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CAPITALOCENO E DISCURSO: DA PSEUDOLOGIA À COLAPSOLOGIA

2024

Minha apresentação na SESSÃO COORDENADA VII - DISCURSO, CAPITAL, EXPLORAÇÃO - VII SEPLEV, Ilhéus, setembro de 2024.

CAPITALOCENO E DISCURSO: DA PSEUDOLOGIA À COLAPSOLOGIA Maurício Beck SESSÃO COORDENADA VII - DISCURSO, CAPITAL, EXPLORAÇÃO - VII SEPLEV Eminentes acadêmicos, agradeço pela honra de ser convidado a oferecer uma breve comunicação neste prestigioso evento. Como devem ter notado, escolhi um título carregado de palavrões, de nomes feios ou de neologismos infamiliares. Trata-se estranhar o léxico do nosso tempo, manter um ouvido extemporâneo para não nos deixarmos levar pelas evidências de que um nome, um palavrão, ou mesmo dado palavreado signifique tal coisa ou mesmo coisa alguma. Mas, sem mais delongas (sejamos objetivos, como diriam nossos colegas das ciências exatas!), inicio essa fala abordando a ciência da emergência climática e o consequente risco concreto de colapso socioambiental neste século. Em particular, me refiro a esta nova ciência, denominada colapsologia. Segundo seus autores, o biólogo e engenheiro agrônomo Pablo Servigne e o ecoconselheiro Rapahel Stevens (2024, p.30), citando Cochet, “um colapso é ‘um processo ao fim do qual as necessidades de base (água, alimentação, energia, habitação etc.) não serão fornecidas e satisfeitas (a um custo razoável), entre a maior parte da população, por serviços legais’”. Nesta perspectiva, a colapsologia visa “esclarecer o que pode nos acontecer, ou seja, dar um sentido aos acontecimentos [em outras palavras, é] uma maneira de tratar o assunto com a maior seriedade possível para que se possa discutir serenamente políticas sobre uma perspectiva abrangente” (p.34). Segundo o cientista político espanhol Carlos Taibo (2019, p. 20), para a arqueologia o conceito de colapso envolve um conjunto de fatores: “o abandono, total ou parcial, dos centros urbanos e o desaparecimento de suas funções centralizadoras, a quebra dos sistemas econômicos regionais e, por fim, o declínio das ideologias fundantes das diferentes civilizações”. Com isso, infere-se que colapso é um conceito mobilizado para se compreender o declínio abrupto ou processual de civilizações passadas. Ora, a primeira questão que surge é: por que repentinamente este mesmo conceito tem ganhado força não mais apenas para as investigações arqueológicas e históricas do passado da humanidade, mas para tecer previsões de futuro? E, talvez, a melhor resposta seja: E por que não? O que tornaria a modernidade 1 capitalista industrial uma excepcionalidade no recorrente destino de civilizações humanas? O que nos faria tão especiais e, por conseguinte, imunes aos riscos de colapsar? Talvez o interdito esteja nas incertezas de projeções de futuro, fazer colapsologia seria uma modalidade de futurologia nada confiável. Ora, parafraseando Nietzsche, dizem que não se pode ou se deve fazer futurologia... e mesmo assim ninguém faz outra coisa! Nada mais certeiro, uma vez que planejamento estratégico e políticas públicas se valem de projeções, a especulação financeira, o aumento ou a diminuição de investimentos de capital se valem de certa futurologia em análises de riscos a curto e médio prazo. O crédito capitalista só existe porque há a crença de que no futuro teremos condições de cobrir os gastos e alguns irão lucrar em cima disso. No outro lado do espectro, os marxistas, no transcurso dos século XIX e XX sobretudo, realizavam suas análises de conjuntura sempre tendo como horizonte a revolução vindoura. Vladimir Lenin, em O Estado e a Revolução, predizia que, em uma futura e incerta fase da transição do socialismo ao comunismo, o Estado seria extinto. Sete décadas mais tarde, o Estado Soviético viria mesmo abaixo, mas de modo bem diverso de sua predição. Este acontecimento, aliás, foi chamado de colapso da URSS e contribuiu, pelo lado direito do espetro político, para a disseminação do chamado triunfalismo das democracias liberais sintetizado na expressão Fim da História, do filósofo e economista nipo-estadunidense neoconservador Fancis Fukuyama. Durante décadas, a crença no crescimento infindo do atual modo de produção se tornou quase inquestionável. O que Mark Fisher chamou de realismo capitalista, em que é mais fácil acreditar no fim do mundo do que no fim do Capital. Entretanto, eis que chegamos ao Capitaloceno, época em que a gigantesca estrutura econômica e entrópica do Capital está colocando em risco a vida em todo o Sistema-Terra. Risco real de fim do mundo, mas antes de tudo deste mundo em específico. Afinal, as extintas civilizações que colapsaram não sentiam o seu fim específico como um fim de mundo? O conjunto de eventuais causas de um futuro colapso é bastante extenso e já está em curso: mudança climática e aceleração do aquecimento, esgotamento das matérias-primas energéticas, declínio da biodiversidade ou aniquilação biológica do Sistema-Terra. crescente escassez de água potável, expansão de enfermidades, crise financeira, guerra, e fome… Recentemente, a Subcomissão de Estratigrafia Quaternária rejeitou a proposta para designar uma nova época geológica denominada Antropoceno, que refletiria o impacto significativo de determinadas atividades humanas no Sistema Terra. Apesar disso, o Antropoceno, também conhecido como Capitaloceno, ainda pode ser interpretado como um evento de escala 2 planetária relacionado ao aquecimento global. No que concerne à questão da denominação convencionada para este novo período, surgiram múltiplas alternativas. Costa (2023) afirma que foram mapeadas em torno de 90 designações alternativas ao Antropoceno. Essa disputa pelo batismo do fenômeno não pode deixar de chamar a atenção dos estudos do discurso, pois como afirmou Althusser (2007), “na luta política, ideológica e filosófica, as palavras são armas, explosivos ou tranqüilizantes e venenos. Às vezes, toda a luta de classe pode ser resumida a um confronto entre palavras”. O litígio em torno desta proliferação de nomeações em curso desvela posições ardentes nos frios espaços da terminologia científica e torna patente o político no âmago das condições de reprodução das práticas científicas em questão. Em seu texto O mentir verdadeiro sobre A arte da Mentira política ou pseudologia, J.J. Courtine (2006, p.26) asseverou: tornou-se muito difícil separar a verdade da mentira. Informação ou intoxicação? Não se sabe mais nada sobre a ciência certa. Aproximamo-nos, talvez, do estado ideal em que o discurso político estará finalmente livre do fantasma mesmo da verdade, que às vezes o assombra ainda como um velho remorso. Um hipótese a ser considerada é de que talvez estejamos vivenciando uma mudança no regime de verdades tanto na política, quanto nas ciências. Em outro texto (Beck, 2022), arrisquei a conjecturar que o designado antropoceno/capitalonceno esteja se constituindo como um acontecimento discursivo com relação às práticas científicas, uma vez que este acentua a problematização do status de “neutralidade assubjetiva” em ciências e sua (não)relação com a política e com o capital. De outro lado, problematiza a dicotomia natureza/cultura (essência/variação) da ontologia europeia (já que a atividade humana torna-se uma força geológica, a natureza deixa de ser uma externalidade, a economia é subsumida pela ecologia), também questiona a suposta excepcionalidade do humano, em relação às demais formas de vida do planeta Terra (enfatiza as simbioses e a coevolução entre espécies), e traz para o centro da discussão (para além campo da filosofia da biologia ou da antropologia) a problematização da categoria espécie. 3 Redelimitações científicas, inversões inumanas, deslocamentos geológicos. Redelimitações, inversões. deslocamentos parecem estar desfazendo velhas divisões departamentais. Nessa ótica. o historiador indiano Dipesh Chakrabarty (2013) defendeu 4 teses em torno da crise planetária da mudança climática, a saber: Tese 1 – a razões antropogênicas da mudança climática levam ao fim da distinção humanista entre história natural e história humana; Tese 2 - O Antropoceno modifica a história humanista da modernidade/ globalização; Tese 3 – A hipótese do Antropoceno exige colocar em diálogo a história do Capital e a história da espécie humana; Tese 4 - A rasura dos limites entre a história do Capital e a história da espécie questiona os limites da compreensão histórica, uma vez que nós, humanos, nunca nos experimentamos como uma espécie entre outras. Por outro lado, as modernas cisões entre fatos e valores, ciência e política (segundo Latour) parecem enfrentar seu esgotamento, seja na pseudologia da política cada vez mais atravessada pelo digital, seja na proposta manifesto do projeto de ciência da colapsologia, em que a neutralidade é impensável. Com efeito: A colapsologia não é uma ciência neutra, destacada de seu objeto. Os colapsólogos são tocados diretamente por aquilo que estudam e não podem ficar neutros. Aliás, não devem ficar neutros. Tomar esse caminho não nos deixa indenes. A matéria da colapsologia é um assunto tóxico que concerne ao mais profundo de nosso ser. É um enorme choque que perturba os sonhos. (Servigne; Stevens, 2024, p. 36) Não é preciso dizer que este projeto de ciência dista bastante das coordenadas da atual economia do conhecimento pautada pela produtividade. A busca pela fusão entre ciência e engajamento político lembra um certo espectro do irrealizado. Ou seria ela indício de um outro regime de verdade? Diante do exposto, não posso terminar sem citar as palavras da filósofa belga Isabelle Stengers (2023, p. 151-152), em “Uma Outra ciência é possível!” Apelo por uma ciência lenta, ela escreve: Percebemos agora, porém que o futuro está vindo em nossa direção a toda velocidade. […] O que diremos às crianças que nasceram neste século quando perguntarem: “vocês sabiam tudo o que precisavam saber, o que fizeram? […] É possível que algumas pessoas fora da academia tenham a confiança de que nós – selecionados, treinados e pagos como fomos para pensar, imaginar, conceber e propor – estamos, de fato, usando essas habilidades para fazer algo em relação ao futuro que está diante de nós [...] Somos capazes de consentir a essa confiança e permitir que ela tenha poder de nos afetar? Ou nossa resposta será contar a triste história de que estamos, ou estávamos, ocupados demais batendo intermináveis metas às quais agora precisamos nos conformar para sobreviver? 4 REFERÊNCIAS ALTHUSSER, Louis. A Filosofia Como Uma Arma Revolucionária. Entrevista concedida a Maria Antonietta Macciocchi e publicada em L'Unità, Fevereiro de 1968. Marxists Orgs. Maio 2007. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/althusser/1968/02/filosofia.htm. Acesso em: fev 2024. BECK, Maurício. Produção de Conhecimento no Antropoceno: do mal-estar na naturezacultura e seus negacionistas. In CASTELLO BRANCO, Luiza. (org.) et al. Entrenós: da língua, do sujeito, do discurso. Vol.1. Campinas: Pontes, 2022. CHAKRABARTY, Dipesh. O clima da História: quatro teses. Tradução: Denise Bottmann, Fernanda Ligocky, Diego Ambrosini, Pedro Novaes, Cristiano Rodrigues, Lucas Santos, Regina Félix e Leandro Durazzo. Sopro, n.91, jul. 2013, p.3-22. COURTINE, Jean-Jacques; SWIFT, Jonathan. Arte da Mentira Política precedido pelo texto O Mentir Verdadeiro. Tradução de Mónica Zoppi-Fontana e Roberto Leiser Baronas. Campinas: Pontes, 2006. COSTA, Alyne . Pósfacio: Gaia (perpetua) redux. DANOWSKI, Debora; CASTRO, Eduardo Viveiros; SALDANHA, Rafael. Os Mil Nomes de Gaia: do antropoceno à idade da Terra. Volume 2. Rio de Janeiro: Editora Machado, 2023. SERVIGNE, Pablo; STEVENS, Raphaël. Como Tudo Pode Desmoronar: pequeno manual de colapsologia para uso das gerações presentes. Tradução e apresentação de Newton Cunha. São STENGERS, Isabelle. Uma outra ciência é possível: manifesto por uma desaceleração das ciências. Tradução de Fernando Silva e Silva. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2023. TAIBO, Carlos. Colpaso: capitalismo terminal, transição ecossocial, ecofascismo. Tradução de Marilia Andrade Tarales Campos e Andréa Madedônio de Carvalho. Curitiba: Ed UFPR, 2019. 5