Andrea Cachel
HUME: NATURALISMO COMO
ANTIRRACIONALISMO?
RESUMO:
O artigo pretende analisar em que medida a filosofia de Hume dialoga com a definição tradicional de conhecimento, traçando um caminho alternativo sobretudo
em relação à noção de justificação das nossas crenças epistêmicas e morais mais
relevantes. Seguindo o percurso que leva à filosofia humeana, passando principalmente pelo debate entre o inatismo cartesiano e a descrição do entendimento postulada pelos empiristas. Pretendemos mostrar em que medida a fundamentação
dada por Hume à causa e o efeito e às escolhas morais desloca a razão do centro de
gravidade da natureza humana. Seu objetivo é explicar o modo como o naturalismo
humeano é também antirracionalismo e como ele subverte a própria imagem que a
história da filosofia estabeleceu para o que seja o filosofar.
Palavras-chave: Imaginação; Crença; Naturalismo.
* Doutora em Filosofia pela
Universidade de São Paulo (2010)
REVISTA DE ESTUDOS DE CULTURA | Nº 02 | Mai.Ago./2015
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| Andrea Cachel
HUME: NATURALISM AS ANTI-RATIONALISM?
ABSTRACT
This article intends to analyze in what extent Hume’s philosophy dialogues with the traditional definition of knowledge, tracing an
alternative way especially in relation to the justification notion of our more relevant epistemic and moral beliefs. Following the path that
leads to humean philosophy, passing mainly by the debate between cartesian innateness and the description of understanding postulated
by empiricists, we intend to show in what extent the reasons given by Hume on cause and effect and moral choices displace the reason of
the gravity center of human nature. The objective is to consider how the humean naturalism is also anti-rationalism and how it subverts
the own image that the history of philosophy established for what is to philosophize.
Keywords: imagination; belief; naturalism.
HUME: ¿NATURALISMO COMO ANTIRRACIONALISMO?
RESUMEN
El artículo busca analizar en qué medida la filosofía de Hume dialoga con la definición tradicional del conocimiento, trazando un
camino alternativo, especialmente en relación a la noción de justificación de nuestras creencias epistémicas y morales más relevantes.
Siguiendo la ruta que conduce a la filosofía de Hume, que pasa principalmente por el debate entre el innatismo cartesiano y la descripción de entendimiento postulada por empiristas, tenemos la intención de mostrar en qué medida las razones dadas por Hume sobre
causa y efecto y las elecciones morales desplaza la razón del centro de gravedad de la naturaleza humana. Su objetivo es explicar cómo
el naturalismo de Hume es también antirracionalismo y cómo él subvierte la misma imagen que la historia de la filosofía ha establecido
para lo que es filosofar.
Palabras clave: imaginación; creencia; naturalismo.
HUME: NATURALISME COMME ANTIRATIONALISME?
RÉSUMÉ
Cet article prétend analyser dans quelle mesure la philosophie de Hume dialogue avec la definition traditionnelle du connaissance, en
faisant un chemin alternative surtout par rapport à notion de justification de nos croyances épistémiques et morales plus importantes.
En suivant le parcours qui conduit à philosophie humaine,en passant principalement pour le débat entre l’inatisme cartésien et de l’
entente postulé pour les empiristes, nous prétendons montrer dans quelle mesure la fondamentation donnée pour Hume à la cause et
l’ effet et à des choix morales transfère la raison du centre de gravité de la nature humaine. L’objectif est d’expliquer la manière comme le
naturalisme humain est aussi antirationalisme et comme il subvertit la propre image que l’histoire de la philosophie a établi pour c’est
qui ce philosopher.
Mots-clès : imagination ; croyance, naturalisme.
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O PERCURSO FILOSÓFICO de construção do conhecimento desde sempre se pautou pela discussão acerca
do modo pelo qual se chega à verdade. Em oposição ao
sofista, Platão qualifica o filósofo como aquele que tem
por objetivo buscar a verdade. No diálogo Teeteto, ele
apresenta a definição clássica segundo a qual o conhecimento é a crença verdadeira justificada. A despeito
das divergências em algumas filosofias posteriores,
especialmente a aristotélica, quanto aos modos de justificação das crenças verdadeiras é quase generalizada
a compreensão de que a razão tem papel central no
estabelecimento da verdade. Ainda que haja algumas
distinções quanto ao que seja o conhecimento conceitual ou em relação ao próprio sentido a ser atribuído à
ideia de racionalidade, que o conhecimento verdadeiro
envolve diretamente a razão, apoiada ou não na experiência, é algo mais ou menos unânime num plano mais
geral da filosofia até o Renascimento. Da mesma forma,
grande parte dos filósofos nesse contexto derivou desses
pressupostos a compreensão de que por meio do conhecimento racional, podemos realizar distinções morais e
agir bem, colocando em perspectiva o interesse geral.
A filosofia cética sempre representou um contraponto a essa perspectiva. Essa corrente acusa a existência de uma diaphonía, uma diversidade das filosofias,
uma isonomia entre os seus argumentos, que levam o
cético a questionar a própria possibilidade de o homem
encontrar a verdade. Diante dessa questão, os filósofos
acadêmicos, como Cícero, declaram a inapreensibilidade da verdade, ou seja, que nada pode ser conhecido
efetivamente. Em contrapartida, a filosofia pirrônica,
iniciada com Pirrono séc. VI a.c e tendo como um dos
principais representantes Sexto Empírico, já no séculoII
d.C, entende que a verdade ainda não foi encontrada,
não excluindo nem a eventualidade da descoberta e
nem a sua impossibilidade. Nessa perspectiva, o ceticismo acaba constituindo-se como uma filosofia que
continua investigando os assuntos, porém aponta as
limitações do discurso racional. O cético pirrônico
investiga porque se abstém de apresentar opiniões dogmáticas, tanto no sentido afirmativo como no negativo,
entendendo que o mais coerente seja não afirmar nem
negar nada sobre as coisas, e, desse modo, suspender o
juízo (VERDAN, 1998, p. 37).
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No contexto do Renascimento, a emergência da
subjetividade exige uma redefinição da perspectiva
racionalista. Redefinição essa que incorpora a posição do sujeito. Uma série de filósofos desse período,
influenciados por essas correntes céticas da Antiguidade (POPKIN, 2000), passa a questionar a capacidade da razão de alcançar uma verdade inquestionável,
inserindo a instabilidade da natureza humana como
elemento problematizador das concepções racionalistas do conhecimento. Montaigne, sem dúvida, é um
autor central nesse contexto. Criador do gênero ensaio,
Montaigne possui uma filosofia que concentra várias
correntes da filosofia helenística, destacando-se na
sua obra a perspectiva cética. A instabilidade da natureza humana, a posição subjetiva do olhar, o profundo
desconhecimento que temos em relação aos nossos
próprios limites são temas constantes em seus textos.
A sabedoria corresponderia justamente à percepção da
impossibilidade da razão determinar um conhecimento
inquestionável, como afirma no ensaio Dos Coxos:
“O falso aproxima-se tanto do verdadeiro, que o sábio não deve enveredar
por tão perigoso desfiladeiro”. Verdade e
mentira têm igual fisionomia; vemo-las
com os mesmos olhos (MONTAIGNE,
p. 320, 1987).
Nesse ensaio, Montaigne discute a insuficiência
dos testemunhos apresentados aos Tribunais Seculares
como prova de atos supostamente ligados à feitiçaria.
Vários argumentos são empregados para relativizar a
pretensão humana de alcançar a verdade. Verdade essa
que seria indispensável para que se pudesse condenar
alguém à morte com justiça. Assim, Montaigne ressalta
que o ser humano tende a crer no que é vão. Mostra,
ademais, que todos acreditam ser obra de caridade convencer os outros e que normalmente as convicções mais
fortes derivam de causas frágeis. A investigação dessas
causas exigiria um investigador prudente, atento, sem
prevenção, sustenta. Porém, afirma que isso no gênero
humano é quase inexistente. Quando se impõe um discurso como inquestionável, mostra-se a fraqueza da
razão. Isso porque antecipamos os fatos, vemos neles
o que queremos ver, o que nossas crenças infundadas
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afirmam. A confirmação de um fato muitas vezes é
simplesmente mera antecipação, pressuposição. Temos
uma imaginação que recebe como verdadeiro aquilo
que, em realidade, é falso e frágil. Nesse sentido, haveria uma ignorância “forte e digna”, que exige um profundo conhecimento. Reconhecer a ignorância acerca
de certos assuntos é uma sabedoria.A incapacidade de
atingirmos a verdade mesmo nas informações diretas da experiência é prova da própria incapacidade da
razão atingi-la e reconhecer essa limitação é a verdadeira sabedoria:
Idênticas conclusões se tirariam de
outros casos semelhantes, se examinados cuidadosamente. “Admiramos as
coisas que iludem porque se encontram
longe de nós”. Assim nossa vista descobre imagens longínquas que se afiguram
estranhas e se reduzem a nada ao nos
aproximarmos delas: “Nunca a fama
corresponde à verdade” (MONTAIGNE,
p. 322, 1987).
O reconhecimento da incapacidade da razão de
atingir a verdade é, de acordo com esse ensaio, o ponto
de chegada da filosofia:
Eu chego a odiar as coisas verossímeis
se me são apresentadas como infalíveis,
e prefiro as expressões que atenuam a
audácia da proposição, como, por exemplo: “Talvez, até certo ponto, dizem,
penso”, e outras do mesmo gênero. Se
tivesse tido de educar crianças, eu as
houvera habituado às dúvidas e não às
afirmações. Diriam: “Como? Não sei,
pode ser, será?” Assim, mais pareceriam
aprendizes aos sessenta anos do que
doutores aos dez, como acontece hoje.
Quem deseja curar-se de sua ignorância
precisa confessá-la.
Íris é filha de Taumante; a admiração
é a base de toda a filosofia; a investigação é a fonte do progresso; a ignorância
forte e generosa que, do ponto de vista
da honra e da coragem, nada fica a dever
à ciência. E há tanta ciência em conceber essa ignorância como em conceber
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a própria ciência. Corras, conselheiro
em Tolsa, publicou um resumo do estranho processo de dois indivíduos que se
faziam passar um por outro. Lembro-me
(somente disso, aliás) que considerara
a impostura daquele a quem se julgou
culpado tão maravilhosa, tão acima
de nossa possibilidade (e a do juiz) de
entender, que me pareceu excessiva a
condenação à morte, do réu. Deveríamos
admitir uma sentença concebida nestes
termos: “O tribunal não compreende
nada neste caso” Seria ainda mais livre e
sincero do que o que faziam os juízes do
Areópago, os quais, quando deviam pronunciar-se acerca de uma causa que não
conseguiam esclarecer, determinavam às
partes que voltassem cem anos depois
(MONTAIGNE, p. 323, 1987).
Confessar a ignorância, a impotência da razão para
chegar a uma verdade absoluta é algo qualificado como
a postura filosófica mais adequada, ao invés dasustentação de um discurso racional capaz de estabelecer uma
verdade inquestionável. Sendo assim, a tarefa da filosofia não é propriamente a busca da verdade, por meio da
atividade de exercício da razão, mas sim perceber como
atua a natureza humana na formação das suas crenças e
reconhecer a limitação humana para alcançar a verdade.
Não apenas nesse ensaio, mas também em textos como
Apologia de Raymond Sebond, Montaigne localiza na limitação das pretensões da razão o exercício da verdadeira
filosofia, o que tem como contrapartida a concepção de
uma filosofia que se redefine enquanto observadora da
natureza humana. É na percepção da influência de uma
série de tendências envolvidas no modo como o sujeito
se relaciona com o seu objeto de conhecimento quepassa a se situar o interesse do filósofo.
A filosofia cartesiana procura dar um sentido completamente novo a essa perspectiva. Diante de alguns
exemplos citados por Montaigne e por toda uma tradição que retoma o ceticismo antigo no Renascimento,
Descartes irá sustentar a evidência do cogito:
Mas que sei eu, se não há nenhuma outra
coisa diferente das que acabo de julgar incertas, da qual não se possa ter a
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menor dúvida? Não haverá algum Deus,
ou alguma outra potência, que me ponha
no espírito tais pensamentos? Isso não é
necessário; pois talvez seja eu capaz de
produzi-los por mim mesmo. Eu então,
pelo menos, não serei alguma coisa? Mas
já neguei que tivesse qualquer sentido
ou corpo. Hesito no entanto, pois que se
segue daí? Serei de tal modo dependente
do corpo e dos sentidos que não possa
existir sem eles? Mas eu me persuadi de
que nada existia no mundo, que não havia
nenhum céu, nenhuma terra, espíritos
alguns, nem corpos alguns; não me persuadi também, portanto, de que eu não
existia? Certamente não, eu existia sem
dúvida, se é que me persuadi, ou, apenas,
pensei em alguma coisa. Mas há algum,
não sei qual, enganador mui poderoso
e mui ardiloso que emprega toda a sua
indústria em enganar-me sempre. Não há
pois dúvida alguma de que sou, se ele me
engana; e, por mais que me engane, não
poderá jamais fazer com que eu nada seja,
enquanto eu pensar ser alguma coisa.
De sorte que, após ter pensado bastante
nisto e de ter examinado cuidadosamente
todas as coisas, cumpre enfim concluir
e ter por constante que esta proposição,
eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira, todas as vezes que a enuncio ou
que a concebo em meu espírito (DESCARTES, p. 142, 2010).
A consciência, o cogito, a razão, o pensamento, a
alma: tudo se equivale e é esse domínio que resiste à
dúvida, é o que emerge como certeza intuitiva diante
da própria universalização da dúvida. O ponto inicial
inquestionável do conhecimento passa a ser a razão
compreendida como cogito. É desse campo de evidência
que parte a busca da verdade. Os objetos da consciência
são as ideias e é nelas que devemos procurar os critérios
que poderão fazer emergir todo um domínio de certeza
e evidência. A prova da existência de Deus advém da
análise das ideias de perfeição e infinito que, segundo
Descartes, são objetos da nossa consciência. Tendo
provado que Deus existe e é bom, Descartes assume
como critério do conhecimento e da verdade a clareza
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e distinção das ideias. Aquilo que podemos conceber
com total clareza e distinção deve ser considerado
verdadeiro.
A clareza e a distinção são, em realidade, marcas do inatismo do conhecimento. O que podemos
saber de verdadeiro não decorre da experiência e de
nenhuma ideia percebida pelos sentidos, mas envolve
diretamente uma inspeção do espírito que se volta
para si mesmo e acessa ideias inatamente presentes
nele. Assim, por exemplo, a identidade de um objeto
como um pedaço de cera não é uma inferência racional
baseada em qualquer informação conferida pela experiência e sim o acesso a uma infinitude potencial de
modificações que esta res extensa poderia conter:
E, agora, que é essa extensão? Não será
ela igualmente desconhecida, já que na
cera que se funde ela aumenta e fica
ainda maior quando está inteiramente
fundida e muito mais ainda quando o
calor aumenta? E eu não conceberia
claramente e segundo a verdade o que
é a cera, se não pensasse que é capaz
de receber mais variedades segundo
a extensão do que jamais imaginei. É
preciso, pois, que eu concorde que não
poderia mesmo conceber pela imaginação o que é essa cera e que somente
meu entendimento é quem o concebe;
digo este pedaço de cera em particular,
pois para a cera em geral é ainda mais
evidente. Ora, qual é esta cera que não
pode ser concebida senão pelo entendimento ou pelo espírito? Certamente é a
mesma que vejo, que toco, que imagino e
a mesma que conhecia desde o começo.
Mas o que é de notar é que sua percepção, ou a ação pela qual é percebida, não
é uma visão, nem um tatear, nem uma
imaginação, e jamais o foi, embora assim
o parecesse anteriormente, mas somente
uma inspeção do espírito, que pode ser
imperfeita e confusa, como era antes, ou
clara e distinta, como é presentemente,
conforme minha atenção se dirija mais
ou menos às coisas que existem nela e
das quais é composta (DESCARTES, p.
148, 2010).
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A concepção de uma ideia diferencia-se da sua
imaginação e decorre dessa inspeção do espírito que
percebe em si mesmo um conteúdo previamente dado,
anterior à experiência. Nem todo conhecimento é
exclusivamente inato, sendo evidente que há todo um
contexto de temas que dependem de informações da
experiência. Porém, a certeza está diretamente ligada
ao claro e distinto e, portanto, a verdade relaciona-se
diretamente com o inato. A razão é a consciência de
modo geral e o ato de imaginar, por exemplo, não deixa
de ser razão em alguma medida. Contudo, a inspeção
pura do espírito é racionalidade em seu sentido mais
preciso, na filosofia cartesiana. É essa perspectiva da
racionalidade a mais diretamente relacionada à descoberta da verdade.
Uma rejeição das ideias inatas, portanto, em
alguma medida já lança elementos importantes para
uma crítica ao sentido específico de verdade reinstituído pela filosofia cartesiana. Nesse contexto, a filosofia lockeana é fundamental e representa uma tentativa
de reestabelecer a centralidade da experiência na composição do pensamento. A verdade não mais é compreendida como relacionada a uma inspeção do espírito
independente dos conteúdos da experiência. De modo
geral, o conhecimento certo passa a ser uma percepção
de relações dadas nas próprias ideias, de forma direta
ou pela intermediação de outras ideias.O conhecimento provável, em Locke, diferencia-se do conhecimento proveniente da demonstração porque a prova
exige elementos da experiência e não pode ser dada
por uma intuição que apenas perceba relações diretas
entre as próprias ideias. Mas, no limite, a produção
do conhecimento se dá por uma percepção do acordo
ou desacordo das ideias, o que é o campo próprio da
intuição, a qual as provas devem se reduzir em cada
processo de desmembramento. Conhecer é um pouco
perceber perceptualmente:
Conhecer, portanto, é apenas perceber conexão e concordância, oposição e discordância, entre quaisquer
de nossas ideias. Se há percepção, há
conhecimento; do contrário não há
conhecimento, apesar de nossa imaginação, opinião ou crença. Para sabermos
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que branco não é preto, basta percebermos a discordância entre essas duas
ideias. Para termos máxima segurança
de que os três ângulos de um triângulo
são iguais a dois ângulos retos, basta
percebermos que a igualdade de dois
ângulos retos necessariamente concorda
com os três ângulos de um triângulo e é
inseparável deles (LOCKE, p. 575, 2012).
Como dito, a crítica às ideias inatas representa um
“ataque” importante ao projeto racionalista cartesiano,
que dissocia totalmente o conhecimento certo da experiência perceptual. O juízo, em Descartes, implica no
limite a inspeção do espírito que se distancia da faculdade de imaginar e, portanto, da experiência como um
todo. Em Locke, o conhecimento certo é, em última
análise, a percepção do acordo ou desacordo das ideias
vindas à mente por meio da experiência, via sensação
ou reflexão. Ele não implica nenhum conteúdo inato,
de forma que a razão, nesse contexto, é um simples
operar com os conteúdos da própria percepção, a qual
apresenta em si mesma os critérios para o estabelecimento do acordo ou desacordo.
Berkeley e Hume de modo geral seguem Locke
na crítica ao inatismo e, portanto, restringem a racionalidade à operação com as ideias vindas à mente a
partir da experiência perceptual. Hume, porém, apresentará um ataque ainda mais radical à racionalidade,
tendo em vista que não apenas reforçará a refutação
do inatismo, mas restringirá o alcance da própria atividade de operação com ideias que a razão realiza. A
filosofia humeana se destaca por apresentar uma crítica
à relação de causa e efeito que acaba por representar
uma discussão acerca do próprio alcance da metafísica
como um todo. Para tanto, Hume parte de uma investigação mais exata acerca daquilo que diferencia a razão
demonstrativa e intuitiva da “razão provável”. Segundo
Hume, na Investigação, os objetos da razão humana
seriam de duas espécies: relações de ideias e questões
de fato. Tais “objetos da razão humana” dariam base aos
raciocínios, divididos conforme esses objetos respectivamente em demonstrativos e prováveis ou morais. A
demonstração caberia apenas à álgebra e à aritmética e à geometria e decorreria apenas de quatro rela-
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ções “filosóficas”, quais sejam, semelhança, proporções
de quantidade ou número, graus de qualidade e contrariedade. Os raciocínios prováveis ou morais seriam
aqueles pertinentes às questões de fato e partiriam das
relações de identidade, relações de espaço e tempo e
da relação da causa e efeito. Nesses casos, uma simples
inspeção das ideias não garantiria a certeza das respostas, sendo necessário recorrer à experiência. Para
recorrer à experiência, quando esta não é a simples
percepção de algo que ocorre, mas sim um verdadeiro
raciocínio. Segundo Hume, no limite sempre se deve
partir da relação de causa e efeito, única relação capaz
de ir além do que pode ser percebido pelos sentidos ou
reproduzido pela memória.
Ao se perguntar sobre o que permite a inferência de
um objeto observado para outro que não está imediatamente presente aos sentidos, Hume está pensando todo
o estatuto do raciocínio experimental. Ele inicialmente
rejeita que a relação de causa e efeito seja analítica, ou
seja, que o ato de considerar todo novo acontecimento
como decorrência de uma causa possa ser intuitiva
ou demonstrativamente provado. Afirmar que toda
mudança decorre de uma causa, caso fosse afirmado,
tratar-se-ia de um juízo sintético, não havendo uma
identidade entre o conceito de acontecimento e o de
ser causado. Quanto à relação que estabelecemos entre
duas espécies de objetos e a partir da qual afirmamos
que todos os objetos semelhantes à primeira causarão
objetos semelhantes à segunda espécie. Hume procura
mostrar o equívoco das fundamentações da relação de
causa e efeito na ideia de que percebemos poderes nos
objetos ou de que possamos, por algum motivo, supor
a sua existência a partir da observação da experiência.
A observação nos oferece dados que se resumem a uma
repetição constante de uma conjunção entre duas espécies, de uma anterioridade da “causa” sobre o “efeito”
e de uma contiguidade espácio-temporal entre ambos.
Ser causa de outro objeto, contudo, exige mais: implica
um vínculo necessário entre ambos, pelo qual sabemos que a existência do efeito exige a da causa. Hume
expõe, entretanto, que a observação de uma conjunção
entre dois objetos não pode originar uma ideia de conexão necessária, tampouco a observação da repetição
dessa conjunção, ainda que ao infinito, poderia fazê-lo,
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porquanto não pode fazer surgir uma qualidade nos
objetos. A repetição da conjunção no passado só poderia fundamentar a inferência futura caso a pressuposição da regularidade da natureza (o futuro se assemelha
ao passado) pudesse ser considerado um princípio
demonstrativo, o que Hume recusa. Sendo assim, a filosofia humeana recusa que a racionalidade experimental tenha por base a racionalidade demonstrativa. Isso
significa, portanto, que todo o juízo que transcende a
mera percepção e a relação dos conteúdos do pensamento, portanto, tudo o que em Hume envolve o juízo
sintético, não tem por base a própria racionalidade.
A filosofia humeana não se restringe a apontar
que não é a razão o fundamento da causa e efeito.
Reconhecendo que, de fato, realizamos inferências
causais e que todo nosso juízo experimental parte
desse ato, Hume, tendo evidenciado que ele não trata
de algo fundamentado racionalmente, aponta em que
medida nossa atividade cognitiva de estabelecer relações causais se fundamenta na imaginação e no hábito.
A imaginação na filosofia de Hume é a faculdade pela
qual reproduzimos nossas impressões, sem uma repetição necessária do modo como elas se dão de início. A
faculdade de imaginar destaca-se pela liberdade e é por
essa mesma liberdade que é preciso pressupor princípios pelos quais ela atua, quando se verifica uma regularidade na sua atuação. A causa e efeito é um desses
princípios e isso significa, segundo Hume, que quando
há uma relação causal entre objetos a ideia de ambos
se conecta na mente de tal forma que, pela presença de
um deles a mente nos leva necessariamente e de forma
vivaz à ideia do outro. A inferência causal, o estabelecimento de que haja uma relação de causa e efeito entre
os objetos, não decorre da razão, conforme já foi dito.
Ela decorre de uma atuação do hábito que, na filosofia
humeana, aparece como a faculdade capaz de ser sensível à repetição passada e a partir dela gerar uma expectativa futura, sem um princípio racional que garanta
que o futuro será igual ao passado. O hábito permite
um salto e atua sobre a imaginação de tal forma que
estabelece o vínculo causal entre duas espécies e faz
aquela faculdade os considerar como unidos pela relação de causa e efeito e, pela presença de um, direcionar-se por uma transição necessária ao outro.
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A ideia de necessidade surge de alguma
impressão. Nenhuma impressão transmitida por nossos sentidos é capaz de
gerar tal ideia. Ela deve, portanto, ser
derivada de alguma impressão interna,
ou seja, de uma impressão de reflexão.
A única impressão interna com alguma
relação com aquilo de que estamos tratando é a propensão, produzida pelo
costume, a passar de um objeto à ideia
daquele que o acompanha usualmente.
Essa é, portanto, a essência da necessidade. Em suma, a necessidade é algo
que existe na mente, e não nos objetos. E
jamais poderemos formar a menor ideia
dela se a considerarmos como uma qualidade dos corpos. Ou bem não temos
nenhuma ideia de necessidade, ou então
a necessidade não é senão a determinação do pensamento a passar das causas
aos efeitos e dos efeitos às causas, de
acordo com a experiência de sua união
(HUME, p. 199, 2001).
A crítica humeana à pretensa fundamentação da
relação de causa e efeito na razão humana resulta, portanto, no deslocamento de toda racionalidade experimental do interior da própria razão para o campo de
princípios da natureza humana, segundo os quais se
estabelece uma conexão na mente entre os objetos e
por meio dela realiza-se uma projeção dessa conexão
no mundo objetivo. O hábito atua sobre a imaginação e
são os princípios desta que se ampliam para o mundo.
Sendo assim, uma parte substancial da racionalidade
humana, destaca Hume, não procede da razão. A esta
cabe apenas o fundamento dos raciocínios demonstrativos, os quais, entretanto, não ampliam o conhecimento. A filosofia humeana identifica os raciocínios
demonstrativos como o mecanismo peculiar a partir do
qual a metafísica atua. Porém, destaca que raciocínios
demonstrativos não podem dizer respeito a questões
de fato, havendo uma total divisão entre os assuntos
restritos às relações de ideias e aqueles referentes ao
conhecimento da experiência. Fundamentar a priori
um juízo sintético tal como o que decorre da relação de
causa e efeito, mostra Hume, não é possível, tendo em
vista a distinção entre as ideias de início de existência
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e a de ser causado, bem como de natureza e regularidade.A universalidade da inferência causal, portanto,
não é proveniente da razão demonstrativa, tampouco
da experiência, sendo essa insuficiente para justificar
que o observado no passado possa ser ampliado para o
futuro. O hábito, enquanto faculdade inata,supre essa
insuficiência.
Tirar a razão da base da própria racionalidade
experimental foi uma posição caracterizada por Kant
como ceticismo, ao qual ele pretendeu se contrapor
mostrando como são possíveis os juízos sintéticos a
priori. Mas o ceticismo não é a única perspectiva possível da filosofia de Hume, a qual comporta um viés
claramente naturalista, tendo em vista que remete para
princípios da natureza humana, nem sempre justificáveis pela razão, a constituição de grande parte do
que chamamos de conhecimento. Sejam as colocações
humeanas céticas ou naturalistas, ou ambas, o fato é
que representam o golpe fundamental no racionalismo,
tal como reinterpretado pela filosofia moderna a partir
de Descartes. Esse golpe torna-se ainda mais evidente
quando se tem em vista a filosofia moral de Hume,
especialmente o deslocamento que ela faz na motivação
moral da razão para as paixões. Determinar quais ações
são virtuosas ou viciosas, segundo Hume, não poderia
decorrer de umraciocínio, mas tão-somente significaria que algumas ações e valores nos agradam ou não e
por isso são ou não aprovados:
Para mostrar a falácia de toda
essa filosofia, procurarei provar,
primeiramente, que a razão, sozinha
não pode nunca ser motivo para uma
ação da vontade; e, em segundo lugar,
que nunca poderia se opor à paixão na
direção da vontade. [...]A razão é, e deve
ser, apenas a escrava das paixões, e não
pode aspirar a outra função além de
servir e obedecer a elas. [...] O exercício
da razão, por exemplo, não produz
nenhuma emoção sensível; e, exceto nas
indagações filosóficas mais sublimes,
ou nas frívolas sutilezas escolásticas,
quase nunca transmite prazer ou
desconforto. É por isso que toda ação da
mente que opera com a mesma calma e
tranquilidade é confundida com a razão
HUME: NATURALISMO COMO ANTIRRACIONALISMO? |
por todos aqueles que julgam as coisas
por seu primeiro aspecto e aparência
(HUME, p. 449-453, 2001).
Hume, no Tratado, argumenta ser a razão incapaz de gerar uma volição e qualifica as escolhas morais
como provenientes das paixões. A aprovação ou desaprovação que conferimos aos objetos e ações seriam
decorrentes de um contentamento ou mal-estar em
relação ao objeto ou ação considerada. A virtude causa
prazer e o vício causa dor. Não apenas a virtude do
outro nos gera um prazer, mas a nossa própria virtude
nos causa orgulho. Hume observa que grande parte da
filosofia moral entende que a razão regula nossa conduta. Entretanto, considera que a razão apenas influencia na nossa conduta mostrando que o objeto vai nos
gerar dor ou prazer, sendo estas as paixões que, em
realidade, determinam a base da aprovação de uma
conduta. Aprovar ou desaprovar uma ação ou caráter
é tão-somente uma percepção da mente e como percepção original não pode ser gerada por um raciocínio.
A moralidade se impõe sobre as paixões e, segundo o
Tratado, isso significa que não é um raciocínio.
Hume nesse tocante retoma toda uma tradição de
autores que se opuseram ao racionalismo no campo
da moral. Autores como Hutcheson e Shaftesbury são
essenciais na tradição que fundamenta a moralidade
no sentimento. Shaftesbury procura mostrar a compatibilidade entre interesse público e privado, afirmando
haver incompatibilidade entre interesse particular e
público apenas quando os graus das primeiras afecções são demasiado elevados e os das segundas, ao
contrário, muito fracos. Um estado “sadio e robusto”
dos afetos moderaria os graus das afecções. Tal estado
seria garantido por um pressuposto específico da filosofia de Shaftesbury, que é a sua teleologia, pela qual se
considera que o bem individual tende ao bem do todo.
Haveria por parte do indivíduo uma busca pela virtude
e, portando, a regulação das auto-afecções particulares,
tendo em vista essa tendência para o bem do todo. Tais
princípios são em grande medida recepcionados por
Hutcheson, que afirma que a bondade moral implica
numa aprovação das ações dos outros sem qualquer
relação com o nosso interesse, com o desejo de posse.
A aprovação ou desaprovação das ações alheias seria
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decorrente de um sentimento, o qual não pressuporia
ideias inatas ou conhecimentos e proposições práticas, ou seja, não seria objeto da razão. O sentido moral
seria uma determinação de nossa mente de receber as
simples ideias de aprovação ou condenação das ações
observadas. O prazer decorrente da aprovação implica
na posição do juízo moral enquanto constituído na
perspectiva da observação do ato, de forma que à naturalidade da aprovação se junta a relação entre indivíduo
e todo. Como Shaftesbury, Hutcheson não considera
haver uma oposição necessária entre interesse individual e interesse público, sendo o grau empregado nessas afecções o elemento que as compatibiliza ou não.
Quando há vício, quando a ação viola a relação com o
outro, é porque o auto-interesse se impôs de forma a
tornar incompatível a felicidade individual e a coletiva.
A aprovação ou desaprovação das ações não envolveria, segundo Hutcheson, a vontade, tampouco poderia
ser decorrente do costume ou da educação. Seria um
favor de Deus, pelo qual enquanto favorecemos nosso
próprio bem, favorecemos também o bem de outros.
Haveria uma inclinação para o bem público, um desejo,
um sentimento.
Hume não exclui totalmente a razão do juízo
moral. Contudo, confere a esta um espaço bem mais
determinado, consistente na avaliação da coerência
de determinado objeto com as paixões consideradas a
partir do ponto de vista da utilidade. Assim, em suas
palavras, a razão pode direcionar a paixão. Entretanto,
é o desejo, o prazer, que estimula a virtude. Esta gera
prazer tendo em vista a sua utilidade, em razão da
necessidade de apoio mútuo na espécie humana e da
preservação da expectativa dessa utilidade mediante o
hábito e a crença1. Com o aumento da complexidade
das relações sociais, porém, a correlação entre sociabilidade, utilidade e prazer não se torna mais tão evidente.
A utilidade da preservação da virtude, o correto estabelecimento do vínculo entre um objeto ou ação imediatos e a sociabilidade, pulverizam-se. É nesse contexto
que Hume acrescenta nessa dinâmica o princípio de
simpatia que reaviva no interesse público o interesse
pessoal. Se o interesse da manutenção da sociabilidade
não está tão claro em comunidades complexas, passa a
atuar a identificação entre a paixão daquele que se espe-
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| Andrea Cachel
raqueseja respeitadoe a do sujeito observador. Sendo
assim, nem mesmo na perda da força e vivacidade da
utilidade a razão passa a ser um substituto capaz de
gerar a paixão e a ação correspondente. O fundamento
da justiça não consiste em nenhum raciocínio, mas sim
na série de bases que passa pelo interesse, pelo prazer,
pelo hábito e pelo princípio de simpatia.
Talvez não se possa afirmar algo como um antirracionalismo na filosofia humeana. Essa filosofia não
resulta numa rejeição da razão, em termos que poderíamos encontrar em Rousseau, por exemplo. Segundo
Rousseau, especialmente no Ensaio sobre a Origem da
Desigualdade entre os Homens,entre o homem e o animal a grande diferença se dá pela liberdade humana,
que estabelece suas ações como atos de sua vontade e
não do seu instinto. Contudo, ressalta que ninguém é
bom ou mal no estado natural e que a racionalidade já
representa a entrada do homem no seu estado social,
sendo este no estado natural regido pelo instinto e pelo
sentimento. Conforme observa, a piedade é um sentimento natural e é ela que nos leva a respeitar os outros,
ainda que limitadamente, sem a geração da moralidade
propriamente dita. É a necessidade de utilizar termos
e ideias gerais, argumenta Rousseau, que teria feito a
razão se desenvolver e a partir disso haver uma comparação entre os homens. A razão traria o amor próprio
e com ele a necessidade de se destacar em relação aos
outros, o que implica desigualdade, fundada na propriedade, a qual, por sua vez, é possibilitada pela astúcia
gerada pela linguagem e pela racionalidade. Nesse sentido, é evidente em Rousseau a crítica à razão de modo
geral e sobretudo o apontamento de sua inutilidade no
estado natural, para a preservação da igualdade e do
respeito ao outro, bem como os efeitos que a mesma
possui quanto à introdução da desigualdade entre
os homens. Hume, diferentemente, não aponta uma
oposição entre racionalidade e virtude, porém deixa
patente que aquilo que nos faz instaurar a perspectiva
do interesse geral não é a racionalidade, mas sim a paixão, o interesse e a simpatia. Além disso, Hume é um
autor decisivo do ponto de vista de um deslocamento
de uma série de atribuições conferidas pela filosofia
à razão humana para outros princípios, tais como o
hábito e a imaginação.
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Fundamentar a origem de toda a racionalidade
experimental fora da própria razão e afirmar que fazemos distinções morais a partir das paixões e do princípio de simpatia sem dúvida é retirar da razão grande
parte do que a filosofia a ela atribuíra até então. A
filosofia humeana é uma das precursoras do que hoje
mais claramente é qualificado como naturalismo. É
a princípios da natureza humana, muitos dos quais
compartilhados com os animais, que partem a crença
nos conceitos centrais da ciência e da justiça. Tais
princípios não são justificados, tampouco podem ser
analisados em termos de classificação quanto à sua
verdade ou falsidade, mas constituem nossas crenças
epistêmicas e nossa moralidade. Nossa razão, conclusão
a que nos encaminha a filosofia de Hume, tem limites
bem mais estreitos do que supusera grande parte da
história da filosofia.
NOTAS
1 “Ligado a esta tendência geral para o prazer, que sob a forma geral
do desejo determina toda ação humana, com exclusão de uma motivação pela razão, está um dos elementos referidos no ensaio, e também
explicitados pelo Tratado, como geradores da sociabilidade – a necessidade. Comparando a humanidade com as outras espécies, constata-se ser nela que se verifica maior desproporção entre as necessidades
e as capacidades. [...] E a sociedade tem também como consequência
uma maior segurança: a cooperação permite que, onde um eventualmente falhe, seu companheiro possa ter sucesso, encontrando-se
portanto cada indivíduo menos sujeito aos acidentes motivados pelo
acaso do que se estivesse numa situação de isolamento. Mas a ordem
humana não rompe a ordem natural: pelo contrário, prolonga-a. A
sociedade é uma invenção humana, mas as condições de possibilidade
dessa invenção (e portanto o caráter profundo desta) são, para a teoria
de Hume, tão naturais como os traços que definem as outras espécies animais.Estas condições, apesar de sua complexidade, são todas,
em última instância, redutíveis a um único fator: o hábito. E, para
a teoria humeana, este é um princípio da natureza – não apenas da
natureza humana, mas da natureza em geral. O hábito, o “grande guia
da vida humana”, é o princípio que permite visar o futuro, esperando
encontrar neste eventos semelhantes aos do passado. Mas esse “esperar” é definido na teoria pelo conceito, crucial, de crença (belief).
Nas ciências exatas, as conclusões são resultado de raciocínios. No
domínio dos fenômenos, as conclusões implicam raciocínio, mas não
são resultados deste: são resultado de certas operações verificadas no
espírito, operações que são da ordem do instinto, isto é, num sentido
forte, da ordem da própria natureza em geral, e têm, em relação a
qualquer raciocínio, a mais completa autonomia” (MONTEIRO, p.
41-43,1975).
HUME: NATURALISMO COMO ANTIRRACIONALISMO? |
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O AUTOR
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Andrea Cachel possui Graduação em Direito pela Universidade
Federal do Paraná (2000), Graduação em Filosofia pela
Universidade Federal do Paraná (2002), Mestrado em Filosofia
pela Universidade Federal do Paraná (2005) e Doutorado em
Filosofia pela Universidade de São Paulo (2010). Atualmente
é professora adjunta da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em História
da Filosofia Moderna, especialmente do século XVIII, atuando
principalmente nos seguintes temas: conhecimento e estética.
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