é um número feminino e sete, masculino. (1982, p. 591). Face ao significado do número 6, o construtor pretenderá a utilização do 12 (6 + 6). O número 12, afirmam Chevalier e Gheerbrant, «simboliza o Universo na sua evolução cíclica espaço-temporal […] e o Universo na sua complexidade interna». O doze é o produto dos 4 pontos cardeais pelos 3 planos do mundo. Em definitivo, terminam os autores, o 12 é «o número de uma realização, de um ciclo que se fecha». (1982, p. 272). Por isso é que o número 13 é o do azar, pois inicia, abre, um ciclo, não o fechando. Antes de tudo, há repetição do significado dos símbolos escolhidos, o que indica da intencionalidade da escolha, bem como do local de colocação. São 4 árvores: duas com bom fruto e óleo, duas sem fruto, mas de boa madeira para a construção; duas do masculino e duas do feminino. São 2 flores: uma do feminino, outra do masculino. Somam 6 elementos vegetais. Há 1 elemento água, que é masculino (poço) e feminino (água); mas, sendo poço de Jacob, predominará o masculino. Espelho do Céu é masculino, mas costuma aparecer associado a Maria. Porta do Céu é feminino e também associado a Maria. São 3 astros: dois do feminino e um do masculino; a noite, o dia, e a aurora. Se tomarmos os 2 «céu» e os 3 astros, somam 5 elementos ar. Predomina o elemento vegetal, que é feminino, que é a terra, que é a Deusa-Mãe. Há correspondência do símbolo da direita com o correspondente da esquerda, como indicamos no quadro. Também correspondência parece haver em cada grupo de seis. Tendo em conta cada grupo de seis, estar-se-á perante a hierogamia (casamento divino) entre a terra e o céu/ar. Dir-se-á que é tudo coincidência. A coincidência é um propósito, não um acaso. Coincidência e acaso são faces visíveis do arquétipo. Arquétipo é, como atrás se explicou, um modelo cultural, de séculos, que impõe um comportamento individual e colectivo, sem se perceber bem porquê, pois é algo que condiciona o inconsciente. 167 6. Conclusão A ermida/ capela/ igreja de Nossa Senhora da Lapa, no culto e no lugar, sucede, a um culto dedicado à deusa-mãe, muitos séculos mais antigo. Neste culto, eram praticadas orgias, alimentar e sexual, como o culto de Pã, que tinham lugar nos campos ao seu redor. Estes cultos pretendiam conseguir fertilidade dos campos e a fecundidade dos gados e, principalmente, a fecundidade da mulher. O ritual último era chamado de «Festa das Ervas» e realizar-se-ia na Quinta da Laje e na encosta da Serra do Marco. Esta festa, as festas e cultos de Santo António e São Sebastião, a par dos topónimos envolventes a esta zona, casos de Falagueira, Mães d’Água, Praceta da Conceição, são a prova. 168 15.7. TOPONÍMIA DA AMADORA A Língua Fenícia, Cartaginesa e Lusitana na Região «Em 2014, uma escavação em Lisboa encontrou a prova definitiva: escreveu-se em fenício na fachada atlântica da Europa durante a Idade do Ferro». Gonçalo Pereira, National Geographic, Junho de 2016, p. 49. 1. Toponímia A toponímia é o estudo dos nomes na sua origem e significado. Santo (1988, 1989, 1993, 2004) tem dedicado muitos estudos ao tema, apostando na origem cananitafenício-cartaginesa-lusitana de centenas de nomes espalhados pelo território português.«A primeira língua da Hespanha foi o caldaico», afirma Maria L. C. Buescu e o espanhol Jose Ramon Onega afirma um passado hebreu para a Galiza, ambos citados por Santo. (199, p. 42). Almeida (2013) afirma que o primeiro povo da Península Ibérica, os Iberos seriam hebreus, pois eibri, em hebraico antigo, significa hebreu. A tese oficial é a de que os Lusitanos esqueceram a sua língua e Santo afirma que tal só poderia ter acontecido se, por castigo de Deus, os Lusitanos fossem alvo «de uma paralisia cerebral colectiva». (1993: 56). Por seu lado, Costa cita J. M. Piel que afirma: Embora evidentemente não se possa precisar o período exacto em que o latim falado na antiga Lusitânia atingiria tal grau de transformação que merecesse a denominação de português, não há dúvida que, pelo menos, dois séculos antes do ano 1100 o idioma do futuro Condado Portugalense apresentava fonética e lexicalmente maiores afinidades com o português de hoje do que com o latim falado no tempo da colonização romana. (in Biblos, XXII, 1946: 371372). (s.d., p. 2). É possível ter havido uma língua única, pelo menos numa vasta região, como se pode deduzir do episódio «Torre de Babel»: e era toda a terra de uma mesma língua e de uma mesma fala. […] E o Senhor disse: Eis que o povo é um, e todos têm uma mesma língua; e isto é o que começam a fazer; e agora, não haverá restrição para tudo o que eles intentarem fazer. Eia, desçamos e confundamos ali a sua língua, para que não entenda um a língua do outro. (Gn 11, 1-7). Esta possibilidade torna-se mais provável se se pensar que a diferenciação/ maldição lançada por Javé pode ter sido apenas o diferente sibilar das diferentes línguas orientais, como acontece em Portugal e refere Almeida (2013): sacho, xaxo, txatxo, para Lisboa, Guarda e Mangualde. Algo visível na Bíblia, como escreve o autor: 169 porque tomaram os gileaditas aos efraimitas os vaus do Jordão; e sucedeu que, quando algum dos fugitivos de Efraim dizia: Deixai-me passar; então os gileaditas perguntavam: És tu efraimita? E dizendo ele: Não, Então lhe diziam: Dize, pois, Chibolete; porém ele dizia: Sibolete; porque não o podia pronunciar bem; então pegavam dele, e o degolavam nos vaus do Jordão; e caíram de Efraim naquele tempo quarenta e dois mil. (Jz 12, 5-6). Contrariando o método filológico clássico, que considera uma fraude, tal como Almeida (2013), Santo (1993, 2004), propõe o método etnológico de Victor Berard, por ser um método do terreno, ao qual acrescenta a regra da constelação de nomes. O método etnológico exige obediência a três sistemas: sistema verbal (correspondência fonética); sistema local ou geográfico (o nome refere o relevo, os cursos de água …) e o sistema histórico ou lendário (referências históricas ou míticas). Embora este seja um método «inovador e rigoroso», continua Santo, há muitos nomes que escapam a este método, pois muitos nomes há que se referem a uma «actividade social, religiosa … sem relação com a geografia, e sem ter deixado rastos históricos ou mitológicos». Por isso, acrescenta, a regra da constelação de nomes: «a significação do nome estará garantida quando ela tiver relação com a significação dos nomes em volta». (2004, p. 352). Uma constelação pode comparar-se com outras de outras regiões, pois os topónimos são repetitivos. Por fim, Santo alerta para algumas ideias a ter em conta: (i) «A nomeação dos sítios tem origem na oralidade […] há que interpretá-los dentro dos respectivos contextos». (ii) «Os nomes dos sítios são tão estáveis como as sociedades que os utilizam, e insubstituíveis porque são referências indispensáveis à vida quotidiana». (iii) Os nomes são transmitidos de geração em geração. «São imorredouros». (iv) «Para interpretar a origem do nome, a pronúncia local deve prevalecer sobre a expressão escrita, mesmo que esta conste em antigos documentos». (v) «Os nomes dos sítios são como os das pessoas: não mudam ao sabor das modas linguísticas, económicas ou políticas». Isto só veio a acontecer recentemente. Embora o Marquês de Pombal tenha dado o nome de Praça do Comércio, continua a ser chamado de Terreiro do Paço; quanto ao Rossio poucos o conhecem por Praça de D. Pedro IV, e o Areeiro não é conhecido por Praça Francisco Sá Carneiro. 170 (vi) Particularmente, «o caminho teórico de partida foi o Etno-História das Religiões porque as tradições religiosas locais são o que há de mais estável nas culturas». (2004, pp. 352-355). Por seu lado, Almeida afirma que a origem fenícia de centenas de vocábulos portugueses prova-se pela etimologia, «pela análise da toponímia, pela decifração da escrita do sudoeste e pela compreensão das lendas que por vezes parecem absurdas». (2013: 9). No que respeita à toponímia, Santo e Almeida têm as mesmas ideias, mas com uma pequena diferença, a que diz respeito à fitotoponímia. Santos escreve que os rurais, os inventores da toponímia não urbana, não baptizam os locais pela vegetação, que não individualiza, mas por um nome que a possa individualizar. Figueira, pereira, rosmaninho não individualizam, pois são plantas e árvores generalizadas pelo país e Ocidente; logo, se o nome não individualiza, tem de ser outra a explicação para ele. Almeida considera haver excepções na fitoponímica. Não são, no entanto, escreve o autor, «e por via de regra, topónimos que designem regiões vastas, rios, serras, etc. […] correspondem à designação de pequenos acidentes». São nomes efémeros e não sobrevivem ao abate da planta. (2009, p. 14).Quando não expressa, a fonte utilizada, para apresentar o significado do nome, é Santo (1993), Dicionário Fenício-Português. 2. Topónimos da Amadora A Carta Topográfica de Portugal, 7 (1930), Amadora, apresenta 202 topónimos. Destes, «Quinta» aparece 60 vezes (24%), «Casal» (16,%), «Moinho» (6%). BAIRRO: vem de b ary ou b ary ay (barrio, barraio), escreve Santo, significando nos parentes, na vizinhança, entre vizinhos de todos/ de qualquer um. Isto é, «lugar de habitação do povo», «lugar de habitação da parentela». (1989, p. 255). CASA: vem de ksu (casu), escreve Santo (1989), e significa «trono, estrado, dossel». Ksy, significa cobrir-se. Kasah, significa «cobertura», sendo sinónimo de quinta e tapada. CASAL: casal é o mesmo que catraia: este é utilizado na Beira, aquele, a Sul. Catraia, escreve Santo (1989), vem de kryt aya e significa povoação, povoação vulgar, lugarejo. 171 QUINTA: vem de kin nht (quineta), diz Santo (1989), e significa fixar residência, trono, lugar de repouso. Próximos são kínetu, local fechado; qym nth, inimigos afastados; kin tat, fixar as ovelhas. Almeida (2013) escreve que vem de kinu (kine), significa jardim, horta + t’h (têâ), significa demarcar, linha de separação. Quinta vem pois de kinut’h (quinetêâ), jardim/ horta delimitado/a. Utilizando Santo (1993) é possível ver ligação entre quinta e família. Ver casa. RUA: não vem do latim ruga, que significa ruga. Almeida (2013) escreve que rua, como rossio, deve vir de rwh, que significa espaço, desafogo. Contudo, continua o autor, rwh (rô) é próximo de arh e arhu (arre), que significam caminho. Ao princípio, estaria apenas ligada à ideia de espaço exterior, como hoje, quando se diz a alguém: «rua», «põe-te a caminho». 2.1. Quinta da Laje, um/o Centro A Quinta da Laje deve o seu nome, escreve Silva (2005b), ao facto de ter aí existido uma pedreira aquando da construção do Aqueduto das Águas Livres, «relativamente perto da capelinha de Nossa Senhora da Conceição da Lapa». A Amadora teve várias pedreiras, tem mais do que uma Laje, mas não há modo de ligar laje a pedreira. Laje, segundo Santo (1989), vem de lh e significa «mensagem, lei». Local onde eram afixadas, lugar onde eram lidas as mensagens ou leis. Quinta da Laje, como ficou escrito no capítulo anterior, foi local de culto da Deusa-Mãe, culto que tinha o seu centro na orgia alimentar e sexual de antigos cultos denominados pagãos. Este culto realizava-se no vale e na encosta da Serra do Marco. Neste local realizou-se até finais do século XIX, talvez até inícios do século XX, a «Festa das Ervas», que tinha residuais desta orgia, casos do comer e beber à tripa forra, cantar e bailar e fazer o rebolão. Quinta vem de kin nht (quineta), e significa trono. Marco vem de makum (lugar, povoação). Ambos reforçam a nossa afirmação. Nossa Senhora da Lapa, a par da Senhora dos Prazeres é uma cristianização deste culto pagão. Laje, Lapa, Rocha e Gruta são sinónimos e significam a humidade e o sombrio, a par da segurança, uterinos. Fazendo da Quinta da Laje e de Nossa Senhora da Lapa o centro desta análise, estudemos os topónimos próximos que, a estarem em constelação, confirmam Quinta da Laje e Nossa Senhora da Lapa, enquanto se interconfirmam. 172 Falagueira, não pode ser uma «terra amena, aprazível, agradável, serena», como escreve Neves (1991, p. 23), pois centenas de locais semelhantes haverá e não se denominam de Falagueira. Não há individualização, logo, terá de ser outra a explicação. Falagueira, escreve Silva (2005c), vem de dois vocábulos: «fala» e «geira». Geira é o nome romano dado aos seus caminhos e estradas. Falo é um dos deuses romanos, continua o autor, que simbolizava «a força reprodutiva da natureza». Falagueira seria o caminho para o falo, para o local do culto do falo. Falo que seria um menir de granito como ainda hoje é fácil de encontrar à porta de grandes casas senhoriais agrícolas, caso da de Carnide, que tem 12 pequenos menires fálicos ao longo de toda a frente. Seria o culto de Pã, que é, como se disse, a diabolização cristã do culto do falo. Certo é que existe o local Paiã, na Pontinha. Mães-de-Água significa o local de abundância de água. Local onde a água nasce. Mãe da Água é a mãe que mata a sede aos seus filhos. Este local húmido, lameiro, confunde-se com a Quinta da Laje e com o vale da Serra do Marco. Humidade que tem a ver com o matar a sede e, igualmente, como ficou dito, com a humidade uterina. Marco, escreve Santo (1988), vem de makom, que significa lugar, o lugar, povoação. Há pois a delimitação e a individualização do lugar, o que lhe confere destaque e importância. Porcalhota aparece na litografia de Luiz (1841). Tem uma ribeira, com ponte com o seu nome, a Oriente. A Norte, segue a estrada de Belas; a Ocidente, a estrada de Sintra. Para além da Porcalhota, há casas no Monte da Venteira, no Casal dos Álamos e na Quinta das Quintelas. A Ribeira das Quintelas separa o que será Amadora de Queluz. Foto 65: a Porcalhota segundo Pinho Leal, p. 202. Porcalhota, diz Silva (2005e), deve o seu nome ao sobrenome de Sebastina, filha de certo Leitão, irmã de Isabel Leitoa, segundo documento de casamento e herança do Morgado da Falagueira, datado de 29 de Julho de 1636. De Leitoa, o povo começou a apelidá-la de Porcalhota. Uma mudança difícil de aceitar, pois Leitão e Leitoa é apelido antigo e actual. 173 Para Neves (1991), Porcalhota significa lugar, aldeia muito suja. Um significado actual, mas milhares de aldeias portuguesas eram sujas. Simões afirma que Porcalhota quer dizer povoação «lavada de ares». (1982, p. 26). O facto de queremos que nossa terra tenha origem nobre e lavada, a qualquer preço, conduz a esta interpretação. Por seu lado, Gomes (2000) afirma que Porcalhota vem do apelido do proprietário destas terras, que era Vasco Porcalho, século XV, e da sua filha herdeira, de alcunha Porcalhota. Foto 66: Bordalo Pinheiro: a política, a grande porca. «A Paródia». De www.google.pt. O porco, afirmam Chevalier e Gheerbrant (1982), simboliza, de forma quase universal, a sofreguidão e a voracidade, mas a porca, rivalizava com a vaca como símbolo deificado da fecundidade e da abundância. A deusa egípcia Nut, deusa do céu, era irmã e esposa de Geb, deus da terra. Foi mãe de Osíris, Seth, Ísis e Néftis. Era filha de Shu (deus do ar) e de Tefnut (deusa da humidade). Era representada tanto como uma vaca, como uma porca. Permaneceu mais a forma de vaca e mulher, certamente pela evolução semântica de porca que, de mãe alimentadora, passou a símbolo de sujidade. Divindade Selénica, continuam Chevalier e Gheerbrant (1982), «a porca é a mãe de todos os astros que ela engole e cospe, alternadamente, conforme sejam diurnos ou nocturnos, para os deixar viajar pelo céu». (1982, p. 537). Bordalo Pinheiro desenha a porca da política que todos alimenta. O mealheiro tinha a forma, generalizada, de porco(a), não havendo qualquer conotação com a sujidade, antes com a poupança, um dos mais altos valores aldeões. Santo (1988, 1989) analisou centenas de nomes e «constelações» de nomes de origem fenício-cananita e apresentou os seus significados. Alguns destes topónimos 174 aproximam-se dos que aqui tratamos. Afirma o autor (1989) que Laje significa «mensagem, sentença, lei»; Venda do Porco, bnt pârak, gente/ coisa/ lugar sagrado; Porqueira, prk ary, santuário da povoação; Serra do Porco, parok, objecto/ lugar sagrado; Vale do Porco, bal paroku, senhor do santuário; Marco, lugar/ o sítio (povoação). Face ao exposto, pensamos que Porcalhota foi local com templo e/ou dedicação, à Deusa-Mãe, Nut, na hipóstase de porca. Porcalhota tem, assim, a DeusaMãe no seu nome e num culto local. Foto 67: deusa Nut, cerca de 600 a. C., de: http://www.ebah.pt/content/ABAAAAmIgAF/ mitologias?part=10 3. Outros Topónimos A-da-Beja é um nome que remonta ao século XVI e significará, escreve Silva, «quinta da Madre que veio de Beja». (2006b, p. 3). A significa «pequena comunidade», «pequena aldeia», pelo que A-da-Beja significa a aldeia/ comunidade de Beja. Beja, seguindo Santo (1993), virá de besh (lama, lodo, lodaçal). Assim, A-da-Beja é a Aldeia no lodo, no lodaçal; pequena aldeia do lodaçal. A-da-Maia: poderá ser A-Damaia. Virá de dm’, que significa «derramar lágrimas, chorar»; ou de dm/ dam, que significa «sangue, crime, homicídio». Significa: a aldeia, o povoado onde se chora o deus Adónis. Adónis é o deus que todos os anos morre com a vegetação e com ela ressuscita. Ver Damaia. Adaiões (Borel), para Silva (2006g), era terra de um certo Deão, cabido da Sé. Se Adaiões for o mesmo que Adães, Santo (1988) escreve que vem de aham (gentes). Significa o local onde moravam os gentios, os indígenas; ou o local onde se morou. No século XI, continua o autor, pronunciava-se adalanes. Adaiões significará o local onde moraram os autóctones. Alfornelos significa, escreve Neves (1991), terra de abundância de ervilhaca. Silva (2000a) escreve que os mouros estiveram na Amadora, como atestam os nomes árabes Alfornelos e Alfragide. Alfornelos, afirma Silva (2007d), é de origem árabe, terra de fornos e forneiros. Segundo a wikipedia (2015), Alfornelos vem do árabe Al-Forner, que significa forneiro. Ora, Santo (1993) afirma que dizer que al vem do árabe não passa de um cliché. Como se escreveu, al é alu (povoação, castelo, mansão; parentela, 175 gente da mesma linhagem). Al (povoação, castelo, mansão; parentela, gente da mesma linhagem) + phr (acordo, conluio, assembleia, reunião) + nhlh (propriedade, herança, possesso. Significa: parentela cuja herança foi decretada em assembleia. Alfragide, ou Alfarragide, escreve Silva (2005d), não será árabe, como disse em (2000a), mas de origem romana. A infopédia (2015), informa que Alfragide é um topónimo que parece vir do latim moçárabe alfragitus, com o possível significado de «rochoso». Utilizando o dicionário de Santo (1993), Al significa «castelo, povoação, parentela»; pr’, «banhar-se, primeiro ramo, primícia, prosperar, frutificar»; gd, «coriandro, açafrão». Propomos para Alfragide o significado de povoação, pequena comunidade onde há «banhos em água com coriandro». Talvez termas. O coriandro é recomendado para ajudar a digestão, ajudar ao sistema hepático e à expulsão de gases do aparelho digestivo, o que, por si só, justifica a existência de umas termas. Alto da Cabreira: cabra, escreve Santo (1989), vem de krb (carba) e significa cântaro, recipiente. Almeida (2009) escreve que cabra vem de qabru (sepulcro), qbr (sepulcro), qbr (sepultar), qebêru (sepultar). Significa: colina das sepulturas. Alto Maduro não tem a ver com o facto de o trigo nascer mais cedo, afirma Silva (1996a), mas por aí ter existido uma capela, mandada construir no século XVII pelo padre João Maduro, que a abria ao povo e aparecendo a expressão «vou à missa ao Alto Maduro». E antes de haver missa e capela? Seguindo Santo (1993), Maduro pode vir de Maduru, que significa abrir regos. Possivelmente, abrir regos adequados a uma diminuição dos estragos causados por chuva torrencial. Poderá vir, também, de alt (suporte, peanha) + madu (numeroso, muito; multidão) + tu (isso, aquilo, fórmula de esconjuros, encantamento). Significará: lugar onde são numerosos os encantamentos, os esconjuros. Amadora, escreve Silva (2007f), significa o homem amigo do campo. Neves (1991) escreve que significa terra digna de ser amada. Quem escolheu o nome foi José Cardoso Lopes. Escreve Lopes que pediu a amigos do partido franquista para que o nome de Porcalhota fosse mudado. Estes disseram-lhe para escolher um nome. Diz ainda que «Amadora, nome bastante agradável e que eu fui buscar nos conhecimentos que tinha da Quinta de Santo António da Amadora, no local da estação e do prédio Simões Carneiro. Assim apresentei este nome que foi bem aceite e com o qual se fez o requerimento». (1989, p. 47). 176 Utilizando Santo (1993), am significa «mãe, madrasta», avó; dr, «família, geração»; dr’, «braço, semear, disseminar». Propomos para Amadora o significado «da família da mãe» ou «disseminaram a partir da mãe», «o braço que vem da família da mãe». O que nos leva ao tempo do matriarcado, isto é, antes do Neolítico (10.000 a.C.). Arneiro, escreve Barros (2010), era a parte do pátio onde se descarregava o milho e se fazia a desfolhada. Continuando com Santo (1993), vem de ar (luz, brilhar, iluminar) + nhr (rio, deus Naharu, Jorrar, brilhar). Lugar onde brilha o deus Naharu. Bairro das Fontainhas foi construído, afirma Silva (1996b), nos finais do século XIX, princípios do século XX. Segundo Santo (1988), Fontainha é de origem fenício-cananita, pnt’ ny, e significa «lugar de suplícios ou de ordálias». A ordália era um julgamento que não visava apurar o culpado, antes servir de exemplo. Significa: lugar de morada do povo das ordálias; lugar onde são feitas as ordálias. Bairro de Santa Filomena, escreve Silva (1994b), existiu uma fábrica, que mudou para lar. A capelinha aí existente tinha o orago de Imaculado Coração de Maria. Bairro do Bosque, escreve Silva (1998, 2000c), deve o seu nome o ter sido levantado onde era a quinta do Bosque. Existia já em1758-1766, quando foi edificada a capela de Santo António. Almeida (2013) escreve que vem de b’sq’l, caindo o l final (bosque bravio, bosque danhinho). Lugar do bosque bravio, do bosque daninho. Bairro do Burrel, Burel, Borel, escreve Silva (1994b) significa roupas de pano de lã grossa, que ali seriam confeccionadas. Hoje, Borel tem este significado. Para Santo, Borel, Burrel vem do fenício «bôr ely», que significa «buraco, fundo». Bairro, como se escreveu atrás, vem de b ary ou b ary ay (barrio, barraio), escreve Santo, significando nos parentes, na vizinhança, entre vizinhos de todos/ de qualquer um. Isto é, «lugar de habitação do povo». (1989, p. 255). Buraca já existe no século XVIII, com o nome de Quinta das Buracas, escreve Silva e pode significar casas pequenas e pobres. Derivará do latim «forage» ou «foramen», que significa «buraca, cova, abertura». Buraca significará, então, «povoação construída num baixio […] onde, em tempos, terão existidos minas ou pedreiras». (2006g, p. 3). Buraca não pode derivar do latim, porque buraca é português, e não há possível evolução de forage para buraca. Buraca, se for vocábulo de origem feníciocananita, Santo (1989) propõe o significado de «Luz», «Ressurreição». Em 1988, o autor diz que buraco é decalque do hebraico bouhac (brilhar no escuro, isto é, 177 ressurreição). Assim, as covas e aberturas não seriam casas, mas sepulturas escavadas na terra ou na rocha. Assim, Buraca significa lugar das sepulturas. Carenque, também Caraque, segundo Silva (2005f), provém de Ca (lugar) + ara (sacrifícios) + que (dos). Um nome latino. Significa: lugar dos sacrifícios. Casal da Boba não tem a ver com bobos, escreve Silva (2006h), mas por ser local de boa produção de abóboras, popularmente, «abobra». Por corruptela, continua, «cai o r de Abobra, tendo passado a pronunciar apenas Aboba e depois Boba. Mas só haveria abóboras neste local? Mais, a abóbora, do semear ao colher, dura três meses, tempo irrisório na toponímia. Casal do Capucho: Almeida escreve que vem de côbo (capacete) ou mais provável de kubsu (chapéu, turbante). Casal do Castelo: Santo (1989) escreve que vem de kt’ly (estrado, assento). Casal da Charca: Barros (2010) escreve que charca é um charco de água estagnada. Santo (1989) diz que vem de skr (falar). Casal do Costa: Almeida (2013) diz que vem de qsh t’h (traçar uma linha, demarcar extremidade, fim, limite, margem, borda, beira, lado). Casal da Freira: Santo (1988) diz que significa ferreiros, fenraria. Casal da Gaga: Barros (2010) diz que gaga é uma pega. Seguindo Santo (1993), vem de gagu (convento, claustro). Casal do Jamor: seguindo Santo (1993), vem de smr (guardar, proteger, cuidar; observar, vigiar, reverenciar). Casal do Jogo: seguindo Santo (1993), vem de sêgu (raivoso) ou de swhh (cova, buraco). Casal do Mesquita: seguindo Santo (1993), vem de mhs (destroçar, moer, quebrar, esmagar, ferir; ferida, chaga) + kitu ou qito (linho, corda) Onde se esmaga e moi o linho. Casal do Neves: Almeida (2009) escreve que vem de. nvi’(profeta), nvi’h (profetiza), nv’ (estar em transe profético, profetizar). Casal do Nico: seguindo Santo (1993), vem de niku (libação, oferenda, sacrifício). Casal Oliveira: segundo Santo (1989), vem de ‘ly b’r (pessoas consagradas). Casal da Marta: Santo escreve que vem de mhr, mhr thm (dote, dote de fiança, dote contratado/contactado). 178 Casal da Pimenteira: seguindo Santo (1993), vem de pu (boca, palavra, embocadura; lei; feixe de palha) + mnt (herança, porção) + rh (sopro, alento, vento). Casal Quintelas: Almeida (2013) escreve que quintal vem de kinu + t’h (jardim, horta + demarcar, linha de separação). Significa jardim, horta delimitada. Casal do Sanas: seguindo Santo (1993), vem de sa (que, do qual se diz; pois, porque) + nas/ nis (ultrajar, detratar, desaparecer). Casal de São Brás: Santo (2004) escreve que São Brás foi um deus sol fenício. Face à sua relação com o fogo. O nome original, continua, é Blás (latinizado para Blasius). Vem do fenício b’r ash, (beirás), que acende o fogo ou baru ash (barás), que guarda o fogo. (2004, p. 252). Casal da Serra: Almeida (2013) diz que serra vem de sêru (serre) e significa alto, elevado, cabeço. O mesmo o nosso serro ou cerro. Casal da Loba: lobo, escreve Santo (1989), vem de lb (justiça). Casal é um lugarejo. Assim, casal da Loba é o lugarejo onde se aplica a justiça. Casal do Brandão, e Brandoa, diz Neves (1991), deve o nome à família proprietária do local, nomeadamente a Jerónimo Vaz Brandão, falecido em 1595. Branda, sonoramente próxima de Brandão e Brandoa, no Noroeste de Portugal, escreve Almeida (2013), refere povoações de montanha apenas ocupadas na Primavera e no Verão. Virá de bôr ou br (brô), que significam queimar, arrotear, engordar, pastar. Corresponde, continua o autor, a áreas queimadas para renovação de pastagens. A parte final da palavra poderá vir de omd (âmde), que significa lugar, posto, refúgio; de nadu (nade), que significa fundar, estabelecer habitação; m’d (môde), que significa reunião, ponto de encontro. Assim, Branda significa habitação das pastagens, ponto de encontro das pastagens, lugar/ refúgio das pastagens. Com algumas reservas, o mesmo significarão Brandão e Brandoa. Casal do Capucho: Almeida (2013) diz que capuz, capucho, capucha têm origem na palavra côbo (côbô), que significa capacete. Mas é mais provável que venha de kubsu que significa chapéu, turbante. Casal do Neves: Almeida (2009) escreve, a propósito de Malpica do Tejo e Nossa Senhora das Neves, que Neves tem a ver com nvi’ (profecta), nvi’h (profetiza), nv’ (estar em transe profético, profetizar) e nav (cimo). Casal do Neves significa pequeno povoado, no alto, onde se profetiza. Prova disto é que, diz o autor, estes locais começaram, a partir de certa data e pelos cristãos, a ser ligados à bruxaria. 179 Cascalheira, para Neves (1991), é terra paupérrima, que a água da chuva deixava ver o cascalho. Para nós, e se cascalheira for lugar alto, seguimos Santo (1993), e cascalheira virá de kos/ kaos (problema, ira) + kalu (tudo, barragem, aguentar) + rh (sopro, vento). Significa: barragem para o problema do vento. Cova da Moura (Silva 2006g), terá sido a cova originária de uma pedreira que pertenceu a um certo de Moura. Ou, escreve Silva (1999), devido à existência de moura encantada ou famílias agrícolas mouras. Pedroso escreve que as moiras portuguesas serão «génios femininos das águas», irmãs das germânicas «nixen», das inglesas «lacladies», das russas «rusalki», das sérvias «vilas», das escandinavas «elfen» e das gregas «naiadas». (1988, pp. 217-219). Seguindo o mesmo autor, a par de serem génios femininos das águas, as moiras aparecem como génios maléficos que perseguem o homem, como fiandeiras e construtoras de monumentos e como guardadoras de tesouros encantados. Como Pedroso (1988) pensavam e pensam vários autores, mas não é verdade. A moira portuguesa nada tem a ver com as suas primas europeias. A moira das aldeias, diz Santo, «é uma deusa-mãe […] o mito sacraliza a terra e o trabalho agrário recorda a memória dos antepassados, revela o poder da mulher na agricultura e sugere representações da mãe que procura seduzir os filhos e praticar o incesto» (1984, pp. 3844). O dia e a hora primordial de aparecimento da Moura é a Noite de São João, à MeiaNoite. Nesta noite, a serpente, a moira, a grande mãe, que são uma e a mesma coisa, liberta-se da autoridade do pai, diz o mesmo autor. Liberta-se e acontece a noite de maior sensualidade de todo o calendário agro-religioso rural, a noite de S. João. Sobre a água e a fonte e as suas relações com as moiras, cita-se um pequeno texto que tem por base a 3ª e decisiva visão da curandeira do Pego (Abrantes), Maria Arminda. Diz ela, em entrevista dada a Carvalho: «eu passava por um ribeiro que se chamava Vale do Gato. Chegava ao ribeiro onde estava uma rocha, que ainda existe, onde a água corria, e às vezes bebia pelas mãos. Foi aí que me apareceu uma moira. Essa moira ainda lá vive encantada» A água brotando da rocha é regeneração e é conhecimento. Brota das entranhas da terra mãe onde vive a moira, que é ela própria. A água é um produto materno. (Santo, 1984). Quanto aos mouros, são os primeiros habitantes da terra. São autóctones, isto é, diz Cabral, terão «emergido literalmente da terra». (1989, p. 280). A Moura popular das aldeias, escreve Santo, «é Astarté cananita e a Shequina de Javé. Ilit, feminino de Ilu, e Atiratu são nomes que nos mitos de Ugarit se dão a Astarté». (1989), 180 p. 291). Cova/ Poço/ Fonte da Moura será o local a Grande Mãe, na sua hipóstase de moura encantada, aguarda a passagens de seus filhos para os iniciar na adultice. Santo escreve que moura vem de m’wwra (maora) e significa luzeiro, sol, lua; mowrh (mauora), cova, caverna; mr’h (marea), visão, aparição; mowrh (maoura), nudez; mwr (mre), mudar-se, transformar-se, entre outras. Assim, é possível contar uma história ou uma lenda. (2004, p. 79). Cruz, Cruzes. A maior parte das antigas designações desapareceram, escreve Silva (1004a), mas ficaram algumas, caso da Travessa da Cruz. Junto ao Rangel, próximo da Quinta São Miguel, está uma cruz, quase frente à Travessa da Cruz, continua o autor (1994a), que antes estava no outro lado da rua. Terá aí morrido alguém ou acontecido algum acidente mortal, tipo raio de trovoada? Ou apenas para servir, de paragem obrigatória dos enterros para ali se rezar o «responso», a caminho do cemitério de Benfica e, antes do cemitério [1869] no adro da igreja. Esta cruz, continua Silva (1994a), também servia para marcar o retorno da procissão ao Mártir São Sebastião e de Nossa Senhora da Conceição da Lapa. A cruz serviria para todas as opções apontadas por Silva. Como escreve Carvalho (2008), é costume desenhar ou construir cruz onde o sagrado, positivo ou negativo se manifesta. Hoje, colocam-se flores amarradas a um poste da luz onde alguém morreu de acidente. Também serviam, segundo o mesmo autor, para marcar o local de paragem do cortejo fúnebre, a «meio caminho» entre o povoado e o cemitério. Função semelhante aos Memoriais, caso o de Odivelas. Serviam, ainda, continua Carvalho (2008) para a procissão dar «meia volta». Mesmo que erguida a cruz por um motivo exclusivo, poderia servir para todos os actos apresentados. Importa aqui salientar o isolamento espacial desta cruz, o que lhe vale a importância da individualização e lhe permite dar nome a uma Rua ou uma Travessa. Mas existe também o Bairro das Cruzes ou Cruz. Talvez tenham existido algumas cruzes e não só uma. Coelho (1982) escreve que o Bairro da Cruz tem uma cruz de pedra antiga maior que um homem, a meio de um largo. O Bairro das Cruzes tinha uma cruz, afirma Silva (1996b), quase destruída, situada quase em frente ao Rangel, do seu lado. Curiosamente, Santo (1989) atribui a Cruz, que vem de krs, o significado de «augúrios». Poderia ter sido local onde eram praticados os augúrios e a cruz não passa de uma cristianização do local. 181 Damaia, escreve Neves (1991), foi quinta pertencente a alguém de apelido «da Maia». Menos provável, continua, é que ali se praticasse culto à deusa da fecundidade «Maia». Determinado senhor dar nome a local, não aceitamos. Pode, na verdade, ser local de culto da Maia, mas era tão vulgar este culto, que não pode (ou pode) explicar um nome. Maia é uma deusa grega, cujo nome significa «pequena mãe» - nome dado à avó, parteira, mulher idosa, ama-de-leite – uma das sete filhas de Atlas, que Zeus transformou nas Plêiades, da constelação do Touro. Da sua relação com Zeus teve Hermes. Na mitologia romana, Maia é a deusa da fertilidade, da Primavera e da energia vital. Continuando com Santo (1993), Damaia virá de dm’, que significa «derramar lágrimas, chorar»; ou de dm/ dam, que significa «sangue, crime, homicídio». Damaia foi local de célebre homicídio, que provocou fortes choros e lágrimas. Hoje, ainda, se marcam locais onde o sagrado negativo (morte por acidente, trovão, homicídio), e o sagrado positivo (aparecimento de santo/santa), se manifestam. Contudo, não nos parece que se trate de um homicídio humano, prática generalizada, mas divino. Serão lágrimas derramadas pelo deus que morre, os prantos a Adónis, deus da vegetação. Neste caso, ao deus Thamuje. Ver A-da-Maia. Elias Garcia, Rua, era a Rua Direita, diz Silva (2008), e deve o seu nome ao facto de ligar «as portas da cidade às várias localidades vizinhas». A Rua Direita, às vezes, Rua da Porta, de Mação à Covilhã e Coimbra, do Funchal a Ponta Delgada, está generalizada pelo País. Como escreve Carvalho (2008), «direita» nada tem a ver com o piso ou as curvas. É sim a rua que vai direita da porta de entrada até ao largo central da povoação, onde se localiza o pelourinho, a Casa da Câmara, a Sé ou outro edifício ou símbolo central do povoado. Elias Garcia, Rua, escreve Silva (1994a), com 3 km de extensão, foi o «Caminho Velho», remontando ao tempo de Afonso III. Mais tarde, passou a «Estrada Velha» e a «Estrada Real». Antes de «Estrada Real», escreve Silva (200b), foi «Estrada Direita». Hoje, tem, continua o autor, 10 Pracetas,31 Ruas, 4 Avenidas, 1 Estrada, 1 Pátio, 1 Praça, 1 Largo. Teve sempre o seu início nas Portas de Benfica. O seu actual nome aparece no primeiro quartel do século XX. José Elias Garcia foi Grão Mestre da Maçonaria Portuguesa e Presidente da Câmara Municipal de Lisboa. Fez-se um desvio, continua o autor, por causa do caminho-de-ferro, chamado «Estrada do Desvio», hoje Salvador Allende. Velho e actual hábito de mudar o nome das ruas e locais para que a sua importância passa para o novo possuidor como que por osmose. 182 Estrada dos Salgados deve o seu nome, escreve Silva (2006a), ao caminho que vinha da Quinta do Salgado, hoje estação do Metro. Salgados, seguimos Santo (1993), poderá vir de Salgu, que significa neve, ou Slg, que significa «neve, nevar, saboeira». Ferrã, para Silva (2005a), é terra de cevada que era semeada mal chegavam as chuvas de Setembro e era ceivada ainda verde para alimento dos animais. Barros (2010) escreve que eram todas as ervas cortadas a foice para o gado. Para Santo (1988), poderá vir de Ferrel/ Ferrós, que significa «ferraria, ferreiros». Ilha do Pico: Almeida (2013) escreve que ilha vem de aihwl (aiêôle), que significa rodeado de litoral. Linda-a-Velha: lin (passar a noite, pernoitar, permanecer, morar) + da (que, quem, o/a que, porque) + bêlu/ baal (senhor, proprietário, mestre, marido, reinar). Significa: onde o mestre pernoita, onde o grande senhor mora, onde o rei pernoita, mora. Foto 68: Capela de Nossa Senhora da Lapa, junto ao aqueduto. Foto de Joshua Benoliel - 1912 Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa. Mina, afirma Neves (1991), era a mina de entre várias existentes na Amadora. Parece-nos que, face à denominação da freguesia da Mina, esta seria especial e individualizada. No dicionário FenícioPortuguês (1993), mina poderá vir de Min, que significa «espécie, género». E????? Moinho da Atalaia: aldeia, escreve Santo (1988), vem de ataleia (escala, rota para o interior). Ora, sonoridade próxima entre ataleia e ataleia, pelo que terá o mesmo significado. Significa moinho onde se faz escala para o interior. Moinhos do Cascalho: kos/ kas (problema, ira, provocação) + kalu (tudo; barragem, aguentar). Significa: barragem contra problema. Moinho do Pé do Chão: Chão, diz Almeida (2013), vem de swh (chââ), que significa planície, nivelar. Moinho da Peça: Almeida (2013) diz que vem de pso (pessâ) e significa pedaço. Moinho das Soirãs: Barros (2010) escreve que soirinho é soito. Virá de sor/ soir (cabeludo, bode, demónio em forma de bode) + as/es (fogo, pouco, insignificante). 183 Moinhos da Tenenta: tn (dois, dobro) + entu (sacerdotiza). Significa: moinhos das duas sacerdotisas. Moinhos do Tojal: Santo (1988) escreve que Tojal vem de té’ ala (canal, rego, fonte). Significa: moinhos da fonte, moinhos do canal. Monte do Carrascal: Barros (2010) diz que carrascal é uma mata de carrascos, azinheiras pequenas. Poderá vir de kar (cordeiro, ariete, pastagem, alforge) + as (fogo, pouco) + ka (teu, tua). Significa: a tua terra tem pouca pastagem. Monte da Galega, afirma Silva (2005a), era terra pouco fértil. O nome poderia indicar o Monte daquela que veio da Galiza. Barros (2010) diz que é terra boa para sementeira. Seguindo Santo (1993), monte será mnt, que significa «porção, herança». Galega será o local dos Galécios, dos Gálatas, escreve Santo (1988). Logo, Monte da Galega significa a parte, o local, a herança que pertence aos Gálatas. Contudo, Santo (2004) escreve que galega vem de galghlh (galguêla) significa círculo de pedras. Monte da Galega era um santuário fenício norio que, para o século XII a.C., é referido: « levantou Josué também doze pedras no meio do Jordão, no lugar onde estiveram parados os pés dos sacerdotes, que levavam a arca da aliança; e ali estão até ao dia de hoje». Jos 4,9. Significa: herança onde está o santuário das pedras no rio. Montinel, atrás referido, significa, diz Silva (2006 a), monte pequeno. com a proximidade sonora de Montinel Jogando e Martinel, utilizando Santo (1989), afirmaremos, com reservas, que Martinel vem de mhr thm’l, significa «dote de fiança de parente»; Martinho, vem de mhrthm, «dote pago»; Martinhais, de mhr thm’l, «dote combinado». Assim, Montinel será o lugar onde se combinavam e pagavam os dotes. Olival: seguindo Santo (1988), vem de olé bal (alto do Belus). Paiã: ver atrás. Ponte Pedrinha: ver atrás. Praceta da Carranca porque, escreve Silva (2006f), houve aí um chafariz cuja bica era uma boca em forma de carranca. Almeida escreve (2013) que vem de qrh mwq (qarâmãqa), que significa cara + escarnecer, ridicularizar. Assim, carranca é cara ridícula, cara de escarnecer. Quinta do Álamo, que aparece no mapa de 1841, penso que, e seguindo Santo (1988), álamo é o mesmo que almas. Virá de ‘lm (olmo, antepassados, espíritos). É traduzido por carvalho, escreve o autor. Oque faz sentido, pois as seculares árvores são, normalmente, carvalhos. Assim, Quinta do Álamo será a família dos antepassados. 184 Quinta da Bolacha, escreve Silva (2005c), é a mais antiga e datará dos romanos, séculos II-IV. Seguindo Santo (1993), Bolacha poderá vir Bol/ Baal, que significa «exercer autoridade; senhor, dono, proprietário». Quinta da Bolacha poderá significar «família do senhor que exerce o poder neste local». Barros (2010) escreve que bolacha é o mesmo que bofetada. Na verdade, ainda se ouve «levas uma bolacha». Dar bofetadas seria uma forma de mostrar a autoridade sobre alguém. Quinta dos Afonsos: Quinta da Bonita: vem de ben/bn (filho, neto, membro de grupo, tribo, povo) + it (há, está, tem, aqui está, aqui tem). Significa: aqui está a família da tribo. Quinta da Canastreira: Barros (2010) escreve que canastreira é um cesto grande, um espigueiro. Santo (2004) escreve que canastreiros será gente dos canastros ou silos, uma tradução de hlk eidan (parceiros do silo). Significa: assento dos parceiros do silo. Quinta do Lameiro: Barros (2010) escreve que Lameiro é terra alagadiça, menos que Lameira, que dá bom pasto. Quinta de Monsanto e Monsanto (226 m.): Quinta das Osgas: Barros (2010) diz que osgas significa raiva, aversão. Quinta do Pau: seguindo Santo (1993), vem de kimtu (família) + pahu (fechar, emprisionar). Quinta das Quintelas, seguindo Santo (1993), virá de Kimtu («família») + Kimtu («família») + La («força, vigor, ser forte»). Significará «a família muito forte». A duplicação do nome sugere este carácter de força, de poder. Quinta dos Álamos virá de Al, que significa «certamente, sem dúvida» + Moôz, «lugar de refúgio, baluarte, fortaleza». Significará, com reservas, «uma fortaleza, sem dúvida». Quinta do Serrado da Bica: Serro, escreve Almeida, vem, entre outros, de serru (acampamento), seru (habitar, principiar), srr (pequeno acampamento, sítio, certo, seguro), zeru (terra arável, semear). Diz o autor que o nosso serro é a designação de monte, como monte alentejano, e, mais antiga, a herdade latina. Santo (1988) diz que bica bem de bika (vale, depressão). Santo 82004) escreve que serrada vem de surh atta (surata) e significa muro de sustentação, da costa, da borda. Significa: local do muro que sustenta o vale. 185 Rascoeira ou Rasqueira, escreve Silva (2006e), deve o seu nome por haver aí fontes de fraco caudal. Utilizando Santo (1993), Rascoeira pode vir de Rasqu, que significa «vazio, vácuo, oculto, esconder». Reboleira, para Neves (1991), significa terra muito boa para cereais, terra onde a seara é mais forte. Para Silva (2007a), a parte mais densa do bosque, sendo que o Bairro do Bosque e Reboleira seriam a mesma propriedade e pertença a um certo senhor, Vasco Martins Rebolo, que fez testamento em 1299, foi proprietário do Casal da Falagueira. Este facto, afirma Hormigo, «gerou na toponímia local o nascimento do termo Reboleira». O termo, contudo, continua o mesmo, só aparece em 1391, num «emprazamento». Seguindo Hormigo, o termo Rebolo, «segundo alguns genealogistas, é apelido parece tomado de algum sítio chamado se não foi alcunha que se pôs ao primeiro em razão de ser grosso de corpo e baixo. Vilas-Boas refere que neste Reino há muitos sítios chamados Rebolos principalmente nas entradas de muitas terras onde os moradores fazem jogo de bola e que de algum deste se tomaria o apelido…» (1983, p.11). Assim, não se apresenta verosímil que o nobre Rebolo desse o seu nome à Reboleira. O desejo natural de a «nossa terra» ou a «nossa rua» ter nome ilustre não pode impedir de ver com clareza. Alguns genealogistas dizem que foi apelido tomado de algum lugar, isto é, é o lugar a dar nome ao nobre e não o nobre a dar nome ao lugar. Foto 69: Largo do Jogo da Bola e casa senhorial à direita, em Carnide, 2018. Em segundo, Rebolo pode vir da constituição física do visado. Popularmente, ainda hoje , se diz de alguém muito gordo, «parece um barril com pernas», que, deitado no chão, rebola. Condiz com Barros (2010) que diz que rebolo é uma pessoa gorda e baixa ou a pedra redonda que os sapateiros usam para bater a sola. Ainda, poderia vir do «jogo da bola». Em Carnide, uns 2 km a nascente, frente a uma grande casa agrícola do século XVIII-XIX, fica o «Largo do Jogo da Bola». Santo (1989), para Raboal e Rabeleira propõe o significado de «grande (chefe)». O mesmo autor (1993) apresenta rabu (rb’l) = «grande, engrandecer». Sabendo que as 186 línguas cananitas não têm vogais e face à semelhança sonora entre Raboal, Rabeleira e Reboleira, propomos, com algumas reservas, para Reboleira o significado de local onde vive um «grande chefe», um «grande senhor». Tanto mais que, para Rebordões, rab âdrun, Santo (1993), propõe «mestre senhor esconjurador/ curador». Assim, Reboleira era o local onde vivia o chefe governante/ o senhor esconjurador, o grande chefe, o grande senhor. São Domingos: Santos (1988) escreve que vem de Domusus, Domugus (domuzi). Seara de Trigo, Rua: Santo (1989) diz que vem de sahra (desolação). Significa: Rua da Desolação. Mas poderá vir, diz o autor, de sr ara (o príncipe fala). Significa: lugar onde o príncipe fala. Trigo foi um acrescento feito por alguém para dar este significado à seara. Serrado da Bica: ver atrás. Sorãns (Borel), afirma Silva (2006g), deve o seu nome às irmãs (sorores) que se dedicavam à confecção do Borel. Ver atrás. Venda Nova deve o seu nome, escreve Neves (1991), a venda, loja da aldeia onde se vende de tudo, principalmente vinho. Haveria uma «velha» na Porcalhota. Para Coelho (1982) seria um estabelecimento comercial, talvez um grande armazém de vinhos. Silva (2007b) afirma que era uma taberna [venda], casa de pasto, estalagem aí existente, já em 1703, tendo havido, antes, uma venda velha. Esta venda velha é referida por oposição à nova, nunca se referindo o local, e porque só se pode falar de uma nova se houver uma velha. Há Proença-a-Nova e Velha; há Idanha-a-Nova e Velha; há Montemor-o-Novo e Velho, tal como há New-York e York. Porém, não se conhece a venda velha, nem se pode afirmar a sua existência. Semelhante é o caso de Vendas Novas. O portal da Câmara Municipal afirma que Vendas Novas deve o seu nome a «Vendas», «Estalagens» novas, que sucederam a umas velhas. Não há localização da velha, nem uma venda é uma estalagem. Santo (1989) para o topónimo Venda da Costa, bent agzt, dá o significado de «estrutura/ gente dos desposórios». Contudo, todos os topónimos, tem de ser analisado no seu conjunto, como escreve o autor, em «constelação». Santo (1989) escreve que venda nova vem de ben nab (criaturas proféticas, filhos profetas); de bintu nab, bent nab (sítio/ prédio das profecias ou dos oráculos); de nb (vazio, insuflado pelo vento, insuflado pelo espírito, saldar ou dançar extaticamente); nab’ (acesso extático); naby 187 (profeta, iniciado); nebia (profetiza); nebua (palavra profética). Assim, Venda Nova é o local dos profetas, dos oráculos, onde se dançam as danças extáticas. Venteira aparece na litografia de Luiz (1841) denominada «Monte da Vinteira». É um aglomerado de casas, tal como Porcalhota, a Ocidente; e Casal dos Álamos e Quinta das Quintelas, a Ocidente, junto à linha limítrofe do actual concelho da Amadora. Venteira, diz (Neves 1991), é terra de ventos brandos. Simões (1969, 1982) e Coelho (1982) afirmam que significa terra de ventos fortes. Venteira, escreve Silva (2007e), terá uma qualquer relação com o vento ou significando terra alta ou planície aberta. Terra de ventos fortes é toda a Amadora norte. Terra alta ou planície aberta são várias. O nome, não individualiza. A explicação terá de ser outra. Venteira é uma peça de madeira em forma de meia-lua que se coloca na boca dos bezerros para os desmamar. Mas não parece que seja esta a explicação. Mas ser bezerro ou touro, ajuda. O «V», nas línguas cananitas não existe; é substituído pelo «B», como no Minho, onde Vaca é «Baca». Venteira seria Benteira. Utilizando o dicionário de Santo (1993), propomos Banu («formar, criar, procriar») + TR (touro) ou Bn/ Ben (filho, neto, membro de um grupo, tribo ou povo) + TR (touro). Venteira terá sido o local inicial, de origem, do patriarca dos povoadores destes lugares. Se utilizarmos as Eras, a era do Touro é colocada entre 4.000 e 2000 a.C., data de origem d(est)a Venteira. Zambujal, do Bairro de Zambujal, escreve (Santo 1989), é de origem neolatim e significa «região do povo de Thamuje». «Depois me levou à entrada da porta da casa do Senhor, que olha para o norte; e eis que estavam ali mulheres assentadas chorando por Tamuz». (Ez 8, 14). Thammuze ou Dommuzi (Adónis). O Tmauz que aparece em Ezequiel um deus sumérios conhecido como Dumuzi e, pelos egípcios, como Hórus. Tamuz tinha como companheira Astarte, deusa rainha do céu, conhecida como Ishtar na Acádia, e por Ísis, no Egipto. Mais tarde, será Afrodite, para os gregos, e Inanna, para os sumérios. Tamuz é um ser humano que se tornou num deus e está associado à vegetação e à agricultura, porque morreu jovem e ressuscitou no ano seguinte, o mesmo acontece com a vegetação, que morre e renasce ano a ano. 188 Conclusão Contemos uma história. Era uma vez…. Era uma vez uma deusa. Deusa esbelta. Deusa serena. Deusa-mãe. A deusa-mãe instalou-se no santuário na Quinta da Laje, no local do Vale do Marco, sítio das Mães de Água. Água é humidade. Água é vida. Humidade é uterina. Água e humidade são geradoras de vida. Mãe é mãe, não necessitando de nome. Importante mesmo é a sua função e, por esta, se afirma. Contudo, a mãe também tem nome e a nossa deusa-mãe também o teria. Qual seria o seu nome? É que esta deusa é como a Senhora católica, é senhora de muitos nomes. Seria Astarte, seria Cibele? Hoje é Senhora da Conceição. Ontem, era Senhora do Ó. É provável ter sido Nut. Nut foi a deusa egípcia do céu, ou da terra, fazendo par com o marido, Geb. Era representada, na sua hipóstase animal, sobre a forma de vaca ou porca. Este culto terá sido introduzido pelos fenícios, a quem os egípcios chamavam «irmãos», e que realizavam o comércio externo egípcio. Assim, a deusa-mãe teve o seu santuário na Porcalhota, desde o século VII a. C. Séculos mais tarde, mudou-se para a Quinta da Laje, com outro nome, certamente. Não há deusa-mãe sem deus-pai, desde há alguns milénios. Ainda que, há mais milénios atrás, nos tempos do matriarcado, o pai não fosse conhecido ou reconhecido. Ainda que, há muitos mais milénios atrás, os deuses fossem andróginos. Se o útero é símbolo do feminino, o falo é um símbolo do masculino. Por isso, o templo a deus-pai, o fecundador, era na Falagueira, bem próximo à Quinta da Laje. E, se a deusa-mãe veio da Porcalhota, o deus-pai veio da Venteira, onde, na hipóstase de touro, tinha o seu santuário desde tempos próximos de 4.000/ 2.000 a.C. Detrás da quinta do Assentista passa a Rua Terras da Eira que iria dar nas Mães d’Água. Eira não é a eira para a debulha. Eira vem do fenício Eretz e significa pátria, colónia. O que confirma que Mães d’Agua foi o povoado primeiro. Nestes tempos, a agricultura, e a criação de gado, era a principal actividade económica. Alguns ferreiros e ferradores, alguns albardeiros, alguns oleiros, alguns comerciantes, mas todos estes eram muito poucos. Até haveria alguém que se dedicava à saúde, através da exploração de termas de água de coriandro, muito boas para o aparelho digestivo e gazes, em Alfragide. Porque a agricultura é a principal actividade económica e ocupa a maioria dos braços, e o pão é o principal alimento, a natureza vegetativa assume um papel 189 primordial. O Inverno mata. A Primavera ressuscita. O deus Thamuje morre jovem e provoca prantos colectivos no Bairro do Zambujal e Damaia. Mas todos os anos ressuscita, reflorece. Brota a alegria e a promessa de fartura. Um dia, porém, chegaram os romanos com o seu exército, com o seu direito e com o seu latim. Durante duzentos anos, tiveram a oposição dos lusitanos, aliados aos cartagineses, filhos dos fenícios. E vieram os cristãos com a sua religião. Os romanos odeiam os cartagineses e os lusitanos. Os cristãos odeiam os seguidores das religiões antigas, que denigrem sob o nome de «pagãs», e odeiam os judeus. Os dois se aliam, naturalmente. Trezentos e tal anos depois de Cristo nascido, e da mensagem de paz e amor, a deusa-mãe, seus pais e maridos, seus irmãos e irmãs, seus filhos e filhas são perseguidos, mortos, ocultados ou substituídos. É a romanização; é a cristianização. Tudo o que era foi coberto de negro manto. Felizmente, o manto não consegue tudo tapar e tal facto permite-nos descobrir. E descobrimos deuses antigos, religiões antigas, santuários antigos e até silêncios antigos. Por fim, quem escolheu o nome Amadora talvez não soubesse que significa «da família da mãe», o que nos remete para o domínio da deusa-mãe e do matriarcado. Os nomes chegaram até nós. É apenas necessário procurá-los com a firme convicção de que os vamos encontrar e saber explicar. 190 16. ALCOUTIM: CONCELHO E REGIÃO A história de Portugal está cheia de enganos e falsidades às quais não escapa a toponímia, o estudo da origem e significado dos nomes das povoações, lugares e regiões. A culpa é da historiografia e historiadores portugueses que são pró-católicos e pró-romanos. Povos como os judeus e os fenícios, que influenciaram profundamente o território que é hoje Portugal, são banidos e esquecidos. O que se escreve sobre a história de Alcoutim é um destes casos. Começo pelos romanos. 1 – Fundação de Alcoutim. Lê-se em https://www.infopedia.pt/artigos/$alcoutim que, nos inícios do século II a. C., Alcoutim foi ocupada pelos Romanos, responsáveis pelo seu nome original . Esteve ainda sob domínio dos Alanos (415), Visigodos (século VI), Bizantinos (552625) e Mouros (século VIII), responsáveis pela fortificação da povoação». O nome de Alcoutim é original romano? Isto quer dizer que Alcoutim não existia antes dos romanos ou, se existia, não tinha nome. Ora, os romanos foram grandes soldados, engenheiros civis e grandes homens de direito, mas não foram deuses criadores; em nada se assemelharam a Javé que, como está escrito no Génesis, «no princípio, criou deus o céu e a terra». (Gn 1,1). Assim, três perguntas, tomando como verdadeiro o nome e os seus inventores: 1. Qual o nome antes de significado de Alcoutinium? 2. Qual o Alcoutinium? Foto 70: Vista de Alcoutim, 2024 3. Foram os romanos a dar o nome? Que nome tinha Alcoutim no Calcolítico, pois historiadores, 191 https://priscovero.blogs.sapo.pt/historia-de-alcoutim-7327, fazem recuar a história da povoação a estes tempos? O Calcolítico [Calco, cobre] + [Lítico, pedra] – utilização de instrumentos de pedra e de cobre, anda à volta de 3.300 a.C. 4. Consultando os dicionários não discurtino Alcoutim. Esta hipótese toponímica apresenta-se forçada, muito pela força do referido poder da historiografia pró-romana. Usa um método frequente dos latinistas: pega-se no nome actual e latiniza-se; volta-se atrás e traz-se à frente. Por outro lado, em https://pt.wikipedia.org/wiki/Alcoutim lê-se que, «quando D. João I estava a decidir qual o Governador de Ceuta, depois da conquista da cidade, em 2 de setembro de 1415 (comemorado no Dia de Ceuta), o jovem Pedro estava por perto, jogando distraidamente "choca" (uma espécie de hóquei medieval) com um taco de zambujeiro ou Aleo (oliveira silvestre) […] se aproximou do Rei com seu taco de jogo (aleo) na mão e lhe disse que, com apenas esse taco, ele poderia defender Ceuta de todo o poder do Marrocos». Colocam-se várias perguntas e negações: 1. Que descaramento do jovem Pedro que se diverte a jogar perante o seu rei muito preocupado com uma decisão vital; impossível tal acontecimento; o rei chamar-lhe-ia à atenção e, no mínimo, repreendê-lo-ia, se é verdade que ele teve a coragem de estar jogando. 2. Em dezenas de anos de investigação, nunca ouvi falar de tal jogo, «choca», e muito duvido da sua existência. 3. Aleo é uma palavra latina, Aleo, aleonis (nominativo e genitivo, respectivamente) e significa, não zambujeiro ou oliveira silvestre, mas: a) Segundo o dicionário Latim –Português da Porto Editora: «o jogador». b) Segundo o dicionário da Lello Editora: «o jogador de dados, o jogador profissional». c) É atribuída a Júlio César uma célebre frase, quando atravessou o Rio Rubicão, durante a guerra civil que manteve com Marco António e Octávio. Este rio fica bem a norte de Roma e era o limite a partir do qual não poderiam descer as legiões romanas, sob pena de considerarem um ataque à cidade. Julis Caesar atravessou-o e terá exclamado: «Alea Jacta Est», que quer dizer, «a sorte está lançada», os dados estão lançados». Assim, Aleo é um jogador (profissional) de dados. 192 Ter no centro do seu brasão algo referente a um jogador de dados é indigno seja para que povoação for; igualmente um taco, por mais famosa que fosse a mão que o segurou. O brasão de uma povoação não é o emblema de um clube de hóquei ou de criquet. Uma vez mais, inventa-se, chegando a falsificar o significado verdadeiro das palavras latinas. Em complemento, oliveira é oliva, em latim, e Cícero usa também a palavra olea. Zambujeiro, por seu lado, é oleaster, oleastri. Por fim, seguindo o mesmo site, e segundo Adalberto Alves, no seu Dicionário de Arabismos da Língua Portuguesa, a origem do topónimo Alcoutim é a expressão árabe al-quṭamî, «o falcão real». A submissão ao magíster dixit, o professor tem sempre razão, é humilhante e conduz à estupidez. Antes de nos referirmos ao prefixo AL, coloquem-se cinco questões: 1. Falcão real quer dizer que pertencia ao rei. Que rei forreta era este que só tinha um único facão? Não teria dois ou três? 2. Que rei foi este? D. Afonso, D. Dinis, D. Manuel? 3. Reis, em Portugal, só a partir do século XII; antes dos reis, Alcoutim não tinha nome? Que nome tinha? 4. Se o rei e o seu falcão, muito pouco provável, estiveram em Alcoutim no período da Corte itinerante, como poderia Alcoutim sustentar uma corte durante meses? A Corte era o rei e a rainha, príncipes e princesas, aios, criados e muito mais; algumas famílias de nobres e uma guarda pessoal do monarca; isto é, nunca menos de 150 pessoas. Alcoutim não teria possibilidades de sustentar uma Corte durante meses. 5. Mas, o mais decisivo, é que um falcão vive 20 anos, talvez 40 anos. Isto é irrisório em termos de toponímia; os nomes duram séculos e até milénios. E uma povoação dever o seu nome a um falcão, por mais real que seja, não é nada dignificante. Tudo isto é ridículo e tudo isto é afirmado, e mentira, por motivo de uma afirmação há muito repetida, que se tornou aceite como verdade, que é o AL ser prefixo árabe e todas as palavras portuguesas começadas por Al serem de origem árabe. 193 Que algumas palavras começadas por Al sejam de origem árabe, aceita-se, mas não topónimos. Desde 1993, que Moisés Espírito Santo, no seu Dicionário Fenício Português, afirma que o prefixo Al/ Alu é de origem ugarítica/ fenícia e significa povoação, fortaleza, parentela. Mesmo o radical ALC é fenício e está ligado a caminhos, caso de Alcaide. Proponho: Alcoutim < Al (povoação, fortaleza, parentela) + Ktma/ Kètèm (ouro) / qtn/ qatôn (pequeno). Alcoutim significa: povoação/ fortaleza/ parentela do ouro; povoação/ fortaleza/ parentela pequena; pequena povoação do ouro. Estrabão (63 a.C. – 24) afirmou que todos os rios da Península Ibérica eram auríferos, ricos em ouro. Resumindo, Alcoutim é a pequena povoação do ouro. Alcoutim tem castelos e Brasão. Castelo – Castelo, primitivamente, era o local elevado da povoação; mais tarde, com a construção do castelo, este tomou o nome do local. O mesmo se passa com os santuários, caso do santuário de Nª Srª de Fátima. O santuário é «santo», «sagrado», porque foi construído em cima do local onde o sagrado se manifestou. As povoações de Zebreira e Segura, Idanha-a-Nova, por exemplo, têm Rua do Castelo, mas nunca tiveram castelo. Fotos 71, 72 e 73: Brasões. https://www.google.com/search?q=bras%C3%A3o+de+alcoutim&oq. https://www.google.com/search?q=bras%C3%A3o+de+tavira https://www.google.com/search?q=bras%C3%A3o+de+Castro+Marim&oq=bras%C3%A3o 194 Brasão – Em https://www.heraldicacivica.pt/act.html#gsc.tab=0 lê-se: «Armas Escudo vermelho, com o grifo «ALEO» em letras de ouro circundado por ramos de oliveira frutados, de sua cor. Em chefe um castelo de prata acompanhado de 2 cabeças, a da dextra de carnação branca com barbas e coroada de ouro e a da sinistra de carnação negra com barba e turbante de prata. Coroa mural de 4 torres de prata. Listel branco com as letras a negro «Vila de Alcoutim». Dextra e Sinistra são duas palavras latinas que significam Direita e Esquerda. Não sendo um sábio da heráldica, o que eu vejo é um chefe/ rei mouro e outro português. O mesmo que no brasão de Tavira (1932). O mesmo que o brasão de Castro Marim (1927). O brasão de Alcoutim é de 1927/9. Os três são da autoria de Affonso de Dornellas. Quanto ao grifo «ALEO», já referi que significa jogador, jogador profissional, jogador de dados. O autor joga com a ignorância latina dos leitores. É uma palavra latina, mas, é minha convicção, de origem fenícia/ cananita. Assim, ALEO < Alh/ Alôh (divindade); Alh/ Êla (Deus); Alh/ Eloh (árvore majestosa, árvore imponente). ALEO significa pois a divindade, deus e a árvore majestosa e imponente sob a qual se realizavam cultos e rituais das religiões antigas, que os profetas do Antigo Testamento tantas vezes condenaram e que eram dedicados ao deus. Como aqui: « devereis destruir totalmente todos os lugares nos quais as nações pagãs que estais desalojando costumam adorar seus deuses, tanto nos altos montes como nas colinas e à sombra de toda árvore frondosa. Derrubai seus altares, despedaçai suas estelas, colunas sagradas, e queimai seus postes à deusa Aserá [Astarte]; triturai todos os ídolos e imagens dedicados a seus demais deuses, e eliminai por completo todos os nomes deles daqueles lugares». (Dt 12, 2-3). Foto 74: Murta, 2024. Mas os brasões pouco dizem desde há séculos. D. Manuel I publicou uma lei 195 em 1512 pela qual o brasão assumido, como escreve Santo, foi banido. «A heráldica passou para o controle dum corpo de oficiais com sede no Paço e a ser regulamentada por normas rígidas; os transgressores seriam banidos para as novas colónias». (1997, p. 30). Face ao exposto, Alcoutim é a pequena povoação do ouro e, será [poderá ser] também, da árvore majestosa e imponente. 2. Toponímia do Concelho/ Região. Na região de Alcoutim há três nomes que se destacam pela sua repetição; Corte, salvo erro, em número de sete; Zambujal, três; e Alcaria, duas. Corte, segundo Santo (1989) que seguimos nos três casos, < Kort (pacto); Zambujal, Zambujo, Azambuja < Thamouse, o deus Tamujo, chamado, a sul do Mondego, de Tamujo. A este deus se faziam os prantos rituais, quando morria, no Inverno, ressuscitando com a Primavera; do prefixo Al, repito, Al/ alu é um prefixo fenício que significa povoação, castelo e parentela, gente da mesma linhagem. Por vezes, aparece em duplicado, Alu Caria (mansão povoação). A duplicação acontece muitas vezes, como escreve Santo, aparecendo o original e a sua tradução. Alguns exemplos: Caria, Alcaria – povoação povoação; Cabo Raso – rasu (cabeço, topo); Encosta de Salema – slm (encosta, subida); Monte do Sameiro – smr (eriçado, elevado); Encosta das Olaias – olah (altura). (1993, pp. 75-76). Uma outra, de Lisboa: Calçada de Carriche – car + vich (calçada). ÁLAMO: Álamo é o mesmo que Almas, diz Santo, e < alm (carvalho) e < ilm (espíritos) «e a um carvalho (almo) remete-nos geralmente para o culto dos mortos e para os augúrios relacionados com os almos ou olmos». (1989, p. 307). Álamo fica a 12 km. de Alcoutim, por estrada. Tendo em conta o que escrevi sobre «Aleo» do brasão de Alcoutim, poderia estar aqui a tal, ou outra, frondosa e majestosa. ALCARIA COVA DE BAIXO: cova < kbd (agasalho, parceiros ?). Será a povoação, na parte baixa, que dá agasalho. ALCARIA QUEIMADA: Almeida escreve que queimar/ queimada < qamu [qame] e significa queimar, flamejar. Os termos cremar e crematório virão do latim, «mas a comida queimada é popular e fenício». (2013, p. 294). A comida queimada era a que era sacrificada ao deus e manducada pelo deus e pelos ofertantes. Assim, Alcaria Queimada era a povoação onde eram oferecidas carnes assadas/ sacrificadas ao deus. 196 Interessante que Barros (2010) escreva que Queimada era a panela de azeite cobrada, tio poia, em cada moedura para pagar a lenha gasta/ queimada no fabrico de azeite. BESTEIROS: A ocidente do concelho há dois Besteiros. Besteiros não tem a ver com os utilizadores das armas chamadas bestas; são muitas as povoações besteiros. Seguindo Santo (1988), Besteiros < Bel – Ishtar (a Senhora, a deusa Ishtar, deusa da sexualidade e da guerra; conforme a cultura, era chamada Astarte, Inana e Afrodite, pelos Gregos. CABEÇA GORDA: cabeça < qabas (comunidade); gorda < gdr > godera > goreda (muralha). Cabeça Gorda significa, segundo Almeida (2013), a muralha da comunidade, do clã. Segundo Santo (1989), Cabeça < Kbs (clã, povoação) + Gorda < gorendha (eira, terraço); assim, significará o clã da eira. CACHOPOS: Santo escreve que Cachopos < Qs ‘opp [qas opp], sendo qs (copo, cálice) + ‘pp (propiciar, conjurar). Cachopos foi local de adivinhação «por meio de água, um processo conhecido de todos os aprendizes de sábios da Caldeia». (1989, p. 338). CASAS DE BAIXO: Santo (1989) diz que casa < Kasu (casa, assento); Almeida diz que Baixo < Bes que se lê bech ou bej, e significa lama, lodo, lamaçal, charco. Assim, Casas de Baixo serão as casas/ os assentos na lama. Deste radical bej veio a palavra mais conhecida, Beja, e os famosos barros de Beja. (2013, p. 107). A designação mais vulgar é CASAS NOVAS; novas < nab; neste caso seria casa dos profetas ou dos juízes. Ver Corte Nova. CERRO DA VINHA: Almeida (2021) diz que Cerro < seru/saru/ siru (alto, elevado). Se não for local elevado < serru (pequeno acampamento). Alto dasVinhas é um topónimo vulgar, caso do Ladoeiro, Idanha-a-Nova. CORTE DAS DONAS: < kart + dw (doente, enfermo) + nhs (praticar adivinhação. Feitiço, encantamento). Significa: pacto na povoação onde se fazem feitiços e encantamentos para cura dos doentes. CORTE NOVA: Nova < nab (profetas, juízes) ou nawe (pastagens). Povoação do pacto entre profectas, entre juízes; pacto sobre as pastagens. (Santo, 1989). CORTE SERRANOS: Serranos são habitantes da serra; serra < sêru (serra), tal como o serro ou cerro, diz Almeida (2013). 197 CORTES DA SEDA: Seda < sd (violência, devastação, demónio). Talvez < sht ( desolação). Significa a povoação que fez pacto contra a devastação, , contra a devastação, contra o demónio. CORTES TABELIÃO: < tbl/ tebel (confusão, abominação, mundo continente) + ion (por causa de ). Significa: pacto por causa do mundo, da abominação. CORTES: Santo afirma que se lê córtes e não côrtes. (2004, p. 396). Almeida escreve que Corte(s) aparece 546 vezes nas Cartas Topográficas do Exército. (2009, p. 15). Kort significa pacto. GIÕES: plural de Gião, certamente. Gião é São Gião, que os intelectuais e eclesiásticos passaram a São Julião. São Julião tem como atributos, escreve Santo, vagabundo, vingativo e azarento; por outro lado, salva náufragos. Tais atributos, continua, retiram-se do nome Gião: São Gião precede Neptuno. Sh’h yam (tempestade, desgraça, ruina do mar; Shi yaw, shi yam (desgraça do mar); Txui l-yam (o que dá ordens ao mar). (2004, pp. 303-304). Txui yam (o chefe do mar); MARIM: Santo (22-09-2021) informa-me que Marim é plural de Mar (guerreiro). Marim é guerreiros; Castro Marim é Castro dos Guerreiros. MARTIM LONGO: < mrtim (obstinado, rebelde) + ln (dormir, pernoitar, hospedar-se) + gôr (povo, nação) + gw/ gwi/ goi (costas, comunidade); se for longro, em vez de longo, < lg gr (cântaro dos peregrinos. Significa: Comunidade, povo, nação obstinada e rebelde onde se pernoita, hospedar-se; e/ ou comunidade, povo, nação do cântaro dos peregrinos. Martim Longo seria local de passagem e paragem dos peregrinos na direcção de um santuário. MONCHIQUE: Almeida (2021) afirma que Monchique < masqèh e significa abundante em água. MONTINHO DAS LARANJEIRAS: Montinho será um pequeno monte. A villa, ae romana era uma organização semelhante ao nosso monte alentejano, também a organização herdade. Na verdade, monte, significando elevação, vem do latim mons, montis. O acusativo é montem, cai o m e fica monte. O monte, organização agrícola, vem do fenício MNT, que se poderá ler MONTU, e que significa «parte que coube em herança». Do latim virá e afirmar-se-á, a palavra herdade, que significa o mesmo, 198 herança, e que vem de Heriditas, heriditatis, cujo acusativo é Heriditatem e dará Herdade. Mas só a partir do século XII, com as Universidades, pois o Latim nunca ultrapassou a elite intelectual universitária e clerical. Segundo Santo (1989), Laranjeiras < lehraxim (esconjuro). Assim, Montinho das Laranjeiras será monte dos esconjuros. TAIPAS: taipas, diz Santo (1989), < atapa (represa, subida, depósito). A povoação que tem a represa. Tal como o actual taipal dos carros de bois ou muares. ZAMBUJAL, FONTE ZAMBUJO, FONTE ZAMBUJO DE BAIXO: deus Thamuse, fonte do deus Thamuse, fonte do deus que fica no lamaçal. ZORRINHO: A Zorra Berradeira, escreve Almeida, e um animal mítico que aterroriza homens e mulheres das serras do Alentejo e do Algarve. De longe, «parece uma cabra, de mais perto uma imunda ave, de enormes dimensões, com as asas manchadas e sujas […] Exala de si um vapor imundo e nojento». O autor afirma tratar-se de uma lenda fenícia. Como se prova pela análise do nome, ZORRA vem de Sor ou Soir [Zour ou Zouir] significa bode, cabeludo, demónio em forma de bode e horrorizar-se, tempestuoso; temos, tempestade. Por outro lado, Zwr [Zuór] significa feder, ser intolerável. BERRADEIRA vem de Brd + Hr [bêrrêdeir] significa animal manchado da serra. O Brd é um pequeno animal do sul chamado Escalabardo. Escalabardo é Skl + Brd e significa proceder mal, ser insensato + animal manchado. Na Aldeia de São Luís, continua, é conhecida por Zorra Magra. Magra < Magôr ou Mgr s significam espanto e horror, deitar por terra, derrubar para baixo. (2015, pp. 49-50). Assim Zorrinho será a povoação onde se costuma avistar a Zorra Berradeira, talvez uma pequena Zorra. RIBEIRA DE CADAVAIS: < khd (ser destruído, estar oculto) + bws (esmagar, profanar, sentir vergonha). Significa: Rio, Ribeira que provoca a ruína. RIBEIRA DA FOUPANA: < po (fala, lei) + pan/ panu (tempo anterior, primeiro, antes). Significa: Rio, Ribeira que o primeiro, ante de tudo. RIBEIRA DE ODELEITE: < uad (rio) + lht (força vital). Rio, ribeira que é uma força vital. Nota: uad é radical árabe. MENIRES DO LAVAJO; não sei a explicação que dão para o nome, mas Lavajo < Labajo e significa demónio. A Senhora do Almurtão, Idanha-a-Nova, tem a sua ermida no Lavajo e ela venceu o demónio num combate sem derramamento de sangue. Por esta vitória recebeu uma coroa de murta, murta onde a sua imagem foi encontrada. 199 Por fim, TAVIRA, cidade a que Alcoutim se encontra muito ligada. Tavira < tb/tab (ouro puro) + rw/ rew (aparência); < tb (bom, suave, agradável) + biru (jovem touro); ti (charco) + birh (cidadela, castelo, templo). Tavira é a povoação que tem a aparência do ouro puro, povoação do jovem e agradável touro (hipóstase de um deus, por exemplo, Javé), cidadela no charco. 200 17. TERRAS PORTUGUESAS COMO NOMES CURIOSOS Antes de tudo, uma nota: a análise toponómica exige um estudo no local; face à impossibilidade de estar presente em tantos locais, fica esta nota de limitação. A Aroeira. Santo (1988) diz que vem de aro’ er (floresta). Santo (2004) diz que vem de eru yera e significa concebida da lua. Porque florestas há muitas, prefiro este significado. A-da-Gorda (Mafra): estes A significam comunidade, lugar + gôrnah/ gôr’ enda que, escreve Santo (1988), significa eira, terreiro de terra batida. Significa: a comunidade da eira, o lugar da eira. Aguçadoura (Póvoa de Varzim): Almeida (2013) diz que aguda vem de ahd [agade] e significa um, só, solitário, o primeiro. Além (Póvoa de Lanhoso). Santo (1988, 1989) escreve que vem de alia, al e significa subida, encosta. Significa: povoação da encosta. Alcaide: diz Santo (1989) que vem de alc (caminhos). Povoação que fica junto a caminhos. Talvez encruzilhada de caminhos. Amor, Leiria: talvez amar (ver ou ter visões). B Bicha (Gondomar). Almeida (2013) escreve que vem de bisu [bichu] = mau, fétido; bs (cheirar mal, tornar-se o dioso). Significa: lugar com mau cheiro. Bicho (Santo Tirso): Almeida (2013) escreve que vem de bisu [bichu] = mau, fétido; bs (cheirar mal, tornar-se o dioso). Bexiga (Tomar): bes/ besh (lama, lodo, lodaçal) + ygh (ser proeminente). Significa: povoação onde predomina o lodaçal. Buraca (Amadora). Buraca já existe no século XVIII, com o nome de Quinta das Buracas, escreve Silva e pode significar casas pequenas e pobres. Derivará do latim «forage» ou «foramen», que significa «buraca, cova, abertura». Buraca significará, então, «povoação construída num baixio […] onde, em tempos, terão existidos minas ou pedreiras». (2006g, p. 3). Buraca não pode derivar do latim, porque buraca é português, 201 e não há possível evolução de forage para buraca. Buraca, se for vocábulo de origem fenício-cananita, Santo (1989) propõe o significado de «Luz», «Ressurreição». Em 1988, o autor diz que buraco é decalque do hebraico bouhac (brilhar no escuro, isto é, ressurreição). Assim, as covas e aberturas não seriam casas, mas sepulturas escavadas na terra ou na rocha. Assim, Buraca significa lugar das sepulturas. Burro. Santo (1988) escreve que vem de bor (depressão). Significa: povoação na depressão. C Cabeça Gorda (Beja). Gôrnah/ gôr’ enda, escreve Santo (1988), significa eira, terreiro de terra batida. Cabeça, escreve Santo (1989) vem de qbl, qabas (clã, apresentação do clã, apresentação ao clã). Significa: povoação da eira do clã. Cabeçudos (Marvão): Santo (1989) escreve que vem de kbs udu (clã do santuário, clã da assembleia, clã do testemunho, clã dos companheiros, clã dos aliados). Significa: clã dos companheiros, clã do santuário, clã dos companheiros do santuário. Cabra: Almeida (2009) diz que vem de cabru (sepulcro); Qbr (sepulcro, sepultar); Qebrêm (enterrar). Significa: povoação do cemitério, povoação dos sepulcros. Cabrão: (Ponte de Lima). Kabru (espesso, grosso); Qabru (sepulcro). Cabeço de Cabra, escreve Almeida (2015), vem de cabru (sepulcro); Qbr (sepulcro, sepultar); Qebrêm (enterrar). Cabrão (Rio) - Loriga. Santo (1989) escreve que vem de kabrum (sacrifício). Será o rio dos sacrifícios. Tem ligações a Rio Cabril. Significa: rio dos sacrifícios. Cabrões (Santo Tirso). Como as povoações anteriores, tem a ver com sepulcros. Carne Assada (Sintra). Cabra assada, escreve Almeida (2015), vem de qbr asad (encosta das sepulturas);9 cabra figa significa sepulturas de inceneração. Casais da Besteira (Santarém). Casal é o mesmo que Catraia (pequeno povoado, aldeola). Besteira nada tem a ver com besta ou asneira. Santo escreve que besteira vem de Bel-Ishtar. Significa: pequena povoação de Bel-Ishtar. Casal Mil Homens (Leiria). Santo (1989) afirma que mil homens vem de ml Adon [ml hom] e significa rio de Adon; de ml ‘m [mil âme] e significa rio dos antepassados. Significa: pequeno povoado onde correo rio dos antepassados. 202 Catraia do Buraco (Belmonte). Catraia vem de, diz Santo (1988), krytaya (aldeia pequena, lugarejo). No sul é substituído pelo termo casal. Buraco pode vir, conrinua, de buhac (luz, ressurreição?). Ver Buraca. Coito (Várias): Santo (1989) escreve que vem de kt/ kutu (estrado) de altar, de mesa? Colo do Pito (Castro d’Aire): Santo (1989) escreve que colo vem de K-ol (local elevado e habitado, talvez sede de poder local). Pito vem de pt/ pitah e significa sedução. Significa: povoação em local elevado e sedutor/ de sedução. Coxo (Vila da Praia da Vitória, Oliveira de Azeméis e Felgueiras). Santo (1988) escreve que Coxos virá de kukh e significa forno, fornalha, cadinho. M Malhou (Alcanena) se for o mesmo que malhada ou malhão, Almeida (2009) escreve que vem de malon (acampamento, pousada, cabana). Mal Lavado (Odemira). Almeida (2009) escreve que vem de malavad e significa poço de águas subterrâneas que transbordam. Mil Homens. Santo (1989) afirma que vem de ml Adon [ml hom] e significa rio de Adon; de ml ‘m [mil âme] e significa rio dos antepassados. Significa: povoação onde corre o rio dos antepassados. Mulher Morta (Ourém). Santo (1989) escreve que vem de mhmrt (mohamorte) e significa sorvedouro; foi despenhadeiro ou precipício. Significa: povoação do precipício, do sorvedouro. P Pito. Santo (1989) diz que vem de Pt [pitah] e significa sedução. Ponta (Lajes das Flores e Porto Santo). Ponta, utilizando Santo (1993), vem de pnt e significa artelho, junção. Perto do Barreiro há a Ponta dos Corvos. Virá de pnt (artelho, junção) + qrb (encontro, culto, cercanias). Significa: onde se juntam as cercanias, onde se juntam os cultos. Porca (Ponte de Lima). Porqueira, diz Santo (1989) vem de parakku/ peroket, e aparece ligada a quinta da laje, rabelal e costa, significa mensagem, ou lei, pelo mestre, local de encontros e festas. Punhete (Valongo): vem de pu (embocadura) + nêta(reviravolta). Significa: povoação que fica na volta da embocadura. 203 Q Quartos (Vila Verde e Loulé). O mesmo que quarta? Quarta, escreve Santo (1989), vem de korta (pacto). Significa: povoação do pacto. Quinta de Comichão (Guarda). Quinta, afirma Almeida (2013), vem de kinut ‘h [qinetêâ] e significa horta ou jardim delimitado. R Rabo de Porco (Penela). Rabo, diz Almeida (2009), vem de rob/ raab (fome, faminto, passar fome, estar faminto). Até se diz «ter fome de rabo». Rabo de Peixe. Rabo, diz Almeida (2009), vem de rob/ raab (fome, faminto, passar fome, estar faminto). Até se diz «ter fome de rabo». Rata. Diz Santo (1989) que vem de rht, ratu (canal, conduta de água, tanque). Rato (Barcelos). O mesmo que rata. S Santiago dos Besteiros. Santo (1989) escreve que besteiros são gente de Bal – Ishtar. Ver atrás. V Vale da Rata (Viana do Alentejo). Rata, diz Santo (1989) que vem de rht, ratu (canal, conduta de água, tanque). Vale do Porco (Mogadouro): Santo (1989) afirma que porco vem de prk (senhor do santuário) + bal (senhor). Significa: povoação do senhor do santuário. Venda da Porca (Estremoz). Santo (1989) diz que vem de bal prk (senhor do santuário); prk (lugar ou objecto sagrado). Venda vem de bent (casa ou gente do santuário). Assim, Venda da Porca significa casa do senhor do santuário, casa ou gente do santuário. Venda do Porco (Lourosa). Santo (1989) escreve venda do porco vem de bent prk (casa ou gente do santuário). Venda das Raparigas (Alcobaça): Almeida (2013) escreve que rapariga vem de rbh (criar filho) + rk (delicado, terno, tímido, suave). Na origem, pronunciar-se-ia «rapareg». Venda das Raparigas significa casa onde se criam filhos delicados. 204 Vergas (Vagos). Se for Vargas, vem de (diz Santo (1989) yagrus » vagrus (Yagrus, nome de arma mágica, «o que expulsa, expele, abate). Vila Nova do Coito (Santarém): utilizando Santo (1993), coito virá de kt (estrado, tarima, recipiente, forjar, objecto forjado), qt (arrastar, pequeno). Vilar dos Prazeres (Ourém). Prazeres Santo (1989) escreve que vem de yispr (colher, recolher, reunir colheitas) ou (lugar de banquetes). Significa: lugar onde o senhor recolhe as colheitas, talvez onde estejam silos onde se recolhem todas as colheitas ou o cereais dados para pagamento de impostos. Poderá significar lugar dos banquetes. Ambos são prazeres. 205 18. SATAN NO LIVRO DE JOB OU A SOLUÇÃO JUDAICA PARA O «SOFRIMENTO IMERECIDO» 1. Introdução Histórica e Apresentação do Livro Se não todo o Livro, pelo menos o rascunho do Livro de Job foi executado no Cativeiro e trazido de lá, por volta de 538 a.C. Ao que tudo indica, o Livro de Job terá sido composto no Século V a.C. e sujeito a várias alterações posteriores. Lévêque apresenta as principais: (i) Relato Popular Primitivo: Job 1,1-1,5; 1,13-22; 42,11- 42,15. (ii) Primeira Adição: Job 2,11-2,13; 42,7-42,10. (2,13 = Discurso tentador ao jeito da mulher de Job; só assim se compreende 42,7-9); (42,7 é um acidente posterior ao texto). (iii) Segunda Adição: Job 1,6-1,12; 2,1-2,8. (iv) Terceira Adição: Job 2,9-2,10. (v) Quarta Adição -P-: 42,16-42,17. (vi) Quinta Adição: «Diálogo», já com todo o «Relato» escrito: Job 3-42. (1970, pp. 128-129). Essas muitas alterações têm a ver com a tentativa de melhor ordenar os discursos com o fim último de apresentar uma mais correcta afirmação teórica. Para além disso, contém muitas incertezas quanto ao seu significado conjuntural. (Ver Job 6,14; 9,35; 11,12; 16,7; 17,2; 19,26; 30,11; 38,36; 39,13). Num tempo e num espaço indeterminado, a acção é narrada em modelo oriental com diálogos extensos e com a intervenção directa de Deus. Apresento algumas semelhanças entre o Livro de Job e livros sapienciais do Egipto e da Mesopotâmea: ANII : Um representante da faixa etária mais jovem em discordândia com a ortodoxia, ao contrário de Sofar, mas ao contrário deste sábio. Mudança e instabilidade na vida: «one man is rich, another is poor [...] man does not have a single way, the lord of life confounds him». (Ls. 5-10) AMENEMOPE: Dogma: «Do the good and you will prosper» (cap. 15). «Man is clay ans straw, the god is his bilder» (cap. 25). deus transcendente (quase) e primordial (depois de Amarna): «He gives it to whom he wishes» (cap. 20). «The words men say are one thing, the deeds of the god are another» (cap. 18). 206 Desígnios divinos impenetráveis: «Indeed you do not know the plans of god» (cap. 22). MERIKARÉ: Perenidade da vida: «Life on earth is not long» (l. 41). Maior transcendentalização e humanização do deus: «God who knows characters is hiddenn one can not oppose the lord of the land, he reaches all that the eyes can see» (ls. 124-125). Além destas, há as semelhanças do «Pequeno Génesis» (ls. 131-133), comparado com Job 3,8; 9-13; 40,2¸41,25. «JOB SUMÉRIO»: estrutura semelhante, exceptuando o diálogo de Job. A partilha do sofrimento: «distribuiste-me sempre sofrimento […] Os quinhões são distribuídos por todos, o quinhão que me cabe é o sofrimento» (Comp. Job 7,3). Criação do homem: «Meu deus, tu que és meu pai» (Comp. Job 10,8s). Impureza humana: «Eles dizem- valorosos sábios […] nunca existiu de um velho». (Comp. Job 14,4). A contradição apresentada pelo sofredor sumério nas linhas 26-27 e seguintes é semelhante a Job 12,3; 13,1-2. Deus fica contente com as palavras do sofredor. A revolta de Job contra os sábios não existe no «Job Sumério». Este tom de revolta de Job deriva do debate. Será ele originário da adição do monólogo do «Job Sumério» com a literatura suméria de debate? LUDLUL BEL NEMEQUI: Tal como em Job, o sofredor é um homem importante e rico (Tábua I, 60-63). Na tábua II, as origens do sofrimento são, em última causa, instâncias sobrenaturais. Também Job diz que Deus é que lhe deu o mal. Os deuses são impenetráveis (II, 23-16). Semelhante mesmo é II, 119-120 a Job 19,25. Limites à razão humana (II, 33-38). Brevidade da vida humana (II, 39-47). Incompreensível parece ser que Deus esteja contente com Job pois este, ao contrário do sofredor de Ludlul Bel Nemequi, não acha blasfémia tratar a problemática, ao contrário dos amigos de Job. Há em ambos um desejo principal de apresentar um caso paradigmático? Será contudo mais humano Job que Ludlul Bel Nemequi? É que não há hino de louvor inicial e final em Job, tal como o não há no «Job Sumério». 207 TEODICEIA: Essencialmente diferente. Não caminho para a luz. Job foge dos intelectuais e dirige-se essencialmente a Deus. O Livro de Job é, talvez, a primeira tentativa para a compreensão da existência do mal no mundo; uma tentativa de conciliar o Deus todo-poderoso e bom com a existência do mal e as vantagens que, geralmente, os maus possuem, neste mundo, face aos bons. Pela primeira vez, aparece nítida a identificação do mal com o anjo Satanás = Satan = o adversário. O original traz o artigo definido «o», ficando assim definido o mal, conotando-o com um anjo, santo, filho de Deus. Algo semelhante: «E ele mostroume o sumo-sacerdote Josué, o qual estava diante do anjo do SENHOR, e Satanás estava à sua mão direita, para se lhe opor. Mas o Senhor disse a Satanás: O Senhor te repreenda, ó Satanás, sim, o Senhor, que escolheu Jerusalém, te repreenda; não é este um tição tirado do fogo. (Zc 3,1-2) 2. Introdução à Problemática Central 2.1. Constatacões e Deduções: 1ª Constatação: o mal existe no mundo e, regra geral, são os maus quem tem o mundo nas mãos. É a eles que tudo corre bem e são eles quem prospera. Ao contrário, é aos justos que cabe o sofrimento. Isto é assim mesmo, mau grado, se olharmos para trás, possamos ver que Deus não desampara os que lhe são fiéis. (Job 21,8-9; 1,5-6; 8,8-9; 8,20; 20,5; 15,20; 15,34). 2ª Constatação: o mal tem de ser lançado por alguém, pois não brota da terra, nem sai do pó. (Job 5,6). Dedução: os maus têm o mundo e se não é Deus -o Todo Poderoso- quem o permite quem é? Deus parece sentir prazer em lançar os justos às mãos dos perversos. Só Deus pode infligir o sofrimento ao homem. Deus dirige todo o universo com suma inteligência. (Job 9,24; 10,3; 1O,16s; 16,11; 16,18; 19,6; 19,22). Conclusão lógica: não achando resposta conveniente, o justo tem de lançar a culpa da existência do mal a Deus e pergunta para que servirá não pecar. (Job 32,3; 33,9-10; 35,3). Explicação para a existência do mal: Deus fala de muitos modos para afastar o homem do mal e também se serve da dor e do sofrimento para ensinar o homem. O sofrimento humano existe porque Deus lhe deu sabedoria e inteligência. (Job 33,14-19; 39,16-17). 208 2.2. Conclusão A problemática que tem a ver com a explicação da existência do mal na Terra, sendo Deus bom e não tendo culpa o homem de nascer com o mal, é sempre uma problemática actual, ainda que, como em tudo, sujeita aos valores da moda em investigação. O Livro de Job oferece (já) uma nítida separação entre os anjos e Deus ao lado de hassatan num estado de pré-Queda. Toda esta problemática é apresentada numa moldura de temática tradicional oriental do «justo sofredor». Por fim, porque nos apresenta o sofrimento como ensinamento e soluções condizentes ao amor desinteressado e à recompensa post-mortem, o Livro de Job apresenta-se-nos como o livro charneira entre a literatura sapiencial e angeológica Vetero Testamentária e a Neo Testamentária. 3. Donde Vêm os Anjos? Os anjos, designação globalizante de seres espirituais da corte celeste, designação essa originária do latim angelus, do grego de LXX (ἄγγελος), mensageiro, que, por sua vez, é a tradução de uma função hebraica mal’ak, percorrem o caminho entre Deus e os homens como mensageiros da vontade divina. Os seres humanos conceptualizaram para os anjos um outro caminho construído, diacronicamente, do Genesis ao Apocalipse. Se, no princípio, não se faz sentir a necessidade de distinção na teofania, uma cada vez maior transcendentalização de Deus e uma paralela busca de compreensão para o destino humano, leva não só ao aparecimento dos anjos, como à total diferenciação entre eles e Deus e ainda ao afastamento de um dentre eles para administar o mal. No seguimento desta administração, faz-se a construção teológica da Queda e a consequente formação de duas cortes que, se não existem em antagonismo, guerreiamse permanentemente. Tudo isto dentro de uma inabalável afirmação de monoteísmo, em que a existência e o poder de Satan não são a negação, antes a afirmação de poder e de vontade por parte de Deus (e dos homens). 209 Acompanhando esta evolução histórica ao longo do Velho Testamento, observase que, paralela a uma identificação de ambos (Gn 16,7; 18,13; 22,11-12), existe uma nítida separação (Gn 24,7; 48,16; Ex 23,20; Nm 20,16) e já uma definitiva separação na produção intertestamentária, como no Livro de Henoch. Foto 75: São Miguel e o Diabo, Sé, Castelo Branco, 1993. «Diabo Negro» como diz o povo. Por outro lado, é nítida a intenção da substanciação do mal num ser plenamente individualizado. Podemos observar que de «o espírito mau de Deus» ou «um espírito mau de Deus» (1Sm 16,23; 16,14) se atinje Satan (1Cr 21,1), não sem se passar por 1Re 22,19-23 e Job 1,6-7. Mais tarde, Satan será senhor do Mundo (Mt 4,8-9) e, por fim, surge a dogmatização da Queda no IV Concílio de Latrão, em 1215. Aqui termina e se resolve (?) todo um problema provocado pela conciliação impossível entre o dualismo persa (uma excelente realização intelectual para uma evidente constatação de oposição na realidade positiva) e o monoteísmo judaico-cristão. 4. O Sofrimento Imerecido: Explicações 4.1. Satan, a Explicação da Prosa Do verbo significando acusar, «Satan» é substantivado e usado no episódio da Balãao (Nm 22,22) como significando impedidor ou obstáculo. Nm 22,22 parece em contradição com Nm 22,20. Tratar-se-á de uma inclusão de I ? Podia igualmente ser usado no sentido de acusador legal ou processador (Sl 109,6; Zc 3,1-2) e que se posicionava à direita para exercer a sua função, enquanto a sessão de justiça era presidida pelo anjo de Javé (Zacarias). Também os acusadores de Job se colocaram à sua direita (Job 30,12-16). No Livro de Job (1,6-12; 2,1-6), Satan aparece com o artigo, = Hassatan, no sentido de acusador e, dentre de todos os filhos de Deus, ele é o fiscal das acções humanas (1,7-8; 2,2-3) e o distribuidor do mal (1,12; 2,6). É o único anjo a ser nomeado 210 individualmente e continuará a sê-lo por muito tempo ainda. Nomeado com o artigo, aparece igualmente em Zacarias 3,1-2 e inserido na corte celeste. São casos únicos, mas só em 1Cr 21,1 Satan se tornará num nome próprio. Quanto à ideia de uma rebelião contra Deus só na época intertestamentária se imporá em Israel, em grande parte, devido ao Livro de Daniel e ao Livro de Henoch. Possivelmente, devido ao contacto com a demonologia persa, a batalha transcendental entre Deus e Satan foi introduzida no judaísmo tardio e a serpente de Gn 3 será identificada com Satan em Sb 2,24 e, talvez, em Si 21,27. Esta batalha, descrita no Livro de Henoch, (cap. 10) mostra grandes afinidades com a luta grega entre Zeus e os Titãs. Em Job temos somente a substantivação de um a função adjectiva. Como refere Lévêque (1985), numa tentativa de atenuar a responsabilidade de Deus nos males que afectam o justo, atenuação de que não havia necessidade numa época mais primitiva, em que os judeus não tinham qualquer escrúpulo em fazer intervir Deus e a ele atribuir o mal, por mais terrível que este se manifestasse, se desenvolve uma busca teológica tentando uma maior transcendentalização divina e, deste modo, embora dando a Deus o mesmo domínio sobre os homens, tornar esse domínio menos perceptível. É visível esta evolução na solução com Jz 9,23; 1Sm 16,14; 1Re 22,19-23; Zc 3,1-2 e em 2Sm 24,1 (e no seu paralelo 1Cr 21,1) é perfeitamente notória uma redacção de comprimisso: de «a cólera de Javé se inflamou contra Israel e excitou David...» a « levantou-se Satan contra Israel e excitou David...» Uma justificação para esta causa reside na estranha coincidência das passagens referirem males mesmo terríveis: em Zacarias, é Josué representando os pecados tão graves que levaram ao Exílio e que vai ser restaurada; em Job, é toda uma secular tradição dogmática que está a ser posta em causa; em Crónicas, é algo que os povos nómadas odeiam por ir contra a sua tão preciosa liberdade - o recenseamento. Porém, a solução só aparentemente resolve a questão e isto pela simples razão que esta é insolúvel no quadro da religião judaica e religiões vizinhas. Por um lado, a retribuição é terrestre; por outro, a religião judaica tem um só princípio, ao contrário da persa. Como a ortodoxia hebraica nem ao de leve toca na grandeza ou unicidade do seu Deus tem de fazer intervir Javé no seio da tempestade (Job 37,5; 38,1; 40.1) como um deus ex machina, tal como no caso dos justos sofredores da Mesopotâmia -no Job Sumério e no Ludlul Bel Nemequi. 211 4.2. Novas Explicações Para o Job que nos apresenta o poema, Deus parece ter prazer em esmagar os bons e premiar os maus (9,24; 10,3), mas claro que isto é desespero. Job, na sua fé em Javé e na sua experiência, sabe que não é assim e a razão do seu sofrimento espiritual é derivado desta certeza. Job parece apostar na diferença de ritmo temporal humano e divino para justificar o atraso do cumprimento dogmático (10,5). Continuando, Job 39,16-17 dá-nos a explicação do sofrimento e tão mais cabal quanto é o próprio Deus, em toda a sua majestade e poder quem a fornece. O homem sofre porque roubou a inteligência e a sabedoria no Éden através de Adão, o ancestral da raça humana (Gn 3,5; 3,22). Ao colocar os Querubins armados à porta do paraíso, Deus parece recear que o homem coma da árvore da vida e igual a ele fique (Gn 3,22ss). Assim, com a Queda e com as portas do Éden fechadas o homem, na sua peregrinação, procura a sabedoria total, mas não a encontra. De facto, ele possui parte dela, mas, como a outra parte está com Deus, ele vive atormentado pela dúvida: chegará a parte que possui? Chegará a vida que possui para encontrar a parte que falta? O homem tem de contentar-se com uma sabedoria à sua escala por lhe faltar a vida eterna. Assim se passa de uma sabedoria humana para uma sabedoria religiosa. É que Deus tem a outra parte, ou seja, toda a sabedoria. E a parte do homem que é divina em virtude da sua criação? Face à tão imperfeita (talvez seja mais correcto dizer incompleta) natureza humana, apetece dizer como Amenemope: «If only Khnum came to him/ The Potter to the heated man/, So as to Knead the faulty».(XII, 15-17). Só uma nova criação, e ela acontecerá no Calvário. Aqui, no Livro de Job, só num nível puramente especulativo se poderia chegar a esta, mas nunca claramente o afirmar, porque uma secular tradição dogmática e transcendentalizadora de Deus impedia o salto para uma revolucionária reafirmação do humano: «e o Verbo era Deus […] E o Verbo se fez carne e habitou entre nós» (Jo 1,1-14). Segundo Terrien, «beaucoup d’interprètes considèrent le portrait de l’autruche comme une interpolation», mas J. Lévêque diz que «en revanche aucun argument ne nous contraint à rejeter l’authenticité du petit poème sur l’autrche». (1963, 13; 1970, 86 e 503). Se falta em LXX é devido à dificuldade de tradução, principalmente o versículo 13. O que houve foi uma mudança de lugar, pois deveria estar depois do cavalo e antes da águia, segundo a lógica das classes de animais. 212 Aceita-se Lévêque, mas aceitamos igualmente a lógica da Terrien no terceiro argumento. Na verdade, a «réference y est faite à Dieu à la troisième personne» e é Deus quem fala. (1963, p. 13). Pope afirma que a estupidez da avestruz é proverbial entre os árabes e Lévêque, não desmentido por Foster, fala da possibilidade da influência árabe nestes versículos. A avestruz é mesmo considerada cruel pelos hebreus (Lm 4,3). Deste modo, pelo menos a base para a nossa especulação - a ausência de inteligência explicando a ausência de sofrimento e vice-versa - estará correcta. 4.3. A Revolução do Poema O facto do narrador do poema ter (re)interpretado o relato primitivo «en fonction de sa prope problématique espirituelle», escreve Lévêque (19070, p. 131), teve a intenção de colocar a sua obra de intelectual num relato tradicional que, nada tendo de impessoal, mas constituindo antes uma típica experiência religiosa histórica, fazer sofrer Job no século V a.C. e numa nova problemática, dar-lhe, e à sua solução, a verdade que o tempo e a aceitação popular transmitem. Excepcional é o processo literário, mas a solução continua a não existir. Tudo se teria passado como se o poeta, pegando no estilo literário de Ludlul Bel Nemequi ou do Job Sumério (monólogos), da Teodiceia (diálogo) e nas suas temáticas e, dando-lhe o toque pessoal (seu e da sua civilização), o juntasse à anterior prosa para dar uma resposta sábia e ortodoxa à religião popular que estaria dando a Satan uma herética importância pérsica. Quem fez a inserção de Satan não pretenderia introduzir com ele mais que a solução popular e vizinha, mas o intelectual que redigiu o poema não terá (re)interpretado Satan numa base de amor desinteressado e acrescentando a retribuição post-mortem? A impenetrabilidade dos desígnios divinos (11,6-7; 22,2; 36,26;37,5), o facto das acções humanas não atingirem Deus (22,2; 35,8), o facto de só Deus conhecer o local da sabedoria (12,12,-13; 15,8) não demonstra o começo da dúvida de que o dogma poderá não ser a lei certa que cristaliza a ética humana na visão divina e haveria que tentar, ainda que a nível puramente especulativo, novas soluções que se aproximassem mais da possível visão divina sobre o problema? Esta é, em nossa opinião, a verdadeira novidade do poema. Novidade só possível no judaísmo em que Satan nunca servira, em que Javé era um Deus justo, único, não possuindo oposição em si mesmo e em que os 213 sábios possuíam todo um anterior legado que podiam desenvolver a partir de um secular monoteísmo que nunca fora henoteísmo. Assim, 1,9; 2,4 para esta dúvida, 1,21; 2,10 para o amor desinteressado e 14,13-14; 19,25-26 para a retribuição post mortem são as colunas sustentáculo da mais bela mensagem do Livro de Job. 4.4. A Dúvida do Dogma Utilizando Satan Há dois pontos a ter em atenção: porquê o diálogo na corte celeste e a permissão de Javé? Satan interpela Deus e diz: «É a troco de nada que Job teme a Deus?» Como pode aparecer alguém a falar a Deus nestes modos e a colocar a justiça das suas acções em dúvida? Justiça que não significa equidade dogmática, pois Satan sabe e reafirma a rectidão de Job e, daqui, a não necessidade dos discursos dos amigos de Job, mas dúvida de que o dogma possua algum valor. Por outras palavras, é justo um Deus transcendentalizado imiscuir-se no útil humano? (22,2; 35,8). Se Deus mandasse calar Satan, tudo estaria certo. Mas não. Deus permite (=ordena) que os males caiam sobre o seu servo Job. Ora Deus não necessitava de provas para saber; o homem é que tem esse tipo de necessidades. Além disso, Deus tem muitos modos de ensinar. Deus sabe. Então, para que mandou Deus os males? E porquê só quando foi interpelado? Não estaria pretendendo introduzir algo de novo e prová-lo? Provocar tão grandes males só de facto estaria à mão de um verdadeiro mau, cínico e próximo de Deus: Satan, melhor, «hassatan». Resumindo, a dúvida se Satan é o correspondente e o provocador celeste à dúvida e ao provocado terrestre, Job. Não acreditavam os judeus na interligação entre os dois mundos?! Diz Lévêque: «La destinée de l’homme sur terre est envellopée d’une histoire aux dimensions beaucoup plus vastes, qui embrasse le ciel et les êtres espirituels qui Dieu a crées et qu’ l’y servent». (1970, 208). 4.5. O Amor Desinteressado A primeira resposta de Job (1,21) constitui um tema sapiencial «... qui a dû être currant, ne se rencontre silleurs dans l’A.T. qu’en Qo 5,12-16 à propos de l’inanité de l’esprit de lucre». O mesmo se retoma em Sl 23,4; 28,22; 30,8ss. Como a nudez de Job nada tem a ver com lucro, este tema sapiencial só se emcontra pois em Job e, se o tema, escreve Lévêque, «a du être courant...», foi eliminado da literatura canónica pela ortodoxia judaica por qualquer razão que desconhecemos, mas, com certeza, teria a ver 214 com o desejo de evitar que tal pensamento intelectual passasse disto mesmo, um problema académico. (1970, p. 199). Para Rad, não há qualquer dúvida: «Y a-t-il une piété désintérressé (sans récompense même dans l’extreme détresse? la reponse est positive». (1970, pp. 242243). Já para Lévêque tal não se pode afirmar tão claramente, embora fique no ar a afirmação: «il existe donc sur la terre au moins un homme capable d’aimer Dieu por lui même». (1970, p. 208). Ao menos um homem e ao menos num livro, acrescentaremos nós. 4.6. Retribuição depois da Morte Esta retribuição não significa necessidade de ressurreição, mas sim um renascer, um descer e subir do Cheol. Observemos o ambiente circundante a Job. A vida é perene (7,7; 7,16; 9,25...). É total a impossibilidade de escapar ao Cheol (2,9; 2,12) e, assim, o Cheol era certo e à vista, tanto mais que a ressurreição não tinha lugar no horizonte filosófico, mental e religioso judaico. Job sabe pois que vai eternamente para o Cheol e sem ter gozado a recompensa pela sua rectidão. Isto é de tal forma incongruente, anti-cultural, horrível e injusto que clama vingança de sangue (16,18) e constituirá o cerne de todo o livro e de toda uma literatura sapiencial. Vejamos agora Job. Job é um intelectual, um dos maiores sábios. Para tal poder ser afirmado, é colocado numa terra de tradição sapiencial (1,1), recebe amigos de semelhante estatura (2,11), que dão a impressão de pertencerem ao grupo dos maiores (12,12); isto se Job não ironiza! Job não o é menos, já que os seus amigos ouvem e consentem (12,3). Ora bem, se Job é possuidor deste gabarito intelectual e de uma tremenda fé em Javé (1,1; 1,8), teremos de observar a razão e a fé num discurso indiviso e de choque. No resultado deste discurso reside a heterodoxia de Job. A fé dos amigos é a fé do cumprimento dogmático, por Deus. Uma fé que lhes convém e que provocou a justeza da provocação de Satan, a aposta de Javé e a repreensão de Deus que lhes é feita. Deus, portanto, apoiou o sábio heterodoxo. Job, enquanto sábio, está em consonância com os amigos, com aquilo que está certo, porque sempre esteve certo, pelo menos para eles (6,24; 16,1-5). Porém, surge algo terrível, o sofrimento. Sabe-se que, para aprender, nada melhor do que experimentar e, assim, se nos apresentam dois conhecimentos, ambos experimentais 215 (5,27; 16,4) e não contraditórios, enquanto o de Job for individual, mas logo contraditórios quando Job apontar o mal que grassa no mundo e é recompensado com o êxito (9,24; 21,7-9). Por mais incrível que pareça, nem aqui os amigos se dão por vencidos. São mais teimosos e casmurros que o amigo ortodoxo da Teodiceia (XVII; XXV-XXVI). É mesmo essa teimosia que os leva, não a pensar que poderão estar enganados, mas a pensar e a afirmar que Job tem de ter pecados (22,23-24) e é essa mesma teimosia que trará a repreensão divina (19,28-29). Depois disto, e já com Job heterodoxo, este grande pensador e servo de Deus faz então a sua proposta. Por um lado, responde afirmativamente a um amor desinteressado proposto por Deus (1,21; 2,10). Por outro, tem de conceber a realização de um prémio numa outra vida e isto por duas razões: a sua fé em Javé é à prova de tudo e a sua razão não está ofuscada pelo sofrimento corporal. Assim, propõe um renascer. Deus tudo pode e Job tem fé (14,13-14). Na verdade, para o sistema que não contempla a vida eterna, recompensa e Cristo, mas tem recompensa terrena, tem o Cheol e uma doença que vai inevitavelmente conduzir a este, oferece duas tremendas certezas, certeza em Javé e na sua própria rectidão e, para além disso, não tendo conhecimento da aposta celeste, só esta resposta poderia conduzir a lógica do seu raciocínio. Javé tinha de fazer Job voltar a viver. Da mãe (mulher) à mãe (terra) e desta àquela. Como entender, seja no campo da fé, seja no campo da razão, que a sorte do pecador seja igual à do justo? Assim terá pensado Jeremias (Jr 12,1-5). O esquema actorecompensa tinha de ser mudado. Não chegara a introdução de Satan. Job 19,25-26 é o resultado «de uma nova aquisição teológica fundamental para o Novo Testamento: os justos serão ressuscitados pelo sopro vital de Deus (Ruah Javé)» (2Mac 7,9-36; 12,4446; 14,46). A retribuição da fidelidade a Deus é a vitória final sobre a morte (Dn 12,1-3; Sb 5,14-16; Is 53,8-12; Sl 1,5-6; 2Mac 7-9ss). Esta vitória, prémio, é a ressurreição e a vida eterna na presença de Deus (1Cor 15,20-23; Rom 8,18-25). Job, na discussão com os amigos, terá intuido a necessidade de renascer. Rad afirma que os diálogos «ce ne sont pas des controverses; l’issue en est assez claire: il s’agit d’entretiens d’un soufrant avec ses amis». (1970, p. 243). O assunto é bem polémico. Terrier afirma que «il pas davantage inspiré par une spéculation philosophique sur la nécessité de la sanction morale. Il s’inspire directement d’une perception spirituelle de l’amour de Dieu […] l’expression de l’espoir en un Dieu que se souvient de l’homme n’est pas formulée par un penseur abstrait qui observe les 216 problàmes de l’existence. Au contraire, elle émerge d’un théologien concret dont la pensée est le reflet d’une passion d’amant». (1963, p. 122). Ora, é impossível separar ambos os jobs e como poderia alguém, sem toda a utensilagem e experiência intelectual de Job, formular este pensamento? Não se estará a dar à fé deste tempo toda a razão do nosso tempo? Os versículos 16 e 17 dão-nos a impressão de não poderem ser englobados no mesmo pensamento dos anteriores. Em 13 e 15, Job tem um pensamento revolucionário e fala num plano de «se». Os versículos 16 e 17 são já a continuidade do tradicional. Assim, não cremos que, diz Rad, «la demande de Job n’est pas la perpétuation de soi; elle est de regagner la confiance de son Dieu». Como também não acreditamos que « Job est ici tout prés d’admettre qu’il est un pécher. Mais il ne peut pas offrir sa confession que dans la certitude du pardon», devido à interligação de dois factores que não possuem, ao contrário do que pode parecer, contradição: Job é um homem recto, mas é impuro, porque nada é puro aos olhos de Deus. (1970, p. 123) E, se concordamos que em 19,26-27 é o próprio Job que verá Deus, já não concordamos no respeitante a que Job «pensait à une experiénce terrestre». Como afirma Lévêque, «Job espère voir de son vivant l’intervention de Dieu. Mais […] Job ignorait tout de la réssurection». (1970), p. 489). Assim, a visão de Deus que Job espera é a terrestre. Resumindo, há autores que pretender ver em Job uma recompensa extra-terrena e outros terrena. Contudo, e tendo em conta a anterior argumentação, cremos tratar-se de uma recompensa terrena sim, mas depois de ter pasaado pelo Cheol. Uma vida depois da vida. 5. Conclusão Satanás, o Adversário: este «filho de Deus» parece ser mais o advogado do diabo das canonizações que o chefe da corte infernal. Ele é um entre os «filhos de Deus», numa só e única corte. Não parece existir qualquer sinal de uma dualidade de forças, de cortes ou do dualismo persa, que o autor devia conhecer. Satanás não tem, mesmo aqui, o poder sobre o mundo que aparenta ter em Mat 4,8-9 ou Luc 4,5-6. Parece possuir a administração do mal pelo o mundo sem ser o seu dono, pois é Deus quem o autoriza. Tentando colocar Satan numa cronologia, diremos que não existe até finais so século VI a.C. Por volta de 520 a.C., Satan é substantivado e aparece «hassatan», 217 mantendo-se até ao século IV a.C., altura em que se constituirá em nome próprio. A partir do século II a.C. aparecerão outros nomes próprios de anjos e, talvez mais tarde, Satan será identificado com a serpente do Genesis. Só na época inter-testamentária (I a.C.- I d.C.) se afinarão os conceitos angeológicos proto-actuais. No Novo Testamento, os escritores cristãos sempre traduziram Satan por Diabo, para o grego, e sempre com o artigo definido, significando especificamente o Adversário de Deus. Mateus chama-lhe Belzebu (Mt 5,35). As suas primeiras representações em frescos e miniaturas, não ainda com um aspecto diabólico, datam do século VI a.C. A Queda, se bem que afirmada com o Novo Testamento, só será dogma no IV Concílio de Latrão, realizado em 1215. O último narrador do Livro de Job era um intelectual e conhecia bem a literatura hebraica. Não admira pois que tenha deixado no ar uma aposta no amor desinteressado e na recompensa numa vida post mortem como solução para o sofrimento imerecido. Satan não serviu, nem no plano intelectual, nem no plano religioso. Principalmente neste, e a partir de determinada altura, constituia um grave perigo para a ortodoxia. Talvez que a posterior inclusão de Eliú (32,19), o sofrimento como ensinamento, tenha sido um reforço da ortodoxia evitando qualquer explicação do sofrimento a um nível que o intelectual deixara no ar e assim se reforçasse a ancestral explicação. Mas porquê o aparecimento de Satan no Prólogo, já que o Poema e o Epílogo simplesmente o ignoram? Talvez porque a inovação se faça na tradição, como diz Amenemop; talvez que, a nível popular, a narração tinha já um forte enraizamento, fruto de uma linha que seguia Zacarias; talvez porque, se Satan não resolvia, também o Poema não resolve; talvez porque se pretendia deixar a ideia de que a solução não estava nem com Satan, nem com a sabedoria tradicional, mas com uma nova sabedoria e com uma nova Israel e tais heterodoxias só podiam ser desencadeadas pel’ O Adversário. Porém, a sabedoria israelita havia chegado a um impasse, não conseguindo passar à prática as duas ideias intelectualmente sugeridas por Job. Chegará mais longe que os seus vizinhos, porque possui as suas heranças e sempre teve um Deus pessoal, mas esbarra no mesmo muro onde estava escrito: «é preciso renascer». Face à negação real e quotidiana daquilo que o Epílogo afirma, não admira que, para conservar Javé, Satan seja ainda a melhor solução e se compreenda o seu desenvolvimento até à contemporaneidade. Para ser encontrada a solução, ter-se-á de 218 esperar por Cristo. Com ele, mais que um Deus pessoal, rediniviza-se o humano e (morrendo e ressuscitando) dá sentido ao sofrimento. No entanto, não deixa de ser interessante que, mesmo assim, quer a nível popular, quer mesmo a nível intelectual, Satan dê bastante jeito. Não é na luta contra ele que o homem conquista a sua recompensa! ANEXO 219 Plano de O Livro de Job Prólogo Corpo da Obra Apresentação da corte celeste, provações de Job e chegada dos amigos Queixas de Job 1º Discurso de Elifax Resposta de Job 1º Discurso de Bildad Resposta de Job 1º Discurso de Sofar Resposta de Job 2º Discurso de Elifax Resposta de Job 2º Discurso de Bildad Resposta de Job 2º Discurso de Sofar Resposta de Job 3º Discurso de Elifax Resposta de Job Capítulos 1-2 Total de Versículos: 22+13= 35 3 4-5 6-7 8 9-10 11 12-14 15 16-17 18 19 20 21 22 23-24 26 21+27= 48 30+21= 51 22 35+22= 57 20 25+28+22= 75 35 22+16= 38 21 29 29 34 30 17+25= 42 3º Discurso de Bildad Resposta de Job 25 26-31 6 14+23+28+25+31+40= 125 5 Apresentação de Eliú 32 feita pelo Narrador 1º Discurso de Eliú 32-33 2º Discurso de Eliú 34 3º Discurso de Eliú 35 4º Discurso de Eliú 36-37 Epílogo 1º Discurso de Javé Resposta de Job 2º Discurso de Javé Resposta de Job Epílogo 38-39 39 40-41 42 42 17+33= 50 37 16 33+24= 57 41+32= 73 3 28+25= 53 6 11 NOTAS: O 1º discurso de Elifax é o único discurso e resposta com espaço igual. 1º discurso de Bildad: Em 10, 4-5, Job pergunta a Javé se Ele é como o homem, se os seus valores são como os dos homens. Parece-nos haver aqui uma antecipação a 2pe 3,8: «um dia diante do Senhor é como mil anos e mil anos como um dia», o que explica uma descoordenação, chamemos-lhe assim, entre Javé e Job. 1º discurso de Sofar: Não compreendemos 14,4 contido na resposta de Job a Sofar: «Quem fará sair o puro do impuro? Ninguém». Não compreendemos pois que, para Santo Agostinho, deus revela maior poder retirando o mal do bem que acabando com este. 220 Igualmente nos parecem incompreensíveis 14,13-15 contidos na resposta de Job a Sofar e 24,19, contidos na resposta de Job ao 3º discurso de Elifaz: «Se pelo menos me escondesse na região dos mortos, ao abrigo, até que a tua cólera tivesse passado, se me fixasses um limite em que te lembrasses de mim! Se um homem, depois de morto, pudesse reviver! Todo o tempo de meu combate eu esperaria até que me viessem soerguer. Tu me chamarias e eu responderia; estenderias a tua destra para a obra de tuas mãos» (...) «Como a seca e o calor absorvem a água das neves, assim a região dos mortos engole os pecadores». Parece-nos haver aqui a necessidade sentida por Job de haver uma vida pos-terrena e o o inferno ser só para os pecadores; o que implica haver também um céu. 2º discurso de Elifax: Os versículos 15,8 e 38,4, do 2º discurso de Elifaz e do 1º de Javé dizem: «Assististe porventura ao conselho de Deus, monopolizaste a sabedoria?»; Onde estavas quando lancei os fundamentos da terra? fala se estiveres informado disso». Estes versículos parecem anteceder São Paulo, Rom 9,19-20, onde o proceder divino tem liberdade soberana: «mas quem és tu homem para contestar Deus?» 2º discurso de Bildad: A resposta de Job ao 2º discurso de elifaz contém dois versículos que não compreendemos, 16, 19-20: «tenho já uma testemunha no céu, um defensor nas alturas». àrece-nos haver aqui já o anjo pessoal. Esta testemunha será um anjo da guarda sucessor do deus pessoal egípcio ou mesopotâmico? As duas mais pequenas respostas de Job são ao 2º e 3º discursos de Bildad. Em 19,4, «mesmo que eu tivesse verdadeiramente pecado, minha culpa só a mim diria repeito», fica a ideia que, em Israel, já era ideia assente que o pecado era da responsabilidade individual. 2º discurso de Sofar: Em 18,4, Bildad afirma que, embora possa ter havido um erro na actuação de Javé em relação a Job, não é por isso que a ordem do mundo tenha de ser mudada. Não existe o 3º discurso de Sofar, como tudo indicaria. Terá sido por ser o mais novo ou por estar já derrotado ao 2º discurso? 3º discurso de Bildad: Trata-se da maior respostas de Job e do mais pequeno discurso dos amigos. Apresentação de Eliú feita pelo Narrador: Anexação posterior? Cremos que sim porque não aparece 2,11 nem em 42,9; não é referido por Javé em 38,1 e o narrador tem necessidade de gastar 5 versículos com a apresentação feita a meio dos diálogos 32, 1-5. 221 O LIVRO DE JOB E A «SABEDORIA» MESOPOTÂMICA «Job» Sumério  Estrutura semelhante, exceptuando o Diálogo. Outras semelhanças:  «Distribuiste-me sempre sofrimento (...) os quinhões são distribuídos por todos, o quinhão que me cabe é o sofrimento», como Job 7,3;  «meu deus, tu que és meu pai», Job 10, 8-10;  «eles dizem- valorosos os sábios... nunca existiu dum velho», Job 14,4; 15,14;  «Deus que me mostraste os meus pecados... confessaria os meus pecados perante ti», Job 23,3;  A contradição apresentada pelo sofredor sumério nas linhas 26 e seguintes á semelhante a Job 12,3; 13, 1-2. Exceptua-se a revolta de Job contra os sábios, que não existe no sumério;  Deus fica contente com as palavras pronunciadas pelo sofredor; palavras que são semelhantes a Job 42,7, só que, aqui, Deus está irritado. Ludlul Bel Nemequi Teodiceia  Tal como Job, o narrador  Essencialmente é um homem importante diferente. Não caminha e rico. para a luz. Ao contrário, Job foge dos intelectuais  Na tábua 2, apresentae dirige-se nos as origens do essencialmente a Javé. sofrimento como sobrenaturais. Também diz que foi Deus quem lhe deu o mal. Os deuses são impenetráveis.  2, 119-120 é semelhante a Job 19,25.  Tal como em Job, há referência as limites da razão humana, tal como à brevidade da vida humana.  Ao contrário dos amigos de Job, o narrador sumério não acha que haja blasfémia tratar desta problemática.  Job parece mais humano, pois que tem hino de louvor quer no início quer no fim, ao contrário do Job sumério e de Ludlul Bel Nemequi. 222 O LIVRO DE JOB E A «SABEDORIA» EGÍPCIA Anii Amenemope (Pseudo) Merikaré  Aparece um  Afirma-se o dogma de  Como em Job, a vida é representante da faixa Job: «do the good and perene: life on hearth, it de uma faixa etária you will prosper, 15,5. is not long», 41. mais jovem e, ao  Semelhante a Job 10,9,  Maior contrário de Sofar, quando afirma: «man is transcendentalização e discorda da ortodoxia. clay and straw, the god humanização do deus: Contudo, também não is his bilder», 25, 13-14. «god who knows concorda com o sábio.  Aparece characters is hidden; one um deus can not oppose the lord  Afirma-se, como em transcendente e Job, a mudança e a of the land, he reaches primordial, como se inatabilidade na vida: all that the eyes can pode inferir de «he «one man is rich, see», 124-125.3 gives it to whom he another is poor (...) Man é o wishes», 20,6; «the  Semelhante does not have a single words men say are one «pequeno gênesis», way, the lord of life linhas 131-133, thing, the deeds of the confounds him», 5-10. god are another», 18, principalmente quando fala do monstro 16-17. marinho, como em Job  Também os desígnios de 3,8;9,13;40,2;41,25.4 deus são impenetráveis: «indeed you do not know the plans of the god», 22, 8. 3 Será que ao pretender falar directamente com Javé, Job pretendia humanizá-lo (mais)? NOTA GERAL: ser semelhante não significa ser cópia, tanto mais que as semelhanças se encontram mais a nível das ideias que literal. 4 223 PLANO DO «DIÁLOGO» D’ O LIVRO DE JOB 224 Os 3 Amigos 1º de Elifaz, Job 4-5 Apresentação do dogma que afirma o acto humano de acordo com a retribuição dada por Javé.. 1º de Bildad, Job 8 Ortodoxo como o anterior. Para este amigo, é mais que certo que Javé não dá a mão a malvados e não rejeita os íntegros. Para provar isto (parece) dar querer dar como exemplo o caso dos filhos de Job. 1º de Sofar, Job 11 Ortodoxo como os anteriores. Apresenta algo de novo: os desígneos de Javé são impenetráveis. 2º de Elifaz, Job 15 Job tem de ter pecado pois que até os anjos são impuros aos olhos de Javé. Apresenta interessante argumentação: Job não pode saber mais que os outros, ou Job Eliú Javé Job 3 Apresentação da problemática. O dogma teórico negado pela experiência pessoal. Crise da Sabedoria. Job 6-7 A recompensa é na terra, assim, «mostrai-me onde falhei», 6,24. Job 9-10 A realidade mostra o contrário: os maus é que vivem bem. Javé é todo poderoso e foi Ele que distribuiu o mal. Job clama que não pode justificar-se perante Javé. Job 12-14 Job aparce zangado. Ele também é um sábio e sabe tanto quanto os outros. Algo está errado e só Javé, a fonte da Sabedoria, pode explicar a Job o que aconteceu e as razões do acontecido. Job 16-17 Palavras bonitas mas tolas, face à situação. A vida é breve e a recompença, que é dada neste mundo, tarda. 225 seja, não pode negar o dogma pois não foi conselheiro de Javé. 2º de Bildad, Job 18 Reafirmação do já dito. Bildad critica mesmo Job por querer que, paós ele, o Dilúvio. 2º de Sofar, Job 20 Simples reafirmação. Nada de novo a acrescentar. 3º de Elifaz, Job 22 Reafirmação do dogma com uma nova argumentação: Javé está acima das obras humanas e, assim, não há razão para o dogma falhar. Job 19 reafirmação da inocência e de que o mal lhe foi dado por Javé. Job 21 Também sem novidade. Representa a sua triste realidade. Job 23-24 Job concorda com o dogma. Mas Javé faz o que quer e, assim, só um contacto directo entre ambos resolverá o problema. 3º de Bildad, Job 25 Job 26-31 Reafirma-se: Job Job defende a sua tem de ter pecado. inocência. Eles, os amigos, nada podem afirmar pois não possuem a verdadeira Sabedoria e Inteligência. 1º de Eliú, Job 32-33 Introduz-se o quarto amigo porque nenhum dos três conseguiu dar resposta aos argumentos de Job. A Sabedoria pertence a Javé e ele ensina de muitas maneiras: por sonhos e pela dor. Job é que não ouve. 2º de Eliú, Job, 34 Reafirma o dogma ao mesmo tempo 226 que afirma que Job peca ao falar contra Javé. 3º de Eliú, Job 35 Javé está acima do acto acto humano. 4º de Eliú, Job 36-37 Impenetrabilidade dos discursos de Javé. Termina com a única solução possível: entregar-se humildemente nas mãos de Javé. Job 39,33 Job não tem resposta. A realidade é mesmo isso. Job 42,1-6 Job humilha-se, mas parece ter ganho coragem para interpelar Javé e apresentar-lhe a sua situação. Job acredita porque Javé, todo poderoso, justiceiro e impenetrável, o diz. Resumo: Resumo: Infabilidade do Vida de justo e de dogma acto = recompensa retribuição. É a injusto. Tal facto 1º de Javé, Job 3839 Javé fala de forma cabal e o narrador fá-lo sair da tempestade, tal como deus de Jacob. Job nada sabe. Javé sabe o que faz e mostra a Job a perfeição do mundo. Novidade é a razão que Javé apresenta para explicar o sofrimento humano: 39, 16-17. 2º de Javé, Job 4041 Depois da maravilha que é o mundo, indicador de um deus bondoso, vem o discurso do poder castigador de Javé. Mesmo os animais que mais medo metem ao homem são obra de Javé. Epílogo Cegou-se ao fim: o dogma está certo. Resumo: Resumo: Os desígneos Javé é que sabe. Ele divinos são é bom, justo, logo, impenetráveis. Javé nunca erra. 227 experiência que o diz e o próprio Javé o conta a Elifaz através de sonhos. Javé não erra, pois só ele é puro e se encontra acima dos actos humanos, diz Elifaz. Os desígneos de Javé são impenetráveis, conclui Sofar.  A incapacidade racional na explicação conduz um teimosia ridícula, porque inadaptada. prova, até à exaustão, o erro do dogma, que toda a vida aceitou. As palavras que o defendem são lindas, mas só um diálogo directo com Javé poderá desbloquear a situação.  Situação vivencial inexplicável à luz da cultura secular, donde, surge uma situação de rebeldia à ortodoxia e de dúvida face à validade dessa mesma ortodoxia. está acima dos actos  Javé fala humanos. É a tempestade. Sabedoria e, não comentendo erros, Javé é a Justiça. Deste modo, entregar-se nas suas mãos é a opção inteligente. da 228 Fontes Bíblia Sagrada Estado Maior do Exército. (1930). Carta Topográfica de Portugal, 7. La Bible de Jerusalem, Éditions du CERF Literatura Sapiencial do Egipto e Mesopotâmia Livro de Henoch LUIZ, Manuel. (1841). Configuração do lanço destrada comprehendido entre o sitio da Porcalhota e o atalho de Queluz para Bellas, com as rectificações aprovadas em 1835... (litografia). Cota: PT-GEAEM-4221-1-3A-6. 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