Como escrever
um ensaio
Jorge Barcellos
Como escrever
um ensaio
A arte de escrever para coletivos
de professores-autores
Sumário
Apresentação, 9
1.Escrever nos faz livres, 15
[A decisão pela escrita - Os professores que escrevem Libertar-se das prisões da escrita]
2.Ferramentas para escrever, 27
[Definições preliminares – A caixa de ferramentas – A base
teórica- Como escrevem aqueles que escrevem? - A regra da
simplicidade - A obrigação de tirar o excesso - Escreva para
seu público - Use bem a gramática - Limpe seu texto]
3.Sobre o argumento, 53
[A definição de argumento - Exemplos de argumentos - O
argumento reflete uma posição - O argumento organiza
pensamentos confusos em textos organizados - As
características dos bons argumentos - Depois das frases, os
parágrafos]
4.Como estruturar um ensaio, 85
[De novo, o problema dos pressupostos - Reconheça seus
limites - A alma do ensaio - O lugar da técnica na escrita do
ensaio - O ensaio como lugar de nossa perspectiva - O ensaio
como lugar de uso de uma linguagem - Ensaio como lugar de
interpretação]
5. Bases metodológicas para o ensaio, 109
[A necessidade de um esquema - Aprofunde o tema Acostume-se com uma técnica de elaboração - Aceite abrir
mão - Não busque a perfeição, mas o bom texto - Reduza seus
problemas]
6.A biblioteca do professor-autor, 133
[Nós somos nossa biblioteca - Livros de formação - Crítica do
capitalismo - Estudos sobre a vida cotidiana - Estudos sobre
arte e cultura - Obras de referência - Critica a tecnologia Urbanismo e cidades - Porto Alegre – Educação - Ferramentas
para revolução - Outras línguas]
7.Enfim, o sumário, 167
[Terminar pelo começo - O sumário como produto da
evolução da escrita - O sumário como arquitetura – Tipos de
sumário - A história do sumário – O futuro do sumário Sumários por ordem alfabética - A numeração das páginas Aspectos de design gráfico]
Conclusão, 197
Bibliografia, 203
Créditos, 210
Apresentação
J o r g e B a r c e l l o s | 11
No segundo prefácio de Sobre a Escrita (Suma, 2015), o escritor
Stephan King diz que fez um texto curto sobre a escrita porque
“a maioria está cheia de baboseiras”. Curto, para King, é algo em
torno de 250 páginas. O que se entende, já que suas obras tem
em média de 800 a mil páginas. É que escritores como ele tem o
dom da escrita. Para ele, escrever é algo natural, mas para a
maioria, escrever é produto de um longo aprendizado que se
transforma em hábito. É como uma corrida de obstáculos. É
preciso persistência e esforço.
King é injusto. Há muitas obras boas sobre a arte da escrita. Elas
realmente ajudam a escrever melhor. Ainda que seu Sobre a
Escrita seja dirigida a autores de ficção, como o leitor verá neste
Como escrever um ensaio, optei por fundamentar-me em obras
de escrita tanto de ficção como não ficção. O critério foi a
identificação de suas lições com minha experiência. Por isso o
primeiro prefácio de King e não os demais é o melhor pois
começa prolixamente descrevendo uma história que parece não
ter nada a ver com a escrita para chegar nela. Neste prefácio há
duas lições importantes. A primeira aparece enquanto ele narra a
história de sua participação em uma banda de escritores e seu
cotidiano em grupo para chegar a dizer o seguinte: “Somos
escritores, e nunca perguntamos um ao outro de onde tiramos
nossas ideias; nós sabemos que não sabemos” (King, p.10).
A segunda pérola de sua obra vem logo em seguida quando se
recorda de quando lhe perguntaram sobre a escrita. O próprio
King já acalentava a ideia de escrever sobre o ato de escrever, mas
se perguntava “por que eu queria escrever sobre a escrita? O que
me leva a acreditar que eu tinha algo de útil a dizer? (King, idem).
Ao contrário de King, que vendeu milhares de livros, eu mesmo,
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já tendo chegado à casa das duas dezenas de livros, mas ao
contrário dele, tendo vendido bem pouco, talvez não tivesse nada
a dizer além do meu fracasso literário. Mas não é bem verdade.
Vendas não são termômetro de sucesso. A autopublicação não
torna ninguém milionário, mas o fato de que meus livros são
disponibilizados gratuitamente e possuem download significativo,
sinaliza o contrário. Somente meu A impossibilidade do real,
chegou à casa dos 40 mil downloads. Segundo a Câmara
Brasileira do Livro, são considerados autores best-sellers aqueles
que vendem mais de 15 mil livros e Pascal Soto, diretor da editora
Leya, diz que basta vender 5 mil livros para ser um best-seller.
Não estou tão ruim assim.
Como King, me considero um proletário da escrita. Como ele,
escrevo combinando leituras com minha experiência, mas, de
forma diferente, escrevo sobre uma prática que desenvolvi não
porque tive vontade disso, mas porque um grupo de professores
de uma escola pública de Porto Alegre me chamou para organizar
sua produção. A melhor forma que encontrei para isso foi
organizar textos que compartilhei com eles na esperança de
auxilia-los a escrever. Eu os reuni aqui como forma de criar um
apoio didático. Espero que sejam úteis a você, leitor.
Foram ao todo sete capítulos onde intercalo minha experiência
com a produção de ensaios com a fundamentação em autores
deste campo. Como enfatizo em vários momentos, não sou um
escritor perfeito, ao contrário, reconheço que deixo passar até
alguns erros em meus textos que outros escritores jamais fariam.
Aponto o contexto de minhas limitações e as minhas razões para
escrever.
J o r g e B a r c e l l o s | 13
O primeiro capítulo fundamenta o desejo de escrever. A escrita é
algo que “vem de dentro”, diríamos. Mas o que exatamente isso
significa? Parto então para descrever o campo ao qual este livro é
dedicado: professores-autores. Nem todo professor é um escritor,
mas aqueles que tem o desejo de ser um, indico a forma ensaio
como a ideal e enumero as razões. Finalizo com uma lista dos
impedimentos da escrita, que são nossas prisões, e que devem ser
superadas para que possamos escrever sobre o que somos, sobre
o que pensamos.
O capítulo segundo deseja instrumentalizar o professor-autor. Ele
oferece o que considero as ferramentas básicas para escrever com
qualidade. A partir de algumas definições preliminares como a de
“caixa de ferramentas”, indico as regras que todo professor deve
seguir para fazer um ensaio. Eu tomo como ponto de comparação
a escrita de outros bons escritores e suas boas práticas, como a
obrigação de produzir um texto limpo e sem excesso, além do
uso da gramática.
Os capítulos seguintes são centrais nesta obra. A razão é que o
terceiro, define o argumento como a base do ensaio como escrito
científico; o quarto estabelece critérios para organizar sua
estrutura, e, portanto, seu desenvolvimento e o quinto definem
suas bases metodológicas, estabelece limites para professores –
autores em seus escritos. Digo no primeiro capítulo desta série
que não há bom ensaio sem uma seleção de bons argumentos.
Ele é uma expressão da boa argumentação, quer dizer, o modo
como defendemos uma posição. Dou exemplos da organização
de argumentos e suas características para que o autor saiba
construir frases e parágrafos consistentes. A seguir afirmo que não
há ensaio sem uma proposta de estruturação anterior. Ele é a
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clareza de pressupostos e limites que originam nossa perspectiva
e interpretação. E finalmente encaminho para técnicas de
elaboração que são a própria metodologia que cada autor
desenvolve, mas que não deve faltar a busca da profundidade na
construção de bons textos considerando os limites do autor.
O capítulo sexto trata da base do professor, o conhecimento.
Afirmo que uma biblioteca genérica, com temas eleitos pelo
professor, é essencial. Que é a obra de uma seleção contínua e
aprofundamento, que resulta em base para ensaios mais
profundos. A obra termina então com considerações sobre o
início de cada livro, o sumário, que é uma forma também do
autor rever e afinar o que escolheu para dissertar. Indico uma
tipologia, com a única justificativa de servir de modelo, já que,
sumário, cada um constrói o seu.
Finalizo com as palavras de King que, para mim, melhor do que
eu resumo o lugar da escrita de ensaios: “A escrita não é para
fazer dinheiro, ficar famoso, transar ou fazer amigos. No fim das
contas, a escrita é para enriquecer a vida daqueles que leem seu
trabalho, e também para enriquecer sua vida. A escrita serve para
despertar, melhorar, superar. Para ficar feliz, ok? Ficar feliz. Parte
deste livro – talvez grande demais – trata de como aprendi a
escrever. Outra parte considerável trata de como escrever
melhor. O restante – talvez a melhor parte – é uma carta de
autorização: você pode, você deve e, se tomar coragem para
começar, você vai. Escrever é mágico, é a água da vida, como
qualquer outra arte criativa. A água é de graça. Então beba. Beba
até ficar saciado”.
1
Escrever nos faz livres
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A decisão pela escrita
A ideia deste livro surgiu quando me reuni com os professores da
escola municipal Lygia Averbuck numa segunda-feira (1.7.2024)
para realização de uma curadoria editorial. Como afirmei em
minha apresentação “Não é editoria. É curadoria. É cuidado.”
A palavra “curador” vem do latim curare, que significa algo como
“aquele que cuida”. Por um lado, talvez o curador editorial tenha
essa função de cuidar de um livro ou de uma coleção de artigos,
mas o mais importante, a meu ver, é a capacidade de realmente
entender e apreender o que há de mais relevante num
determinado escrito e num determinado momento, e de articular
isso sob a forma de livro que possa ser visto como obra de arte”.
Eu já havia feito curadoria para outros autores, mas esta foi a
primeira vez que me vi diante de uma audiência de professoresautores, isto é, mestres interessados em anotar e publicizar suas
experiências em livro. O nascimento deste grupo produziu em
mim a vontade de fazer nascer este livro.
A Escola Lygia Averbuck é uma escola de ensino especial para
crianças, jovens e adultos com deficiência no município de Porto
Alegre. Localizada no Bairro Jardim do Salso, diz Edison Silva Jr
em Alunos de escolas especiais: trajetória na rede de ensino de
Porto Alegre (2013, p.87) que ela “pode ser definida como um
enclave escondido atrás de prédios comerciais e de parques
privativos que, atualmente, abrigam condomínios de luxo. De
maneira mais clara, a escola mantém e sempre manteve uma
existência discreta em relação à sua vizinhança”.
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Inauguração da quadra poliesportiva da Escola de Ensino Fundamental Professora Lygia Morrone
Averbuck. Foto: Fredy Vieira / PMPA
Conheci a escola por intermédio da Professora Kátia. Ela era
orientadora de Andrey, aluno da escola que estagiou na Escola
do Legislativo da Câmara Municipal onde trabalhava. O vinculo
que fiz com a equipe do Programa de Trabalho da Prefeitura de
Porto Alegre foi responsável pelo convite para ser curador da
obra que desejam escrever relatando suas experiências. Eu os
incentivava a escrever sobre o tema por ser a escola uma
instituição importante da educação na cidade; eu sabia que seus
professores tinham experiências inovadoras de ensino para
contar e que isso merecia estar em um livro. A ideia foi
amadurecendo e a equipe conseguiu junto ao legislativo recursos
para a sua produção. Veio a enchente, o trabalho na escola foi
J o r g e B a r c e l l o s | 19
interrompido, mas retornou agora. A escola quer deixar de ser
discreta: quer lançar-se para o mundo. É para isso que serve
escrever um livro.
Decidimos iniciar uma caminhada juntos. Mas o que é uma
caminhada? Adriana Labbucci diz em Caminhar, uma revolução
(Martins Fontes, 2013), que caminhar é nosso gesto mais humano
porque nos liga ao tempo, nos restitui ao essencial “permite olhar
para dentro e para fora de nós” (LABBUCCI, p.75). Para ela
tudo isso pode ser resumido a uma palavra: liberdade. Assim
como para os antigos gregos, o caminhar estava na origem do
pensamento e também na origem da escrita, escrevemos para
caminhar segundo nossa própria vontade, o ato está diretamente
ligado à nossa liberdade de ser. Como uma caminhada, escrever
importa riscos fora de nós pois expomos nosso pensamento ao
escrutínio público, ou dentro de nós, quando os medos de se
expressar nos impedem de caminhar. Labbucci lembra a
afirmação de Hannah Arendt de que “só era livre quem estava
pronto para arriscar a vida” (LABBUCCI, p. 76). Por isso falamos
de liberdade de escrever como prerrogativa da vida. Escrever
deveria ser tão comum como escovar os dentes. Ela não está
circunscrita a esfera econômica, e em nosso país, raros são os
autores que vivem da escrita. Contudo, escrevemos porque
vivemos uma democracia: vivemos com o sentimento do dever
do partilhar o comum, escrevemos porque somos cidadãos da
cidade e porque os seus problemas nos afetam. Se a educação é
um dos problemas que cabe a sociedade resolver, ela precisa da
manifestação de seus cidadãos, dos que são responsáveis por ela:
eles precisam que os professores expressem suas ideias, suas
divergências, suas críticas. Precisam conhecer sua visão de
mundo.
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Os professores que escrevem
Professores escrevem porque são pessoas indóceis. Tem opiniões
diferentes da hegemônica. Enquanto o pensamento hegemônico
neoliberal acredita que a escola é uma fábrica de cidadãos dóceis
para o mercado, os professores acreditam que ela é a formadora
de cidadãos autônomos e ativos. É que os professores não são
espectadores da vida, ao contrário, querem que saibam o que
fazem, como fazem e porque fazem. Não são indiferentes às
políticas que visam formar cidadãos acríticos, ao contrário, têm
suas reivindicações aos detentores de poder a partir de suas
experiências. Eles não ficam imóveis frente as suas dificuldades,
mas se movem nelas, numa palavra, caminham “quem caminha
exprime curiosidade, comprometimento, sente-se e quer sentirse livre para se movimentar” (LABBUCCI, p. 80).
Professores escrevem porque querem se libertar de suas prisões.
Somos todos dominados por valores contra os quais nos
rebelamos, seja o American way of life, o estilo de vida americano
caracterizado pelo consumismo, pela padronização social e pela
crença nos valores do liberalismo, ou agora pelo bolsonarismo
way life, sua perversão à extrema direita, caracterizado pela
indiferença radical em relação ao outro, à natureza, à diferença.
Ambos se manifestam nas escolas, nos valores que os alunos
trazem de casa e que os professores precisam enfrentar, nos
programas de reformas educacionais que governantes tentam
implementar e que afetam sua visão de mundo. Em todos os
lugares é sempre o esforço de se libertar da prisão do
individualismo extremado, do exercício do poder: o mundo onde
vigora a lei do mais forte não interessa a quem vive de educar.
J o r g e B a r c e l l o s | 21
Atual Escola Rio de Janeiro. Reprodução: Redes sociais.
Comecei a escrever quando perdi o medo. Eu me lembro ainda
da cena de minha infância, no aprendizado das primeiras
redações. Era a Escola Estadual Rio de Janeiro, então localizada
onde hoje é o Senac da Avenida Coronel Genuíno. Era uma casa
antiga, com grande pátio. Havia as salas de aula com pé direito
alto. Na aula de português eu via pela primeira vez a proposta de
escrever algo a partir de uma imagem. Era aquela cena onde a
professora abre uma imagem em um suporte de uma coleção das
que ali ficavam. Eu me lembro de ficar paralisado. E nesse
22 |C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
momento, como numa cena de cinema, com a janela aberta e as
cortinas mexendo-se pelo vento, uma menina na minha frente
vira-se para mim e, com a luz do sol ao fundo me ajuda a escrever
a primeira frase. Deve ser por isso, que de alguma forma, as vezes
me sinto como um impostor: sempre necessito uma inspiração
para escrever, a leitura de uma análise qualquer, uma imagem de
cinema para então começar a escrita. Mas no fundo isso também
quer dizer que só escrevemos quando a realidade está ali na
minha frente para o gatilho ser acionado. Quando isso acontece,
voilá, estamos diante da imitação de que nos fala Aristóteles,
nossa faculdade de criar a partir da imitação. E isso é algo positivo
aqui, pois depois nunca mais parei de escrever. Por isso também
me inspiram muitos autores. Aprendi com Voltaire Schilling
jamais entrar em uma sala de aula sem ela estar escrita; com
Sandra Pesavento, a argumentação lógica; com meus professores
de graduação, não apenas o fazer científico, mas também o fazer
poético; com a filosofia francesa contemporânea, que o mundo
está aí para ser enfrentado pela palavra. De cada um veio um
fragmento que compõe o que sou, o que é minha escrita.
Com a universidade e as regras do método científico, novos
medos se impuseram. Você abandona o mundo em que escrever
uma redação é tudo o que lhe pedem e passa para um universo
onde há regras para serem seguidas. É que na universidade, a
escrita não é apenas a forma como estabelecemos o
conhecimento, é também uma forma de estabelecer poder,
delimitar zonas profissionais. É lá, no lugar que formamos nosso
pensamento, que aprendemos as maneiras como se diferencia
cada campo do outro, as zonas entre os chamados “amadores” e
“profissionais”, as lutas entre as disciplinas pela definição de seus
J o r g e B a r c e l l o s | 23
objetos e onde adquirimos poder porque aprendemos a dominar
uma linguagem, os chamados “termos técnicos”.
Libertar-se das prisões da escrita
Aprendemos na universidade a usar o jargão. Ele também nos dá
medo de escrever. Aprendemos a sobreviver no universo
intelectual, mas nada é estável nesse meio. O contato
interdisciplinar é saudável. Os conhecimentos mudam. É que
não sabíamos, mas estávamos sendo introduzidos no contexto das
guerras culturais, o mundo das controvérsias fundamentais na
vida universitária. Era também, de certa forma, uma linha de
montagem intelectual, e eu não estava certo de que concordava
com suas regras, e por isso, fugia pelas margens. Lia o que me
interessava. Mas chega um dia que vamos para a prática e é,
tenham certeza, a experiência cotidiana que trata de nos fazer, em
seus acertos e erros, os seus ajustes. Viramos profissionais.
Marjorie Garber, em Instintos Acadêmicos (UERJ, 2003) cita o
caso do professor de sociologia da Universidade de
Massachussets que em um artigo intitulado “Redação ruim na
Academia” acusou seus colegas pelo seu “palavrório
presunçoso”. Numa palavra, que escreviam mal. Textos podem
ser de leitura difícil, mas compensadora; outros podem usar a fala
cotidiana e serem tão dignos quanto os artigos difíceis ou textos
acadêmicos. O que não se pode é ter medo de escrever um artigo
ou texto por se pensar que vão considerar ruim.
Como evitar o texto ruim? Pela clareza. Ela é consequência da
liberdade do pensar. Explicar o que se quer, como se quer e fazer.
24 |C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
O medo é um sentimento universal e ele se apresenta para o autor
no momento da escrita. Não escrevemos ter medo de como será
visto nosso pensamento escrito porque se recusamos escrever,
morremos de uma certa maneira. Ao contrário, escrevemos,
fazemos um livro porque ele é motivo de alegria. Não se trata de
publicar por publicar, o que hoje, inclusive, já está sendo feita pela
inteligência artificial. Escrevemos o que entendemos precisa ser
dito. Escrevemos porque nossa experiência nos parece digna de
ser mostrada. Somos professores anônimos. Não temos a sorte
de ter uma grande editora que nos procure para tratar de nossa
experiência de ensino. Isso é consequência de algo que está além
de nosso controle: o mercado editorial. Nesse mundo, há regras
de acesso, modos de funcionamento. O sistema editorial é cruel.
Não importa o conteúdo, importa se fisga o consumidor. Numa
palavra, vende. Mas nesse mundo cheio de regras e exclusões,
ainda temos o direito de escrever.
Alguma coisa está errada quando bons professores, sentindo-se
libertos de todas as amarras intelectuais, vivendo sua experiência
de ensino com desafios e angústias, não encontram uma forma
de publicar suas ideias. A frustração advém do fato de que eles
produzem, mas encontram um sistema hostil de publicação. Qual
professor pode pagar os valores que editoras intermediárias
cobram para seu lançamento? São valores entre 5 a 10 mil reais.
Com valores assim, teme ficar sem orçamento doméstico. Qual
professor pode esperar os prazos que as editoras líderes de
mercado pedem para publicar seus originais? Isso leva até um
ano. Com prazos assim, tem medo que seu original perca o seu
sentido. Isso afeta a liberdade de criação do professor. Ele pode
escrever, mas conseguirá publicar? O medo volta mais uma vez.
J o r g e B a r c e l l o s | 25
O medo de escrever surge de uma incerteza. Quanto mais
caminhamos na incerteza de escrever, mais temos medo de não
conseguir publicar. De ser lido. Mas se temos a certeza de que
somos livres para escrever, o medo diminui. A internet, nesse
sentido, vem a nosso favor. Você pode publicar em várias
plataformas. O que gera outro problema, o do seu excesso. Posso
imaginar que quando morrer, o mundo continuará sem mim, mas
enquanto estou aqui, pelo meu escrito, eu o afeto de alguma
forma. Não tenho tanta certeza que algo publicado na internet
sobreviva a plataforma em que reside. Mas um livro não. Ele
estará sempre ali. Onde? Numa biblioteca. Mesmo se um dia ele
vá para um sebo, eu sei que, como se fosse um trabalho de
arqueologia, alguém o encontrará. É por isso o ditado que diz
que na vida devemos ter filhos, plantar árvores e escrever...livros!
Essa sabedoria popular diz isso porque está preocupada com
nossa necessidade de transcender a morte. É sua mensagem de
que a permanência pode ser alcançada pela herança de nossos
genes, por nossas ações ou pensamentos. Estes últimos ficam em
livros.
Aqui a conclusão é que quando falamos que a escrita é uma
caminhada falamos de liberdade; falamos do que acreditamos em
nossa vida, damos nosso testemunho extraordinário do que é
ensinar nas condições que ensinamos. De que a primeira atitude
de quem quer escrever é não ter medo. Escrever nos torna
autônomos porque nos torna inquietos, exige de nós mais do que
estamos acostumados a dar. Saio do meu lugar comum, do meu
cotidiano e reflito sobre ele: encontro nessa caminhada que se faz
sob a forma de texto a minha verdade, e por isso o livro é tão
precioso. Escrito, ele é a forma de registro de minha história.
Como disse certa vez a cantora Nina Simone “liberdade é não ter
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medo”. Não precisamos ter medo de escrever; não devemos
deixar de escrever pelo medo do que vão achar de nossos
escritos. Se houver críticas, sempre haverá um momento para
reescrever. Sempre haverá um detalhe a corrigir. Somos
humanos. Precisamos nos permitir escrever nossos pensamentos,
nossos sentimentos. Ensinar é um ato de prazer, mas também de
muita dor. A de expressar sua verdade, sem falar da própria
produção do texto em si. Mas a vida já é difícil se não nos
autorizamos nem ao menos a nos expressar. A escrita nos ajuda
a ser feliz.
2
Ferramentas para escrever
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Definições preliminares
Existem inúmeros livros que ensinam a escrever. São manuais
básicos de leitura de qualquer estudante de ensino superior. Você
não é obrigado a conhecer Confissões de um jovem romancista
(Record, 2018) de Umberto Eco, mas se você não conhece dele
Como fazer uma tese (Perspectiva, 1989), algo de errado
aconteceu no currículo de sua formação. William Zinsser, em
Como escrever bem (Fósforo, 2021), estabelece o espectro de
características para a boa escrita. Escritor e professor, colaborou
com inúmeros jornais e tem experiência. Já no início da obra, ele
narra seu encontro com um outro palestrante, o Dr. Brock (nome
que Zinsser inventou) reunidos para falarem sobre a escrita como
profissão em uma escola de Connecticut. O debate que se
instalou entre ambos e sua descrição é o horizonte onde nós,
professores, nos situamos para escrever. Ele implica na clareza
dos pontos de partida.
O primeiro é a definição é do lugar do escritor. Para Brock,
escrever precisava ser algo divertido, como se as palavras fluíssem
para o papel depois de um longo dia de trabalho. Para Zinsser,
era o contrário, escrever era algo difícil e solitário “raramente as
palavras fluíam com facilidade”. Para ambos a escrita era algo
importante, mas para o primeiro, escrever era só o ato de
“exprimir tudo o que você sente”, quando então as frases saem.
Para o segundo, ao contrário, “reescrever é a essência da escrita”:
escritores profissionais reescrevem suas frases inúmeras vezes
para melhorar. Para Brock, escreve-se quando se quer e quando
dá; para Zinsser, escrever é um ofício, e por isso, precisa de uma
rotina diária – ele também estava fazendo seu livro como dever
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de ofício, pois é professor de um curso de jornalismo. Nesta
profissão, escrever diariamente é uma obrigação “você aprende a
fazê-lo todos os dias, como qualquer outro trabalho”.
Williman Zinsser. Foto: Editora Fósforo. Divulgação.
O segundo é a definição da matéria da escrita. Jornalistas
escrevem todos os dias sobre os mais variados temas, mas
professore escrevem sobre sua experiência de ensino. Eles
escrevem planos de aula e planos de ensino e verificam seus
resultados. Isso é seu trabalho diário. Relatar seu processo de
aprendizado, dúvidas, inseguranças e projetos num texto
narrativo-interpretativo não faz parte de seu cotidiano, ainda que
desejável. Escrever sobre uma experiência de ensino não é o
J o r g e B a r c e l l o s | 31
mesmo que escrever um plano de aula. É algo mais. Por isso,
escrever um livro ou mesmo um artigo sobre sua experiência
didática é um trabalho extraordinário para o professor. Ele
precisa elaborar a partir de seus sucessivos planos de aula um
significado, rever suas bases teóricas, confrontar com sua prática.
Sua narração escrita pode ser usada para uma apresentação em
uma reunião escolar, ou mesmo em um conselho de classe. Pode
também ser apresentado para publicação em uma revista ou
apresentação em um congresso de professores da rede a qual
pertence. Mas aqui queremos destacar como se pode se
transformar em livro, individual ou coletivo, a experiência de um
professor ou coletivo de professores. E para isso, o ensinamento
de outros profissionais é importante.
O terceiro é a escolha do método ou caminho para escrever. A
história contada por Zinsser tem o mérito de reconhecer que não
há nenhum método ou caminho “certo” para fazer um texto
escrito, pois é um trabalho também pessoal “Há todo tipo de
escritor e todo tipo de método, e qualquer método que ajude a
você a dizer aquilo que quer dizer será o método certo para você”
(Zinsser, p. 17). Li em algum lugar que o filósofo esloveno Slavoj
Zizek disse que seu método era listar alguns tópicos e após
escrever excessivamente. Você lê seus textos e vê que são
labirínticos, você o acompanha em seus argumentos e quando
parece que está perdido, um insight vem para organizar tudo e
mostrar que aquele caminho tortuoso que o filósofo escolheu era
apenas outra forma de explorar suas ideias. Alguns escrevem um
esboço; outros partem direto para o texto indo atrás das
definições e autores à medida que as ideias exigem – meu método
– e outros ainda passam tempos na primeira linha para depois,
ultrapassada, escreverem interminavelmente. Seja em qual ponto
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do espectro do processo da escrita está um autor, o ato de
escrever exige uma negociação consigo mesmo . Não é algo
totalmente natural, você não sai do nada escrevendo por aí. Você
pode fazer isso, mas em algum momento, você volta para fazer
ajustes. A essência de qualquer método de escrita é que você volta
para corrigir e organizar. Zinsser diz que é essa tensão que faz de
você um escritor. Sua ênfase está não no que o escrito diz, mas
como ele revela o que você é. Já apontei isso. Mas agora é preciso
para isso ter uma “caixa de ferramentas”. O que é isso?
A caixa de ferramentas
A primeira vez que ouvi falar em caixa de ferramentas foi quando
estudava a obra de Gilles Deleuze e Félix Guattari, o Anti Édipo
(Assírio e Alvin, 1972) como um recurso capaz de fazer um mapa
para enfrentar o mundo. Ela admite trocas, usos, reposições,
novos arranjos do que se aprendeu na experiência, seja de leituras
ou da prática. Confesso que a primeira leitura do Anti Édipo,
ainda na faculdade, a obra me causou espanto. Ele mesmo dizia
que o que importava era o que era útil para o leitor. Relendo
novamente, entendi que se tratava de um método aberto para a
construção de conceitos, para uma interpretação da realidade a
partir daquilo que um pesquisador consegue apreender de um
autor. Numa palavra, o que ele consegue reter conceitualmente e
que se torna prático para sua interpretação. À primeira vista,
parecia uma defesa do improviso intelectual, mas aos poucos foi
se revelando um método importante para o trabalho intelectual.
Suely Rolnik usou o termo em seu Cartografia Sentimental
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(Sulina, 2016) para descrever a subjetividade feminina nos anos
90 e Heraldo Silva para descrever o sistema teórico do filósofo
Richard Rorty.
Ludwig Wittgenstein. Editora Unesp (Divulgação)
A caixa de ferramentas é uma metáfora. É uma imagem para dizer
como usamos os conceitos e métodos a nossa disposição da
melhor forma possível. Diz Silva que ela foi criada por Ludwig
Wittgenstein (1889-1951) em sua obra Investigações Filosóficas
(1975) para estabelecer uma “analogia entre as diferentes funções
das palavras com as diferentes funções de ferramentas: em ambos
os casos não há uma hierarquia, pois tanto a utilidade das palavras
quanto a utilidade das ferramentas dependem, contextualmente,
do uso ao qual pretende-se destiná-las. Do mesmo modo que são
distintas as funções dos instrumentos, também são distintas as
funções das palavras, principalmente, no âmbito filosófico”.
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A base teórica
Nessa perspectiva, escrevemos segundo um arcabouço teórico
que possuímos e que foi produto de nossas leituras, nossas
experiências, nossa forma de interpretação da realidade. Se
somos um filósofo profissional, aquele que vive para escrever suas
ideias, compomos um sistema de pensamento. Quando você lê o
conjunto da obra de Michel Foucault (1926-1984) da Arqueologia
do Saber à História da Sexualidade, você sabe que está diante de
um sistema de pensamento. Ele possui uma forma clara de
encadear os conceitos para explicar a realidade, é possível
reconstruir em seu pensamento os conceitos que o guiam em sua
análise. Niklas Luhman (1927-1988) é outro exemplo notável
porque é justamente o papa do pensamento sistêmico, aquele que
considera a comunicação a chave da regulação dos sistemas
sociais. Mas somos apenas professores da rede de ensino
tentando dar um sentido a experiência que produzimos. Nós não
somos um filósofo da ciência, não estamos envolvidos na
produção de inúmeras obras ao longo de nossa carreira, nem um
sistema de ideias que oriente a ação educativa dos professores em
geral. Nós estamos, isto sim, escrevendo uma obra – se
escrevermos mais, tanto melhor! – neste momento para divulgar
o nosso pensamento. Não é nossa profissão a escrita, ainda que
seja uma de nossas práticas. É aí que entra a caixa de ferramentas.
Ela é o recurso que dispomos para análise da realidade extraídos
de nossa própria caminhada, seja através de leituras de autores do
nosso campo teórico, mas também, porque não, de outros
campos e interpretações, como da arte e da cultura, que também
possam nos oferecer insights. Porque eu posso citar um filósofo
J o r g e B a r c e l l o s | 35
e não um músico? Porque eu posso citar uma obra célebre e não
descrever uma cena de cinema? É nesse sentido que o famoso
“tudo vale” de Paul Feyerabend (1924-1984) está na base da
“caixa de ferramentas”.
Quando você escreve, você precisa também de liberdade
metodológica. Eu entrei em contato com a proposta de
Feyerabend nas aulas de filosofia da ciência de meu curso de
História da UFRGS no ano de 1985 ministrados por Ana
Carolina Regner.
Marco Zingano diz que ela era uma “professora infatigável, de
grande generosidade, Anna Carolina, como era mais conhecida
entre nós, marcou com um selo humano as muito ásperas e
abstratas discussões em filosofia. Dedicou-se ao estudo da história
e filosofia das ciências modernas. Neste âmbito encontrou seu
primeiro grande filósofo, Paul Feyerabend, cujas ideias ela ajudou
a disseminar em nosso meio acadêmico “. Líamos com afinco sua
obra Contra o Método (Unesp. 2011), onde lançou a sua filosofia
anarquista da ciência que rejeitava a existência de regras
metodológicas universais.
Para os demais professores de metodologia científica, isso soava
como uma heresia, afinal, a ciência quer se definir por métodos
científicos, isto é, sistemas de produção e organização do
conhecimento com base em regras rígidas. Eu via que a existência
de regras científicas para as ciências exatas era natural, afinal, a
pesquisa de laboratório efetivamente avança com base em seus
pressupostos. Mas eu era um historiador, e eu via a história
humana mais flexível do que ratos em um experimento de
laboratório.
36 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
Paul Feyerabend. Foto de Grazia Borrini-Feyerabend. Reproduzido de Wikipédia.
Fui influenciado pelos pressupostos de Feyerabend em minha
produção intelectual. Nem sempre seguir as regras metodológicas
rígidas contribui para o sucesso científico. Sua crítica à
consistência do critério, de que nosso pensamento deve se ajustar
a caminhada da humanidade em nossa área, é um princípio que
parte da lógica que as teorias antigas sempre tem razão. Se lemos
um autor e nele nos inspiramos para explicar nosso mundo
podemos errar, podemos não encontrar explicação para a
singularidade que está a nossa frente. É nesse momento que
J o r g e B a r c e l l o s | 37
criamos um conceito, uma explicação, nos termos de Gilles
Deleuze e Félix Guattari. A caixa de ferramentas permite isso: o
sistema fechado e adotado sem afetação não. A questão não é que
as teorias que nos antecedem não tenham valor, mas que o
escritor tem o direito de fazer uso de qualquer artifício - racional,
retóricos ou vulgares – para desenvolver seu pensamento, suas
ideias. Em sua formação você é familiarizado pela universidade a
determinadas ferramentas de escrita, determinados modos de
escrever, mas ao longo do tempo, você desenvolve suas próprias
ferramentas a partir de leituras, de práticas, de observações. Eu
tenho as minhas que interferem aqui, e uma delas é me inspirar
nos autores que pelo mundo afora entendo que realmente sabem
escrever, como Stephan King.
Como escrevem aqueles que escrevem?
King é um dos mais prolíficos escritores do mundo. É o nono
autor mais traduzido no mundo, segundo a wikipédia com mais
de 60 romances, com em média 500 páginas. Minha esposa é fã
dele e eu não sou leitor dele, não sou leitor de literatura, o que é
um grave defeito, mas aprecio seu Sobre a Escrita (Objetiva,
2015) pois é o testemunho de alguém que realmente escreve. Ele
dedica um capítulo de sua obra justamente a Caixa de
Ferramentas. Ele faz analogia com a caixa de ferramentas de seu
avô, carpinteiro, com três bandejas. Enquanto ele está interessado
em descrever literariamente a caixa de seu avô, eu me concentro
em entender seu método de trabalho. Como nós, King entende a
caixa de ferramentas como algo pessoal “Gostaria de sugerir que,
38 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
para escrever com o máximo de suas habilidades, convém
construir sua própria caixa de ferramentas e depois trabalhar a
musculatura para carregá-la com você. Assim, em vez de topar
com um trabalho difícil e desanimar, talvez você saiba pegar a
ferramenta certa e partir para o trabalho imediatamente”. (King,
p. 101). Isso significa que se uma caixa de ferramenta é muito
grande para carregar, perde sua utilidade.
Stephen King. Sobre a escrita. Reproduzido: Editora Suma. (Divulgação).
Apontei três pontos de partida para escrever: a definição de seu
lugar, do seu tema e do seu método. Descrevi que todo autor deve
ter uma “caixa de ferramentas”, os conceitos ou teorias que o
auxiliam na explicação da sua realidade, o que se denomina de
“apoio teórico”. Neta caixa, na bandeja mais próxima, ficam as
ferramentas mais comuns. Na escrita, é o vocabulário. Ele só diz
J o r g e B a r c e l l o s | 39
no capítulo seguinte como adquiri-lo, mas tenho certeza de que
você já suspeitava “se você quer ser escritor, existem duas coisas
a fazer, acima de todas as outras: ler muito e escrever muito.
Não há como fugir dessas duas coisas. Não há atalho” (King, p.
126). É exatamente assim comigo, então acredito que em maior
ou menor grau, será assim com você. Quando estamos na
universidade fazendo as leituras das disciplinas de graduação,
estamos não apenas incorporando os conteúdos que serão nosso
objeto de ensino: estamos também ampliando nosso vocabulário
com as leituras que fazemos. A conclusão desse processo se dá
com o Trabalho de Conclusão de Curso. No meu tempo, era um
trabalho com peso: fazíamos entre 100 a 150 páginas onde
desenvolvíamos um trabalho consistente.
No curso de história, revisitávamos as fontes, a literatura,
apropriávamos de uma teoria, fazíamos sua demonstração,
estabelecíamos os limites da pesquisa. Tudo isso exigia conceitos,
vocabulário, palavras que foram absorvidas por nós no curso de
graduação. Depois eu me vi professor de universidades privadas
e lamentei o quanto se perdeu o incentivo ao grande trabalho de
conclusão. Vi alunos apresentarem trabalhos com dez ou vinte
páginas (meu deus, um artigo!) como trabalho final de curso. Eu
sabia que isso era produto de um tempo marcado pela aceleração,
como anunciava Paul Virilio, e que aos poucos, cedeu a maldição
das redes sociais e seu limite de 140 caracteres.
Algo muito errado aconteceu entre a minha geração e a que veio
a seguir. Perdeu-se o amor a escrita. Escrever já foi considerado
uma arte. Você agora vê alunos perdidos frente a folha em
branco. Confesso, eu já tive momentos assim, mas superei e
40 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
aprendi a amar a escrita. Onde foi parar o amor pelo ato de
escrever?
A regra da simplicidade
Depois do vocabulário, vem o estilo na bandeja seguinte: a
simplicidade. Havia, como diz King, cursos onde o vocabulário
era portentoso. Não sei se modificou, mas eram assim os textos e
discursos que eu via no Curso de Direito da Universidade. Eu
havia sentido um pouco disso no início de meu curso, com o
jargão de análise histórica, mas logo aprendi que ele podia ser
substituído por expressões mais simples. King ironiza com o texto
difícil e cheio de palavreado de H.P. Lovecraft, mas seria idêntico
a qualquer monografia de direito da época, com suas expressões
“ditirâmbicas”, etc.
A lição de King é que vocabulário é algo que se melhora e não é
necessário nenhum esforço consciente para isso, apenas leitura.
Ele critica os autores que enfeitam o vocabulário, que procuram
palavras difíceis para impressionar. “é como enfeitar seu animal
de estimação com roupas sociais. O bichinho fica morrendo de
vergonha e a pessoa que cometeu esse ato de fofurice
premeditada deveria ficar mais ainda” (King, p. 105). Sua regra é:
“use a primeira palavra que vier a cabeça, se for adequada e
interessante”.
J o r g e B a r c e l l o s | 41
Escrita. Fonte: Pixabay.
A escrita é feita de palavras e elas se adequam aos contextos. Não
devemos nos frustrar ao constatar que o que escrevemos ficou
aquém do que queríamos, porque é da sua natureza. É o preço
por simplificar, por tornar palatável ao leitor nosso escrito,
argumento da simplicidade defendido por Zinsser. Nos
perdemos fácil nas palavras desnecessárias, nas construções
circulares. Por todo o lado, a língua pode se tornar difícil “que pai
ou mãe consegue montar um brinquedo para uma criança com
base nas instruções que vem junto com a embalagem?” pergunta
Zinsser (p. 19). Recusamos o simples, preferimos inflar,
queremos parecer importante, mas isso não leva a lugar nenhum.
E simplificar não leva a perda do conteúdo, mas a sua
inteligibilidade: simplificamos quando preferimos a palavra curta
a longa, recusamos os advérbios que já estejam contidos no verbo,
preferimos a voz ativa à voz passiva, os chamados “elementos
42 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
adulterantes da frase” (Zinsser, p. 20). A simplificação deve ser a
regra.
A obrigação de tirar o excesso
Tirar o excesso é uma obrigação. Mas ninguém diz o que é o tal
do “excesso” que marca nossa escrita - Zinsser fala em
pensamento limpo. King diz que existem três tipos de escritores.
Os primeiros são os escritores ruins, que estão na base da
pirâmide da escrita. São ricos e até compram casas no Caribe. Há
um segundo grupo no meio da pirâmide que King chama de
“competentes” e que existe em todas as áreas, um grupo grande
e acolhedor. Luto para estar aí. E há, acima destes, na ponta da
pirâmide, os gênios “com um talento que está além da nossa
capacidade de compreensão, absolutamente fora de alcance. A
maioria dos gênios se quer compreende a si mesmo. Muitos deles
levam vidas infelizes” (King, p. 124). King é muito irônico na sua
descrição e nela situo os autores que me inspiram a escrever.
Umberto Eco é um deles. A esperança de King é poder
transformar um escritor competente em um bom escritor, o que
não significa torna-lo gênio, e que parece ser uma classe um
pouco melhor dos simplesmente competente. É que estar na
ponta da pirâmide para ele não significa também grande coisa, já
que escritores como Charles Dickens e Shakespeare, que
consideramos gênios, enfrentaram ataques da crítica por suposto
sucesso “com as classes populares”.
A terceira prateleira da caixa de ferramentas é a própria
experiência da escrita. Cada um tem sua experiência de escrever
J o r g e B a r c e l l o s | 43
ao longo da sua existência. Eu comecei escrevendo artigos de
jornal. É que sempre há nos jornais uma página dedicada a
opinião, seja nos das grandes capitais ou do interior. Na cidade
de Cidreira, onde veraneio, a Princesinha das Praias possui um
jornal de divulgação local que tem cerca de 6 páginas chamado O
Marisco, o que é pouco, mas possui uma área dedicada a artigos
de opinião. Pequenos, mas estão lá. Nunca colaborei, mas sei.
Comecei a colaborar com Zero Hora, mas consegui ir mais longe:
Folha de São Paulo e Jornal do Brasil.
Depois, com a internet, veio as páginas das plataformas de jornais
on line: Sul 21, Le Monde Diplomatique Brasil, A terra é
redonda, entre outros. No meio do caminho escrevi blos em
plataformas de diversos países de língua portuguesa e espanhola.
Escrever é um hábito. Você também pode fazê-lo. Nesse
caminho, foi justamente o interesse pelas classes populares que
me motivou: eu lia muito novos autores e queria fazer com que o
leitor comum conhecesse seus temas, suas abordagens. Eu
escrevia sobre o mundo que passa aos meus olhos inspirado no
pensamento dos autores que eu lia, eu interpretava o mundo a
partir de seu olhar, e no caminho, me dei conta que o seu olhar
se fez meu.
Eu havia incorporado em meu pensamento conceitos e
interpretações de autores diversos. É, com dizia Suely Rolnik,
esse processo de alimentação que nossa mente faz a partir de
leituras, de textos, de tudo o que é escrito. O processo de
interpretação de realidade havia finalizado: da teoria à prática,
como dizem na universidade.
44 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
Escreva para seu público
Escrever para o público geral é diferente de escrever para
acadêmicos. Tive por alguns anos o desejo de ser professor
universitário, da UFRGS. Fui professor de diversas disciplinas em
universidade privadas e cheguei a ser professor substituto da
UFRGS. Mas nunca tive o desejo de escrever para a universidade
pois eu me lembrava das prateleiras de dissertações de mestrado
e doutorado onde raramente os cidadãos iam. Também sabia que
os artigos escritos para revistas científicas, apesar de trazerem
reconhecimento, tinham poucos leitores. Era o contrário de
publicar em jornais: eu sabia que era lido porque tinha o leitor
que me cumprimentava, recebia retornos por e-mails. Não existe
escritor sem leitor. Por isso comecei a escrever artigos de opinião
para jornais. É mais simples porque o espaço assim exige. A
academia tem suas exigências: ABNT sempre, o que torna o texto
seco, truncado. Quem para tudo para ir para o rodapé ou para o
final do texto, a bibliografia? Por isso descobri no ensaio uma
forma intermediária: você ali podia ter o melhor dos dois
mundos. Tem a criatividade do jornalismo, a análise do artigo
científico e permite se liberar de algumas regras.
Não é necessário dizer que há inúmeras definições de ensaio,
como defensores e críticos. Quando faço um texto que chamo
“ensaio”, é uma prosa de não ficção com um tema central e
diversos argumentos e que não passa de dez páginas padrão. Este
texto que você está lendo é o meu ensaio. Para mim é uma versão
melhorada da antiga dissertação, é a solução interpretativa que
dou sobre um problema a partir de minhas leituras. Sua forma
simplifica exigências acadêmicas – eu posso ultrapassar as quatro
J o r g e B a r c e l l o s | 45
linhas para fazer uma citação no texto, eu não preciso fazer
rodapés que podem ser maiores que a página do meu texto. O
que não posso é deixar de fazer mínimas referências ao longo do
texto (o que fica entre parênteses) para depois incluir numa
bibliografia, ainda que ela não seja tão comum em ensaios. Mas é
assim que eu os defino e faço.
Doze ensaios sobre o ensaio. Divulgação
O exemplo dos ensaios dos suplementos culturais dos jornais de
grande circulação é inspirador. Eles cumprem o papel de traduzir
a produção acadêmica para a sociedade. Por exemplo, o
46 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
articulista da revista Serrote Paulo Roberto Pires organizou um
livro a partir de artigos que publicou sobre o tema “ensaios”
intitulado “Doze ensaios sobre o ensaio” (IMS, 2024). Artigos
médios publicados em diferentes momentos que viraram livro. É
que o ensaio é uma produção mais livre, sem a maioria das
referências exigidas pelo formalismo acadêmico e que atrapalham
a leitura. Por exemplo, os autores são respeitados em suas
citações, mas raramente são indicadas as páginas das obras de
onde foram tiradas as passagens. É um jornalismo que diz: “confie
em mim, na minha leitura. Eu estarei aqui se quiser os
pormenores, mas agora, deleite-se apenas com minha análise”. É
claro, é uma escrita que se limita a determinadas situações, e
nesse sentido, se encaixa como produto do uso da caixa de
ferramentas, de Michel Foucault:” A teoria como caixa de
ferramentas quer dizer: a) que se trata de construir não um
sistema, mas um instrumento: uma lógica própria às relações de
poder e às lutas que se engajam em torno delas; b) que essa
pesquisa só pode se fazer aos poucos, a partir de uma reflexão
(necessariamente histórica em algumas de suas dimensões) sobre
situações dadas (FOUCAULT, 2003, p. 251). Por isso a caixa de
ferramentas é tão útil ao ensaio.
Use bem a gramática
A gramática é a quarta prateleira. A receita do autor de Carrie
para solucionar os problemas gramaticais é muito simples.
“Relaxe. Não vamos perder muito tempo aqui. Ou você absorve
os princípios gramaticais de sua língua nativa por meio de
J o r g e B a r c e l l o s | 47
conversação e leitura, ou não absorve” (King, p.106). Ainda
assim, King repassa algumas observações. Manter as regras
gramaticais para evitar confusão e desentendimento; uso de
substantivos e verbos na mesma frase é indispensável; relaxe:
ninguém sabe ao final se está fazendo direito o uso das classes
gramaticais; seja honesto: você tem palavras que não gosta,
assuma isso; evite a voz passiva e advérbios “acredito que a estrada
do inferno esteja pavimentada com advérbios “ diz King (p. 111);
não trabalhe com pressão – isso dá medo de escrever e
finalmente, a que considero mais importante, divida sua frase em
duas, isso facilita o leitor. É a regra da simplicidade. Ele não chega
a explorar mais este ponto, pois entende que todos entendem
isso. Zinsser, no entanto, dedica-se mais a este ponto.
Simplificar para o autor de Como escrever bem é “despir cada
frase até deixa-la apenas com seus componentes essenciais. Toda
palavra que não tenha uma função, toda palavra longa que
poderia ser substituída por uma palavra curta, todo advérbio que
contenha o mesmo significado do que já está contido no verbo,
toda construção em voz passiva que deixe o leitor inseguro a
respeito de quem está fazendo o quê – todos esses são elementos
adulterantes que enfraquecem uma frase” (Zinsser, p. 20).
Concordo em gênero e grau com ele, mas confesso que a palavra
despir me deixa incomodado. Não por que seja moralista, mas
porque me pergunto se existe uma frase realmente “nua”? O
filósofo Giorgio Agamben, em Nudez (Autêntica, 2014), no artigo
que dá nome a obra, explorou este tema. Ele partiu da
performance de Vanessa Beecroft realizada na Neue
Nationalgalerie, em Berlin, no dia 8 de abril de 2005 onde cem
mulheres nuas (na verdade, de colant) se colocaram a vista de
todos. Sua descrição do que aconteceu, da vergonha que
48 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
acometeu os visitantes, revela que era um ‘não lugar”, de que não
aconteceu como previsto. Essa nudez se repetiu, ele lembra, em
Abu Graib, e revela que uma de suas faces pode ser a tortura, e
nesse sentido, o desejo de fazer a frase nua só pode ser algo
impossível: procurar escrever uma frase totalmente despida de
qualquer elemento adulterante é um trabalho torturante.
Impossível, não sai como o previsto. Você repassa umas duas ou
três vezes o texto, mas você não pode substituir o tempo em que
você o produz pelo que você o corrige.
Giorgio Agamben. Divulgação Editora Boitempo.
Segundo Agamben fazemos isso pois estamos impregnados de
teologia. A nudez é da tradição cristã e tem na escrita uma espécie
de queda ou pecado original. Queremos encontrar nessa escrita
nua, a escrita perfeita, a ideia original de graça que vestia Adão e
Eva antes queda. A escrita seria esta espécie de pecado original,
J o r g e B a r c e l l o s | 49
expulsão do paraíso dos nossos pensamentos, a gramática e as
regras do bem escrever querem nos retirar do inferno que é
compartilhar com os outros nossas ideias - quem já passou por
ter seus escritos criticados sabe do que estou falando. Depois de
repassar diversos autores da tradição filosófica sobre a nudez,
Agamben chega a Walter Benjamin para quem a nudez
procurada tem uma complexidade que vai além do nu, do
revelado. Ela inclui o velado “na beleza, véu e velado, o invólucro
e seu objeto, estão ligados por uma relação necessária que
Benjamin denomina de “segredo”. Ou seja, o belo é o objeto ao
qual o véu é essencial” (p.121-122). Da mesma forma com a
escrita, você não pode encontrar uma escrita nua simplesmente
porque ela precisa de um véu que caracteriza seu autor, o que
chamamos de “estilo”. É por isso que há um limite em que
podemos simplificar, limpar e arrumar um texto. Você não
consegue tirar todo o excesso de um texto porque algo ali também
o caracteriza: uma forma de colocar o objeto, de descrever, de
olhar.
Limpe seu texto
Zinsser diz que devemos fazer o texto limpo porque ninguém
mais tem tempo de ler, ou ainda, o tempo que dispõe é de trinta
segundos de atenção. Mas simplificar para atender as
necessidades de um leitor demasiado envolvido no mundo
tecnológico não parece ser o objetivo de professores que querem
ser autores. Se não, não escreveriam. O próprio King é repleto
de tortuosidades em seu texto literário como Zizek é em seu texto
50 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
filosófico. Eles fazem isso na certeza de que o que escrevem tem
algo a dizer, a conectar com seu leitor. Que o caminho que
escolhem para escrever importa. Esse modo de dizer é
justamente a exposição do labirinto de pensamentos que tem seu
autor na forma escrita. Não é notável o quanto King descreve os
meandros da escrita imaginando inúmeras situações para, ao
final, apenas concluir em uma frase o que queria dizer? Nesse
sentido, contexto da escrita importa, tamanho nem tanto.
A dúvida. Fonte: Pixabay.
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Como saber se estamos navegando na escrita ou, ao contrário,
apenas construindo um texto verborrágico? Este aparece na falta
de encadeamento das ideais de um autor, na má escrita que se
perde ao longo do tempo. Se as frases se sucedem em um
encadeamento natural, é provável que você esteja no caminho
certo. Quando relemos nosso texto nos damos conta de que
derrapamos em algum lugar, que faltam conexões, precisamos
parar e refazer. Manter o tempo verbal, a manutenção das
sequências das frases com elos claros. Persistir com paciência na
revisão do texto é necessário e envolve uma leitura interior
porque precisa estar claro para quem lê o texto pela primeira vez
o que se quer dizer “Pensar com clareza é um ato consciente que
os escritores devem se esforçar a realizar. Escrever bem não é
algo que surja naturalmente” (Zinsser, p. 26).
A conclusão é que fazemos bons textos se os fazemos simples. A
simplicidade é produto da busca pelo fim do excesso. Ele está nos
detalhes diz Zinsser. Não é “no atual momento”, é “agora”; não
é que “nós estamos na direção de um comitê”, mas sim “dirigimos
um comitê”; um “médico pessoal” é o “seu médico’. Não é
necessário dizer “no atual momento estamos enfrentando alguma
precipitação atmosférica”, mas simplesmente “está chovendo”.
São todos exemplos de Zinsser que revelam que estamos
colocando em nossas frases palavras que não servem para nada.
Exceto, ele faltou dizer, para os neoliberais demitirem em massa,
quando dizem “demissões necessárias” – o politicamente correto.
Se é um conceito elementar em sua disciplina, “paradigma” não
deve ser substituída por “parâmetro”, ainda que possa soar um
pouco difícil. Na concepção de excesso de Zinsser não há espaço
para os conceitos, para os argumentos. Isso é um problema. Não
devemos descartar palavras que possam afetar o conteúdo do que
52 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
queremos demonstrar. Faça o número de revisões que considerar
satisfatórias para o texto que produz, mas também não leve mais
tempo revisando seu texto do que leva para escreve-lo. Para
escrever, defina seu modo, o lugar de sua fala, seu método, sua
caixa de ferramentas. Estes são meus critérios, e talvez sejam uteis
para você. Eles são importantes para fundamentar o que vem
depois: a construção do argumento, tema de nosso próximo
texto.
3
Sobre o argumento
J o r g e B a r c e l l o s | 55
A definição de argumento
O objetivo deste texto é fornecer a professores interessados em
organizar obras coletivas uma definição de argumento. Já vimos
que o ensaio é uma das formas de apresentação do texto de um
autor. Eu o defendo como um texto que combina profundidade
de análise com simplicidade de forma para amplo público e
possível para qualquer formação inicial. O argumento é tudo
aquilo que eu uso em minha escrita que serve para garantir e
fundamentar o que coloco em meu texto. Ideias originais, fatos,
experiências, estatísticas, opiniões de estudiosos escritos por nós
de forma lógica e encadeada compõem nossos argumentos. Aqui
me fundamento na obra Ensaio Filósófico – o que é, como se
faz (Loyola, 1996), de autoria A.P. Martinich, com as
modificações advindas de minha própria experiência. Há outras
obras de referência para a escrita que uma simples pesquisa na
internet pode fornecer. Julguei que este é um bom autor para
embasar a definição de argumento pois é um filósofo analítico,
professor da Universidade do Texas em Austin, especializado em
filosofia da linguagem e em Hobbes.
O ensaio filosófico aqui, ou simplesmente ensaio, tem a vantagem
de ser um instrumento válido para todas as disciplinas para
apresentação de nossos argumentos. A filosofia está presente no
currículo dos cursos de graduação porque ela produz uma
reflexão sobre os conceitos das demais disciplinas que fazemos.
Nesse sentido, é o campo de conhecimento que serve de base
para qualquer área de saber. Quer dizer, utilizar como referência
um manual de ensaio filosófico não significa que se trata de uma
reflexão sobre filosofia, mas do método filosófico como
56 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
instrumento para a construção de argumentos para textos de
professores. A obra é organizada em oito capítulos principais. De
O autor e seu público até os Problemas da introdução, Martinich
passa a estrutura do ensaio descrevendo formas de elaboração,
táticas, restrições e metas. Aqui, o cerne de nossa reflexão é a
construção do argumento no seu texto, tema que o autor trata no
capítulo segundo. Eventualmente pontos demais e de minha
experiência serão agregados.
Na introdução, o autor de Ensaio Filosófico afirma que “o ensaio
parece escrever-se a si mesmo” (Martinich, p.11) pois é produto
do modo de escrever de um autor. Seu objetivo é ensinar a
escrever algo de valor pois em filosofia “o primeiro objetivo é
mais a precisão do que a elegância”, diz. Ainda que exista a figura
do gênio, ele afirma que é uma rara condição. Não nascemos, em
nossa maioria, gênios. Mas há algo transmissível no oficio de
escrever e um deles é escrever uma prosa clara, concisa e precisa.
A elegância, sugere, é desejável. Nessa linha, segue Zinsser (2021)
para quem a simplificar é tudo.
Exemplos de argumentos
Em filosofia, quando falamos de argumentos falamos da
construção de categorias de interpretação. Isso pode parecer algo
problemático para o professor, mas não é impossível. Não
devemos temer as categorias. Mesmo os filósofos não estão longe
de cometer erros com elas. Gosto do exemplo de Martinich do
erro de categoria que aparece em Hobbes. Segundo ele “o
intelecto compreende” é um erro de categoria. Intelecto é uma
J o r g e B a r c e l l o s | 57
propriedade dos corpos; compreender é de outra, a inteligência.
O correto seria dizer “o homem compreende por meio de sua
inteligência”. No cotidiano da escrita de professores, raramente
estamos diante do rigor de conceitos filosóficos, ainda que
conceitos seja exatamente a base com a qual descrevemos nossas
experiências. Mas o que o autor nos ensina é que para ser claro
precisamos ampliar o pensamento enquanto escrevemos . E as
definições ajudam nesse trabalho. Quando o autor discrimina a
lógica das propriedades das categorias, fica claro que a nova frase
ficou melhor. É que linguagem clara exprime pensamento claro,
diz Martinich. Nessa linha, meu exemplo preferido de clareza do
uso dos argumentos é o do modo como o filósofo coreano Byung
Chul Han escreve seu pensamento. Em A Sociedade Paliativa –
a dor hoje (Vozes, 2021) ele diz:
“A nossa relação com a dor mostra em que
sociedade vivemos. Dores são cifras. Elas contêm
a chave para o entendimento de toda a sociedade.
Assim, cada crítica da sociedade tem de levar a
cabo uma hermenêutica da dor. Caso deixe a dor
apenas a cargo da medicina, deixamos escapar o
seu caráter de signo. Hoje impera por todo lugar
uma algofobia, uma angustia generalizada diante
da dor. Também a tolerância a dor diminui
rapidamente. A algofobia tem por consequência
uma anestesia permanente. Toda condição
dolorosa é evitada. Tornam-se suspeitas,
entrementes, também as dores de amor. A
algofobia se prolonga no social. Conflitos e
58 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
controvérsias que poderiam levar a confrontações
dolorosas têm cada vez menos espaço”.
Agora observe uma passagem de outra obra, intitulada O
desaparecimento dos rituais (Vozes, 2021).
Rituais são ações simbólicas. Transmitem e
representam todos os valores e ordenamentos que
portam uma comunidade. Geram uma
comunidade sem comunicação, enquanto hoje
predomina uma comunicação sem comunidade.
A percepção simbólica é constitutiva dos rituais. O
símbolo (em grego symbolon) significa
originalmente o sinal de reconhecimento entre
amizades hospedes (tessera hospitalis). Um dos
amigos quebra a téssera, guardando para si uma
metade e dá ao outro amigo a outra como sinal de
hospitalidade. O símbolo serve, assim, ao
reconhecimento. Este é uma forma particular de
repetição: “reconhecer não é: ver algo mais uma
vez. Reconhecimentos não são uma série de
encontros, mas reconhecer se chama: reconhecer
algo como aquilo que já se conhece”.
Apesar de publicados no Brasil no mesmo ano, na origem tem
um ano de diferença cada um. Você observa que a forma da
argumentação é a mesma. As categorias e a análise se seguem de
J o r g e B a r c e l l o s | 59
uma forma clara. Ele parte de uma observação ou definição para
então arrolar suas características. Aqui, argumentar é não é
somente definir, mas caracterizar.
Byung Chul-Han. Editora Vozes. Divulgação
A simplicidade está em partir de definições diretamente, mas isso
não é frequente nem mesmo nos melhores escritores. Depois da
clareza das definições ela está onde? Na escrita com distinções,
60 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
oposições. Ele vai exemplificando os significados da dor ou dos
rituais em relação ao contexto em que se situam; ele aprofunda a
definição ao usar um recurso que é apelar a origem etimológica
das palavras. As distinções podem ser suaves, como na definição
de ritual, ou mais agudas, como na definição da dor. As frases são
elaboradas de maneira curta, quase sequencial. É como se a ideia
fosse dividida em dois. Já falamos nosso no artigo anterior.
Estes textos eu retirei dos capítulos introdutórios da obra de Han.
Eles revelam um estilo limpo, que foge da linguagem cotidiana.
Ele se mantém assim ao longo da obra. São bem diferentes do
texto do filosofo esloveno Slavoj Zizek. Ele costuma usar piadas
para amarar ou introduzir os conceitos, como faz nesta passagem
de Em busca das causas perdidas (Boitempo, 2011):
A função da repetição tem seu melhor exemplo
em uma piada dos tempos socialistas sobre um
político iugoslavo que viaja a Alemanha. Quando
o trem passa por uma cidade, ele pergunta ao guia:
- Que lugar é esse?
O guia responde:
- Baden-Baden.
E o político esbraveja:
- Está achando que eu sou idiota? Não precisa
falar duas vezes”
J o r g e B a r c e l l o s | 61
Agora observe uma passagem de outra obra, intitulada “A visão
em paralaxe” (Boitempo, 2008)
“Há uma clássica piada soviética que nos mostra
como o significado de uma cena pode mudar
totalmente com uma alteração do ponto de vista
subjetivo. Brejnev morre e é levado para o inferno.
Como ele era um grande líder, ganha o privilégio
de dar um passeio e escolher o próprio quarto. O
guia, então, abre uma porta, e Brejnev vê Kurshev
sentado em um sofá, beijando e acariciando
apaixonadamente Marilyn Monroe, sentada em
seu colo.
Brejnev exclama alegremente
- Adoraria ficar nesse quarto!
E o guia responde:
- Não se anime tanto, camarada! Esse não é o
quarto de Krushev no inferno. É o quarto de
Marilyn Monroe!
Nenhuma das passagens de Zizek faz a definição do conceito que
pretende desenvolver, seja a da função da repetição, tema clássico
da psicanálise, como do efeito paralaxe, desvio do olhar, que
pretende na segunda passagem. Ambos são piadas introdutórias
ao tema.
Um ensaio não é feito apenas de argumentos. Ele pode conter
outros recursos que no entender do escritor são importantes para
62 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
“fisgar” o leitor. Em Zizek, as piadas querem conter de forma
irônica o conteúdo do argumento que o autor quer desenvolver,
mas não são o argumento, são sua imagem figurada.
Qualquer texto pode em sua introdução se privar de apresentar
o conceito que pretende desenvolver. Ninguém é obrigado a
escrever como Han escreve, mas este ensina como escrever um
argumento no momento em que o faz. Mas os argumentos não
precisam serem apresentadores diretamente no texto, pode
mesmo ser algo atrasado em relação a ele.
Eu já havia mencionado que Zizek era verborrágico, o que não
significa que seja um autor ruim, ao contrário. Tanto que ele
reuniu suas piadas em outra obra As piadas de Zizek (São Paulo:
Três Estrelas, 2015). Isso significa que o texto tem, é claro,
conforme o estilo de um autor, uma notável elasticidade.
O argumento reflete uma posição
Minha hipótese da diferença na forma de apresentação dos
argumentos em ambos autores está no fato de que, sendo um
intelectual não engajado na luta social, mas um universitário, Han
terminou por desenvolver um estilo mais formal e direto. Não me
entendam mal: os textos de Han auxiliam enormemente a criticar
e entender o mundo em que vivemos, e nesse sentido, tem
imenso valor para a luta social. Ele mesmo enfatiza o quanto foi
importante em sua formação o fato de ter sido primeiro um
mecânico antes de acessar a universidade. Já Zizek, um filósofo
que viveu as dificuldades de criar o pensamento crítico na
J o r g e B a r c e l l o s | 63
Eslovênia, pais que provavelmente você nunca ouviu falar, mas
que viveu transformações políticas significativas que o afetaram,
ele fez uma revolução teórica ao combinar o pensamento de
Hegel e Lacan. Por isso buscou o engajamento social de forma
mais intensa, tornando acessível ao público o que era
extremamente difícil em seu pensamento e para isso ele viu
primeiro no humor, e depois no cinema, as ferramentas de
divulgação.
Então onde aparecem os argumentos no pensamento de Zizek?
Já afirmei que ele é um autor prolixo. Ele começa sua obra
descrevendo duas histórias divulgadas na mídia em 2003. Em A
visão de Paralaxe Zizek inicia a obra com a vinculação de dois
fatos: a descrição da primeira visão dos artistas Kandisky e Klee,
que se inspiraram na tortura para fazer suas obras e a história da
morte do filósofo Walter Benjamin. E só depois ele nos apresenta
a tese do livro, ainda de maneira extensa, ao contrário do que faz
Han:
“O que essas duas histórias têm em comum não é
apenas o vínculo surpreendente entre a high
culture (belas artes e teoria) e a política vil e
violenta (assassinato e tortura). Nesse nível, o
vínculo nem é tão inesperado quanto possa
parecer: uma das opiniões mais corriqueiras do
senso comum vulgar não é que ver arte abstrata
(assim como escutar música atonal) é uma tortura?
(Na mesma linha, seria fácil imaginar uma prisão
onde os detentos fossem expostos constantemente
a música atonal). Por outro lado, o senso comum
“mais profundo” diz que Schoenberg, com sua
64 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
música, expressou os horrores do holocausto e
dos bombardeios em massa antes que viessem a
acontecer. Em termos mais radicais, o que essas
duas histórias têm em comum é que o vínculo que
criam é um curto-circuito impossível de níveis que,
por razões estruturais, nunca podem se
encontrar[...] Em resumo, o que essas duas
anedotas têm em comum é a concorrência de uma
lacuna paraláctica intransponível, o confronto de
dois pontos de vista intimamente ligados entre os
quais não é possível haver nenhum fundamento
neutro comum”.
Observe que, mesmo eu aqui retirando apenas excertos do
pensamento de Zizek, ainda assim o argumento se esparrama ao
longo do texto. Por que isso acontece? Não apenas pela grande
carga de leitura que o autor tem, capaz de reunir o pensamento
hegeliano, lacaniano e formas de expressão da arte em suas
análises. Ele acontece principalmente pela capacidade de Zizek
de transformar em texto a própria reflexão, o próprio
pensamento. Para minha geração, que aprendeu a ler textos,
escolher e analisar problemas, voltar a textos, escrever suas
conclusões, isso é um passo além. É que, como afirmei, Zizek
chegou num ponto da produção do pensamento intelectual
altamente concentrado: ele é professor universitário e vive de
ministrar conferências sobre os originais de seus livros, trabalho
que iniciou ainda nos anos 80, resultando numa enorme carreira
intelectual. Não é para qualquer um.
J o r g e B a r c e l l o s | 65
Nós, como professores normais, apreendemos as características
da construção dos argumentos de seu método de trabalho. Lemos
seus livros na esperança de encontrar explicações para nossa
realidade e aí podermos argumentar melhor. Talvez as próximas
gerações possam fazer algo similar ao método de Zizek. Hoje
sabemos que o Google possui ferramentas que transformam, de
maneira imediata, o que você diz em escrito. Está na internet o
modo de fazer isso, que se tornou possível porque os editores online dispõem de ferramentas de transformação do que você diz
em palavra: isso significa o uso simultâneo do microfone com o
editor.
Não estou dizendo nada novo para qualquer nerd da informática.
Mas para a minha geração de professores que tiveram uma
formação fora das plataformas, nas bibliotecas, isso é novo. Algo
similar ocorre quando você usa o recurso do tradutor do Google,
você fala em sua língua e o próprio programa se encarrega de
traduzir ou o inverso, traduz. Imagine isso agora aplicado a suas
aulas: você poderia transformar em escrito o que você
experimenta no dia a dia da escola; você pode transformar suas
reflexões de preparo de aula em escrito hoje com instrumentos
digitais. Isso é novo para minha geração. Zizek, de alguma forma,
conseguiu produzir isso com os instrumentos da geração dele: a
pesquisa bibliográfica, o planejamento de aulas, a escrita
obsessiva, etc.
66 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
Slavoj Zizek. Reprodução: wikipédia.
J o r g e B a r c e l l o s | 67
O argumento organiza pensamentos confusos em textos
organizados
Isto tudo é para mostrar que, ainda que o critério da boa redação
seja a precisão, o problema é que o pensamento humano não é
preciso. Lidamos com nossas reflexões cuja característica é a ida
e a vinda de pensamentos sobre o mundo. O mundo e o nosso
pensamento são confusos e o que fazemos através de nossos
escritos é dar-lhe uma certa organização, torná-lo inteligível.
Temos dúvidas, raciocinamos sobre elas e esse fluxo de ideias,
depois de organizado é que se torna um livro. O problema é
como se anota o pensamento enquanto se pensa. É a minha
forma de interpretar o que Martinich diz nesta passagem: “Se
metade da boa filosofia é boa gramática, a outra metade é bom
pensamento. O bom pensamento assume muitas formas. A
forma na qual vamos nos concentrar é muitas vezes chamada de
análise. A palavra análise tem, em filosofia, muitos sentidos,
sendo um deles o de método de raciocínio. Todos podem
complicar um assunto; é preciso um pensador treinado para
tornar-se um assunto simples” (Martinich, p. 16).
Assim, escrevemos ensaios para expor nossos argumentos. O
conjunto de argumentos compõe nossa análise de um
determinado objeto. Ele enumera três razões para a escolha do
ensaio como forma de apresentação dos argumentos. A primeira
é que é a forma dominante de solicitação de trabalhos na
universidade. Hoje chamados de Papers, forma de elitizar o que
é o pequeno artigo científico apresentado em congressos e
reuniões. Alguns autores dizem que o paper diferencia-se do
artigo por ser mais superficial, outros que a diferença é apenas no
68 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
tamanho. Seu objetivo é apresentar um problema, revelar
hipóteses, metodologias e realizar uma análise pessoal. A segunda
é a clareza na apresentação da metodologia. Ele possui uma
estrutura básica: Título -Nome completo do(s) autor(es); Resumo e/ou Abstract; Introdução; Revisão da Literatura;
Metodologia; Desenvolvimento; Resultados; Discussão dos
Resultados; Conclusão; Anexos e/ou Apêndices; Bibliografia.
Seguir esse formato é útil para preparar o estudante para
participar de reuniões cientificas. Mas ninguém usa todos esses
recursos em ensaios de divulgação. Aqui eles são adaptados.
Vejamos como.
Na minha experiência, muito segui este formato em minhas
diversas apresentações de trabalhos nas reuniões da Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) que participei. De
caráter anual, eram locais em que a preparação é mais importante
do que o evento em si. Escrever e ser aceito, mais importante do
que apresentar. Posteriormente, o contato com inúmeros autores
e textos, aprendi que não é necessário seguir à risca os itens de
um roteiro científico para produzir um bom texto. Os próprios
autores que lemos e admiramos dão testemunho em suas obras
de que os termos são apenas uma forma de organizar o que
iremos dizer. Se é isso, basta dizer, não? Mais ou menos. Você
pode iniciar ou finalizar um texto pela descrição de sua
metodologia; pode, inclusive, fazer a revisão de literatura de um
pormenor ao longo de um momento do texto; os resultados são
a própria análise, em que na prática pode misturar-se a sua
discussão. Usar um modelo universitário no dia a dia exige
mediações.
J o r g e B a r c e l l o s | 69
Talvez as únicas peças que permaneçam deste esquema geral tipo
SBPC sejam realmente a introdução e a conclusão que, às vezes,
nem estes títulos levam. Por exemplo, com a produção de textos
para plataformas o resumo há muito tempo transformou-se
simplesmente no que se pode chamar de “cartola” ou “subtítulo”
dos artigos. Ou ainda, equivale ao lead do jornalismo. O que é o
Lead? É o primeiro parágrafo que resume para o leitor às
segundas perguntas: Que? Quem? Quando? Onde? Como? É a
famosa tese da “pirâmide invertida” inventada nos cursos de
jornalismo para facilitar a leitura. Não gosto deste modelo por
uma simples razão: ele entrega ao leitor tudo de uma vez só. Nos
cursos bons de jornalismo enfatizam que nem todos os textos se
adaptam a este modelo – alivio! É que nos acostumamos a ver
jornais e a universalização de certos modos de apresentação das
palavras em textos se torna hegemônico graças a eles, competindo
com as formulas aprendidas na universidade.
A terceira razão da indicação de ensaio por Martinich é que é a
forma mais fácil de escrever. E de fato, basta para isso você ter
uma noção da estrutura prévia que deseja dar. É claro que
depende também da relação da sua formação inicial com a
escrita. Matemáticos podem achar mais difícil escrever do que
humanistas, mas há notáveis matemáticos que escreveram
também livros importantes. Um deles é Henri Poincaré. Ele
escreveu A Ciência e a Hipótese (Editora da Universidade de
Brasília, 1988), Ensaios Fundamentais (Editora Contraponto,
2008), O Valor da Ciência (Editora Contraponto, 1995) e
Últimos Pensamentos (Editora 93, 2023). Na infância, sua
professora de matemática o descrevia como um monstro da
matemática e ele ganhou o primeiro prêmio nas equações
diferenciais. Poincaré delineou uma nova maneira de estudar as
70 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
propriedades destas funções. Ele não somente abordou a questão
da determinação das integrais de tais equações, mas também foi
a primeira pessoa a estudar suas propriedades geométricas e
ganhou o concours général, uma competição entre os pupilos
mais destacados dos Liceus da França. Seu nome veio ao grande
público pela citação na série O problema dos três corpos
(Netflix,2024), construída a partir de uma questão proposta sobre
o sistema solar que leva o título do seriado. Ele provou que o
problema não estava correto e que a solução não podia ser
encontrada e foi premiado por isso.
Por outro lado, para filósofos pode ser extremamente difícil
escrever com clareza filosofia a ponto de necessitar usar estilos e
recursos diversos de sua formação inicial para expressar seus
argumentos. Um deles é Nelson Brissac Peixoto. Ainda que
tenha feito acertos com seu passado de esquerda com a obra
Sedução da Barbárie (Brasiliense), seu melhor livro não é sobre
filosofia, mas sobre cinema. Ou melhor, usa do cinema para falar
da cultura contemporânea. Assim Brissac inicia seu Cenários em
Ruinas (Brasiliense, 1987):
“Um vulto parado na esquina espreita a escuridão,
um carro atravessa a toda velocidade a estrada
deserta, um homem vai para a América procurar
o seu país...O detetive, o viajante e o estrangeiro
são personagens de nosso tempo. Estranhos na
sua própria terra, estão sempre em busca de uma
identidade e um lugar. Convertendo tudo aquilo
que procuram em figuras de ficção, anúncios
luminosos e lanchonetes decoradas. Imagerie de
J o r g e B a r c e l l o s | 71
beira de estrada e legendas criadas pelo cinema
[...] as histórias contadas aqui, estas buscas de um
nome e uma morada, correspondem a três modos
de constituição da subjetividade e do mundo na
cultura contemporânea. No primeiro, tudo se
passa no tempo e no escuro, em ambientes
pequenos e fechados, com pessoas que
desaparecem ou morrem. No segundo,
predomina o espaço aberto e infinito, intemporal,
onde os indivíduos vão para longe ou ficam para
trás. Depois, na terceira etapa, essas figuras e locais
já aparecem como uma mitologia a obcecar e
mobilizar aquele que hoje e um exilado em seu
país de origem”.
Observe que o argumento de Brissac é que existem figuras de
ficção utilizadas pelo cinema que ilustram o modo de construção
da subjetividade contemporânea. Mas o seu caminho para
demonstrar esse argumento é sutil, pois trata de usar imagens de
cinema para elaborar sua análise.
Todo o livro é a demonstração de seu argumento através de
imagens de cinema. Isso é notável e leva a terceira razão da
preferência pelo ensaio. Para Martinich, o ensaio é hoje a forma
padrão da filosofia profissional. Nele estão explícitos aquilo que
o autor deve fazer para ser lido. Entretanto há um público amplo
de destino que é desejável ser atingido pelo professor.
Eles escrevem suas experiências não para um público
universitário, mas para mostrar a rede de ensino, comunidade da
72 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
qual fazem parte e que inclui professores, autoridades, pais e
alunos, seus avanços no campo pedagógico. Ainda que desejem,
é claro, um amplo público, é este o público de partida de suas
obras.
Capa do livro Cenários em Ruínas, de Nelson Brissac Peixoto.
Fonte: Livraria A Traça (Divulgação).
É para eles que escrevem em primeiro lugar. Obras de
professores são importantes para a valorização do próprio
J o r g e B a r c e l l o s | 73
trabalho de ensino, o que muitas vezes não acontece nos sistemas
de educação.
Além disso, é uma forma de conquistar valorização no próprio
ambiente escolar, já que os alunos, ao verem suas experiências
transformadas em livro, ficam felizes. O ato de lançamento de
uma obra por uma escola é um feito notável, que chama a atenção
da comunidade escolar. Todos participam de seu lançamento. Se
professores, estão na sessão de autógrafos e são prestigiados por
pais e alunos. Se elemento do Congresso de Educação, serve para
defender propostas, alavancar a questão da autonomia do
professor. Mesmo individualmente, produzir um livro no sistema
público amplia as chances de o professor galgar níveis de
progressão funcional.
As características dos bons argumentos
Esta forma preferencial de público pede elementos básicos da
escrita que, se tem elementos da monografia à tese de
doutoramento, deles também se distanciam. A regra básica em
qualquer desses escritos é dominar a escrita com início, meio e
fim, o que, mesmo sendo uma estrutura básica, é algo que se
adquire lentamente. Alguns professores partem diretamente para
a redação de seus textos, ainda que outros, prefiram o processo
que vai do esboço inicial até a escritura final. De qualquer forma,
a forma básica para colocar a metodologia de pesquisa de um
profissional em ação inicia com a produção de um esquema como no plano de aula - a tomada de notas, revisão e pesquisa, o
74 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
que permite elaborar um ensaio com todas as etapas de pesquisa
básicas para trazer a público a experiência de um professor.
Martinich cita também dois critérios que devem predominar em
qualquer escrito: um ensaio é escrito sobre algo que é verdadeiro.
O primeiro é que se existem erros honestos de qualquer
pesquisador, por isso não é necessário ser profundo, mas ser
comprometido com a verdade. A segunda é o uso da autoridade.
A leitura prévia e inspiração em autores de sua formação dá a
justificativa necessária, é preciso explicitá-los. Não há nada errado
em utilizar conceitos utilizados por outro pesquisador em suas
pesquisas, desde que seus resultados se mostrem verdadeiros e
sejam claramente indicados. É a citação. Mas, como afirma
Martinich, o ônus da demonstração, da prova, é do professor. É
aqui que entra a necessidade do argumento.
Martinich inicia a descrição do argumento a partir do pensamento
de Aristóteles em sua Poética. Ali, o autor antigo diz que o enredo
dramático bem construído deve ser integro, isto é, “aquilo que
tem um começo, um meio e um fim” (Martinich, p.35).
Interessante é que o autor não vê problema em trazer das artes
um pressuposto da escrita ensaística, assim como já fizemos
aproximações da literatura de autores que usam este método,
como Brissac Peixoto. Seu ponto de partida da definição de
ensaio é que seu núcleo é o argumento. Um bom ensaio tem
começo, meio e fim: o começo introduz o argumento; o meio o
elabora e o fim o resume “mas o que é um argumento?”.
Martinich afirma que um sinônimo imperfeito de argumento é
raciocínio “um bom argumento é aquele que faz o que se supõe
que faça, mostra a uma pessoa uma maneira racional de partir de
premissas para chegar a uma conclusão verdadeira” (Martinich,
J o r g e B a r c e l l o s | 75
p.36). Ainda que o autor afirme que o argumento recebeu mais
atenção dos estudiosos de lógica, o uso da disciplina não é
fundamental, mas desejável na construção de um texto. O motivo
é que a própria noção de argumento é intuitiva “um bom
argumento é relativo a uma pessoa”, afirma o autor, já que diante
de mesmos argumentos, as pessoas muitas vezes divergem das
conclusões. E nesse sentido, ele amplia a noção de argumento
pois do passado ao presente, o que se considera bom argumento
mudou. Entretanto, ele aponta as características consideradas
válidas hoje para sua definição.
A primeira é que um argumento é uma sequência de proposições,
ou melhor, frases que tem valor de verdade. São afirmações ou
declarações que fazemos e nesse sentido, ainda que possamos
incluir em nosso texto perguntas para organizar a narrativa, estas
não são argumentos. Além disso, eles são apresentados em
sequências organizadas entre si, o que significa que são
logicamente entrelaçadas. A conclusão é a proposição provada.
O que Martinich faz é apresentar uma lógica da construção dos
parágrafos (falaremos deles adiante) que nos auxiliam a ver os
elementos das frases que desenvolvemos com integras, das
premissas da exposição até a conclusão “as premissas fornecem
uma forma racional para aceitação da conclusão “(Martinich,
p.39).
A segunda é que um argumento precisa ser sólido. Ele tem duas
características: a validade e a verdade. Mostramos a validade para
nos garantirmos de ter chegado à verdade. Por exemplo,
considero um recurso da validade a experiência se sou capaz de
relatar em detalhes o que aconteceu em uma sala de aula e aonde
um grupo de alunos chegou por um recurso de ensino, e aí estou
76 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
outorgando validade a uma experiência. A verdade de um
professor está no que acontece em sua sala de aula, na forma
como aprendem seus alunos os conteúdos de ensino. Os
argumentos que recuperam essa trajetória tendem a construir
relatos sólidos e verdadeiros da experiência de ensino. Validade
e verdade estão entrelaçadas.
A terceira é que um argumento verdadeiro se baseia em
premissas verdadeiras. A solidez de um relato está no processo
de explicação que chega ao fim com a produção de uma verdade
“Isso não quer dizer que essas noções não sejam problemáticas,
mas apenas que se tem de parar em algum ponto” (Martinich,
p.41). Isso significa também que o autor admite liberalidade em
suas definições de argumento, já que em algum momento, é
inevitável, deixamos termos indefinidos, já que supomos que
muitos significados sejam partilhados, etc. “Em todo
empreendimento, acaba-se por chegar a um ponto em que algo
tem de ser aceito sem definição ou discussão” (idem). Ora, isso
significa em nossa escrita cotidiana que fazer narrativas focadas na
definição clara dos argumentos é uma forma de orientar nossa
escrita. Cada professor já possui seu modo de escrever. Ele pode
incluir poemas, músicas, até chegar ao ponto que deseja
demonstrar. A lógica é exigente demais conosco, e nesse sentido,
termina por se tornar um obstáculo à escrita e isso contraria o
argumento que diz que também consideramos a poética.
Desejável é o equilíbrio.
O quarto é que nossos argumentos devem ser convincentes, isto
é, sólidos e reconhecidos enquanto tal por sua estrutura e
apresentação de conteúdo. Não basta as ideias possuírem certo
nível de complexidade, elas precisam de evidências para mostrar
J o r g e B a r c e l l o s | 77
que suas premissas são verdadeiras “a adequada formulação de
um argumento envolve sua estrutura: o argumento tem de ser
válido, e as premissas e a conclusão tem de ser apresentadas de
um modo que torne evidente sua validade” (Martinich, p.42).
O filósofo A.P. Martinich. Fonte: divulgação do autor.
As evidências são os registros que fazemos de nossa experiência
cotidiana de ensino que são organizadas de forma clara a
demonstrar nossas teses, nossas ideias do que é o ensinar. Nossos
exemplos devem estar conforme as ideias que fazemos deles, das
78 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
conclusões que nos levam a tomar. É o que faz convincente nosso
escrito. Assim quando um professor escreve sua experiência de
ensino, para ela ter validade, ser convincente, ela deve conter uma
estrutura consistente, conteúdo verdadeiro e ser reconhecido
como válido. Um texto com início meio e fim, com conteúdo
tirado da experiência que é organizada e interpretada em uma
linguagem compartilhada dá a base dos argumentos de um
ensaio.
Martinich explora outras variáveis do bom argumento. Ele inicia
no modus ponens, que traduzido significa o modo de afirmar que
ficou claro na exploração dos textos de Byung Chul-Han: sempre
afirmativos, definidores. Ele constitui, segundo Martinich “o
núcleo dos sistemas naturais de dedução da lógica das
proposições “(p.49). Outras formas do autor da escrita rigorosa
são a verificação como silogismo disjuntivo e do silogismo
hipotético, expressões características da lógica aplicado aos
argumentos do ensaio filosófico propriamente dito. Destes, o
autor segue a análise para abordar os argumentos convincentes,
aquele reconhecido pela comunidade e segue para a descrição da
consistência e contradição das proposições em diversos
exemplos. O ponto central destas discussões que não
aprofundamos aqui é que, segundo Martinich “é importante que
você saiba a força das proposições por vários motivos. Você tem
de saber qual a força necessária a dar a cada uma de suas
premissas, afim de provar suas teses. As premissas não devem ser
mais fortes do que você precisa que sejam, porque, quanto maior
a sua força, tanto maiores as evidências que vão requerer e,
tipicamente, tanto mais difíceis de provar. Mas as premissas
também não podem ser demasiado fracas, porque, se o forem,
J o r g e B a r c e l l o s | 79
não vão implicar sua conclusão: seu argumento será inválido”
(Martinich, p.73).
As premissas de um trabalho de um professor estão contidas em
seus objetivos de ensino. Se ele é capaz de explicitar seus objetivos
com clareza, isto é, o quadro a partir do qual realiza o processo
de ensino em sala de aula, através do diário de campo ele pode
recolher evidências de que está no caminho da construção de seus
objetivos de ensino. Premissas e pressupostos são relacionados,
mas tem distinções, já que pressupostos tem a ver mais com a
visão de mundo do professor, enquanto que premissas, com seu
trabalho propriamente dito.
Um pressuposto de ensino é que a transformação do mundo se
faz pela educação. Ele não está escrito lá, mas transparece nas
“entrelinhas” do que diz o professor. É diferente de um
pressuposto que diz da necessidade de adequação do indivíduo
na sociedade, presente no currículo oculto de algumas escolas
particulares.
Na visão que defendemos, o professor demonstra sua tese com
argumentos que descrevem como foi a aula, como os alunos
reagiram, como ele interviu, como solucionou conflitos, como
deu continuidade na aula seguinte aos tópicos de ensino até a sua
conclusão. Se uma aula tinha um objetivo e chegou a outro, ele
provavelmente não terá condições de sustentar suas posições
iniciais, pois o processo de ensino é um trabalho direcionado. É
o professor que o conduz.
É que entendo que a ideia de que a educação está nas mãos dos
alunos, que decidem em nome da liberdade de aprender o
processo e conteúdo de ensino, é uma falácia de uma educação
80 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
voltada para o mercado e que visa a ser consumida. Ao menos é
essa a minha interpretação do processo. Professores intervém. A
autonomia de alunos e professores é relativa a regras pactuadas e
objetivos definidos pelo sistema de ensino e que dependem de
um contexto de relações estabelecido e claro de antemão. Há um
programa de conteúdos de ensino a serem seguidos. Alunos
intervém e o modificam até certo ponto. Lamento se os
decepciono. Sou tradicional neste aspecto.
As indicações filosóficas de como escrever argumentos são uma
orientação importante para a escrita do ensaio. Você precisa
escrever seguindo as regras da lógica em todas as frases de seu
ensaio? É claro que não. Diz King em seu Sobre a escrita
(Objetiva, 2015) “Se seu trabalho for feito apenas de fragmentos
e orações flutuantes, a Polícia Gramatical não vai prender você.
A menos que tenha certeza de estar fazendo direito, é provável
que o [escritor] se saia melhor quando segue regras” (King, p.
107). É muito importante a segunda frase, que parece estar em
contradição com a primeira, mas não está.
É que de fato, você não precisa se policiar o tempo inteiro na
construção de seus argumentos, ainda que seja desejável. Você
precisa é seguir regras. O bom ensaio encontra um modo de
explicitá-las e segui-las. Talvez você só tenha consciência das
regras que seguiu depois que escreveu seu texto e voltou a ele
para determinar os limites sobre os quais escreveu. Neste
momento, você escreve um parágrafo a mais sobre o método e
revela as regras que foi construindo enquanto escrevia. Esse é o
segredo. Pois os argumentos criam consistência não apenas
quando reunidos, mas também quando enunciados e concluídos
da forma correta.
J o r g e B a r c e l l o s | 81
Depois das frases, os parágrafos
Por essa razão, para tornar os argumentos claros, King insiste
num ponto: é preciso aprender a escrever bons parágrafos.
Escrevemos frases consistentes em parágrafos. Ele sugere
escrever preferindo parágrafos curtos a longos. Ele se refere aos
blocos de espaço que tornam arejados o texto que escrevemos.
Aliás, não é preciso observar a escrita de Stephan King: já no
jornalismo cultural é comum observamos não apenas essa regra,
mas algo a mais. Um conjunto de parágrafos que tem um título.
Subtítulos, se pensarmos em termos de que o ensaio, é o título
que damos no interior do tema expresso no título geral. O que
essa estratégia faz? Organiza para o leitor o que estamos
apresentando-lhe - falarei do leitor num artigo próximo.
No meu modo de escrever, não costumo organizar publicações
on–line com subtítulos de artigos, mas aqui, onde com estes
textos pretendo construir um livro da escrita ensaística, as vezes o
faço. Então digamos que um artigo de dez páginas pode conter
cinco subtítulos ou seções para organizar a leitura. É geralmente
equivalente a ordem de desdobramento dos argumentos. Por isso
é razoavelmente fácil. Quando, ao contrário, construo um texto a
partir de artigos menores, que são os artigos de opinião, minha
tendência é preservar seus títulos agregando-os em uma sequência
temática. Isso permite que recupere artigos menores, mas não
menos importantes na minha reflexão. Qualquer que seja a
organização de seu texto, você sempre terá de partir de uma
unidade mínima, seja a frase ou parágrafo.
82 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
Vejamos este último. Diz King que “parágrafos são quase tão
importantes em aparência quanto em conteúdo; são mapas de
intenção” (p.115). Como se escrevem parágrafos? De diversas
maneiras. Uma das que gosto vem da inspiração de Han, com a
introdução de uma frase síntese seguida por outras que a
desdobram. É a mesma lógica de King para a literatura, só que
aplicada ao ensaio. Às vezes, na construção de um livro, é
necessário ser inspirador. Um parágrafo pode ser inteiro
dedicado a introdução do resumo de uma ideia. Veja o seguinte:
“Quando não posso caminhar, escalar ou navegar pelo
mundo, aprendi a trancá-lo do lado de fora. Foi um longo
aprendizado. Somente quando percebi que tenho uma
grande necessidade de silêncio eu pude começar a buscálo - e lá´, enterrado sob a cacofonia de barulhos do
trânsito e pensamentos, música e ruido de máquinas,
iPhones e removedores de neve, ele estava a minha
espera. O silêncio”.
Este é o início de Silêncio: na era do ruído de Erling Kagge
(Objetiva,2017). A obra mistura crônica e ensaio e nesse limite
dos estilos seu autor escreve frases leves e simples com
habilidade. King diz que lecionou escrita na universidade do
Maine para uma turma de atletas e líderes de torcida. Ele não
queria ceder ao simplismo de propor redação “se Jesus fosse meu
colega de time”. Ele preferia algo que não fugisse do tema, que
permitisse “a estrutura frase-síntese-seguida-de-frases-descritivase-complementares” que exige que o escritor organize seu
J o r g e B a r c e l l o s | 83
pensamento. “Escrita é pensamento refinado” diz King, aí o
parágrafo deve ser estruturado e quando mais se escreve ensaio,
mas rápido o autor vê seus parágrafos se formando por conta
própria – aqui uma apropriação à minha moda da interpretação
da escrita do ensaio o que King diz para o fato literário.
Ao final, escrever um ensaio é a arte de escrever bons
argumentos. Você não deve pensar pouco sobre o que escreve,
mas também não deve ser um lógico formalista. Por isso a solução
é deixar a natureza da sua escrita seguir seu curso e obrigar-se a
voltar ao seu texto para corrigir. Se você ler o seu texto em voz
alta para reescrever os detalhes, logo você vai perceber o seu
modo de construir parágrafos fluentes, com ritmo de história e
com sonoridade. Você não pode fugir da estrutura formal de um
ensaio começo-meio-fim, mas você pode fazer parágrafos
interessantes se você der abertura à poesia que existe dentro de
você, que emerge quando você dá aula. Se no meio do caminho,
você escreveu uma frase problemática, volte a ela, com certeza
você pode fazer uma melhor. E mesmo que não seja a frase
perfeita, ao final, você sabe que não é Shakespeare, está claro,
então tudo bem. Eu mesmo reviso e termino meus textos com
um ou outro erro. São os MEUS erros, o que, de certa forma, me
faz humano. Você não precisa seguir receita alguma de
parágrafos de dez linhas, mas você é livre para usar frases isoladas
para enfatizar o fim de um texto. Como na literatura, o objetivo
do ensaio “não é a correção gramatical, mas fazer o leitor se sentir
à vontade e, depois, contar uma história” (King, p. 118).
Entendo que a visão de King de literatura se aplica perfeitamente
ao ensaio. Você muito provavelmente não terá diálogos a
reconstruir, a não ser que os tenha fixado na memória porque o
84 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
impressionaram ou os tenha anotado em um diário. Mas você,
sem diálogos, tem de estabelecer ritmos “Você precisa aprender
a usá-lo, se quiser escrever bem, aprender o que isso significa em
termos de prática. Você precisa pegar o ritmo” (King, p.119).
Depois que você tem uma ideia do que é argumentar em um
texto, adquiriu um ritmo de escrita, é hora de passar a sua
estrutura propriamente dita, tema de nosso próximo artigo.
4
Como estruturar um ensaio
J o r g e B a r c e l l o s | 87
De novo, o problema dos pressupostos
Depois que passamos do estágio de que sabemos os argumentos
que queremos defender em nosso ensaio, se segue outro, o da
sua estruturação propriamente dito. Escrevo com os olhos
voltados ao mesmo tempo para o que quero escrever e a literatura
que tenho a disposição. Eu não diria que sou o mesmo menino
que na infância começou a escrever inspirado por uma menina
na sala de aula; mas eu diria que agora dei um passo a mais, sou
capaz de dialogar com aquilo que leio e anotar minhas
conclusões. Nesse sentido, deixei de ser criança para ser um
adolescente na mesa do bar enquanto escrevo.
Como muitos jovens de minha geração, a adolescência foi
marcada pela passagem a vida adulta no meio do grupo. Mas eu
não era desses de ir para a bebedeira. Eu ia com meus amigos
para o antigo bar do Beto, que não existe mais, na esquina das
Ruas Venâncio Aires e Vieira de Castro. Comprávamos o jornal
Folha de São Paulo, que no fim de semana era bem grande e
pronto, tínhamos assunto para toda uma noitada. Não que
fôssemos cdfs, mas apenas, ainda sem namoradas, éramos
curiosos e ocupávamos o tempo livre descobrindo o mundo
através das páginas dos jornais e de certa forma, dialogávamos
com eles.
Esse hábito ainda me caracteriza. Eu realmente gosto e vejo como
importante que enquanto estamos escrevendo, tenhamos um
interlocutor. É que a metodologia científica diz exatamente isso,
de que devemos situar o objeto que escrevemos no que se chama
“estado da arte” de um determinado campo de conhecimento.
88 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
Na universidade isso significa a revisão de literatura, o que sempre
termina por se tornar outra das tarefas impossíveis de se fazer:
afinal, quem pode e tem tempo de fazer uma revisão de literatura
completa? Ler tudo sobre um campo de conhecimento? Essa
tarefa é impossível não apenas porque se produz demais sobre
qualquer tema que se escolha, como também que, se incluirmos
a literatura internacional, pouco tempo ou espaço vai sobrar para
escrever o que você realmente quer escrever.
Reconheça seus limites
Minha opção de diálogo com um autor e uma obra é, portanto, o
reconhecimento de minhas limitações. Eu poderia aproveitar as
inúmeras revisões de literatura sobre um tema, disponíveis em
artigos de períodos como os catalogados na plataforma Scielo,
mas prefiro este caminho porque ele me lembra um pouco o dos
antigos diálogos filosóficos da antiguidade, onde um discípulo
pergunta a um mestre as grandes questões. Novamente, essa
noção traz em si o conceito de caminhada que, como já referimos,
é algo que se faz com alguém em uma direção. Falarei dos autores
e obras que guiam minha trajetória nos próximos textos. Importa
agora indicar que faço ensaios sempre dialogando com outros
autores que li e gostei, que conheço, como estivesse com o autor
naquela mesa de bar.
Quando reviso as obras sobre a arte de escrever de minha
biblioteca, o faço para ver o quanto minha história de escrita se
aproxima ou se distancia de outros autores. Além dos autores que
já mencionei, gosto do ponto de partida de Howard Becker em
J o r g e B a r c e l l o s | 89
sua obra Truques da Escrita (Zahar, 2015) porque compartilho
com ele a ideia de que os problemas dos escritores com a escrita
não derivam dos problemas ou deficiências que os autores
possuem, mas que as “dificuldades que você enfrenta para
escrever não são culpa sua nem resultado de uma inabilidade
pessoal. A organização social na qual você escreve está criando
essas dificuldades para você” (Becker, p. 8).
Assim, os problemas que temos da escrita de professores são
problemas da organização social em que vivem, a escola e de sua
formação. Isso é paradoxal, pois acreditamos que, ao contrário,
estamos justamente naquela instituição que mais condições nos
daria de escrever. E acreditamos que, se passamos por uma
universidade, esses problemas foram sanados. Aqui, o problema
é justamente o tipo de escrita e texto a que nos acostumamos em
seu interior: relatórios, pareceres, provas, planos de ensino, tudo
isso é um ponto de apoio para o ensaio, mas não é um ensaio. Se
não somos o professor de filosofia ou de português da escola, é
provável que a palavra escrita não seja tão familiar assim. Minha
experiência de professor de escolas de ciclo básico foi diversa:
tive a inspiração de meus professores de cursinho, Voltaire
Schilling e Luiz Roberto Lopes, de jamais entrar em sala de aula
sem um texto escrito, o que me acompanhou durante toda minha
experiência profissional. Eu os via entrar naquelas salas de aula
imensas dos cursos Unificado e Mauá localizados nas Ruas André
da Rocha e Senhor dos Passos no longínquo ano de 1982 sempre
com um texto escrito. Não era resumo, não era a apostila, não era
um papel com anotações. Eu via que era um artigo pronto.
Voltaire entrava com fascículos; Lopes, com folhas de papel A4.
Essa imagem nunca me saiu da cabeça pois eu via depois os seus
livros e associei de imediato como eram produzidos. Quando
90 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
comecei no magistério, eu entrava em sala de aula com os textos
prontos, inclusive quando lecionei em universidade, e não o
tradicional “esquema de aula” ou plano de ensino a partir do qual
os conteúdos eram “despejados” pelo professor. Na universidade
vi isso ocorrer apenas uma vez, nas aulas da professora Sandra
Pesavento e eu sabia que isso decorria do fato de que ela também
estava escrevendo seus livros.
Por sorte então eu antecipei o problema de escrever escrevendo
muito mais do que o comum dos professores de minha geração.
Como Becker, eu também não sabia que existia um campo
chamado “teoria da composição” que elabora modelos e
conselhos para sanar os defeitos da redação cientifica e tudo o
que já foi indicado nos meus textos anteriores. Como Becker eu
também fui inventando ao longo de tempo meus próprios
métodos de trabalho debatendo ao mesmo tempo com a
bibliografia que tinha disponível. Meu processo de escrever foi
feito buscando uma distância da engrenagem acadêmica, aquela
que nos faz fazer trabalhos curtos que não faríamos por iniciativa
própria com pouco tempo e que as vezes, nem sequer nos
interessam. É aqui que o meio determina uma distância do aluno
e sua produção e isso inclusive na pós-graduação, onde a
conquista de uma vaga está mais na adesão a uma linha de
pesquisa e as ideias de um orientador do que propriamente no
desenvolvimento de suas próprias ideias. O próprio Becker
afirma que sua obra é apenas a sua trajetória, e que “não tenho
como concorrer com as obras clássicas de composição, cujos
autores conhecem a gramática, a sintaxe e os demais tópicos
clássicos melhor que jamais conhecerei” (Becker, p. 17)
J o r g e B a r c e l l o s | 91
A escrita de professores implica em reconhecer as situações
sociais em que vivem. As indicações para a redação de seus textos
não podem ser, portanto, as mesmas para textos acadêmicos,
ainda que desejável, pois você não precisa sobreviver a uma tese
de doutorado, basta que sobreviva aos limites dados por sua
organização, a escola.
David duChemin. Divulgação das redes
92 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
Nesse caminho, como eles, minha prosa não é exemplar; sei que
meu texto possui também problemas, erros as vezes passam, mas
acredito que minha trajetória de escolha de soluções possa ajudar
outros professores. Por isso apoio este ensaio a partir de duas
obras básicas: a primeira, A Alma da fotografia, de David
duChemin (Alta Books) e a segunda, continuo na exploração de
O ensaio filosófico, utilizado no capítulo anterior.
A alma do ensaio
Quando afirmei que a escrita do ensaio deve ser vista como obra
de arte não estava brincando. Por isso busquei referências do
campo artístico e não da metodologia científica linhas de
pensamento que organizassem o modo como construí minhas
obras. A obra A alma da fotografia – o fotógrafo como artista
criador, de David duChemin me ofereceu insights para organizar
minha experiência. Humanista e fotógrafo do mundo, duChemin
é autor de diversos livros sobre a arte e ofício da fotografia. Ainda
que eu mesmo não seja fotógrafo profissional, com o advento dos
celulares, como todo mundo, o aparelho se tornou presente em
minha vida. Sabemos que, desde que Walter Benjamim em seus
estudos, especialmente Passagens, tratou da relação da fotografia
com a realidade, “a fotografia é um meio de apropriação do real
sem retoques”, na expressão de Márcio Seligmann-Silva.
O que fazemos com o ensaio não é exatamente isso, nos
apropriarmos da realidade do ensino de professores e, sem
retoques, expressamos nossa realidade? duChemin caracteriza as
bases da construção da fotografia como eu vejo a caracterização
J o r g e B a r c e l l o s | 93
de um ensaio, ainda que isso possa alarmar os cientistas de
plantão. Professores ministram aulas. Reúnem planos de ensino,
realizam oficinas, fazem avaliações. Você os olha e com a escrita
faz imagens de sua prática, quase como se fosse fotografias.
Alguns ministram a mesma aula do mesmo jeito durante décadas
como um professor que tive no curso de história cujas folhas de
papel de almaço que escreveu o conteúdo já estavam amareladas
pelo tempo. Eu mesmo anotei todas as minhas aulas em textos:
algumas eram boas, outras eram apenas medianas. Dependendo
da disciplina que ministrasse, minhas aulas podiam naquele ano
gerar um livro. Isso é impressionante se pensarmos na dezena de
aulas professores ministram em uma escola em relação a sua
possibilidade de publicação. Isso nos diz que temos uma imensa
vontade de dar aulas, mas uma barreira para transformar nossas
experiências em texto escrito.
Isso aconteceu muitas vezes porque o professor se sente
insatisfeito com o resultado de uma aula. Então por que então
escrever sobre ela? Às vezes é o professor que está desmotivado,
as vezes é o aluno. O problema da ausência do desejo de escrever
é a mesma da vontade de fotografar, de que fala duChemin:”
deixam a desejar porque lhes falta alma” (duChemin, p. 8). Sua
resposta ao ruído do mundo que afeta sua arte deveria ser a
mesma para os professores: somente com mais fotografias, ou
mais escritos, poderemos superar a banalidade de nossa vida
escolar e obter a alma de nosso processo de ensino “somos nós
que acrescentamos a sensibilidade, a perspectiva e a poesia” diz
duChemin.
Tão fascinante como é a câmera fotográfica para o autor deveriam
ser as aulas para o professor. Ver emergir a participação do aluno
94 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
a partir de uma folha de plano de ensino que o professor faz é
um pequeno milagre. Mais que registar os procedimentos de um
professor em sala de aula, um ensaio deve, como uma imagem,
revelar algo profundo do sistema de ensino “É muito mais difícil
revelar nossa essência, assumir riscos, criar algo que transmita
nossas impressões e nossa humanidade” (duChemin, p. 9).
Temos uma imensa capacidade de criar histórias em sala de aula
para despertar a imaginação do aluno, mas temos imensa
dificuldade de registar essas experiências. O fotógrafo trabalha
com o tempo e a luz como matéria prima. Qual a matéria prima
do professor? As experiências de sala de aula, os instantes em que
o aluno interage, sorri e dá retornos ao trabalho do professor, os
momentos de alegria e contentamento na troca de conhecimentos
que entre si fazem. Assim como a fotografia compartilha o
instante de um olhar feliz do fotógrafo, o ensaio compartilha os
instantes felizes no universo de ensino.
Escrever bem não faz milagres para professores como podem
sugerir os manuais da boa escrita. “Precisamos ter o que dizer”,
diz duChemin. O ensaio nos ajuda a falar como a fotografia faz
o autor ver. É ele que diz “olha só o que aconteceu em minha
aula” e por isso o ensaio não deixa de ser a fotografia de
determinados momentos de nossa prática. Existe nosso
conhecimento técnico, mas existe nosso talento, como nos
colocamos em sala de aula, os momentos que escolhemos e
excluímos. Nos termos de duChemin, nossos melhores relatos
estarão nos momentos em que enxergamos algo que o restante
de nossos colegas professores não percebeu. Só podemos
escrever sobre nossas experiências se estivermos presentes.
J o r g e B a r c e l l o s | 95
Para escrever é preciso inspiração. duChemin tem seus mestres
fotógrafos como Sebastião Salgado e diz que poderia ter feito as
fotos que fizeram, mas que não as fez “porque não estava lá”. O
professor está. Ele não precisa fazer a descrição de suas
experiências de ensino como os grandes pedagogos fizeram, mas
ele pode fazer a melhor descrição que pode do que vê. Isso serve
para fortalecer o objeto único que o ensaio possibilita registrar e
que é a nossa visão. Como fotógrafos, tudo o que professor quer
fazer são “aulas melhores”, como aqueles querem “fotos
melhores”. É que nossas aulas nos movem, são nossa forma de
arte, nos fazem pensar.
O lugar da técnica na escrita do ensaio
A escrita é algo importante para o professor. Nós, professores, se
não escrevemos ensaios diariamente, ao menos escrevemos algo
diariamente na lousa da sala de aula. Sempre gostei do quadronegro do professor. Minhas primeiras aulas no curso Mauá eram
escritas a partir dos em textos que escrevia para preparar, o que
já não é muito comum, que passava de forma esquemática no
quadro negro, como a maioria dos professores fazem. É uma
parte do processo de ensino que é fascinante: você expõe uma
ideia para a turma, e em seguida, a anota no quadro negro. A
disciplina de história facilita muito isto pois há personagens, datas,
fatos que precisam serem anotados pelo aluno do quadro negro
para fixação do conteúdo.
Sobre a técnica, duCemin diz “pode-se dizer que equipamentos
são bons, mas a concepção é melhor” (p.1). Para o professor, a
96 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
técnica é a didática como a máquina fotográfica é para o fotógrafo.
Ela tem um modo de funcionamento. Uma aula não é bem feita
se não tem didática de ensino. Mas o ensino não se resume ao
bom uso das regras da didática, do uso do quadro negro, mas ao
que você seleciona e como ensina de seu campo de ensino para
o aluno. A aula “é uma jornada estética alcançada por meios
técnicos”, diz duCemin, o que significa dizer que não é o que você
escreve no quadro negro que instiga os alunos: é o que você fala.
É a forma como você narra os conteúdos de sua disciplina que
irá marcar os alunos, que os fará lembrar de sua aula no futuro.
Foi assim comigo. Eu não lembro as datas ditas por Voltaire
Schilling em suas palestras no curso Unificado, que ia sempre que
podia quando fazia o secundário. Eu lembro como ele dava aula,
a experiência de ensino que ele proporcionava. Foi o modo como
pensava sua disciplina que me impressionava. Esse efeito era
produto de uma forma especial de organizar o discurso que era
dele: havia um fraseado entremeado de humor na explicação das
causas dos acontecimentos; os fatos eram ricamente ilustrados
com exemplos e comparações, eram os insights de Schilling, que
o tornavam seu conteúdo de ensino fascinante. Mas a questão é:
como transparecer essa arte da fala na arte da escrita?
A minha saída é procurar transmitir no escrito aquilo que me
fascina em minha disciplina. Expor tudo o que me encanta sobre
a forma de palavras, dominar os conteúdos e expressa-los, como
faz a obra de duCemin da fotografia. Aqui, a câmera do fotógrafo
é substituída pela biblioteca do professor, sobre a qual dedicarei
adiante outro texto. Aula é pesquisa. Sem uma boa biblioteca, que
nos permita pesquisar, não temos como fazer uma boa aula e, por
isso, um bom ensaio. Com a internet, provavelmente a ausência
J o r g e B a r c e l l o s | 97
de uma biblioteca não seja um entrave grande, mas entendo que
ainda restringe o campo de investigação de um pesquisador. Os
livros mais recentes podem ser, em parte, adquiridos em cópia
digital, mas nem todos são. E o pdf não tem a mesma tessitura do
livro para fixar na mente do professor os conteúdos de ensino. E
sem eles, não tem como fazer um ensaio. Mas não é a biblioteca,
bem entendido, o limitador, é a possibilidade que ela dá a sua
base de formação para estabelecer um fluxo com os alunos. É o
que determina a criatividade do professor, a sua base da
exploração dos conteúdos pelos quais é responsável e que
produzem insights. O ensaio os anota.
Tanto o ensaio quanto a fotografia, no fundo, aparentam ares
semelhantes como técnica, pois abrem espaço para a poesia. Se
seu ensaio não consegue retratar a carga poética de sua
experiência de ensino, ele tem um sucesso parcial. Na minha
experiência, você leva a vida inteira para dominar os conteúdos
de ensino, não porque eles variem no tempo, o que fazem em
realidade pouco, mas porque a literatura sobre os temas de
ensino amplia-se dia a dia. A leitura dos autores que fazem
avançar minha disciplina realmente importa para me tornar um
professor melhor em sala de aula e escrever melhor. Mas seguir
as regras é tão importante tanto quanto saber distanciar-se delas.
Uma aula autêntica é o ponto de partida para um ensaio de valor.
O principal no ato de realizar um ensaio a partir de experiências
de ensino está na capacidade de registrar como nasceu a sua
curiosidade e a dos alunos por um tema, como você e os alunos
manipulam recursos de ensino produto de seu planejamento e
criam condições de aprendizado.
98 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
O ensaio como lugar de nossa perspectiva
Cada professor, quando decide pelo exercício do magistério de
sua disciplina, o faz produto de sua perspectiva. Sua intenção de
educar determina aquilo que você é. O que você deseja ensinar
com o taco de giz na mão. Você não sai da universidade com a
perspectiva de ensino definida para sua aula; você a descobre ao
longo de uma série de experiências. O ensaio possibilita anotalas, isto é, fazer o registro importante da sua caminhada forma a
produzir também um autoconhecimento. Temos produzido ao
longo de nossa carreira inúmeros planos de ensino, além de
reunir em cada aula conteúdos que pesquisamos e aprendemos
em nossa universidade de maneira singular. Em cada situação de
ensino colocamos algumas de nossas ideias em prática, mas
raramente anotamos e refletimos sobre as condições de nosso
ensino em relação a seus objetivos. Às vezes fazemos isso na
reunião de professores, mas raramente elas depois se
transformam na base de livros, o que seria outra ideia para as
equipes. O que acontece é que professores encontram sua
perspectiva de ensino lentamente e tenho certeza de que a escrita
é um passo importante desse processo.
A primeira vez que comecei a escrever sobre minha experiência
de ensino foi na própria universidade, nas disciplinas do currículo
de formação pedagógica. Eu já estava trilhando leituras paralelas
que entendia importantes para ensinar os alunos dos anos 90.
Junto com um grupo de amigos que partilhavam da mesma ideia,
chegamos a organizar uma mesa redonda sobre o tema
Interdisciplinaridade na História. À época, a disciplina de história
estava avançando no que era denominado de Nova História, com
J o r g e B a r c e l l o s | 99
novos objetos, problemas e métodos, como defendiam Pierre
Nova e outros historiadores.
Alain Finkielkraut. Reprodução wix.com.
No Brasil, com a hegemonia do pensamento de esquerda na
universidade, essas correntes eram recusadas, mas víamos um
horizonte importante para o ensino pois, como defendia Alain
Finkielkraut em A derrota do pensamento (Graal, 1988), nessa
época, “os professores eram modernos, e os alunos, pósmodernos”. Para nós a história tradicional, ainda que exigida pelo
vestibular, não era suficiente para encantar os alunos. Essa
experiência de reflexão foi anotada: escrevemos palestras que
ministramos em evento na PUC de Minas Gerais. Foi a primeira
vez que fiz ensaios a partir de minha pequena experiência de
ensino: o estágio curricular.
100 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
Depois, além de registrar minhas aulas propriamente ditas em
texto que depois viraram meus livros, eu mesmo refletia sobre os
recursos de ensino que utilizava: o uso de histórias em
quadrinhos, do cinema, da literatura, tudo isso virou objeto de
análise em obras que publiquei. Quer dizer, saber os conteúdos
de ensino é tão importante como saber como queremos ministralos. Eu me lembro de ensinar o tópico de Renascimento para
alunos do ensino médio do Colégio Mauá, uma das primeiras
escolas que fui professor, aprofundando os conteúdos relativos à
arte, o que me obrigava a resumir os temas políticos e econômicos
pois assim eu via que a aula ficava mais interessante para os
alunos. Eu havia, é claro, imitado meus mestres: Luiz Roberto
Lopes sempre ministrava aulas com o apoio de um projetor de
slides para mostrar as obras artistas renascentistas ou trazia um
toca-discos onde nos mostrava músicas desse período da coleção
da Discoteca Pública Natho Hehn, da qual foi diretor por muitos
anos. Diz duCemin “O processo criativo é tão interativo, tão
dependente de uma cadeia de ideias e circunstâncias, que não
estou certo se poderia ser diferente” (p. 12).
O ensaio é o instrumento que torna pública a perspectiva de
ensino de um professor. Sua escrita deve, por isso, expor o
caminho da sua conscientização, seu entendimento do processo
de ensino e seu papel no mundo. Não é a maneira que ensinamos
“mas a maneira como fazemos. Não é o que enxergamos, mas o
que percebemos e pensamos sobre o que percebemos” (p.13).
Temos algo a dizer para nossos colegas professores, seja da
mesma disciplina ou outras com nossas experiências, mesmo que
seja “nossa, que beleza!” (idem). O ensaio que um professor
realiza sobre seu processo de ensino aponta a direção de nossos
objetivos, reflete um momento da experiência do professor.
J o r g e B a r c e l l o s | 101
“Qual é a melhor exposição de um tema”? pergunta duCemin.
Em sua perspectiva, é justamente a pergunta que o ensaio quer
responder. Ela só pode ser respondida quando o professor
organiza sua visão com os planos de ensino, aula e anotações em
suas mãos. Ele escreve sobre sua experiência “o que pensamos,
sentimos, tentamos dizer e como o tentamos”.
Escrever o ensaio sobre nossa experiência de ensino significa
organizar um texto no qual, do planejamento da aula a sua
execução, oferecemos ao leitor a descrição e análise de nosso
processo de trabalho de forma organizada. Ele precisa registrar a
cadeia de acontecimentos que levam a nossa perspectiva a se
transformar em uma situação de ensino. Não é apenas nossos
dramas para produzir uma aula, mas a maneira como a
produzimos “Não é o que enxergamos, mas o que percebemos e
pensamos sobre o que percebemos” (p. 15) que faz o ensaio ser
o espelho de nossa experiência. Por isso para podermos escrever
um ensaio precisamos da observação, da atenção. Somente nossa
perspectiva pode assumir a responsabilidade sobre a exposição
de um tema que é a de que somos professores de uma disciplina:
o ensaio é apenas a forma como a registramos como a fotografia
da realidade é para um profissional. É a nossa experiência que
impõe um ritmo de escrita ao ensaio “e o que pensamos,
sentimos, tentamos dizer e como o tentamos, entre as quase
infinitas possibilidades, está em constante mudança, se não todo
o dia, gradualmente à medida que evoluímos como pessoas e
artistas” (idem).
A escrita auxilia o professor a não tornar sua prática mecânica. Se
ele considera o exercício do magistério uma arte, se tem
consciência de sua necessidade de renovação, ele é capaz de fazer
102 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
um ensaio que se comunique com outros profissionais. Ele
precisa do ensaio para ver quem ele é, para mostrar que é capaz
de dar alma a suas aulas. Em A alma da fotografia, duChemin
defende a manutenção de um diário para o fotógrafo evoluir na
sua arte, o que já sugerimos em nosso artigo anterior. Para ele,
em primeiro lugar, um diário fornece elementos para o próprio
autor referir-se ao seu processo. É o lugar onde “analiso meus
pensamentos, minhas preocupações, alegrias e curiosidades (p.
14). Para ele, que é fotógrafo, tal processo o faz pensar sobre o
pensar. Mas é em um ponto que ele deixa em um lugar
secundário que vejo como fundamental para o professor: o ajuda
a ser paciente.
Paul Virilio é o filosofo que afirmou pela primeira vez a
importância do ato de parar. Ele é um analista da velocidade no
mundo contemporâneo e fundou o que ele chama de
“dromologia”: dromos=corrida. É uma metáfora para
compreender o mundo em que vivemos e que exige sempre mais
produtividade de cada um, inclusive do professor. Aqui a imagem
é a do professor que corre de uma aula para outra, de uma escola
para outra, sem tempo para pensar sobre seus processos de
trabalho. O diário, ao contrário, o obriga a parar, a refletir. Ele
precisa não ser veloz, mas paciente. A paciência é o caminho para
o autoconhecimento e o ensaio seu instrumento. Ele coloca uma
perspectiva em seu estado de evolução permanente. Ele precisa
do diário para se perguntar sempre “o que estou tentando
ensinar? Para quê? “
Todo professor tem a necessidade de que seu processo de ensino
tenha um significado maior. Que o processo de aprendizado seja
fascinante para seus alunos como o foi para o professor. Existem
J o r g e B a r c e l l o s | 103
milhares de professores na engrenagem maquínica da educação,
mas poucos os que fazem uma reflexão mais profunda sobre o
que fazem.
O ensaio como lugar de uso de uma linguagem.
Muitos professores acreditam que seu processo de ensino não
daria muitas páginas escritas. Eles de fato sentem que seus planos
de ensino não têm muito a dizer a outros professores. Afinal,
todos que ministram uma determinada disciplina seguem os
mesmos conteúdos de ensino. Mas compartilhar planos e
conteúdo de ensino não significa que os professores deem suas
aulas da mesma maneira. Dois professores da mesma disciplina
podem acreditar que momentos diferentes do ensino de seus
conteúdos são razão de seu êxito profissional. Nunca achei
interessante ministrar aulas sobre pré-história e antiguidade, ao
contrário de colegas que se especializaram na área e se tornaram,
inclusive, professores universitários. Eu preferia mais o campo da
teoria da história e da história contemporânea e confesso que
quando descobrir a existência da chamada história imediata, cai
boquiaberto. Enfim algo que poderia falar diretamente aos
alunos, pensei.
Atribuímos lugares específicos aos conteúdos de ensino para nós
mesmos. Gostamos mais de uns do que de outros. Nossas
disciplinas utilizam linguagem e conceitos próprios e escrevo este
texto para os professores de diferentes disciplinas – e, portanto,
com diferentes linguagens – que tem interesse em escrever sobre
suas experiências. Quando esse professor escreve um ensaio
104 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
sobre elas, ele tem mais possibilidade de fazer com que seu
processo se aperfeiçoe, conseguir reconhecimento e empoderarse em seu sistema de ensino. O ensaio é o fio condutor da
amostragem de nossas escolas: como estabeleço a relação entre
os conteúdos de ensino entre si e o universo de meus alunos?
Essa primeira reflexão introduz outra: a de como adapto a
linguagem universitária a uma linguagem coloquial sem perder
conteúdo de ensino. Se introduzo na aula exemplos ou objetos
concretos, como isso afeta a transmissão de conhecimento que
busco atingir?
O ensaio mostra como tomamos decisões no planejamento de
ensino e na prática. O ensaio é este instrumento que permite ao
leitor observar o mundo da educação, compartilhar com você o
olhar, dividir as inúmeras possibilidades de ensino, inclusive
entre disciplinas diferentes. Dos elementos que selecionamos, o
ensaio revela como os selecionamos, os elementos da
metodologia de ensino, as opções e as razões da escolha. O
ensaio é um instrumento para compartilhar segredos. Meu
segredo de ensino está em possuir duas coisas: um olhar voltado
para os problemas do presente e uma boa biblioteca. Sem o
primeiro, eu não poderia escolher a agenda que toca as pessoas;
sem o segundo, eu não poderia aprofundar meus insights e
encaixa-los na literatura da disciplina. É que só podemos ter
efetividade no ensino se o que temos a dizer afeta nossos alunos
de alguma forma; além disso, se mostrarmos para o nosso aluno
que temos algo novo a dizer, o que somente o estudo possibilita.
Por isso leio autores do campo das humanidades usando-os como
apoio teórico de minhas análises. Eu deixo que suas análises
influenciem o que vejo e sei que faço isso apenas com uma
J o r g e B a r c e l l o s | 105
parcela do acervo disponível. Ninguém chega ao fim do domínio
dos conteúdos e pesquisas de sua área, mas provavelmente, se
tiver método, poderá contar boas histórias em seus ensaios. Ele
serve para registrar o que vivemos em sala de aula. Você não
precisa entender todos os elementos de seu próprio processo de
ensino, mas com certeza, um ensaio é um bom ponto de partida
para isso. Ele vai poder colocar explicações para você em espaços
que você ainda não tinha parado para refletir.
Ensaio como lugar de interpretação
Já falamos que escrever sobre a experiência é um ato
revolucionário. Num mundo massificado, expressar algo e ter
uma opinião é um valor. Mais ainda é exterioriza-lo no universo
da cultura do cancelamento. É que escrever é mais fácil do que
aceitar críticas. A escrita é narcisista por isso é afetada por elas.
Há um enorme risco que assumimos quando expressamos uma
opinião escrita, pois o espaço é muito diferente da sala de aula
“O que é dito na sala de aula fica na sala de aula”, foi a primeira
regra do currículo oculto que aprendi nas escolas onde exerci
magistério. Isso era uma estratégia para ampliar o vínculo com os
alunos, criar uma rede de solidariedade – e se isto é possível entre
aluno e professor nos tempos atuais – que dava base a
solidariedade de classe. Lembro-me do estranhamento de ver
que na sala do professor falava-se de tudo, mas raramente de
como eram nossas aulas. E quando falávamos, eu achava esquisito
que nenhum professor era inseguro, nenhum tinha dúvidas. Era
parte daquele cenário que cada professor era o senhor em sua
106 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
disciplina e, portanto, não havia espaço para questionamentos.
Eu anotei essa experiência em meu estudo de mestrado. Nas
escolas que visitei, os professores faziam da mesma forma.
Quando damos uma aula, fazemos escolhas. É isso o que nos
torna professores, e também, de certa forma, como diz duCemin,
artistas. São nossas opções por ênfases de conteúdos, métodos de
ensino, problemas de investigação que fazem com que uma aula
seja o que desejamos que seja. Quando escrevemos sobre essas
experiências sob a forma de um ensaio, o que fazermos é trazer
a público o que fazemos, conversamos através do texto escrito
com outros professores, coordenadores, comunidade escolar ou
qualquer ator social que venha a ler o que escrevemos. Por essa
razão, é natural que muitos professores ofereçam resistência a
escrever. Tememos um julgamento. Mas não há o que temer
“podemos fazer arte, e chamar nosso trabalho de arte, sem dizer
que é brilhante, ou mesmo bom. Podemos comunicar coisas
através dessa arte sem dizer algo especialmente intelectualizado
ou revolucionário. Podemos ser desastrados com nossas
ferramentas e clichês em nossa expressão, mas pode ser arte do
mesmo jeito. Pode dizer algo da mesma forma” (p. 34). O autor
quer dizer que não precisamos fazer uma aula típica dos grandes
mestres para escrever sobre ela. Não funciona assim, porque
simplesmente damos aulas: perfeitas ou imperfeitas, melhor um
dia do que no outro. Escrevemos sobre suas diferenças, sobre se
atingiram seus objetivos ou não, independentemente de sua
qualidade pedagógica. Escrevemos porque queremos aprender
com a experiência. Pode ser a pior aula de nossa vida, mas o fato
de nos dispomos a interpretá-la, de assumir uma posição
descritivo-analítica, faz toda a diferença “Nosso trabalho nunca irá
se aprimorar se sentarmos e esperarmos. Nem jamais se tornará
J o r g e B a r c e l l o s | 107
mais intenso enquanto continuarmos afirmando que não temos
nada a manifestar” (idem). O ensaio é um ato interpretativo, ele
não é a prova em um julgamento moral da qualidade de nossa
aula. Se não tivemos sucesso em produzir nossa melhor aula,
talvez tenhamos sucesso em interpretar as razões de seu fracasso.
O que o ensaio faz é apresentar da melhor maneira o que
fizemos, as razões e os percalços que tivemos. Nossa liberdade é
muito maior no texto escrito do que na cena de aula. Na escritura,
interpretamos com os instrumentos que estão ao nosso alcance.
Na sala de aula não somos donos do processo, interagimos com
os alunos e na escola, com a direção e o corpo de ensino.
Podemos refletir sobre uma aula do passado que foi um fracasso
para que a aula seguinte seja melhor; podemos refletir sobre uma
aula de sucesso e isso não acrescentar nada a nossa prática, mas
poderá auxiliar a prática de outro professor. Escolhemos as aulas,
escolhemos a escrita.
A conclusão é que publicar livros a partir de ensaios produzidos
por coletivos de professores são ambíguos. Eles são coletivos,
pois representam a produção de uma escola num determinado
contexto. Os professores vivem sua escola no contexto da
democratização das relações de ensino ou não, da cultura escolar
participativa ou não. Mas eles escrevem individualmente cada
texto. Quando o professor escreve, é da sua experiência
disciplinar que ele fala e que é variável. A sua volta há outros
professores que compartilham a experiência de ensino na mesma
escola, mas são diferentes. É aí que se faz a diferença. Podemos
fazer parte de nosso trabalho com anotações da repercussão entre
pares de nossas aulas, anotamos suas impressões, vemos suas
reações e as registramos em um diário. O desafio de levar nossa
experiência de ensino anotada para outros públicos é que exige
108 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
que se saia, em algum momento, da nossa própria visão e se vá
adiante para captar, ao menos fragmentariamente, como é a visão
daqueles com quem interagimos. Se falamos das relações de
professores com servidores, alunos, merendeiras, faxineiros, pais,
de alguma forma deveremos ser capazes de captar sua visão sobre
nosso trabalho. A estrutura do ensaio é exatamente a organização
dessa exposição de visões, que inicia na do próprio professor, mas
vai mais além nas análises sobre essas outras visões de que somos
capazes anotar e de fazer. Seja a partir do que você pode anotar
em seu diário após um encontro, das anotações posteriores que
fez a partir da recordação do que um interlocutor falou, mesmo
que isso seja aproximado e fragmentado, é melhor do que não
tentar. O ensaio é estruturado para mostrar nossa interpretação
organizada. Você descreve nele situações de ensino visando a um
propósito, você relata como se estivesse produzindo uma
fotografia, você une suas observações, visões de mundo, emoções
num todo coerente e lógico que explica o movimento do ensino.
Esse caminho situa você entre descrever o processo de ensino e
apreender a alma dele.
5
Bases metodológicas
para o ensaio
J o r g e B a r c e l l o s | 111
A necessidade de um esquema
Os manuais de redação apontam inúmeros itens a serem
observados na estruturação de um ensaio. Já apontamos para o
fato de que eles, regra geral, giram em torno dos seguintes itens:
Título; Resumo; Introdução; Desenvolvimento/ argumentação e
Conclusão. Na introdução você apresenta as razões da escolha
do tema; o que será argumentado e a própria descrição da sua
estrutura; o desenvolvimento é o maior trabalho, já que é o corpo
do ensaio propriamente dito. É ali que você analisa seu tema, dá
exemplos ao leitor, e pode mencionar a bibliografia para explicar
e justificar suas conclusões. É onde emergem citações,
comentários. A conclusão é uma listagem de resultados
Este é um esquema tão geral que não é necessário mais
explicações. Mas a maioria dos ensaios que conheço,
definitivamente não segue este roteiro. O motivo é que é
muito...chato, é incapaz de possibilitar algo que a escrita deve
possuir, a poesia. Ele não estimula o leitor a participar do
processo. Ele é científico porque exclui o texto de toda a sua
capacidade literária. Os melhores ensaios que li tinham literatura:
mistério, suspense, inclusive na revelação de seu objeto e
fundamentação. De minha parte, para estruturar um ensaio,
valho-me de dois princípios essenciais: aprofundar o tema e
aceitar abrir mão. Eu parto do argumento de A.P. Martinich “há
bem menos gênios do que se pensa, e mesmo pessoas geniais em
redação reconhecem a necessidade de se preparar para escrever
e de reelaborar” (p.97). Esse argumento reforça a tese de que nós,
professores, não podemos no sentir menor se o ensaio que
pretendemos produzir não sai de uma só vez com alta qualidade.
112 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
Somos professores, não gênios. Por isso ele define que o melhor
método do ensaio aquele no qual a redação é feita por estágios.
A escrita é um processo e precisa ser respeitada. A estruturação
depende de que nosso processo de escrita seja respeitado. Ele
resultará num ensaio mais porque insistimos nele do que pelo
fato de seguirmos roteiros pré-estabelecidos.
Eu me recordo de meu próprio processo de escrita de minha
dissertação de Mestrado em Educação intitulada “A pedagogia de
Eros”. Produzida no interior do PPG em Educação, eu havia
reunido inúmeras informações de campo em meu diário,
descrições de cenas, pessoas, instituições. Nos anos 90, sem o
computador a mão, eu organizava os capítulos como quem
montasse um quebra-cabeça, encaixando pedaços de folhas onde
estavam escritas as análises e demais informações para obter, do
alto, uma sequência de desenvolvimento. E
u me lembro do imenso trabalho que tive para organizar as mais
de 300 páginas de papel A4 no chão da Biblioteca da Câmara de
Vereadores, onde fiz a parte final da redação de meu trabalho, a
quem agradeço a cedência do espaço a Jerri, seu chefe. E depois
de ter a visão, contente de que havia atingido algo de valor, ouvir
de minha orientadora Marisa Eizirik: “refaça!”. Imagine meu
desespero. Retomei o original, reorganizei mais uma vez e então,
meses após, passou no crivo da orientadora. E eu também gostei
do resultado, pois não imaginava aquela forma. Ficou então com
cara de “livro”. Quem refaz a organização de uma dissertação de
mestrado está preparado para refazer qualquer texto, pensei. O
que esse exercício me ensinou?
Aprofunde o tema
J o r g e B a r c e l l o s | 113
Você não sabe a estrutura inicial do ensaio enquanto não o
escrever. E não sabe a estrutura final se não o tiver reorganizado
ou repassado ele de alguma forma. Depois que você escolheu o
tema do ensaio, escreva sobre ele. Regra geral, na universidade,
são os professores que escolhem os temas sobre os quais
escrevemos nosso trabalho. Na vida profissional é diferente, você
mesmo escolhe. Esse grau de liberdade também é problemático,
pois você precisa determinar o tema e ser capaz de justificar a sua
importância, o que até então era dispensado a você. Como
professores, vários temas surgem no decorrer de nossa
experiência de ensino. Quando iniciamos o magistério,
geralmente nossas expectativas são muito elevadas em relação a
realidade escolar. Os primeiros tempos são de aprendizagem, do
estabelecimento das primeiras relações com as turmas. Cada
turma é singular e você pode identificar seus atores. Se você está
nesta fase do desenvolvimento de seu trabalho, o tipo de
preocupação que você tem é relacionada a como você estabelece
as primeiras estratégias de tratamento para os alunos “difíceis”,
aqueles que por alguma razão, são indiferentes ao processo de
ensino.
Já falei que se você quer escrever um ensaio, você precisa anotar
o que acontece em sala de aula com a disposição de interpretar.
Vamos falar um pouco mais sobre isso agora. Você observa como
os alunos reagem as suas primeiras perguntas. Você sabe que seu
foco de atenção deve estar naquele que não participam,
murmuram um “sei lá” às suas perguntas. Esta é uma questão
importante: como você reage a indiferença em relação aos seus
conteúdos de ensino? Isso pode ser um foco do ensaio. Você
114 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
desiste dele ou faz uma nova pergunta para outro aluno e depois
retorna a ele? Você o observa reagindo ou não? Os colegas de
disciplina que participam servem de estímulo para ele participar
ou não? O trabalho de anotação da condução de uma hora de
aula pode ser cansativo, mas você precisa fazê-lo pois precisa
identificar qual atitude foi responsável pela mudança de
comportamento em sala de aula. Foi sua, foi da turma, do aluno
e em que contexto aconteceu. Quando você descreve
sucessivamente ações de sala de aula, você está fazendo a
etnografia lutar a seu favor. Você encontrou um tema: modos de
enfrentar resistências em sala de aula. Nele você analisa o
comportamento de aulos durante uma aula ou um conteúdo de
ensino, explorando as táticas e estratégias que você adotou e
porque deram certo ou errado. Você descobre que, para cada
perfil de aluno que você descreveu, há uma atitude
correspondente que faz o sucesso ou o fracasso da estratégia de
ensino. Quando você faz isso, você está aprofundando um tema,
dando-lhe a tessitura de descrição e interpretação que a forma
ensaio permite. Imagine quantos temas a observação de uma sala
de aula pode fornecer.
Quando você observa e anota uma aula, você cria a base para o
aprofundamento de sua análise. Você se compromete com uma
posição. Eu discordo da posição de Martinich “os temas do
ensaio devem ser neutros” (p. 99). Isso não existe no magistério
porque sempre há o comprometimento do professor com uma
visão de ensino. Seu engajamento está no fato de que, através do
ensaio, o professor visa a construir aulas melhores. Não é apenas
uma análise de seu processo de ensino: é a tentativa de chegar a
uma conclusão transformadora. Mas Martinich coloca algumas
estratégias para que nos demos conta de que estamos
J o r g e B a r c e l l o s | 115
desenvolvendo argumentos sólidos sobre nosso processo de
ensino. É aqui que aparece seu comprometimento com o
processo de ensino: importa que você argumente a partir de uma
experiência de ensino, que você se comprometa com a posição
de encontrar a verdade de seu processo de suas aulas.
É claro que o tempo de experiência de sala de aula importa.
Quanto mais você tem de tempo de sala, mais você encontrou
experiências, tentou procedimentos. Então para professores mais
experientes, eles já têm um repertório de temas, problemas,
objetos de ensino mais delimitados, e sabem mais o que querem
investigar da realidade de ensino. Eles têm também mais
exemplos e anotações de aula que podem usar em seu trabalho,
o que deve servir para perceber seu progresso como professor.
Acostume-se com uma técnica de elaboração
É você que escreve. Você é que sabe a melhor forma de produzir.
Regra geral, há três formas muito utilizadas. A primeira é o
esboço, seguida da elaboração sucessiva e da anotação. Em todas,
a matéria prima são as ideias que o professor tem de seu processo
de ensino. Elas partem da noção de que, ou o professor tem
apenas um esboço, ou que precisa elaborar ou tem simplesmente
ideias dispersas que anota em um diário. É claro que nada é
estanque, que tais formas se interpenetram.
Quando esboçamos um ensaio a partir de um tema, o que
fazemos é estrutura-lo, indicamos os tópicos que queremos falar.
Martinich lembra o fato de que em seu tempo de formação era
116 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
comum ser solicitado o relatório seguido de seus esboços
preparatórios, o que evidentemente trapaceou. Mas ele ainda
assim defende sua realização “se puder escrever um esboço
plausível a partir de seu texto, você terá certeza de que ele tem
uma estrutura inteligível” (p. 102-3).
O ato de escrever. Reproduzido Pixabay
A elaboração sucessiva é mais próxima do método professoral:
ela começa com uma frase ou tese que é o ponto central do ensaio
do professor que vai sendo sucessivamente explicada em seus
termos próprios em diversas versões. É como se o professor
estivesse em sala de aula explicando o contexto de uma matéria,
mas de forma anotada. Isso possibilita, por exemplo, a utilização
J o r g e B a r c e l l o s | 117
de perguntas, o próprio raciocínio do autor se transforma em
argumento. Reunindo fragmentos de ensaio faz-se um ensaio.
Aonde faltarem fragmentos, o autor introduz suas ideias, seja
início ou na conclusão “as grandes vantagens desse método de
elaboração de um ensaio são a ordem e o controle. O método é
ordenado porque cada acréscimo se justifica e é convidado por
alguma parte específica do texto, e é controlado porque, a cada
estágio da elaboração, o autor sabe o que o ditou a presença do
texto adicionado; a cada estágio, ele sabe que, o que está antes é
que é, por isso, mais essencial do que outras partes” (p.106).
Finalmente, a anotação de conceitos, onde o autor simplesmente
registra sua “tempestade mental” de modo a facilitar a emergência
do que ele quer dizer “na realidade, tudo quanto se escreve
contribuiu de alguma maneira para o produto final, seja ele qual
for, ainda que aquilo que for escrito seja descartado” (p. 108). Na
minha experiência, o descarte ocorria sempre por uma
necessidade imperiosa de redução dos espaços para os quais
escrevi ensaios: sempre há um notável limite de caracteres, seja
para os jornais como para as plataformas. Eu me surpreendi
quando descobri que, antes de olharem o que você escreveu e a
qualidade de suas proposições, a primeira coisa que faziam os
editores para os quais encaminhava minhas colaborações era
olharem o número de dos caracteres de meu texto para saber se
o artigo cabia ou não na página. Então, uma vez organizado o
texto, eu era obrigado a cortar para “caber no espaço”, o que me
parecia uma violência, mas que aos poucos, serviu-me para
obrigar a reler o texto, refaze-lo, para reencontrar o argumento
principal que queria defender.
Quando anotamos o fluxo de nossa consciência, criamos
pensamentos, argumentos e conceitos com os quais organizamos
118 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
nossos ensaios. Eles podem estar organizados em um primeiro
esboço, mas isso não significa que sejam suficientes para serem o
ensaio. Isso é o retrabalho que definirá. Eu me recordo, por
exemplo, de quando anotava em meu diário de pesquisa as falas
de depoentes durante as visitas que fazia as escolas, eu anotava ao
mesmo tempo ideias, insights, ligações com conceitos de
pensadores de obras que estava lendo naquele momento ou que
foram importantes em minha própria formação. Isso era essencial
em minha experiência de escrita de ensaios porque, de fato, o que
eu fazia era explicar o mundo diante de meus olhos a partir da
minha leitura prévia. Imaginei, outro dia, que isso seria
equivalente ao oficio da alfaiataria. A arte da costura de tecidos
sob medida de certa forma é o equivalente deste meu processo:
você tem ideias, conceitos, expressões que você... “costura”, que
você estabelece vínculos. A linha usada pelo alfaiate é o seu
pensamento; os tecidos, as matérias coletadas da realidade. O
ensaista é uma espécie de alfaiate porque o que ele faz ao final, o
ensaio, tem unidade, assim como uma vestimenta construída por
um alfaiate tem caimento. Isso é bem diferente de Henri
Frankenstein, personagem criada por Mary Schelley em 1931,
produto da costura de corpos, um ser desprovido de alma, na
versão cinematográfica tantas vezes criticada.
Martinich coloca em um lugar secundário o que considero
fundamental para um ensaio: a pesquisa em literatura secundária.
Ele entende que a pesquisa impede de escrever, pois começar
escrever seria o mais difícil e a pesquisa retardaria a tarefa “se
encher a cabeça ou as fichas com coisas que os outros dizem, você
pode descobrir que parece não haver espaço para você prensar
no que quer dizer” (p. 111). Isso não é verdade. Martinich
acredita que o caminho certo é escrever primeiro e pesquisar
J o r g e B a r c e l l o s | 119
depois, quando estiver “esgotado seus pensamentos” (idem). Não
acredito nisso porque na minha experiência, escrevo minhas
ideias ao mesmo tempo em que pesquiso. Eu preciso ler sobre o
tema para encontrar o apoio e desenvolvimento do meu ponto
de partida; daí escrevo e quando encontro outro ponto
importante, reflito a partir dele com novas leituras. É o que
chamo de diálogo de escrita. Por isso eu termino transformando
as formas de redação propostas por Martinich: ao invés de fazer
nota de rodapé para coisas que quero escrever que já tenham sido
escritas, eu transformo em texto minhas ideias. Vejo semelhanças
e diferenças em autores que considero importantes no meu
pensamento: sigo seu pensamento quando diz que devemos citar
alguém que fala uma ideia melhor do que faríamos, mas não vejo
problema em partir de algo que considero muito bom em um
autor que leio para sintetizar a conclusão de um pensamento ou
mesmo inicia-lo. Mesmo quando alguém é capaz de detalhar
melhor do que eu, eu não perco a oportunidade de comparar seu
pensamento com o meu – lembre-se, nunca há pontos de partida
exatamente iguais entre pensadores diferentes. Finalmente, não
creio como ele afirma, que se alguém diz algo que esteja
enganado, isso sirva para argumento de que eu possa refutar. Ao
contrário, não se trata de refutação simples, mas de dialogar com
pensamentos diferentes que eu não conhecia.
É que Martinich está envolvido com o formato acadêmico onde
é fundamental a precisão de notas de rodapé ou de final de texto.
Estas últimas são verdadeiramente o inferno do leitor: fala sério,
quem para o texto para buscar no final da obra o significado
detalhado de cada nota? Eu dificilmente faço isso, ainda que,
tenha desenvolvido um hábito curioso: porque então não ler as
notas na sequência, como se fossem textos? Se houver algo de
120 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
interessante, será incluído no meu pensamento. Mesmo as notas
de final de página, por serem em geral grafadas em fontes
menores, não me agrada. O olho gosta de fonte maiores pois
fazer esforço com o olhar cansa. O ensaio é justamente um texto
continuo e interessante para transformar notas de pé de página
em texto discursivo, no meu entendimento. Eu realmente não
gosto de fazer distinções no meu texto, isso é como fazer um texto
de segunda classe, como se fosse um cidadão de segunda classe.
É curioso porque para o autor assim em meu ponto de vista,
atingimos o mesmo objetivo: “não adie, escreva”, só que no meu
caso, me parece mais interessante que minha escrita, aqui e acolá
seja com o apoio dos autores e interpretações que acho
convenientes em um texto contínuo e uniforme.
Quando escrevi Neoliberais não merecem lágrimas (Clube dos
Autores), meu estudo sobre os efeitos das enchentes, a culpa das
políticas neoliberais em sua agudização estava presente logo do
início dos primeiros textos na ideia de que a cidade se
transformou num cenário de guerra. Eu sabia que, de antemão,
somente um autor explica o fenômeno da guerra como entendo:
Paul Virilio. Fui a ele, e de certa forma, a medida que o lia, via
expressar-se em nosso mundo atingido pelas águas sua concepção
de guerra pura, que vai além da guerra propriamente dita, pois
envolve a ideia de “guerra por outros meios”. Daí então ficou
muito fácil, a partir desta pesquisa combinada com o
acompanhamento do que acontecia durante a enchente pela
imprensa, fazer registros e interpretações a partir deste olhar, o
que foi responsável por um dos fios condutores da obra. O
mesmo aconteceu quando escrevi Tempos de Pandemia (Clube
dos Autores).
J o r g e B a r c e l l o s | 121
Gregoire Chamayou, autor de Teoria do Drone. Divulgação Editora Antîgona.
Aqui, a reflexão sobre os efeitos dos vírus para mim era similar
aos efeitos dos ambientes hostis descritos na primeira parte do
livro de Teoria do Drone, de Gregoire Chamayou (Cosac Naif,
2015). É que este autor atualizou a noção de guerra de Virilio,
trazendo para seu interior os novos avanços da tecnologia em
relação a guerra tradicional, espaço exato onde vi atuar o vírus, o
que me possibilitou oferecer uma perspectiva nova – mas
também, de certa forma, irônica - leia o livro – do fato de que
viramos objetos de caça de um vírus.
122 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
Não há como escrever sem pesquisar. Você precisa dela para
estabelecer seus insights, e, não deveria ser exatamente esse o
espírito da investigação? O de sermos capazes de vincular o que
descobrimos ao que nos antecedeu? A leitura nos estimula a
interpretação, você para e pensa “eu vi algo parecido em outro
lugar. Qual?”. Você pesquisa, localiza uma passagem, relê o texto
inteiro e dá-se conta de semelhanças e diferenças entre o que você
vê e o que autor viu e interpretou. Você escreve sobre isso, sobre
o que comparou. Eu concordo com Martinich com o fato de que,
ainda assim, você precisa voltar ao texto para aperfeiçoa-lo.
Aceite abrir mão
A terceira técnica necessária para fazer um ensaio para mim é
“abrir mão”. Eu a fazia na prática, mas encontrei uma explicação
de origem curiosa. Aceite abrir mão é uma técnica apontada por
Beth Kempton em Wabi Sabi (Best Seller, 2018), conceito
oriundo da estética japonesa com raízes no Zen e na filosofia do
chá, espécie de sabedoria atemporal oriental aplicável as coisas
práticas. Ainda que o filosofo esloveno Slavoj Zizek teça suas
críticas a certa ideologia do orientalismo, eu entendo que a
filosofia Wabi Sabi colabora na construção de nossos ensaios. Ela
nos ajuda a ter uma visão real do sentido de produzir um ensaio
no dia a dia frente aos problemas corriqueiros que todos vivemos.
Você pode se preocupar com o “quando” vai fazer seu ensaio: no
inverno, porque ele sugere mais introspecção do que as atividades
ou no verão das férias escolares – quer dizer, ele ajuda a
ressignificar sua produção ao longo de sua vida. Não é uma
J o r g e B a r c e l l o s | 123
obrigação, não é um objetivo único a ser atingido. Eu agora os
faço porque me aposentei e me dedico mais do que era jovem
“As pessoas instintivamente sabem o que o conceito de Wabi
Sabi representa, mas poucas são capazes de articula-lo”, diz
Kempton (p.20). Peça fundamental numa filosofia da
desaceleração do mundo, ele também auxilia a entender que não
precisamos acumular ensaios. Fazer desesperadamente. O
mundo e seus problemas parecem que nos exige sempre uma
posição, mas eu vi pela minha própria experiência que fazer um
escrito sobre tudo o que acontece nos deixa sobrecarregados. A
produção de ensaios não pode ser um compromisso excessivo. É
disso que fala o “aceitar abrir mão”. Se podemos transferir os
ensinamentos dessa filosofia oriental para a prática ensaista ela
seria algo que podemos resumir em três aspectos: 1) o ensaio é
nossa resposta cognitiva à beleza que revela nossa natureza; é uma
apreciação do mundo imperfeita e incompleta; é o
reconhecimento de que podemos entender o mundo de forma
simples e natural. Como o Wabi Sabi, o ensaio é um “estado do
nosso coração” (p.23).
Das características do Wabi Sabi, a que mais me chama a atenção
para o ensaio é sua visão do mundo como algo incompleto,
transitório e imperfeito. A perfeição é impossível e a imperfeição
é o estado natural das coisas. Não é à toa que autores da escrita
sempre valorizam a simplicidade e a construção contínua dos
ensaios por um escritor. Kempton dedica o capítulo quarto a
detalhar o que a filosofia Wabi Sabi entende por “abrir mão”.
Assim como não existe vida perfeita, eu diria que não existe
ensaio perfeito. Já defendi aqui que reconhecer a revisão de
nossos escritos à exaustão não tem sentido: você não pode levar
mais tempo revisando um texto do que escrevendo-o. O que a
124 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
filosofia Wabi Sabi faz é nos aprofundar nos motivos disso “a
ideia de uma vida perfeita não leva em conta o contexto da nossa
realidade complexa e desafiadora”(p.107). É o iyaku, o texto
imperfeito tem mais força e graça, é o jeito autêntico de escrever.
Abrir mão do texto perfeito não é fácil na sociedade da
performance. Nossa trajetória universitária impõe que façamos
monografias cada vez mais perfeitas, abrangentes, com objetos
bem determinados, pressupostos, métodos e conclusões
enumeradas de forma clara. O texto perfeito. A filosofia Wabi
Sabi nos ensina a abrir mão de parte de tudo isso, de aceitar o
modo como escrevemos com suas imperfeições. Eu me lembro
que fiquei chateado quando, frente a alguns erros de português
em um texto que escrevi na graduação, uma professora disse que
era “produto da minha formação em escola pública”. Ela queria
dizer que eu era um deficiente linguístico, que produzia erros em
meus textos que não existiriam se tivesse tido a oportunidade de
estudar nas boas escolas privadas. Isso me chateou por algumas
razões. Primeiro porque eu realmente gostei do ensino público a
que tive acesso. A escola pública nessa época não era tão
problemática como a atual e os professores faziam, na opinião
minha, um bom trabalho. Lembro com saudade as aulas Colégio
Júlio de Castilhos: não tinha laboratório de informática, é
verdade, mas tinha ótimos professores de língua portuguesa e
literatura, além de ciências. Não foi uma educação ruim, foi a
educação da época. Depois, eu, de origem humilde, vi o esforço
de minha mãe para comprar meu material escolar. Ela tinha
pouca instrução, mas fez de tudo para que eu tivesse acesso à
educação básica. Porque eu iria desprezar esse esforço? Essa
crítica atentava contra meus professores e minhas origens, por
isso a mágoa.
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Vincent de Gaulejac. Divulgação Universidade de Rosário.
“Nada é completamente imutável”, diz Kempton (p.108). É assim
com nossa escrita. A transitoriedade da vida faz parte também faz
parte de nossa escrita. Nada garante que nossos escritos vão
durar. É seu estado natural. Não precisa se esforçar demais,
apenas o suficiente. É que você pode fazer revisões de textos e
sempre mudar algo. Como a mudança é inevitável, você acredita
que seu texto nunca está perfeito. Tentar chegar a esse patamar é
inútil e estressante. Ficar mudando o próprio texto termina se
transformando em um mecanismo de fuga do escritor, que nunca
publica com o medo de que seu texto não esteja à altura...altura
do quê? Dos grandes escritores? Eu já afirmei que somos apenas
escritores-professores, gente...comum! Mas se você não escreve
algo, você é criticado por nunca produzir. É o dilema do
capitalismo paradoxante, de nos colocar problemas impossíveis
126 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
de solucionar, nos termos de Vincent de Gaulejac (Hucitec,
2024).
Não busque a perfeição, mas o bom texto
Eu me recordo de um excelente professor de história de meu
curso de graduação que não avançava na carreira acadêmica
porque não escrevia livros. Ele podia ter escrito com sua
experiência de anos de ensino, mas nunca o fizera. Havia a
percepção na acadêmica de que ele não era do nível dos grandes
mestres daquela universidade e provavelmente ele se sentia
menor por causa disto. Ele também se recusava a cursar pósgraduação, mas suas aulas eram muito boas e dariam um
excelente texto. Eu me recordo de outro professor que também
viveu as margens do sistema de ensino. Ele era de esquerda e não
queria se submeter ao sistema universitário. Mas um dia ele cedeu
e fez pós-graduação. Isso não afetou seu modo de ser e ele foi
reconhecido. Foi para ele mais um momento de sua vida. Esses
professores sempre foram pressionados a escrever textos, a
submeterem-se a uma contabilidade que o sistema de pósgraduação exige, e convenhamos, esse é o pior dos mundos, o de
publicar por obrigação. Passar pelo crivo de revistas com
avaliações tipo A, B, C que exigem textos perfeitos. Eles
souberam que isso não tinha sentido.
Mas eles deixaram de escrever. Seus textos não seriam perfeitos,
mas eu os leria mesmo assim. Com um desses professores fiz
notáveis grupos de estudo nos anos 80, em sua casa, na Rua
Garibaldi. Ele poderia tranquilamente ter escrito sobre essa
J o r g e B a r c e l l o s | 127
experiência, ter anotado suas reflexões sobre o pensamento de
Marx. Líamos, dele, nessa época, Ideologia Alemã e Critica da
Economia Política, dois textos de minha formação em história
insuperáveis. Ele simplesmente não se apegava a isso. Ao final de
sua carreira, fez o doutoramento. Discordo de Kempton que
entende que devemos esquecer o passado “o passado não está
mais aqui. O que quer que tenha acontecido (de bom ou ruim) já
se foi” (p.110). Eu rejeito a ideia da filosofia Wabi Sabi de que
não devemos nos apegar ao passado, mas de fato, adiante, ela diz
que se trata de “aceitá-lo”. É isso. Eu aceito que meus textos
tenham pequenos erros. Eu faço de tudo para que eles não
passem por minha revisão e assim não causem má impressão,
mas eu não consigo tirar todos os erros. Um leitor apontou-me
três erros de digitação: eu respondi – só? Com os corretores
ortográficos ficou mais fácil corrigir isso e confesso meu
agradecimento a Microsoft. Mas eu preciso rever, assumir a
responsabilidade: a internet também – pasmem – produz erros
ao fazer correção. Isso não é notável?
A valorização do presente promovido pela filosofia Wabi Sabi se
reflete em meus ensaios. Eu também acredito que, basta olhar
um problema do mundo ao redor para escrever um bom ensaio.
Você escreve para dizer uma verdade de sua vida; você escreve
para mostrar suas ideias sobre o mundo aos outros. Nosso
imaginário é povoado por representações perfeitas, como na
propaganda dos anúncios, mas ao nosso redor, o mundo é
imperfeito. Porque nossos textos seriam perfeitos? Sabemos que
o mercado editorial possui inúmeros profissionais para tratar o
texto e torná-lo perfeito e seria uma coisa boa que pudéssemos a
todo o momento contar com eles. Quem sabe até um tradutor
para fazer nossos livros serem publicados no estrangeiro? A
128 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
verdade é que, como pessoas comuns, não podemos. Se não
estamos sob o abrigo de uma editora, nós mesmos temos de
providenciar nossa finalização como já afirmei. Eu aceito isso.
“Aceitar não significa abandonar ou se entregar, mas se render à
verdade do que está acontecendo e ter um papel ativo em decidir
o que acontecerá depois” diz Kempton (p. 115). Você não está
bem e não há motivo para escrever, a não ser que você queira
falar sobre sua doença e não será o prazo de encaminhamento de
um texto para uma revista que decidirá por você o que fazer.
Temos ideia de que se fazemos ensaios imperfeitos e que isso é
negativo. Há uma notável negatividade em torno da imperfeição.
Em O pequeno livro de tradições japonesas: a arte de alcançar
uma vida plena (HarperCollins Brasil, 2021) Erin Niimi
Longhurst retoma a cultura oriental – o chamado japonismo, em
suas palavras – para descrever os elementos do Kintsugi, a beleza
da imperfeição. Kintsugi ou kintsuguroi é uma arte que significa
“conectar com ouro” segundo as lendas atribuída ao xogum do
século XV Ashitaga Yoshimasa que, frente a um reparo mal feito
em uma peça de cerâmica, apelou para artesãos encontrarem
uma solução. A solução encontrada foi aplicar verniz dourado,
transformando peças estilhaçadas em objetos mais bonitos do que
eram antes “em vez de serem descartadas ou deploradas por
causa de seus defeitos, o objeto passa a ter mais estima do que
nunca, pois sua deformidade ou defeito torna-se um ponto forte
com a arte do kintsugi, contribuindo para sua beleza” (p. 79).
O conceito de kintsugi é uma metáfora. Eu vejo sua aplicação
gráfica em certos livros. Certas editoras tem aos poucos
introduzidos no formato tradicional das obras que publicam
detalhes que são imperfeiçoes para o estilo acadêmico, mas que
J o r g e B a r c e l l o s | 129
tem o objetivo de chamar a atenção para o texto. Primeiro, o
alinhamento da página. A regra acadêmica hegemônica defende
que um livro qualquer deve possuir alinhamento justificado, isto
é, reto nas duas margens, à esquerda e a direita. Mas há coleções
e editoras que preferem romper com isso, deixando apenas o
alinhamento à esquerda do leitor, deixando o da esquerda,
desalinhado.
Esse detalhe dá um certo “charme” ao livro, que passa a ter uma
textura diferenciada na leitura. Não há, por exemplo, separação
silábica e nem espaços sobrando entre as palavras, que aparecem
nos textos alinhados pelo computador. A obra de Alberto Acosta,
O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos
(Editora Elefante, 2016) é uma dessas. Aqui, o design gráfico
acomoda-se a proposta da obra: papel cartão que imita
embalagens comuns e não o clássico papel cartão plastificado, o
desalinhamento à direita do texto, uso de recursos de fontes fora
do padrão e grafismo em preto em branco para as páginas, tudo
faz-se como se a obra fosse produto imperfeito de uma editora.
Ao contrário, ela apenas faz é imaginar um design alternativo ao
acadêmico comum, com suas páginas numeradas seriamente em
fundo branco. O ensaio é o lugar onde podemos expressar em
parte o ideal Wabi Sabi. “Eu não sei tudo, mas não preciso saber
tudo, porque sei o bastante”, diz Kempton. (p. 116). E completa:
“Estou fazendo o melhor para ser tudo o que posso para quem
realmente importa. Eu sou o bastante” (idem). Agora emerge,
em termos de filosofia oriental, as questões que formulei lá atrás,
no início de meus textos: a questão é sempre ter claro os motivos
que escrevemos, porque queremos escrever, para quem
queremos escrever. A escrita não é esse objeto de acumulação a
mais que escolhemos, ela não é objeto de uma corrida por títulos
130 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
em um concurso de admissão ou progressão funcional. Abro
mão desses lugares porque não preciso estar neles, e posso aplicar
essa energia na escrita de textos que realmente me importam.
Meu público, sendo de professores, são outros professores, pais,
alunos, coordenadores pedagógicos. Se você vivencia o processo
da escrita desse modo, você é capaz de aceitar que pode revelar
suas imperfeições, permitir que os outros o vejam.
Reduza seus problemas
Tenho problemas com a língua portuguesa. Já referi a isso. Ainda
hoje preciso olhar o uso dos porquês. Saber se o título deste livro
dedicados a professores-autores leva ou não hífen é para mim um
martírio. Pesquiso no google. As duas opções existem. A beleza,
diz Kempton, está mais longe, em compartilhar uma verdade,
uma essência pessoal. Isso cria sintonia com o leitor “todos
estamos aprendendo uns com os outros” diz Kempton (p.118).
Talvez muitos leitores considerem um erro gráfico em um livro
um pecado. Eles vêm o livro como um objeto sagrado.
Deveríamos ler e ter livros como algo comum. Eu escrevo um
manual de escrita de ensaio a partir de minha experiência, ele não
é o manual definitivo como é o de Umberto Eco Como se faz
uma tese. Eu escrevo como quem descreve o seu quebra cabeça
interior da escrita, e as vezes nem sabemos quais peças ele
contém, tanto que precisamos de outros autores para dizer “é isso
que se trata”. Para os orientais, é uma honra aceitar sua
imperfeição, somos “tesouros imperfeitos” como o copo de
porcelana quebrado. Gosto desta analogia. Eu escolho modelos
J o r g e B a r c e l l o s | 131
e autores que são minha inspiração, mas entendo a crítica de
Kempf. Ela diz que devemos prestar atenção aqueles que tem
sucesso nos caminhos similares que queremos seguir, mas.... nem
tanto! Você também tem sua trajetória a seguir. Você precisa
também abandonar-se para fazer o seu caminho “sempre vai
haver alguém que sabe mais, fez mais, tem mais experiência ou
conhecimento que nos em algum campo específico, em
determinado momento” (p.120). Aqueles que nos inspiram
devem ser isso, apenas inspiração, e não um lugar de projeção de
nossas deficiências. Devemos abandonar nossos mestres quando
eles nos oferecem um horizonte irreal, longe de nossas
possibilidades de escrita. Em seus termos, se dermos atenção a
vida ao nosso redor, já teremos o suficiente de matéria para um
ensaio; podemos abrir mão de escrever outras coisas.
Nos termos de Kempf, um ensaio deveria ser como um pote de
argila. Se quiséssemos um ensaio perfeito, como os que são
solicitados pelas editorais de revistas acadêmicas, bastava uma
máquina para isso. De fato, hoje já tem: chama-se IA (Inteligência
Artificial). Mas não queremos ser impecáveis como um artesão
não quer ser, já que em ambos, as imperfeições contam. Nossos
defeitos no ensaio revelam o estilo, os cacoetes, mas também o
lirismo que só quando nos permitimos transparecer quando
somos verdadeiros na escrita. Por isso mesmo, se apenas
pensamos nas camadas de técnica de que devemos seguir para
fazer um ensaio para ele ser reconhecido, não seríamos nos
mesmos, apenas estaríamos projetando neles aquilo que
imaginamos que os outros gostariam de ler. Se abandonamos a
ditadura da perfeição estilística que exigem de nós quando
escrevemos, descobriremos que a “imperfeição perfeita” (p.121)
132 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
também existe no ensaio, porque ela já existe em nós, o que nos
abre a conexões com outras pessoas.
A conclusão é que, ao fazer um ensaio, não podemos ignorar o
que acontece ao nosso redor, mas não precisamos fazer drama se
por acaso algo passou, segundo Kempton. Quando aprendemos
a abandonar aquilo que nos prende, avançamos um pouco mais.
Ver um ensaio por aquilo que ele é, significa, ver de seu tamanho
real. É isso que escrevo do que observo; isto é importante para
mim por tais razões; meu objetivo é realizado no ensaio pela
escrita. Não estamos concorrendo ao Oscar da escrita. “E não
tenha pressa, não há desespero”. Você escreve como algo da vida.
Você não interrompe o que está fazendo porque o ensaio é mais
importante. Tudo na vida é. Aprenda a achar o momento de sua
escrita. Faça o melhor que puder com o que você tem a mão. Se
procurarmos o ensaio perfeito, nunca o escreveremos. Descanse
um pouco entre um escrito e outro, pesquise em caso de dúvidas,
volte a escrever, diria o Wabi Sabi do ensaio.
6
A biblioteca do
professor-autor
J o r g e B a r c e l l o s | 135
Nós somos nossa biblioteca
A inspiração deste texto partiu da leitura que fiz no Sler do artigo
de Carlos André Moreira “50 livros que me fizeram quem sou”
(Sler, 20.6). Ele, como eu, reconheço que “boa parte de quem
sou vem dos livros que li”. Ele elegeu o número 50 devido ao
fato de que ele estava completando essa idade, e como é tradição
de seus textos; eu fiz uma lista de 70 livros sem critério algum, a
não ser o de mostrar uma linha de temas que considero
importantes para o professor acessar para escrever seus ensaios
ou dar uma aula com uma visão ampliada do social. O fato de ser
um número redondo foi apenas casualidade. Moreira selecionou
obras de ficção; eu listo aqui obras de não ficção, certo de que
isso contribuirá para professores-autores terem ideia do que
considero uma biblioteca para ensaistas.
Esta é uma seleção de obras de minha biblioteca pessoal, que não
é diferente da biblioteca de qualquer outro professor, apenas
revela as escolhas que fiz em no meu caminho de construção da
base de conhecimento que me levou a ser um autor de ensaios.
Se fosse na medicina, talvez eu fosse um “clinico-geral”. O leitor
encontrará aqui um mapa de autores e temas que considero
importantes no campo das Ciências Humanas para professores e
que persigo desde os anos 80. Há autores aqui que acompanho
obra a obra. Fica aqui a primeira dica: procure escolher autores
que lhe sirvam de apoio teórico, acompanhe sua trajetória
intelectual lendo seus livros. Não se contente apenas com uma
obra, não se preocupe se desconhece outros autores, conheça o
melhor possível um ou alguns. Livro é diferente de parente: dá
para escolher. Tenho todas as obras de Paul Virilio, as li e ainda
136 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
fico fuçando na internet para ver se descubro alguma novidade.
Você logo encontrará os seus e poderá ir atrás dele. Fica aqui a
segunda dica: invista numa boa biblioteca. Não adquira apenas
durante o curso de graduação, persista na ida a livrarias e
bibliotecas vendo a atualidade da produção dos campos que lhe
chamam a atenção. E depois, não esqueça de colocar em seu
testamento o destino. Uma biblioteca, uma escola, sei lá. Vai lá
que um parente resolva vender a quilo parte do que foi sua
trajetória. Agradeço a Moreira que tenha compartilhado em seu
texto um pouco dos autores que o levaram a ser o que ele é – o
notável escritor que acompanhamos nas páginas de Sler, que faz
ironia e análise como poucos - e espero estar a sua altura com esta
relação.
Livros de formação:
Todo pesquisador tem aqueles livros que considera essenciais em
sua formação. Eles deram a visão, o modelo, o raciocínio ou
simplesmente o olhar que você queria ter. Disse que não há mal
algum, aliás, é desejável, ler autores e se inspirar neles. Eis aqui
os meus autores e obras de formação:
1 - Guerra Pura, de Paul Virilio (Brasiliense, 1984). Eu já disse
que só li na educação básica obras de literatura que os professores
mandavam. Foi na universidade que comecei a escolher meus
livros. Quando você ainda não tem dinheiro para comprar os
livros, você chega nas estantes da biblioteca da faculdade e
simplesmente passeia entre elas até encontrar algo que chame sua
atenção. Você para, leva o livro para a mesa e fica...lendo. Antes
J o r g e B a r c e l l o s | 137
de eu ter condições de comprar meus livros, eu fazia isso na
UFRGS, mas também ia muito a biblioteca da PUC fazer
passeios...estantísticos! Entre as estantes. Tipo “rato de
biblioteca”, ainda que a expressão me seja meio ofensiva. Esse
autor foi o primeiro que acompanhei. Eu seria um stalker
literário? Perseguir as obras de autores se tornou meu método.
Iniciei por ele depois que o li na disciplina de filosofia sua obra
Guerra Pura. Para um aluno de primeiro semestre, foi uma
hecatombe. Não apenas porque era diferente dos livros das
outras disciplinas, mas pela perspectiva de análise que combinava
filosofia, urbanismo e os problemas contemporâneos que trazia:
implosão psíquica do mundo, combinação da análise política,
social e econômica. Novos conceitos – máquina de guerra, entre
eles - e o questionamento de coisas sagradas como a tecnologia.
Eu sabia que um dia eu queria escrever com esse tipo de
perspectiva, de ser capaz de criticar o que todos acham normal.
Li tantas vezes que ele está com páginas caídas. E ainda leio.
2. Partidos Comunistas – paraísos artificiais da política, de Jean
Baudrillard (Rocco, 1978). Já não me lembro qual foi o primeiro
livro que li deste autor, se este ou A sombra das maiorias
silenciosas (Brasiliense, 1985). Acho que foi este porque eu me
lembro do conflito interior que me provocou. Eu estava num
contexto universitário dos anos 80 onde o pensamento era de
esquerda e que a sua prática estava na política, consagrada em
defesa das classes populares que emergiam com os novos
movimentos sociais. Então como compreender as ideias de um
autor que igualava as práticas de direita e esquerda em seu
simbolismo? Ele criticava a esquerda, o PC de sua época, francês,
burocrático e arrogante. Hoje vejo que a esquerda do passado
francês que ele criticava chegou ao poder tempos depois no
138 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
Brasil. Ela é passível de críticas pelo que cede as políticas
neoliberais, mas ainda assim é a melhor política para defesa dos
trabalhadores do que a direita e extrema direita que chega ao
poder em diversos países e luta para conquistar hegemonia. Não
há um autor que faça mais ensaios enigmáticos do que
Baudrillard, que inventa conceitos e situações de forma paradoxal
e isso também chamava minha atenção. Sua leitura era um teste
para confirmar se você era realmente um pensador
revolucionário ou se tinha sido engolido pela máquina
burocrática de ideológica.
3. A nova desordem amorosa, de Pascal Bruckner e Alain
Finkielkraut (Brasiliense, 1981). Este livro provocou em mim o
que O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, provocou em uma
geração de mulheres. Ali eu encontrei uma crítica feroz dos
discursos da sexualidade e dos papéis sexuais masculinos em sua
tendência padronizadora, totalitária. Era também a crítica da
sexologia e a defesa de todos os gozos possíveis, inclusive, o
sentimental. Mesmo que os autores fossem suspeitos para fazer a
descrição do “gozo da mulher,” pois ainda é a visão de homens,
ela tinha um profundo sentido e ressonância. Essa análise, eu
descobri depois, ressoava na descrição do campo simbólico da
sexualidade feito por Baudrillard em A Sedução. Eu completava
o ciclo de minha própria desconstrução: do mundo, da política e
da subjetividade, temas que me acompanharam ao longo de
minha trajetória.
4. Cenários em ruínas, de Nelson Brissac Peixoto (Brasiliense,
1987). Nos anos 80, a emissora Manchete produziu uma série
chamada América que originou um duplo livro de textos e
depoimentos. Na minha visão, foi o batismo brasileiro do pós-
J o r g e B a r c e l l o s | 139
modernismo, corrente estético-literária que reunia os autores que
eu então lia, como Paul Virilio. Foi na série que descobri Brissac
e fui atrás de suas obras. Para dizer um pouco, devo a ele a visão
de realidade tema de meu mestrado. Foram fundamentais sua
abordagem de temas como identidade, mídia e mitologia a partir
das figuras das histórias que contou do cinema. É uma obra
notável pela abordagem e proposta, talvez porque a ideia de exílio
interno me fosse próxima como pobre, filho único, buscando
sobreviver no mundo.
140 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
5. O Anti-Édipo – capitalismo e esquizofrenia, de Gilles Deleuze
e Félix Guattari (Assírio e Alvin, 1972). Este é o livro mais riscado,
descolado e com folhas soltas que tenho em minha biblioteca. É
um tour de force de leitura, diriam os franceses. Você entende
uma frase para logo vir a seguinte e você não entender nada. É a
mais brilhante crítica do capital porque atinge o seu centro, o
estabelecimento da relação entre capitalismo e esquizofrenia, o
que para mim tinha sentido, já que tive uma mãe e tia com a
doença. A ideia de que a culpa da loucura também era do sistema
capitalista em que vivemos era uma resposta notável décadas
antes que Vincent Gaulejac a enunciasse. Ele descrevia a
esquizofrenia presente no fluxo monetário, nas axiomáticas que
o capital usa para legitimar-se como regime de sentido. Não há
como ser anticapitalista sem passar pelo Anti-Édipo. É uma
travessia difícil, entretanto.
6. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas
sociedades de massa, de Michel Maffesoli (Forense Universitária,
1987). Foi Juremir Machado da Silva que me apresentou a obra
de Maffesoli. Diferente da crítica de O Anti-Édipo, voltada para
a dimensão macro da sociedade, a abordagem de Maffesoli
voltava-se para o micro, para o cotidiano, para outras lógicas de
identificação, numa palavra, sociabilidade. Onde Guattari via
conflito, Maffesoli via encontro. Dessa forma, me pareciam
autores que se complementavam numa análise social. A
valorização da vida cotidiana, da religiosidade, do localismo,
contrapunha à lógica contraditorial uma lógica orgânica, portanto,
uma forma de abordagem chamada por Maffesoli de
“compreensiva “dos fenômenos sociais.
J o r g e B a r c e l l o s | 141
Depois das primeiras leituras que lhe fazem impacto na
universidade, a partir de um momento de sua formação, você
começa a eleger temas que considera fundamentais para sua
análise. Você os agrega as aulas que ministra. Eles são oriundos
de suas primeiras leituras, mas também de seus primeiros
escritos. Você passa a organizar sua biblioteca por grandes temas.
Os meus são os seguintes:
Crítica do capitalismo
Não há como não escrever sem combater a desigualdade
provocada pelo capital. Estamos numa luta social. Somos
professores. Nosso compromisso é denunciar a todo o momento
que o capital é o agente promotor de desigualdade para que
nossos alunos possam se conscientizar da necessidade de sua
mudança e de seus direitos e deveres com relação aos outros.
Meus livros de crítica são os seguintes:
7. Com todo o vapor ao colapso, de Robert Kurz (Pazulin, 2004).
Há inúmeros livros de introdução à obra de Marx ou seus
intérpretes, como David Harvey. Ainda que tenha estudado a
Crítica da Economia Política e também Ideologia Alemã de Marx
na universidade, eu indico sempre para adentrar no materialismo
histórico e dialético autores contemporâneos ou seus leitores,
como David Harvey, que além de fazerem uma ótima síntese, os
atualizam para os problemas contemporâneos. É assim com a
obra de Kurz porque ele é um dos integrantes da Revista Krisis
que melhor fez a crítica do capital a partir da boa e velha crítica
do fetiche da mercadoria, lugar que divide com Anselm Jappe.
142 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
Uma crítica social radical sob a forma de ensaios que permite
perceber o modo como o marxismo colabora na análise do
mundo contemporâneo.
8. Vida para consumo: a transformação das pessoas em
mercadoria, de Zygmunt Bauman (Zahar, 2008). Uma das obras
do autor fundador da noção de sociedade liquida que critica o
capitalismo, Baumann é um sociólogo requintado, de leitura fácil
e análises criativas cuja vasta obra inclui temas como a
precariedade da vida mostrando como a tecnologia colabora na
transformação da sociedade de produtores em consumidores.
9.Gestão como doença social, de Vincent de Gaulejac (Ideias e
Letras, 2007). Das ideologias capitalistas, a noção de gestão
tornou-se a maior obsessão dos políticos neoliberais. Gaulejac faz
a crítica do poder gerencialista, seu autoritarismo e os valores de
mundo que instila nas mentes dos trabalhadores tanto do serviço
público como do privado. Sua análise faz, nos termos de Paul
Virilio, a demonstração de como o capital produz a colonização
da sociedade.
10.Capitalismo Paradoxante: um sistema adoecedor, de Vincent
de Gaulejac (Hucitec, 2024). Este livro dá continuidade a tese do
adoecimento produzido pelo capital iniciado pelo autor na obra
anterior. Aqui, a ideia é que o capitalismo impõe dilemas
insolúveis ao individuo ao exigir objetivos incompatíveis, como
de produzir cada vez mais com menos recursos, ter espírito de
equipe em um sistema hipercompetitivo, onde os efeitos são
conhecidos: estresse, bournout e depressão. Sua ideia é que
adaptar-se não é solução pois anestesia nossa resistência ao
sistema sem extinguir o sofrimento psíquico.
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11.A parte maldita, de Georges Bataille (Imago, 1975). Escrito
depois que Bataille tomou conhecimento da obra Ensaio sobre o
dom, de Marcel Mauss, aqui o autor inverte a primazia da
produção sobre o consumo, sustentando que o despender, em
vez do conservar, o destruir, em vez de construir, o consumir, em
vez do produzir, é que constitui a motivação da atividade humana.
A obra faz parte de um projeto sobre a economia global do
excesso – que depois inspirará Baudrillard – que o autor não
conseguiu finalizar e que oferece notável contraponto a bases do
materialismo histórico-dialético.
12.A cidade perversa: liberalismo e pornografia, de Dany-Robert
Dufour (Civilização Brasileira, 2013). Aqui, o autor usa a noção
batailleana de excesso para aproximar o capitalismo da
pornografia e com isto mostrar que o liberalismo se tornou um
regime de alienação pela exploração industrial da libido. Sua
descrição de seus componentes é notável: a paixão por ver e saber
(paixão dos sentidos), a da carne e a paixão por dominar
sintetizam sua visão e inspira também Zizek em sua máxima do
universo do capital: goze! Um notável livro para insights sobre a
dinâmica do bolsonarismo.
Estudos sobre a vida cotidiana
Foi Michel Maffesoli que me apontou a importância da
valorização da vida cotidiana em conteúdos de sala de aula e
Agnes Heller a primeira a me definir suas estruturas para fins de
ensino. De fato, não há como dissociar que, para professores
escreverem um bom ensaio, é preciso viver cada dia por vez,
observá-lo, perceber o que é importante nele para nós e para os
alunos. Aqui, da valorização dos sentidos à felicidade, selecionei
alguns dos livros que me permitiram fazer isso:
144 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
13.Walkscapes, o caminhar como prática estética (Gustavo Gili,
2013), de Francesco Careri. Esta obra, como Caminhar e Parar
(Gustavo Gili, 2017), de sua autoria, descrevem como o caminhar
pode ser um ato cognitivo e criativo para transformar o homem.
Aqui caminhar é uma forma de arte: enquanto o primeiro livro
narra a história da percepção da paisagem através do ato de
caminhar, o segundo introduz a experiência da pausa das
caminhadas, o parar político de que fala Virilio. Esta obra foi
muito importante para o projeto de visitas orientadas que
desenvolvi na Câmara Municipal, que incluíam passeios à pé pela
cidade.
14.Uma história do silêncio: do renascimento aos nossos dias, de
Alain Corbin (Vozes, 2021). Este é um amplo painel de citações
e referenciais culturais que permite ter uma visão de como foi
expresso o silêncio ao longo do tempo. Escutar o silêncio, uma
atitude valorizada pela cultura oriental, nos termos de escuta
intima interior, é a forma de reencontrar-se com o que o autor
chama de “presença no ar” indispensável para o percurso
espiritual, para o recolhimento.
15.A descoberta da sombra, de Roberto Casati (Cia das Letras,
2001). Um interessante livro que revela como a observação das
sombras promoveu inúmeras descobertas científicas que vão das
ciências à psicologia, trabalhando questões que vem na vida
cotidiana ocupando. Interessante obra para conhecer um método
de trabalho com o inefável e o subjetivo.
16.O olho: uma história natural da visão, de Simon Ings
(Laurosse, 2008). A visão é o principal instrumento de acesso ao
conhecimento e fundamental no mundo das redes sociais. É,
portanto, uma obra que colabora com sua compreensão, onde a
J o r g e B a r c e l l o s | 145
autora sintetiza as contribuições de pesquisas científicas, filosofia,
história, mitos para mostrar como e porque enxergamos “quem
domina o que o olho vê tem poder”.
17.A filosofia radical, de Agnes Heller (Brasiliense, 1983). Esta
obra, junto com Para mudar a vida: felicidade, liberdade e
democracia (1982) da mesma autora, dedicam capítulos ao tema
dos carecimentos e valores. Ao fundamentar o marxismo na
dimensão do indivíduo, a autora retoma a defesa da luta pela
qualidade de vida, os problemas da existência e a necessidade da
felicidade. Sua novidade é a noção de carecimento radical como
aquele que é capaz de transformar o mundo.
Eva Illuz. Fonte: wikipédia
146 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
18.Happycracia: fabricando cidadãos felizes, de Edgar Cabanas e
Eva Illouz (Ubu, 2022). Notável obra que mostra como a noção
de felicidade foi transformada em mercadoria pela sociedade
neoliberal. Os autores criticam o empreendedorismo de si
mesmo, a maximização do bem-estar, a transformação do ideal
de felicidade em algo pronto para o consumo que termina por
produzir mais sofrimento e adoecimento. Um ataque a Psicologia
Positiva onde os autores mostram como a busca da felicidade se
tornou valor do capital e com ela, uma nova forma de tirania.
19. Sobre a arte de viver: lições para uma vida melhor, de Roman
Krznaric (Zahar, 2013). Todo professor deve saber vincular e
explorar com alguma profundidade temas de interesse geral com
filosofia. Esta obra, diversamente, usa a história como ferramenta
para falar do amor, família, empatia, trabalho, dinheiro, tempo,
sentido, viagens, natureza, crença, criatividade e morte, alguns dos
temas explorados em textos e ensaios e que são presentes na vida
de nossos alunos e possibilitam fundamental ensaios de
professores.
20.Por que repetimos os mesmos erros, de J.-D. Nasio (Zahar,
2014). Professores podem dar a mesma aula centenas de vezes.
Esta uma obra que fala das manifestações do inconsciente através
da repetição “repetimos obsessivamente muitas vezes sem nos
darmos conta tanto atitudes saudáveis como atitudes erradas”, diz
o autor. A obra sugere que professores devem fazer, como o
autor, seu esforço romper com a cadeia repetitiva do ensino
como um sintoma.
21.A perversão comum, de Jean-Pierre Lebrun (Cia de Freud,
2008). A obra descreve os efeitos do capitalismo para a infância
para retomar a previsão de Lacan que dizia que o futuro seria o
J o r g e B a r c e l l o s | 147
da criança generalizada, de que seriamos todos normalizados
como crianças. Uma interpretação de mundo que começa na
crise de legitimidade dos pais na família frente aos filhos e vai a
um universo onde o capital transforma os laços sociais e
infantiliza os cidadãos.
Estudos sobre arte e cultura
Na minha formação em história dei grande valor as disciplinas
dos cursos de Artes. Elas envolviam não apenas sua história, mas
também tópicos de cultura brasileira e geral. Isto era efeito da
influência que tive de professores como Luís Roberto Lopes e
Voltaire Schilling que, já nos cursinhos ministravam palestras
sobre estes temas. Em sala de aula, essa fundamentação se
revelou proveitosa para chamar a atenção dos alunos para os
conteúdos de história que ministrava. Alguns são os seguintes:
22.O instante certo, de Dorrit Harazim (Companhia das Letras,
2016). Sempre gostei da fotografia para análise da história, algo
valorizado ainda na era onde não havia celulares. Como
professor, aprendi que com uma fotografia temos o gancho para
introduzir todo e qualquer tema. Daí que quando Harazim nos
conta as histórias interligadas de imagens mundialmente
conhecidas, é claro, ela fornece conteúdos enriquecedores não
apenas para aulas, mas também para textos. Numa época em que
é preferível perder um momento sublime para fazer uma selfie
no presente, ela aprofunda o significado das imagens fotográficas
significativas do passado.
148 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
23.A magia do cinema, de Roger Ebert (Ediouro, 2004). Todo
professor ensaista deveria conhecer um pouco de cinema. Para
escrever, cenas de filmes são importantes pois ficam na memória
do público. A obra oferece para cada filme selecionado pelo
autor um ensaio interpretativo. Analisando de filmes clássicos
como Cidadão Kane, à modernos como Guerra nas Estrelas, é
uma obra que contextualiza a proposta de Nelson Brissac Peixoto
trazendo uma visão panorâmica útil para professores em
situações de ensino.
24.Mainstream, a guerra global das mídias e das culturas, de
Frédéric Martel (Civilização Brasileira, 2012). Este é um livro de
geopolítica da cultura e das mídias que oferece uma visão global
importante de seu objeto. Da indústria americana à Bollywood,
pouca coisa escapa a explicação do autor na guerra mundial pelo
conteúdo. Num mundo onde tudo se acelera com o streaming,
ao mostrar como a indústria cultural encontra fórmulas para
agradar a todos em qualquer lugar do mundo a obra nos mostra
a pasteurização do sentido que se produz em escala planetária.
25.Isso é arte? 150 anos de Arte Moderna do Impressionismo até
hoje, de Will Gompertz (Zahar, 2013). Com estilo irreverente,
um compêndio de história da arte moderna que narra o
movimento, artistas e obras que ajudaram a definir o mundo
contemporâneo. Segue o modelo ensaístico, sem notas de rodapé
ou longa lista de fontes, mas é capaz de abordar os aspectos
importantes de cada movimento. Acompanha um mapa resumo
dos movimentos da arte moderna.
26.O que é um artista? De Sarah Thornton (Zahar, 2015). A obra
reúne análises da autora da produção de 33 artistas
contemporâneos, discute seu papel e mergulha nos bastidores de
J o r g e B a r c e l l o s | 149
sua produção. Autores como Jeff Koons, Ai Weiwei, Marina
Abramovich, entre outros, tem seu trabalho analisados pela
autora em em seus ateliês e em meio ao seu processo de
produção à meia distância do mercado em linguagem irônica.
Obras de referência
Tanto para escrever ensaios como para dar aula, um professor
precisa de obras de referência. Elas são compêndios amplos
sobre temas de interesse geral que podem facilitar a
fundamentação de uma aula ou escrita. Geralmente, tenho
interesse em obras de cunho geral que me inspirem na escrita de
ensaios ou sua fundamentação. São alguns deles:
27.Vocabulário de Aristóteles, de Pierre Pellegrin (Martins
Fontes, 2010). Exemplar de uma coleção que inclui a base de
definições e conceitos de outros pensadores de Platão à Merleau
Ponty, é uma obra de referência básica para o ensaista que deseja
fazer um texto consistente com uma abordagem refinada.
Aprendi nas disciplinas de filosofia que cursei que o uso de
definições filosóficas ao longo de nossos textos é um recurso
essencial para produzir a sua profundidade. A referência a
sentido egistros originais, ao sentido das palavras. Michel
Maffesoli utiliza muito em seus textos.
28.Ideogramas e a cultura chinesa, de Tai Hsuan-Na (É
Realizações, 2017). Sempre achei fascinante combinar a definição
de conceitos oferecidos pela tradição filosófica ocidental que
aprendi na universidade, com a oriental, sempre ausente em
150 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
nossa formação. Esta é o tipo de obra de referência que permite
insights que só obtemos quando descrevemos a realidade a partir
de conceitos da escrita chinesa. Com uma caligrafia que é
comparável a pintura, a obra oferece 538 ideogramas descritos
em sua origem e significado, uma excelente ferramenta de
abordar, de forma diferente, conceitos em ensaios.
29.Enciclopédia da Cultura Chinesa, de diversos autores
(Contraponto, 2023). Na mesma linha, com quase 1.500 verbetes,
trata-se do melhor compendio de cultura chinesa do Brasil.
Aborda pensamentos, concepções, governança, literatura,
história, arte, humanidades, geografia, artefatos, tecnologia com
informações da história e da era contemporânea, um instrumento
de comparação muito importante para o ensaista diversificar seu
olhar.
30.Farmácia literária, de Ella Berthoud e Susan Elderkin (Verus,
2018). Uma compilação de mais de 400 obras e a sua relação com
inspiração, sanidade e loucura do ser humano. Obra de
referência, espécie de biblioterapia que indica uma obra de
literatura para cada mal que aflige o homem, tédio ou crise. Obra
que revela o poder curativo da literatura na vida cotidiana.
31.1001 ideias que mudaram nossa forma de pensar, de Robert
Arp (Sextante, 2014). Compêndio das mais importantes, curiosas,
criativas e transformadores ideias humanas, dos pensadores
antigos aos atuais. Inclui teorias notáveis do pensamento de
filósofos acompanhados de imagens, um guia de cultura geral e
material para pesquisa e escrita.
32.Dicionário de Políticas Públicas, de Geraldo Di Giovanni e
Marco Aurélio Nogueira (Unesp, 2015). Contém 197 verbetes
J o r g e B a r c e l l o s | 151
que abrangem todos os conceitos do campo das políticas públicas
essenciais para definir as formas de relacionamento do Estado
com a Sociedade, tema de inúmeros ensaios em defesa do
trabalho do professor e de outras categorias sociais. De ações
afirmativas à walfare state, os verbetes aprofundam a definição e
o fundamento de cada prática de política pública.
Fonte: divulgação da editora.
33.Dicionário dos Antis: a cultura brasileira em negativo,
coordenado por Carmela Grune e outros autores (Pontes, 2021).
Reúne uma coletânea de temas de oposição, de negação e
combate social engajado que compõe o chamado campo da
cultura em negativo. De anti-aborto a anti-xenofobismo, são cerca
de 120 conceitos repassados que permitem a construção de uma
história das ideias ao avesso. Não existe ensaio nem prática
profissional sem engajamento social.
152 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
34.Filosofia francesa: a influência de Foucault, Derrida, Deleuze
e Cia, de Françoise Cusset (Artmed,2008). Já falei que a filosofia
francesa foi importante em minha formação. Enquanto que nos
anos 70 as obras da contracultura francesa e do pósestruturalismo chegaram nos Estados Unidos, no Brasil ainda
eram incipientes nos anos 80. Termas como desconstrução,
biopoder, micropolítica, simulação, que fizeram eco nos EUA só
foram se mostrar essenciais para a esquerda para criticar, nos anos
2000, a emergência da nova direita.
35.Pluriverso: um dicionário do pós-desenvolvimento, de
Alberto Acosta e outros (Elefante, 2021). A obra reúne uma
centena de ensaios sobre conceitos de vida alternativos ao
capitalismo, a partir de experiências de vida de povos indígenas,
camponeses e pequenos grupos em todo o planeta, caminhos
promissores para a construção de mundos socialmente justos.
Critica a tecnologia
Foi a leitura de Paul Virilio que moldou em mim uma visão crítica
da tecnologia. Da forma como vejo, a revolução digital trouxe
problemas que ainda não terminamos de analisar. Elemento
essencial no modelo de desenvolvimento capitalista, a tecnologia
também serve à dominação, a perda da individualidade e da
capacidade de organização política. Daí as leituras indicadas
abaixo:
36.Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais, de
Jaron Lanier (Intrínseca, 2018). Se o título pode parecer radical
J o r g e B a r c e l l o s | 153
demais, ao menos faz você pensar sobre a importância que dá as
redes sociais. O autor aponta os pontos negativos centrais: perda
do livre-arbítrio, produção de insanidade, ampliação das fakenews, perda de sentido e de empatia, infelicidade e fonte de ódio
estão entre outros argumentos do autor para mantermos distância
das redes sociais.
James Bridle. Fonte: wikipédia
37.A nova idade das trevas: a tecnologia e o fim do futuro, de
James Bridle (Todavia, 2019). O autor critica a crença de que
pela tecnologia e computação seria possível compreender nossa
existência no mundo para construir um mundo melhor. Sua tese
é que, ao contrário, o que ela faz é nos deixar perdidos em um
154 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
mar de informação, estabelecer narrativas simplistas,
promovendo a falta de compreensão das coisas na linha da obra
anterior. A ideia é que quando perdemos a capacidade de pensar,
perdemos a capacidade de reivindicar.
38.Infocracia: digitalização e crise da democracia, de Byung ChulHan (Vozes, 2022). A obra descreve a substituição dos meios de
produção pelos meios informação como decisiva para ganhos de
poder, vigilância, controle e prognóstico de comportamentos
psicopolíticos. Ela segue a linha de sua obra anterior, Não coisas,
aprofundando as consequências da entrada na infosfera. Agora
temos informação, mas não conhecimento, participamos de
redes sociais, mas somos solitários, temos amigos, mas não nos
encontramos.
39.A máquina do caos, de Max Fisher (Todavia, 2023). Análise
da história e funcionamento das grandes empresas de tecnologia
responsáveis pelas redes sociais e o impacto que fazem em nossas
vidas, mostrando a exposição dos cidadãos a interesses e forças
contrárias a seus interesses.
Urbanismo e cidades
O tema das cidades foi tardio em minha trajetória, advindo da
experiência com a história de Porto Alegre e das suas lutas sociais,
daí o fato de que é desta cidade que se trata a relação seguinte.
Aqui reúno obras que auxiliam a entender o papel das cidades na
história e em seguida, obras sobre a capital:
J o r g e B a r c e l l o s | 155
40.A linguagem das cidades, de Deyan Sudjic (Gustavo Gili,
2019). O autor trabalha seis questões essenciais na definição de
uma cidade: o que é, como fazê-la, como mudá-la, como governala, suas ideias e suas multidões. Para o autor essas são as questões
que dão identidade a uma cidade, ao contrário do que propõem
os grandes empreendedores subordinam as necessidades da
identidade a sua transformação em fonte de renda do capital. A
cidade é algo com cultura própria e não um amontoado de
imóveis. Não há como dissociar a produção de identidade
histórica da destruição da cidade feita pelo capital, tema de meus
ensaios mais recentes.
41.História da cidade, de Leonardo Benévolo (Perspectiva,
2019). É a obra clássica sobre a história das cidades, estudo de
referência porque mostra sua relação com as mudanças do
sistema produtivo, seus efeitos na vida cotidiana das pessoas e a
passagem para a modernidade com o grande salto demográfico
que as caracteriza. Ricamente ilustrado, excelente fonte de
recursos para uso em sala de aula e como referência para ensaios
históricos.
42.Atlas das Cidades, de Paul Knox (Senac, 2016). A obra propõe
uma tipologia das cidades contemporâneas. Dividindo-as em
cidades fundacionais, verdes, inteligentes, imperiais, instantâneas,
transnacionais e das celebridades, cada capítulo analisa de cada
uma a estrutura física, econômica, social e política através de
textos, infográficos, mapas, quadros e tabelas para dar uma visão
completa dos padrões de desenvolvimento das cidades.
43.Política e arquitetura, de Josep Maria Montaner e Zaida Muxi
(Olhares, 2021). Montaner é um arquiteto crítico da sua
disciplina e aqui desenvolve os temas iniciados em Arquitetura e
156 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
Política (Gustavo Gili, 2014). Criticando as ameaças trazidas pelas
mudanças da dinâmica urbana sob a pressão do capital, discute
possibilidades habitacionais, urbanísticas e produção do bem
comum a partir de iniciativas locais, modelos participativos e
femininos, dando atenção ao meio ambiente.
44.Espelho das Cidades, de Henri-Pierre Jeudy (Casa da Palavra,
2005). Reúne dois textos do sociólogo francês que tratam das
causas e consequências da espetacularização da cidade.
Criticando os processos de patrimonialização e homogeneização
urbana que o capital produz sobre as cidades, critica a eliminação
das singularidades locais para sua adequação a um padrão
mundial imposto pelo capital multinacional, resgatando as
relações da cidade com seus moradores, esfera pública e meio
ambiente.
45.A frase urbana: ensaios sobre a cidade, de Jean-Christophe
Bailly (Bazar do Tempo, 2021). O autor reúne ensaios onde se
põe a escuta do espaço urbano como se ele fosse um livro.
Analisando suas ruas e edifícios, monumentos e esplanadas,
centros e periferias, de grandes e pequenas cidades, propõe uma
leitura do urbano a meia distância do museu e da poesia, numa
busca pela prosa das ruas de um lugar. A cidade é vista como o
espaço poético quando nos movemos sobre sua massa de signos,
personagens, quando sua prática corresponde a seu nome.
46.Arquitetura e Psiquê: um estudo psicanalítico de como os
edifícios impactam nossas vidas, de Lucy Huskinson (Perspectiva,
2021). Um contraponto original para a crítica do modelo de
expansão urbana das cidades onde a autora mostra que os
edifícios moldam nossa identidade, a maneira de sentir e
perceber de nós mesmos. Guia para a relação do nosso
J o r g e B a r c e l l o s | 157
inconsciente com os edifícios, critica os princípios utilitários de
função, eficiência, custo e impacto visual, servindo como arma de
combate a teoria arquitetônica sob o jugo neoliberal.
Porto Alegre
Se você pensa a sua cidade, você sempre terá um tema amplo
para sala de aula e para escrever. Eu comecei a pesquisar a cidade
como obrigação de oficio para ensinar alunos que visitavam a
Câmara Municipal sobre Porto Alegre. Daí foi um passo para
pensar não apenas a função política, mas os demais problemas
urbanos. Encontrei entre muitas, estas obras importantes neste
tema:
47.Porto Alegre, guia histórico, de Sérgio da Costa Franco
(Editora da Universidade,1998). Com quase mil verbetes, é a
principal obra de referência de Porto Alegre, com registro da
evolução dos bairros, serviços públicos, praças, ruas,
monumentos arquitetônicos, enchentes e epidemias, uma viagem
pela memória cotidiana da cidade.
48.Porto Alegre e sua evolução urbana, de Célia Ferraz de Souza
e Dóris Maria Müller (Editora da Universidade, 1997). Enquanto
Franco dá vida a cada fragmento da história urbana da capital,
esta obra é um notável guia da história da cidade porque oferece
um esquema de análise da sua evolução urbana. Dividindo em
etapas que vão da ocupação do território até sua industrialização
e metropolização, oferece um esquema rico em gráficos que
permite uma análise partir de fatores populacionais, econômicos,
políticos institucionais e administrativos.
49.Guia de Arquitetura de Porto Alegre, de Rodrigo Poltosi e
Wlademir Roman (Escritos, 2016). Descrevendo a história
158 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
arquitetônica da capital do período colonial, passando pela
arquitetura eclética, o estilo Art Déco a arquitetura modernista e
pós-modernista, a obra reúne 100 obras de arquitetura relevantes
da cidade. Da Praça da Alfandega à orla do Guaíba, passando por
Largos, solares, hospitais e mercados, é uma obra de notável
precisão e detalhe.
50.A cidade que devora malocas: habitação popular e o espaço
urbano de Porto Alegre (1843-1973), de Álvaro Klafke, Rodrigo
Weiner e Vinicius Furini. Obra indispensável para qualquer
ensaista interessado no tema da desigualdade na capital. Os
autores mostram como o capital e o estado uniram forças para
realizar uma política de remoções de vilas de malocas e a força
das comunidades na luta pela sobrevivência através de suas
diversas mudanças de lugar ao longo do tempo.
51.A Câmara na Cidade: retrato de um poder público no século
XIX no município de Porto Alegre, de Jorge Barcellos, vulgo eu
mesmo (Câmara Municipal, 2022, esgotado, disponível em
https://abre.ai/kWiM. Aqui, retomo a obra de Sérgio da Costa
Franco através de textos e a novidade é a compilação de imagens
raras do século XIX que falam da administração da cidade até o
final do período imperial e a contribuição da Câmara Municipal
na construção da paisagem da cidade.
52.Prefeitos de Porto Alegre: cotidiano e administração da capital
gaúcha entre 1889 e 2012, de Antônio Augusto Mayer dos Santos
(Verbo Jurídico, 2012). Um importante apanhado cronológico
que dá continuidade a obra anterior abordando a história da
cidade a partir da República, com a instalação dos intendentes e
prefeitos que passam a assumir, no lugar do poder legislativo, a
J o r g e B a r c e l l o s | 159
função de governar a cidade a partir da era contemporânea, sua
cronologia e as principais realizações.
Educação
Como os demais tópicos acima, existem inúmeras obras sobre
educação. De Didática de Ensino à Psicologia da Aprendizagem,
professores acostumam-se a ler as necessárias para ministrar seus
conteúdos de ensino. Eu acredito que a politização da educação
é importante, assim como transformar o ensino e sua escrita em
espaço de crítica e denúncia de como é produzida a desigualdade,
daí a seleção das seguintes obras:
Christian Laval. Divulgação Editora Elefante
53.A escola não é uma empresa: neoliberalismo em ataque ao
ensino público, de Christian Laval (Planta, 2004). A obra mostra
as pressões que a escola sofre para se adequar ao neoliberalismo.
Sua crítica a escola como produtora de capital humano, a
160 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
privatização do ensino que influência conteúdos, as relações de
poder e procedimentos mostram que o neoliberalismo visa
transformar a escola em uma espécie canteiro de obras do
mercado. A crítica do autor é a mercantilização geral do
conhecimento e aprendizagem que reforça desigualdades, frente
a quais os professores precisam fazer resistência e lutas coletivas.
54.O capital para educadores: a prender e ensinar com gosto a
teoria crítica do valor, de Vitor Henrique Paro (Expressão
Popular, 2022). Para o autor, a teoria do valor de Marx é tanto
um conteúdo de ensino como uma base de conhecimento para
os professores porque explica como a riqueza é produzida pelo
trabalhador e expropriada pela classe capitalista. É, portanto, um
instrumento que faz da educação um meio de combater a
desigualdade.
55.O fim da educação: redefinindo o valor da escola, de Neil
Postman (Graphia, 2002). Aqui o autor critica a devoção social à
tecnologia, ao utilitarismo e ao consumo para revalorizar a
instituição escolar, a sala de aula, a escola pública, gratuita e
humanista nos tempos da razão e da hegemonia da informação
via internet.
56.Dialogando sobre crianças e adolescentes, de Françoise Dolto
(Papirus, 1989). A autora expõe casos de várias categorias
profissionais ligados a crianças e adolescentes que vivem em
instituições. Suas análises de casos de psicose infanto-juvenil
enumeram casos de adoção, perversão, puberdade que servem
para estimular formas do diálogo e escuta do desejo da criança e
como responder a isso.
J o r g e B a r c e l l o s | 161
57.Por dentro da Escola Pública, de Vitor Henrique Paro (Xamã,
1995). Um clássico da etnografia escolar, levantamento de
inúmeros aspectos da escola pública brasileira que, mesmo sem
a análise da presença da internet, ainda descreve as dificuldades
de professores e alunos no dia a dia.
58.A Pedagogia de Eros: territórios, vida cotidiana e saber nos
projetos de implantação da Educação Sexual em Porto Alegre
(1990), de Jorge Barcellos (se eu não me divulgar, quem o fará?).
A partir de implantação de programas de educação sexual, este
livro, produto de minha dissertação de mestrado, exemplifica a
nível local a análise de Paro: as escolas de Porto Alegre por dentro
e no seu dia a dia a partir de um apoio teórico original.
Ferramentas para revolução
Ao longo de minha prática de escritor, encontrei inúmeros livros
que inspiram posições de ataque ao capital, posição da qual não
abro mão. Engajamento e luta alimentam o desejo de ensinar;
queremos transformar o mundo transformando o modo de ver
de nossos alunos, e é sobre estas experiências que escrevemos.
Algumas indicações:
59.Bela baderna: ferramentas para revolução, de Andrew Boyd e
Dave Mitchel. Segundo Judith Malina, fundador do The Living
Theater, a obra que deveria ser obrigatória em todas as salas de
aula. O motivo é que ela é a reunião de 41 ferramentas de
resistência contra o capital, que são também ações estéticas para
a subversão social que vão da ação direta à greve geral e ocupação.
162 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
Capa de Bela Baderna. Fonte: Divulgação.
60.Novo manifesto dos economistas aterrados: 15 caminhos para
outra economia, de autoria do Coletivo de Animação dos
Economistas Aterrados (Actual, s/d). Reúne artigos descrevendo
quinze formas diferentes de construção de outras formas de
organização econômica que incluem desde a proteção da ecologia
à valorização da igualdade. É uma obra que crítica os efeitos do
neoliberalismo e a desigualdade que produz em um programa de
ação que diminui os efeitos da busca obsessiva pelo lucro.
J o r g e B a r c e l l o s | 163
61.Ruptura, do Coletivo Centelha (N-1-Edições, 2019). É um
manifesto de inspiração anarquista que crítica do fascismo as
formas de democracia aliadas do mercado. Seu apelo
revolucionário vincula práxis de mudança nacionais e
internacionais em uma espécie de cartilha que põe lado a lado
cidadãos e revolucionários.
62.Aos nossos amigos: crise e insurreição, do Coletivo Invisível
(N-1 Edições, 2016), também é outro manifesto na mesma linha
do Coletivo Centelha, que aprofunda mais os temas do
diagnóstico do fim de mundo capitalista numa espécie de
proposta planetária de diagnóstico e recusa do capitalismo
hegemônico.
63.Como mudar mundo, de John-Paul Flintoff (Objetiva, 2012).
Obra integrante da coleção Scholl of Life que propõe, ainda que
de forma moderada, ao contrário dos manifestos dos coletivos
anteriores, mudanças no mundo a partir de ações individuais,
considerando objetivos e métodos mais próximos do cidadão
comum em direção a uma sociedade melhor.
64.Como ser anticapitalista no século XXI, de Erik Olin Wright
(Boitempo, 2019). Síntese das linhas de pesquisa do autor que
combina sua análise crítica do capitalismo e suas reflexões sobre
suas alternativas. O autor busca exemplos do que seria a “utopia
real”, processo de redefinição das transformações do capitalismo
e construção de práticas de experimentos socialistas.
65.Adeus ao capitalismo: autonomia, sociedade do bem viver e
multiplicidade dos mundos, de Jérôme Baschet (Autonomia
Literária, 2021). Crítico da adesão ao capitalismo, o autor pensa
a possibilidade de um novo mundo a partir das experiências
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zapatistas, das propostas de bem viver de comunidades
autônomas e experiências de autogestão.
Outras línguas
Confesso que eu sou um fracasso em dominar idiomas. Sou um
monolinguista, não falo fluentemente nenhum outro idioma além
do português. Acho que porque não tive oportunidade de fazer
na mocidade tais cursos, por absoluta falta de recursos e, depois
de velho, não tenho mais paciência. Mas sei da importância de
acompanhar a produção internacional, e se não tenho fluência,
graças as leituras que faço entendo razoavelmente o espanhol e o
francês. Felizmente, com os tradutores oferecidos pela internet, o
problema de línguas reduziu-se. Um simples clic e as páginas de
um livro podem ser traduzidas automaticamente. Acho que isso
ainda vai cobrar seu preço, mas aproveito mesmo assim. Indico
aqui alguns livros sem tradução no português que julgo
interessantes. São eles:
66.La fuerte razón para estar juntos, de Peter Sloterdijk (Godot,
2022). Para responder a pergunta de como evitar que os homens
destruam a sociedade, que é também a questão de como nós
mantemos como sociedade, o filósofo alemão propõe a conexão
dos corpos individuais aos sociais através pelo conceito de paixão.
67.La postdata comunista, de Boris Groys (Cruce, 2015). O autor
atualiza a proposta comunista: aponta que hoje sua dimensão
política se efetiva pelo domínio da linguagem, diferente da
economia onde prevalece o domínio das cifras. Por isso, somente
J o r g e B a r c e l l o s | 165
quando encontrarmos o nexo entre as novas formas de linguagem
que o pósdata possibilita, poderemos estabelecer um caminho
para uma sociedade igualitária.
68.L’Université du desastre, de Paul Virilo (Galilée, 2007). Num
mundo onde o capital explora o campo dos limites da inteligência
e da ética, Virilio faz a crítica da ciência a serviço do capital para
afirmar que até ele, o conhecimento, deve ter um limite ou
estaremos diante do acidente original, o do conhecimento, de que
fala o autor.
69.Future Cities: architecture and the imagination, de Paul
Dobraszczyk (Reaktion Books, 2019). Um panorama das cidades
imaginadas pelo cinema e pela literatura, cidades do futuro,
cidades que foram especuladas por autores e pensadores, seja no
fundo do mar ou nas nuvens e que permitem perceber que
poderíamos ter cidades melhores.
70. The Metropolis in Latin América (1830-1930): cityscapes,
photographs and debates, de Idurre Alonso e Maristella Casciato
(Getty Institute, 2021). Uma obra que realiza, de forma
comparativa, uma análise da expansão urbana em seis capitais:
Havana, Cidade do México, Rio de Janeiro, Buenos Aires,
Santiago do Chile e Lima. Descrevendo seus aspectos
sociopolíticos e urbanos, contém, além disso, inúmeras
fotografias de época.
Como afirma Umberto Eco em seu A vertigem das listas (Record,
2010), listar livros é apenas mais uma das formas de organizar
informação, mas também visões de mundo. Segundo ele, a
questão chave é sempre o critério de sua organização. Esta não é
uma lista de obras para pesquisadores; é uma lista de obras que
166 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
julgo úteis para professores em geral escreverem ensaios em geral;
servirá também para ministrar aulas se o professor tiver a
disposição de oferecer uma visão ampliada de seus conteúdos.
Seja qual for a disciplina, como diz Eco, o sonho é sempre
conhecer a essência das coisas. A lista apresentada aqui é
incompleta, mas julgo que tem algumas obras significativas e,
assim como Eco as vê expressando os sentidos de cada época,
minha lista revela o modo como vejo o lugar do professor e de
seus ensaios em nossa época. Isso deve nos fazer ao menos
compreender as características e contradições do nosso mundo
porque é nele que temos a missão de ensinar aos nossos alunos a
lutarem por um mundo melhor.
7
Enfim, o sumário
J o r g e B a r c e l l o s | 169
Terminar pelo começo
Um livro sobre a escrita de ensaios tem também o objetivo de
levar professores-autores a construírem seus livros coletivamente.
Aqui, o ensaio é o caminho mais leve e divertido de fazê-lo: não
exige o tempo que um mestrado ou doutorado exigem para sua
realização; permitem que escreva aproveitando o tempo que
passa; resultam em textos de autoria livre, despretensiosa, mas
que, ao final, quando reunidos sob o formato de livro, se tornam
interessantes.
A última parte que um coletivo de professores-autores escreve de
um livro seu é o sumário. Em Índice, uma história do: uma
aventura livresca, dos manuscritos medievais à era digital
(Fósforo, 2021), o professor de inglês Dennis Duncan narra a
história da descoberta e construção do índice ao longo da história
da produção de livros. Ainda que sua obra se dedique mais ao
índice de assuntos propriamente dito, aquele que vem ao final da
obra, suas anotações repercutem sobre o sumário. Ele mostra que
tais objetos não tem apenas uma história ampla, como também
foram tema da escrita de vários escritores como Virgínia Woolf,
Ítalo Calvino e Vladimir Nabokov “é a história de nossa crescente
premência de acessar informações com velocidade e de uma
premência paralela de ter os conteúdos dos livros como unidades
de conhecimento divisíveis, distintas e passíveis de serem fruídas
individualmente”, diz o autor (Duncan, p.11).
É importante dizer que o que faço da obra de Duncan é uma
adaptação, uma leitura particular, já que o seu tema geral é o
índice remissivo. Ainda que seja também chamado de índice,
170 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
como o sumário que é a seção inicial dos livros, tema deste último
capítulo, o próprio tradutor alerta na nota à edição brasileira que
a diferença está no fato de que, em inglês, sumário ser o
equivalente a table of contents ou somente contents. Isto é
importante pois o meu critério é, justamente em Duncan,
encontrar os conceitos que fazem com que capítulos podem ser
indexados em um sumário.
O sumário parece ser algo simples. Uma vez escritos vários
ensaios, basta lista-los e paginá-los. Entretanto não é bem assim.
Duncan lembra que o objetivo de um sumário é “encontrar o que
se busca de maneira fácil e rápida” (Duncan, p.11). Tanto o
índice remissivo final quanto o sumário tradicional inicial estão
integrados aos hábitos de quem escreve livros. Professoresautores que organizam obras coletivas sabem que sua autoria será
respeitada no sumário. Quando auxilio grupo de professores a
organizarem seus livros, meu objetivo é que o sumário revele a
organicidade da obra, o que significa que apresenta os ensaios
com uma ordem tipo começo-meio-fim. Quanto ao índice
remissivo, eu o deixo de lado por...preguiça! Eu levaria tempo e
não acredito que meu leitor o usaria simplesmente porque o
ensaio já é um texto relativamente curto; mesmo quando os reúno
em livros, opto por não fazer. Poucas vezes o utilizei, exceto
quando estava diante de um tema muito específico em pesquisas.
Seria um serviço que contrataria caso optasse por uma publicação
por uma casa editorial? Com certeza. Mas acredito encontrar o
critério e as palavras chaves e indica-las como subcapítulos me
parece mais produtivo para constar de um sumário. Duncan nos
mostra que o dispositivo do sumário como o índice remissivo tem
uma história; acredito que nas obras organizadas por coletivos de
professores também. Ele revela a ordem pela qual os professores
J o r g e B a r c e l l o s | 171
encontraram e desenvolveram seu tema. É sempre preferível
organizar nele os temas dedutivamente, do maior e mais
abrangente para o mais específico, ainda que haja situações em
que isso nem sempre seja possível. No mundo da tecnologia online, onde trabalhos deste tipo são disponibilizados na internet,
que também, lembra Duncan, é outra forma de índice, o sumário
é uma ferramenta importante para indexação e localização online de temas e capítulos de obras.
O sumário como produto da evolução da escrita
Quando olhamos o sumário de um livro, não estamos olhando o
livro, mas o resumo que o autor ou coletivo de autores
organizaram em sua obra. Coletivos de professores podem
acrescentar ou retirar artigos de seu projeto inicial; eles não
sabem, com certeza, o título que cada integrante do coletivo de
professores colocará em seu artigo; eles o fazem, normalmente,
com diferentes estilos. Cabe ao consultor ou assessor de grupos
de professores procurar a organicidade não apenas do conjunto
de artigos, mas de seu sumário. Nesse sentido, cabe-lhe fazer
sugestões que harmonizem a criação de um sumário integro e
consistente. O sumário desperta o interesse do leitor: ele vai
primeiro a contracapa e às orelhas do livro buscar informação. Se
o que estiver escrito ali lhe interessar, ele parte para o sumário.
Só então irá tomar a decisão de comprar ou ler uma obra ou não.
Por isso minha luta contra o maldito hábito de conservar nas
livrarias as obras embaladas. O plástico de polietileno é um
inimigo do leitor. Ele afasta quem quer ler do conteúdo
172 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
discriminado do livro. Eu acredito que eles foram inventados para
atiçar nossa curiosidade em relação ao livro e garantir maiores
vendas para os livreiros, mas não cheguei a encontrar ainda
detalhes da história de sua invenção.
O plástico é um obstáculo, ele transforma o livro em objeto de
consumo e não de fruição. E para certos vendedores, produz o
constrangimento que faltava para garantir sua venda: “Posso tirar
o plástico” – pergunto. O vendedor olha como se dissesse: “vai
comprar?”. Você hesita em pedir. É que você está atrás da
resposta definitiva da decisão de aquisição ou leitura de livro que
é aquela que diz o que ele contém e que só o sumário revela.
O vendedor sabe que no limite da curiosidade, há o interessado
compra. Ele aposta que você irá comprar mesmo sem ver o
sumário. Mas se você for como eu, sem dinheiro, cada aquisição
conta. Você precisa rasgar aquela maldita capa plástica como se
disso dependesse sua vida.
Às vezes, nos grandes megastores de livros, como a Saraiva ou a
Cultura, eles são amplos o suficiente para você procurar um lugar
sem câmeras e praticar o seu crime: tirar a capa sem autorização,
colocá-la discretamente no lixo junto ao leitor de barras, mas tudo
isso ainda é parte de uma cultura de consumo de livros que eu
nego.
O sumário como arquitetura
J o r g e B a r c e l l o s | 173
O sumário é a arquitetura do livro. Assim como uma casa precisa
de pilares que a estruturem, o sumário mostra as bases em que se
estrutura um livro. Professores-autores que fazem ensaios fazem
pilares diversos; eu defendo que uma casa não pode ter pilares
diferentes como um livro não admite artigos diferentes. Não
estou falando de conteúdos, bem entendido, estou falando de
forma. Insisti nos capítulos anteriores que o que se busca no
conjunto de ensaios de professores-autores é uma unidade
metodológica: a comum estruturação de objetivos e métodos, o
limite razoável de páginas entre si, a fundamentação bibliográfica,
etc. O aspecto aqui importante para a criação do sumário é que
cada artigo em especial tenha uma consonância entre e com os
demais.
Dennis Duncan. Divulgação Editora Fósforo.
Você não pode colocar no sumário um título de artigo com três
linhas de texto, o que significa que seu autor preferiu determinálo pelo objeto, com um artigo titulado por uma palavra apenas, o
174 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
que revela que seu autor preferiu um conceito para sua definição.
Aqui, na minha visão, a metodologia de denominação importa:
ou os títulos definem um objeto ou definem um conceito. Isso é
uniformizar, tarefa que cabe ao consultor. O objetivo é colaborar
para que o leitor tenha uma visão orgânica da obra, caso
contrário, a fragmentariedade dos títulos de um sumário
fatalmente o afastará da obra. Mas há editoras que não estão nem
aí para este critério como a Editora N-1. Seus dois volumes
publicados sobre a pandemia reúnem artigos diversos autores e
não segue nenhum critério em seu sumário. Esta é uma editora
bastante adiante em termos editorais. Tranquilo, esta é
praticamente a regra geral.
Quanto mais obras coletivas um conjunto de professores fizer,
mais compreenderá o significado do papel da titulação coletiva
para construção de um livro. Duncan lembra que a evolução do
sumário dependeu do surgimento das universidades, das
facilidades de impressão, da filologia e chega até a incluir a
computação e a inteligência artificial na sua criação. Mas ele
destaca que sempre compete a um ser humano fazer a mediação
do autor e do público. Duncan se refere aos índices finais e
remissivos como os que dão mais trabalho para fazer, mas diz que
são também os que mais visibilidade oferecem de uma obra:
indexar como sumarizar é fazer um mapa “É a lista que nos diz
onde as coisas estão” (Duncan, p. 14).
Ele é uma planta que nos dá a organização da obra “o sumário
fornece uma visão geral da estrutura de uma obra: segue a ordem
do texto, revelando sua arquitetura. Podemos passar o olho num
sumário e mais ou menos deduzir o tema geral do volume.
Portanto, um sumário é, até certo ponto, independentemente da
J o r g e B a r c e l l o s | 175
plataforma. Oferece pinceladas gerais até no caso de uma obra
composta de uma série de pergaminhos” (Duncan, p. 15).
Imagine que pergaminhos a que se refere o autor são os ensaios
e você terá uma atualização do que diz Duncan.
Diferente de Duncan, John Truby, em Anatomia da história: 22
passos para dominar a arte de criar histórias (Seiva, 2024) nos
fornece insights interessantes para refletirmos como organizar
sumários ao nos descrever os movimentos como contamos
histórias. É que da mesma forma que o autor entende a natureza
da história como um “tipo de sequência”, o sumário também é.
Seu didatismo permite entender o que ele entende como tipos.
Ensaios é um gênero não literário, é claro. Mas eu entendo que
existem similaridades com a literatura pois contamos através deles
uma história. Ele afirma que os contadores de histórias possuem
alguns padrões narrativos onde o linear e o explosivo são os
pontos extremos de uma cadeia de estruturas. Eu derivo cinco
sumários específicos a partir dos tipos de histórias que ele aponta.
Tipos de sumário
O primeiro, o da história linear, para mim tem seu equivalente
no sumário linear. Enquanto na literatura, a história linear
acompanha um personagem do início ao fim, no sumário linear
os autores descrevem um tema em etapas progressivas. A maioria
das teses e dissertações é linear como os filmes de Hollywood.
Meu doutoramento originou o livro Educação e Poder Legislativo
(Clube dos Autores, 2022) que tem um único tema: a produção
legislativa em educação. Seu sumário é linear porque vai do
176 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
macro ao micro, da história geral do poder legislativo às
proposições de educação. Meu sumário expressa essa lógica
linear. Essa é a forma mais orgânica de apresentação de
conteúdos, ainda que não a única. É a mais fácil para obter
aprovação de trabalhos acadêmicos também porque a inovação
está longe de ser um consenso nas bancas de avaliação,
normalmente conservadoras (exceto aquelas que se orientam por
um paradigma pós-modernista, o que é raro).
O segundo, o da história sinuosa, para mim corresponde a um
sumário sinuoso “a história sinuosa faz um trajeto serpenteante
sem direção aparente. Na natureza o formato sinuoso é
encontrado em rios, cobras e no cérebro” (Truby, p. 22). O autor
está pensando nas obras literárias como as histórias de Charles
Dickens (1812-1870), como David Copperfield, que assume a
forma sinuosa. Eu penso nas obras filosóficas de Slavoj Zizek
como O Sujeito Incômodo: o centro ausente da ontologia política
(Relógio d’Agua, 2009).
Na contracapa já há o alerta: “depois de uma primeira parte mais
densa” (ops!) a obra quer tratar do sujeito cartesiano. Mas faz isso
com a apresentação de um sumário que pouco entendimento
deixa para o leitor. Para se ter uma ideia, a obra é dividida em
três partes: a primeira, é intitulada “A noite do mundo”; a segunda
“A Universalidade dividida” e a terceira “Da sujeição à destituição
subjetiva”. Cada parte tem uma organização que parece ser
sinuosa: o que querem dizer capítulos como “O Impasse da
Imaginação Transcendental” ou “A política da verdade”, ou ainda
“(Des) ligações apaixonadas”, ou por fim “Judith Butler como
Leitora de Freud”?
J o r g e B a r c e l l o s | 177
Um sumário assim organizado mostra a sinuosidade do
pensamento de Zizek. Mesmo meu livro mais recente
Neoliberais não merecem lágrimas (Clube dos Autores, 2024), foi
feito a partir de ensaios cujos títulos parecem nada a ter relação
um com o outro, mas cuja organização em capítulos busca dar
uma unidade. No capítulo segundo “Nós somos insetos” seguese a “Acidente ou Sabotagem” e vem antes de “A meteorologia
como campo de luta social”. Dá para ver alguma unidade nisso?
Não. Pois é..., o sumário dá, com os temas em que os agrupo.
Trabalhar a partir de tema individuais de ensaios quando os
usamos para fazer livros é algo sinuoso. Isso ocorre quando
reunimos artigos de origem diversa em uma mesma obra apenas
por seu título. Você pode mantê-los ou adaptar para uma nova
obra: manter preserva sua história, a origem dos textos; adaptar
preserva o leitor final que lê sua obra. É sempre uma opção.
O terceiro, o da história em espiral, para mim equivale a um
sumário em espiral. A ideia de um caminho circular que vai em
direção ao centro, imitando um ciclone é presente em histórias
como Um corpo que cai, diz Truby. Ele difere-se do linear por
aprofundar o tema de uma forma diferente e original. A ideia é
que a história explora níveis cada vez mais profundos de um
mesmo tema.
Quando leio sua definição, imediatamente me vem à mente a
obra de Pierre Bourdieu, Sobre o Estado (Cia das Letras, 2014).
Ela é uma obra sobre a natureza do estado moderno e sua
constituição e entendo que sua forma em espiral advém do fato
de que a obra reúne as aulas ministradas por Bourdieu no Collège
de France entre 1989 e 1992. Isso levou o editor a ter de dar um
título geral a medida em que as aulas são apresentadas no livro,
178 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
como “Curso de 18 de janeiro de 1990”, “Curso de 25 de janeiro
de 1990”, formas como são listadas em seu sumário os conteúdos,
o que lembraria em muito o sumário linear.
Pierre Bourdieu. Reproduzido de Wikipédia.
Entretanto, vemos o aprofundamento quando cada capítulo é
desdobrado no sumário e, entendo que isso é produto, como
afirma o editor, do fato de que as próprias aulas do livro são
também produto do entrelaçamento dos escritos, comentários
orais, reflexões improvisadas que “mostram que suas aulas não
podem ser reduzidas apenas às versões escritas que ele deixou,
pois o desenrolar desses cursos podia assumir formas imprevistas,
dependendo das reações que ele captava no auditório”
(Bourdieu, p. 15).
J o r g e B a r c e l l o s | 179
Este é um tipo de sumário de grande complexidade. Eu mesmo
não consegui realizá-lo plenamente em minhas obras. Acredito
que alguns dos livros que escrevi tenham o formato de espiral
apenas nas unidades de seus capítulos. Em Saber e Moralidade:
o discurso médico higienista sobre a mulher, a criança e as
doenças do sexo em Porto Alegre (1890-1940), dividi a análise
em dois capítulos principais que suponho seu desenvolvimento
possa ser considerado próximo da ideia de espiral, já que, cada
um aprofunda o tema, seja da história da sexualidade, seja das
formas de sua expressão. Meu livro O Paradigma Estético:
ensaios de historiografia, teoria e pós-modernismo (Clube dos
Autores: 2021) encarna a ideia de espiral apenas no capítulo
primeiro, onde sigo o raciocínio de aprofundar a historiografia
geral e latino-americana, mas é preciso dizer que os demais
capítulos seguem a lógica de apresentação linear. Então, eu não
sou um bom exemplo dos modelos de sumário que desejo
indicar.
O quarto, o da história ramificada, entendo que corresponde ao
sumário ramificado. Truby aponta histórias a partir de um
sistema de capítulos. Originados de alguns pontos de uma ideia
central, eles se desenvolvem em unidades cada vez menores. Ele
exemplifica com o modelo de galhos de árvores e dá como
exemplo As viagens de Gulliver como estrutura ramificada. Aqui,
a proposta é mais adequada à literatura do que a não-ficção. A
estrutura da não- ficção termina por reduzir, a partir de seu
modelo lógico, as opções de desenvolvimento. É por isso que
modelos ramificados podem ser vistos com muitas similaridades
com o linear. Na minha visão, as obras de Paul Virilio seguem
esse modelo. Isso porque parte de sua obra é feita de entrevistas
célebres onde apresenta uma síntese de suas ideias e daí, no
180 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
modelo de entrevista, a ramificação é uma opção para o
entrevistador. Ele parte de um capítulo e segue adiante. É o caso
de obras como Guerra Fria (Brasiliense, 1984) e Amanhecer
Crepuscular (FCE, 2002), onde Virilio é entrevistado e os
capítulos terminam por reproduzirem a discussão e depois partir
de outro tema no seguinte. A obra que escrevi que mais se
aproxima deste modo de escrita foi A História da Paixão (Clube
dos Autores, 2021). Por ser uma obra de história, o corte linear
predomina. Entretanto, cada época analisada, da antiguidade aos
tempos atuais tem um conceito ou “ramo” explicativo diferente
do anterior.
A história do sumário
Entendo que esta tipologia de Truby completa a visão de Duncan
pois enquanto o primeiro oferece referências para uma tipologia
de sumários, o segundo avança no retrospecto histórico. Ele diz
que um dos primeiros autores a fazer sumários foi Plinio, o Velho
(23 d.c -79 d.c). O grande naturalista romano dedicou sua obraprima História Natural ao imperador Tito onde em resumo diz
“porque você é tão importante e ocupado, sei que não poderá ler
tudo. Então anexei um prático sumário que lhe permitirá
consultar o que está sendo oferecido e escolher os capítulos de
seu interesse” (Duncan, p. 16). Esse sumário é, assim, diferente
do próprio índice da obra: aqui Plinio enumera, por exemplo, as
menções feitas à Nero em toda a obra. A diferença é que,
enquanto o sumário se concentra no leitor, em facilitar sua leitura,
o índice remissivo se concentra na obra. Isso fica claro no
J o r g e B a r c e l l o s | 181
exemplo irônico dado por Duncan. Ele relata que, quando dava
aulas de literatura inglesa e pedia a leitura de uma página de uma
obra, logo os alunos o questionavam em que tipo de edição, já
que obras editadas em períodos diferentes tinham paginação
diferente e sempre alguém perguntava o “capítulo” a que se
referia, o que mostra a importância do sumário para localização
de um leitor.
A última proposta de Truby é a história explosiva, que
corresponderia ao sumário explosivo. É a ideia de história de
“múltiplos caminhos”, que teria na imagem do dente de leão sua
expressão. Mas ele mesmo afirma que “não se pode mostrar uma
série de elementos de uma vez, porque é necessário contar uma
coisa depois da outra. Mas você pode criar a ilusão de
simultaneidade” que no cinema é feito com cenas alternadas, o
que implica numa” explicação comparativa para os
acontecimentos” (Truby, p. 24). O autor exemplifica com o filme
Loucuras de verão. Não faço ideia de um livro assim, mas o que
mais próximo imagino esteja dessa ideia é a obra de Cristiano
Bastos e Rafael Cony 100 grandes álbuns do rock gaúcho (Nova
Carne Editora,2023). Ele mistura uma coleção de disco e artigos,
cruza referências. Ele explode em seu tema. Meu livro mais
próximo dessa ideia, A Câmara na Cidade, tem de fato múltiplos
caminhos que são as ruas e logradouros que descreve, o que é,
em si, irônico. Ruas, caminhos, entende?
É curioso que chame a atenção de Duncan o fato de que a leitura
de livros em dispositivos como “Kindle e Ipad, sem a numeração
presente no sumário, sugira o seu fim. Você agora utiliza o
localizador da plataforma ou site e pronto. Não tem necessidade
do sumário. Roney Cytrynowicz em A colher, o martelo, a roda,
182 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
a tesoura e... o livro (disponível em https://abre.ai/k3bY) inicia
seu ensaio com uma passagem do escritor Umberto Eco que diz
que “o livro é como a colher, o martelo, a roda ou a tesoura. Uma
vez inventados, não podem ser aprimorados. Você não pode
fazer uma colher melhor que uma colher. Designers tentam
melhorar, por exemplo, o saca-rolhas, com sucessos bem
modestos, e, por sinal, a maioria nem funciona direito. O livro
venceu seus desafios e não vemos como, para o mesmo uso,
poderíamos fazer algo melhor que o próprio livro. Talvez ele
evolua em seus componentes, talvez as páginas não sejam mais de
papel. Mas ele permanecerá o que é.” A citação é extraída do
capítulo “O livro não morrerá” da obra Não contem com o fim
do livro (Record, 2010) e é um argumento importante para a
preservação do sumário pois, mesmo com os avanços da
tecnologia, ainda será necessário para leitura.
O futuro do sumário
A razão é que, nos termos de Eco, a pesquisa por buscadores não
substituirá o sumário, pois o livro digital é apenas uma evolução
tecnológica do livro real “das duas uma: ou o livro permanecerá
o suporte da leitura, ou existirá alguma coisa similar ao que o livro
nunca deixou de ser, mesmo antes da invenção da tipografia. As
variações em torno do objeto livro não modificaram sua função,
nem sua sintaxe, em mais de quinhentos anos.” Quer dizer, não
devemos imaginar o fim do sumário junto com o suposto fim do
livro.
J o r g e B a r c e l l o s | 183
Umberto Eco. Divulgação UFMG.
A internet nos faz voltar a era alfabética, então sumários são
importantes “passe duas horas lendo um romance em seu
computador e seus olhos viram bolas de tênis”, diz Eco, ao que,
seu interlocutor, Carrière acrescenta: “Não podemos utilizar um
computador se não soubermos escrever e ler. E, inclusive, de
uma maneira mais complexa do que antigamente, pois
integramos novos signos, novas chaves. Nosso alfabeto expandiuse. É cada vez mais difícil aprender a ler.” Não existe fim do livro,
como não existe fim do sumário, eu concluo. Cytrynowicz prefere
a saída irônica de Eco, de imaginar no futuro antes o fim da
internet do que o fim do livro, como um dia foram os dirigíveis
“talvez seja o caso de parar de anunciar o fim do livro e difundir
o alarme sobre a ameaça do fim da Internet. Quem sabe assim o
livro continue a sobreviver em paz”, finaliza Cytrynowicz.
184 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
Já a crítica de Duncan ao uso de buscadores em obras publicadas
no kindle em contraposição ao uso de sumário em livros está no
fato de que o primeiro impõe um modo de leitura e aprendizado
que suplanta o uso do segundo e traz males catastróficos “[ele]
está alterando nosso cérebro, reduzindo nossa capacidade de
atenção e erodindo nossa memória. Esta é a era da distração e a
culpa é da ferramenta de busca. O Google está nos
emburrecendo” diz o autor. Aqui, minha tese é que o sumário
compartilha com o índice remissivo de Duncan mais do que o
próprio autor imagina. A pratica de sumarizar os livros é uma
resposta para a forma de como o produzimos ao longo do tempo
“cada mudança no ambiente social e tecnológico produziu um
efeito na evolução do que significa ler”, diz o autor, um
pressuposto que tanto pode ser aplicado aos índices, como ele
prefere, como aos sumários, na minha interpretação. Nunca fiz
índices para meus trabalhos, ainda que desejasse, pelo imenso
trabalho que representam. A leitura atenta e a indicação da
repetição seriam mais trabalhosas do que a própria escrita do
livro. Entretanto, aprendi que capítulos podem ser subintitulados
e essa divisão compor interessantes sumários que localizam o
leitor.
Entretanto, o sumário não cumpre apenas um papel para o leitor.
Ele também auxilia o autor ao final de escrita de uma obra, levao a perceber se o encadeamento de temas que escolheu faz
sentido. Já alterei o título de subcapítulos e de capítulos que
escrevi observando a leitura geral de um sumário, para dar mais
sentido ao conjunto da organização de um livro. Mesmo ensaios
que não tinham divisão interna em subtemas ou subcapítulos,
mas, por sua extensão, eu os subdividia com o objetivo de
construir sumários mais explicativos. Então o sumário é uma
J o r g e B a r c e l l o s | 185
ferramenta a mais para ter a visão geral de um texto. O próprio
sumário reage aos objetivos da obra do autor: uma obra que tem
um tema específico leva o leitor perceber as etapas de
aprofundamento do tema; uma obra que tem um tema geral pode
oferecer um amplo leque de títulos, que respondem pelos
caminhos que seguiu o autor. Já apontei isso quando falei da
redação do ensaio. Sou um renascentista, primo pelo equilibro, e
não um pós-moderno que prime pela invenção. Ninguém é
perfeito.
O primeiro capítulo de Índice, uma história do é dedicado a
ordenação alfabética. Ela é uma das formas primárias de
organização dos índices, o capítulo final onde é referenciada uma
obra “se quisermos entendê-los, temos que mergulhar em sua
pré-história para ter noção de quão estranha e milagrosa a ordem
alfabética é de fato: uma ferramenta que a gente acha que sempre
existiu, mas que surgiu há 2 mil anos praticamente do nada; um
instrumento que usamos todos os dias” (Duncan, p. 32). O autor
não vai tão longe: ele pula para o século XX, quando no dia 10
de abril de 1917, no Grand Central Palace, a Sociedade dos
Artistas Independentes abriu as portas de sua primeira exposição
anual. A inovação: “as obras seriam apresentadas em ordem
alfabética, de acordo com o sobrenome dos artistas” (idem). O
que o autor quer dizer com isso? Que a ordem alfabética é um
ótimo nivelador, não tem nada implícito por detrás. Vejamos um
pouco melhor isso.
Sumários por ordem alfabética
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Duncan diz que, anos depois, se no campo das artes mostras
organizadas por ordem alfabética não emplacaram, pelo menos
os índices de livros sim. Isso não significa que a ordem alfabética
não seja possível para sumários. Eu sou o autor do verbete
Antibolsonarismo do Dicionário dos Antis: a cultura brasileira
em negativo, organizado por Carmela Grune e outros (Pontes,
2021). Sumários organizados em ordem alfabética estão em obras
de referência: o Dicionário de Politicas Públicas de Geraldo Di
Giovanni e Marco Aurelio Nogueira (Unesp, 2015) e o
Dicionário das Eleições, organizado por Claudio de Souza e
outros (Juruá, 2020) são exemplos típicos. São obras temáticas,
com artigos organizados sob a forma alfabética, e por isso são
obras de referência. O uso da forma alfabética de organização de
sumários, entretanto, não é exclusiva de dicionários: Alfabeto das
colisões: Filosofia prática em modo crônico, de Wladimir Safatle
(Ubu Editora, 2024) não segue uma ordenação típica alfabética,
ainda que as letras importem. Sua “escrita de colisões” mistura
as palavras, para as colocar como temas de ensaios que envolvem
política, ética, psicanálise, estética, filosofia, crítica cultural.
“Espécie de ensaísmo de pequenas formas”, encarna a ideia de
que a ordem alfabética não precisa ser necessariamente
...alfabética, pois a ordem das letras é uma convenção.
Não tive experiências com grupos de professores que se
propusessem a escrever obras no formato alfabético. A razão é
que para haver uma obra desta natureza, é necessária uma
organização. Quando Carmela Grune me propôs participar de
uma obra coletiva cujo tema era o negativo, ela deixou-me aberto
um leque de conceitos que poderia desenvolver. Eu as recusei,
pois a época estava mais dedicado a escrever críticas ao
bolsonarismo, que então estava em andamento. O verbete
J o r g e B a r c e l l o s | 187
antibolsonarismo foi proposto por mim e aceito. Ele ficou na
ordem alfabética, entre antibibliofilia e antibritanismo. Um
sumário alfabético faz parte de um projeto combinado. Ele
encontra no alfabeto uma referência, e por essa razão, também
encontra seus limites. O que ele ganha em profundidade perde
em organicidade. Cada artigo explora bem seu tema, sem
constituir um sistema. É o que faz um dicionário ser um
dicionário.
Há livros e autores que sequer usam a referência alfabética. Paul
Virilio é um deles. Em seu Estética da Desaparição (Contraponto,
2015), obra em que o autor explora os aspectos da atual
sociedade tecnologizada, o paradoxo da velocidade e inércia, as
transformações das experiências em comum provocadas pela
virtualização generalizada, bem como as formas de isolamento e
dispersão das teles e redes, quando olhamos o sumário o que
vemos? Apenas uma organização numérica: Capítulo 1, Capítulo
2, Capítulo 3 e Capítulo 4. Não sei se você já observou isto nas
plataformas de streaming como a Netflix. Seriados americanos,
regra geral, colocam um subtítulo em cada episódio. Na
temporada 8 da série Dr. House, último episódio da série, o de
número 22, é denominado “Todo mundo morre”. Mesmo após
150 episódios, ainda o último recebe um título próprio. Nos kdramas, ou dramas coreanos, ou ainda, “doramas” isso não é
comum. Em Pousando no Amor, o episódio 1 recebe o título
de...Episódio 1. Se imaginarmos que a lista de episódios de um
seriado é seu sumário – é assim que eles são apresentados nos
sites respectivos – então, o sumário da obra de Paul Virilio e a
organização dos k-dramas se equivalem. Não interessa o título,
vale a leitura ou assistir.
188 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
Isso não significa que tanto o livro quanto o seriado não tenham
um tema por capítulo. O que eles fazem é guardar o mistério para
o leitor, fazendo que ele ou leia o livro ou veja o episódio. A
introdução de Jonathan Crary de Estética da Desaparição, de
Paul Virilio, ainda que apresente os temas do livro, não chega a
afetar a proposta de um sumário limpo onde só se numera os
capítulos assim como as descrições que constam no resumo de
cada episódio do seriado coreano não tiram a necessidade de vêlos. Isso quer dizer que sumários estão aí para organizar para o
leitor a leitura, e só. E as vezes nem isso. Se for somente a ordem
em que devem ser lidos, que seja. Não dizer o que se trata o
conteúdo de cada capítulo no sumário é notável: eles indicam que
a experiência da leitura vem em primeiro lugar, que não devemos
ser rápidos ou objetivos quando se trata da leitura de um livro,
que devemos nos submeter a experiência. Seja da leitura ou da
visualização de um seriado. Ora, na sociedade pragmática em que
vivemos, onde a ideologia do rendimento é lei, isso é
revolucionário. Ela diz: “pare um pouco de ser pragmático. Nada
de ir só no que interessa. Um livro não é um trecho de twiter (digo
X). Livros foram feitos para serem. ..lidos”
A numeração das páginas
A numeração moderna de páginas de um ensaio ou livro pouco
mudou. Sabemos que a numeração começa na folha de rosto e
são feitas com algarismos arábicos. Mas por alguma razão as
páginas preliminares não são numeradas, nem as páginas que
iniciam capítulos, mas todas contadas para o sumário. Eu
J o r g e B a r c e l l o s | 189
confesso que até hoje não sei o porquê, além de ser uma regra da
ABNT. A numeração científica faz com que os números sejam
escritos no canto superior direito da folha. Você pode se quiser
alterar isso tudo, e é normal nas artes de livros mais
contemporâneos que isso ocorra: em meus livros, opto pelas
possibilidades do word que insere subtítulos a cada página com
numeração, intercalando à esquerda e direita o número.
Apenas uma vez ousei ultrapassar essa forma de numeração. Em
meu livro A Câmara na Cidade (2023), optei por deixar a
numeração apenas nas páginas pares, repetindo junto na página
par o número ímpar. Vi esse recurso em algum lugar e o achei
interessante, e apenas isso justificou que o imitasse para explorar.
Minha primeira edição de A impossibilidade do real: introdução
ao pensamento de Jean Baudrillard (Homo Plásticos, 2018), usou
190 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
a numeração ao final da página, intercalando ora a direita, ora a
esquerda, pois foi uma opção do editor. Minha primeira edição
de Educação e Poder Legislativo (Aedos Editora, 2014), seguiu a
mesma numeração, acrescentando meu nome ao número em
páginas intercaladas; minha primeira edição de O Tribunal de
Contas e a Educação Municipal (Fi Editora, 2017), utilizou a
numeração de páginas superior, como era de praxe de seu editor,
Lucas Margoni. Após, nas edições seguintes publicadas pelo
Clube dos Autores, desenvolvi meu próprio estilo de numeração.
Aprendi que a numeração é estilo, que não há regra própria e que
basta que lhe agrade para que seja uma boa notação.
Depois do sumário e da numeração, já estaríamos concluindo
este texto. Mas Duncan diz algo interessante que é o seguinte: “os
espaços em branco dos livros fazem parte de uma arte do livro”.
Ele lembra a passagem do romance Joseph Andrews, de 1742,
escrito por Henry Fielding Dickens (11849-1933) que inicia
descrevendo o segredo comercial da razão pela qual os escritores
dividirem suas obras em livros e capítulos “as quebras de capítulo
fornecem pontos de parada numa longa jornada: aqueles
pequenos espaços em branco entre os capítulos podem ser
considerados como um hotel de beira de estrada ou um posto de
serviço onde talvez [o leitor] pare para tomar um gole. Ao
persuadir os leitores a fazerem pausas em momentos prédeterminados, em vez de seguir uma leitura por conta própria, a
divisão em capítulos “evita que se estrague a beleza de um livro
ao dobrar suas folhas” (Duncan, p. 96). A conclusão do autor é
que os capítulos – como a numeração – servem para facilitar a
leitura e não a pesquisa, como fazem o índice e o sumário. Não
se preocupe em deixar espaços ao final dos capítulos ou
subcapítulos. Você pode inclusive incluir ilustrações. Isso
J o r g e B a r c e l l o s | 191
aumentará o número de páginas? Sim. Aumentará o preço do
livro? Com certeza. Influenciará a numeração? Certamente. Mas
oferecerá uma experiência de leitura melhor.
Ainda quanto a numeração. Duncan diz que numerar não é algo
fácil ao longo da história. Os problemas da numeração medieval
estavam no fato de que obras eram copiadas e nem sempre em
páginas eram do mesmo tamanho, o que afetava a distribuição do
texto e a numeração. O autor dá como exemplo o exemplar da
obra Polychronicon escrita pelo monge Ranulf Higden, de
Cheshire, cidade do norte da Inglaterra, no meio do século XIV.
Mesmo contendo a orientação de como o leitor deveria usar seu
sumário, ele dá errado. Duncan descobriu que estava com um
exemplar posterior, copiado, e, portanto, com erro de paginação.
Para o autor, o copista “ao que parece, não estava familiarizado
com a tecnologia do índice. Simplesmente transcreveu os
números como estavam. Uma cópia perfeita – mas não um índice
perfeito” (Duncan, p.100). Já tive problemas de numeração de
páginas na hora de diagramar. Simplesmente não conseguia
retirar o número do início de capítulos. Optei por criar capítulos
individuais e depois os agregar via programas como ilovepdf. A
numeração é mais fácil de resolver pelo word, que permite dar o
número de início de capítulo. Isso acontece por meu processo ser
de autoaprendizado, tipo tentativa e erro. Designers e editores
irão ir desses meus erros primários. Como se diz, sou um
cavaleiro solitário da publicação.
192 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
Ranulf Higden. Fonte: wikipedia.
Aspectos de design gráfico
J o r g e B a r c e l l o s | 193
É que numerar páginas também pode dar dor de cabeça quando
se trata de buscar o design moderno. O fato de que nunca
consegui intercalar páginas em branco com páginas numeradas
no word é um problema que qualquer designer resolve, mas com
o programa profissional. Se alguém souber, por favor, me diga
como fazer em word. Como o leitor observa, meus
conhecimentos de word são, como dá para notar, básicos. Meu
processo de criação gráfica é sempre por capítulos, onde
facilmente consigo tirar a página da primeira folha, o que é vital
para o design de uma obra dividida em capítulos. Então tenho de,
como um copista, organizar detalhadamente uma obra. Um texto
de dez capítulos tem dez arquivos. Cada um recebendo um
número próprio. Depois junto tudo. É gozado: você consegue
fazer uma arte profissional com Canva, o que permite embelezar
um livro. Você faz capas para cada capítulo, introduz imagens.
Mas uma coisa óbvia, quase infantil, tira você do sério, e você
precisa bolar estratégias para a numeração da página, para que
sempre fique em ordem. As primeiras obras que comecei a fazer
a numeração, isso deu muita dor de cabeça. Errava a numeração.
Era melhor em redação do que matemática. Depois consegui
acertar. É por isso que autores terceirizam a tarefa da
diagramação, ela dá trabalho. Professores-autores, com poucos
recursos, assumem a tarefa com os riscos que implicam: aprender
com os erros, noites sem dormir, etc.
Duncan afirma que foi a invenção da imprensa que possibilitou
que a numeração de páginas se universalizasse. O primeiro livro
publicado em inglês, Memória das histórias de Troia, de William
Caxton (1422-1491) introduziu a prensa e o comércio de livros
na Inglaterra e deu a base para a numeração de páginas: isso era
possível pela padronização da obra publicada “o número de
194 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
página se tornou a unidade de referência universal, o segundo
ingrediente básico – junto a ordem alfabética – de praticamente
qualquer índice dos últimos quinhentos anos” (Duncan, p. 105).
O que serve para índices também serve para o sumário, e entendo
até a adoção dos e-reader com suas telas que ajustam as páginas e
dispensam sua numeração. Mas qual a graça de um livro sem
numeração quando a arte está nos...detalhes? Olhe os livros da
Coleção Exit, da Editora Ubu. Eles fazem uma arte especial para
incluir a numeração no interior do texto do texto ou da mancha
impressa. Aquele recuo para inserir a numeração é um detalhe,
eu sei, mas acrescenta certo charme ao livro porque o diferencia.
Seu designer foi capaz de imaginar um modo de inserir a
numeração de página que não fosse a trivial, ele inventou um
lugar no texto para ele. Você lê o texto e isso está em harmonia
gráfica, é quase como uma recuperação às avessas das capitulares,
aquelas grandes letras que iniciavam os capítulos dos livros
medievais e que, por seu tamanho grande, davam destaque a
obra. Aqui, nos livros da UBU, a numeração menor recupera
esse espírito. Prefiro a arte dos diagramadores aos algoritmos dos
e-readers.
É interessante a história de Duncan sobre os problemas da
numeração dos livros pois elas introduzem o modo como os
livros são feitos. Os tipógrafos levaram tempos para numerar as
páginas em cadernos, a atual forma de organização. Como são
feitas em cadernos, nem todas as páginas eram numeradas,
apenas a metade delas, já que eram dobradas, o que causava certa
confusão para a orientação “isso é um lembrete de que o livro
impresso, nessa fase, ainda tem um pé no universo do
manuscrito. Os leitores, ao que parece, estavam dispostos a
J o r g e B a r c e l l o s | 195
contornar a omissão e completar a numeração das folhas por
conta própria” (Duncan, p. 116).
Duncan encerra seu livro sobre índices, dos quais aqui extraio
algumas consequências para a organização de sumários, com a
conclusão de que “todo índice é assombrado de forma inevitável
por seu indexador” (Duncan, p. 266). Para um escritor que
passou anos folheando livros para encontrar suas características,
essa conclusão importa. A observação de poesias e exposições de
arte faz Duncan imaginar um índice feito por um autor como o
de um artista classificando formas “sonhando com uma ordem...
espirituoso e afetuoso, mas não subordinado a mais
idiossincrática das poetas, atento a sua domesticidade peculiar”.
(Duncan, p.272)
A conclusão é que para fazer um sumário, ao final, não há regras.
Há, é claro, um bom senso e a tradição. Tem coisas que não
podem faltar. Por exemplo o sumário, além de conter o título ou
tema do capitulo de um livro, tem de ter o número da página.
Duncan afirma que cada característica do livro é uma ferramenta
de leitura que é projetada para facilitar o processo de leitura. A
numeração das páginas é uma delas. “De que modo lemos?
Algumas páginas no trajeto de ônibus a caminho do trabalho;
durante o horário de almoço, enquanto tentamos ignorar os plins
e notificações sonoras do celular; aproveitando o tempo antes que
o sono nos leve ao fim do dia. Em geral lemos onde podemos”
(Duncan, p.65). A partir de uma origem medieval que previa que
a leitura deveria ser algo feito lentamente, dando atenção aos atos
de ouvir, ler, marcar, aprender e digerir as sagradas escrituras
como desejavam os monges desde o século XIII descobrimos
para que servem os sumários e como podemos aprender com
196 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
eles. Para os antigos, para ler as sagradas escrituras, a numeração
das páginas surge como um apelo ao modo antigo de leitura.
A numeração das páginas permitia aqueles que tinham nos
mosteiros a leitura como centro da vida cotidiana ir e voltar de
onde pararam. O advento das universidades, e com elas, a
instrução de novas formas de notação, remodelou a escrita e a
leitura para que as páginas fossem destrinchadas e identificadas
de formas eficientes. Os sumários sugiram ao longo do tempo,
diferenciando-se dos índices, mas nunca perdendo o seu valor.
Eles podem ser feitos de diferentes formas, com diferentes rotas
e muitos autores e editores podem realmente criar a partir de seus
sumários, tanto graficamente como conceitualmente. O sumário
é a porta de entrada, é a apresentação de uma obra. Se você foi
capaz de escrever uma obra, deixe um tempo para pensar como
fazer o sumário dela. O leitor agradece.
Conclusão
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A escrita pode mudar o mundo
Eu espero que se você chegou até aqui, você tenha adquirido,
como eu, a crença de que, pela escrita, se pode mudar o mundo.
Esse é um princípio que me acompanha desde minha formação
no curso de história da UFRGS e fez parte de minha geração.
Cada um fez, a sua maneira, o melhor que pode para mudar o
mundo: dando aulas, exercendo funções públicas com empenho
e dedicação, participando da vida política.
A minha forma de tentar mudar o mundo foi pela escrita. Afinal,
você sabe que o mundo está mudando, e para pior. Como diz
Flintoff, “passamos noites em claro, nos revirando horas a fio,
preocupados com isso” (p.11). Escrever já é fazer algo pela
mudança do mundo. Você oferece o seu olhar e o compartilha,
você mostra os erros e acertos do mundo, você deixa isso por
escrito para as novas gerações. Sua escrita é seu testemunho. Sua
escrita pode atravessar o tempo e ser compartilhada. Você não
muda o mundo imediatamente ou diretamente, mas você o afeta.
O ensaio afeta o mundo por combinar simplicidade de escrita
com profundidade de conteúdo. Eu realmente fico triste quando
vejo que publicações on-line ou em jornais pouco contam na
carreira acadêmica ou no sistema Lattes. Já falei disto ao longo
das páginas de Como escrever um ensaio: simplesmente é um
Anti-intelectualismo às avessas, uma forma de rejeitar justamente
um tipo de escrita que, por fugir do cânone universitário, da doxa
acadêmica, tem uma enorme capacidade de atingir amplo
público.
200 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
Fiz relatos, descrevi situações, sugeri métodos que espero tenham
auxiliado o leitor a se aventurar na escrita de ensaios. Alguns da
minha própria experiência, outros de pesquisa própria que fiz
para este livro. Não peço desculpas nem pelas minhas histórias
pessoais aqui relatadas, nem por eventuais erros que esta obra
possa conter. Minha intenção nunca foi fazer alunos perfeitos,
ensaistas perfeitos: você terá feito muito se chegou até aqui com
a convicção de que pode superar seus medos de escrever. Que
escrever não é um bicho de sete cabeças, mas que é algo que
começa quando superamos o medo em função de nossas
expectativas.
O ensaio é uma excelente ferramenta de combate. Depois que
você aprendeu a como desenvolve-lo, é hora de escolher os
problemas que merecem a atenção. Eu elegi grupos de
professores para destinar esta obra e a escrevi tendo em vista suas
necessidades, angústias e dilemas. Eu sou um professor. E por
isso foi a melhor forma de escrever este livro. Você lida com
professores e sabe seus problemas: o ensinar e o aprender, a
escola e a comunidade, a escola e o poder. Mas há muito mais
que professores podem escrever, basta eleger o que lhes afeta.
Para aquele que não faz parte de coletivos de professores, mas
que ainda assim, quer escrever, este livro pode ainda ser útil. Os
problemas escolhidos serão diferentes, é claro. “Os problemas
que preocupam alguém em uma parte do mundo podem não
incomodar uma pessoa do outro lugar (ainda que devessem). A
fome é um exemplo. É um problema grave, mas menos talvez
para aqueles que não passem fome.
Há inúmeros temas que podem ser sugeridos para ensaios. Há os
problemas que afetam todas as pessoas, ou parte delas. Pessoas
J o r g e B a r c e l l o s | 201
que vivem em situações de guerra ou ditadura precisam de uma
consciência planetária que só o conhecimento que se espalha por
mais pessoas pode criar. Problemas que afetam pessoas por
questões de gênero, sexo, identidade dizem respeito a direitos
que ainda não foram universalizados ou foram negados.
Problemas que afetam a todos, mas que nem todos veem da
mesma forma, como o aquecimento global. Problemas são,
usando a pior técnica de marketing, “oportunidades” de escrever
ensaios.
Encontre seu tema. Encontre seu objeto. Encontre seu problema.
Esse exercício só você pode fazer. Olhe ao seu redor: o que o
aflige? O que indigna você? Corro riscos se escrever sobre isso?
Quais? Somente críticas? Vale a pena? Sim. Escreva. Algo mais?
É hora de pensar bem. Sem medo. Eu pude escrever o que quis
e pagar o preço por isso, mas nem todos podem fazê-lo. É de se
avaliar. Já fiz críticas a autoridades que me custaram o emprego,
outras nem tanto. Me arrependi? Não. Faria de novo? Se minha
sobrevivência estivesse em jogo, não tenho certeza. Às vezes,
escrever implica em riscos. Mas que seja um risco calculado. Está
cada vez mais perigoso escrever porque estamos, como já mostrei
em Neoliberais não merecem lágrimas, voltando a... Idade
Média!
Sempre que escrever, a melhor forma de se proteger é ser
específico. É surpreendente o poder de proteção da expressão “é
uma opinião”. Ela permite passar ideias, relativizando seu poder
contra o opressor; ela permite ser objetivo, usar da criticidade
sem fazer grande alarde. Vai criticar uma autoridade superior?
Seja educado. Vai criticar um poder público? Use fatos inegáveis.
Vai criticar uma pessoa? Seja ético. Talvez você descubra que a
202 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o
origem dos seus medos não está em lugar algum, além de sua
consciência.
Todos que assumem uma causa e escrevem por ela sentem o
retorno do leitor. É como se fizesse parte de uma conspiração
positiva, você encontra logo os seus pares. Você pode até se
candidatar as eleições porque se tornou uma autoridade pública;
você pode reunir o que escreveu e seus textos se transformarem
em um argumento dissuasório em uma luta política; veja o livro
como uma boa ação que você pode fazer pelo mundo. Um livro
é superior a muitas táticas de melhoria social, pois nem sempre
atingimos um publico amplo como políticos com eles. Diz
Flintoff “Se você quer que as pessoas sintam que tem capacidade
de mudar as coisas, é extremamente importante chamar a atenção
para as formas que tem de fazer isso com as próprias mãos”
(p.51). Escrever é uma delas.
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Créditos © Jorge Barcellos, 2024
Pesquisa, redação, preparação de originais, revisão, diagramação e projeto gráfico: Jorge
Barcellos. Todos os direitos reservados. As ideias e posicionamentos descritos neste
livro não expressam a opinião da editora, mas sim unicamente do autor.
Clube dos Autores
Av. Juscelino Kubitscheck, 350 – 2º andar
Joinville - SC
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Jorge Barcellos é servidor público aposentado. Licenciado e
bacharel em História e Mestre e Doutor em Educação pela
UFRGS. Possui experiência de magistério no ensino médio e
superior, além de publicações na área de história, educação e
política educacional. Foi por vinte anos pesquisador do Memorial
da Câmara e atualmente é servidor aposentado da Escola do
Legislativo Julieta Battistioli da CMPA, onde foi Coordenador de
Cursos. Foi historiador do Museu Joaquim José Felizardo e do
CPH da SMC/PMPA, além de Gerente do Projetos –
Humanidades, da Usina do Gasômetro. Recebeu a Menção
Honrosa do Prêmio José Reis de Divulgação Científica (2006) e
o Troféu Expressão da FINEP (2006) por seus projetos
educacionais. É autor de 22 obras, entre elas Educação e Poder
Legislativo (Aedos Editora, 2014), além de colaborador dos
jornais SUL21, RED, BdfRS, Zero Hora, A Terra é Redonda, Le
Monde Diplomatique Brasil e das plataformas de notícias (blogs)
Sapo (Portugal), Medium (EUA) e La Mula (Peru).Mantém
coluna no site Sler.com.br
Mantém o site jorgebarcellos.pro.br
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Neoliberais não merecem lágrimas
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