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Como escrever um ensaio Jorge Barcellos Como escrever um ensaio A arte de escrever para coletivos de professores-autores Sumário Apresentação, 9 1.Escrever nos faz livres, 15 [A decisão pela escrita - Os professores que escrevem Libertar-se das prisões da escrita] 2.Ferramentas para escrever, 27 [Definições preliminares – A caixa de ferramentas – A base teórica- Como escrevem aqueles que escrevem? - A regra da simplicidade - A obrigação de tirar o excesso - Escreva para seu público - Use bem a gramática - Limpe seu texto] 3.Sobre o argumento, 53 [A definição de argumento - Exemplos de argumentos - O argumento reflete uma posição - O argumento organiza pensamentos confusos em textos organizados - As características dos bons argumentos - Depois das frases, os parágrafos] 4.Como estruturar um ensaio, 85 [De novo, o problema dos pressupostos - Reconheça seus limites - A alma do ensaio - O lugar da técnica na escrita do ensaio - O ensaio como lugar de nossa perspectiva - O ensaio como lugar de uso de uma linguagem - Ensaio como lugar de interpretação] 5. Bases metodológicas para o ensaio, 109 [A necessidade de um esquema - Aprofunde o tema Acostume-se com uma técnica de elaboração - Aceite abrir mão - Não busque a perfeição, mas o bom texto - Reduza seus problemas] 6.A biblioteca do professor-autor, 133 [Nós somos nossa biblioteca - Livros de formação - Crítica do capitalismo - Estudos sobre a vida cotidiana - Estudos sobre arte e cultura - Obras de referência - Critica a tecnologia Urbanismo e cidades - Porto Alegre – Educação - Ferramentas para revolução - Outras línguas] 7.Enfim, o sumário, 167 [Terminar pelo começo - O sumário como produto da evolução da escrita - O sumário como arquitetura – Tipos de sumário - A história do sumário – O futuro do sumário Sumários por ordem alfabética - A numeração das páginas Aspectos de design gráfico] Conclusão, 197 Bibliografia, 203 Créditos, 210 Apresentação J o r g e B a r c e l l o s | 11 No segundo prefácio de Sobre a Escrita (Suma, 2015), o escritor Stephan King diz que fez um texto curto sobre a escrita porque “a maioria está cheia de baboseiras”. Curto, para King, é algo em torno de 250 páginas. O que se entende, já que suas obras tem em média de 800 a mil páginas. É que escritores como ele tem o dom da escrita. Para ele, escrever é algo natural, mas para a maioria, escrever é produto de um longo aprendizado que se transforma em hábito. É como uma corrida de obstáculos. É preciso persistência e esforço. King é injusto. Há muitas obras boas sobre a arte da escrita. Elas realmente ajudam a escrever melhor. Ainda que seu Sobre a Escrita seja dirigida a autores de ficção, como o leitor verá neste Como escrever um ensaio, optei por fundamentar-me em obras de escrita tanto de ficção como não ficção. O critério foi a identificação de suas lições com minha experiência. Por isso o primeiro prefácio de King e não os demais é o melhor pois começa prolixamente descrevendo uma história que parece não ter nada a ver com a escrita para chegar nela. Neste prefácio há duas lições importantes. A primeira aparece enquanto ele narra a história de sua participação em uma banda de escritores e seu cotidiano em grupo para chegar a dizer o seguinte: “Somos escritores, e nunca perguntamos um ao outro de onde tiramos nossas ideias; nós sabemos que não sabemos” (King, p.10). A segunda pérola de sua obra vem logo em seguida quando se recorda de quando lhe perguntaram sobre a escrita. O próprio King já acalentava a ideia de escrever sobre o ato de escrever, mas se perguntava “por que eu queria escrever sobre a escrita? O que me leva a acreditar que eu tinha algo de útil a dizer? (King, idem). Ao contrário de King, que vendeu milhares de livros, eu mesmo, 12 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o já tendo chegado à casa das duas dezenas de livros, mas ao contrário dele, tendo vendido bem pouco, talvez não tivesse nada a dizer além do meu fracasso literário. Mas não é bem verdade. Vendas não são termômetro de sucesso. A autopublicação não torna ninguém milionário, mas o fato de que meus livros são disponibilizados gratuitamente e possuem download significativo, sinaliza o contrário. Somente meu A impossibilidade do real, chegou à casa dos 40 mil downloads. Segundo a Câmara Brasileira do Livro, são considerados autores best-sellers aqueles que vendem mais de 15 mil livros e Pascal Soto, diretor da editora Leya, diz que basta vender 5 mil livros para ser um best-seller. Não estou tão ruim assim. Como King, me considero um proletário da escrita. Como ele, escrevo combinando leituras com minha experiência, mas, de forma diferente, escrevo sobre uma prática que desenvolvi não porque tive vontade disso, mas porque um grupo de professores de uma escola pública de Porto Alegre me chamou para organizar sua produção. A melhor forma que encontrei para isso foi organizar textos que compartilhei com eles na esperança de auxilia-los a escrever. Eu os reuni aqui como forma de criar um apoio didático. Espero que sejam úteis a você, leitor. Foram ao todo sete capítulos onde intercalo minha experiência com a produção de ensaios com a fundamentação em autores deste campo. Como enfatizo em vários momentos, não sou um escritor perfeito, ao contrário, reconheço que deixo passar até alguns erros em meus textos que outros escritores jamais fariam. Aponto o contexto de minhas limitações e as minhas razões para escrever. J o r g e B a r c e l l o s | 13 O primeiro capítulo fundamenta o desejo de escrever. A escrita é algo que “vem de dentro”, diríamos. Mas o que exatamente isso significa? Parto então para descrever o campo ao qual este livro é dedicado: professores-autores. Nem todo professor é um escritor, mas aqueles que tem o desejo de ser um, indico a forma ensaio como a ideal e enumero as razões. Finalizo com uma lista dos impedimentos da escrita, que são nossas prisões, e que devem ser superadas para que possamos escrever sobre o que somos, sobre o que pensamos. O capítulo segundo deseja instrumentalizar o professor-autor. Ele oferece o que considero as ferramentas básicas para escrever com qualidade. A partir de algumas definições preliminares como a de “caixa de ferramentas”, indico as regras que todo professor deve seguir para fazer um ensaio. Eu tomo como ponto de comparação a escrita de outros bons escritores e suas boas práticas, como a obrigação de produzir um texto limpo e sem excesso, além do uso da gramática. Os capítulos seguintes são centrais nesta obra. A razão é que o terceiro, define o argumento como a base do ensaio como escrito científico; o quarto estabelece critérios para organizar sua estrutura, e, portanto, seu desenvolvimento e o quinto definem suas bases metodológicas, estabelece limites para professores – autores em seus escritos. Digo no primeiro capítulo desta série que não há bom ensaio sem uma seleção de bons argumentos. Ele é uma expressão da boa argumentação, quer dizer, o modo como defendemos uma posição. Dou exemplos da organização de argumentos e suas características para que o autor saiba construir frases e parágrafos consistentes. A seguir afirmo que não há ensaio sem uma proposta de estruturação anterior. Ele é a 14 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o clareza de pressupostos e limites que originam nossa perspectiva e interpretação. E finalmente encaminho para técnicas de elaboração que são a própria metodologia que cada autor desenvolve, mas que não deve faltar a busca da profundidade na construção de bons textos considerando os limites do autor. O capítulo sexto trata da base do professor, o conhecimento. Afirmo que uma biblioteca genérica, com temas eleitos pelo professor, é essencial. Que é a obra de uma seleção contínua e aprofundamento, que resulta em base para ensaios mais profundos. A obra termina então com considerações sobre o início de cada livro, o sumário, que é uma forma também do autor rever e afinar o que escolheu para dissertar. Indico uma tipologia, com a única justificativa de servir de modelo, já que, sumário, cada um constrói o seu. Finalizo com as palavras de King que, para mim, melhor do que eu resumo o lugar da escrita de ensaios: “A escrita não é para fazer dinheiro, ficar famoso, transar ou fazer amigos. No fim das contas, a escrita é para enriquecer a vida daqueles que leem seu trabalho, e também para enriquecer sua vida. A escrita serve para despertar, melhorar, superar. Para ficar feliz, ok? Ficar feliz. Parte deste livro – talvez grande demais – trata de como aprendi a escrever. Outra parte considerável trata de como escrever melhor. O restante – talvez a melhor parte – é uma carta de autorização: você pode, você deve e, se tomar coragem para começar, você vai. Escrever é mágico, é a água da vida, como qualquer outra arte criativa. A água é de graça. Então beba. Beba até ficar saciado”. 1 Escrever nos faz livres J o r g e B a r c e l l o s | 17 A decisão pela escrita A ideia deste livro surgiu quando me reuni com os professores da escola municipal Lygia Averbuck numa segunda-feira (1.7.2024) para realização de uma curadoria editorial. Como afirmei em minha apresentação “Não é editoria. É curadoria. É cuidado.” A palavra “curador” vem do latim curare, que significa algo como “aquele que cuida”. Por um lado, talvez o curador editorial tenha essa função de cuidar de um livro ou de uma coleção de artigos, mas o mais importante, a meu ver, é a capacidade de realmente entender e apreender o que há de mais relevante num determinado escrito e num determinado momento, e de articular isso sob a forma de livro que possa ser visto como obra de arte”. Eu já havia feito curadoria para outros autores, mas esta foi a primeira vez que me vi diante de uma audiência de professoresautores, isto é, mestres interessados em anotar e publicizar suas experiências em livro. O nascimento deste grupo produziu em mim a vontade de fazer nascer este livro. A Escola Lygia Averbuck é uma escola de ensino especial para crianças, jovens e adultos com deficiência no município de Porto Alegre. Localizada no Bairro Jardim do Salso, diz Edison Silva Jr em Alunos de escolas especiais: trajetória na rede de ensino de Porto Alegre (2013, p.87) que ela “pode ser definida como um enclave escondido atrás de prédios comerciais e de parques privativos que, atualmente, abrigam condomínios de luxo. De maneira mais clara, a escola mantém e sempre manteve uma existência discreta em relação à sua vizinhança”. 18 |C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o Inauguração da quadra poliesportiva da Escola de Ensino Fundamental Professora Lygia Morrone Averbuck. Foto: Fredy Vieira / PMPA Conheci a escola por intermédio da Professora Kátia. Ela era orientadora de Andrey, aluno da escola que estagiou na Escola do Legislativo da Câmara Municipal onde trabalhava. O vinculo que fiz com a equipe do Programa de Trabalho da Prefeitura de Porto Alegre foi responsável pelo convite para ser curador da obra que desejam escrever relatando suas experiências. Eu os incentivava a escrever sobre o tema por ser a escola uma instituição importante da educação na cidade; eu sabia que seus professores tinham experiências inovadoras de ensino para contar e que isso merecia estar em um livro. A ideia foi amadurecendo e a equipe conseguiu junto ao legislativo recursos para a sua produção. Veio a enchente, o trabalho na escola foi J o r g e B a r c e l l o s | 19 interrompido, mas retornou agora. A escola quer deixar de ser discreta: quer lançar-se para o mundo. É para isso que serve escrever um livro. Decidimos iniciar uma caminhada juntos. Mas o que é uma caminhada? Adriana Labbucci diz em Caminhar, uma revolução (Martins Fontes, 2013), que caminhar é nosso gesto mais humano porque nos liga ao tempo, nos restitui ao essencial “permite olhar para dentro e para fora de nós” (LABBUCCI, p.75). Para ela tudo isso pode ser resumido a uma palavra: liberdade. Assim como para os antigos gregos, o caminhar estava na origem do pensamento e também na origem da escrita, escrevemos para caminhar segundo nossa própria vontade, o ato está diretamente ligado à nossa liberdade de ser. Como uma caminhada, escrever importa riscos fora de nós pois expomos nosso pensamento ao escrutínio público, ou dentro de nós, quando os medos de se expressar nos impedem de caminhar. Labbucci lembra a afirmação de Hannah Arendt de que “só era livre quem estava pronto para arriscar a vida” (LABBUCCI, p. 76). Por isso falamos de liberdade de escrever como prerrogativa da vida. Escrever deveria ser tão comum como escovar os dentes. Ela não está circunscrita a esfera econômica, e em nosso país, raros são os autores que vivem da escrita. Contudo, escrevemos porque vivemos uma democracia: vivemos com o sentimento do dever do partilhar o comum, escrevemos porque somos cidadãos da cidade e porque os seus problemas nos afetam. Se a educação é um dos problemas que cabe a sociedade resolver, ela precisa da manifestação de seus cidadãos, dos que são responsáveis por ela: eles precisam que os professores expressem suas ideias, suas divergências, suas críticas. Precisam conhecer sua visão de mundo. 20 |C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o Os professores que escrevem Professores escrevem porque são pessoas indóceis. Tem opiniões diferentes da hegemônica. Enquanto o pensamento hegemônico neoliberal acredita que a escola é uma fábrica de cidadãos dóceis para o mercado, os professores acreditam que ela é a formadora de cidadãos autônomos e ativos. É que os professores não são espectadores da vida, ao contrário, querem que saibam o que fazem, como fazem e porque fazem. Não são indiferentes às políticas que visam formar cidadãos acríticos, ao contrário, têm suas reivindicações aos detentores de poder a partir de suas experiências. Eles não ficam imóveis frente as suas dificuldades, mas se movem nelas, numa palavra, caminham “quem caminha exprime curiosidade, comprometimento, sente-se e quer sentirse livre para se movimentar” (LABBUCCI, p. 80). Professores escrevem porque querem se libertar de suas prisões. Somos todos dominados por valores contra os quais nos rebelamos, seja o American way of life, o estilo de vida americano caracterizado pelo consumismo, pela padronização social e pela crença nos valores do liberalismo, ou agora pelo bolsonarismo way life, sua perversão à extrema direita, caracterizado pela indiferença radical em relação ao outro, à natureza, à diferença. Ambos se manifestam nas escolas, nos valores que os alunos trazem de casa e que os professores precisam enfrentar, nos programas de reformas educacionais que governantes tentam implementar e que afetam sua visão de mundo. Em todos os lugares é sempre o esforço de se libertar da prisão do individualismo extremado, do exercício do poder: o mundo onde vigora a lei do mais forte não interessa a quem vive de educar. J o r g e B a r c e l l o s | 21 Atual Escola Rio de Janeiro. Reprodução: Redes sociais. Comecei a escrever quando perdi o medo. Eu me lembro ainda da cena de minha infância, no aprendizado das primeiras redações. Era a Escola Estadual Rio de Janeiro, então localizada onde hoje é o Senac da Avenida Coronel Genuíno. Era uma casa antiga, com grande pátio. Havia as salas de aula com pé direito alto. Na aula de português eu via pela primeira vez a proposta de escrever algo a partir de uma imagem. Era aquela cena onde a professora abre uma imagem em um suporte de uma coleção das que ali ficavam. Eu me lembro de ficar paralisado. E nesse 22 |C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o momento, como numa cena de cinema, com a janela aberta e as cortinas mexendo-se pelo vento, uma menina na minha frente vira-se para mim e, com a luz do sol ao fundo me ajuda a escrever a primeira frase. Deve ser por isso, que de alguma forma, as vezes me sinto como um impostor: sempre necessito uma inspiração para escrever, a leitura de uma análise qualquer, uma imagem de cinema para então começar a escrita. Mas no fundo isso também quer dizer que só escrevemos quando a realidade está ali na minha frente para o gatilho ser acionado. Quando isso acontece, voilá, estamos diante da imitação de que nos fala Aristóteles, nossa faculdade de criar a partir da imitação. E isso é algo positivo aqui, pois depois nunca mais parei de escrever. Por isso também me inspiram muitos autores. Aprendi com Voltaire Schilling jamais entrar em uma sala de aula sem ela estar escrita; com Sandra Pesavento, a argumentação lógica; com meus professores de graduação, não apenas o fazer científico, mas também o fazer poético; com a filosofia francesa contemporânea, que o mundo está aí para ser enfrentado pela palavra. De cada um veio um fragmento que compõe o que sou, o que é minha escrita. Com a universidade e as regras do método científico, novos medos se impuseram. Você abandona o mundo em que escrever uma redação é tudo o que lhe pedem e passa para um universo onde há regras para serem seguidas. É que na universidade, a escrita não é apenas a forma como estabelecemos o conhecimento, é também uma forma de estabelecer poder, delimitar zonas profissionais. É lá, no lugar que formamos nosso pensamento, que aprendemos as maneiras como se diferencia cada campo do outro, as zonas entre os chamados “amadores” e “profissionais”, as lutas entre as disciplinas pela definição de seus J o r g e B a r c e l l o s | 23 objetos e onde adquirimos poder porque aprendemos a dominar uma linguagem, os chamados “termos técnicos”. Libertar-se das prisões da escrita Aprendemos na universidade a usar o jargão. Ele também nos dá medo de escrever. Aprendemos a sobreviver no universo intelectual, mas nada é estável nesse meio. O contato interdisciplinar é saudável. Os conhecimentos mudam. É que não sabíamos, mas estávamos sendo introduzidos no contexto das guerras culturais, o mundo das controvérsias fundamentais na vida universitária. Era também, de certa forma, uma linha de montagem intelectual, e eu não estava certo de que concordava com suas regras, e por isso, fugia pelas margens. Lia o que me interessava. Mas chega um dia que vamos para a prática e é, tenham certeza, a experiência cotidiana que trata de nos fazer, em seus acertos e erros, os seus ajustes. Viramos profissionais. Marjorie Garber, em Instintos Acadêmicos (UERJ, 2003) cita o caso do professor de sociologia da Universidade de Massachussets que em um artigo intitulado “Redação ruim na Academia” acusou seus colegas pelo seu “palavrório presunçoso”. Numa palavra, que escreviam mal. Textos podem ser de leitura difícil, mas compensadora; outros podem usar a fala cotidiana e serem tão dignos quanto os artigos difíceis ou textos acadêmicos. O que não se pode é ter medo de escrever um artigo ou texto por se pensar que vão considerar ruim. Como evitar o texto ruim? Pela clareza. Ela é consequência da liberdade do pensar. Explicar o que se quer, como se quer e fazer. 24 |C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o O medo é um sentimento universal e ele se apresenta para o autor no momento da escrita. Não escrevemos ter medo de como será visto nosso pensamento escrito porque se recusamos escrever, morremos de uma certa maneira. Ao contrário, escrevemos, fazemos um livro porque ele é motivo de alegria. Não se trata de publicar por publicar, o que hoje, inclusive, já está sendo feita pela inteligência artificial. Escrevemos o que entendemos precisa ser dito. Escrevemos porque nossa experiência nos parece digna de ser mostrada. Somos professores anônimos. Não temos a sorte de ter uma grande editora que nos procure para tratar de nossa experiência de ensino. Isso é consequência de algo que está além de nosso controle: o mercado editorial. Nesse mundo, há regras de acesso, modos de funcionamento. O sistema editorial é cruel. Não importa o conteúdo, importa se fisga o consumidor. Numa palavra, vende. Mas nesse mundo cheio de regras e exclusões, ainda temos o direito de escrever. Alguma coisa está errada quando bons professores, sentindo-se libertos de todas as amarras intelectuais, vivendo sua experiência de ensino com desafios e angústias, não encontram uma forma de publicar suas ideias. A frustração advém do fato de que eles produzem, mas encontram um sistema hostil de publicação. Qual professor pode pagar os valores que editoras intermediárias cobram para seu lançamento? São valores entre 5 a 10 mil reais. Com valores assim, teme ficar sem orçamento doméstico. Qual professor pode esperar os prazos que as editoras líderes de mercado pedem para publicar seus originais? Isso leva até um ano. Com prazos assim, tem medo que seu original perca o seu sentido. Isso afeta a liberdade de criação do professor. Ele pode escrever, mas conseguirá publicar? O medo volta mais uma vez. J o r g e B a r c e l l o s | 25 O medo de escrever surge de uma incerteza. Quanto mais caminhamos na incerteza de escrever, mais temos medo de não conseguir publicar. De ser lido. Mas se temos a certeza de que somos livres para escrever, o medo diminui. A internet, nesse sentido, vem a nosso favor. Você pode publicar em várias plataformas. O que gera outro problema, o do seu excesso. Posso imaginar que quando morrer, o mundo continuará sem mim, mas enquanto estou aqui, pelo meu escrito, eu o afeto de alguma forma. Não tenho tanta certeza que algo publicado na internet sobreviva a plataforma em que reside. Mas um livro não. Ele estará sempre ali. Onde? Numa biblioteca. Mesmo se um dia ele vá para um sebo, eu sei que, como se fosse um trabalho de arqueologia, alguém o encontrará. É por isso o ditado que diz que na vida devemos ter filhos, plantar árvores e escrever...livros! Essa sabedoria popular diz isso porque está preocupada com nossa necessidade de transcender a morte. É sua mensagem de que a permanência pode ser alcançada pela herança de nossos genes, por nossas ações ou pensamentos. Estes últimos ficam em livros. Aqui a conclusão é que quando falamos que a escrita é uma caminhada falamos de liberdade; falamos do que acreditamos em nossa vida, damos nosso testemunho extraordinário do que é ensinar nas condições que ensinamos. De que a primeira atitude de quem quer escrever é não ter medo. Escrever nos torna autônomos porque nos torna inquietos, exige de nós mais do que estamos acostumados a dar. Saio do meu lugar comum, do meu cotidiano e reflito sobre ele: encontro nessa caminhada que se faz sob a forma de texto a minha verdade, e por isso o livro é tão precioso. Escrito, ele é a forma de registro de minha história. Como disse certa vez a cantora Nina Simone “liberdade é não ter 26 |C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o medo”. Não precisamos ter medo de escrever; não devemos deixar de escrever pelo medo do que vão achar de nossos escritos. Se houver críticas, sempre haverá um momento para reescrever. Sempre haverá um detalhe a corrigir. Somos humanos. Precisamos nos permitir escrever nossos pensamentos, nossos sentimentos. Ensinar é um ato de prazer, mas também de muita dor. A de expressar sua verdade, sem falar da própria produção do texto em si. Mas a vida já é difícil se não nos autorizamos nem ao menos a nos expressar. A escrita nos ajuda a ser feliz. 2 Ferramentas para escrever J o r g e B a r c e l l o s | 29 Definições preliminares Existem inúmeros livros que ensinam a escrever. São manuais básicos de leitura de qualquer estudante de ensino superior. Você não é obrigado a conhecer Confissões de um jovem romancista (Record, 2018) de Umberto Eco, mas se você não conhece dele Como fazer uma tese (Perspectiva, 1989), algo de errado aconteceu no currículo de sua formação. William Zinsser, em Como escrever bem (Fósforo, 2021), estabelece o espectro de características para a boa escrita. Escritor e professor, colaborou com inúmeros jornais e tem experiência. Já no início da obra, ele narra seu encontro com um outro palestrante, o Dr. Brock (nome que Zinsser inventou) reunidos para falarem sobre a escrita como profissão em uma escola de Connecticut. O debate que se instalou entre ambos e sua descrição é o horizonte onde nós, professores, nos situamos para escrever. Ele implica na clareza dos pontos de partida. O primeiro é a definição é do lugar do escritor. Para Brock, escrever precisava ser algo divertido, como se as palavras fluíssem para o papel depois de um longo dia de trabalho. Para Zinsser, era o contrário, escrever era algo difícil e solitário “raramente as palavras fluíam com facilidade”. Para ambos a escrita era algo importante, mas para o primeiro, escrever era só o ato de “exprimir tudo o que você sente”, quando então as frases saem. Para o segundo, ao contrário, “reescrever é a essência da escrita”: escritores profissionais reescrevem suas frases inúmeras vezes para melhorar. Para Brock, escreve-se quando se quer e quando dá; para Zinsser, escrever é um ofício, e por isso, precisa de uma rotina diária – ele também estava fazendo seu livro como dever 30 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o de ofício, pois é professor de um curso de jornalismo. Nesta profissão, escrever diariamente é uma obrigação “você aprende a fazê-lo todos os dias, como qualquer outro trabalho”. Williman Zinsser. Foto: Editora Fósforo. Divulgação. O segundo é a definição da matéria da escrita. Jornalistas escrevem todos os dias sobre os mais variados temas, mas professore escrevem sobre sua experiência de ensino. Eles escrevem planos de aula e planos de ensino e verificam seus resultados. Isso é seu trabalho diário. Relatar seu processo de aprendizado, dúvidas, inseguranças e projetos num texto narrativo-interpretativo não faz parte de seu cotidiano, ainda que desejável. Escrever sobre uma experiência de ensino não é o J o r g e B a r c e l l o s | 31 mesmo que escrever um plano de aula. É algo mais. Por isso, escrever um livro ou mesmo um artigo sobre sua experiência didática é um trabalho extraordinário para o professor. Ele precisa elaborar a partir de seus sucessivos planos de aula um significado, rever suas bases teóricas, confrontar com sua prática. Sua narração escrita pode ser usada para uma apresentação em uma reunião escolar, ou mesmo em um conselho de classe. Pode também ser apresentado para publicação em uma revista ou apresentação em um congresso de professores da rede a qual pertence. Mas aqui queremos destacar como se pode se transformar em livro, individual ou coletivo, a experiência de um professor ou coletivo de professores. E para isso, o ensinamento de outros profissionais é importante. O terceiro é a escolha do método ou caminho para escrever. A história contada por Zinsser tem o mérito de reconhecer que não há nenhum método ou caminho “certo” para fazer um texto escrito, pois é um trabalho também pessoal “Há todo tipo de escritor e todo tipo de método, e qualquer método que ajude a você a dizer aquilo que quer dizer será o método certo para você” (Zinsser, p. 17). Li em algum lugar que o filósofo esloveno Slavoj Zizek disse que seu método era listar alguns tópicos e após escrever excessivamente. Você lê seus textos e vê que são labirínticos, você o acompanha em seus argumentos e quando parece que está perdido, um insight vem para organizar tudo e mostrar que aquele caminho tortuoso que o filósofo escolheu era apenas outra forma de explorar suas ideias. Alguns escrevem um esboço; outros partem direto para o texto indo atrás das definições e autores à medida que as ideias exigem – meu método – e outros ainda passam tempos na primeira linha para depois, ultrapassada, escreverem interminavelmente. Seja em qual ponto 32 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o do espectro do processo da escrita está um autor, o ato de escrever exige uma negociação consigo mesmo . Não é algo totalmente natural, você não sai do nada escrevendo por aí. Você pode fazer isso, mas em algum momento, você volta para fazer ajustes. A essência de qualquer método de escrita é que você volta para corrigir e organizar. Zinsser diz que é essa tensão que faz de você um escritor. Sua ênfase está não no que o escrito diz, mas como ele revela o que você é. Já apontei isso. Mas agora é preciso para isso ter uma “caixa de ferramentas”. O que é isso? A caixa de ferramentas A primeira vez que ouvi falar em caixa de ferramentas foi quando estudava a obra de Gilles Deleuze e Félix Guattari, o Anti Édipo (Assírio e Alvin, 1972) como um recurso capaz de fazer um mapa para enfrentar o mundo. Ela admite trocas, usos, reposições, novos arranjos do que se aprendeu na experiência, seja de leituras ou da prática. Confesso que a primeira leitura do Anti Édipo, ainda na faculdade, a obra me causou espanto. Ele mesmo dizia que o que importava era o que era útil para o leitor. Relendo novamente, entendi que se tratava de um método aberto para a construção de conceitos, para uma interpretação da realidade a partir daquilo que um pesquisador consegue apreender de um autor. Numa palavra, o que ele consegue reter conceitualmente e que se torna prático para sua interpretação. À primeira vista, parecia uma defesa do improviso intelectual, mas aos poucos foi se revelando um método importante para o trabalho intelectual. Suely Rolnik usou o termo em seu Cartografia Sentimental J o r g e B a r c e l l o s | 33 (Sulina, 2016) para descrever a subjetividade feminina nos anos 90 e Heraldo Silva para descrever o sistema teórico do filósofo Richard Rorty. Ludwig Wittgenstein. Editora Unesp (Divulgação) A caixa de ferramentas é uma metáfora. É uma imagem para dizer como usamos os conceitos e métodos a nossa disposição da melhor forma possível. Diz Silva que ela foi criada por Ludwig Wittgenstein (1889-1951) em sua obra Investigações Filosóficas (1975) para estabelecer uma “analogia entre as diferentes funções das palavras com as diferentes funções de ferramentas: em ambos os casos não há uma hierarquia, pois tanto a utilidade das palavras quanto a utilidade das ferramentas dependem, contextualmente, do uso ao qual pretende-se destiná-las. Do mesmo modo que são distintas as funções dos instrumentos, também são distintas as funções das palavras, principalmente, no âmbito filosófico”. 34 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o A base teórica Nessa perspectiva, escrevemos segundo um arcabouço teórico que possuímos e que foi produto de nossas leituras, nossas experiências, nossa forma de interpretação da realidade. Se somos um filósofo profissional, aquele que vive para escrever suas ideias, compomos um sistema de pensamento. Quando você lê o conjunto da obra de Michel Foucault (1926-1984) da Arqueologia do Saber à História da Sexualidade, você sabe que está diante de um sistema de pensamento. Ele possui uma forma clara de encadear os conceitos para explicar a realidade, é possível reconstruir em seu pensamento os conceitos que o guiam em sua análise. Niklas Luhman (1927-1988) é outro exemplo notável porque é justamente o papa do pensamento sistêmico, aquele que considera a comunicação a chave da regulação dos sistemas sociais. Mas somos apenas professores da rede de ensino tentando dar um sentido a experiência que produzimos. Nós não somos um filósofo da ciência, não estamos envolvidos na produção de inúmeras obras ao longo de nossa carreira, nem um sistema de ideias que oriente a ação educativa dos professores em geral. Nós estamos, isto sim, escrevendo uma obra – se escrevermos mais, tanto melhor! – neste momento para divulgar o nosso pensamento. Não é nossa profissão a escrita, ainda que seja uma de nossas práticas. É aí que entra a caixa de ferramentas. Ela é o recurso que dispomos para análise da realidade extraídos de nossa própria caminhada, seja através de leituras de autores do nosso campo teórico, mas também, porque não, de outros campos e interpretações, como da arte e da cultura, que também possam nos oferecer insights. Porque eu posso citar um filósofo J o r g e B a r c e l l o s | 35 e não um músico? Porque eu posso citar uma obra célebre e não descrever uma cena de cinema? É nesse sentido que o famoso “tudo vale” de Paul Feyerabend (1924-1984) está na base da “caixa de ferramentas”. Quando você escreve, você precisa também de liberdade metodológica. Eu entrei em contato com a proposta de Feyerabend nas aulas de filosofia da ciência de meu curso de História da UFRGS no ano de 1985 ministrados por Ana Carolina Regner. Marco Zingano diz que ela era uma “professora infatigável, de grande generosidade, Anna Carolina, como era mais conhecida entre nós, marcou com um selo humano as muito ásperas e abstratas discussões em filosofia. Dedicou-se ao estudo da história e filosofia das ciências modernas. Neste âmbito encontrou seu primeiro grande filósofo, Paul Feyerabend, cujas ideias ela ajudou a disseminar em nosso meio acadêmico “. Líamos com afinco sua obra Contra o Método (Unesp. 2011), onde lançou a sua filosofia anarquista da ciência que rejeitava a existência de regras metodológicas universais. Para os demais professores de metodologia científica, isso soava como uma heresia, afinal, a ciência quer se definir por métodos científicos, isto é, sistemas de produção e organização do conhecimento com base em regras rígidas. Eu via que a existência de regras científicas para as ciências exatas era natural, afinal, a pesquisa de laboratório efetivamente avança com base em seus pressupostos. Mas eu era um historiador, e eu via a história humana mais flexível do que ratos em um experimento de laboratório. 36 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o Paul Feyerabend. Foto de Grazia Borrini-Feyerabend. Reproduzido de Wikipédia. Fui influenciado pelos pressupostos de Feyerabend em minha produção intelectual. Nem sempre seguir as regras metodológicas rígidas contribui para o sucesso científico. Sua crítica à consistência do critério, de que nosso pensamento deve se ajustar a caminhada da humanidade em nossa área, é um princípio que parte da lógica que as teorias antigas sempre tem razão. Se lemos um autor e nele nos inspiramos para explicar nosso mundo podemos errar, podemos não encontrar explicação para a singularidade que está a nossa frente. É nesse momento que J o r g e B a r c e l l o s | 37 criamos um conceito, uma explicação, nos termos de Gilles Deleuze e Félix Guattari. A caixa de ferramentas permite isso: o sistema fechado e adotado sem afetação não. A questão não é que as teorias que nos antecedem não tenham valor, mas que o escritor tem o direito de fazer uso de qualquer artifício - racional, retóricos ou vulgares – para desenvolver seu pensamento, suas ideias. Em sua formação você é familiarizado pela universidade a determinadas ferramentas de escrita, determinados modos de escrever, mas ao longo do tempo, você desenvolve suas próprias ferramentas a partir de leituras, de práticas, de observações. Eu tenho as minhas que interferem aqui, e uma delas é me inspirar nos autores que pelo mundo afora entendo que realmente sabem escrever, como Stephan King. Como escrevem aqueles que escrevem? King é um dos mais prolíficos escritores do mundo. É o nono autor mais traduzido no mundo, segundo a wikipédia com mais de 60 romances, com em média 500 páginas. Minha esposa é fã dele e eu não sou leitor dele, não sou leitor de literatura, o que é um grave defeito, mas aprecio seu Sobre a Escrita (Objetiva, 2015) pois é o testemunho de alguém que realmente escreve. Ele dedica um capítulo de sua obra justamente a Caixa de Ferramentas. Ele faz analogia com a caixa de ferramentas de seu avô, carpinteiro, com três bandejas. Enquanto ele está interessado em descrever literariamente a caixa de seu avô, eu me concentro em entender seu método de trabalho. Como nós, King entende a caixa de ferramentas como algo pessoal “Gostaria de sugerir que, 38 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o para escrever com o máximo de suas habilidades, convém construir sua própria caixa de ferramentas e depois trabalhar a musculatura para carregá-la com você. Assim, em vez de topar com um trabalho difícil e desanimar, talvez você saiba pegar a ferramenta certa e partir para o trabalho imediatamente”. (King, p. 101). Isso significa que se uma caixa de ferramenta é muito grande para carregar, perde sua utilidade. Stephen King. Sobre a escrita. Reproduzido: Editora Suma. (Divulgação). Apontei três pontos de partida para escrever: a definição de seu lugar, do seu tema e do seu método. Descrevi que todo autor deve ter uma “caixa de ferramentas”, os conceitos ou teorias que o auxiliam na explicação da sua realidade, o que se denomina de “apoio teórico”. Neta caixa, na bandeja mais próxima, ficam as ferramentas mais comuns. Na escrita, é o vocabulário. Ele só diz J o r g e B a r c e l l o s | 39 no capítulo seguinte como adquiri-lo, mas tenho certeza de que você já suspeitava “se você quer ser escritor, existem duas coisas a fazer, acima de todas as outras: ler muito e escrever muito. Não há como fugir dessas duas coisas. Não há atalho” (King, p. 126). É exatamente assim comigo, então acredito que em maior ou menor grau, será assim com você. Quando estamos na universidade fazendo as leituras das disciplinas de graduação, estamos não apenas incorporando os conteúdos que serão nosso objeto de ensino: estamos também ampliando nosso vocabulário com as leituras que fazemos. A conclusão desse processo se dá com o Trabalho de Conclusão de Curso. No meu tempo, era um trabalho com peso: fazíamos entre 100 a 150 páginas onde desenvolvíamos um trabalho consistente. No curso de história, revisitávamos as fontes, a literatura, apropriávamos de uma teoria, fazíamos sua demonstração, estabelecíamos os limites da pesquisa. Tudo isso exigia conceitos, vocabulário, palavras que foram absorvidas por nós no curso de graduação. Depois eu me vi professor de universidades privadas e lamentei o quanto se perdeu o incentivo ao grande trabalho de conclusão. Vi alunos apresentarem trabalhos com dez ou vinte páginas (meu deus, um artigo!) como trabalho final de curso. Eu sabia que isso era produto de um tempo marcado pela aceleração, como anunciava Paul Virilio, e que aos poucos, cedeu a maldição das redes sociais e seu limite de 140 caracteres. Algo muito errado aconteceu entre a minha geração e a que veio a seguir. Perdeu-se o amor a escrita. Escrever já foi considerado uma arte. Você agora vê alunos perdidos frente a folha em branco. Confesso, eu já tive momentos assim, mas superei e 40 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o aprendi a amar a escrita. Onde foi parar o amor pelo ato de escrever? A regra da simplicidade Depois do vocabulário, vem o estilo na bandeja seguinte: a simplicidade. Havia, como diz King, cursos onde o vocabulário era portentoso. Não sei se modificou, mas eram assim os textos e discursos que eu via no Curso de Direito da Universidade. Eu havia sentido um pouco disso no início de meu curso, com o jargão de análise histórica, mas logo aprendi que ele podia ser substituído por expressões mais simples. King ironiza com o texto difícil e cheio de palavreado de H.P. Lovecraft, mas seria idêntico a qualquer monografia de direito da época, com suas expressões “ditirâmbicas”, etc. A lição de King é que vocabulário é algo que se melhora e não é necessário nenhum esforço consciente para isso, apenas leitura. Ele critica os autores que enfeitam o vocabulário, que procuram palavras difíceis para impressionar. “é como enfeitar seu animal de estimação com roupas sociais. O bichinho fica morrendo de vergonha e a pessoa que cometeu esse ato de fofurice premeditada deveria ficar mais ainda” (King, p. 105). Sua regra é: “use a primeira palavra que vier a cabeça, se for adequada e interessante”. J o r g e B a r c e l l o s | 41 Escrita. Fonte: Pixabay. A escrita é feita de palavras e elas se adequam aos contextos. Não devemos nos frustrar ao constatar que o que escrevemos ficou aquém do que queríamos, porque é da sua natureza. É o preço por simplificar, por tornar palatável ao leitor nosso escrito, argumento da simplicidade defendido por Zinsser. Nos perdemos fácil nas palavras desnecessárias, nas construções circulares. Por todo o lado, a língua pode se tornar difícil “que pai ou mãe consegue montar um brinquedo para uma criança com base nas instruções que vem junto com a embalagem?” pergunta Zinsser (p. 19). Recusamos o simples, preferimos inflar, queremos parecer importante, mas isso não leva a lugar nenhum. E simplificar não leva a perda do conteúdo, mas a sua inteligibilidade: simplificamos quando preferimos a palavra curta a longa, recusamos os advérbios que já estejam contidos no verbo, preferimos a voz ativa à voz passiva, os chamados “elementos 42 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o adulterantes da frase” (Zinsser, p. 20). A simplificação deve ser a regra. A obrigação de tirar o excesso Tirar o excesso é uma obrigação. Mas ninguém diz o que é o tal do “excesso” que marca nossa escrita - Zinsser fala em pensamento limpo. King diz que existem três tipos de escritores. Os primeiros são os escritores ruins, que estão na base da pirâmide da escrita. São ricos e até compram casas no Caribe. Há um segundo grupo no meio da pirâmide que King chama de “competentes” e que existe em todas as áreas, um grupo grande e acolhedor. Luto para estar aí. E há, acima destes, na ponta da pirâmide, os gênios “com um talento que está além da nossa capacidade de compreensão, absolutamente fora de alcance. A maioria dos gênios se quer compreende a si mesmo. Muitos deles levam vidas infelizes” (King, p. 124). King é muito irônico na sua descrição e nela situo os autores que me inspiram a escrever. Umberto Eco é um deles. A esperança de King é poder transformar um escritor competente em um bom escritor, o que não significa torna-lo gênio, e que parece ser uma classe um pouco melhor dos simplesmente competente. É que estar na ponta da pirâmide para ele não significa também grande coisa, já que escritores como Charles Dickens e Shakespeare, que consideramos gênios, enfrentaram ataques da crítica por suposto sucesso “com as classes populares”. A terceira prateleira da caixa de ferramentas é a própria experiência da escrita. Cada um tem sua experiência de escrever J o r g e B a r c e l l o s | 43 ao longo da sua existência. Eu comecei escrevendo artigos de jornal. É que sempre há nos jornais uma página dedicada a opinião, seja nos das grandes capitais ou do interior. Na cidade de Cidreira, onde veraneio, a Princesinha das Praias possui um jornal de divulgação local que tem cerca de 6 páginas chamado O Marisco, o que é pouco, mas possui uma área dedicada a artigos de opinião. Pequenos, mas estão lá. Nunca colaborei, mas sei. Comecei a colaborar com Zero Hora, mas consegui ir mais longe: Folha de São Paulo e Jornal do Brasil. Depois, com a internet, veio as páginas das plataformas de jornais on line: Sul 21, Le Monde Diplomatique Brasil, A terra é redonda, entre outros. No meio do caminho escrevi blos em plataformas de diversos países de língua portuguesa e espanhola. Escrever é um hábito. Você também pode fazê-lo. Nesse caminho, foi justamente o interesse pelas classes populares que me motivou: eu lia muito novos autores e queria fazer com que o leitor comum conhecesse seus temas, suas abordagens. Eu escrevia sobre o mundo que passa aos meus olhos inspirado no pensamento dos autores que eu lia, eu interpretava o mundo a partir de seu olhar, e no caminho, me dei conta que o seu olhar se fez meu. Eu havia incorporado em meu pensamento conceitos e interpretações de autores diversos. É, com dizia Suely Rolnik, esse processo de alimentação que nossa mente faz a partir de leituras, de textos, de tudo o que é escrito. O processo de interpretação de realidade havia finalizado: da teoria à prática, como dizem na universidade. 44 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o Escreva para seu público Escrever para o público geral é diferente de escrever para acadêmicos. Tive por alguns anos o desejo de ser professor universitário, da UFRGS. Fui professor de diversas disciplinas em universidade privadas e cheguei a ser professor substituto da UFRGS. Mas nunca tive o desejo de escrever para a universidade pois eu me lembrava das prateleiras de dissertações de mestrado e doutorado onde raramente os cidadãos iam. Também sabia que os artigos escritos para revistas científicas, apesar de trazerem reconhecimento, tinham poucos leitores. Era o contrário de publicar em jornais: eu sabia que era lido porque tinha o leitor que me cumprimentava, recebia retornos por e-mails. Não existe escritor sem leitor. Por isso comecei a escrever artigos de opinião para jornais. É mais simples porque o espaço assim exige. A academia tem suas exigências: ABNT sempre, o que torna o texto seco, truncado. Quem para tudo para ir para o rodapé ou para o final do texto, a bibliografia? Por isso descobri no ensaio uma forma intermediária: você ali podia ter o melhor dos dois mundos. Tem a criatividade do jornalismo, a análise do artigo científico e permite se liberar de algumas regras. Não é necessário dizer que há inúmeras definições de ensaio, como defensores e críticos. Quando faço um texto que chamo “ensaio”, é uma prosa de não ficção com um tema central e diversos argumentos e que não passa de dez páginas padrão. Este texto que você está lendo é o meu ensaio. Para mim é uma versão melhorada da antiga dissertação, é a solução interpretativa que dou sobre um problema a partir de minhas leituras. Sua forma simplifica exigências acadêmicas – eu posso ultrapassar as quatro J o r g e B a r c e l l o s | 45 linhas para fazer uma citação no texto, eu não preciso fazer rodapés que podem ser maiores que a página do meu texto. O que não posso é deixar de fazer mínimas referências ao longo do texto (o que fica entre parênteses) para depois incluir numa bibliografia, ainda que ela não seja tão comum em ensaios. Mas é assim que eu os defino e faço. Doze ensaios sobre o ensaio. Divulgação O exemplo dos ensaios dos suplementos culturais dos jornais de grande circulação é inspirador. Eles cumprem o papel de traduzir a produção acadêmica para a sociedade. Por exemplo, o 46 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o articulista da revista Serrote Paulo Roberto Pires organizou um livro a partir de artigos que publicou sobre o tema “ensaios” intitulado “Doze ensaios sobre o ensaio” (IMS, 2024). Artigos médios publicados em diferentes momentos que viraram livro. É que o ensaio é uma produção mais livre, sem a maioria das referências exigidas pelo formalismo acadêmico e que atrapalham a leitura. Por exemplo, os autores são respeitados em suas citações, mas raramente são indicadas as páginas das obras de onde foram tiradas as passagens. É um jornalismo que diz: “confie em mim, na minha leitura. Eu estarei aqui se quiser os pormenores, mas agora, deleite-se apenas com minha análise”. É claro, é uma escrita que se limita a determinadas situações, e nesse sentido, se encaixa como produto do uso da caixa de ferramentas, de Michel Foucault:” A teoria como caixa de ferramentas quer dizer: a) que se trata de construir não um sistema, mas um instrumento: uma lógica própria às relações de poder e às lutas que se engajam em torno delas; b) que essa pesquisa só pode se fazer aos poucos, a partir de uma reflexão (necessariamente histórica em algumas de suas dimensões) sobre situações dadas (FOUCAULT, 2003, p. 251). Por isso a caixa de ferramentas é tão útil ao ensaio. Use bem a gramática A gramática é a quarta prateleira. A receita do autor de Carrie para solucionar os problemas gramaticais é muito simples. “Relaxe. Não vamos perder muito tempo aqui. Ou você absorve os princípios gramaticais de sua língua nativa por meio de J o r g e B a r c e l l o s | 47 conversação e leitura, ou não absorve” (King, p.106). Ainda assim, King repassa algumas observações. Manter as regras gramaticais para evitar confusão e desentendimento; uso de substantivos e verbos na mesma frase é indispensável; relaxe: ninguém sabe ao final se está fazendo direito o uso das classes gramaticais; seja honesto: você tem palavras que não gosta, assuma isso; evite a voz passiva e advérbios “acredito que a estrada do inferno esteja pavimentada com advérbios “ diz King (p. 111); não trabalhe com pressão – isso dá medo de escrever e finalmente, a que considero mais importante, divida sua frase em duas, isso facilita o leitor. É a regra da simplicidade. Ele não chega a explorar mais este ponto, pois entende que todos entendem isso. Zinsser, no entanto, dedica-se mais a este ponto. Simplificar para o autor de Como escrever bem é “despir cada frase até deixa-la apenas com seus componentes essenciais. Toda palavra que não tenha uma função, toda palavra longa que poderia ser substituída por uma palavra curta, todo advérbio que contenha o mesmo significado do que já está contido no verbo, toda construção em voz passiva que deixe o leitor inseguro a respeito de quem está fazendo o quê – todos esses são elementos adulterantes que enfraquecem uma frase” (Zinsser, p. 20). Concordo em gênero e grau com ele, mas confesso que a palavra despir me deixa incomodado. Não por que seja moralista, mas porque me pergunto se existe uma frase realmente “nua”? O filósofo Giorgio Agamben, em Nudez (Autêntica, 2014), no artigo que dá nome a obra, explorou este tema. Ele partiu da performance de Vanessa Beecroft realizada na Neue Nationalgalerie, em Berlin, no dia 8 de abril de 2005 onde cem mulheres nuas (na verdade, de colant) se colocaram a vista de todos. Sua descrição do que aconteceu, da vergonha que 48 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o acometeu os visitantes, revela que era um ‘não lugar”, de que não aconteceu como previsto. Essa nudez se repetiu, ele lembra, em Abu Graib, e revela que uma de suas faces pode ser a tortura, e nesse sentido, o desejo de fazer a frase nua só pode ser algo impossível: procurar escrever uma frase totalmente despida de qualquer elemento adulterante é um trabalho torturante. Impossível, não sai como o previsto. Você repassa umas duas ou três vezes o texto, mas você não pode substituir o tempo em que você o produz pelo que você o corrige. Giorgio Agamben. Divulgação Editora Boitempo. Segundo Agamben fazemos isso pois estamos impregnados de teologia. A nudez é da tradição cristã e tem na escrita uma espécie de queda ou pecado original. Queremos encontrar nessa escrita nua, a escrita perfeita, a ideia original de graça que vestia Adão e Eva antes queda. A escrita seria esta espécie de pecado original, J o r g e B a r c e l l o s | 49 expulsão do paraíso dos nossos pensamentos, a gramática e as regras do bem escrever querem nos retirar do inferno que é compartilhar com os outros nossas ideias - quem já passou por ter seus escritos criticados sabe do que estou falando. Depois de repassar diversos autores da tradição filosófica sobre a nudez, Agamben chega a Walter Benjamin para quem a nudez procurada tem uma complexidade que vai além do nu, do revelado. Ela inclui o velado “na beleza, véu e velado, o invólucro e seu objeto, estão ligados por uma relação necessária que Benjamin denomina de “segredo”. Ou seja, o belo é o objeto ao qual o véu é essencial” (p.121-122). Da mesma forma com a escrita, você não pode encontrar uma escrita nua simplesmente porque ela precisa de um véu que caracteriza seu autor, o que chamamos de “estilo”. É por isso que há um limite em que podemos simplificar, limpar e arrumar um texto. Você não consegue tirar todo o excesso de um texto porque algo ali também o caracteriza: uma forma de colocar o objeto, de descrever, de olhar. Limpe seu texto Zinsser diz que devemos fazer o texto limpo porque ninguém mais tem tempo de ler, ou ainda, o tempo que dispõe é de trinta segundos de atenção. Mas simplificar para atender as necessidades de um leitor demasiado envolvido no mundo tecnológico não parece ser o objetivo de professores que querem ser autores. Se não, não escreveriam. O próprio King é repleto de tortuosidades em seu texto literário como Zizek é em seu texto 50 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o filosófico. Eles fazem isso na certeza de que o que escrevem tem algo a dizer, a conectar com seu leitor. Que o caminho que escolhem para escrever importa. Esse modo de dizer é justamente a exposição do labirinto de pensamentos que tem seu autor na forma escrita. Não é notável o quanto King descreve os meandros da escrita imaginando inúmeras situações para, ao final, apenas concluir em uma frase o que queria dizer? Nesse sentido, contexto da escrita importa, tamanho nem tanto. A dúvida. Fonte: Pixabay. J o r g e B a r c e l l o s | 51 Como saber se estamos navegando na escrita ou, ao contrário, apenas construindo um texto verborrágico? Este aparece na falta de encadeamento das ideais de um autor, na má escrita que se perde ao longo do tempo. Se as frases se sucedem em um encadeamento natural, é provável que você esteja no caminho certo. Quando relemos nosso texto nos damos conta de que derrapamos em algum lugar, que faltam conexões, precisamos parar e refazer. Manter o tempo verbal, a manutenção das sequências das frases com elos claros. Persistir com paciência na revisão do texto é necessário e envolve uma leitura interior porque precisa estar claro para quem lê o texto pela primeira vez o que se quer dizer “Pensar com clareza é um ato consciente que os escritores devem se esforçar a realizar. Escrever bem não é algo que surja naturalmente” (Zinsser, p. 26). A conclusão é que fazemos bons textos se os fazemos simples. A simplicidade é produto da busca pelo fim do excesso. Ele está nos detalhes diz Zinsser. Não é “no atual momento”, é “agora”; não é que “nós estamos na direção de um comitê”, mas sim “dirigimos um comitê”; um “médico pessoal” é o “seu médico’. Não é necessário dizer “no atual momento estamos enfrentando alguma precipitação atmosférica”, mas simplesmente “está chovendo”. São todos exemplos de Zinsser que revelam que estamos colocando em nossas frases palavras que não servem para nada. Exceto, ele faltou dizer, para os neoliberais demitirem em massa, quando dizem “demissões necessárias” – o politicamente correto. Se é um conceito elementar em sua disciplina, “paradigma” não deve ser substituída por “parâmetro”, ainda que possa soar um pouco difícil. Na concepção de excesso de Zinsser não há espaço para os conceitos, para os argumentos. Isso é um problema. Não devemos descartar palavras que possam afetar o conteúdo do que 52 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o queremos demonstrar. Faça o número de revisões que considerar satisfatórias para o texto que produz, mas também não leve mais tempo revisando seu texto do que leva para escreve-lo. Para escrever, defina seu modo, o lugar de sua fala, seu método, sua caixa de ferramentas. Estes são meus critérios, e talvez sejam uteis para você. Eles são importantes para fundamentar o que vem depois: a construção do argumento, tema de nosso próximo texto. 3 Sobre o argumento J o r g e B a r c e l l o s | 55 A definição de argumento O objetivo deste texto é fornecer a professores interessados em organizar obras coletivas uma definição de argumento. Já vimos que o ensaio é uma das formas de apresentação do texto de um autor. Eu o defendo como um texto que combina profundidade de análise com simplicidade de forma para amplo público e possível para qualquer formação inicial. O argumento é tudo aquilo que eu uso em minha escrita que serve para garantir e fundamentar o que coloco em meu texto. Ideias originais, fatos, experiências, estatísticas, opiniões de estudiosos escritos por nós de forma lógica e encadeada compõem nossos argumentos. Aqui me fundamento na obra Ensaio Filósófico – o que é, como se faz (Loyola, 1996), de autoria A.P. Martinich, com as modificações advindas de minha própria experiência. Há outras obras de referência para a escrita que uma simples pesquisa na internet pode fornecer. Julguei que este é um bom autor para embasar a definição de argumento pois é um filósofo analítico, professor da Universidade do Texas em Austin, especializado em filosofia da linguagem e em Hobbes. O ensaio filosófico aqui, ou simplesmente ensaio, tem a vantagem de ser um instrumento válido para todas as disciplinas para apresentação de nossos argumentos. A filosofia está presente no currículo dos cursos de graduação porque ela produz uma reflexão sobre os conceitos das demais disciplinas que fazemos. Nesse sentido, é o campo de conhecimento que serve de base para qualquer área de saber. Quer dizer, utilizar como referência um manual de ensaio filosófico não significa que se trata de uma reflexão sobre filosofia, mas do método filosófico como 56 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o instrumento para a construção de argumentos para textos de professores. A obra é organizada em oito capítulos principais. De O autor e seu público até os Problemas da introdução, Martinich passa a estrutura do ensaio descrevendo formas de elaboração, táticas, restrições e metas. Aqui, o cerne de nossa reflexão é a construção do argumento no seu texto, tema que o autor trata no capítulo segundo. Eventualmente pontos demais e de minha experiência serão agregados. Na introdução, o autor de Ensaio Filosófico afirma que “o ensaio parece escrever-se a si mesmo” (Martinich, p.11) pois é produto do modo de escrever de um autor. Seu objetivo é ensinar a escrever algo de valor pois em filosofia “o primeiro objetivo é mais a precisão do que a elegância”, diz. Ainda que exista a figura do gênio, ele afirma que é uma rara condição. Não nascemos, em nossa maioria, gênios. Mas há algo transmissível no oficio de escrever e um deles é escrever uma prosa clara, concisa e precisa. A elegância, sugere, é desejável. Nessa linha, segue Zinsser (2021) para quem a simplificar é tudo. Exemplos de argumentos Em filosofia, quando falamos de argumentos falamos da construção de categorias de interpretação. Isso pode parecer algo problemático para o professor, mas não é impossível. Não devemos temer as categorias. Mesmo os filósofos não estão longe de cometer erros com elas. Gosto do exemplo de Martinich do erro de categoria que aparece em Hobbes. Segundo ele “o intelecto compreende” é um erro de categoria. Intelecto é uma J o r g e B a r c e l l o s | 57 propriedade dos corpos; compreender é de outra, a inteligência. O correto seria dizer “o homem compreende por meio de sua inteligência”. No cotidiano da escrita de professores, raramente estamos diante do rigor de conceitos filosóficos, ainda que conceitos seja exatamente a base com a qual descrevemos nossas experiências. Mas o que o autor nos ensina é que para ser claro precisamos ampliar o pensamento enquanto escrevemos . E as definições ajudam nesse trabalho. Quando o autor discrimina a lógica das propriedades das categorias, fica claro que a nova frase ficou melhor. É que linguagem clara exprime pensamento claro, diz Martinich. Nessa linha, meu exemplo preferido de clareza do uso dos argumentos é o do modo como o filósofo coreano Byung Chul Han escreve seu pensamento. Em A Sociedade Paliativa – a dor hoje (Vozes, 2021) ele diz: “A nossa relação com a dor mostra em que sociedade vivemos. Dores são cifras. Elas contêm a chave para o entendimento de toda a sociedade. Assim, cada crítica da sociedade tem de levar a cabo uma hermenêutica da dor. Caso deixe a dor apenas a cargo da medicina, deixamos escapar o seu caráter de signo. Hoje impera por todo lugar uma algofobia, uma angustia generalizada diante da dor. Também a tolerância a dor diminui rapidamente. A algofobia tem por consequência uma anestesia permanente. Toda condição dolorosa é evitada. Tornam-se suspeitas, entrementes, também as dores de amor. A algofobia se prolonga no social. Conflitos e 58 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o controvérsias que poderiam levar a confrontações dolorosas têm cada vez menos espaço”. Agora observe uma passagem de outra obra, intitulada O desaparecimento dos rituais (Vozes, 2021). Rituais são ações simbólicas. Transmitem e representam todos os valores e ordenamentos que portam uma comunidade. Geram uma comunidade sem comunicação, enquanto hoje predomina uma comunicação sem comunidade. A percepção simbólica é constitutiva dos rituais. O símbolo (em grego symbolon) significa originalmente o sinal de reconhecimento entre amizades hospedes (tessera hospitalis). Um dos amigos quebra a téssera, guardando para si uma metade e dá ao outro amigo a outra como sinal de hospitalidade. O símbolo serve, assim, ao reconhecimento. Este é uma forma particular de repetição: “reconhecer não é: ver algo mais uma vez. Reconhecimentos não são uma série de encontros, mas reconhecer se chama: reconhecer algo como aquilo que já se conhece”. Apesar de publicados no Brasil no mesmo ano, na origem tem um ano de diferença cada um. Você observa que a forma da argumentação é a mesma. As categorias e a análise se seguem de J o r g e B a r c e l l o s | 59 uma forma clara. Ele parte de uma observação ou definição para então arrolar suas características. Aqui, argumentar é não é somente definir, mas caracterizar. Byung Chul-Han. Editora Vozes. Divulgação A simplicidade está em partir de definições diretamente, mas isso não é frequente nem mesmo nos melhores escritores. Depois da clareza das definições ela está onde? Na escrita com distinções, 60 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o oposições. Ele vai exemplificando os significados da dor ou dos rituais em relação ao contexto em que se situam; ele aprofunda a definição ao usar um recurso que é apelar a origem etimológica das palavras. As distinções podem ser suaves, como na definição de ritual, ou mais agudas, como na definição da dor. As frases são elaboradas de maneira curta, quase sequencial. É como se a ideia fosse dividida em dois. Já falamos nosso no artigo anterior. Estes textos eu retirei dos capítulos introdutórios da obra de Han. Eles revelam um estilo limpo, que foge da linguagem cotidiana. Ele se mantém assim ao longo da obra. São bem diferentes do texto do filosofo esloveno Slavoj Zizek. Ele costuma usar piadas para amarar ou introduzir os conceitos, como faz nesta passagem de Em busca das causas perdidas (Boitempo, 2011): A função da repetição tem seu melhor exemplo em uma piada dos tempos socialistas sobre um político iugoslavo que viaja a Alemanha. Quando o trem passa por uma cidade, ele pergunta ao guia: - Que lugar é esse? O guia responde: - Baden-Baden. E o político esbraveja: - Está achando que eu sou idiota? Não precisa falar duas vezes” J o r g e B a r c e l l o s | 61 Agora observe uma passagem de outra obra, intitulada “A visão em paralaxe” (Boitempo, 2008) “Há uma clássica piada soviética que nos mostra como o significado de uma cena pode mudar totalmente com uma alteração do ponto de vista subjetivo. Brejnev morre e é levado para o inferno. Como ele era um grande líder, ganha o privilégio de dar um passeio e escolher o próprio quarto. O guia, então, abre uma porta, e Brejnev vê Kurshev sentado em um sofá, beijando e acariciando apaixonadamente Marilyn Monroe, sentada em seu colo. Brejnev exclama alegremente - Adoraria ficar nesse quarto! E o guia responde: - Não se anime tanto, camarada! Esse não é o quarto de Krushev no inferno. É o quarto de Marilyn Monroe! Nenhuma das passagens de Zizek faz a definição do conceito que pretende desenvolver, seja a da função da repetição, tema clássico da psicanálise, como do efeito paralaxe, desvio do olhar, que pretende na segunda passagem. Ambos são piadas introdutórias ao tema. Um ensaio não é feito apenas de argumentos. Ele pode conter outros recursos que no entender do escritor são importantes para 62 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o “fisgar” o leitor. Em Zizek, as piadas querem conter de forma irônica o conteúdo do argumento que o autor quer desenvolver, mas não são o argumento, são sua imagem figurada. Qualquer texto pode em sua introdução se privar de apresentar o conceito que pretende desenvolver. Ninguém é obrigado a escrever como Han escreve, mas este ensina como escrever um argumento no momento em que o faz. Mas os argumentos não precisam serem apresentadores diretamente no texto, pode mesmo ser algo atrasado em relação a ele. Eu já havia mencionado que Zizek era verborrágico, o que não significa que seja um autor ruim, ao contrário. Tanto que ele reuniu suas piadas em outra obra As piadas de Zizek (São Paulo: Três Estrelas, 2015). Isso significa que o texto tem, é claro, conforme o estilo de um autor, uma notável elasticidade. O argumento reflete uma posição Minha hipótese da diferença na forma de apresentação dos argumentos em ambos autores está no fato de que, sendo um intelectual não engajado na luta social, mas um universitário, Han terminou por desenvolver um estilo mais formal e direto. Não me entendam mal: os textos de Han auxiliam enormemente a criticar e entender o mundo em que vivemos, e nesse sentido, tem imenso valor para a luta social. Ele mesmo enfatiza o quanto foi importante em sua formação o fato de ter sido primeiro um mecânico antes de acessar a universidade. Já Zizek, um filósofo que viveu as dificuldades de criar o pensamento crítico na J o r g e B a r c e l l o s | 63 Eslovênia, pais que provavelmente você nunca ouviu falar, mas que viveu transformações políticas significativas que o afetaram, ele fez uma revolução teórica ao combinar o pensamento de Hegel e Lacan. Por isso buscou o engajamento social de forma mais intensa, tornando acessível ao público o que era extremamente difícil em seu pensamento e para isso ele viu primeiro no humor, e depois no cinema, as ferramentas de divulgação. Então onde aparecem os argumentos no pensamento de Zizek? Já afirmei que ele é um autor prolixo. Ele começa sua obra descrevendo duas histórias divulgadas na mídia em 2003. Em A visão de Paralaxe Zizek inicia a obra com a vinculação de dois fatos: a descrição da primeira visão dos artistas Kandisky e Klee, que se inspiraram na tortura para fazer suas obras e a história da morte do filósofo Walter Benjamin. E só depois ele nos apresenta a tese do livro, ainda de maneira extensa, ao contrário do que faz Han: “O que essas duas histórias têm em comum não é apenas o vínculo surpreendente entre a high culture (belas artes e teoria) e a política vil e violenta (assassinato e tortura). Nesse nível, o vínculo nem é tão inesperado quanto possa parecer: uma das opiniões mais corriqueiras do senso comum vulgar não é que ver arte abstrata (assim como escutar música atonal) é uma tortura? (Na mesma linha, seria fácil imaginar uma prisão onde os detentos fossem expostos constantemente a música atonal). Por outro lado, o senso comum “mais profundo” diz que Schoenberg, com sua 64 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o música, expressou os horrores do holocausto e dos bombardeios em massa antes que viessem a acontecer. Em termos mais radicais, o que essas duas histórias têm em comum é que o vínculo que criam é um curto-circuito impossível de níveis que, por razões estruturais, nunca podem se encontrar[...] Em resumo, o que essas duas anedotas têm em comum é a concorrência de uma lacuna paraláctica intransponível, o confronto de dois pontos de vista intimamente ligados entre os quais não é possível haver nenhum fundamento neutro comum”. Observe que, mesmo eu aqui retirando apenas excertos do pensamento de Zizek, ainda assim o argumento se esparrama ao longo do texto. Por que isso acontece? Não apenas pela grande carga de leitura que o autor tem, capaz de reunir o pensamento hegeliano, lacaniano e formas de expressão da arte em suas análises. Ele acontece principalmente pela capacidade de Zizek de transformar em texto a própria reflexão, o próprio pensamento. Para minha geração, que aprendeu a ler textos, escolher e analisar problemas, voltar a textos, escrever suas conclusões, isso é um passo além. É que, como afirmei, Zizek chegou num ponto da produção do pensamento intelectual altamente concentrado: ele é professor universitário e vive de ministrar conferências sobre os originais de seus livros, trabalho que iniciou ainda nos anos 80, resultando numa enorme carreira intelectual. Não é para qualquer um. J o r g e B a r c e l l o s | 65 Nós, como professores normais, apreendemos as características da construção dos argumentos de seu método de trabalho. Lemos seus livros na esperança de encontrar explicações para nossa realidade e aí podermos argumentar melhor. Talvez as próximas gerações possam fazer algo similar ao método de Zizek. Hoje sabemos que o Google possui ferramentas que transformam, de maneira imediata, o que você diz em escrito. Está na internet o modo de fazer isso, que se tornou possível porque os editores online dispõem de ferramentas de transformação do que você diz em palavra: isso significa o uso simultâneo do microfone com o editor. Não estou dizendo nada novo para qualquer nerd da informática. Mas para a minha geração de professores que tiveram uma formação fora das plataformas, nas bibliotecas, isso é novo. Algo similar ocorre quando você usa o recurso do tradutor do Google, você fala em sua língua e o próprio programa se encarrega de traduzir ou o inverso, traduz. Imagine isso agora aplicado a suas aulas: você poderia transformar em escrito o que você experimenta no dia a dia da escola; você pode transformar suas reflexões de preparo de aula em escrito hoje com instrumentos digitais. Isso é novo para minha geração. Zizek, de alguma forma, conseguiu produzir isso com os instrumentos da geração dele: a pesquisa bibliográfica, o planejamento de aulas, a escrita obsessiva, etc. 66 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o Slavoj Zizek. Reprodução: wikipédia. J o r g e B a r c e l l o s | 67 O argumento organiza pensamentos confusos em textos organizados Isto tudo é para mostrar que, ainda que o critério da boa redação seja a precisão, o problema é que o pensamento humano não é preciso. Lidamos com nossas reflexões cuja característica é a ida e a vinda de pensamentos sobre o mundo. O mundo e o nosso pensamento são confusos e o que fazemos através de nossos escritos é dar-lhe uma certa organização, torná-lo inteligível. Temos dúvidas, raciocinamos sobre elas e esse fluxo de ideias, depois de organizado é que se torna um livro. O problema é como se anota o pensamento enquanto se pensa. É a minha forma de interpretar o que Martinich diz nesta passagem: “Se metade da boa filosofia é boa gramática, a outra metade é bom pensamento. O bom pensamento assume muitas formas. A forma na qual vamos nos concentrar é muitas vezes chamada de análise. A palavra análise tem, em filosofia, muitos sentidos, sendo um deles o de método de raciocínio. Todos podem complicar um assunto; é preciso um pensador treinado para tornar-se um assunto simples” (Martinich, p. 16). Assim, escrevemos ensaios para expor nossos argumentos. O conjunto de argumentos compõe nossa análise de um determinado objeto. Ele enumera três razões para a escolha do ensaio como forma de apresentação dos argumentos. A primeira é que é a forma dominante de solicitação de trabalhos na universidade. Hoje chamados de Papers, forma de elitizar o que é o pequeno artigo científico apresentado em congressos e reuniões. Alguns autores dizem que o paper diferencia-se do artigo por ser mais superficial, outros que a diferença é apenas no 68 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o tamanho. Seu objetivo é apresentar um problema, revelar hipóteses, metodologias e realizar uma análise pessoal. A segunda é a clareza na apresentação da metodologia. Ele possui uma estrutura básica: Título -Nome completo do(s) autor(es); Resumo e/ou Abstract; Introdução; Revisão da Literatura; Metodologia; Desenvolvimento; Resultados; Discussão dos Resultados; Conclusão; Anexos e/ou Apêndices; Bibliografia. Seguir esse formato é útil para preparar o estudante para participar de reuniões cientificas. Mas ninguém usa todos esses recursos em ensaios de divulgação. Aqui eles são adaptados. Vejamos como. Na minha experiência, muito segui este formato em minhas diversas apresentações de trabalhos nas reuniões da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) que participei. De caráter anual, eram locais em que a preparação é mais importante do que o evento em si. Escrever e ser aceito, mais importante do que apresentar. Posteriormente, o contato com inúmeros autores e textos, aprendi que não é necessário seguir à risca os itens de um roteiro científico para produzir um bom texto. Os próprios autores que lemos e admiramos dão testemunho em suas obras de que os termos são apenas uma forma de organizar o que iremos dizer. Se é isso, basta dizer, não? Mais ou menos. Você pode iniciar ou finalizar um texto pela descrição de sua metodologia; pode, inclusive, fazer a revisão de literatura de um pormenor ao longo de um momento do texto; os resultados são a própria análise, em que na prática pode misturar-se a sua discussão. Usar um modelo universitário no dia a dia exige mediações. J o r g e B a r c e l l o s | 69 Talvez as únicas peças que permaneçam deste esquema geral tipo SBPC sejam realmente a introdução e a conclusão que, às vezes, nem estes títulos levam. Por exemplo, com a produção de textos para plataformas o resumo há muito tempo transformou-se simplesmente no que se pode chamar de “cartola” ou “subtítulo” dos artigos. Ou ainda, equivale ao lead do jornalismo. O que é o Lead? É o primeiro parágrafo que resume para o leitor às segundas perguntas: Que? Quem? Quando? Onde? Como? É a famosa tese da “pirâmide invertida” inventada nos cursos de jornalismo para facilitar a leitura. Não gosto deste modelo por uma simples razão: ele entrega ao leitor tudo de uma vez só. Nos cursos bons de jornalismo enfatizam que nem todos os textos se adaptam a este modelo – alivio! É que nos acostumamos a ver jornais e a universalização de certos modos de apresentação das palavras em textos se torna hegemônico graças a eles, competindo com as formulas aprendidas na universidade. A terceira razão da indicação de ensaio por Martinich é que é a forma mais fácil de escrever. E de fato, basta para isso você ter uma noção da estrutura prévia que deseja dar. É claro que depende também da relação da sua formação inicial com a escrita. Matemáticos podem achar mais difícil escrever do que humanistas, mas há notáveis matemáticos que escreveram também livros importantes. Um deles é Henri Poincaré. Ele escreveu A Ciência e a Hipótese (Editora da Universidade de Brasília, 1988), Ensaios Fundamentais (Editora Contraponto, 2008), O Valor da Ciência (Editora Contraponto, 1995) e Últimos Pensamentos (Editora 93, 2023). Na infância, sua professora de matemática o descrevia como um monstro da matemática e ele ganhou o primeiro prêmio nas equações diferenciais. Poincaré delineou uma nova maneira de estudar as 70 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o propriedades destas funções. Ele não somente abordou a questão da determinação das integrais de tais equações, mas também foi a primeira pessoa a estudar suas propriedades geométricas e ganhou o concours général, uma competição entre os pupilos mais destacados dos Liceus da França. Seu nome veio ao grande público pela citação na série O problema dos três corpos (Netflix,2024), construída a partir de uma questão proposta sobre o sistema solar que leva o título do seriado. Ele provou que o problema não estava correto e que a solução não podia ser encontrada e foi premiado por isso. Por outro lado, para filósofos pode ser extremamente difícil escrever com clareza filosofia a ponto de necessitar usar estilos e recursos diversos de sua formação inicial para expressar seus argumentos. Um deles é Nelson Brissac Peixoto. Ainda que tenha feito acertos com seu passado de esquerda com a obra Sedução da Barbárie (Brasiliense), seu melhor livro não é sobre filosofia, mas sobre cinema. Ou melhor, usa do cinema para falar da cultura contemporânea. Assim Brissac inicia seu Cenários em Ruinas (Brasiliense, 1987): “Um vulto parado na esquina espreita a escuridão, um carro atravessa a toda velocidade a estrada deserta, um homem vai para a América procurar o seu país...O detetive, o viajante e o estrangeiro são personagens de nosso tempo. Estranhos na sua própria terra, estão sempre em busca de uma identidade e um lugar. Convertendo tudo aquilo que procuram em figuras de ficção, anúncios luminosos e lanchonetes decoradas. Imagerie de J o r g e B a r c e l l o s | 71 beira de estrada e legendas criadas pelo cinema [...] as histórias contadas aqui, estas buscas de um nome e uma morada, correspondem a três modos de constituição da subjetividade e do mundo na cultura contemporânea. No primeiro, tudo se passa no tempo e no escuro, em ambientes pequenos e fechados, com pessoas que desaparecem ou morrem. No segundo, predomina o espaço aberto e infinito, intemporal, onde os indivíduos vão para longe ou ficam para trás. Depois, na terceira etapa, essas figuras e locais já aparecem como uma mitologia a obcecar e mobilizar aquele que hoje e um exilado em seu país de origem”. Observe que o argumento de Brissac é que existem figuras de ficção utilizadas pelo cinema que ilustram o modo de construção da subjetividade contemporânea. Mas o seu caminho para demonstrar esse argumento é sutil, pois trata de usar imagens de cinema para elaborar sua análise. Todo o livro é a demonstração de seu argumento através de imagens de cinema. Isso é notável e leva a terceira razão da preferência pelo ensaio. Para Martinich, o ensaio é hoje a forma padrão da filosofia profissional. Nele estão explícitos aquilo que o autor deve fazer para ser lido. Entretanto há um público amplo de destino que é desejável ser atingido pelo professor. Eles escrevem suas experiências não para um público universitário, mas para mostrar a rede de ensino, comunidade da 72 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o qual fazem parte e que inclui professores, autoridades, pais e alunos, seus avanços no campo pedagógico. Ainda que desejem, é claro, um amplo público, é este o público de partida de suas obras. Capa do livro Cenários em Ruínas, de Nelson Brissac Peixoto. Fonte: Livraria A Traça (Divulgação). É para eles que escrevem em primeiro lugar. Obras de professores são importantes para a valorização do próprio J o r g e B a r c e l l o s | 73 trabalho de ensino, o que muitas vezes não acontece nos sistemas de educação. Além disso, é uma forma de conquistar valorização no próprio ambiente escolar, já que os alunos, ao verem suas experiências transformadas em livro, ficam felizes. O ato de lançamento de uma obra por uma escola é um feito notável, que chama a atenção da comunidade escolar. Todos participam de seu lançamento. Se professores, estão na sessão de autógrafos e são prestigiados por pais e alunos. Se elemento do Congresso de Educação, serve para defender propostas, alavancar a questão da autonomia do professor. Mesmo individualmente, produzir um livro no sistema público amplia as chances de o professor galgar níveis de progressão funcional. As características dos bons argumentos Esta forma preferencial de público pede elementos básicos da escrita que, se tem elementos da monografia à tese de doutoramento, deles também se distanciam. A regra básica em qualquer desses escritos é dominar a escrita com início, meio e fim, o que, mesmo sendo uma estrutura básica, é algo que se adquire lentamente. Alguns professores partem diretamente para a redação de seus textos, ainda que outros, prefiram o processo que vai do esboço inicial até a escritura final. De qualquer forma, a forma básica para colocar a metodologia de pesquisa de um profissional em ação inicia com a produção de um esquema como no plano de aula - a tomada de notas, revisão e pesquisa, o 74 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o que permite elaborar um ensaio com todas as etapas de pesquisa básicas para trazer a público a experiência de um professor. Martinich cita também dois critérios que devem predominar em qualquer escrito: um ensaio é escrito sobre algo que é verdadeiro. O primeiro é que se existem erros honestos de qualquer pesquisador, por isso não é necessário ser profundo, mas ser comprometido com a verdade. A segunda é o uso da autoridade. A leitura prévia e inspiração em autores de sua formação dá a justificativa necessária, é preciso explicitá-los. Não há nada errado em utilizar conceitos utilizados por outro pesquisador em suas pesquisas, desde que seus resultados se mostrem verdadeiros e sejam claramente indicados. É a citação. Mas, como afirma Martinich, o ônus da demonstração, da prova, é do professor. É aqui que entra a necessidade do argumento. Martinich inicia a descrição do argumento a partir do pensamento de Aristóteles em sua Poética. Ali, o autor antigo diz que o enredo dramático bem construído deve ser integro, isto é, “aquilo que tem um começo, um meio e um fim” (Martinich, p.35). Interessante é que o autor não vê problema em trazer das artes um pressuposto da escrita ensaística, assim como já fizemos aproximações da literatura de autores que usam este método, como Brissac Peixoto. Seu ponto de partida da definição de ensaio é que seu núcleo é o argumento. Um bom ensaio tem começo, meio e fim: o começo introduz o argumento; o meio o elabora e o fim o resume “mas o que é um argumento?”. Martinich afirma que um sinônimo imperfeito de argumento é raciocínio “um bom argumento é aquele que faz o que se supõe que faça, mostra a uma pessoa uma maneira racional de partir de premissas para chegar a uma conclusão verdadeira” (Martinich, J o r g e B a r c e l l o s | 75 p.36). Ainda que o autor afirme que o argumento recebeu mais atenção dos estudiosos de lógica, o uso da disciplina não é fundamental, mas desejável na construção de um texto. O motivo é que a própria noção de argumento é intuitiva “um bom argumento é relativo a uma pessoa”, afirma o autor, já que diante de mesmos argumentos, as pessoas muitas vezes divergem das conclusões. E nesse sentido, ele amplia a noção de argumento pois do passado ao presente, o que se considera bom argumento mudou. Entretanto, ele aponta as características consideradas válidas hoje para sua definição. A primeira é que um argumento é uma sequência de proposições, ou melhor, frases que tem valor de verdade. São afirmações ou declarações que fazemos e nesse sentido, ainda que possamos incluir em nosso texto perguntas para organizar a narrativa, estas não são argumentos. Além disso, eles são apresentados em sequências organizadas entre si, o que significa que são logicamente entrelaçadas. A conclusão é a proposição provada. O que Martinich faz é apresentar uma lógica da construção dos parágrafos (falaremos deles adiante) que nos auxiliam a ver os elementos das frases que desenvolvemos com integras, das premissas da exposição até a conclusão “as premissas fornecem uma forma racional para aceitação da conclusão “(Martinich, p.39). A segunda é que um argumento precisa ser sólido. Ele tem duas características: a validade e a verdade. Mostramos a validade para nos garantirmos de ter chegado à verdade. Por exemplo, considero um recurso da validade a experiência se sou capaz de relatar em detalhes o que aconteceu em uma sala de aula e aonde um grupo de alunos chegou por um recurso de ensino, e aí estou 76 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o outorgando validade a uma experiência. A verdade de um professor está no que acontece em sua sala de aula, na forma como aprendem seus alunos os conteúdos de ensino. Os argumentos que recuperam essa trajetória tendem a construir relatos sólidos e verdadeiros da experiência de ensino. Validade e verdade estão entrelaçadas. A terceira é que um argumento verdadeiro se baseia em premissas verdadeiras. A solidez de um relato está no processo de explicação que chega ao fim com a produção de uma verdade “Isso não quer dizer que essas noções não sejam problemáticas, mas apenas que se tem de parar em algum ponto” (Martinich, p.41). Isso significa também que o autor admite liberalidade em suas definições de argumento, já que em algum momento, é inevitável, deixamos termos indefinidos, já que supomos que muitos significados sejam partilhados, etc. “Em todo empreendimento, acaba-se por chegar a um ponto em que algo tem de ser aceito sem definição ou discussão” (idem). Ora, isso significa em nossa escrita cotidiana que fazer narrativas focadas na definição clara dos argumentos é uma forma de orientar nossa escrita. Cada professor já possui seu modo de escrever. Ele pode incluir poemas, músicas, até chegar ao ponto que deseja demonstrar. A lógica é exigente demais conosco, e nesse sentido, termina por se tornar um obstáculo à escrita e isso contraria o argumento que diz que também consideramos a poética. Desejável é o equilíbrio. O quarto é que nossos argumentos devem ser convincentes, isto é, sólidos e reconhecidos enquanto tal por sua estrutura e apresentação de conteúdo. Não basta as ideias possuírem certo nível de complexidade, elas precisam de evidências para mostrar J o r g e B a r c e l l o s | 77 que suas premissas são verdadeiras “a adequada formulação de um argumento envolve sua estrutura: o argumento tem de ser válido, e as premissas e a conclusão tem de ser apresentadas de um modo que torne evidente sua validade” (Martinich, p.42). O filósofo A.P. Martinich. Fonte: divulgação do autor. As evidências são os registros que fazemos de nossa experiência cotidiana de ensino que são organizadas de forma clara a demonstrar nossas teses, nossas ideias do que é o ensinar. Nossos exemplos devem estar conforme as ideias que fazemos deles, das 78 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o conclusões que nos levam a tomar. É o que faz convincente nosso escrito. Assim quando um professor escreve sua experiência de ensino, para ela ter validade, ser convincente, ela deve conter uma estrutura consistente, conteúdo verdadeiro e ser reconhecido como válido. Um texto com início meio e fim, com conteúdo tirado da experiência que é organizada e interpretada em uma linguagem compartilhada dá a base dos argumentos de um ensaio. Martinich explora outras variáveis do bom argumento. Ele inicia no modus ponens, que traduzido significa o modo de afirmar que ficou claro na exploração dos textos de Byung Chul-Han: sempre afirmativos, definidores. Ele constitui, segundo Martinich “o núcleo dos sistemas naturais de dedução da lógica das proposições “(p.49). Outras formas do autor da escrita rigorosa são a verificação como silogismo disjuntivo e do silogismo hipotético, expressões características da lógica aplicado aos argumentos do ensaio filosófico propriamente dito. Destes, o autor segue a análise para abordar os argumentos convincentes, aquele reconhecido pela comunidade e segue para a descrição da consistência e contradição das proposições em diversos exemplos. O ponto central destas discussões que não aprofundamos aqui é que, segundo Martinich “é importante que você saiba a força das proposições por vários motivos. Você tem de saber qual a força necessária a dar a cada uma de suas premissas, afim de provar suas teses. As premissas não devem ser mais fortes do que você precisa que sejam, porque, quanto maior a sua força, tanto maiores as evidências que vão requerer e, tipicamente, tanto mais difíceis de provar. Mas as premissas também não podem ser demasiado fracas, porque, se o forem, J o r g e B a r c e l l o s | 79 não vão implicar sua conclusão: seu argumento será inválido” (Martinich, p.73). As premissas de um trabalho de um professor estão contidas em seus objetivos de ensino. Se ele é capaz de explicitar seus objetivos com clareza, isto é, o quadro a partir do qual realiza o processo de ensino em sala de aula, através do diário de campo ele pode recolher evidências de que está no caminho da construção de seus objetivos de ensino. Premissas e pressupostos são relacionados, mas tem distinções, já que pressupostos tem a ver mais com a visão de mundo do professor, enquanto que premissas, com seu trabalho propriamente dito. Um pressuposto de ensino é que a transformação do mundo se faz pela educação. Ele não está escrito lá, mas transparece nas “entrelinhas” do que diz o professor. É diferente de um pressuposto que diz da necessidade de adequação do indivíduo na sociedade, presente no currículo oculto de algumas escolas particulares. Na visão que defendemos, o professor demonstra sua tese com argumentos que descrevem como foi a aula, como os alunos reagiram, como ele interviu, como solucionou conflitos, como deu continuidade na aula seguinte aos tópicos de ensino até a sua conclusão. Se uma aula tinha um objetivo e chegou a outro, ele provavelmente não terá condições de sustentar suas posições iniciais, pois o processo de ensino é um trabalho direcionado. É o professor que o conduz. É que entendo que a ideia de que a educação está nas mãos dos alunos, que decidem em nome da liberdade de aprender o processo e conteúdo de ensino, é uma falácia de uma educação 80 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o voltada para o mercado e que visa a ser consumida. Ao menos é essa a minha interpretação do processo. Professores intervém. A autonomia de alunos e professores é relativa a regras pactuadas e objetivos definidos pelo sistema de ensino e que dependem de um contexto de relações estabelecido e claro de antemão. Há um programa de conteúdos de ensino a serem seguidos. Alunos intervém e o modificam até certo ponto. Lamento se os decepciono. Sou tradicional neste aspecto. As indicações filosóficas de como escrever argumentos são uma orientação importante para a escrita do ensaio. Você precisa escrever seguindo as regras da lógica em todas as frases de seu ensaio? É claro que não. Diz King em seu Sobre a escrita (Objetiva, 2015) “Se seu trabalho for feito apenas de fragmentos e orações flutuantes, a Polícia Gramatical não vai prender você. A menos que tenha certeza de estar fazendo direito, é provável que o [escritor] se saia melhor quando segue regras” (King, p. 107). É muito importante a segunda frase, que parece estar em contradição com a primeira, mas não está. É que de fato, você não precisa se policiar o tempo inteiro na construção de seus argumentos, ainda que seja desejável. Você precisa é seguir regras. O bom ensaio encontra um modo de explicitá-las e segui-las. Talvez você só tenha consciência das regras que seguiu depois que escreveu seu texto e voltou a ele para determinar os limites sobre os quais escreveu. Neste momento, você escreve um parágrafo a mais sobre o método e revela as regras que foi construindo enquanto escrevia. Esse é o segredo. Pois os argumentos criam consistência não apenas quando reunidos, mas também quando enunciados e concluídos da forma correta. J o r g e B a r c e l l o s | 81 Depois das frases, os parágrafos Por essa razão, para tornar os argumentos claros, King insiste num ponto: é preciso aprender a escrever bons parágrafos. Escrevemos frases consistentes em parágrafos. Ele sugere escrever preferindo parágrafos curtos a longos. Ele se refere aos blocos de espaço que tornam arejados o texto que escrevemos. Aliás, não é preciso observar a escrita de Stephan King: já no jornalismo cultural é comum observamos não apenas essa regra, mas algo a mais. Um conjunto de parágrafos que tem um título. Subtítulos, se pensarmos em termos de que o ensaio, é o título que damos no interior do tema expresso no título geral. O que essa estratégia faz? Organiza para o leitor o que estamos apresentando-lhe - falarei do leitor num artigo próximo. No meu modo de escrever, não costumo organizar publicações on–line com subtítulos de artigos, mas aqui, onde com estes textos pretendo construir um livro da escrita ensaística, as vezes o faço. Então digamos que um artigo de dez páginas pode conter cinco subtítulos ou seções para organizar a leitura. É geralmente equivalente a ordem de desdobramento dos argumentos. Por isso é razoavelmente fácil. Quando, ao contrário, construo um texto a partir de artigos menores, que são os artigos de opinião, minha tendência é preservar seus títulos agregando-os em uma sequência temática. Isso permite que recupere artigos menores, mas não menos importantes na minha reflexão. Qualquer que seja a organização de seu texto, você sempre terá de partir de uma unidade mínima, seja a frase ou parágrafo. 82 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o Vejamos este último. Diz King que “parágrafos são quase tão importantes em aparência quanto em conteúdo; são mapas de intenção” (p.115). Como se escrevem parágrafos? De diversas maneiras. Uma das que gosto vem da inspiração de Han, com a introdução de uma frase síntese seguida por outras que a desdobram. É a mesma lógica de King para a literatura, só que aplicada ao ensaio. Às vezes, na construção de um livro, é necessário ser inspirador. Um parágrafo pode ser inteiro dedicado a introdução do resumo de uma ideia. Veja o seguinte: “Quando não posso caminhar, escalar ou navegar pelo mundo, aprendi a trancá-lo do lado de fora. Foi um longo aprendizado. Somente quando percebi que tenho uma grande necessidade de silêncio eu pude começar a buscálo - e lá´, enterrado sob a cacofonia de barulhos do trânsito e pensamentos, música e ruido de máquinas, iPhones e removedores de neve, ele estava a minha espera. O silêncio”. Este é o início de Silêncio: na era do ruído de Erling Kagge (Objetiva,2017). A obra mistura crônica e ensaio e nesse limite dos estilos seu autor escreve frases leves e simples com habilidade. King diz que lecionou escrita na universidade do Maine para uma turma de atletas e líderes de torcida. Ele não queria ceder ao simplismo de propor redação “se Jesus fosse meu colega de time”. Ele preferia algo que não fugisse do tema, que permitisse “a estrutura frase-síntese-seguida-de-frases-descritivase-complementares” que exige que o escritor organize seu J o r g e B a r c e l l o s | 83 pensamento. “Escrita é pensamento refinado” diz King, aí o parágrafo deve ser estruturado e quando mais se escreve ensaio, mas rápido o autor vê seus parágrafos se formando por conta própria – aqui uma apropriação à minha moda da interpretação da escrita do ensaio o que King diz para o fato literário. Ao final, escrever um ensaio é a arte de escrever bons argumentos. Você não deve pensar pouco sobre o que escreve, mas também não deve ser um lógico formalista. Por isso a solução é deixar a natureza da sua escrita seguir seu curso e obrigar-se a voltar ao seu texto para corrigir. Se você ler o seu texto em voz alta para reescrever os detalhes, logo você vai perceber o seu modo de construir parágrafos fluentes, com ritmo de história e com sonoridade. Você não pode fugir da estrutura formal de um ensaio começo-meio-fim, mas você pode fazer parágrafos interessantes se você der abertura à poesia que existe dentro de você, que emerge quando você dá aula. Se no meio do caminho, você escreveu uma frase problemática, volte a ela, com certeza você pode fazer uma melhor. E mesmo que não seja a frase perfeita, ao final, você sabe que não é Shakespeare, está claro, então tudo bem. Eu mesmo reviso e termino meus textos com um ou outro erro. São os MEUS erros, o que, de certa forma, me faz humano. Você não precisa seguir receita alguma de parágrafos de dez linhas, mas você é livre para usar frases isoladas para enfatizar o fim de um texto. Como na literatura, o objetivo do ensaio “não é a correção gramatical, mas fazer o leitor se sentir à vontade e, depois, contar uma história” (King, p. 118). Entendo que a visão de King de literatura se aplica perfeitamente ao ensaio. Você muito provavelmente não terá diálogos a reconstruir, a não ser que os tenha fixado na memória porque o 84 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o impressionaram ou os tenha anotado em um diário. Mas você, sem diálogos, tem de estabelecer ritmos “Você precisa aprender a usá-lo, se quiser escrever bem, aprender o que isso significa em termos de prática. Você precisa pegar o ritmo” (King, p.119). Depois que você tem uma ideia do que é argumentar em um texto, adquiriu um ritmo de escrita, é hora de passar a sua estrutura propriamente dita, tema de nosso próximo artigo. 4 Como estruturar um ensaio J o r g e B a r c e l l o s | 87 De novo, o problema dos pressupostos Depois que passamos do estágio de que sabemos os argumentos que queremos defender em nosso ensaio, se segue outro, o da sua estruturação propriamente dito. Escrevo com os olhos voltados ao mesmo tempo para o que quero escrever e a literatura que tenho a disposição. Eu não diria que sou o mesmo menino que na infância começou a escrever inspirado por uma menina na sala de aula; mas eu diria que agora dei um passo a mais, sou capaz de dialogar com aquilo que leio e anotar minhas conclusões. Nesse sentido, deixei de ser criança para ser um adolescente na mesa do bar enquanto escrevo. Como muitos jovens de minha geração, a adolescência foi marcada pela passagem a vida adulta no meio do grupo. Mas eu não era desses de ir para a bebedeira. Eu ia com meus amigos para o antigo bar do Beto, que não existe mais, na esquina das Ruas Venâncio Aires e Vieira de Castro. Comprávamos o jornal Folha de São Paulo, que no fim de semana era bem grande e pronto, tínhamos assunto para toda uma noitada. Não que fôssemos cdfs, mas apenas, ainda sem namoradas, éramos curiosos e ocupávamos o tempo livre descobrindo o mundo através das páginas dos jornais e de certa forma, dialogávamos com eles. Esse hábito ainda me caracteriza. Eu realmente gosto e vejo como importante que enquanto estamos escrevendo, tenhamos um interlocutor. É que a metodologia científica diz exatamente isso, de que devemos situar o objeto que escrevemos no que se chama “estado da arte” de um determinado campo de conhecimento. 88 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o Na universidade isso significa a revisão de literatura, o que sempre termina por se tornar outra das tarefas impossíveis de se fazer: afinal, quem pode e tem tempo de fazer uma revisão de literatura completa? Ler tudo sobre um campo de conhecimento? Essa tarefa é impossível não apenas porque se produz demais sobre qualquer tema que se escolha, como também que, se incluirmos a literatura internacional, pouco tempo ou espaço vai sobrar para escrever o que você realmente quer escrever. Reconheça seus limites Minha opção de diálogo com um autor e uma obra é, portanto, o reconhecimento de minhas limitações. Eu poderia aproveitar as inúmeras revisões de literatura sobre um tema, disponíveis em artigos de períodos como os catalogados na plataforma Scielo, mas prefiro este caminho porque ele me lembra um pouco o dos antigos diálogos filosóficos da antiguidade, onde um discípulo pergunta a um mestre as grandes questões. Novamente, essa noção traz em si o conceito de caminhada que, como já referimos, é algo que se faz com alguém em uma direção. Falarei dos autores e obras que guiam minha trajetória nos próximos textos. Importa agora indicar que faço ensaios sempre dialogando com outros autores que li e gostei, que conheço, como estivesse com o autor naquela mesa de bar. Quando reviso as obras sobre a arte de escrever de minha biblioteca, o faço para ver o quanto minha história de escrita se aproxima ou se distancia de outros autores. Além dos autores que já mencionei, gosto do ponto de partida de Howard Becker em J o r g e B a r c e l l o s | 89 sua obra Truques da Escrita (Zahar, 2015) porque compartilho com ele a ideia de que os problemas dos escritores com a escrita não derivam dos problemas ou deficiências que os autores possuem, mas que as “dificuldades que você enfrenta para escrever não são culpa sua nem resultado de uma inabilidade pessoal. A organização social na qual você escreve está criando essas dificuldades para você” (Becker, p. 8). Assim, os problemas que temos da escrita de professores são problemas da organização social em que vivem, a escola e de sua formação. Isso é paradoxal, pois acreditamos que, ao contrário, estamos justamente naquela instituição que mais condições nos daria de escrever. E acreditamos que, se passamos por uma universidade, esses problemas foram sanados. Aqui, o problema é justamente o tipo de escrita e texto a que nos acostumamos em seu interior: relatórios, pareceres, provas, planos de ensino, tudo isso é um ponto de apoio para o ensaio, mas não é um ensaio. Se não somos o professor de filosofia ou de português da escola, é provável que a palavra escrita não seja tão familiar assim. Minha experiência de professor de escolas de ciclo básico foi diversa: tive a inspiração de meus professores de cursinho, Voltaire Schilling e Luiz Roberto Lopes, de jamais entrar em sala de aula sem um texto escrito, o que me acompanhou durante toda minha experiência profissional. Eu os via entrar naquelas salas de aula imensas dos cursos Unificado e Mauá localizados nas Ruas André da Rocha e Senhor dos Passos no longínquo ano de 1982 sempre com um texto escrito. Não era resumo, não era a apostila, não era um papel com anotações. Eu via que era um artigo pronto. Voltaire entrava com fascículos; Lopes, com folhas de papel A4. Essa imagem nunca me saiu da cabeça pois eu via depois os seus livros e associei de imediato como eram produzidos. Quando 90 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o comecei no magistério, eu entrava em sala de aula com os textos prontos, inclusive quando lecionei em universidade, e não o tradicional “esquema de aula” ou plano de ensino a partir do qual os conteúdos eram “despejados” pelo professor. Na universidade vi isso ocorrer apenas uma vez, nas aulas da professora Sandra Pesavento e eu sabia que isso decorria do fato de que ela também estava escrevendo seus livros. Por sorte então eu antecipei o problema de escrever escrevendo muito mais do que o comum dos professores de minha geração. Como Becker, eu também não sabia que existia um campo chamado “teoria da composição” que elabora modelos e conselhos para sanar os defeitos da redação cientifica e tudo o que já foi indicado nos meus textos anteriores. Como Becker eu também fui inventando ao longo de tempo meus próprios métodos de trabalho debatendo ao mesmo tempo com a bibliografia que tinha disponível. Meu processo de escrever foi feito buscando uma distância da engrenagem acadêmica, aquela que nos faz fazer trabalhos curtos que não faríamos por iniciativa própria com pouco tempo e que as vezes, nem sequer nos interessam. É aqui que o meio determina uma distância do aluno e sua produção e isso inclusive na pós-graduação, onde a conquista de uma vaga está mais na adesão a uma linha de pesquisa e as ideias de um orientador do que propriamente no desenvolvimento de suas próprias ideias. O próprio Becker afirma que sua obra é apenas a sua trajetória, e que “não tenho como concorrer com as obras clássicas de composição, cujos autores conhecem a gramática, a sintaxe e os demais tópicos clássicos melhor que jamais conhecerei” (Becker, p. 17) J o r g e B a r c e l l o s | 91 A escrita de professores implica em reconhecer as situações sociais em que vivem. As indicações para a redação de seus textos não podem ser, portanto, as mesmas para textos acadêmicos, ainda que desejável, pois você não precisa sobreviver a uma tese de doutorado, basta que sobreviva aos limites dados por sua organização, a escola. David duChemin. Divulgação das redes 92 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o Nesse caminho, como eles, minha prosa não é exemplar; sei que meu texto possui também problemas, erros as vezes passam, mas acredito que minha trajetória de escolha de soluções possa ajudar outros professores. Por isso apoio este ensaio a partir de duas obras básicas: a primeira, A Alma da fotografia, de David duChemin (Alta Books) e a segunda, continuo na exploração de O ensaio filosófico, utilizado no capítulo anterior. A alma do ensaio Quando afirmei que a escrita do ensaio deve ser vista como obra de arte não estava brincando. Por isso busquei referências do campo artístico e não da metodologia científica linhas de pensamento que organizassem o modo como construí minhas obras. A obra A alma da fotografia – o fotógrafo como artista criador, de David duChemin me ofereceu insights para organizar minha experiência. Humanista e fotógrafo do mundo, duChemin é autor de diversos livros sobre a arte e ofício da fotografia. Ainda que eu mesmo não seja fotógrafo profissional, com o advento dos celulares, como todo mundo, o aparelho se tornou presente em minha vida. Sabemos que, desde que Walter Benjamim em seus estudos, especialmente Passagens, tratou da relação da fotografia com a realidade, “a fotografia é um meio de apropriação do real sem retoques”, na expressão de Márcio Seligmann-Silva. O que fazemos com o ensaio não é exatamente isso, nos apropriarmos da realidade do ensino de professores e, sem retoques, expressamos nossa realidade? duChemin caracteriza as bases da construção da fotografia como eu vejo a caracterização J o r g e B a r c e l l o s | 93 de um ensaio, ainda que isso possa alarmar os cientistas de plantão. Professores ministram aulas. Reúnem planos de ensino, realizam oficinas, fazem avaliações. Você os olha e com a escrita faz imagens de sua prática, quase como se fosse fotografias. Alguns ministram a mesma aula do mesmo jeito durante décadas como um professor que tive no curso de história cujas folhas de papel de almaço que escreveu o conteúdo já estavam amareladas pelo tempo. Eu mesmo anotei todas as minhas aulas em textos: algumas eram boas, outras eram apenas medianas. Dependendo da disciplina que ministrasse, minhas aulas podiam naquele ano gerar um livro. Isso é impressionante se pensarmos na dezena de aulas professores ministram em uma escola em relação a sua possibilidade de publicação. Isso nos diz que temos uma imensa vontade de dar aulas, mas uma barreira para transformar nossas experiências em texto escrito. Isso aconteceu muitas vezes porque o professor se sente insatisfeito com o resultado de uma aula. Então por que então escrever sobre ela? Às vezes é o professor que está desmotivado, as vezes é o aluno. O problema da ausência do desejo de escrever é a mesma da vontade de fotografar, de que fala duChemin:” deixam a desejar porque lhes falta alma” (duChemin, p. 8). Sua resposta ao ruído do mundo que afeta sua arte deveria ser a mesma para os professores: somente com mais fotografias, ou mais escritos, poderemos superar a banalidade de nossa vida escolar e obter a alma de nosso processo de ensino “somos nós que acrescentamos a sensibilidade, a perspectiva e a poesia” diz duChemin. Tão fascinante como é a câmera fotográfica para o autor deveriam ser as aulas para o professor. Ver emergir a participação do aluno 94 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o a partir de uma folha de plano de ensino que o professor faz é um pequeno milagre. Mais que registar os procedimentos de um professor em sala de aula, um ensaio deve, como uma imagem, revelar algo profundo do sistema de ensino “É muito mais difícil revelar nossa essência, assumir riscos, criar algo que transmita nossas impressões e nossa humanidade” (duChemin, p. 9). Temos uma imensa capacidade de criar histórias em sala de aula para despertar a imaginação do aluno, mas temos imensa dificuldade de registar essas experiências. O fotógrafo trabalha com o tempo e a luz como matéria prima. Qual a matéria prima do professor? As experiências de sala de aula, os instantes em que o aluno interage, sorri e dá retornos ao trabalho do professor, os momentos de alegria e contentamento na troca de conhecimentos que entre si fazem. Assim como a fotografia compartilha o instante de um olhar feliz do fotógrafo, o ensaio compartilha os instantes felizes no universo de ensino. Escrever bem não faz milagres para professores como podem sugerir os manuais da boa escrita. “Precisamos ter o que dizer”, diz duChemin. O ensaio nos ajuda a falar como a fotografia faz o autor ver. É ele que diz “olha só o que aconteceu em minha aula” e por isso o ensaio não deixa de ser a fotografia de determinados momentos de nossa prática. Existe nosso conhecimento técnico, mas existe nosso talento, como nos colocamos em sala de aula, os momentos que escolhemos e excluímos. Nos termos de duChemin, nossos melhores relatos estarão nos momentos em que enxergamos algo que o restante de nossos colegas professores não percebeu. Só podemos escrever sobre nossas experiências se estivermos presentes. J o r g e B a r c e l l o s | 95 Para escrever é preciso inspiração. duChemin tem seus mestres fotógrafos como Sebastião Salgado e diz que poderia ter feito as fotos que fizeram, mas que não as fez “porque não estava lá”. O professor está. Ele não precisa fazer a descrição de suas experiências de ensino como os grandes pedagogos fizeram, mas ele pode fazer a melhor descrição que pode do que vê. Isso serve para fortalecer o objeto único que o ensaio possibilita registrar e que é a nossa visão. Como fotógrafos, tudo o que professor quer fazer são “aulas melhores”, como aqueles querem “fotos melhores”. É que nossas aulas nos movem, são nossa forma de arte, nos fazem pensar. O lugar da técnica na escrita do ensaio A escrita é algo importante para o professor. Nós, professores, se não escrevemos ensaios diariamente, ao menos escrevemos algo diariamente na lousa da sala de aula. Sempre gostei do quadronegro do professor. Minhas primeiras aulas no curso Mauá eram escritas a partir dos em textos que escrevia para preparar, o que já não é muito comum, que passava de forma esquemática no quadro negro, como a maioria dos professores fazem. É uma parte do processo de ensino que é fascinante: você expõe uma ideia para a turma, e em seguida, a anota no quadro negro. A disciplina de história facilita muito isto pois há personagens, datas, fatos que precisam serem anotados pelo aluno do quadro negro para fixação do conteúdo. Sobre a técnica, duCemin diz “pode-se dizer que equipamentos são bons, mas a concepção é melhor” (p.1). Para o professor, a 96 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o técnica é a didática como a máquina fotográfica é para o fotógrafo. Ela tem um modo de funcionamento. Uma aula não é bem feita se não tem didática de ensino. Mas o ensino não se resume ao bom uso das regras da didática, do uso do quadro negro, mas ao que você seleciona e como ensina de seu campo de ensino para o aluno. A aula “é uma jornada estética alcançada por meios técnicos”, diz duCemin, o que significa dizer que não é o que você escreve no quadro negro que instiga os alunos: é o que você fala. É a forma como você narra os conteúdos de sua disciplina que irá marcar os alunos, que os fará lembrar de sua aula no futuro. Foi assim comigo. Eu não lembro as datas ditas por Voltaire Schilling em suas palestras no curso Unificado, que ia sempre que podia quando fazia o secundário. Eu lembro como ele dava aula, a experiência de ensino que ele proporcionava. Foi o modo como pensava sua disciplina que me impressionava. Esse efeito era produto de uma forma especial de organizar o discurso que era dele: havia um fraseado entremeado de humor na explicação das causas dos acontecimentos; os fatos eram ricamente ilustrados com exemplos e comparações, eram os insights de Schilling, que o tornavam seu conteúdo de ensino fascinante. Mas a questão é: como transparecer essa arte da fala na arte da escrita? A minha saída é procurar transmitir no escrito aquilo que me fascina em minha disciplina. Expor tudo o que me encanta sobre a forma de palavras, dominar os conteúdos e expressa-los, como faz a obra de duCemin da fotografia. Aqui, a câmera do fotógrafo é substituída pela biblioteca do professor, sobre a qual dedicarei adiante outro texto. Aula é pesquisa. Sem uma boa biblioteca, que nos permita pesquisar, não temos como fazer uma boa aula e, por isso, um bom ensaio. Com a internet, provavelmente a ausência J o r g e B a r c e l l o s | 97 de uma biblioteca não seja um entrave grande, mas entendo que ainda restringe o campo de investigação de um pesquisador. Os livros mais recentes podem ser, em parte, adquiridos em cópia digital, mas nem todos são. E o pdf não tem a mesma tessitura do livro para fixar na mente do professor os conteúdos de ensino. E sem eles, não tem como fazer um ensaio. Mas não é a biblioteca, bem entendido, o limitador, é a possibilidade que ela dá a sua base de formação para estabelecer um fluxo com os alunos. É o que determina a criatividade do professor, a sua base da exploração dos conteúdos pelos quais é responsável e que produzem insights. O ensaio os anota. Tanto o ensaio quanto a fotografia, no fundo, aparentam ares semelhantes como técnica, pois abrem espaço para a poesia. Se seu ensaio não consegue retratar a carga poética de sua experiência de ensino, ele tem um sucesso parcial. Na minha experiência, você leva a vida inteira para dominar os conteúdos de ensino, não porque eles variem no tempo, o que fazem em realidade pouco, mas porque a literatura sobre os temas de ensino amplia-se dia a dia. A leitura dos autores que fazem avançar minha disciplina realmente importa para me tornar um professor melhor em sala de aula e escrever melhor. Mas seguir as regras é tão importante tanto quanto saber distanciar-se delas. Uma aula autêntica é o ponto de partida para um ensaio de valor. O principal no ato de realizar um ensaio a partir de experiências de ensino está na capacidade de registrar como nasceu a sua curiosidade e a dos alunos por um tema, como você e os alunos manipulam recursos de ensino produto de seu planejamento e criam condições de aprendizado. 98 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o O ensaio como lugar de nossa perspectiva Cada professor, quando decide pelo exercício do magistério de sua disciplina, o faz produto de sua perspectiva. Sua intenção de educar determina aquilo que você é. O que você deseja ensinar com o taco de giz na mão. Você não sai da universidade com a perspectiva de ensino definida para sua aula; você a descobre ao longo de uma série de experiências. O ensaio possibilita anotalas, isto é, fazer o registro importante da sua caminhada forma a produzir também um autoconhecimento. Temos produzido ao longo de nossa carreira inúmeros planos de ensino, além de reunir em cada aula conteúdos que pesquisamos e aprendemos em nossa universidade de maneira singular. Em cada situação de ensino colocamos algumas de nossas ideias em prática, mas raramente anotamos e refletimos sobre as condições de nosso ensino em relação a seus objetivos. Às vezes fazemos isso na reunião de professores, mas raramente elas depois se transformam na base de livros, o que seria outra ideia para as equipes. O que acontece é que professores encontram sua perspectiva de ensino lentamente e tenho certeza de que a escrita é um passo importante desse processo. A primeira vez que comecei a escrever sobre minha experiência de ensino foi na própria universidade, nas disciplinas do currículo de formação pedagógica. Eu já estava trilhando leituras paralelas que entendia importantes para ensinar os alunos dos anos 90. Junto com um grupo de amigos que partilhavam da mesma ideia, chegamos a organizar uma mesa redonda sobre o tema Interdisciplinaridade na História. À época, a disciplina de história estava avançando no que era denominado de Nova História, com J o r g e B a r c e l l o s | 99 novos objetos, problemas e métodos, como defendiam Pierre Nova e outros historiadores. Alain Finkielkraut. Reprodução wix.com. No Brasil, com a hegemonia do pensamento de esquerda na universidade, essas correntes eram recusadas, mas víamos um horizonte importante para o ensino pois, como defendia Alain Finkielkraut em A derrota do pensamento (Graal, 1988), nessa época, “os professores eram modernos, e os alunos, pósmodernos”. Para nós a história tradicional, ainda que exigida pelo vestibular, não era suficiente para encantar os alunos. Essa experiência de reflexão foi anotada: escrevemos palestras que ministramos em evento na PUC de Minas Gerais. Foi a primeira vez que fiz ensaios a partir de minha pequena experiência de ensino: o estágio curricular. 100 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o Depois, além de registrar minhas aulas propriamente ditas em texto que depois viraram meus livros, eu mesmo refletia sobre os recursos de ensino que utilizava: o uso de histórias em quadrinhos, do cinema, da literatura, tudo isso virou objeto de análise em obras que publiquei. Quer dizer, saber os conteúdos de ensino é tão importante como saber como queremos ministralos. Eu me lembro de ensinar o tópico de Renascimento para alunos do ensino médio do Colégio Mauá, uma das primeiras escolas que fui professor, aprofundando os conteúdos relativos à arte, o que me obrigava a resumir os temas políticos e econômicos pois assim eu via que a aula ficava mais interessante para os alunos. Eu havia, é claro, imitado meus mestres: Luiz Roberto Lopes sempre ministrava aulas com o apoio de um projetor de slides para mostrar as obras artistas renascentistas ou trazia um toca-discos onde nos mostrava músicas desse período da coleção da Discoteca Pública Natho Hehn, da qual foi diretor por muitos anos. Diz duCemin “O processo criativo é tão interativo, tão dependente de uma cadeia de ideias e circunstâncias, que não estou certo se poderia ser diferente” (p. 12). O ensaio é o instrumento que torna pública a perspectiva de ensino de um professor. Sua escrita deve, por isso, expor o caminho da sua conscientização, seu entendimento do processo de ensino e seu papel no mundo. Não é a maneira que ensinamos “mas a maneira como fazemos. Não é o que enxergamos, mas o que percebemos e pensamos sobre o que percebemos” (p.13). Temos algo a dizer para nossos colegas professores, seja da mesma disciplina ou outras com nossas experiências, mesmo que seja “nossa, que beleza!” (idem). O ensaio que um professor realiza sobre seu processo de ensino aponta a direção de nossos objetivos, reflete um momento da experiência do professor. J o r g e B a r c e l l o s | 101 “Qual é a melhor exposição de um tema”? pergunta duCemin. Em sua perspectiva, é justamente a pergunta que o ensaio quer responder. Ela só pode ser respondida quando o professor organiza sua visão com os planos de ensino, aula e anotações em suas mãos. Ele escreve sobre sua experiência “o que pensamos, sentimos, tentamos dizer e como o tentamos”. Escrever o ensaio sobre nossa experiência de ensino significa organizar um texto no qual, do planejamento da aula a sua execução, oferecemos ao leitor a descrição e análise de nosso processo de trabalho de forma organizada. Ele precisa registrar a cadeia de acontecimentos que levam a nossa perspectiva a se transformar em uma situação de ensino. Não é apenas nossos dramas para produzir uma aula, mas a maneira como a produzimos “Não é o que enxergamos, mas o que percebemos e pensamos sobre o que percebemos” (p. 15) que faz o ensaio ser o espelho de nossa experiência. Por isso para podermos escrever um ensaio precisamos da observação, da atenção. Somente nossa perspectiva pode assumir a responsabilidade sobre a exposição de um tema que é a de que somos professores de uma disciplina: o ensaio é apenas a forma como a registramos como a fotografia da realidade é para um profissional. É a nossa experiência que impõe um ritmo de escrita ao ensaio “e o que pensamos, sentimos, tentamos dizer e como o tentamos, entre as quase infinitas possibilidades, está em constante mudança, se não todo o dia, gradualmente à medida que evoluímos como pessoas e artistas” (idem). A escrita auxilia o professor a não tornar sua prática mecânica. Se ele considera o exercício do magistério uma arte, se tem consciência de sua necessidade de renovação, ele é capaz de fazer 102 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o um ensaio que se comunique com outros profissionais. Ele precisa do ensaio para ver quem ele é, para mostrar que é capaz de dar alma a suas aulas. Em A alma da fotografia, duChemin defende a manutenção de um diário para o fotógrafo evoluir na sua arte, o que já sugerimos em nosso artigo anterior. Para ele, em primeiro lugar, um diário fornece elementos para o próprio autor referir-se ao seu processo. É o lugar onde “analiso meus pensamentos, minhas preocupações, alegrias e curiosidades (p. 14). Para ele, que é fotógrafo, tal processo o faz pensar sobre o pensar. Mas é em um ponto que ele deixa em um lugar secundário que vejo como fundamental para o professor: o ajuda a ser paciente. Paul Virilio é o filosofo que afirmou pela primeira vez a importância do ato de parar. Ele é um analista da velocidade no mundo contemporâneo e fundou o que ele chama de “dromologia”: dromos=corrida. É uma metáfora para compreender o mundo em que vivemos e que exige sempre mais produtividade de cada um, inclusive do professor. Aqui a imagem é a do professor que corre de uma aula para outra, de uma escola para outra, sem tempo para pensar sobre seus processos de trabalho. O diário, ao contrário, o obriga a parar, a refletir. Ele precisa não ser veloz, mas paciente. A paciência é o caminho para o autoconhecimento e o ensaio seu instrumento. Ele coloca uma perspectiva em seu estado de evolução permanente. Ele precisa do diário para se perguntar sempre “o que estou tentando ensinar? Para quê? “ Todo professor tem a necessidade de que seu processo de ensino tenha um significado maior. Que o processo de aprendizado seja fascinante para seus alunos como o foi para o professor. Existem J o r g e B a r c e l l o s | 103 milhares de professores na engrenagem maquínica da educação, mas poucos os que fazem uma reflexão mais profunda sobre o que fazem. O ensaio como lugar de uso de uma linguagem. Muitos professores acreditam que seu processo de ensino não daria muitas páginas escritas. Eles de fato sentem que seus planos de ensino não têm muito a dizer a outros professores. Afinal, todos que ministram uma determinada disciplina seguem os mesmos conteúdos de ensino. Mas compartilhar planos e conteúdo de ensino não significa que os professores deem suas aulas da mesma maneira. Dois professores da mesma disciplina podem acreditar que momentos diferentes do ensino de seus conteúdos são razão de seu êxito profissional. Nunca achei interessante ministrar aulas sobre pré-história e antiguidade, ao contrário de colegas que se especializaram na área e se tornaram, inclusive, professores universitários. Eu preferia mais o campo da teoria da história e da história contemporânea e confesso que quando descobrir a existência da chamada história imediata, cai boquiaberto. Enfim algo que poderia falar diretamente aos alunos, pensei. Atribuímos lugares específicos aos conteúdos de ensino para nós mesmos. Gostamos mais de uns do que de outros. Nossas disciplinas utilizam linguagem e conceitos próprios e escrevo este texto para os professores de diferentes disciplinas – e, portanto, com diferentes linguagens – que tem interesse em escrever sobre suas experiências. Quando esse professor escreve um ensaio 104 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o sobre elas, ele tem mais possibilidade de fazer com que seu processo se aperfeiçoe, conseguir reconhecimento e empoderarse em seu sistema de ensino. O ensaio é o fio condutor da amostragem de nossas escolas: como estabeleço a relação entre os conteúdos de ensino entre si e o universo de meus alunos? Essa primeira reflexão introduz outra: a de como adapto a linguagem universitária a uma linguagem coloquial sem perder conteúdo de ensino. Se introduzo na aula exemplos ou objetos concretos, como isso afeta a transmissão de conhecimento que busco atingir? O ensaio mostra como tomamos decisões no planejamento de ensino e na prática. O ensaio é este instrumento que permite ao leitor observar o mundo da educação, compartilhar com você o olhar, dividir as inúmeras possibilidades de ensino, inclusive entre disciplinas diferentes. Dos elementos que selecionamos, o ensaio revela como os selecionamos, os elementos da metodologia de ensino, as opções e as razões da escolha. O ensaio é um instrumento para compartilhar segredos. Meu segredo de ensino está em possuir duas coisas: um olhar voltado para os problemas do presente e uma boa biblioteca. Sem o primeiro, eu não poderia escolher a agenda que toca as pessoas; sem o segundo, eu não poderia aprofundar meus insights e encaixa-los na literatura da disciplina. É que só podemos ter efetividade no ensino se o que temos a dizer afeta nossos alunos de alguma forma; além disso, se mostrarmos para o nosso aluno que temos algo novo a dizer, o que somente o estudo possibilita. Por isso leio autores do campo das humanidades usando-os como apoio teórico de minhas análises. Eu deixo que suas análises influenciem o que vejo e sei que faço isso apenas com uma J o r g e B a r c e l l o s | 105 parcela do acervo disponível. Ninguém chega ao fim do domínio dos conteúdos e pesquisas de sua área, mas provavelmente, se tiver método, poderá contar boas histórias em seus ensaios. Ele serve para registrar o que vivemos em sala de aula. Você não precisa entender todos os elementos de seu próprio processo de ensino, mas com certeza, um ensaio é um bom ponto de partida para isso. Ele vai poder colocar explicações para você em espaços que você ainda não tinha parado para refletir. Ensaio como lugar de interpretação Já falamos que escrever sobre a experiência é um ato revolucionário. Num mundo massificado, expressar algo e ter uma opinião é um valor. Mais ainda é exterioriza-lo no universo da cultura do cancelamento. É que escrever é mais fácil do que aceitar críticas. A escrita é narcisista por isso é afetada por elas. Há um enorme risco que assumimos quando expressamos uma opinião escrita, pois o espaço é muito diferente da sala de aula “O que é dito na sala de aula fica na sala de aula”, foi a primeira regra do currículo oculto que aprendi nas escolas onde exerci magistério. Isso era uma estratégia para ampliar o vínculo com os alunos, criar uma rede de solidariedade – e se isto é possível entre aluno e professor nos tempos atuais – que dava base a solidariedade de classe. Lembro-me do estranhamento de ver que na sala do professor falava-se de tudo, mas raramente de como eram nossas aulas. E quando falávamos, eu achava esquisito que nenhum professor era inseguro, nenhum tinha dúvidas. Era parte daquele cenário que cada professor era o senhor em sua 106 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o disciplina e, portanto, não havia espaço para questionamentos. Eu anotei essa experiência em meu estudo de mestrado. Nas escolas que visitei, os professores faziam da mesma forma. Quando damos uma aula, fazemos escolhas. É isso o que nos torna professores, e também, de certa forma, como diz duCemin, artistas. São nossas opções por ênfases de conteúdos, métodos de ensino, problemas de investigação que fazem com que uma aula seja o que desejamos que seja. Quando escrevemos sobre essas experiências sob a forma de um ensaio, o que fazermos é trazer a público o que fazemos, conversamos através do texto escrito com outros professores, coordenadores, comunidade escolar ou qualquer ator social que venha a ler o que escrevemos. Por essa razão, é natural que muitos professores ofereçam resistência a escrever. Tememos um julgamento. Mas não há o que temer “podemos fazer arte, e chamar nosso trabalho de arte, sem dizer que é brilhante, ou mesmo bom. Podemos comunicar coisas através dessa arte sem dizer algo especialmente intelectualizado ou revolucionário. Podemos ser desastrados com nossas ferramentas e clichês em nossa expressão, mas pode ser arte do mesmo jeito. Pode dizer algo da mesma forma” (p. 34). O autor quer dizer que não precisamos fazer uma aula típica dos grandes mestres para escrever sobre ela. Não funciona assim, porque simplesmente damos aulas: perfeitas ou imperfeitas, melhor um dia do que no outro. Escrevemos sobre suas diferenças, sobre se atingiram seus objetivos ou não, independentemente de sua qualidade pedagógica. Escrevemos porque queremos aprender com a experiência. Pode ser a pior aula de nossa vida, mas o fato de nos dispomos a interpretá-la, de assumir uma posição descritivo-analítica, faz toda a diferença “Nosso trabalho nunca irá se aprimorar se sentarmos e esperarmos. Nem jamais se tornará J o r g e B a r c e l l o s | 107 mais intenso enquanto continuarmos afirmando que não temos nada a manifestar” (idem). O ensaio é um ato interpretativo, ele não é a prova em um julgamento moral da qualidade de nossa aula. Se não tivemos sucesso em produzir nossa melhor aula, talvez tenhamos sucesso em interpretar as razões de seu fracasso. O que o ensaio faz é apresentar da melhor maneira o que fizemos, as razões e os percalços que tivemos. Nossa liberdade é muito maior no texto escrito do que na cena de aula. Na escritura, interpretamos com os instrumentos que estão ao nosso alcance. Na sala de aula não somos donos do processo, interagimos com os alunos e na escola, com a direção e o corpo de ensino. Podemos refletir sobre uma aula do passado que foi um fracasso para que a aula seguinte seja melhor; podemos refletir sobre uma aula de sucesso e isso não acrescentar nada a nossa prática, mas poderá auxiliar a prática de outro professor. Escolhemos as aulas, escolhemos a escrita. A conclusão é que publicar livros a partir de ensaios produzidos por coletivos de professores são ambíguos. Eles são coletivos, pois representam a produção de uma escola num determinado contexto. Os professores vivem sua escola no contexto da democratização das relações de ensino ou não, da cultura escolar participativa ou não. Mas eles escrevem individualmente cada texto. Quando o professor escreve, é da sua experiência disciplinar que ele fala e que é variável. A sua volta há outros professores que compartilham a experiência de ensino na mesma escola, mas são diferentes. É aí que se faz a diferença. Podemos fazer parte de nosso trabalho com anotações da repercussão entre pares de nossas aulas, anotamos suas impressões, vemos suas reações e as registramos em um diário. O desafio de levar nossa experiência de ensino anotada para outros públicos é que exige 108 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o que se saia, em algum momento, da nossa própria visão e se vá adiante para captar, ao menos fragmentariamente, como é a visão daqueles com quem interagimos. Se falamos das relações de professores com servidores, alunos, merendeiras, faxineiros, pais, de alguma forma deveremos ser capazes de captar sua visão sobre nosso trabalho. A estrutura do ensaio é exatamente a organização dessa exposição de visões, que inicia na do próprio professor, mas vai mais além nas análises sobre essas outras visões de que somos capazes anotar e de fazer. Seja a partir do que você pode anotar em seu diário após um encontro, das anotações posteriores que fez a partir da recordação do que um interlocutor falou, mesmo que isso seja aproximado e fragmentado, é melhor do que não tentar. O ensaio é estruturado para mostrar nossa interpretação organizada. Você descreve nele situações de ensino visando a um propósito, você relata como se estivesse produzindo uma fotografia, você une suas observações, visões de mundo, emoções num todo coerente e lógico que explica o movimento do ensino. Esse caminho situa você entre descrever o processo de ensino e apreender a alma dele. 5 Bases metodológicas para o ensaio J o r g e B a r c e l l o s | 111 A necessidade de um esquema Os manuais de redação apontam inúmeros itens a serem observados na estruturação de um ensaio. Já apontamos para o fato de que eles, regra geral, giram em torno dos seguintes itens: Título; Resumo; Introdução; Desenvolvimento/ argumentação e Conclusão. Na introdução você apresenta as razões da escolha do tema; o que será argumentado e a própria descrição da sua estrutura; o desenvolvimento é o maior trabalho, já que é o corpo do ensaio propriamente dito. É ali que você analisa seu tema, dá exemplos ao leitor, e pode mencionar a bibliografia para explicar e justificar suas conclusões. É onde emergem citações, comentários. A conclusão é uma listagem de resultados Este é um esquema tão geral que não é necessário mais explicações. Mas a maioria dos ensaios que conheço, definitivamente não segue este roteiro. O motivo é que é muito...chato, é incapaz de possibilitar algo que a escrita deve possuir, a poesia. Ele não estimula o leitor a participar do processo. Ele é científico porque exclui o texto de toda a sua capacidade literária. Os melhores ensaios que li tinham literatura: mistério, suspense, inclusive na revelação de seu objeto e fundamentação. De minha parte, para estruturar um ensaio, valho-me de dois princípios essenciais: aprofundar o tema e aceitar abrir mão. Eu parto do argumento de A.P. Martinich “há bem menos gênios do que se pensa, e mesmo pessoas geniais em redação reconhecem a necessidade de se preparar para escrever e de reelaborar” (p.97). Esse argumento reforça a tese de que nós, professores, não podemos no sentir menor se o ensaio que pretendemos produzir não sai de uma só vez com alta qualidade. 112 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o Somos professores, não gênios. Por isso ele define que o melhor método do ensaio aquele no qual a redação é feita por estágios. A escrita é um processo e precisa ser respeitada. A estruturação depende de que nosso processo de escrita seja respeitado. Ele resultará num ensaio mais porque insistimos nele do que pelo fato de seguirmos roteiros pré-estabelecidos. Eu me recordo de meu próprio processo de escrita de minha dissertação de Mestrado em Educação intitulada “A pedagogia de Eros”. Produzida no interior do PPG em Educação, eu havia reunido inúmeras informações de campo em meu diário, descrições de cenas, pessoas, instituições. Nos anos 90, sem o computador a mão, eu organizava os capítulos como quem montasse um quebra-cabeça, encaixando pedaços de folhas onde estavam escritas as análises e demais informações para obter, do alto, uma sequência de desenvolvimento. E u me lembro do imenso trabalho que tive para organizar as mais de 300 páginas de papel A4 no chão da Biblioteca da Câmara de Vereadores, onde fiz a parte final da redação de meu trabalho, a quem agradeço a cedência do espaço a Jerri, seu chefe. E depois de ter a visão, contente de que havia atingido algo de valor, ouvir de minha orientadora Marisa Eizirik: “refaça!”. Imagine meu desespero. Retomei o original, reorganizei mais uma vez e então, meses após, passou no crivo da orientadora. E eu também gostei do resultado, pois não imaginava aquela forma. Ficou então com cara de “livro”. Quem refaz a organização de uma dissertação de mestrado está preparado para refazer qualquer texto, pensei. O que esse exercício me ensinou? Aprofunde o tema J o r g e B a r c e l l o s | 113 Você não sabe a estrutura inicial do ensaio enquanto não o escrever. E não sabe a estrutura final se não o tiver reorganizado ou repassado ele de alguma forma. Depois que você escolheu o tema do ensaio, escreva sobre ele. Regra geral, na universidade, são os professores que escolhem os temas sobre os quais escrevemos nosso trabalho. Na vida profissional é diferente, você mesmo escolhe. Esse grau de liberdade também é problemático, pois você precisa determinar o tema e ser capaz de justificar a sua importância, o que até então era dispensado a você. Como professores, vários temas surgem no decorrer de nossa experiência de ensino. Quando iniciamos o magistério, geralmente nossas expectativas são muito elevadas em relação a realidade escolar. Os primeiros tempos são de aprendizagem, do estabelecimento das primeiras relações com as turmas. Cada turma é singular e você pode identificar seus atores. Se você está nesta fase do desenvolvimento de seu trabalho, o tipo de preocupação que você tem é relacionada a como você estabelece as primeiras estratégias de tratamento para os alunos “difíceis”, aqueles que por alguma razão, são indiferentes ao processo de ensino. Já falei que se você quer escrever um ensaio, você precisa anotar o que acontece em sala de aula com a disposição de interpretar. Vamos falar um pouco mais sobre isso agora. Você observa como os alunos reagem as suas primeiras perguntas. Você sabe que seu foco de atenção deve estar naquele que não participam, murmuram um “sei lá” às suas perguntas. Esta é uma questão importante: como você reage a indiferença em relação aos seus conteúdos de ensino? Isso pode ser um foco do ensaio. Você 114 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o desiste dele ou faz uma nova pergunta para outro aluno e depois retorna a ele? Você o observa reagindo ou não? Os colegas de disciplina que participam servem de estímulo para ele participar ou não? O trabalho de anotação da condução de uma hora de aula pode ser cansativo, mas você precisa fazê-lo pois precisa identificar qual atitude foi responsável pela mudança de comportamento em sala de aula. Foi sua, foi da turma, do aluno e em que contexto aconteceu. Quando você descreve sucessivamente ações de sala de aula, você está fazendo a etnografia lutar a seu favor. Você encontrou um tema: modos de enfrentar resistências em sala de aula. Nele você analisa o comportamento de aulos durante uma aula ou um conteúdo de ensino, explorando as táticas e estratégias que você adotou e porque deram certo ou errado. Você descobre que, para cada perfil de aluno que você descreveu, há uma atitude correspondente que faz o sucesso ou o fracasso da estratégia de ensino. Quando você faz isso, você está aprofundando um tema, dando-lhe a tessitura de descrição e interpretação que a forma ensaio permite. Imagine quantos temas a observação de uma sala de aula pode fornecer. Quando você observa e anota uma aula, você cria a base para o aprofundamento de sua análise. Você se compromete com uma posição. Eu discordo da posição de Martinich “os temas do ensaio devem ser neutros” (p. 99). Isso não existe no magistério porque sempre há o comprometimento do professor com uma visão de ensino. Seu engajamento está no fato de que, através do ensaio, o professor visa a construir aulas melhores. Não é apenas uma análise de seu processo de ensino: é a tentativa de chegar a uma conclusão transformadora. Mas Martinich coloca algumas estratégias para que nos demos conta de que estamos J o r g e B a r c e l l o s | 115 desenvolvendo argumentos sólidos sobre nosso processo de ensino. É aqui que aparece seu comprometimento com o processo de ensino: importa que você argumente a partir de uma experiência de ensino, que você se comprometa com a posição de encontrar a verdade de seu processo de suas aulas. É claro que o tempo de experiência de sala de aula importa. Quanto mais você tem de tempo de sala, mais você encontrou experiências, tentou procedimentos. Então para professores mais experientes, eles já têm um repertório de temas, problemas, objetos de ensino mais delimitados, e sabem mais o que querem investigar da realidade de ensino. Eles têm também mais exemplos e anotações de aula que podem usar em seu trabalho, o que deve servir para perceber seu progresso como professor. Acostume-se com uma técnica de elaboração É você que escreve. Você é que sabe a melhor forma de produzir. Regra geral, há três formas muito utilizadas. A primeira é o esboço, seguida da elaboração sucessiva e da anotação. Em todas, a matéria prima são as ideias que o professor tem de seu processo de ensino. Elas partem da noção de que, ou o professor tem apenas um esboço, ou que precisa elaborar ou tem simplesmente ideias dispersas que anota em um diário. É claro que nada é estanque, que tais formas se interpenetram. Quando esboçamos um ensaio a partir de um tema, o que fazemos é estrutura-lo, indicamos os tópicos que queremos falar. Martinich lembra o fato de que em seu tempo de formação era 116 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o comum ser solicitado o relatório seguido de seus esboços preparatórios, o que evidentemente trapaceou. Mas ele ainda assim defende sua realização “se puder escrever um esboço plausível a partir de seu texto, você terá certeza de que ele tem uma estrutura inteligível” (p. 102-3). O ato de escrever. Reproduzido Pixabay A elaboração sucessiva é mais próxima do método professoral: ela começa com uma frase ou tese que é o ponto central do ensaio do professor que vai sendo sucessivamente explicada em seus termos próprios em diversas versões. É como se o professor estivesse em sala de aula explicando o contexto de uma matéria, mas de forma anotada. Isso possibilita, por exemplo, a utilização J o r g e B a r c e l l o s | 117 de perguntas, o próprio raciocínio do autor se transforma em argumento. Reunindo fragmentos de ensaio faz-se um ensaio. Aonde faltarem fragmentos, o autor introduz suas ideias, seja início ou na conclusão “as grandes vantagens desse método de elaboração de um ensaio são a ordem e o controle. O método é ordenado porque cada acréscimo se justifica e é convidado por alguma parte específica do texto, e é controlado porque, a cada estágio da elaboração, o autor sabe o que o ditou a presença do texto adicionado; a cada estágio, ele sabe que, o que está antes é que é, por isso, mais essencial do que outras partes” (p.106). Finalmente, a anotação de conceitos, onde o autor simplesmente registra sua “tempestade mental” de modo a facilitar a emergência do que ele quer dizer “na realidade, tudo quanto se escreve contribuiu de alguma maneira para o produto final, seja ele qual for, ainda que aquilo que for escrito seja descartado” (p. 108). Na minha experiência, o descarte ocorria sempre por uma necessidade imperiosa de redução dos espaços para os quais escrevi ensaios: sempre há um notável limite de caracteres, seja para os jornais como para as plataformas. Eu me surpreendi quando descobri que, antes de olharem o que você escreveu e a qualidade de suas proposições, a primeira coisa que faziam os editores para os quais encaminhava minhas colaborações era olharem o número de dos caracteres de meu texto para saber se o artigo cabia ou não na página. Então, uma vez organizado o texto, eu era obrigado a cortar para “caber no espaço”, o que me parecia uma violência, mas que aos poucos, serviu-me para obrigar a reler o texto, refaze-lo, para reencontrar o argumento principal que queria defender. Quando anotamos o fluxo de nossa consciência, criamos pensamentos, argumentos e conceitos com os quais organizamos 118 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o nossos ensaios. Eles podem estar organizados em um primeiro esboço, mas isso não significa que sejam suficientes para serem o ensaio. Isso é o retrabalho que definirá. Eu me recordo, por exemplo, de quando anotava em meu diário de pesquisa as falas de depoentes durante as visitas que fazia as escolas, eu anotava ao mesmo tempo ideias, insights, ligações com conceitos de pensadores de obras que estava lendo naquele momento ou que foram importantes em minha própria formação. Isso era essencial em minha experiência de escrita de ensaios porque, de fato, o que eu fazia era explicar o mundo diante de meus olhos a partir da minha leitura prévia. Imaginei, outro dia, que isso seria equivalente ao oficio da alfaiataria. A arte da costura de tecidos sob medida de certa forma é o equivalente deste meu processo: você tem ideias, conceitos, expressões que você... “costura”, que você estabelece vínculos. A linha usada pelo alfaiate é o seu pensamento; os tecidos, as matérias coletadas da realidade. O ensaista é uma espécie de alfaiate porque o que ele faz ao final, o ensaio, tem unidade, assim como uma vestimenta construída por um alfaiate tem caimento. Isso é bem diferente de Henri Frankenstein, personagem criada por Mary Schelley em 1931, produto da costura de corpos, um ser desprovido de alma, na versão cinematográfica tantas vezes criticada. Martinich coloca em um lugar secundário o que considero fundamental para um ensaio: a pesquisa em literatura secundária. Ele entende que a pesquisa impede de escrever, pois começar escrever seria o mais difícil e a pesquisa retardaria a tarefa “se encher a cabeça ou as fichas com coisas que os outros dizem, você pode descobrir que parece não haver espaço para você prensar no que quer dizer” (p. 111). Isso não é verdade. Martinich acredita que o caminho certo é escrever primeiro e pesquisar J o r g e B a r c e l l o s | 119 depois, quando estiver “esgotado seus pensamentos” (idem). Não acredito nisso porque na minha experiência, escrevo minhas ideias ao mesmo tempo em que pesquiso. Eu preciso ler sobre o tema para encontrar o apoio e desenvolvimento do meu ponto de partida; daí escrevo e quando encontro outro ponto importante, reflito a partir dele com novas leituras. É o que chamo de diálogo de escrita. Por isso eu termino transformando as formas de redação propostas por Martinich: ao invés de fazer nota de rodapé para coisas que quero escrever que já tenham sido escritas, eu transformo em texto minhas ideias. Vejo semelhanças e diferenças em autores que considero importantes no meu pensamento: sigo seu pensamento quando diz que devemos citar alguém que fala uma ideia melhor do que faríamos, mas não vejo problema em partir de algo que considero muito bom em um autor que leio para sintetizar a conclusão de um pensamento ou mesmo inicia-lo. Mesmo quando alguém é capaz de detalhar melhor do que eu, eu não perco a oportunidade de comparar seu pensamento com o meu – lembre-se, nunca há pontos de partida exatamente iguais entre pensadores diferentes. Finalmente, não creio como ele afirma, que se alguém diz algo que esteja enganado, isso sirva para argumento de que eu possa refutar. Ao contrário, não se trata de refutação simples, mas de dialogar com pensamentos diferentes que eu não conhecia. É que Martinich está envolvido com o formato acadêmico onde é fundamental a precisão de notas de rodapé ou de final de texto. Estas últimas são verdadeiramente o inferno do leitor: fala sério, quem para o texto para buscar no final da obra o significado detalhado de cada nota? Eu dificilmente faço isso, ainda que, tenha desenvolvido um hábito curioso: porque então não ler as notas na sequência, como se fossem textos? Se houver algo de 120 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o interessante, será incluído no meu pensamento. Mesmo as notas de final de página, por serem em geral grafadas em fontes menores, não me agrada. O olho gosta de fonte maiores pois fazer esforço com o olhar cansa. O ensaio é justamente um texto continuo e interessante para transformar notas de pé de página em texto discursivo, no meu entendimento. Eu realmente não gosto de fazer distinções no meu texto, isso é como fazer um texto de segunda classe, como se fosse um cidadão de segunda classe. É curioso porque para o autor assim em meu ponto de vista, atingimos o mesmo objetivo: “não adie, escreva”, só que no meu caso, me parece mais interessante que minha escrita, aqui e acolá seja com o apoio dos autores e interpretações que acho convenientes em um texto contínuo e uniforme. Quando escrevi Neoliberais não merecem lágrimas (Clube dos Autores), meu estudo sobre os efeitos das enchentes, a culpa das políticas neoliberais em sua agudização estava presente logo do início dos primeiros textos na ideia de que a cidade se transformou num cenário de guerra. Eu sabia que, de antemão, somente um autor explica o fenômeno da guerra como entendo: Paul Virilio. Fui a ele, e de certa forma, a medida que o lia, via expressar-se em nosso mundo atingido pelas águas sua concepção de guerra pura, que vai além da guerra propriamente dita, pois envolve a ideia de “guerra por outros meios”. Daí então ficou muito fácil, a partir desta pesquisa combinada com o acompanhamento do que acontecia durante a enchente pela imprensa, fazer registros e interpretações a partir deste olhar, o que foi responsável por um dos fios condutores da obra. O mesmo aconteceu quando escrevi Tempos de Pandemia (Clube dos Autores). J o r g e B a r c e l l o s | 121 Gregoire Chamayou, autor de Teoria do Drone. Divulgação Editora Antîgona. Aqui, a reflexão sobre os efeitos dos vírus para mim era similar aos efeitos dos ambientes hostis descritos na primeira parte do livro de Teoria do Drone, de Gregoire Chamayou (Cosac Naif, 2015). É que este autor atualizou a noção de guerra de Virilio, trazendo para seu interior os novos avanços da tecnologia em relação a guerra tradicional, espaço exato onde vi atuar o vírus, o que me possibilitou oferecer uma perspectiva nova – mas também, de certa forma, irônica - leia o livro – do fato de que viramos objetos de caça de um vírus. 122 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o Não há como escrever sem pesquisar. Você precisa dela para estabelecer seus insights, e, não deveria ser exatamente esse o espírito da investigação? O de sermos capazes de vincular o que descobrimos ao que nos antecedeu? A leitura nos estimula a interpretação, você para e pensa “eu vi algo parecido em outro lugar. Qual?”. Você pesquisa, localiza uma passagem, relê o texto inteiro e dá-se conta de semelhanças e diferenças entre o que você vê e o que autor viu e interpretou. Você escreve sobre isso, sobre o que comparou. Eu concordo com Martinich com o fato de que, ainda assim, você precisa voltar ao texto para aperfeiçoa-lo. Aceite abrir mão A terceira técnica necessária para fazer um ensaio para mim é “abrir mão”. Eu a fazia na prática, mas encontrei uma explicação de origem curiosa. Aceite abrir mão é uma técnica apontada por Beth Kempton em Wabi Sabi (Best Seller, 2018), conceito oriundo da estética japonesa com raízes no Zen e na filosofia do chá, espécie de sabedoria atemporal oriental aplicável as coisas práticas. Ainda que o filosofo esloveno Slavoj Zizek teça suas críticas a certa ideologia do orientalismo, eu entendo que a filosofia Wabi Sabi colabora na construção de nossos ensaios. Ela nos ajuda a ter uma visão real do sentido de produzir um ensaio no dia a dia frente aos problemas corriqueiros que todos vivemos. Você pode se preocupar com o “quando” vai fazer seu ensaio: no inverno, porque ele sugere mais introspecção do que as atividades ou no verão das férias escolares – quer dizer, ele ajuda a ressignificar sua produção ao longo de sua vida. Não é uma J o r g e B a r c e l l o s | 123 obrigação, não é um objetivo único a ser atingido. Eu agora os faço porque me aposentei e me dedico mais do que era jovem “As pessoas instintivamente sabem o que o conceito de Wabi Sabi representa, mas poucas são capazes de articula-lo”, diz Kempton (p.20). Peça fundamental numa filosofia da desaceleração do mundo, ele também auxilia a entender que não precisamos acumular ensaios. Fazer desesperadamente. O mundo e seus problemas parecem que nos exige sempre uma posição, mas eu vi pela minha própria experiência que fazer um escrito sobre tudo o que acontece nos deixa sobrecarregados. A produção de ensaios não pode ser um compromisso excessivo. É disso que fala o “aceitar abrir mão”. Se podemos transferir os ensinamentos dessa filosofia oriental para a prática ensaista ela seria algo que podemos resumir em três aspectos: 1) o ensaio é nossa resposta cognitiva à beleza que revela nossa natureza; é uma apreciação do mundo imperfeita e incompleta; é o reconhecimento de que podemos entender o mundo de forma simples e natural. Como o Wabi Sabi, o ensaio é um “estado do nosso coração” (p.23). Das características do Wabi Sabi, a que mais me chama a atenção para o ensaio é sua visão do mundo como algo incompleto, transitório e imperfeito. A perfeição é impossível e a imperfeição é o estado natural das coisas. Não é à toa que autores da escrita sempre valorizam a simplicidade e a construção contínua dos ensaios por um escritor. Kempton dedica o capítulo quarto a detalhar o que a filosofia Wabi Sabi entende por “abrir mão”. Assim como não existe vida perfeita, eu diria que não existe ensaio perfeito. Já defendi aqui que reconhecer a revisão de nossos escritos à exaustão não tem sentido: você não pode levar mais tempo revisando um texto do que escrevendo-o. O que a 124 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o filosofia Wabi Sabi faz é nos aprofundar nos motivos disso “a ideia de uma vida perfeita não leva em conta o contexto da nossa realidade complexa e desafiadora”(p.107). É o iyaku, o texto imperfeito tem mais força e graça, é o jeito autêntico de escrever. Abrir mão do texto perfeito não é fácil na sociedade da performance. Nossa trajetória universitária impõe que façamos monografias cada vez mais perfeitas, abrangentes, com objetos bem determinados, pressupostos, métodos e conclusões enumeradas de forma clara. O texto perfeito. A filosofia Wabi Sabi nos ensina a abrir mão de parte de tudo isso, de aceitar o modo como escrevemos com suas imperfeições. Eu me lembro que fiquei chateado quando, frente a alguns erros de português em um texto que escrevi na graduação, uma professora disse que era “produto da minha formação em escola pública”. Ela queria dizer que eu era um deficiente linguístico, que produzia erros em meus textos que não existiriam se tivesse tido a oportunidade de estudar nas boas escolas privadas. Isso me chateou por algumas razões. Primeiro porque eu realmente gostei do ensino público a que tive acesso. A escola pública nessa época não era tão problemática como a atual e os professores faziam, na opinião minha, um bom trabalho. Lembro com saudade as aulas Colégio Júlio de Castilhos: não tinha laboratório de informática, é verdade, mas tinha ótimos professores de língua portuguesa e literatura, além de ciências. Não foi uma educação ruim, foi a educação da época. Depois, eu, de origem humilde, vi o esforço de minha mãe para comprar meu material escolar. Ela tinha pouca instrução, mas fez de tudo para que eu tivesse acesso à educação básica. Porque eu iria desprezar esse esforço? Essa crítica atentava contra meus professores e minhas origens, por isso a mágoa. J o r g e B a r c e l l o s | 125 Vincent de Gaulejac. Divulgação Universidade de Rosário. “Nada é completamente imutável”, diz Kempton (p.108). É assim com nossa escrita. A transitoriedade da vida faz parte também faz parte de nossa escrita. Nada garante que nossos escritos vão durar. É seu estado natural. Não precisa se esforçar demais, apenas o suficiente. É que você pode fazer revisões de textos e sempre mudar algo. Como a mudança é inevitável, você acredita que seu texto nunca está perfeito. Tentar chegar a esse patamar é inútil e estressante. Ficar mudando o próprio texto termina se transformando em um mecanismo de fuga do escritor, que nunca publica com o medo de que seu texto não esteja à altura...altura do quê? Dos grandes escritores? Eu já afirmei que somos apenas escritores-professores, gente...comum! Mas se você não escreve algo, você é criticado por nunca produzir. É o dilema do capitalismo paradoxante, de nos colocar problemas impossíveis 126 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o de solucionar, nos termos de Vincent de Gaulejac (Hucitec, 2024). Não busque a perfeição, mas o bom texto Eu me recordo de um excelente professor de história de meu curso de graduação que não avançava na carreira acadêmica porque não escrevia livros. Ele podia ter escrito com sua experiência de anos de ensino, mas nunca o fizera. Havia a percepção na acadêmica de que ele não era do nível dos grandes mestres daquela universidade e provavelmente ele se sentia menor por causa disto. Ele também se recusava a cursar pósgraduação, mas suas aulas eram muito boas e dariam um excelente texto. Eu me recordo de outro professor que também viveu as margens do sistema de ensino. Ele era de esquerda e não queria se submeter ao sistema universitário. Mas um dia ele cedeu e fez pós-graduação. Isso não afetou seu modo de ser e ele foi reconhecido. Foi para ele mais um momento de sua vida. Esses professores sempre foram pressionados a escrever textos, a submeterem-se a uma contabilidade que o sistema de pósgraduação exige, e convenhamos, esse é o pior dos mundos, o de publicar por obrigação. Passar pelo crivo de revistas com avaliações tipo A, B, C que exigem textos perfeitos. Eles souberam que isso não tinha sentido. Mas eles deixaram de escrever. Seus textos não seriam perfeitos, mas eu os leria mesmo assim. Com um desses professores fiz notáveis grupos de estudo nos anos 80, em sua casa, na Rua Garibaldi. Ele poderia tranquilamente ter escrito sobre essa J o r g e B a r c e l l o s | 127 experiência, ter anotado suas reflexões sobre o pensamento de Marx. Líamos, dele, nessa época, Ideologia Alemã e Critica da Economia Política, dois textos de minha formação em história insuperáveis. Ele simplesmente não se apegava a isso. Ao final de sua carreira, fez o doutoramento. Discordo de Kempton que entende que devemos esquecer o passado “o passado não está mais aqui. O que quer que tenha acontecido (de bom ou ruim) já se foi” (p.110). Eu rejeito a ideia da filosofia Wabi Sabi de que não devemos nos apegar ao passado, mas de fato, adiante, ela diz que se trata de “aceitá-lo”. É isso. Eu aceito que meus textos tenham pequenos erros. Eu faço de tudo para que eles não passem por minha revisão e assim não causem má impressão, mas eu não consigo tirar todos os erros. Um leitor apontou-me três erros de digitação: eu respondi – só? Com os corretores ortográficos ficou mais fácil corrigir isso e confesso meu agradecimento a Microsoft. Mas eu preciso rever, assumir a responsabilidade: a internet também – pasmem – produz erros ao fazer correção. Isso não é notável? A valorização do presente promovido pela filosofia Wabi Sabi se reflete em meus ensaios. Eu também acredito que, basta olhar um problema do mundo ao redor para escrever um bom ensaio. Você escreve para dizer uma verdade de sua vida; você escreve para mostrar suas ideias sobre o mundo aos outros. Nosso imaginário é povoado por representações perfeitas, como na propaganda dos anúncios, mas ao nosso redor, o mundo é imperfeito. Porque nossos textos seriam perfeitos? Sabemos que o mercado editorial possui inúmeros profissionais para tratar o texto e torná-lo perfeito e seria uma coisa boa que pudéssemos a todo o momento contar com eles. Quem sabe até um tradutor para fazer nossos livros serem publicados no estrangeiro? A 128 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o verdade é que, como pessoas comuns, não podemos. Se não estamos sob o abrigo de uma editora, nós mesmos temos de providenciar nossa finalização como já afirmei. Eu aceito isso. “Aceitar não significa abandonar ou se entregar, mas se render à verdade do que está acontecendo e ter um papel ativo em decidir o que acontecerá depois” diz Kempton (p. 115). Você não está bem e não há motivo para escrever, a não ser que você queira falar sobre sua doença e não será o prazo de encaminhamento de um texto para uma revista que decidirá por você o que fazer. Temos ideia de que se fazemos ensaios imperfeitos e que isso é negativo. Há uma notável negatividade em torno da imperfeição. Em O pequeno livro de tradições japonesas: a arte de alcançar uma vida plena (HarperCollins Brasil, 2021) Erin Niimi Longhurst retoma a cultura oriental – o chamado japonismo, em suas palavras – para descrever os elementos do Kintsugi, a beleza da imperfeição. Kintsugi ou kintsuguroi é uma arte que significa “conectar com ouro” segundo as lendas atribuída ao xogum do século XV Ashitaga Yoshimasa que, frente a um reparo mal feito em uma peça de cerâmica, apelou para artesãos encontrarem uma solução. A solução encontrada foi aplicar verniz dourado, transformando peças estilhaçadas em objetos mais bonitos do que eram antes “em vez de serem descartadas ou deploradas por causa de seus defeitos, o objeto passa a ter mais estima do que nunca, pois sua deformidade ou defeito torna-se um ponto forte com a arte do kintsugi, contribuindo para sua beleza” (p. 79). O conceito de kintsugi é uma metáfora. Eu vejo sua aplicação gráfica em certos livros. Certas editoras tem aos poucos introduzidos no formato tradicional das obras que publicam detalhes que são imperfeiçoes para o estilo acadêmico, mas que J o r g e B a r c e l l o s | 129 tem o objetivo de chamar a atenção para o texto. Primeiro, o alinhamento da página. A regra acadêmica hegemônica defende que um livro qualquer deve possuir alinhamento justificado, isto é, reto nas duas margens, à esquerda e a direita. Mas há coleções e editoras que preferem romper com isso, deixando apenas o alinhamento à esquerda do leitor, deixando o da esquerda, desalinhado. Esse detalhe dá um certo “charme” ao livro, que passa a ter uma textura diferenciada na leitura. Não há, por exemplo, separação silábica e nem espaços sobrando entre as palavras, que aparecem nos textos alinhados pelo computador. A obra de Alberto Acosta, O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos (Editora Elefante, 2016) é uma dessas. Aqui, o design gráfico acomoda-se a proposta da obra: papel cartão que imita embalagens comuns e não o clássico papel cartão plastificado, o desalinhamento à direita do texto, uso de recursos de fontes fora do padrão e grafismo em preto em branco para as páginas, tudo faz-se como se a obra fosse produto imperfeito de uma editora. Ao contrário, ela apenas faz é imaginar um design alternativo ao acadêmico comum, com suas páginas numeradas seriamente em fundo branco. O ensaio é o lugar onde podemos expressar em parte o ideal Wabi Sabi. “Eu não sei tudo, mas não preciso saber tudo, porque sei o bastante”, diz Kempton. (p. 116). E completa: “Estou fazendo o melhor para ser tudo o que posso para quem realmente importa. Eu sou o bastante” (idem). Agora emerge, em termos de filosofia oriental, as questões que formulei lá atrás, no início de meus textos: a questão é sempre ter claro os motivos que escrevemos, porque queremos escrever, para quem queremos escrever. A escrita não é esse objeto de acumulação a mais que escolhemos, ela não é objeto de uma corrida por títulos 130 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o em um concurso de admissão ou progressão funcional. Abro mão desses lugares porque não preciso estar neles, e posso aplicar essa energia na escrita de textos que realmente me importam. Meu público, sendo de professores, são outros professores, pais, alunos, coordenadores pedagógicos. Se você vivencia o processo da escrita desse modo, você é capaz de aceitar que pode revelar suas imperfeições, permitir que os outros o vejam. Reduza seus problemas Tenho problemas com a língua portuguesa. Já referi a isso. Ainda hoje preciso olhar o uso dos porquês. Saber se o título deste livro dedicados a professores-autores leva ou não hífen é para mim um martírio. Pesquiso no google. As duas opções existem. A beleza, diz Kempton, está mais longe, em compartilhar uma verdade, uma essência pessoal. Isso cria sintonia com o leitor “todos estamos aprendendo uns com os outros” diz Kempton (p.118). Talvez muitos leitores considerem um erro gráfico em um livro um pecado. Eles vêm o livro como um objeto sagrado. Deveríamos ler e ter livros como algo comum. Eu escrevo um manual de escrita de ensaio a partir de minha experiência, ele não é o manual definitivo como é o de Umberto Eco Como se faz uma tese. Eu escrevo como quem descreve o seu quebra cabeça interior da escrita, e as vezes nem sabemos quais peças ele contém, tanto que precisamos de outros autores para dizer “é isso que se trata”. Para os orientais, é uma honra aceitar sua imperfeição, somos “tesouros imperfeitos” como o copo de porcelana quebrado. Gosto desta analogia. Eu escolho modelos J o r g e B a r c e l l o s | 131 e autores que são minha inspiração, mas entendo a crítica de Kempf. Ela diz que devemos prestar atenção aqueles que tem sucesso nos caminhos similares que queremos seguir, mas.... nem tanto! Você também tem sua trajetória a seguir. Você precisa também abandonar-se para fazer o seu caminho “sempre vai haver alguém que sabe mais, fez mais, tem mais experiência ou conhecimento que nos em algum campo específico, em determinado momento” (p.120). Aqueles que nos inspiram devem ser isso, apenas inspiração, e não um lugar de projeção de nossas deficiências. Devemos abandonar nossos mestres quando eles nos oferecem um horizonte irreal, longe de nossas possibilidades de escrita. Em seus termos, se dermos atenção a vida ao nosso redor, já teremos o suficiente de matéria para um ensaio; podemos abrir mão de escrever outras coisas. Nos termos de Kempf, um ensaio deveria ser como um pote de argila. Se quiséssemos um ensaio perfeito, como os que são solicitados pelas editorais de revistas acadêmicas, bastava uma máquina para isso. De fato, hoje já tem: chama-se IA (Inteligência Artificial). Mas não queremos ser impecáveis como um artesão não quer ser, já que em ambos, as imperfeições contam. Nossos defeitos no ensaio revelam o estilo, os cacoetes, mas também o lirismo que só quando nos permitimos transparecer quando somos verdadeiros na escrita. Por isso mesmo, se apenas pensamos nas camadas de técnica de que devemos seguir para fazer um ensaio para ele ser reconhecido, não seríamos nos mesmos, apenas estaríamos projetando neles aquilo que imaginamos que os outros gostariam de ler. Se abandonamos a ditadura da perfeição estilística que exigem de nós quando escrevemos, descobriremos que a “imperfeição perfeita” (p.121) 132 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o também existe no ensaio, porque ela já existe em nós, o que nos abre a conexões com outras pessoas. A conclusão é que, ao fazer um ensaio, não podemos ignorar o que acontece ao nosso redor, mas não precisamos fazer drama se por acaso algo passou, segundo Kempton. Quando aprendemos a abandonar aquilo que nos prende, avançamos um pouco mais. Ver um ensaio por aquilo que ele é, significa, ver de seu tamanho real. É isso que escrevo do que observo; isto é importante para mim por tais razões; meu objetivo é realizado no ensaio pela escrita. Não estamos concorrendo ao Oscar da escrita. “E não tenha pressa, não há desespero”. Você escreve como algo da vida. Você não interrompe o que está fazendo porque o ensaio é mais importante. Tudo na vida é. Aprenda a achar o momento de sua escrita. Faça o melhor que puder com o que você tem a mão. Se procurarmos o ensaio perfeito, nunca o escreveremos. Descanse um pouco entre um escrito e outro, pesquise em caso de dúvidas, volte a escrever, diria o Wabi Sabi do ensaio. 6 A biblioteca do professor-autor J o r g e B a r c e l l o s | 135 Nós somos nossa biblioteca A inspiração deste texto partiu da leitura que fiz no Sler do artigo de Carlos André Moreira “50 livros que me fizeram quem sou” (Sler, 20.6). Ele, como eu, reconheço que “boa parte de quem sou vem dos livros que li”. Ele elegeu o número 50 devido ao fato de que ele estava completando essa idade, e como é tradição de seus textos; eu fiz uma lista de 70 livros sem critério algum, a não ser o de mostrar uma linha de temas que considero importantes para o professor acessar para escrever seus ensaios ou dar uma aula com uma visão ampliada do social. O fato de ser um número redondo foi apenas casualidade. Moreira selecionou obras de ficção; eu listo aqui obras de não ficção, certo de que isso contribuirá para professores-autores terem ideia do que considero uma biblioteca para ensaistas. Esta é uma seleção de obras de minha biblioteca pessoal, que não é diferente da biblioteca de qualquer outro professor, apenas revela as escolhas que fiz em no meu caminho de construção da base de conhecimento que me levou a ser um autor de ensaios. Se fosse na medicina, talvez eu fosse um “clinico-geral”. O leitor encontrará aqui um mapa de autores e temas que considero importantes no campo das Ciências Humanas para professores e que persigo desde os anos 80. Há autores aqui que acompanho obra a obra. Fica aqui a primeira dica: procure escolher autores que lhe sirvam de apoio teórico, acompanhe sua trajetória intelectual lendo seus livros. Não se contente apenas com uma obra, não se preocupe se desconhece outros autores, conheça o melhor possível um ou alguns. Livro é diferente de parente: dá para escolher. Tenho todas as obras de Paul Virilio, as li e ainda 136 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o fico fuçando na internet para ver se descubro alguma novidade. Você logo encontrará os seus e poderá ir atrás dele. Fica aqui a segunda dica: invista numa boa biblioteca. Não adquira apenas durante o curso de graduação, persista na ida a livrarias e bibliotecas vendo a atualidade da produção dos campos que lhe chamam a atenção. E depois, não esqueça de colocar em seu testamento o destino. Uma biblioteca, uma escola, sei lá. Vai lá que um parente resolva vender a quilo parte do que foi sua trajetória. Agradeço a Moreira que tenha compartilhado em seu texto um pouco dos autores que o levaram a ser o que ele é – o notável escritor que acompanhamos nas páginas de Sler, que faz ironia e análise como poucos - e espero estar a sua altura com esta relação. Livros de formação: Todo pesquisador tem aqueles livros que considera essenciais em sua formação. Eles deram a visão, o modelo, o raciocínio ou simplesmente o olhar que você queria ter. Disse que não há mal algum, aliás, é desejável, ler autores e se inspirar neles. Eis aqui os meus autores e obras de formação: 1 - Guerra Pura, de Paul Virilio (Brasiliense, 1984). Eu já disse que só li na educação básica obras de literatura que os professores mandavam. Foi na universidade que comecei a escolher meus livros. Quando você ainda não tem dinheiro para comprar os livros, você chega nas estantes da biblioteca da faculdade e simplesmente passeia entre elas até encontrar algo que chame sua atenção. Você para, leva o livro para a mesa e fica...lendo. Antes J o r g e B a r c e l l o s | 137 de eu ter condições de comprar meus livros, eu fazia isso na UFRGS, mas também ia muito a biblioteca da PUC fazer passeios...estantísticos! Entre as estantes. Tipo “rato de biblioteca”, ainda que a expressão me seja meio ofensiva. Esse autor foi o primeiro que acompanhei. Eu seria um stalker literário? Perseguir as obras de autores se tornou meu método. Iniciei por ele depois que o li na disciplina de filosofia sua obra Guerra Pura. Para um aluno de primeiro semestre, foi uma hecatombe. Não apenas porque era diferente dos livros das outras disciplinas, mas pela perspectiva de análise que combinava filosofia, urbanismo e os problemas contemporâneos que trazia: implosão psíquica do mundo, combinação da análise política, social e econômica. Novos conceitos – máquina de guerra, entre eles - e o questionamento de coisas sagradas como a tecnologia. Eu sabia que um dia eu queria escrever com esse tipo de perspectiva, de ser capaz de criticar o que todos acham normal. Li tantas vezes que ele está com páginas caídas. E ainda leio. 2. Partidos Comunistas – paraísos artificiais da política, de Jean Baudrillard (Rocco, 1978). Já não me lembro qual foi o primeiro livro que li deste autor, se este ou A sombra das maiorias silenciosas (Brasiliense, 1985). Acho que foi este porque eu me lembro do conflito interior que me provocou. Eu estava num contexto universitário dos anos 80 onde o pensamento era de esquerda e que a sua prática estava na política, consagrada em defesa das classes populares que emergiam com os novos movimentos sociais. Então como compreender as ideias de um autor que igualava as práticas de direita e esquerda em seu simbolismo? Ele criticava a esquerda, o PC de sua época, francês, burocrático e arrogante. Hoje vejo que a esquerda do passado francês que ele criticava chegou ao poder tempos depois no 138 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o Brasil. Ela é passível de críticas pelo que cede as políticas neoliberais, mas ainda assim é a melhor política para defesa dos trabalhadores do que a direita e extrema direita que chega ao poder em diversos países e luta para conquistar hegemonia. Não há um autor que faça mais ensaios enigmáticos do que Baudrillard, que inventa conceitos e situações de forma paradoxal e isso também chamava minha atenção. Sua leitura era um teste para confirmar se você era realmente um pensador revolucionário ou se tinha sido engolido pela máquina burocrática de ideológica. 3. A nova desordem amorosa, de Pascal Bruckner e Alain Finkielkraut (Brasiliense, 1981). Este livro provocou em mim o que O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, provocou em uma geração de mulheres. Ali eu encontrei uma crítica feroz dos discursos da sexualidade e dos papéis sexuais masculinos em sua tendência padronizadora, totalitária. Era também a crítica da sexologia e a defesa de todos os gozos possíveis, inclusive, o sentimental. Mesmo que os autores fossem suspeitos para fazer a descrição do “gozo da mulher,” pois ainda é a visão de homens, ela tinha um profundo sentido e ressonância. Essa análise, eu descobri depois, ressoava na descrição do campo simbólico da sexualidade feito por Baudrillard em A Sedução. Eu completava o ciclo de minha própria desconstrução: do mundo, da política e da subjetividade, temas que me acompanharam ao longo de minha trajetória. 4. Cenários em ruínas, de Nelson Brissac Peixoto (Brasiliense, 1987). Nos anos 80, a emissora Manchete produziu uma série chamada América que originou um duplo livro de textos e depoimentos. Na minha visão, foi o batismo brasileiro do pós- J o r g e B a r c e l l o s | 139 modernismo, corrente estético-literária que reunia os autores que eu então lia, como Paul Virilio. Foi na série que descobri Brissac e fui atrás de suas obras. Para dizer um pouco, devo a ele a visão de realidade tema de meu mestrado. Foram fundamentais sua abordagem de temas como identidade, mídia e mitologia a partir das figuras das histórias que contou do cinema. É uma obra notável pela abordagem e proposta, talvez porque a ideia de exílio interno me fosse próxima como pobre, filho único, buscando sobreviver no mundo. 140 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o 5. O Anti-Édipo – capitalismo e esquizofrenia, de Gilles Deleuze e Félix Guattari (Assírio e Alvin, 1972). Este é o livro mais riscado, descolado e com folhas soltas que tenho em minha biblioteca. É um tour de force de leitura, diriam os franceses. Você entende uma frase para logo vir a seguinte e você não entender nada. É a mais brilhante crítica do capital porque atinge o seu centro, o estabelecimento da relação entre capitalismo e esquizofrenia, o que para mim tinha sentido, já que tive uma mãe e tia com a doença. A ideia de que a culpa da loucura também era do sistema capitalista em que vivemos era uma resposta notável décadas antes que Vincent Gaulejac a enunciasse. Ele descrevia a esquizofrenia presente no fluxo monetário, nas axiomáticas que o capital usa para legitimar-se como regime de sentido. Não há como ser anticapitalista sem passar pelo Anti-Édipo. É uma travessia difícil, entretanto. 6. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa, de Michel Maffesoli (Forense Universitária, 1987). Foi Juremir Machado da Silva que me apresentou a obra de Maffesoli. Diferente da crítica de O Anti-Édipo, voltada para a dimensão macro da sociedade, a abordagem de Maffesoli voltava-se para o micro, para o cotidiano, para outras lógicas de identificação, numa palavra, sociabilidade. Onde Guattari via conflito, Maffesoli via encontro. Dessa forma, me pareciam autores que se complementavam numa análise social. A valorização da vida cotidiana, da religiosidade, do localismo, contrapunha à lógica contraditorial uma lógica orgânica, portanto, uma forma de abordagem chamada por Maffesoli de “compreensiva “dos fenômenos sociais. J o r g e B a r c e l l o s | 141 Depois das primeiras leituras que lhe fazem impacto na universidade, a partir de um momento de sua formação, você começa a eleger temas que considera fundamentais para sua análise. Você os agrega as aulas que ministra. Eles são oriundos de suas primeiras leituras, mas também de seus primeiros escritos. Você passa a organizar sua biblioteca por grandes temas. Os meus são os seguintes: Crítica do capitalismo Não há como não escrever sem combater a desigualdade provocada pelo capital. Estamos numa luta social. Somos professores. Nosso compromisso é denunciar a todo o momento que o capital é o agente promotor de desigualdade para que nossos alunos possam se conscientizar da necessidade de sua mudança e de seus direitos e deveres com relação aos outros. Meus livros de crítica são os seguintes: 7. Com todo o vapor ao colapso, de Robert Kurz (Pazulin, 2004). Há inúmeros livros de introdução à obra de Marx ou seus intérpretes, como David Harvey. Ainda que tenha estudado a Crítica da Economia Política e também Ideologia Alemã de Marx na universidade, eu indico sempre para adentrar no materialismo histórico e dialético autores contemporâneos ou seus leitores, como David Harvey, que além de fazerem uma ótima síntese, os atualizam para os problemas contemporâneos. É assim com a obra de Kurz porque ele é um dos integrantes da Revista Krisis que melhor fez a crítica do capital a partir da boa e velha crítica do fetiche da mercadoria, lugar que divide com Anselm Jappe. 142 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o Uma crítica social radical sob a forma de ensaios que permite perceber o modo como o marxismo colabora na análise do mundo contemporâneo. 8. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria, de Zygmunt Bauman (Zahar, 2008). Uma das obras do autor fundador da noção de sociedade liquida que critica o capitalismo, Baumann é um sociólogo requintado, de leitura fácil e análises criativas cuja vasta obra inclui temas como a precariedade da vida mostrando como a tecnologia colabora na transformação da sociedade de produtores em consumidores. 9.Gestão como doença social, de Vincent de Gaulejac (Ideias e Letras, 2007). Das ideologias capitalistas, a noção de gestão tornou-se a maior obsessão dos políticos neoliberais. Gaulejac faz a crítica do poder gerencialista, seu autoritarismo e os valores de mundo que instila nas mentes dos trabalhadores tanto do serviço público como do privado. Sua análise faz, nos termos de Paul Virilio, a demonstração de como o capital produz a colonização da sociedade. 10.Capitalismo Paradoxante: um sistema adoecedor, de Vincent de Gaulejac (Hucitec, 2024). Este livro dá continuidade a tese do adoecimento produzido pelo capital iniciado pelo autor na obra anterior. Aqui, a ideia é que o capitalismo impõe dilemas insolúveis ao individuo ao exigir objetivos incompatíveis, como de produzir cada vez mais com menos recursos, ter espírito de equipe em um sistema hipercompetitivo, onde os efeitos são conhecidos: estresse, bournout e depressão. Sua ideia é que adaptar-se não é solução pois anestesia nossa resistência ao sistema sem extinguir o sofrimento psíquico. J o r g e B a r c e l l o s | 143 11.A parte maldita, de Georges Bataille (Imago, 1975). Escrito depois que Bataille tomou conhecimento da obra Ensaio sobre o dom, de Marcel Mauss, aqui o autor inverte a primazia da produção sobre o consumo, sustentando que o despender, em vez do conservar, o destruir, em vez de construir, o consumir, em vez do produzir, é que constitui a motivação da atividade humana. A obra faz parte de um projeto sobre a economia global do excesso – que depois inspirará Baudrillard – que o autor não conseguiu finalizar e que oferece notável contraponto a bases do materialismo histórico-dialético. 12.A cidade perversa: liberalismo e pornografia, de Dany-Robert Dufour (Civilização Brasileira, 2013). Aqui, o autor usa a noção batailleana de excesso para aproximar o capitalismo da pornografia e com isto mostrar que o liberalismo se tornou um regime de alienação pela exploração industrial da libido. Sua descrição de seus componentes é notável: a paixão por ver e saber (paixão dos sentidos), a da carne e a paixão por dominar sintetizam sua visão e inspira também Zizek em sua máxima do universo do capital: goze! Um notável livro para insights sobre a dinâmica do bolsonarismo. Estudos sobre a vida cotidiana Foi Michel Maffesoli que me apontou a importância da valorização da vida cotidiana em conteúdos de sala de aula e Agnes Heller a primeira a me definir suas estruturas para fins de ensino. De fato, não há como dissociar que, para professores escreverem um bom ensaio, é preciso viver cada dia por vez, observá-lo, perceber o que é importante nele para nós e para os alunos. Aqui, da valorização dos sentidos à felicidade, selecionei alguns dos livros que me permitiram fazer isso: 144 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o 13.Walkscapes, o caminhar como prática estética (Gustavo Gili, 2013), de Francesco Careri. Esta obra, como Caminhar e Parar (Gustavo Gili, 2017), de sua autoria, descrevem como o caminhar pode ser um ato cognitivo e criativo para transformar o homem. Aqui caminhar é uma forma de arte: enquanto o primeiro livro narra a história da percepção da paisagem através do ato de caminhar, o segundo introduz a experiência da pausa das caminhadas, o parar político de que fala Virilio. Esta obra foi muito importante para o projeto de visitas orientadas que desenvolvi na Câmara Municipal, que incluíam passeios à pé pela cidade. 14.Uma história do silêncio: do renascimento aos nossos dias, de Alain Corbin (Vozes, 2021). Este é um amplo painel de citações e referenciais culturais que permite ter uma visão de como foi expresso o silêncio ao longo do tempo. Escutar o silêncio, uma atitude valorizada pela cultura oriental, nos termos de escuta intima interior, é a forma de reencontrar-se com o que o autor chama de “presença no ar” indispensável para o percurso espiritual, para o recolhimento. 15.A descoberta da sombra, de Roberto Casati (Cia das Letras, 2001). Um interessante livro que revela como a observação das sombras promoveu inúmeras descobertas científicas que vão das ciências à psicologia, trabalhando questões que vem na vida cotidiana ocupando. Interessante obra para conhecer um método de trabalho com o inefável e o subjetivo. 16.O olho: uma história natural da visão, de Simon Ings (Laurosse, 2008). A visão é o principal instrumento de acesso ao conhecimento e fundamental no mundo das redes sociais. É, portanto, uma obra que colabora com sua compreensão, onde a J o r g e B a r c e l l o s | 145 autora sintetiza as contribuições de pesquisas científicas, filosofia, história, mitos para mostrar como e porque enxergamos “quem domina o que o olho vê tem poder”. 17.A filosofia radical, de Agnes Heller (Brasiliense, 1983). Esta obra, junto com Para mudar a vida: felicidade, liberdade e democracia (1982) da mesma autora, dedicam capítulos ao tema dos carecimentos e valores. Ao fundamentar o marxismo na dimensão do indivíduo, a autora retoma a defesa da luta pela qualidade de vida, os problemas da existência e a necessidade da felicidade. Sua novidade é a noção de carecimento radical como aquele que é capaz de transformar o mundo. Eva Illuz. Fonte: wikipédia 146 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o 18.Happycracia: fabricando cidadãos felizes, de Edgar Cabanas e Eva Illouz (Ubu, 2022). Notável obra que mostra como a noção de felicidade foi transformada em mercadoria pela sociedade neoliberal. Os autores criticam o empreendedorismo de si mesmo, a maximização do bem-estar, a transformação do ideal de felicidade em algo pronto para o consumo que termina por produzir mais sofrimento e adoecimento. Um ataque a Psicologia Positiva onde os autores mostram como a busca da felicidade se tornou valor do capital e com ela, uma nova forma de tirania. 19. Sobre a arte de viver: lições para uma vida melhor, de Roman Krznaric (Zahar, 2013). Todo professor deve saber vincular e explorar com alguma profundidade temas de interesse geral com filosofia. Esta obra, diversamente, usa a história como ferramenta para falar do amor, família, empatia, trabalho, dinheiro, tempo, sentido, viagens, natureza, crença, criatividade e morte, alguns dos temas explorados em textos e ensaios e que são presentes na vida de nossos alunos e possibilitam fundamental ensaios de professores. 20.Por que repetimos os mesmos erros, de J.-D. Nasio (Zahar, 2014). Professores podem dar a mesma aula centenas de vezes. Esta uma obra que fala das manifestações do inconsciente através da repetição “repetimos obsessivamente muitas vezes sem nos darmos conta tanto atitudes saudáveis como atitudes erradas”, diz o autor. A obra sugere que professores devem fazer, como o autor, seu esforço romper com a cadeia repetitiva do ensino como um sintoma. 21.A perversão comum, de Jean-Pierre Lebrun (Cia de Freud, 2008). A obra descreve os efeitos do capitalismo para a infância para retomar a previsão de Lacan que dizia que o futuro seria o J o r g e B a r c e l l o s | 147 da criança generalizada, de que seriamos todos normalizados como crianças. Uma interpretação de mundo que começa na crise de legitimidade dos pais na família frente aos filhos e vai a um universo onde o capital transforma os laços sociais e infantiliza os cidadãos. Estudos sobre arte e cultura Na minha formação em história dei grande valor as disciplinas dos cursos de Artes. Elas envolviam não apenas sua história, mas também tópicos de cultura brasileira e geral. Isto era efeito da influência que tive de professores como Luís Roberto Lopes e Voltaire Schilling que, já nos cursinhos ministravam palestras sobre estes temas. Em sala de aula, essa fundamentação se revelou proveitosa para chamar a atenção dos alunos para os conteúdos de história que ministrava. Alguns são os seguintes: 22.O instante certo, de Dorrit Harazim (Companhia das Letras, 2016). Sempre gostei da fotografia para análise da história, algo valorizado ainda na era onde não havia celulares. Como professor, aprendi que com uma fotografia temos o gancho para introduzir todo e qualquer tema. Daí que quando Harazim nos conta as histórias interligadas de imagens mundialmente conhecidas, é claro, ela fornece conteúdos enriquecedores não apenas para aulas, mas também para textos. Numa época em que é preferível perder um momento sublime para fazer uma selfie no presente, ela aprofunda o significado das imagens fotográficas significativas do passado. 148 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o 23.A magia do cinema, de Roger Ebert (Ediouro, 2004). Todo professor ensaista deveria conhecer um pouco de cinema. Para escrever, cenas de filmes são importantes pois ficam na memória do público. A obra oferece para cada filme selecionado pelo autor um ensaio interpretativo. Analisando de filmes clássicos como Cidadão Kane, à modernos como Guerra nas Estrelas, é uma obra que contextualiza a proposta de Nelson Brissac Peixoto trazendo uma visão panorâmica útil para professores em situações de ensino. 24.Mainstream, a guerra global das mídias e das culturas, de Frédéric Martel (Civilização Brasileira, 2012). Este é um livro de geopolítica da cultura e das mídias que oferece uma visão global importante de seu objeto. Da indústria americana à Bollywood, pouca coisa escapa a explicação do autor na guerra mundial pelo conteúdo. Num mundo onde tudo se acelera com o streaming, ao mostrar como a indústria cultural encontra fórmulas para agradar a todos em qualquer lugar do mundo a obra nos mostra a pasteurização do sentido que se produz em escala planetária. 25.Isso é arte? 150 anos de Arte Moderna do Impressionismo até hoje, de Will Gompertz (Zahar, 2013). Com estilo irreverente, um compêndio de história da arte moderna que narra o movimento, artistas e obras que ajudaram a definir o mundo contemporâneo. Segue o modelo ensaístico, sem notas de rodapé ou longa lista de fontes, mas é capaz de abordar os aspectos importantes de cada movimento. Acompanha um mapa resumo dos movimentos da arte moderna. 26.O que é um artista? De Sarah Thornton (Zahar, 2015). A obra reúne análises da autora da produção de 33 artistas contemporâneos, discute seu papel e mergulha nos bastidores de J o r g e B a r c e l l o s | 149 sua produção. Autores como Jeff Koons, Ai Weiwei, Marina Abramovich, entre outros, tem seu trabalho analisados pela autora em em seus ateliês e em meio ao seu processo de produção à meia distância do mercado em linguagem irônica. Obras de referência Tanto para escrever ensaios como para dar aula, um professor precisa de obras de referência. Elas são compêndios amplos sobre temas de interesse geral que podem facilitar a fundamentação de uma aula ou escrita. Geralmente, tenho interesse em obras de cunho geral que me inspirem na escrita de ensaios ou sua fundamentação. São alguns deles: 27.Vocabulário de Aristóteles, de Pierre Pellegrin (Martins Fontes, 2010). Exemplar de uma coleção que inclui a base de definições e conceitos de outros pensadores de Platão à Merleau Ponty, é uma obra de referência básica para o ensaista que deseja fazer um texto consistente com uma abordagem refinada. Aprendi nas disciplinas de filosofia que cursei que o uso de definições filosóficas ao longo de nossos textos é um recurso essencial para produzir a sua profundidade. A referência a sentido egistros originais, ao sentido das palavras. Michel Maffesoli utiliza muito em seus textos. 28.Ideogramas e a cultura chinesa, de Tai Hsuan-Na (É Realizações, 2017). Sempre achei fascinante combinar a definição de conceitos oferecidos pela tradição filosófica ocidental que aprendi na universidade, com a oriental, sempre ausente em 150 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o nossa formação. Esta é o tipo de obra de referência que permite insights que só obtemos quando descrevemos a realidade a partir de conceitos da escrita chinesa. Com uma caligrafia que é comparável a pintura, a obra oferece 538 ideogramas descritos em sua origem e significado, uma excelente ferramenta de abordar, de forma diferente, conceitos em ensaios. 29.Enciclopédia da Cultura Chinesa, de diversos autores (Contraponto, 2023). Na mesma linha, com quase 1.500 verbetes, trata-se do melhor compendio de cultura chinesa do Brasil. Aborda pensamentos, concepções, governança, literatura, história, arte, humanidades, geografia, artefatos, tecnologia com informações da história e da era contemporânea, um instrumento de comparação muito importante para o ensaista diversificar seu olhar. 30.Farmácia literária, de Ella Berthoud e Susan Elderkin (Verus, 2018). Uma compilação de mais de 400 obras e a sua relação com inspiração, sanidade e loucura do ser humano. Obra de referência, espécie de biblioterapia que indica uma obra de literatura para cada mal que aflige o homem, tédio ou crise. Obra que revela o poder curativo da literatura na vida cotidiana. 31.1001 ideias que mudaram nossa forma de pensar, de Robert Arp (Sextante, 2014). Compêndio das mais importantes, curiosas, criativas e transformadores ideias humanas, dos pensadores antigos aos atuais. Inclui teorias notáveis do pensamento de filósofos acompanhados de imagens, um guia de cultura geral e material para pesquisa e escrita. 32.Dicionário de Políticas Públicas, de Geraldo Di Giovanni e Marco Aurélio Nogueira (Unesp, 2015). Contém 197 verbetes J o r g e B a r c e l l o s | 151 que abrangem todos os conceitos do campo das políticas públicas essenciais para definir as formas de relacionamento do Estado com a Sociedade, tema de inúmeros ensaios em defesa do trabalho do professor e de outras categorias sociais. De ações afirmativas à walfare state, os verbetes aprofundam a definição e o fundamento de cada prática de política pública. Fonte: divulgação da editora. 33.Dicionário dos Antis: a cultura brasileira em negativo, coordenado por Carmela Grune e outros autores (Pontes, 2021). Reúne uma coletânea de temas de oposição, de negação e combate social engajado que compõe o chamado campo da cultura em negativo. De anti-aborto a anti-xenofobismo, são cerca de 120 conceitos repassados que permitem a construção de uma história das ideias ao avesso. Não existe ensaio nem prática profissional sem engajamento social. 152 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o 34.Filosofia francesa: a influência de Foucault, Derrida, Deleuze e Cia, de Françoise Cusset (Artmed,2008). Já falei que a filosofia francesa foi importante em minha formação. Enquanto que nos anos 70 as obras da contracultura francesa e do pósestruturalismo chegaram nos Estados Unidos, no Brasil ainda eram incipientes nos anos 80. Termas como desconstrução, biopoder, micropolítica, simulação, que fizeram eco nos EUA só foram se mostrar essenciais para a esquerda para criticar, nos anos 2000, a emergência da nova direita. 35.Pluriverso: um dicionário do pós-desenvolvimento, de Alberto Acosta e outros (Elefante, 2021). A obra reúne uma centena de ensaios sobre conceitos de vida alternativos ao capitalismo, a partir de experiências de vida de povos indígenas, camponeses e pequenos grupos em todo o planeta, caminhos promissores para a construção de mundos socialmente justos. Critica a tecnologia Foi a leitura de Paul Virilio que moldou em mim uma visão crítica da tecnologia. Da forma como vejo, a revolução digital trouxe problemas que ainda não terminamos de analisar. Elemento essencial no modelo de desenvolvimento capitalista, a tecnologia também serve à dominação, a perda da individualidade e da capacidade de organização política. Daí as leituras indicadas abaixo: 36.Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais, de Jaron Lanier (Intrínseca, 2018). Se o título pode parecer radical J o r g e B a r c e l l o s | 153 demais, ao menos faz você pensar sobre a importância que dá as redes sociais. O autor aponta os pontos negativos centrais: perda do livre-arbítrio, produção de insanidade, ampliação das fakenews, perda de sentido e de empatia, infelicidade e fonte de ódio estão entre outros argumentos do autor para mantermos distância das redes sociais. James Bridle. Fonte: wikipédia 37.A nova idade das trevas: a tecnologia e o fim do futuro, de James Bridle (Todavia, 2019). O autor critica a crença de que pela tecnologia e computação seria possível compreender nossa existência no mundo para construir um mundo melhor. Sua tese é que, ao contrário, o que ela faz é nos deixar perdidos em um 154 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o mar de informação, estabelecer narrativas simplistas, promovendo a falta de compreensão das coisas na linha da obra anterior. A ideia é que quando perdemos a capacidade de pensar, perdemos a capacidade de reivindicar. 38.Infocracia: digitalização e crise da democracia, de Byung ChulHan (Vozes, 2022). A obra descreve a substituição dos meios de produção pelos meios informação como decisiva para ganhos de poder, vigilância, controle e prognóstico de comportamentos psicopolíticos. Ela segue a linha de sua obra anterior, Não coisas, aprofundando as consequências da entrada na infosfera. Agora temos informação, mas não conhecimento, participamos de redes sociais, mas somos solitários, temos amigos, mas não nos encontramos. 39.A máquina do caos, de Max Fisher (Todavia, 2023). Análise da história e funcionamento das grandes empresas de tecnologia responsáveis pelas redes sociais e o impacto que fazem em nossas vidas, mostrando a exposição dos cidadãos a interesses e forças contrárias a seus interesses. Urbanismo e cidades O tema das cidades foi tardio em minha trajetória, advindo da experiência com a história de Porto Alegre e das suas lutas sociais, daí o fato de que é desta cidade que se trata a relação seguinte. Aqui reúno obras que auxiliam a entender o papel das cidades na história e em seguida, obras sobre a capital: J o r g e B a r c e l l o s | 155 40.A linguagem das cidades, de Deyan Sudjic (Gustavo Gili, 2019). O autor trabalha seis questões essenciais na definição de uma cidade: o que é, como fazê-la, como mudá-la, como governala, suas ideias e suas multidões. Para o autor essas são as questões que dão identidade a uma cidade, ao contrário do que propõem os grandes empreendedores subordinam as necessidades da identidade a sua transformação em fonte de renda do capital. A cidade é algo com cultura própria e não um amontoado de imóveis. Não há como dissociar a produção de identidade histórica da destruição da cidade feita pelo capital, tema de meus ensaios mais recentes. 41.História da cidade, de Leonardo Benévolo (Perspectiva, 2019). É a obra clássica sobre a história das cidades, estudo de referência porque mostra sua relação com as mudanças do sistema produtivo, seus efeitos na vida cotidiana das pessoas e a passagem para a modernidade com o grande salto demográfico que as caracteriza. Ricamente ilustrado, excelente fonte de recursos para uso em sala de aula e como referência para ensaios históricos. 42.Atlas das Cidades, de Paul Knox (Senac, 2016). A obra propõe uma tipologia das cidades contemporâneas. Dividindo-as em cidades fundacionais, verdes, inteligentes, imperiais, instantâneas, transnacionais e das celebridades, cada capítulo analisa de cada uma a estrutura física, econômica, social e política através de textos, infográficos, mapas, quadros e tabelas para dar uma visão completa dos padrões de desenvolvimento das cidades. 43.Política e arquitetura, de Josep Maria Montaner e Zaida Muxi (Olhares, 2021). Montaner é um arquiteto crítico da sua disciplina e aqui desenvolve os temas iniciados em Arquitetura e 156 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o Política (Gustavo Gili, 2014). Criticando as ameaças trazidas pelas mudanças da dinâmica urbana sob a pressão do capital, discute possibilidades habitacionais, urbanísticas e produção do bem comum a partir de iniciativas locais, modelos participativos e femininos, dando atenção ao meio ambiente. 44.Espelho das Cidades, de Henri-Pierre Jeudy (Casa da Palavra, 2005). Reúne dois textos do sociólogo francês que tratam das causas e consequências da espetacularização da cidade. Criticando os processos de patrimonialização e homogeneização urbana que o capital produz sobre as cidades, critica a eliminação das singularidades locais para sua adequação a um padrão mundial imposto pelo capital multinacional, resgatando as relações da cidade com seus moradores, esfera pública e meio ambiente. 45.A frase urbana: ensaios sobre a cidade, de Jean-Christophe Bailly (Bazar do Tempo, 2021). O autor reúne ensaios onde se põe a escuta do espaço urbano como se ele fosse um livro. Analisando suas ruas e edifícios, monumentos e esplanadas, centros e periferias, de grandes e pequenas cidades, propõe uma leitura do urbano a meia distância do museu e da poesia, numa busca pela prosa das ruas de um lugar. A cidade é vista como o espaço poético quando nos movemos sobre sua massa de signos, personagens, quando sua prática corresponde a seu nome. 46.Arquitetura e Psiquê: um estudo psicanalítico de como os edifícios impactam nossas vidas, de Lucy Huskinson (Perspectiva, 2021). Um contraponto original para a crítica do modelo de expansão urbana das cidades onde a autora mostra que os edifícios moldam nossa identidade, a maneira de sentir e perceber de nós mesmos. Guia para a relação do nosso J o r g e B a r c e l l o s | 157 inconsciente com os edifícios, critica os princípios utilitários de função, eficiência, custo e impacto visual, servindo como arma de combate a teoria arquitetônica sob o jugo neoliberal. Porto Alegre Se você pensa a sua cidade, você sempre terá um tema amplo para sala de aula e para escrever. Eu comecei a pesquisar a cidade como obrigação de oficio para ensinar alunos que visitavam a Câmara Municipal sobre Porto Alegre. Daí foi um passo para pensar não apenas a função política, mas os demais problemas urbanos. Encontrei entre muitas, estas obras importantes neste tema: 47.Porto Alegre, guia histórico, de Sérgio da Costa Franco (Editora da Universidade,1998). Com quase mil verbetes, é a principal obra de referência de Porto Alegre, com registro da evolução dos bairros, serviços públicos, praças, ruas, monumentos arquitetônicos, enchentes e epidemias, uma viagem pela memória cotidiana da cidade. 48.Porto Alegre e sua evolução urbana, de Célia Ferraz de Souza e Dóris Maria Müller (Editora da Universidade, 1997). Enquanto Franco dá vida a cada fragmento da história urbana da capital, esta obra é um notável guia da história da cidade porque oferece um esquema de análise da sua evolução urbana. Dividindo em etapas que vão da ocupação do território até sua industrialização e metropolização, oferece um esquema rico em gráficos que permite uma análise partir de fatores populacionais, econômicos, políticos institucionais e administrativos. 49.Guia de Arquitetura de Porto Alegre, de Rodrigo Poltosi e Wlademir Roman (Escritos, 2016). Descrevendo a história 158 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o arquitetônica da capital do período colonial, passando pela arquitetura eclética, o estilo Art Déco a arquitetura modernista e pós-modernista, a obra reúne 100 obras de arquitetura relevantes da cidade. Da Praça da Alfandega à orla do Guaíba, passando por Largos, solares, hospitais e mercados, é uma obra de notável precisão e detalhe. 50.A cidade que devora malocas: habitação popular e o espaço urbano de Porto Alegre (1843-1973), de Álvaro Klafke, Rodrigo Weiner e Vinicius Furini. Obra indispensável para qualquer ensaista interessado no tema da desigualdade na capital. Os autores mostram como o capital e o estado uniram forças para realizar uma política de remoções de vilas de malocas e a força das comunidades na luta pela sobrevivência através de suas diversas mudanças de lugar ao longo do tempo. 51.A Câmara na Cidade: retrato de um poder público no século XIX no município de Porto Alegre, de Jorge Barcellos, vulgo eu mesmo (Câmara Municipal, 2022, esgotado, disponível em https://abre.ai/kWiM. Aqui, retomo a obra de Sérgio da Costa Franco através de textos e a novidade é a compilação de imagens raras do século XIX que falam da administração da cidade até o final do período imperial e a contribuição da Câmara Municipal na construção da paisagem da cidade. 52.Prefeitos de Porto Alegre: cotidiano e administração da capital gaúcha entre 1889 e 2012, de Antônio Augusto Mayer dos Santos (Verbo Jurídico, 2012). Um importante apanhado cronológico que dá continuidade a obra anterior abordando a história da cidade a partir da República, com a instalação dos intendentes e prefeitos que passam a assumir, no lugar do poder legislativo, a J o r g e B a r c e l l o s | 159 função de governar a cidade a partir da era contemporânea, sua cronologia e as principais realizações. Educação Como os demais tópicos acima, existem inúmeras obras sobre educação. De Didática de Ensino à Psicologia da Aprendizagem, professores acostumam-se a ler as necessárias para ministrar seus conteúdos de ensino. Eu acredito que a politização da educação é importante, assim como transformar o ensino e sua escrita em espaço de crítica e denúncia de como é produzida a desigualdade, daí a seleção das seguintes obras: Christian Laval. Divulgação Editora Elefante 53.A escola não é uma empresa: neoliberalismo em ataque ao ensino público, de Christian Laval (Planta, 2004). A obra mostra as pressões que a escola sofre para se adequar ao neoliberalismo. Sua crítica a escola como produtora de capital humano, a 160 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o privatização do ensino que influência conteúdos, as relações de poder e procedimentos mostram que o neoliberalismo visa transformar a escola em uma espécie canteiro de obras do mercado. A crítica do autor é a mercantilização geral do conhecimento e aprendizagem que reforça desigualdades, frente a quais os professores precisam fazer resistência e lutas coletivas. 54.O capital para educadores: a prender e ensinar com gosto a teoria crítica do valor, de Vitor Henrique Paro (Expressão Popular, 2022). Para o autor, a teoria do valor de Marx é tanto um conteúdo de ensino como uma base de conhecimento para os professores porque explica como a riqueza é produzida pelo trabalhador e expropriada pela classe capitalista. É, portanto, um instrumento que faz da educação um meio de combater a desigualdade. 55.O fim da educação: redefinindo o valor da escola, de Neil Postman (Graphia, 2002). Aqui o autor critica a devoção social à tecnologia, ao utilitarismo e ao consumo para revalorizar a instituição escolar, a sala de aula, a escola pública, gratuita e humanista nos tempos da razão e da hegemonia da informação via internet. 56.Dialogando sobre crianças e adolescentes, de Françoise Dolto (Papirus, 1989). A autora expõe casos de várias categorias profissionais ligados a crianças e adolescentes que vivem em instituições. Suas análises de casos de psicose infanto-juvenil enumeram casos de adoção, perversão, puberdade que servem para estimular formas do diálogo e escuta do desejo da criança e como responder a isso. J o r g e B a r c e l l o s | 161 57.Por dentro da Escola Pública, de Vitor Henrique Paro (Xamã, 1995). Um clássico da etnografia escolar, levantamento de inúmeros aspectos da escola pública brasileira que, mesmo sem a análise da presença da internet, ainda descreve as dificuldades de professores e alunos no dia a dia. 58.A Pedagogia de Eros: territórios, vida cotidiana e saber nos projetos de implantação da Educação Sexual em Porto Alegre (1990), de Jorge Barcellos (se eu não me divulgar, quem o fará?). A partir de implantação de programas de educação sexual, este livro, produto de minha dissertação de mestrado, exemplifica a nível local a análise de Paro: as escolas de Porto Alegre por dentro e no seu dia a dia a partir de um apoio teórico original. Ferramentas para revolução Ao longo de minha prática de escritor, encontrei inúmeros livros que inspiram posições de ataque ao capital, posição da qual não abro mão. Engajamento e luta alimentam o desejo de ensinar; queremos transformar o mundo transformando o modo de ver de nossos alunos, e é sobre estas experiências que escrevemos. Algumas indicações: 59.Bela baderna: ferramentas para revolução, de Andrew Boyd e Dave Mitchel. Segundo Judith Malina, fundador do The Living Theater, a obra que deveria ser obrigatória em todas as salas de aula. O motivo é que ela é a reunião de 41 ferramentas de resistência contra o capital, que são também ações estéticas para a subversão social que vão da ação direta à greve geral e ocupação. 162 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o Capa de Bela Baderna. Fonte: Divulgação. 60.Novo manifesto dos economistas aterrados: 15 caminhos para outra economia, de autoria do Coletivo de Animação dos Economistas Aterrados (Actual, s/d). Reúne artigos descrevendo quinze formas diferentes de construção de outras formas de organização econômica que incluem desde a proteção da ecologia à valorização da igualdade. É uma obra que crítica os efeitos do neoliberalismo e a desigualdade que produz em um programa de ação que diminui os efeitos da busca obsessiva pelo lucro. J o r g e B a r c e l l o s | 163 61.Ruptura, do Coletivo Centelha (N-1-Edições, 2019). É um manifesto de inspiração anarquista que crítica do fascismo as formas de democracia aliadas do mercado. Seu apelo revolucionário vincula práxis de mudança nacionais e internacionais em uma espécie de cartilha que põe lado a lado cidadãos e revolucionários. 62.Aos nossos amigos: crise e insurreição, do Coletivo Invisível (N-1 Edições, 2016), também é outro manifesto na mesma linha do Coletivo Centelha, que aprofunda mais os temas do diagnóstico do fim de mundo capitalista numa espécie de proposta planetária de diagnóstico e recusa do capitalismo hegemônico. 63.Como mudar mundo, de John-Paul Flintoff (Objetiva, 2012). Obra integrante da coleção Scholl of Life que propõe, ainda que de forma moderada, ao contrário dos manifestos dos coletivos anteriores, mudanças no mundo a partir de ações individuais, considerando objetivos e métodos mais próximos do cidadão comum em direção a uma sociedade melhor. 64.Como ser anticapitalista no século XXI, de Erik Olin Wright (Boitempo, 2019). Síntese das linhas de pesquisa do autor que combina sua análise crítica do capitalismo e suas reflexões sobre suas alternativas. O autor busca exemplos do que seria a “utopia real”, processo de redefinição das transformações do capitalismo e construção de práticas de experimentos socialistas. 65.Adeus ao capitalismo: autonomia, sociedade do bem viver e multiplicidade dos mundos, de Jérôme Baschet (Autonomia Literária, 2021). Crítico da adesão ao capitalismo, o autor pensa a possibilidade de um novo mundo a partir das experiências 164 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o zapatistas, das propostas de bem viver de comunidades autônomas e experiências de autogestão. Outras línguas Confesso que eu sou um fracasso em dominar idiomas. Sou um monolinguista, não falo fluentemente nenhum outro idioma além do português. Acho que porque não tive oportunidade de fazer na mocidade tais cursos, por absoluta falta de recursos e, depois de velho, não tenho mais paciência. Mas sei da importância de acompanhar a produção internacional, e se não tenho fluência, graças as leituras que faço entendo razoavelmente o espanhol e o francês. Felizmente, com os tradutores oferecidos pela internet, o problema de línguas reduziu-se. Um simples clic e as páginas de um livro podem ser traduzidas automaticamente. Acho que isso ainda vai cobrar seu preço, mas aproveito mesmo assim. Indico aqui alguns livros sem tradução no português que julgo interessantes. São eles: 66.La fuerte razón para estar juntos, de Peter Sloterdijk (Godot, 2022). Para responder a pergunta de como evitar que os homens destruam a sociedade, que é também a questão de como nós mantemos como sociedade, o filósofo alemão propõe a conexão dos corpos individuais aos sociais através pelo conceito de paixão. 67.La postdata comunista, de Boris Groys (Cruce, 2015). O autor atualiza a proposta comunista: aponta que hoje sua dimensão política se efetiva pelo domínio da linguagem, diferente da economia onde prevalece o domínio das cifras. Por isso, somente J o r g e B a r c e l l o s | 165 quando encontrarmos o nexo entre as novas formas de linguagem que o pósdata possibilita, poderemos estabelecer um caminho para uma sociedade igualitária. 68.L’Université du desastre, de Paul Virilo (Galilée, 2007). Num mundo onde o capital explora o campo dos limites da inteligência e da ética, Virilio faz a crítica da ciência a serviço do capital para afirmar que até ele, o conhecimento, deve ter um limite ou estaremos diante do acidente original, o do conhecimento, de que fala o autor. 69.Future Cities: architecture and the imagination, de Paul Dobraszczyk (Reaktion Books, 2019). Um panorama das cidades imaginadas pelo cinema e pela literatura, cidades do futuro, cidades que foram especuladas por autores e pensadores, seja no fundo do mar ou nas nuvens e que permitem perceber que poderíamos ter cidades melhores. 70. The Metropolis in Latin América (1830-1930): cityscapes, photographs and debates, de Idurre Alonso e Maristella Casciato (Getty Institute, 2021). Uma obra que realiza, de forma comparativa, uma análise da expansão urbana em seis capitais: Havana, Cidade do México, Rio de Janeiro, Buenos Aires, Santiago do Chile e Lima. Descrevendo seus aspectos sociopolíticos e urbanos, contém, além disso, inúmeras fotografias de época. Como afirma Umberto Eco em seu A vertigem das listas (Record, 2010), listar livros é apenas mais uma das formas de organizar informação, mas também visões de mundo. Segundo ele, a questão chave é sempre o critério de sua organização. Esta não é uma lista de obras para pesquisadores; é uma lista de obras que 166 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o julgo úteis para professores em geral escreverem ensaios em geral; servirá também para ministrar aulas se o professor tiver a disposição de oferecer uma visão ampliada de seus conteúdos. Seja qual for a disciplina, como diz Eco, o sonho é sempre conhecer a essência das coisas. A lista apresentada aqui é incompleta, mas julgo que tem algumas obras significativas e, assim como Eco as vê expressando os sentidos de cada época, minha lista revela o modo como vejo o lugar do professor e de seus ensaios em nossa época. Isso deve nos fazer ao menos compreender as características e contradições do nosso mundo porque é nele que temos a missão de ensinar aos nossos alunos a lutarem por um mundo melhor. 7 Enfim, o sumário J o r g e B a r c e l l o s | 169 Terminar pelo começo Um livro sobre a escrita de ensaios tem também o objetivo de levar professores-autores a construírem seus livros coletivamente. Aqui, o ensaio é o caminho mais leve e divertido de fazê-lo: não exige o tempo que um mestrado ou doutorado exigem para sua realização; permitem que escreva aproveitando o tempo que passa; resultam em textos de autoria livre, despretensiosa, mas que, ao final, quando reunidos sob o formato de livro, se tornam interessantes. A última parte que um coletivo de professores-autores escreve de um livro seu é o sumário. Em Índice, uma história do: uma aventura livresca, dos manuscritos medievais à era digital (Fósforo, 2021), o professor de inglês Dennis Duncan narra a história da descoberta e construção do índice ao longo da história da produção de livros. Ainda que sua obra se dedique mais ao índice de assuntos propriamente dito, aquele que vem ao final da obra, suas anotações repercutem sobre o sumário. Ele mostra que tais objetos não tem apenas uma história ampla, como também foram tema da escrita de vários escritores como Virgínia Woolf, Ítalo Calvino e Vladimir Nabokov “é a história de nossa crescente premência de acessar informações com velocidade e de uma premência paralela de ter os conteúdos dos livros como unidades de conhecimento divisíveis, distintas e passíveis de serem fruídas individualmente”, diz o autor (Duncan, p.11). É importante dizer que o que faço da obra de Duncan é uma adaptação, uma leitura particular, já que o seu tema geral é o índice remissivo. Ainda que seja também chamado de índice, 170 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o como o sumário que é a seção inicial dos livros, tema deste último capítulo, o próprio tradutor alerta na nota à edição brasileira que a diferença está no fato de que, em inglês, sumário ser o equivalente a table of contents ou somente contents. Isto é importante pois o meu critério é, justamente em Duncan, encontrar os conceitos que fazem com que capítulos podem ser indexados em um sumário. O sumário parece ser algo simples. Uma vez escritos vários ensaios, basta lista-los e paginá-los. Entretanto não é bem assim. Duncan lembra que o objetivo de um sumário é “encontrar o que se busca de maneira fácil e rápida” (Duncan, p.11). Tanto o índice remissivo final quanto o sumário tradicional inicial estão integrados aos hábitos de quem escreve livros. Professoresautores que organizam obras coletivas sabem que sua autoria será respeitada no sumário. Quando auxilio grupo de professores a organizarem seus livros, meu objetivo é que o sumário revele a organicidade da obra, o que significa que apresenta os ensaios com uma ordem tipo começo-meio-fim. Quanto ao índice remissivo, eu o deixo de lado por...preguiça! Eu levaria tempo e não acredito que meu leitor o usaria simplesmente porque o ensaio já é um texto relativamente curto; mesmo quando os reúno em livros, opto por não fazer. Poucas vezes o utilizei, exceto quando estava diante de um tema muito específico em pesquisas. Seria um serviço que contrataria caso optasse por uma publicação por uma casa editorial? Com certeza. Mas acredito encontrar o critério e as palavras chaves e indica-las como subcapítulos me parece mais produtivo para constar de um sumário. Duncan nos mostra que o dispositivo do sumário como o índice remissivo tem uma história; acredito que nas obras organizadas por coletivos de professores também. Ele revela a ordem pela qual os professores J o r g e B a r c e l l o s | 171 encontraram e desenvolveram seu tema. É sempre preferível organizar nele os temas dedutivamente, do maior e mais abrangente para o mais específico, ainda que haja situações em que isso nem sempre seja possível. No mundo da tecnologia online, onde trabalhos deste tipo são disponibilizados na internet, que também, lembra Duncan, é outra forma de índice, o sumário é uma ferramenta importante para indexação e localização online de temas e capítulos de obras. O sumário como produto da evolução da escrita Quando olhamos o sumário de um livro, não estamos olhando o livro, mas o resumo que o autor ou coletivo de autores organizaram em sua obra. Coletivos de professores podem acrescentar ou retirar artigos de seu projeto inicial; eles não sabem, com certeza, o título que cada integrante do coletivo de professores colocará em seu artigo; eles o fazem, normalmente, com diferentes estilos. Cabe ao consultor ou assessor de grupos de professores procurar a organicidade não apenas do conjunto de artigos, mas de seu sumário. Nesse sentido, cabe-lhe fazer sugestões que harmonizem a criação de um sumário integro e consistente. O sumário desperta o interesse do leitor: ele vai primeiro a contracapa e às orelhas do livro buscar informação. Se o que estiver escrito ali lhe interessar, ele parte para o sumário. Só então irá tomar a decisão de comprar ou ler uma obra ou não. Por isso minha luta contra o maldito hábito de conservar nas livrarias as obras embaladas. O plástico de polietileno é um inimigo do leitor. Ele afasta quem quer ler do conteúdo 172 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o discriminado do livro. Eu acredito que eles foram inventados para atiçar nossa curiosidade em relação ao livro e garantir maiores vendas para os livreiros, mas não cheguei a encontrar ainda detalhes da história de sua invenção. O plástico é um obstáculo, ele transforma o livro em objeto de consumo e não de fruição. E para certos vendedores, produz o constrangimento que faltava para garantir sua venda: “Posso tirar o plástico” – pergunto. O vendedor olha como se dissesse: “vai comprar?”. Você hesita em pedir. É que você está atrás da resposta definitiva da decisão de aquisição ou leitura de livro que é aquela que diz o que ele contém e que só o sumário revela. O vendedor sabe que no limite da curiosidade, há o interessado compra. Ele aposta que você irá comprar mesmo sem ver o sumário. Mas se você for como eu, sem dinheiro, cada aquisição conta. Você precisa rasgar aquela maldita capa plástica como se disso dependesse sua vida. Às vezes, nos grandes megastores de livros, como a Saraiva ou a Cultura, eles são amplos o suficiente para você procurar um lugar sem câmeras e praticar o seu crime: tirar a capa sem autorização, colocá-la discretamente no lixo junto ao leitor de barras, mas tudo isso ainda é parte de uma cultura de consumo de livros que eu nego. O sumário como arquitetura J o r g e B a r c e l l o s | 173 O sumário é a arquitetura do livro. Assim como uma casa precisa de pilares que a estruturem, o sumário mostra as bases em que se estrutura um livro. Professores-autores que fazem ensaios fazem pilares diversos; eu defendo que uma casa não pode ter pilares diferentes como um livro não admite artigos diferentes. Não estou falando de conteúdos, bem entendido, estou falando de forma. Insisti nos capítulos anteriores que o que se busca no conjunto de ensaios de professores-autores é uma unidade metodológica: a comum estruturação de objetivos e métodos, o limite razoável de páginas entre si, a fundamentação bibliográfica, etc. O aspecto aqui importante para a criação do sumário é que cada artigo em especial tenha uma consonância entre e com os demais. Dennis Duncan. Divulgação Editora Fósforo. Você não pode colocar no sumário um título de artigo com três linhas de texto, o que significa que seu autor preferiu determinálo pelo objeto, com um artigo titulado por uma palavra apenas, o 174 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o que revela que seu autor preferiu um conceito para sua definição. Aqui, na minha visão, a metodologia de denominação importa: ou os títulos definem um objeto ou definem um conceito. Isso é uniformizar, tarefa que cabe ao consultor. O objetivo é colaborar para que o leitor tenha uma visão orgânica da obra, caso contrário, a fragmentariedade dos títulos de um sumário fatalmente o afastará da obra. Mas há editoras que não estão nem aí para este critério como a Editora N-1. Seus dois volumes publicados sobre a pandemia reúnem artigos diversos autores e não segue nenhum critério em seu sumário. Esta é uma editora bastante adiante em termos editorais. Tranquilo, esta é praticamente a regra geral. Quanto mais obras coletivas um conjunto de professores fizer, mais compreenderá o significado do papel da titulação coletiva para construção de um livro. Duncan lembra que a evolução do sumário dependeu do surgimento das universidades, das facilidades de impressão, da filologia e chega até a incluir a computação e a inteligência artificial na sua criação. Mas ele destaca que sempre compete a um ser humano fazer a mediação do autor e do público. Duncan se refere aos índices finais e remissivos como os que dão mais trabalho para fazer, mas diz que são também os que mais visibilidade oferecem de uma obra: indexar como sumarizar é fazer um mapa “É a lista que nos diz onde as coisas estão” (Duncan, p. 14). Ele é uma planta que nos dá a organização da obra “o sumário fornece uma visão geral da estrutura de uma obra: segue a ordem do texto, revelando sua arquitetura. Podemos passar o olho num sumário e mais ou menos deduzir o tema geral do volume. Portanto, um sumário é, até certo ponto, independentemente da J o r g e B a r c e l l o s | 175 plataforma. Oferece pinceladas gerais até no caso de uma obra composta de uma série de pergaminhos” (Duncan, p. 15). Imagine que pergaminhos a que se refere o autor são os ensaios e você terá uma atualização do que diz Duncan. Diferente de Duncan, John Truby, em Anatomia da história: 22 passos para dominar a arte de criar histórias (Seiva, 2024) nos fornece insights interessantes para refletirmos como organizar sumários ao nos descrever os movimentos como contamos histórias. É que da mesma forma que o autor entende a natureza da história como um “tipo de sequência”, o sumário também é. Seu didatismo permite entender o que ele entende como tipos. Ensaios é um gênero não literário, é claro. Mas eu entendo que existem similaridades com a literatura pois contamos através deles uma história. Ele afirma que os contadores de histórias possuem alguns padrões narrativos onde o linear e o explosivo são os pontos extremos de uma cadeia de estruturas. Eu derivo cinco sumários específicos a partir dos tipos de histórias que ele aponta. Tipos de sumário O primeiro, o da história linear, para mim tem seu equivalente no sumário linear. Enquanto na literatura, a história linear acompanha um personagem do início ao fim, no sumário linear os autores descrevem um tema em etapas progressivas. A maioria das teses e dissertações é linear como os filmes de Hollywood. Meu doutoramento originou o livro Educação e Poder Legislativo (Clube dos Autores, 2022) que tem um único tema: a produção legislativa em educação. Seu sumário é linear porque vai do 176 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o macro ao micro, da história geral do poder legislativo às proposições de educação. Meu sumário expressa essa lógica linear. Essa é a forma mais orgânica de apresentação de conteúdos, ainda que não a única. É a mais fácil para obter aprovação de trabalhos acadêmicos também porque a inovação está longe de ser um consenso nas bancas de avaliação, normalmente conservadoras (exceto aquelas que se orientam por um paradigma pós-modernista, o que é raro). O segundo, o da história sinuosa, para mim corresponde a um sumário sinuoso “a história sinuosa faz um trajeto serpenteante sem direção aparente. Na natureza o formato sinuoso é encontrado em rios, cobras e no cérebro” (Truby, p. 22). O autor está pensando nas obras literárias como as histórias de Charles Dickens (1812-1870), como David Copperfield, que assume a forma sinuosa. Eu penso nas obras filosóficas de Slavoj Zizek como O Sujeito Incômodo: o centro ausente da ontologia política (Relógio d’Agua, 2009). Na contracapa já há o alerta: “depois de uma primeira parte mais densa” (ops!) a obra quer tratar do sujeito cartesiano. Mas faz isso com a apresentação de um sumário que pouco entendimento deixa para o leitor. Para se ter uma ideia, a obra é dividida em três partes: a primeira, é intitulada “A noite do mundo”; a segunda “A Universalidade dividida” e a terceira “Da sujeição à destituição subjetiva”. Cada parte tem uma organização que parece ser sinuosa: o que querem dizer capítulos como “O Impasse da Imaginação Transcendental” ou “A política da verdade”, ou ainda “(Des) ligações apaixonadas”, ou por fim “Judith Butler como Leitora de Freud”? J o r g e B a r c e l l o s | 177 Um sumário assim organizado mostra a sinuosidade do pensamento de Zizek. Mesmo meu livro mais recente Neoliberais não merecem lágrimas (Clube dos Autores, 2024), foi feito a partir de ensaios cujos títulos parecem nada a ter relação um com o outro, mas cuja organização em capítulos busca dar uma unidade. No capítulo segundo “Nós somos insetos” seguese a “Acidente ou Sabotagem” e vem antes de “A meteorologia como campo de luta social”. Dá para ver alguma unidade nisso? Não. Pois é..., o sumário dá, com os temas em que os agrupo. Trabalhar a partir de tema individuais de ensaios quando os usamos para fazer livros é algo sinuoso. Isso ocorre quando reunimos artigos de origem diversa em uma mesma obra apenas por seu título. Você pode mantê-los ou adaptar para uma nova obra: manter preserva sua história, a origem dos textos; adaptar preserva o leitor final que lê sua obra. É sempre uma opção. O terceiro, o da história em espiral, para mim equivale a um sumário em espiral. A ideia de um caminho circular que vai em direção ao centro, imitando um ciclone é presente em histórias como Um corpo que cai, diz Truby. Ele difere-se do linear por aprofundar o tema de uma forma diferente e original. A ideia é que a história explora níveis cada vez mais profundos de um mesmo tema. Quando leio sua definição, imediatamente me vem à mente a obra de Pierre Bourdieu, Sobre o Estado (Cia das Letras, 2014). Ela é uma obra sobre a natureza do estado moderno e sua constituição e entendo que sua forma em espiral advém do fato de que a obra reúne as aulas ministradas por Bourdieu no Collège de France entre 1989 e 1992. Isso levou o editor a ter de dar um título geral a medida em que as aulas são apresentadas no livro, 178 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o como “Curso de 18 de janeiro de 1990”, “Curso de 25 de janeiro de 1990”, formas como são listadas em seu sumário os conteúdos, o que lembraria em muito o sumário linear. Pierre Bourdieu. Reproduzido de Wikipédia. Entretanto, vemos o aprofundamento quando cada capítulo é desdobrado no sumário e, entendo que isso é produto, como afirma o editor, do fato de que as próprias aulas do livro são também produto do entrelaçamento dos escritos, comentários orais, reflexões improvisadas que “mostram que suas aulas não podem ser reduzidas apenas às versões escritas que ele deixou, pois o desenrolar desses cursos podia assumir formas imprevistas, dependendo das reações que ele captava no auditório” (Bourdieu, p. 15). J o r g e B a r c e l l o s | 179 Este é um tipo de sumário de grande complexidade. Eu mesmo não consegui realizá-lo plenamente em minhas obras. Acredito que alguns dos livros que escrevi tenham o formato de espiral apenas nas unidades de seus capítulos. Em Saber e Moralidade: o discurso médico higienista sobre a mulher, a criança e as doenças do sexo em Porto Alegre (1890-1940), dividi a análise em dois capítulos principais que suponho seu desenvolvimento possa ser considerado próximo da ideia de espiral, já que, cada um aprofunda o tema, seja da história da sexualidade, seja das formas de sua expressão. Meu livro O Paradigma Estético: ensaios de historiografia, teoria e pós-modernismo (Clube dos Autores: 2021) encarna a ideia de espiral apenas no capítulo primeiro, onde sigo o raciocínio de aprofundar a historiografia geral e latino-americana, mas é preciso dizer que os demais capítulos seguem a lógica de apresentação linear. Então, eu não sou um bom exemplo dos modelos de sumário que desejo indicar. O quarto, o da história ramificada, entendo que corresponde ao sumário ramificado. Truby aponta histórias a partir de um sistema de capítulos. Originados de alguns pontos de uma ideia central, eles se desenvolvem em unidades cada vez menores. Ele exemplifica com o modelo de galhos de árvores e dá como exemplo As viagens de Gulliver como estrutura ramificada. Aqui, a proposta é mais adequada à literatura do que a não-ficção. A estrutura da não- ficção termina por reduzir, a partir de seu modelo lógico, as opções de desenvolvimento. É por isso que modelos ramificados podem ser vistos com muitas similaridades com o linear. Na minha visão, as obras de Paul Virilio seguem esse modelo. Isso porque parte de sua obra é feita de entrevistas célebres onde apresenta uma síntese de suas ideias e daí, no 180 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o modelo de entrevista, a ramificação é uma opção para o entrevistador. Ele parte de um capítulo e segue adiante. É o caso de obras como Guerra Fria (Brasiliense, 1984) e Amanhecer Crepuscular (FCE, 2002), onde Virilio é entrevistado e os capítulos terminam por reproduzirem a discussão e depois partir de outro tema no seguinte. A obra que escrevi que mais se aproxima deste modo de escrita foi A História da Paixão (Clube dos Autores, 2021). Por ser uma obra de história, o corte linear predomina. Entretanto, cada época analisada, da antiguidade aos tempos atuais tem um conceito ou “ramo” explicativo diferente do anterior. A história do sumário Entendo que esta tipologia de Truby completa a visão de Duncan pois enquanto o primeiro oferece referências para uma tipologia de sumários, o segundo avança no retrospecto histórico. Ele diz que um dos primeiros autores a fazer sumários foi Plinio, o Velho (23 d.c -79 d.c). O grande naturalista romano dedicou sua obraprima História Natural ao imperador Tito onde em resumo diz “porque você é tão importante e ocupado, sei que não poderá ler tudo. Então anexei um prático sumário que lhe permitirá consultar o que está sendo oferecido e escolher os capítulos de seu interesse” (Duncan, p. 16). Esse sumário é, assim, diferente do próprio índice da obra: aqui Plinio enumera, por exemplo, as menções feitas à Nero em toda a obra. A diferença é que, enquanto o sumário se concentra no leitor, em facilitar sua leitura, o índice remissivo se concentra na obra. Isso fica claro no J o r g e B a r c e l l o s | 181 exemplo irônico dado por Duncan. Ele relata que, quando dava aulas de literatura inglesa e pedia a leitura de uma página de uma obra, logo os alunos o questionavam em que tipo de edição, já que obras editadas em períodos diferentes tinham paginação diferente e sempre alguém perguntava o “capítulo” a que se referia, o que mostra a importância do sumário para localização de um leitor. A última proposta de Truby é a história explosiva, que corresponderia ao sumário explosivo. É a ideia de história de “múltiplos caminhos”, que teria na imagem do dente de leão sua expressão. Mas ele mesmo afirma que “não se pode mostrar uma série de elementos de uma vez, porque é necessário contar uma coisa depois da outra. Mas você pode criar a ilusão de simultaneidade” que no cinema é feito com cenas alternadas, o que implica numa” explicação comparativa para os acontecimentos” (Truby, p. 24). O autor exemplifica com o filme Loucuras de verão. Não faço ideia de um livro assim, mas o que mais próximo imagino esteja dessa ideia é a obra de Cristiano Bastos e Rafael Cony 100 grandes álbuns do rock gaúcho (Nova Carne Editora,2023). Ele mistura uma coleção de disco e artigos, cruza referências. Ele explode em seu tema. Meu livro mais próximo dessa ideia, A Câmara na Cidade, tem de fato múltiplos caminhos que são as ruas e logradouros que descreve, o que é, em si, irônico. Ruas, caminhos, entende? É curioso que chame a atenção de Duncan o fato de que a leitura de livros em dispositivos como “Kindle e Ipad, sem a numeração presente no sumário, sugira o seu fim. Você agora utiliza o localizador da plataforma ou site e pronto. Não tem necessidade do sumário. Roney Cytrynowicz em A colher, o martelo, a roda, 182 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o a tesoura e... o livro (disponível em https://abre.ai/k3bY) inicia seu ensaio com uma passagem do escritor Umberto Eco que diz que “o livro é como a colher, o martelo, a roda ou a tesoura. Uma vez inventados, não podem ser aprimorados. Você não pode fazer uma colher melhor que uma colher. Designers tentam melhorar, por exemplo, o saca-rolhas, com sucessos bem modestos, e, por sinal, a maioria nem funciona direito. O livro venceu seus desafios e não vemos como, para o mesmo uso, poderíamos fazer algo melhor que o próprio livro. Talvez ele evolua em seus componentes, talvez as páginas não sejam mais de papel. Mas ele permanecerá o que é.” A citação é extraída do capítulo “O livro não morrerá” da obra Não contem com o fim do livro (Record, 2010) e é um argumento importante para a preservação do sumário pois, mesmo com os avanços da tecnologia, ainda será necessário para leitura. O futuro do sumário A razão é que, nos termos de Eco, a pesquisa por buscadores não substituirá o sumário, pois o livro digital é apenas uma evolução tecnológica do livro real “das duas uma: ou o livro permanecerá o suporte da leitura, ou existirá alguma coisa similar ao que o livro nunca deixou de ser, mesmo antes da invenção da tipografia. As variações em torno do objeto livro não modificaram sua função, nem sua sintaxe, em mais de quinhentos anos.” Quer dizer, não devemos imaginar o fim do sumário junto com o suposto fim do livro. J o r g e B a r c e l l o s | 183 Umberto Eco. Divulgação UFMG. A internet nos faz voltar a era alfabética, então sumários são importantes “passe duas horas lendo um romance em seu computador e seus olhos viram bolas de tênis”, diz Eco, ao que, seu interlocutor, Carrière acrescenta: “Não podemos utilizar um computador se não soubermos escrever e ler. E, inclusive, de uma maneira mais complexa do que antigamente, pois integramos novos signos, novas chaves. Nosso alfabeto expandiuse. É cada vez mais difícil aprender a ler.” Não existe fim do livro, como não existe fim do sumário, eu concluo. Cytrynowicz prefere a saída irônica de Eco, de imaginar no futuro antes o fim da internet do que o fim do livro, como um dia foram os dirigíveis “talvez seja o caso de parar de anunciar o fim do livro e difundir o alarme sobre a ameaça do fim da Internet. Quem sabe assim o livro continue a sobreviver em paz”, finaliza Cytrynowicz. 184 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o Já a crítica de Duncan ao uso de buscadores em obras publicadas no kindle em contraposição ao uso de sumário em livros está no fato de que o primeiro impõe um modo de leitura e aprendizado que suplanta o uso do segundo e traz males catastróficos “[ele] está alterando nosso cérebro, reduzindo nossa capacidade de atenção e erodindo nossa memória. Esta é a era da distração e a culpa é da ferramenta de busca. O Google está nos emburrecendo” diz o autor. Aqui, minha tese é que o sumário compartilha com o índice remissivo de Duncan mais do que o próprio autor imagina. A pratica de sumarizar os livros é uma resposta para a forma de como o produzimos ao longo do tempo “cada mudança no ambiente social e tecnológico produziu um efeito na evolução do que significa ler”, diz o autor, um pressuposto que tanto pode ser aplicado aos índices, como ele prefere, como aos sumários, na minha interpretação. Nunca fiz índices para meus trabalhos, ainda que desejasse, pelo imenso trabalho que representam. A leitura atenta e a indicação da repetição seriam mais trabalhosas do que a própria escrita do livro. Entretanto, aprendi que capítulos podem ser subintitulados e essa divisão compor interessantes sumários que localizam o leitor. Entretanto, o sumário não cumpre apenas um papel para o leitor. Ele também auxilia o autor ao final de escrita de uma obra, levao a perceber se o encadeamento de temas que escolheu faz sentido. Já alterei o título de subcapítulos e de capítulos que escrevi observando a leitura geral de um sumário, para dar mais sentido ao conjunto da organização de um livro. Mesmo ensaios que não tinham divisão interna em subtemas ou subcapítulos, mas, por sua extensão, eu os subdividia com o objetivo de construir sumários mais explicativos. Então o sumário é uma J o r g e B a r c e l l o s | 185 ferramenta a mais para ter a visão geral de um texto. O próprio sumário reage aos objetivos da obra do autor: uma obra que tem um tema específico leva o leitor perceber as etapas de aprofundamento do tema; uma obra que tem um tema geral pode oferecer um amplo leque de títulos, que respondem pelos caminhos que seguiu o autor. Já apontei isso quando falei da redação do ensaio. Sou um renascentista, primo pelo equilibro, e não um pós-moderno que prime pela invenção. Ninguém é perfeito. O primeiro capítulo de Índice, uma história do é dedicado a ordenação alfabética. Ela é uma das formas primárias de organização dos índices, o capítulo final onde é referenciada uma obra “se quisermos entendê-los, temos que mergulhar em sua pré-história para ter noção de quão estranha e milagrosa a ordem alfabética é de fato: uma ferramenta que a gente acha que sempre existiu, mas que surgiu há 2 mil anos praticamente do nada; um instrumento que usamos todos os dias” (Duncan, p. 32). O autor não vai tão longe: ele pula para o século XX, quando no dia 10 de abril de 1917, no Grand Central Palace, a Sociedade dos Artistas Independentes abriu as portas de sua primeira exposição anual. A inovação: “as obras seriam apresentadas em ordem alfabética, de acordo com o sobrenome dos artistas” (idem). O que o autor quer dizer com isso? Que a ordem alfabética é um ótimo nivelador, não tem nada implícito por detrás. Vejamos um pouco melhor isso. Sumários por ordem alfabética 186 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o Duncan diz que, anos depois, se no campo das artes mostras organizadas por ordem alfabética não emplacaram, pelo menos os índices de livros sim. Isso não significa que a ordem alfabética não seja possível para sumários. Eu sou o autor do verbete Antibolsonarismo do Dicionário dos Antis: a cultura brasileira em negativo, organizado por Carmela Grune e outros (Pontes, 2021). Sumários organizados em ordem alfabética estão em obras de referência: o Dicionário de Politicas Públicas de Geraldo Di Giovanni e Marco Aurelio Nogueira (Unesp, 2015) e o Dicionário das Eleições, organizado por Claudio de Souza e outros (Juruá, 2020) são exemplos típicos. São obras temáticas, com artigos organizados sob a forma alfabética, e por isso são obras de referência. O uso da forma alfabética de organização de sumários, entretanto, não é exclusiva de dicionários: Alfabeto das colisões: Filosofia prática em modo crônico, de Wladimir Safatle (Ubu Editora, 2024) não segue uma ordenação típica alfabética, ainda que as letras importem. Sua “escrita de colisões” mistura as palavras, para as colocar como temas de ensaios que envolvem política, ética, psicanálise, estética, filosofia, crítica cultural. “Espécie de ensaísmo de pequenas formas”, encarna a ideia de que a ordem alfabética não precisa ser necessariamente ...alfabética, pois a ordem das letras é uma convenção. Não tive experiências com grupos de professores que se propusessem a escrever obras no formato alfabético. A razão é que para haver uma obra desta natureza, é necessária uma organização. Quando Carmela Grune me propôs participar de uma obra coletiva cujo tema era o negativo, ela deixou-me aberto um leque de conceitos que poderia desenvolver. Eu as recusei, pois a época estava mais dedicado a escrever críticas ao bolsonarismo, que então estava em andamento. O verbete J o r g e B a r c e l l o s | 187 antibolsonarismo foi proposto por mim e aceito. Ele ficou na ordem alfabética, entre antibibliofilia e antibritanismo. Um sumário alfabético faz parte de um projeto combinado. Ele encontra no alfabeto uma referência, e por essa razão, também encontra seus limites. O que ele ganha em profundidade perde em organicidade. Cada artigo explora bem seu tema, sem constituir um sistema. É o que faz um dicionário ser um dicionário. Há livros e autores que sequer usam a referência alfabética. Paul Virilio é um deles. Em seu Estética da Desaparição (Contraponto, 2015), obra em que o autor explora os aspectos da atual sociedade tecnologizada, o paradoxo da velocidade e inércia, as transformações das experiências em comum provocadas pela virtualização generalizada, bem como as formas de isolamento e dispersão das teles e redes, quando olhamos o sumário o que vemos? Apenas uma organização numérica: Capítulo 1, Capítulo 2, Capítulo 3 e Capítulo 4. Não sei se você já observou isto nas plataformas de streaming como a Netflix. Seriados americanos, regra geral, colocam um subtítulo em cada episódio. Na temporada 8 da série Dr. House, último episódio da série, o de número 22, é denominado “Todo mundo morre”. Mesmo após 150 episódios, ainda o último recebe um título próprio. Nos kdramas, ou dramas coreanos, ou ainda, “doramas” isso não é comum. Em Pousando no Amor, o episódio 1 recebe o título de...Episódio 1. Se imaginarmos que a lista de episódios de um seriado é seu sumário – é assim que eles são apresentados nos sites respectivos – então, o sumário da obra de Paul Virilio e a organização dos k-dramas se equivalem. Não interessa o título, vale a leitura ou assistir. 188 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o Isso não significa que tanto o livro quanto o seriado não tenham um tema por capítulo. O que eles fazem é guardar o mistério para o leitor, fazendo que ele ou leia o livro ou veja o episódio. A introdução de Jonathan Crary de Estética da Desaparição, de Paul Virilio, ainda que apresente os temas do livro, não chega a afetar a proposta de um sumário limpo onde só se numera os capítulos assim como as descrições que constam no resumo de cada episódio do seriado coreano não tiram a necessidade de vêlos. Isso quer dizer que sumários estão aí para organizar para o leitor a leitura, e só. E as vezes nem isso. Se for somente a ordem em que devem ser lidos, que seja. Não dizer o que se trata o conteúdo de cada capítulo no sumário é notável: eles indicam que a experiência da leitura vem em primeiro lugar, que não devemos ser rápidos ou objetivos quando se trata da leitura de um livro, que devemos nos submeter a experiência. Seja da leitura ou da visualização de um seriado. Ora, na sociedade pragmática em que vivemos, onde a ideologia do rendimento é lei, isso é revolucionário. Ela diz: “pare um pouco de ser pragmático. Nada de ir só no que interessa. Um livro não é um trecho de twiter (digo X). Livros foram feitos para serem. ..lidos” A numeração das páginas A numeração moderna de páginas de um ensaio ou livro pouco mudou. Sabemos que a numeração começa na folha de rosto e são feitas com algarismos arábicos. Mas por alguma razão as páginas preliminares não são numeradas, nem as páginas que iniciam capítulos, mas todas contadas para o sumário. Eu J o r g e B a r c e l l o s | 189 confesso que até hoje não sei o porquê, além de ser uma regra da ABNT. A numeração científica faz com que os números sejam escritos no canto superior direito da folha. Você pode se quiser alterar isso tudo, e é normal nas artes de livros mais contemporâneos que isso ocorra: em meus livros, opto pelas possibilidades do word que insere subtítulos a cada página com numeração, intercalando à esquerda e direita o número. Apenas uma vez ousei ultrapassar essa forma de numeração. Em meu livro A Câmara na Cidade (2023), optei por deixar a numeração apenas nas páginas pares, repetindo junto na página par o número ímpar. Vi esse recurso em algum lugar e o achei interessante, e apenas isso justificou que o imitasse para explorar. Minha primeira edição de A impossibilidade do real: introdução ao pensamento de Jean Baudrillard (Homo Plásticos, 2018), usou 190 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o a numeração ao final da página, intercalando ora a direita, ora a esquerda, pois foi uma opção do editor. Minha primeira edição de Educação e Poder Legislativo (Aedos Editora, 2014), seguiu a mesma numeração, acrescentando meu nome ao número em páginas intercaladas; minha primeira edição de O Tribunal de Contas e a Educação Municipal (Fi Editora, 2017), utilizou a numeração de páginas superior, como era de praxe de seu editor, Lucas Margoni. Após, nas edições seguintes publicadas pelo Clube dos Autores, desenvolvi meu próprio estilo de numeração. Aprendi que a numeração é estilo, que não há regra própria e que basta que lhe agrade para que seja uma boa notação. Depois do sumário e da numeração, já estaríamos concluindo este texto. Mas Duncan diz algo interessante que é o seguinte: “os espaços em branco dos livros fazem parte de uma arte do livro”. Ele lembra a passagem do romance Joseph Andrews, de 1742, escrito por Henry Fielding Dickens (11849-1933) que inicia descrevendo o segredo comercial da razão pela qual os escritores dividirem suas obras em livros e capítulos “as quebras de capítulo fornecem pontos de parada numa longa jornada: aqueles pequenos espaços em branco entre os capítulos podem ser considerados como um hotel de beira de estrada ou um posto de serviço onde talvez [o leitor] pare para tomar um gole. Ao persuadir os leitores a fazerem pausas em momentos prédeterminados, em vez de seguir uma leitura por conta própria, a divisão em capítulos “evita que se estrague a beleza de um livro ao dobrar suas folhas” (Duncan, p. 96). A conclusão do autor é que os capítulos – como a numeração – servem para facilitar a leitura e não a pesquisa, como fazem o índice e o sumário. Não se preocupe em deixar espaços ao final dos capítulos ou subcapítulos. Você pode inclusive incluir ilustrações. Isso J o r g e B a r c e l l o s | 191 aumentará o número de páginas? Sim. Aumentará o preço do livro? Com certeza. Influenciará a numeração? Certamente. Mas oferecerá uma experiência de leitura melhor. Ainda quanto a numeração. Duncan diz que numerar não é algo fácil ao longo da história. Os problemas da numeração medieval estavam no fato de que obras eram copiadas e nem sempre em páginas eram do mesmo tamanho, o que afetava a distribuição do texto e a numeração. O autor dá como exemplo o exemplar da obra Polychronicon escrita pelo monge Ranulf Higden, de Cheshire, cidade do norte da Inglaterra, no meio do século XIV. Mesmo contendo a orientação de como o leitor deveria usar seu sumário, ele dá errado. Duncan descobriu que estava com um exemplar posterior, copiado, e, portanto, com erro de paginação. Para o autor, o copista “ao que parece, não estava familiarizado com a tecnologia do índice. Simplesmente transcreveu os números como estavam. Uma cópia perfeita – mas não um índice perfeito” (Duncan, p.100). Já tive problemas de numeração de páginas na hora de diagramar. Simplesmente não conseguia retirar o número do início de capítulos. Optei por criar capítulos individuais e depois os agregar via programas como ilovepdf. A numeração é mais fácil de resolver pelo word, que permite dar o número de início de capítulo. Isso acontece por meu processo ser de autoaprendizado, tipo tentativa e erro. Designers e editores irão ir desses meus erros primários. Como se diz, sou um cavaleiro solitário da publicação. 192 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o Ranulf Higden. Fonte: wikipedia. Aspectos de design gráfico J o r g e B a r c e l l o s | 193 É que numerar páginas também pode dar dor de cabeça quando se trata de buscar o design moderno. O fato de que nunca consegui intercalar páginas em branco com páginas numeradas no word é um problema que qualquer designer resolve, mas com o programa profissional. Se alguém souber, por favor, me diga como fazer em word. Como o leitor observa, meus conhecimentos de word são, como dá para notar, básicos. Meu processo de criação gráfica é sempre por capítulos, onde facilmente consigo tirar a página da primeira folha, o que é vital para o design de uma obra dividida em capítulos. Então tenho de, como um copista, organizar detalhadamente uma obra. Um texto de dez capítulos tem dez arquivos. Cada um recebendo um número próprio. Depois junto tudo. É gozado: você consegue fazer uma arte profissional com Canva, o que permite embelezar um livro. Você faz capas para cada capítulo, introduz imagens. Mas uma coisa óbvia, quase infantil, tira você do sério, e você precisa bolar estratégias para a numeração da página, para que sempre fique em ordem. As primeiras obras que comecei a fazer a numeração, isso deu muita dor de cabeça. Errava a numeração. Era melhor em redação do que matemática. Depois consegui acertar. É por isso que autores terceirizam a tarefa da diagramação, ela dá trabalho. Professores-autores, com poucos recursos, assumem a tarefa com os riscos que implicam: aprender com os erros, noites sem dormir, etc. Duncan afirma que foi a invenção da imprensa que possibilitou que a numeração de páginas se universalizasse. O primeiro livro publicado em inglês, Memória das histórias de Troia, de William Caxton (1422-1491) introduziu a prensa e o comércio de livros na Inglaterra e deu a base para a numeração de páginas: isso era possível pela padronização da obra publicada “o número de 194 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o página se tornou a unidade de referência universal, o segundo ingrediente básico – junto a ordem alfabética – de praticamente qualquer índice dos últimos quinhentos anos” (Duncan, p. 105). O que serve para índices também serve para o sumário, e entendo até a adoção dos e-reader com suas telas que ajustam as páginas e dispensam sua numeração. Mas qual a graça de um livro sem numeração quando a arte está nos...detalhes? Olhe os livros da Coleção Exit, da Editora Ubu. Eles fazem uma arte especial para incluir a numeração no interior do texto do texto ou da mancha impressa. Aquele recuo para inserir a numeração é um detalhe, eu sei, mas acrescenta certo charme ao livro porque o diferencia. Seu designer foi capaz de imaginar um modo de inserir a numeração de página que não fosse a trivial, ele inventou um lugar no texto para ele. Você lê o texto e isso está em harmonia gráfica, é quase como uma recuperação às avessas das capitulares, aquelas grandes letras que iniciavam os capítulos dos livros medievais e que, por seu tamanho grande, davam destaque a obra. Aqui, nos livros da UBU, a numeração menor recupera esse espírito. Prefiro a arte dos diagramadores aos algoritmos dos e-readers. É interessante a história de Duncan sobre os problemas da numeração dos livros pois elas introduzem o modo como os livros são feitos. Os tipógrafos levaram tempos para numerar as páginas em cadernos, a atual forma de organização. Como são feitas em cadernos, nem todas as páginas eram numeradas, apenas a metade delas, já que eram dobradas, o que causava certa confusão para a orientação “isso é um lembrete de que o livro impresso, nessa fase, ainda tem um pé no universo do manuscrito. Os leitores, ao que parece, estavam dispostos a J o r g e B a r c e l l o s | 195 contornar a omissão e completar a numeração das folhas por conta própria” (Duncan, p. 116). Duncan encerra seu livro sobre índices, dos quais aqui extraio algumas consequências para a organização de sumários, com a conclusão de que “todo índice é assombrado de forma inevitável por seu indexador” (Duncan, p. 266). Para um escritor que passou anos folheando livros para encontrar suas características, essa conclusão importa. A observação de poesias e exposições de arte faz Duncan imaginar um índice feito por um autor como o de um artista classificando formas “sonhando com uma ordem... espirituoso e afetuoso, mas não subordinado a mais idiossincrática das poetas, atento a sua domesticidade peculiar”. (Duncan, p.272) A conclusão é que para fazer um sumário, ao final, não há regras. Há, é claro, um bom senso e a tradição. Tem coisas que não podem faltar. Por exemplo o sumário, além de conter o título ou tema do capitulo de um livro, tem de ter o número da página. Duncan afirma que cada característica do livro é uma ferramenta de leitura que é projetada para facilitar o processo de leitura. A numeração das páginas é uma delas. “De que modo lemos? Algumas páginas no trajeto de ônibus a caminho do trabalho; durante o horário de almoço, enquanto tentamos ignorar os plins e notificações sonoras do celular; aproveitando o tempo antes que o sono nos leve ao fim do dia. Em geral lemos onde podemos” (Duncan, p.65). A partir de uma origem medieval que previa que a leitura deveria ser algo feito lentamente, dando atenção aos atos de ouvir, ler, marcar, aprender e digerir as sagradas escrituras como desejavam os monges desde o século XIII descobrimos para que servem os sumários e como podemos aprender com 196 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o eles. Para os antigos, para ler as sagradas escrituras, a numeração das páginas surge como um apelo ao modo antigo de leitura. A numeração das páginas permitia aqueles que tinham nos mosteiros a leitura como centro da vida cotidiana ir e voltar de onde pararam. O advento das universidades, e com elas, a instrução de novas formas de notação, remodelou a escrita e a leitura para que as páginas fossem destrinchadas e identificadas de formas eficientes. Os sumários sugiram ao longo do tempo, diferenciando-se dos índices, mas nunca perdendo o seu valor. Eles podem ser feitos de diferentes formas, com diferentes rotas e muitos autores e editores podem realmente criar a partir de seus sumários, tanto graficamente como conceitualmente. O sumário é a porta de entrada, é a apresentação de uma obra. Se você foi capaz de escrever uma obra, deixe um tempo para pensar como fazer o sumário dela. O leitor agradece. Conclusão J o r g e B a r c e l l o s | 199 A escrita pode mudar o mundo Eu espero que se você chegou até aqui, você tenha adquirido, como eu, a crença de que, pela escrita, se pode mudar o mundo. Esse é um princípio que me acompanha desde minha formação no curso de história da UFRGS e fez parte de minha geração. Cada um fez, a sua maneira, o melhor que pode para mudar o mundo: dando aulas, exercendo funções públicas com empenho e dedicação, participando da vida política. A minha forma de tentar mudar o mundo foi pela escrita. Afinal, você sabe que o mundo está mudando, e para pior. Como diz Flintoff, “passamos noites em claro, nos revirando horas a fio, preocupados com isso” (p.11). Escrever já é fazer algo pela mudança do mundo. Você oferece o seu olhar e o compartilha, você mostra os erros e acertos do mundo, você deixa isso por escrito para as novas gerações. Sua escrita é seu testemunho. Sua escrita pode atravessar o tempo e ser compartilhada. Você não muda o mundo imediatamente ou diretamente, mas você o afeta. O ensaio afeta o mundo por combinar simplicidade de escrita com profundidade de conteúdo. Eu realmente fico triste quando vejo que publicações on-line ou em jornais pouco contam na carreira acadêmica ou no sistema Lattes. Já falei disto ao longo das páginas de Como escrever um ensaio: simplesmente é um Anti-intelectualismo às avessas, uma forma de rejeitar justamente um tipo de escrita que, por fugir do cânone universitário, da doxa acadêmica, tem uma enorme capacidade de atingir amplo público. 200 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o Fiz relatos, descrevi situações, sugeri métodos que espero tenham auxiliado o leitor a se aventurar na escrita de ensaios. Alguns da minha própria experiência, outros de pesquisa própria que fiz para este livro. Não peço desculpas nem pelas minhas histórias pessoais aqui relatadas, nem por eventuais erros que esta obra possa conter. Minha intenção nunca foi fazer alunos perfeitos, ensaistas perfeitos: você terá feito muito se chegou até aqui com a convicção de que pode superar seus medos de escrever. Que escrever não é um bicho de sete cabeças, mas que é algo que começa quando superamos o medo em função de nossas expectativas. O ensaio é uma excelente ferramenta de combate. Depois que você aprendeu a como desenvolve-lo, é hora de escolher os problemas que merecem a atenção. Eu elegi grupos de professores para destinar esta obra e a escrevi tendo em vista suas necessidades, angústias e dilemas. Eu sou um professor. E por isso foi a melhor forma de escrever este livro. Você lida com professores e sabe seus problemas: o ensinar e o aprender, a escola e a comunidade, a escola e o poder. Mas há muito mais que professores podem escrever, basta eleger o que lhes afeta. Para aquele que não faz parte de coletivos de professores, mas que ainda assim, quer escrever, este livro pode ainda ser útil. Os problemas escolhidos serão diferentes, é claro. “Os problemas que preocupam alguém em uma parte do mundo podem não incomodar uma pessoa do outro lugar (ainda que devessem). A fome é um exemplo. É um problema grave, mas menos talvez para aqueles que não passem fome. Há inúmeros temas que podem ser sugeridos para ensaios. Há os problemas que afetam todas as pessoas, ou parte delas. Pessoas J o r g e B a r c e l l o s | 201 que vivem em situações de guerra ou ditadura precisam de uma consciência planetária que só o conhecimento que se espalha por mais pessoas pode criar. Problemas que afetam pessoas por questões de gênero, sexo, identidade dizem respeito a direitos que ainda não foram universalizados ou foram negados. Problemas que afetam a todos, mas que nem todos veem da mesma forma, como o aquecimento global. Problemas são, usando a pior técnica de marketing, “oportunidades” de escrever ensaios. Encontre seu tema. Encontre seu objeto. Encontre seu problema. Esse exercício só você pode fazer. Olhe ao seu redor: o que o aflige? O que indigna você? Corro riscos se escrever sobre isso? Quais? Somente críticas? Vale a pena? Sim. Escreva. Algo mais? É hora de pensar bem. Sem medo. Eu pude escrever o que quis e pagar o preço por isso, mas nem todos podem fazê-lo. É de se avaliar. Já fiz críticas a autoridades que me custaram o emprego, outras nem tanto. Me arrependi? Não. Faria de novo? Se minha sobrevivência estivesse em jogo, não tenho certeza. Às vezes, escrever implica em riscos. Mas que seja um risco calculado. Está cada vez mais perigoso escrever porque estamos, como já mostrei em Neoliberais não merecem lágrimas, voltando a... Idade Média! Sempre que escrever, a melhor forma de se proteger é ser específico. É surpreendente o poder de proteção da expressão “é uma opinião”. Ela permite passar ideias, relativizando seu poder contra o opressor; ela permite ser objetivo, usar da criticidade sem fazer grande alarde. Vai criticar uma autoridade superior? Seja educado. Vai criticar um poder público? Use fatos inegáveis. Vai criticar uma pessoa? Seja ético. Talvez você descubra que a 202 | C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o origem dos seus medos não está em lugar algum, além de sua consciência. Todos que assumem uma causa e escrevem por ela sentem o retorno do leitor. É como se fizesse parte de uma conspiração positiva, você encontra logo os seus pares. Você pode até se candidatar as eleições porque se tornou uma autoridade pública; você pode reunir o que escreveu e seus textos se transformarem em um argumento dissuasório em uma luta política; veja o livro como uma boa ação que você pode fazer pelo mundo. Um livro é superior a muitas táticas de melhoria social, pois nem sempre atingimos um publico amplo como políticos com eles. Diz Flintoff “Se você quer que as pessoas sintam que tem capacidade de mudar as coisas, é extremamente importante chamar a atenção para as formas que tem de fazer isso com as próprias mãos” (p.51). Escrever é uma delas. Bibliografia J o r g e B a r c e l l o s | 205 ACOSTA, Alberto. O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo, Autonomia Literária, Editora Elefante, 2016. AGAMBEN, Giorgio. Nudez. 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Todos os direitos reservados. As ideias e posicionamentos descritos neste livro não expressam a opinião da editora, mas sim unicamente do autor. Clube dos Autores Av. Juscelino Kubitscheck, 350 – 2º andar Joinville - SC J o r g e B a r c e l l o s | 211 Jorge Barcellos é servidor público aposentado. Licenciado e bacharel em História e Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. Possui experiência de magistério no ensino médio e superior, além de publicações na área de história, educação e política educacional. Foi por vinte anos pesquisador do Memorial da Câmara e atualmente é servidor aposentado da Escola do Legislativo Julieta Battistioli da CMPA, onde foi Coordenador de Cursos. Foi historiador do Museu Joaquim José Felizardo e do CPH da SMC/PMPA, além de Gerente do Projetos – Humanidades, da Usina do Gasômetro. Recebeu a Menção Honrosa do Prêmio José Reis de Divulgação Científica (2006) e o Troféu Expressão da FINEP (2006) por seus projetos educacionais. É autor de 22 obras, entre elas Educação e Poder Legislativo (Aedos Editora, 2014), além de colaborador dos jornais SUL21, RED, BdfRS, Zero Hora, A Terra é Redonda, Le Monde Diplomatique Brasil e das plataformas de notícias (blogs) Sapo (Portugal), Medium (EUA) e La Mula (Peru).Mantém coluna no site Sler.com.br Mantém o site jorgebarcellos.pro.br Contato: [email protected] Site: jorgebarcellos.pro.br 212 |C o m o e s c r e v e r u m e n s a i o Obras de Jorge Barcellos publicadas pelo Clube dos Autores Neoliberais não merecem lágrimas O Êxtase Neoliberal Saber e Moralidade A Corrosão do PT A Impossibilidade do Real Educação e Poder Legislativo (2ª. Impressão) O Olho de Deus O Tribunal de Contas e a Educação Municipal (2ª. Impressão) Tempos de Pandemia A Pedagogia de Eros “A incrível história do programa de governo que encolheu” O Paradigma Estético O Camareiro da Rainha A História da Paixão Estados Unidos O Olho do Crocodilo Obras do autor publicadas por outras editoras Educação e Poder Legislativo Aedos editora 1ªed impressão O Tribunal de Contas e a Educação Municipal Editora Fi 1ª impressão O Olho de Deus – Editora Fi: 1ª edição A impossibilidade do Real – Editora Armazém Digital 1ª Ed. A Câmara na Cidade CMPA