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Oh, Humanidades, quais e onde estão tuas utilidades?

2024, Ética, política, razão e religião : Feitschrift em homenagem a Marcelo Perine

Neste capítulo de livro, com título "Oh, Humanidades, quais e onde estão as tuas utilidades? Sobre a atualidade da filosofia, das artes, da literatura!" proponho a seguinte reflexão:Similar ao canto das sereias diante de Ulisses, as melodias do pragma- tismo (acadêmico e econômico) seduzem e levantam as seguintes dúvi- das diárias, todas com a sua peculiar contundência: qual é, se é que há, a utilidade das artes, da literatura, da filosofia, com seus valores intangíveis, seladas com as marcas indeléveis da sua inutilidade aos olhos das ciências aplicadas, produtoras de bens e valores passíveis de mensuração? Que des- perdício dedicar nosso precioso tempo com as inutilidades das humanida- des diante da imparável celeridade do avassalador progresso econômico? Bordões populares que têm seu respaldo acadêmico nos divulgados ditos: a filosofia é a ciência com a qual e sem a qual o mundo continua tal e qual ou primum vivere, deinde philosophari!" e para isso A fim de atingir esse escopo, proponho uma reflexão articulada sobre três pilares: a. explorar, inicialmente, a distinção e a especificidade do que é tido na conta de útil e inútil e daí explicitar por que as huma- nidades são consideradas inúteis; b. a seguir, mostrar para que e por que elas são absolutamente úteis ao explicitar suas utilidades corporificadas na experiência da arte, da literatura, da filosofia; c. para, ao final, fundamentar a formação em humanidades como o caminho para o crescimento ideal em termos pessoais, sociais, políticos e ecológicos"

15 Oh, Humanidades, quais e onde estão as tuas utilidades? Sobre a atualidade da filosofia, das artes, da literatura! Luiz Rohden1 Grande é a poesia, a bondade e as danças... Mas o melhor do mundo são as crianças, Flores, música, o luar, e o sol, que peca Só quando, em vez de criar, seca. O mais do que isto É Jesus Cristo, Que não sabia nada de finanças Nem consta que tivesse biblioteca. (Fernando Pessoa, 1995) 1. Registro aqui agradecimento especial ao Mauricio Martins Reis (psicanalista, doutor em Filosofia, doutor e mestre em Direito,) que realizou uma revisão cuidadosa deste texto bem como sugeriu dicas pertinentes que foram incorporadas nele. E-mail: [email protected] 337 O progresso da nossa era moderna e do mundo de amanhã depende não só do conhecimento técnico, mas também da curiosidade desobstruída e dos benefícios de viajar rio acima, contra a corrente das considerações práticas (Dijkgraaf)2 ESTADO DA QUESTÃO: POR QUE INVESTIRMOS NOSSO TEMPO COM INUTILIDADES? S imilar ao canto das sereias diante de Ulisses, as melodias do pragmatismo (acadêmico e econômico) seduzem e levantam as seguintes dúvidas diárias, todas com a sua peculiar contundência: qual é, se é que há, a utilidade das artes, da literatura, da filosofia, com seus valores intangíveis, seladas com as marcas indeléveis da sua inutilidade aos olhos das ciências aplicadas, produtoras de bens e valores passíveis de mensuração? Que desperdício dedicar nosso precioso tempo com as inutilidades das humanidades diante da imparável celeridade do avassalador progresso econômico? Bordões populares que têm seu respaldo acadêmico nos divulgados ditos: a filosofia é a ciência com a qual e sem a qual o mundo continua tal e qual ou primum vivere, deinde philosophari! Professor e pesquisador de filosofia há mais de três décadas, amante da literatura, da arte, do mundo oriental, confesso que o fantasma dessa difundida inutilidade, que pende sobre as humanidades como uma espécie de espada de Dâmocles, sempre me assombrou e me acompanha. Contudo, em meu tempo, três fatos me levaram a enfrentar e a desconstruir aqui esse fantasma e, assim, por meio de uma inquirição sobre sua utilidade: 1. prestar minha homenagem ao meu ex-professor de filosofia antiga, mestre Perine, com quem aprendi a perceber, amar e sustentar a importância das humanidades junto aos trágicos, a Tales, Heráclito, Parmênides, 2. https://www.ias.edu/news/usefulness-useless-release. 338 Oh, Humanidades, quais e onde estão as tuas utilidades? Protágoras, Górgias, Platão e Aristóteles; 2. dar conta da tarefa de decano das Humanidades mediante a reflexão acerca da pertinência das humanidades; 3. juntar-me ao coro daqueles que batalham contra o câncer da corrupção que corrói e nos impede de nos tornarmos um país mais justo, democrático, inclusivo, sustentável, possível de ser construído apenas com os bens intangíveis e inúteis, próprios das humanidades. A fim de atingir esse escopo, proponho uma reflexão articulada sobre três pilares: a. explorar, inicialmente, a distinção e a especificidade do que é tido na conta de útil e inútil e daí explicitar por que as humanidades são consideradas inúteis; b. a seguir, mostrar para que e por que elas são absolutamente úteis ao explicitar suas utilidades corporificadas na experiência da arte, da literatura, da filosofia; c. para, ao final, fundamentar a formação em humanidades como o caminho para o crescimento ideal em termos pessoais, sociais, políticos e ecológicos. 1. POR QUE AS HUMANIDADES SÃO TIDAS NA CONTA DE COISAS INÚTEIS? Sobre as humanidades, desde os tempos de antanho, pende a pecha de serem inúteis porque não solucionam problemas imediatos, porque não são proveitosas nem lucrativas como certas técnicas e as ciências aplicadas. 1.1. Sobre o reino da filosofia Se a má fama da inutilidade da filosofia foi crescendo, isso se deve, por um lado, porque filósofos se enclausuraram em seus gabinetes, sentaram-se em seus egos e deixaram de sentir, de perceber e de lidar com a vida real. Pressupondo que filosofia consistisse apenas em pesquisar, enredaram-se em seus conceitos, criaram modelos e sistemas sem sangue, sem carne, sem sabor e, portanto, sem uma efetiva contribuição pessoal, social e política. Por outro lado, filósofos e filosofias que primaram pela compreensão e implementação da justiça e da felicidade pessoal conjugadas Luiz Rohden 339 com a social – não as do tipo astrológicas e ideológicas fanáticas – sempre constituíram uma ameaça, um perigo. O exemplo longínquo foi Sócrates, tido como a mutuca que ferroava a égua adormecida que era Atena e que pagou esse preço com sua vida; e, em nossas terras, a ditadura não apenas prendeu, exilou e exterminou pessoas, mas continua extirpando a filosofia e a sociologia dos currículos escolares. 1.2 Sobre a educação A inutilidade atribuída às humanidades – seja filosofia, arte, literatura – é produto de uma visão e postura mercantilista para as quais a régua do real é o rentável, sinônimo do útil. O inútil associa-se, em diferentes tempos e de inúmeras formas, a tudo aquilo que não é rentável e que não possui efeito pragmático e imediato. É nesse contexto que se reduz a medida do produto interno bruto (PIB) de um país, por exemplo, apenas ao seu crescimento econômico, desconsiderando seu Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), isto é, sua qualidade de vida, distribuição de renda, justiça social, formação integral. É nessa esteira que Martha Nussbaum, em seu livro Sem fins lucrativos, teceu críticas contundentes à redução da educação “a um processo de capacitação para o negócio e à contribuição para o PIB per capita da nação” (Pécora, 2015, p. x). Reducionismo que limita e ameaça os [...] fundamentos da educação liberal clássica, cujo primeiro valor é o vigor da vida democrática, o apego aos valores do pluralismo, das liberdades civis, da conquista de direitos iguais para os cidadãos, independente da raça, classe, gênero, orientação sexual, religião. (Ibid., p. x) E, segundo a filósofa: [...] se essa tendência prosseguir, todos os países logo estarão produzindo gerações de máquinas lucrativas, em vez de produzirem 340 Oh, Humanidades, quais e onde estão as tuas utilidades? cidadãos íntegros que possam pensar por si próprios, criticar a tradição e entender o significado dos sofrimentos e das realizações dos outros. (Nussbaum, 2015, p. 4) Isso se torna cada vez mais patente porque “no mundo inteiro os cursos de artes e humanidades estão sendo eliminados de todos os currículos escolares, em favor do desenvolvimento dos cursos técnicos” (ibid., 2015, p. 23). Saberes como filosofia, literatura e artes são considerados inúteis; e como todos “os saberes que não trazem lucro são inúteis”, pergunta-se: “por que empregar dinheiro num âmbito condenado a não produzir lucro? Por que destinar recursos a saberes que não trazem uma vantagem rápida e tangível?” (Ordine, 2016, p. 33). E assim, tudo que é inútil, “tudo o que vai além das trocas comerciais e do ‘tirar vantagem’ da própria situação social” (ibid., p. 116) deve ser extirpado do processo formativo. É nesse contexto que se entende, também, a absolutização das ciências aplicadas em desprestígio do apoio e do incentivo à pesquisa básica. Como se vê, a medição do progresso social está sendo feita pelo diapasão do útil restrito ao crescimento econômico em detrimento da qualidade de vida e do planeta. Sem os valores gestados e sustentados pelos saberes humanísticos, a humanidade parece perder seu rumo e sua razão de ser. Sem o cultivo das humanidades, retrocederemos, rápida e tragicamente, ao estágio predatório da selvageria, em que a moeda toma o lugar da relação respeitosa. E por isso, atualmente, “uma vida plena de sentido e uma cidadania respeitosa e solícita não estão entre os objetivos para os quais vale a pena empregar o tempo” (Nussbaum, 2015, p. 139), nem investir na educação humanística, de modo que acabamos por eliminar “justamente os elementos da atividade educacional que são cruciais para preservar uma sociedade saudável” (ibid., p. 142). 1.3. Sobre as utilidades do inútil Entre outras tarefas próprias do filosofar, está a de fazer uma terapia da linguagem a fim de examinar e reabilitar conceitos e temas que a Luiz Rohden 341 tradição, por inúmeras razões e motivos, cobriu com as cinzas dos seus interesses. Proponho, agora, assoprar as cinzas utilitaristas que se sobrepuseram à utilidade das humanidades. Antes de efetivar o que propus, preciso confessar quão difícil é perceber o valor do que é inútil e o quão pesaroso, por vezes, é perder tempo com amores, amigos e ainda sentir prazer com tais inutilidades com as quais Fernando Pessoa se comprazia em seu fazer poético: Ai que prazer/ Não cumprir um dever,/ Ter um livro para ler/ E não o fazer!/ Ler é maçada,/ Estudar é nada./ O sol doira/ Sem literatura (Pessoa, 1995, p. 244). Pertenço ao rebanho dos que têm dificuldades de jogar conversa fora, brincar, de ter agenda desentupida de mil tarefas. Sei que não sou o único incapaz de ver a utilidade do inútil; vivemos dominados “pelo homo aeconomicus” e por isso “não é fácil compreender a utilidade do inútil e a inutilidade do útil” (Ordine, 2016, p. 17). Heidegger, ao procurar libertar “a noção de utilidade de uma finalidade exclusivamente técnica e comercial”, expressou “com clareza uma dificuldade, muito difundida entre seus contemporâneos, de compreender a importância do inútil”, pois, “para o ‘homem atual’ é realmente cada vez mais complicado mostrar interesse por algo que não implique um uso prático e imediato com ‘objetivos técnicos’” (ibid., 2016, p. 93).3 Por essa razão, numa passagem dedicada ao “Dasein ‘como ser-no-mundo, como ocupar-se com as coisas (Besorgen) e cuidar de outros (Sorgen für), como ser-com (Mitseiend) as pessoas que vem ao encontro”, ele “reflete sobre a utilidade do inútil: ‘o mais útil é o inútil. Mas experienciar o inútil é o mais difícil 3. Consequentemente, “a deusa Mnemosine, mãe de todas as artes, e de todos os saberes da mitologia greco-romana, será obrigada a deixar a Terra para sempre. E com isso, infelizmente, desaparecerá dentre os seres humanos todo desejo de interrogar o passado para compreender o presente e imaginar o futuro. Teremos uma humanidade sem memória, que perderá completamente o sentido da própria identidade e da própria história” (Ordine, 2016, 128). 342 Oh, Humanidades, quais e onde estão as tuas utilidades? para o homem moderno”; “deve-se ver o útil no sentido daquilo que cura (Heilsamen), isto é, como aquilo que conduz o homem a si mesmo” (ibid., pp. 92-93). Essa é a nova roupagem e o sentido próprio da utilidade das humanidades. Nessa linha, Dewey sustenta que “a finalidade principal da educação” deve ser “a conquista de uma vida plena de sentido” (Nussbaum, 2015, p. 5). A tessitura desse modelo de educação se faz, dialeticamente, entre a excelência técnica, geradora de rendas, e a formação humana que pressupõe e “reconhece que todos os indivíduos têm dignidade humana inalienável”, que “está comprometido com a democracia”, favorecendo “uma firme proteção da liberdade política, a liberdade de palavra, de associação e de prática religiosa, e direitos fundamentais em outras áreas como educação e saúde” (ibid., p. 25). Enfim, [...] a utilidade dos saberes inúteis contrapõe-se radicalmente à utilidade dominante que, em nome de um interesse exclusivamente econômico, está progressivamente matando a memória do passado, as disciplinas humanísticas, a arte, o pensamento crítico e o horizonte civil que deveria inspirar toda atividade humana. (Ordine, 2016, p. 12) Revisto e reconfigurado o sentido da inutilidade das humanidades, vejamos algumas das suas utilidades. 2. SOBRE AS MIL E UMA UTILIDADES DA INUTILIDADE DAS HUMANIDADES É na contramão de um modo de ver e de lidar que me disponho a defender e a mostrar as mil e uma utilidades da atribuída inutilidade das humanidades, corporificadas nas artes, na literatura e na filosofia. Na perspectiva utilitarista: Luiz Rohden 343 [...] um martelo vale mais que uma sinfonia, uma faca mais que um poema, uma chave de fenda mais que um quadro: porque é fácil compreender a eficácia de um utensílio, enquanto é sempre mais difícil compreender para que podem servir a música, a literatura ou a arte. (Ibid., p. 12) Por honestidade e coerência intelectual, não quero mais me eximir de sustentar a imprescindibilidade das utilidades das humanidades no atual contexto político brasileiro. Em tempos sombrios como esses, nos quais o negacionismo tenta ter a última palavra, enquanto o pragmatismo e as soluções econômico-lucrativas pretendem ditar os rumos da sociedade, assolada pela crise econômica acelerada pela pandemia: [...] é preciso compreender que exatamente aquelas atividades que não servem para nada podem nos ajudar a escapar da prisão, a salvar-nos da asfixia, a transformar uma vida superficial, uma não vida, numa vida fluida e dinâmica, numa vida orientada pela curiositas em relação ao espírito e às coisas humanas. (Ibid., p. 19) A literatura nos fornece inúmeras dicas das utilidades das humanidades; nos termos de Victor Hugo, por exemplo, não basta “‘providenciar a iluminação da cidade’ porque ‘a noite pode também cair sobre o mundo moral’” (ibid., p. 112), pois, “se pensarmos exclusivamente na vida material, quem irá providenciar que se acendam as ‘tochas do espírito?’” (ibid., p. 112), e ainda: Se quero ardentemente, apaixonadamente, o pão para o operário, o pão para o trabalhador, que é meu irmão, juntamente com o pão da vida, quero o pão para o pensamento, que também é o pão da vida. Quero multiplicar o pão do espírito como o pão do corpo. (Ibid., p. 112) Afinal de contas, lembremos que somos animais que nos alimentamos de pão e de símbolos, de carne e de amores, de vinho e de paixões. De acordo com Tolstoi, “a palavra ‘utilidade’ claramente não tem o mesmo 344 Oh, Humanidades, quais e onde estão as tuas utilidades? significado que lhe é atribuído pelos homens de negócios, e com eles pela maioria dos nossos contemporâneos [...] o útil é unicamente aquilo que pode tornar o homem melhor” (ibid., pp. 144-145), isto é, aquilo que de fato confere sentido e sabor à vida. Ciente da tremenda dificuldade de nos contrapormos à torrente utilitarista econômica e pragmática acadêmica, recorro ao nosso literato João Guimarães Rosa, que nos encoraja a filosofar: “o correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem” (Rosa, 1958, p. 301), e, no caso, contra a descartabilidade das humanidades. A fim de especificar melhor a imprescindibilidade das humanidades, explicitarei, a seguir, algumas das utilidades específicas das artes, da literatura, da filosofia. 2.1 Sobre as utilidades do saber das Artes Nas palavras de Eugène Ionesco: O homem moderno, universal, é um homem atarefado: não tem tempo, é prisioneiro da necessidade, não compreende como algo possa não ser útil; não compreende nem mesmo como, na realidade, até mesmo o útil possa ser um peso inútil, esmagador. Se não compreende a utilidade do inútil, a inutilidade do útil, não se compreende a arte. (Ordine, 2016, p. 96) A manifestação primordial do negacionismo envolve o ritmo frenético do mundo contemporâneo em que vivemos sob a ditadura do útil e das aparências, às custas de comportamentos e afazeres cotidianos que, mais do que nos demandarem tempo, surrupiam-nos a possibilidade de pensar, de refletir, de questionar para além dos compromissos diários de cada um. A culminância de uma experiência está atualmente impregnada pela demanda da performance, da produtividade, do respaldo digital de invisíveis espectadores e de supostos interessados. Estamos, sobremaneira, em face de uma patologia abrangente da democracia – o negacionismo – que dispersa cada voz ou grupo de interesses comuns, por mais bem-intencionados que sejam, Luiz Rohden 345 em bolhas de engajamento social cuja posição crítica tem, invariavelmente, resvalado inerme entre a intolerância e a indiferença. É imperiosa a tarefa de recuperarmos as humanidades para o fito de se promover, desde a formação de nossos jovens, alguma possibilidade de melhoria nas condições político-sociais do povo brasileiro; para tanto, o fio de Ariadne passa pelo revigoramento estético do mundo das artes, conforme veremos a seguir. 2.1.1. A criação, bem como a degustação da arte poética, nutre e estimula nossa potencialidade e desejos vitais de imaginar (Rohden e Jesus, 2018), criar e sonhar com mundos e realidades que alimentem nossa alma e nosso coração para além do utilitarismo econômico e do pragmatismo científico. Nessa direção, Ionesco reitera que “a poesia, a necessidade de imaginar e de criar, é tão fundamental quanto respirar. Respirar é viver e não fugir da vida” (Ordine, 2016, p. 19). Ora, por certo “este respirar, como mostra Pietro Barcellona, exprime ‘a vida que excede à própria vida’, tornando-se ‘energia que circula em forma invisível e que ultrapassa a vida, mesmo sendo imanente a ela’” (ibid., p. 19). E é justamente: Nas dobras daquelas atividades consideradas supérfluas que, de fato, podemos encontrar o estímulo para pensar um mundo melhor, para cultivar a utopia de poder atenuar, se não eliminar, as injustiças que se propagam e as desigualdades que pesam (ou deveriam pesar) como uma pedra em nossa consciência. (Ibid., p. 19) Será por essa hermenêutica humanística das artes que conseguiremos efetuar um movimento perturbador, de estranhamento capaz de bloquear criticamente a imersão na existência cotidiana de certo modo ocidental de existência que nos tem conduzido ao extremo violento e desolador de um conjunto de erosões civilizatórias. O tempo humano tem se convertido em cronômetro, a vida tem se conjugado pela produtividade, o ensino tem sido atalhado por saberes instrumentais, a política tem sido o adestramento de 346 Oh, Humanidades, quais e onde estão as tuas utilidades? retóricas de conveniência em benefício de palanques particulares. O que mais virá pela frente? Em primeiro lugar, cabe-nos não negar o estado difícil em que a comunidade se encontra em pleno século XXI. 2.1.2. O cultivo das artes desenvolve nossa sensibilidade e nossa percepção do mundo e dos outros e, portanto, de nós mesmos. Incorporar o estudo, a assimilação e a pesquisa das artes nos currículos significa sustentar “um tipo de educação participativa que estimula e aprimora a capacidade de perceber o mundo através do olhar de outra pessoa” (Nussbaum, 2015, p. 96). O encontro com as obras de arte nos possibilita “aprender a perceber o outro ser humano não como um objeto, mas como uma pessoa completa” (ibid., p. 96). A experiência de obra de arte move e estimula “a capacidade de imaginar como pode ser a experiência do outro” (ibid., p. 97), a exemplo dos paradigmáticos heteronímicos de Fernando Pessoa. Ela também nos possibilita jogar com nossos impulsos de vida e de morte, com nossos desejos de amor e de ódio, de modo a elevá-los à nossa consciência e, ao mesmo tempo, elaborá-los e poder educá-los. Estou de acordo com Winnicott, para quem a experiência lúdica, gratuita, como é o caso exemplar da arte, contribui “para o desenvolvimento de atitudes saudáveis de amizade, amor e, mais tarde, de participação política” (ibid., p. 100). Enfim, de acordo com Martha Nussbaum: [...] precisamos, portanto, desenvolver o ‘olhar interior’ dos alunos. Isso significa uma formação cuidadosamente moldada nas artes e nas humanidades [...] que os ponha em contato com questões de gênero, raça, etnia e experiência de cooperação transculturais [...]. Elas desenvolvem a capacidade de brincar e de sentir empatia de modo geral e tratam de pontos cegos culturais específicos. (Ibid., p. 108) Luiz Rohden 347 2.1.3. A experiência com obras de arte possibilita autoconhecimento e autocuidado. De acordo com Gadamer (1997, p. 169), “a experiência da arte é uma forma de conhecimento dos sentidos, que transmite à ciência os últimos dados, a partir dos quais põem-se a construir o conhecimento da natureza”. Ela é também “a mais peremptória advertência à consciência científica, no sentido de reconhecer seus limites” (ibid., p. 33), que nos previne de objetificarmos o mundo, o outro e nós mesmos. Enquanto conhecimento que conjuga cognição e emoção, razão e afetos, a experiência da obra de arte faculta o autoconhecimento, o autocuidado e o cuidado dos outros, tornando-os mais integrais (Rohden e Kussler, 2017). Isso porque, enquanto experiência de “‘sentir-se alcançado’ (Betroffenheit)” pela obra, “a obra de arte que diz algo nos confronta conosco mesmos” e “compreender o que uma obra de arte diz a alguém é um encontro consigo mesmo” (Gadamer, 1996, pp. 60-61). Nos termos de Tagore, “as artes estimulam tanto o autodesenvolvimento como a receptividade aos outros. Os dois geralmente se desenvolvem juntos, já que é difícil apreciar no outro o que não exploramos em nós mesmos” (Nussbaum, 2015, p. 104). 2.1.4. O encontro com a arte nos torna mais livres. A experiência de obra de arte é uma possibilidade de autoconhecimento que é, por sua vez, uma via para salvarmos “a liberdade que está não somente ameaçada pelos respectivos governantes, mas também pela dominação e pela dependência que surge de tudo aquilo que acreditamos” (Gadamer, 1992, p. 114). As obras de arte, além de serem frutos da liberdade criadora, fomentam nossa consciência e prática livre, porque, em seu jogo imaginativo, são capazes de romper as fronteiras das ideologias cegas e limitadas, dos negacionismos e dos totalitarismos. Conforme Ionesco, “um país que não compreende a arte é um país de escravos ou de robôs, um país de pessoas infelizes, de pessoas 348 Oh, Humanidades, quais e onde estão as tuas utilidades? que não riem nem sorriem, um país sem espírito; onde não há humor, não há riso, há cólera e ódio” (Ordine, 2016, p. 96), como vemos em nossas ruas desgovernados por Naro ou Nero! É no encontro livre, gratuito, desinteressado com as artes que podemos desenvolver nossa capacidade intuitiva. A intuição, enquanto inteligência sensível, é cultivada mediante experiências que realizamos ao criar obras de arte e ao nos entregarmos às suas provocações. Pessoas que não cultivam seu espírito imaginativo, crítico, sensível, criativo e livre se tornam, como vemos por aí, presas fáceis de fanatismos delirantes e “basta pensar nos fanatismos religiosos das últimas décadas” ou de “uma violenta paixão coletiva qualquer”, pois, nos termos de Ionesco: Essas pessoas sempre ocupadas, ansiosas, voltadas para um fim que não é humano ou que é somente uma miragem, de repente, ao som de quem sabe qual trombeta, ao chamado de um doido ou demônio qualquer, podem se deixar levar por fanatismo delirante, por uma violenta paixão coletiva qualquer, por uma neurose popular. (Ordine, 2016, p. 97) Um povo que não cultiva as artes acaba seduzido e conduzido por fake news, por ideologias “mais diferentes e variadas, de direita e de esquerda”, as quais “constituem ameaças que pesam sobre uma humanidade que não tem tempo para refletir, para voltar a encontrar-se consigo mesmo” (Ordine, 2016, p. 97). O cultivo das artes amplia o conhecimento e a percepção do mundo mediante a imaginação, a criação, o desenvolvimento e a educação de nossa sensibilidade. 2.2. Sobre as utilidades do saber da Literatura Embora a literatura seja uma das espécies de arte, sem entrar no mérito ou aprofundar essa questão, retomarei aspectos abordados, mas que julgo importante destacar no bojo do saber literário, porque aprofundam Luiz Rohden 349 nossa compreensão acerca das utilidades das humanidades. A afirmação de Mario Vargas Llosa, na ocasião em que recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 2010, acena inúmeras utilidades da atividade literária: Um mundo sem literatura se transformaria num mundo sem desejos, sem ideais, sem desobediência, um mundo de autômatos privados daquilo que torna o ser humano um ser humano: a capacidade de sair de si mesmo e de se transformar em outro, em outros, modelados pela argila dos nossos sonhos. (Ordine, 2016, p. 20) O saber literário, enquanto vasto laboratório de experimentos mentais e emocionais sobre nossos desejos, nossos sonhos, nossas paixões, atualiza nossa liberdade criadora e nos plenifica enquanto humanos, pois nos mobiliza a sairmos de nosso ego e nos confeccionarmos no encontro com outros modos de pensar, de sentir, de agir, de se relacionar, de ser feliz. Daí porque a escritura e a leitura (Rohden, 2004) dos clássicos, conforme Calvino, “servem para entender quem somos e aonde chegamos” (Ordine, 2016, p. 27), ao nutrirem nossa consciência histórica e fomentarem a construção de nosso futuro, pessoal e social. Gadamer foi um amante da literatura. Ao entrar na universidade, apropriou-se da crítica “ao ethos do desempenho ou da produtividade, que domina tudo na forma de otimismo em relação ao progresso” e por isso, desde cedo, começou “a ler os romances russos, bem como os grandes escandinavos e os holandeses” (Gadamer, 2001, p. 25). Desde então, fundamentou a hermenêutica filosófica com os fios da formação humanístico-literária, que considerava necessária nas universidades “porque os meios de comunicação de massa tudo dominam e agem como anestésicos [...], estão aumentando as especializações nos planos de aula” (ibid., p. 25). Em face da hiperespecialização profissional e da orientação mercantilista da educação, a literatura possui uma função crítica: Exatamente por ser imune a qualquer aspiração a lucros, poderia colocar-se, por si mesma, como forma de resistência aos egoísmos 350 Oh, Humanidades, quais e onde estão as tuas utilidades? do presente, como antídoto à barbárie da utilidade, que chega mesmo a corromper as nossas relações sociais e os nossos afetos profundos. (Ordine, 2016, p. 33) E ainda: [...] contra toda a perspectiva utilitarista, Calvino lembra-nos que até os clássicos não são lidos porque devem servir para alguma coisa: são lidos somente pelo prazer de serem lidos, pela satisfação de se viajar com eles, porque somos animados somente pelo desejo de conhecer e de nos conhecermos. (Ibid., p. 98) Ler pelo prazer de ler acaba por afetar e alargar nosso modo de olhar, de ouvir, de perceber e, portanto, de nos relacionarmos com o mundo, com os outros, sob o horizonte da complexidade e da completude. Ao nos levar a conhecer outros mundos e modos de ser, não apenas somos compelidos a romper preconceitos, mas também a estabelecer novas formas de relação que nos tornam mais genuinamente nós mesmos, mais livres e plenos. Nas palavras de Ordine: A literatura e os saberes humanísticos, a cultura e a educação constituem o líquido amniótico ideal no qual podem se desenvolver vigorosamente as ideias da democracia, liberdade, justiça, laicidade, igualdade, direito à crítica, tolerância, solidariedade e bem comum. (Ibid., p. 35) Por ser fruto da atividade imaginativa, a literatura possibilita criar e experienciar (Rohden, 2015a) outros mundos e modos de ver que nos possibilitam maximizar nosso desejo de felicidade, de liberdade e de realização plenas. Ao lermos, desenvolvemos nossa percepção dos sentimentos e sofrimentos dos outros, nossa empatia para com seus desejos e expectativas e, “embora possamos nos tornar poderosos por meio do conhecimento, alcançamos a plenitude por meio da compaixão” (Tagore apud Nussbaum, 2015, p. 95), a qual compõe a arte literária. É pela imaginação narrativa que desenvolvemos nossa “capacidade de pensar como deve ser se encontrar no Luiz Rohden 351 lugar de uma pessoa diferente de nós, de ser um intérprete inteligente da história dessa pessoa e de compreender as emoções, os anseios e os desejos que alguém naquela situação pode ter” (Nussbaum, 2015, pp. 95-96). Se somos o que lemos, o bom leitor é aquele que se deixa tocar, afetar e se transformar pelos experimentos afetivo-mentais (Rohden 2015a) que a literatura elabora. Sentimos que não somos mais os mesmos depois que lemos, pois “a leitura nos transforma em alguém diferente de quem éramos até aquele momento” (Bieri, 2008, p. 6). Além disso: O leitor da literatura aprende como se pode falar sobre o pensar, querer e sentir dos humanos. Aprende a linguagem da alma. Aprende que é possível sentir sobre o mesmo assunto de modo diferente do que se estava acostumado a sentir. Um amor diferente, um ódio diferente. Aprende novas palavras e metáforas para os sucessos da alma. (Ibid., p. 7)4 A propósito das artes e dos ecos da cultura em geral, a psicanálise enfatiza, desde Freud, a importância da sublimação como potencialidade – criativa e civilizatória – de as pulsões, que pressionam por descarga, serem reinvestidas energeticamente em sucedâneos da libido, portanto, em formas mais sofisticadas, convertendo-as, a partir dessa capacidade especificamente humana, em elaborações artísticas as mais variadas, das quais, como visto, um exemplo é a literatura. As realizações do artista, assim sendo, “só se tornam obra de arte quando passaram por uma transformação que atenua o que nelas é ofensivo, oculta sua origem pessoal e, obedecendo às leis da beleza, seduz outras pessoas com uma gratificação prazerosa” (Freud, 1996, p. 189). A força atuante e contínua da sexualidade, em vez de ser 4. Neste sentido, o leitor, ou a pessoa culta “es aquél que sabe hablar de manera mejor y más interesante sobre el mundo y sobre sí mismo, que aquéllos que sólo repiten fragmentos de palabras y de pensamien- tos, con los que alguna vez se toparon. Su capacidad de poder articular mejor le permite ahondar y desarrollar cada vez más su autocomprensión sabiendo que eso nunca termina, porque no hay llegada a una esencia de sí mismo” (Bieri, 2008, p. 7). 352 Oh, Humanidades, quais e onde estão as tuas utilidades? descarregada em seu estado bruto, transforma-se em benefício da cultura, das pessoas, da sociedade. Trata-se da primazia social, e ética, do empreendimento desinteressado – porém engajado existencialmente – preconizado pelas múltiplas expressões da arte. Trata-se de uma amostra dessa utilidade “inútil” de uma temporalidade estranha aos negócios, ou seja, não atravessada pela premência do imediato especulativo que conduz o valioso à validade descartável de uma sobrevida mercantil. A rigor, como bem sabemos, a tangibilidade da arte pelas cifras é um desvio deturpado da origem incomensurável que a mobiliza a partir de uma criação genuinamente livre, vale dizer, ociosa. 2.3 Sobre a utilidade do saber da filosofia Uma das tarefas próprias da filosofia é fazer terapia da linguagem. No caso, estou propondo essa terapia relativamente aos sentidos e significados dos termos utilidade e humanidades. A tarefa a que me propus, inicialmente, foi seccionar o atrelamento semântico do termo útil ao que é lucrativo, pragmático; a seguir, explicitar e “revelar aos homens a utilidade do inútil ou, em outras palavras, ensiná-los a distinguir entre os dois sentidos da palavra ‘útil’” (Ordine, 2016, p. 9). E o fiz fazendo críticas e apontando ressalvas ao uso inapropriado tanto do que se toma por útil quanto por inútil em nossas vidas. Destaco que a utilidade da inutilidade das humanidades bem como a inutilidade da utilidade mercadológica são objeto de atenção não apenas de parte da filosofia, em que o amor ao saber tem prevalência sobre o saber aplicado (produtor de lucro), mas de parte da ciência. Abraham Flexner mostrou que a ciência: [...] tem muito a ensinar sobre a utilidade do inútil [...] juntamente com os humanistas, os cientistas também desempenharam e continuam a desempenhar um papel importantíssimo na batalha contra a ditadura do lucro, para defender a liberdade e a gratuidade do conhecimento e da investigação. (Ibid., p. 15) Luiz Rohden 353 E “até mesmo John M. Keynes, pai da macroeconomia, atestou que “o bom é sempre melhor que o útil” e que por isso “devemos voltar a colocar os fins antes dos meios, e antepor o bom ao útil” (ibid., p. 25). Destaco que sua recomendação permanece indelével, pois “a essência autêntica da vida coincide com o bom (com aquilo que as democracias comerciais sempre consideram inúteis) e não com o útil” (ibid., p. 25), o que está em total sinergia com a tradição ético-humanista. 2.3.1. Curiosidade, admiração Somos seres curiosos, ávidos por conhecimento, que nos realizamos conhecendo a nós, aos outros e ao mundo. De acordo com Aristóteles: Os homens começaram a filosofar, agora como na origem, por causa da admiração, na medida em que, inicialmente, ficavam perplexos diante das dificuldades mais simples; em seguida, progredindo pouco a pouco, chegaram a enfrentar problemas sempre maiores [...] se os homens filosofaram para libertar-se da ignorância, é evidente que buscavam o conhecimento unicamente em vista do saber e não por alguma utilidade prática. (Aristóteles, 2002, pp. 12-13)5 Essa prática livre, admirativa, apaixonada, pode ser tida como inútil em termos pragmáticos ou monetários, mas a libertação da ignorância e o cultivo do saber filosófico dizem respeito à instauração do sentido e à felicidade humana, as quais não cabem em algoritmos, nem em cifras e cifrões. O filosofar, enquanto cultivo do amor ao saber em si mesmo, fomentado 5. “É evidente, portanto, que não a buscamos por nenhuma vantagem que lhe seja estranha; e, mais ainda, é evidente que, como chamamos livre o homem que é fim para si mesmo e não está submetido a outros, assim só esta ciência, dentre todas as outras, é chamada livre, pois só ela é fim para si mesma” (Aristóteles, 2002). 354 Oh, Humanidades, quais e onde estão as tuas utilidades? pela curiosidade e pela admiração, contrapõe-se ao conhecimento aplicado, embora constitua um importante ingrediente para a maturação da referida aplicabilidade: Saberes que têm um fim em si mesmos e que – exatamente graças à sua natureza gratuita e livre de interesses, distante de qualquer vínculo prático e comercial – podem desempenhar um papel fundamental no cultivo do espírito e no crescimento civil e cultural da humanidade. Nesse sentido, considero útil tudo o que nos ajuda a nos tornarmos melhores. (Ordine, 2016, p. 9) Antípoda da utilidade econômica ou do pragmatismo acadêmico, a curiosidade não é apenas o leitmotiv (ou a alma) da filosofia, tampouco o seu objeto exclusivo, mas faz parte da tessitura científica. Exemplo paradigmático disso está retratado no famoso ensaio de Abraham Flexner, um dos fundadores do Instituto para Estudos Avançados de Princeton, “criado justamente com o objetivo de propor uma investigação livre de qualquer vínculo utilitarista e inspirado exclusivamente pela curiositas dos seus membros ilustres” (ibid., p. 14), como Albert Einstein e Julius Robert Oppenheimer. Isso atesta que: [...] as pesquisas científicas teóricas consideradas mais inúteis, porque privadas de qualquer objetivo prático, têm inesperadamente favorecido aplicações práticas, das telecomunicações à eletricidade, que depois se revelaram fundamentais para a humanidade. (Ibid., p. 15) Em outros termos, a dita inutilidade do saber pelo saber, ou do conhecer pelo conhecer, tem uma potência pragmática imprevisível; contudo, por não ser tangível nem lucrativa, tende a ser descartada. Para nos livrarmos dessa tendência e dessa tentação, recordemos que gênios como Galileu e Newton “cultivaram sua curiosidade sem estar obcecados pelo Luiz Rohden 355 útil e pelo lucro” e sabemos que inúmeras “descobertas fundamentais que revolucionaram a história da humanidade são, em grande parte, fruto de pesquisas distantes de qualquer objetivo utilitarista” (ibid., p. 138). Em mais de um momento da vida, na condição de docente e pesquisador, estive às voltas com o dilema entre o impulso de alimentar o fogo e a paixão da curiosidade insaciável pelo saber dos estudantes e a pressão, por outro lado, de ter de transmitir ideias, conceitos, conteúdos. Talvez prestaríamos um grande serviço à academia, à ciência e ao país – sem falar a nós mesmos – se não jogássemos água fria no fogo da paixão da curiosidade e da postura de admiração que movem aqueles que ingressam em nossas universidades. Estou de acordo com Nussbaum, para quem precisamos “assegurar que os alunos aprendam, desde muito cedo”, que tenham “uma relação diferente com o mundo, mediada por fatos corretos e uma curiosidade respeitosa” (Nussbaum, 2015, p. 81). É lastimável que a filosofia seja reduzida a uma atividade exegética, a um diálogo estéril consigo mesma, enclausurada em seus conceitos, tendo deixado o mundo e a política à deriva. Incapaz de admirar, de contemplar o mundo, as pessoas, os fatos, ela corre o risco de fenecer aos poucos, porque olvidou sua origem, nas ruas de Atenas, onde se atinha em inquirir sobre questões ambientais, sociais, éticas, políticas, artísticas, movida pela curiosidade, pela admiração de conhecer. Estou de acordo com Bieri (2008, p. 1): “a formação inicia com a curiosidade. Se se mata a curiosidade de alguém, então se lhe tira a possibilidade de cuidar-se. A curiosidade é o desejo insaciável de chegar a conhecer tudo que há neste mundo”. 2.3.2. Pensamento e postura crítica Para Sócrates, paradigma do pensamento e da postura crítica, uma vida que não é examinada, revisada, pensada, não é digna de ser vivida. A filosofia, desde suas origens, estimulou a pensar, a criticar, a argumentar por si mesmo, a fazer perguntas, o que nos capacita a romper obviedades como esta – de que o útil é apenas o que gera lucro ou é visível aos nossos olhos. 356 Oh, Humanidades, quais e onde estão as tuas utilidades? Em sua digressão histórica sobre a proposta socrática, Martha Nussbaum nos “revelou uma tradição viva que utiliza os valores socráticos para traduzir determinado tipo de cidadão: atuante, crítico, capaz de resistir à autoridade e à pressão dos iguais” (Nussbaum, 2015, p. 72). Nessa direção, de acordo com John Dewey, “as crianças precisam aprender a assumir o controle de seu próprio raciocínio e a se envolver com o mundo de modo curioso e crítico” que, com sua proposta educacional, objetivava “criar cidadãos democráticos atuantes, curiosos, críticos, que respeitassem uns aos outros” (ibid., 2015, p. 64). Para ele, os métodos e o sistema educacional formam alunos passivos, alienados, pois: Tem sido dada preferência a ouvir em lugar de analisar, examinar cuidadosamente e resolver problemas de forma criativa. Pedir que os estudantes sejam ouvintes passivos não apenas deixa de desenvolver suas faculdades críticas ativas, como certamente também as enfraquece [...] tal atitude subserviente para a vida em geral é fatal para a democracia, uma vez que as democracias não vão sobreviver sem cidadãos alertas e atuantes. Então, em vez de ouvir, a criança deveria fazer o seguinte: imaginar as coisas, pensar sobre elas, perguntar. (Ibid., p. 65) E são os “formados passivos” que alimentam sistemas políticos corruptos, totalitários, xenófobos, racistas, homofóbicos e negacionistas, porque não pensam, não examinam criticamente a si e ao que é dito; crentes, apenas repetem mantras astrológicos e fake news. Para Martha Nussbaum, a finalidade decisiva do processo educativo: [...] é levar o aluno a pensar criticamente, o que implica criar um ambiente de aprendizado no qual os conteúdos específicos das matérias nunca valem mais do que a criação de posturas favoráveis à autocrítica e à independência intelectual. (Apud Pécora, 2015, p. xi) Daí porque “a centralidade do exercício da imaginação, da compreensão empática do outro e, enfim, de adoção de uma ideia de cidadania em Luiz Rohden 357 que as ações locais se reconhecem imediatamente” (ibid., p. xi). O filosofar é salutar em termos individuais e sociais e, em se tratando de um exercício refinado de: Raciocinar e refletir criticamente é crucial para manter as democracias vivas e bem vigilantes. Para permitir que as democracias lidem de modo responsável com os problemas que enfrentamos atualmente como membros de um mundo interdependente é crucial ter a capacidade de refletir de maneira adequada sobre um amplo conjunto de culturas, grupos e nações no contexto de uma compreensão de economia global e da história de inúmeras interações nacionais e grupais. (Nussbaum, 2015, p. 11) Percebe-se que as capacidades de aprender conectam-se, indissoluvelmente, aos interrogantes advindos dos horizontes (e dos limites) técnicos e éticos articulados a partir dos resultados, tangíveis e imateriais, do conhecimento adquirido ao longo da história, em especial a partir da Revolução Industrial. A ciência que se debruça em observar, conjecturar e concluir, avançando tecnologicamente cada vez mais, precisa ser acompanhada de uma consciência capaz de refletir e indagar pelos rumos da posteridade. Metaforicamente falando, muitos cientistas que se debruçaram em infindáveis pesquisas para, enfim, realizarem-se com o êxito de sua empresa investigativa, depois se ajoelharam em soluços (senão os próprios inventores, outros que se apiedaram do conhecimento aplicado) ao perceberem o desvio de finalidade (em nome do poder, do lucro, da supremacia) de que suas descobertas foram vítimas. As humanidades aqui reivindicadas funcionariam como o antídoto contra uma ciência sem consciência, postulando-se modos de aprendizagem para os quais todas as formas de conhecimento e respectivas aplicações são atravessadas pela constante ética da formação, cujo modo de pensar, questionar e refletir, ao apontar para os reflexos em sociedade, opera criticamente com as inventividades práticas em jogo. Os seres humanos são dotados de linguagem e, por isso, detêm a peculiar marca da simbolização, a tal ponto de poderem se mobilizar em 358 Oh, Humanidades, quais e onde estão as tuas utilidades? capacidades múltiplas e sucessivas. Noutras palavras, não ficam os sujeitos previamente fixados no suporte biológico do seu instinto, porquanto lidam com as complexidades pulsionais que os impelem a fazer algo entre o desejo e a necessidade, entre o dever e o poder, entre a civilização e a barbárie. Existe nos humanos o aspecto fundamental dessa capacidade de transformar, de inventar e de criar, um fundamento sem fundo em que toda gênese de explicação causal não deixa de ser um mito. Não à toa, em todas as reproduções humanas, reside uma potência indelével de inauguração em torno do novo, da emergência da diferença ou do não mais do mesmo, do estabelecimento transformador: a capacidade de aprender é neotenia, a possibilidade psíquica de fundar algo capaz de se organizar onde antes isso não existia é neogênese (Bleichmar, 2021), a capacidade de sublimar os impulsos mais arcaicos em elaborações da cultura é neocriação (Laplanche, 1989). Um novo mundo, melhor, é sempre possível; em contrapartida, não estamos a salvo (seja por antecipação, seja pela providência metafísica) de nenhum destino aterrorizante que não sejamos capazes de produzir ou dele nos prevenir. 2.3.3. Filosofar enquanto modo de viver livre, responsável, cidadão Pertinentes e atualíssimas são as utilidades da prática filosófica nos seguintes termos de Gadamer (1992, p. 114): [...] ainda se coloca, com crescente urgência, a tarefa de conduzir o homem novamente à autocompreensão de si mesmo [...]. Unicamente o autoconhecimento pode salvar a liberdade que está, não somente ameaçada pelos respectivos governantes, mas também pela dominação e pela dependência que surge de tudo aquilo que acreditamos. Filosofar significa descerrar as vendas das ilusões – ideológicas, religiosas – das falsas crenças que cobrem nossos olhos. Essa epoché é imprescindível para conhecermos integralmente a nós mesmos, aos outros, ao mundo e, assim, vivermos mais livres, mais plenos e responsavelmente. Luiz Rohden 359 Filosofar implica abrir nossos ouvidos para ouvir vozes que não são apenas aquelas da bolha do mundo do meu grupo do Whats, Face ou Instagram, porque ali sói se dizer e se ouvir apenas aquilo que se espera falar e se quer ouvir. Contudo, a formação: [...] diz respeito à nossa capacidade de nos deslocarmos de nossos interesses individualizados para alcançar um espaço compartilhado de visibilidade no qual nos tornamos visíveis uns para os outros em nossas respectivas vulnerabilidades e diferenças. (George, 2020, p. 24) Isso é a base da prática democrática. A formação cidadã é elaborada pelo exercício dialógico e é por isso que, de acordo com Nussbaum (2015, p. 83), “para o êxito da democracia em nossa época, é necessário compreender as inúmeras tradições religiosas do mundo”. O exercício filosófico nos arranca do nosso cômodo mundo e nos coloca no nível do universal, do todo. Para além da visão estreita e da respectiva ação restrita, o filosofar alarga nossa visão e nossa postura no mundo, tornando-nos mais responsáveis por nós mesmos, pelos outros e pela natureza. Filosofar implica pensar e atuar ecumenicamente, conforme recomenda Gadamer (2001, p. 223): [...] temos que aprender a pensar de forma oikoumênica [...]. É a humanidade sobre este globo que tem que fazê-lo para aprender a conviver e talvez poder adiar assim a autodestruição ou evitá-la inclusive por meio de uma constituição mundial capaz de levar a cabo um controle efetivo. Cabe, aqui, retificar o mencionado mantra encarnado em nossa sociedade e reescrevê-lo nos seguintes termos: a filosofia é a ciência com a qual e sem a qual o mundo não pode mais continuar regido pela lógica utilitarista, negacionista e pragmática, porque desenvolve nossa visão mais 360 Oh, Humanidades, quais e onde estão as tuas utilidades? crítica, sensível, criativa e completa de nós mesmos e dos outros. Trata-se de uma ciência vital porque é ela que nos recorda a nossa razão de ser e de viver plena e felizmente. Enfim, vistas algumas utilidades das humanidades corporificadas nos saberes da arte, da literatura e da filosofia, vejamos suas utilidades no processo de formação. 3. AH, HUMANIDADES, EIS ALGUMAS DAS TUAS IMPRESCINDÍVEIS UTILIDADES! Ante o crescente descrédito e os cortes em investimento nas Humanidades, qual é a vantagem e a segurança econômica de adquirirmos uma formação enriquecida com saberes humanísticos? Respondo, inicialmente, com as palavras de Ordine (2016, p. 19), para quem “precisamos do inútil como precisamos das funções vitais para viver”. E aprofundo a resposta mostrando, a seguir, três vantagens vitais para uma formação relacionada com as Humanidades. 3.1. Faz-nos mais livres, felizes e realizados Na esteira de Sócrates, para quem uma vida feliz é aquela que é examinada e só esta vale a pena ser vivida, a formação com as humanidades versa sobre o autoexame, o cuidado e o cultivo da nossa razão, dos nossos sentimentos e das nossas emoções. Ater-se aos saberes das humanidades nos possibilita tomar consciência das nossas emoções, dos nossos sentimentos e das nossas percepções e, melhor ainda, cuidá-los (Rohden e Kussler, 2017), corrigi-los, refiná-los e educá-los para veredas que nos tornem mais livres, plenos e felizes. A formação envolvida com as Humanidades nos possibilita plasmar uma vida mais esclarecida, consciente e autônoma, graças à postura crítica, pois “não assumimos plenamente a responsabilidade da própria vida enquanto permitirmos que instâncias alheias ditem a alguém o que deve Luiz Rohden 361 pensar sobre o amor, a morte, a moral e a felicidade” (Bieri, 2008, p. 5). A compreensão e a assimilação das humanidades, além de potencializar nossa liberdade e autodeterminação, faculta e efetiva uma “educação sentimental, aquele tipo de educação que se chamou de formação do coração” (ibid.) que é baseada: Numa compreensão crescente da lógica e dinâmica da minha vida anímica, onde aprendo que os desejos e sentimentos não são um destino inelutável, mas algo que se pode formar e mudar. Experiencio o que significa me tornar autodeterminado não só no que faço, mas também no que quero e no que vivo. (Ibid., p. 5) Quem se forma integralmente, forja, como o ferreiro6, seu destino, porque é capaz de “poder distinguir entre uma influência que me aliena de mim mesmo e outra que me torna mais livre porque me torna mais eu mesmo” e lida com a vida como “um processo contínuo de autoavaliação e suporta a insegurança ligada a ela” (ibid., p. 9). Na formação articulada sobre saberes científicos e humanísticos, a importância das humanidades não reside em atribuir valor diretamente às coisas, mas em propiciar uma apreciação e compreensão global da centralidade das questões de valor para a experiência humana. Ou seja, o que importa é que as humanidades não transmitem uma habilidade específica, mas elas ajudam a desenvolver e a integrar uma prática em nossas vidas sobre o tipo de vida que se reputa significativo ou valioso. O que afinal de contas faz sentido, pelo o que vale a pena viver, o que de fato nos torna plenos? É aí que nos damos por conta da utilidade imprescindível das inutilidades de coisas como jantares, conversas, viagens, jogos com nossos amores, amigos e parceiros de profissão. Noutros termos, a educação não pode se restringir à transmissão ou ao adestramento de um know-how, mas consiste num exercício para 6. Como repete um amigo, Uwe, Jeder ist der Schmied seines eigenen Glücks. 362 Oh, Humanidades, quais e onde estão as tuas utilidades? vivermos de forma mais livre, feliz. Diferentemente dos valores utilitaristas mercadológicos, sabemos que as experiências de felicidade, assim como o bem, são de outra natureza que o útil e se manifestam de diferentes modos em prazeres simples como: A alegria de compreender algo melhor no mundo; a experiência libertadora de se haver se libertado de uma crença; a felicidade de ler um livro que abre um mundo histórico; o fascínio de um filme que mostra o muito diferente que é a vida noutro lugar; a experiência arrebatadora de aprender um novo idioma para a própria vida; a surpresa alegre de se entender melhor; a libertação, quando se consegue deixar para trás os velhos caminhos da vivência, e em troca experienciar mais autodeterminação. (Ibid., p. 10) Como nos disse Gadamer, o caráter genuíno de uma obra de arte recai na sua qualidade de possuir uma imediata atualidade e, por isso mesmo, uma superioridade sobre o tempo, ou seja, é próprio do domínio artístico uma espécie de atualidade intemporal na medida em que as expressões criativas, apesar de repercutirem a arte de um determinado tempo histórico, restam desligadas e independentes do contexto em que surgiram em virtude exatamente dos efeitos múltiplos de sua potencialidade estética (Gadamer, 2006). De acordo com Freud, falando sobre a sua admiração em torno da estátua Moisés de Michelangelo, a inescrutabilidade de uma obra de arte justifica-se pelo enigma a ser decifrado – tal qual o inconsciente humano – a envolver bem mais do que uma reta compreensão intelectual. Se fosse assim, nos contentaríamos em afirmar que a escultura nada mais representa do que o legislador dos judeus. Não que tal juízo não seja verdadeiro acerca da peça em mármore: mas isso é tudo? Evidentemente que não (Freud, 1996). Da mesma forma, as humanidades representam a resistência hodierna contra uma temporalidade descartável, na qual o que reluz possui prazo (cada vez menor) de validade, cuja expiração decreta a morte dupla Luiz Rohden 363 do desaparecimento físico e do esquecimento simbólico. A instantaneidade propiciada pela técnica e pelos dispositivos virtuais de comunicação torna consumível toda e qualquer expressão humana na exata proporção da respectiva fragilidade efêmera com que tais aparições são esquecidas, como se nunca tivessem existido. Por igual, aquilo que se esvai hoje, no campo do conhecimento, não apenas fenece, como sequer deixa traços de memória. Estamos diante de conteúdos assimilados à base informacional, e não mais como um impacto de natureza formativa. A utilidade das inutilidades consiste, em contrapartida, no resgate ético de marcas simbólicas que perseveram no decurso do tempo histórico, mesmo que desatualizadas na perspectiva de sua utilização pragmática. As humanidades sempre têm o que nos dizer, fazendo-nos pensar e interpretar, tal qual uma obra de arte que nos cala fundo, apesar de aparentemente não nos servir para nada (de útil). 3.2 Forma-nos integralmente – contra a bestificação e a desumanização! A formação profissional, conjugada com os saberes das humanidades, gera uma formação que harmoniza a hiperespecialização com o seu porquê e a sua finalidade. Se não for assim, a educação corre o risco de gerar profissionais brilhantes, inovadores, mas intolerantes e, não raramente, desumanos, incapazes de compreender e de se colocar no lugar dos outros. Conjugar conhecimento técnico com humanidades possibilita criar “um mundo no qual vale a pena viver”, onde se percebe um contexto promissor, tal qual o descrito: Pessoas que são capazes de enxergar os outros seres humanos como pessoas completas, com opiniões e sentimentos próprios que merecem respeito e compreensão, e nações que são capazes de superar o medo e a desconfiança em prol de um debate gratificante e sensato. (Nussbaum, 2015, p. 143) 364 Oh, Humanidades, quais e onde estão as tuas utilidades? Muito mais que uma ferramenta para o crescimento econômico, pessoal e de um país, a educação tecida com os fios das humanidades gera, fomenta e maximiza a qualidade de vida de todas as pessoas. Em contraposição, “o descuido e o desprezo com relação às artes e às humanidades põem em perigo nossa qualidade de vida e a saúde de nossas democracias” (Pécora, 2015, xvii). Podemos evitar ou nos precaver desses perigos graças à habilidade crítica e argumentativa que desenvolvemos ao lidarmos com os saberes humanísticos. Graças às utilidades específicas das humanidades que podemos ser e viver plenamente, pois com elas alimentamos nossa alma, nosso espírito, nossa mente e nosso coração. Com a formação integral, compreendemos e instauramos o sentido de nossas vidas em função de valores intangíveis, tendo em vista que não somos do tamanho da nossa estatura, senão de acordo com a forma como olhamos e agimos, conforme poetizou Fernando Pessoa (2015, p. 212): “porque eu sou do tamanho do que vejo e não do tamanho da minha altura”. É por isso que as artes, a literatura e a filosofia são imprescindíveis e absolutamente úteis, pois alargam nosso modo de ver, de sentir, de nos perceber a nós mesmos, aos outros e ao mundo para assim podermos agir – mediante experimentos mentais e emocionais, exercícios criativos e críticos – de modo a nos tornarmos mais nós mesmos, à imagem de Deus. A conjunção do conhecimento científico com humanidades confere senso e postura de plenitude, de totalidade, pelos quais se desenvolve nossa capacidade de “uma compaixão mais inclusiva, e que essa capacidade só pode ser desenvolvida por meio de uma educação que enfatize o conhecimento global, as ciências humanas e a autocrítica” (Nussbaum, 2015, p. 68). Graças a isso podemos processar e elaborar as inúmeras informações que nos chegam mediante postura crítica, comparativa, que nos capacita a sermos nós mesmos e menos títeres de ideologias ou de fanatismos religiosos. Não é, pois, por acaso, que filosofia, sociologia, poesia, têm sido objeto de críticas e ataques sistemáticos desde seu nascedouro com Nero até nossos dias com Naro. Também não é por acaso que a educação integral Luiz Rohden 365 seja “subversiva no que diz respeito à visão de mundo” e justamente porque “ela torna consciente a relatividade de toda forma de vida” (Bieri, 2008, p. 5) desfraldada em diferentes bandeiras de totalitarismos. As humanidades nos ajudam a conferir a razão de ser e de fazer as coisas, são elas que mobilizam o sentido das nossas vidas na confluência entre pensamento e ação, mediante espírito admirativo – tomemos o exemplo das experiências de sensibilidade com quaisquer manifestações de arte, as quais nos possibilitam viver contemplativos na ação. Com a experiência das humanidades desenvolvemos nossa capacidade de perguntar, de nos sensibilizarmos com o outro, de podermos lidar com mais sabedoria e ciência em cada circunstância de nossas vidas – de natureza pessoal e profissional –, de abranger o universo das relações de modo global, pois tudo está conectado a tudo. Esta é a dádiva das humanidades para nossa formação integral, qual seja, desenvolver a nossa capacidade de ver todas as coisas em tudo e vislumbrar tudo em todas as coisas. 3.1 Tornarmo-nos cidadãos do mundo Implicada na construção da nossa felicidade e na formação integral, outra utilidade imprescindível dos saberes das humanidades consiste em contribuir para nos tornarmos cidadãos do mundo à medida que estimulam a abrirmos nossos olhos e ouvidos ao todo da vida. A educação selada com humanidades visa “transformar alunos em cidadãos responsáveis que possam raciocinar e fazer uma escolha adequada a respeito de um grande conjunto de temas de importância nacional e internacional” (Nussbaum, 2015, p. 27). O cultivo dos valores veiculados pelas humanidades, bem como o exercício de perceber a realidade globalmente, mobiliza-nos a pensarmos e agirmos como cidadãos globais, porque as questões e os problemas (sociais, políticos, ecológicos) possuem alcance e solução globais. O aquecimento global, por exemplo, não é apenas um problema sociopolítico, mas diz respeito às nossas posturas individuais. É nesses termos que a educação nos 366 Oh, Humanidades, quais e onde estão as tuas utilidades? ajuda a sermos cidadãos do mundo, e deveria ser tarefa das escolas hoje “desenvolver nos estudantes a capacidade de se perceberem como membros de uma nação heterogênea e de um mundo ainda mais heterogêneo, e inteirar-se um pouco da história e da natureza dos diversos grupos que nela habitam” (ibid., p. 80). Além de nos preparar para atuar no mercado de trabalho, de conferir sentido e sabor às nossas vidas, os saberes das humanidades são úteis à medida que nos tornam cidadãos locais e globais (ibid.). Muito mais que adestramento técnico, eles estribam-se sobre a formação da nossa sensibilidade moral ou educação sentimental, ou seja, “a formação do nosso coração” que implica “no desenvolvimento de uma sensibilidade moral” (Bieri, 2008, p. 9). O conhecimento e o contato, teórico e prático, com as diferentes identidades culturais aprimoram nossa sensibilidade moral, “o respeito genuíno e elementar de outras formas de viver” (ibid., p. 9) que fundamentam nossa postura cidadã. A formação cidadã nos possibilita “esclarecer formas veladas de opressão e crueldades cometidas que passam desapercebidas. Neste sentido, a formação (integral) se constitui num bastião contra a crueldade” (ibid., p. 9). Isso é possível porque as humanidades cultivam a tolerância e a empatia para compreender a realidade, para nos conectarmos aos outros para além das lentes utilitaristas econômicas ou pragmáticas, ou seja, com as lentes globais, elas nos sensibilizam para efetivarmos a marca da alteridade, tomando os outros com um fim em si mesmo. Muito mais que veicular valores, por assim dizer, estritos ou especificamente humanísticos, os saberes das humanidades estimulam e fomentam certo tipo de consciência intercultural própria da cidadania global. Além de ser fundamental para a democracia, no interior de cada soberania estatal, o modelo de formação cidadã é necessário para o âmbito das relações internacionais, uma exigência de educação num mundo contemporâneo, globalmente. A apropriação dos saberes humanísticos nos ensina e nos sensibiliza “a compreender a diversidade, a ter respeito pelo estranho, saber retratar-se de uma arrogância inicial” (ibid., p. 6) oriunda da ignorância ou do utilitarismo econômico. Luiz Rohden 367 A formação cidadã é permeada pela consciência crítica e pela curiosidade histórica que nos impedem de cometer erros do passado, iluminando nossas mentes e ações mediante uma singular convocatória: “o que nos levou a pensar, a sentir, a falar ou a viver como pensamos, sentimos, falamos e vivemos hoje?”. Então, “detrás desta curiosidade jaz o pensamento: é possível que tudo pudesse ser diferente, nestes termos, pois em nossa cultura não há nenhuma inevitabilidade metafísica” (ibid., p. 3). A consciência cidadã é intrinsecamente crítica e curiosa e, ao procurar responder àquelas questões, tidas por inquestionáveis, desaloja-nos e nos desalinha para nos reposicionarmos ao patamar de uma vida mais autêntica, livre, autônoma, saudável e sustentável. Sabemos o quanto o caminho da cura é o cuidado e, para tanto, é imperioso o movimento permanente de mudança de posição a partir das reflexões humanísticas (e humanizadoras), ou seja, a postura crítica de uma subversão engajada para o bem da comunidade e da sustentabilidade das futuras gerações, num mundo mais justo e inclusivo com todas as manifestações de vida. Toda a atrofia, além de conformada, paralisa o pensamento, inviabiliza o agir, além de fossilizar a inteligência em dogmatismos cuja intocabilidade violenta flerta com a barbárie. O ensino amalgamado com as humanidades tem o “papel estratégico e insubstituível a desempenhar na construção de sociedades mais sustentáveis, resilientes e pacíficas” (Unesco, 2022). Para isso, são utilíssimos os saberes das humanidades “diante dos crescentes desafios globais que ameaçam nosso futuro comum”, uma vez que “temos que dar um salto quântico para reinventar o ensino superior como base para a construção de um mundo seguro, mais justo, democrático e sustentável” e tal intento, conforme documento da Unesco, precisa ser feito considerando: As três missões do ensino superior com novas lentes: conhecimento por meio de pesquisa e inovação, adotando abordagens inter e transdisciplinares; formar profissionais completos que também sejam cidadãos de pleno direito capazes de lidar cooperativamente com questões complexas; agir com sentido de responsabilidade social, local e globalmente. (Ibid., 2002) 368 Oh, Humanidades, quais e onde estão as tuas utilidades? Essa nova sociedade, sustentável, saudável, com a qual sonhamos, só será construída com as sementes e o modo de conceber a vida veiculado pelas humanidades, em termos pessoais, sociais e políticos, sob a égide dos “princípios da solidariedade, equidade e justiça educativa sob uma reforçada cooperação regional”.7 CONSIDERAÇÕES FINAIS Em termos pessoais, a contribuição imprescindível das humanidades pode se resumir, talvez, na resposta às seguintes perguntas: “Por que e como vivemos? Vivemos para acumular cobres ou sermos felizes?”. Com os saberes das humanidades aprendemos que uma vida precisa ser examinada sobre o crivo do seu sentido, da sua razão de ser que é vivermos livres, plena e felizmente. No seio das humanidades, não apenas examinamos e alimentamos essas aspirações profundas, mas seus saberes nos previnem da sedução do canto das sereias das aparências, da ignorância, da inutilidade da utilidade econômica, uma vez que elas alimentam nossa alma, nosso espírito crítico, nos ajudando na educação dos nossos sentimentos e emoções. A aparente inutilidade das humanidades se transmuta numa necessidade irrefutável, 7. Las ministras y ministros de educación y autoridades educativas de América Latina y el Caribe, asistieron a la cita convocada por la UNESCO, el pasado 26 y 27 de mayo, donde plasmaron su compromiso con la recuperación y transformación de sus sistemas educativos para superar la mayor crisis educativa que ha vivido la región desde que se tiene registro. Los acuerdos plasmados en la Declaración de Buenos Aires (english version), difundida el 31 de mayo, señalan la importancia de actuar con celeridad y trazan los compromisos para la recuperación bajo principios de solidaridad, equidad y justicia educativa, bajo una reforzada cooperación regional. Explicitan que es un imperativo ético priorizar la educación y garantizar su adecuado financiamiento y voluntad política para ello. (Unesco, 2022). https://es.unesco.org/news/declaracion-buenos-aires. Luiz Rohden 369 tendo em vista que os saberes humanísticos nos ensejam ao cultivo e ao cuidado de nós mesmos, que nos capacitam para cuidar uns dos outros e instituirmos um ethos mais inclusivo, harmonioso, tolerante e democrático. Em termos sociais, a absorção dos saberes humanísticos pressupõe e implica uma relação de alteridade saudável e sustentável, graças a um exercício mental de nos colocarmos constantemente nos “sapatos dos outros”. Essa prática aguça nossa percepção da realidade e abre nossos olhos e ouvidos aos horizontes dos outros – o que nos torna mais sensíveis, mais respeitosos, mais tolerantes e, consequentemente, mais justos, solidários e responsáveis para com as pessoas, os animais, o planeta. Graças ao cultivo dos saberes humanísticos, do puro amor ao saber desinteressado por alguma coisa, da entrega ao jogo imaginativo e criativo, podemos inovar em termos pessoais, sociais e tecnológicos. As humanidades são o alimento para cultivarmos nossa inteligência intuitiva e nos previnem de tratarmos os outros e o mundo de forma algorítmica, instrumental, calculadora. Com elas aprendemos a ver, olhar, perceber, sentir, pensar e tratar a natureza como nossa casa, que merece ser cuidada com o carinho, cuidado e respeito devidos. Ah, humanidades, aí estão tuas utilidades, a saber, de lembrar, alertar e orientar que “o progresso da nossa era moderna e do mundo de amanhã depende não só do conhecimento técnico, mas também da curiosidade desobstruída e dos benefícios de viajar rio acima, contra a corrente das considerações práticas”, na esteira memorável de Sócrates, Gandhi, Chico Mendes ou Jesus Cristo “que não sabia nada de finanças/ Nem consta que tivesse biblioteca” (Pessoa, 1995, p. 244). REFERÊNCIAS ARISTÓTELES (2002). Metafísica. São Paulo, Edições Loyola. BIERI, P. (2008). ¿Qué tal sería ser culto? Tradução de Michael Barot y Carlos Prieto. Berna/Alemanha. 370 Oh, Humanidades, quais e onde estão as tuas utilidades? BLEICHMAR, Silvia (2021). Clínica psicanalítica e neogênese. Tradução de Alicia Brasileiro de Mello, Homero Vettorazzo Filho e Maria Cristina Verdomo. São Paulo, Linear Editora. FREUD, Sigmund (1996). “O interesse científico da psicanálise”. In: FREUD, Sigmund. Obras completas. 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