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Revisão: Autores e autoras
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(eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)
C968
Cultura, Arte e Sociedade: múltiplas perspectivas no Brasil [livro eletrônico] / Organizador
Gustavo Silva de Moura. 1.ed. -- Tutóia: Lupa, 2024.
148 p.
Formato: PDF
Requisitos de sistema: Adobe Acrobat Reader
Modo de acesso: World Wide Web
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-982553-0-5
1. Expressões artísticas. 2. Cultura . 3. Sociedade. I. Título. II. Moura, Gustavo Silva de.
CDD 306.489
Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422
Editora Lupa
www.editoralupa.com.br
[email protected]
Sumário
Apresentação .....................................................................................5
CAPÍTULO 1
Tesouros vivos da cultura cearense e suas narrativas .....................12
Márcio de Araújo Pontes
CAPÍTULO 2
“Sob o signo da paixão”: desconstruindo Ana C. ..........................36
Bárbara Pinheiro Baptista
CAPÍTULO 3
Dos festivais de cinema ao Festival Curta (C)errado: diálogos e
provocações do cenário audiovisual contemporâneo ....................53
Carla Miucci Ferraresi de Barros
Danton Oliveira Normandia
CAPÍTULO 4
Metamorfoses, êxitos e controvérsias do Fora do Eixo nos primeiros
anos (2005-2013) ............................................................................71
Thiago Meneses Alves
CAPÍTULO 5
Arte, ciência e trópico em Gilberto Freyre (1962) ........................95
Messias Araujo Cardozo
Diego Stéfano Araujo Souza
CAPÍTULO 6
“Você tem que ir à luta”: música, indústria fonográfica e
sociedadebrasileira na entrevista de Ivan Lins para o Jornal
Inovação (1978) ........................................................................ 110
Gustavo Silva de Moura
Sobre o organizador ......................................................................142
Sobre os autores e autoras .............................................................143
Apresentação
A indagação sobre o que é arte é uma questão complexa e intrincada que tem desafiado filósofos, historiadores, cientistas sociais, artistas, intelectuais, pensadores e pesquisadores ao longo dos séculos. A
arte transcende definições precisas, pois sua essência reside na subjetividade e na diversidade de experiências humanas. Tentar encapsular a
arte em uma única definição seria limitar sua riqueza e variedade.
Em sua essência mais fundamental, a arte pode ser vista como
uma forma de expressão humana que tem em vista comunicar emoções, ideias, experiências e perspectivas de maneiras diversas. A arte,
muitas vezes, desafia as fronteiras convencionais, convidando-nos a
explorar o desconhecido e a questionar o familiar.
Nesse sentido, a arte é frequentemente um reflexo da sociedade
em que é criada. Pode ser uma crítica social, um meio de resistência
ou uma celebração da beleza e da diversidade. A interpretação da arte
é tão variada quanto os espectadores que a contemplam, cada um trazendo suas próprias experiências, perspectivas e bagagens culturais
para a apreciação da obra que nasce do sentimento do artista.
Arte é também um processo criativo, nascido da necessidade
humana de expressar-se, de explorar o mundo ao redor e de buscar
significado em seu meio. Os artistas moldam materiais e conceitos,
transformando-os em algo que transcende o mundano e desafia a imaginação.
Tentar definir conclusivamente o que é arte pode ser uma tarefa
esquiva. Talvez a beleza da arte resida justamente na sua capacidade
de permanecer fluida e em constante evolução, desafiando-nos a explorar, questionar e apreciar a multiplicidade de expressões que ela
oferece. A resposta à pergunta “O que é arte?” pode residir, afinal,
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na experiência única e pessoal de cada indivíduo diante de uma obra,
tornando-se uma busca contínua e enriquecedora.
Ao explorar as formas artísticas, deparamo-nos com um vasto
universo de expressões que enriquecem o panorama da criação humana. Cada forma artística carrega consigo uma linguagem única, transmitindo mensagens de maneiras distintas e apelando para diversos
sentidos e emoções. Pode manifestar-se por meio de pinturas, esculturas, música, dança, literatura, cinema, arte digital e uma infinidade
de outras formas.
Em cada uma dessas formas artísticas, a singularidade reside na
capacidade de transmitir emoções, provocar reflexões e conectar-se à
essência humana. Ao apreciar a diversidade dessas expressões, somos
convidados a mergulhar em um universo de criatividade que enriquece a compreensão da complexa tapeçaria que é a arte.
Voltando os olhares para o contexto brasileiro, pode-se identificar a arte como um testemunho fascinante da rica diversidade cultural
e histórica que permeia o país. Ela é um espelho da complexidade das
influências que moldaram a identidade artística do Brasil ao longo dos
séculos. Desde as expressões artísticas dos povos tradicionais, profundamente conectadas à natureza e à espiritualidade, até contribuições
marcantes da cultura afro-brasileira, influências dos processos imigratórios e migratórios, instituições conectadas às culturas e uma diversidade de personagens. A arte brasileira é um amálgama de tradições e
visões de mundo.
A arte brasileira, portanto, é um diálogo contínuo entre tradição
e inovação, entre as raízes culturais profundas e as influências contemporâneas. É uma expressão dinâmica que reflete as lutas, conquistas
que caracterizam a experiência brasileira, contribuindo de maneira
significativa para o cenário artístico global.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
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Desse modo, a necessidade de ampliação desse debate relacionado à arte brasileira deve ser colocada em voga constantemente, visando
ampliá-lo e aperfeiçoá-lo de forma que espaços e ideias sejam criados
para sua divulgação e análise. Considerando esses cenários e experiências, é que surge a proposta da obra “Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas Perspectivas no Brasil”.
A dialética entre artista e sociedade é o ponto central da proposta
desta obra que lhes apresento. Esta objetiva buscar desvelar os complexos fios que conectam a produção artística às diferentes manifestações
culturais no Brasil. Assim, reconhece-se a cultura como um processo
dinâmico, e essa compreensão é essencial para a análise profunda das
diversas formas de expressão artística presentes em nosso contexto.
Ao consolidar-se a proposta de um livro que tivesse como título e
palavras-chave “Cultura, Arte e Sociedade”, almejou-se e alcançou-se
a reunião de contribuições diversas que permitam uma compreensão
mais completa da produção artística brasileira. Este livro é, portanto,
um convite à reflexão crítica e ao diálogo acadêmico, sendo o mais um
passo para entendimentos mais profundos das interações entre cultura, arte e sociedade em nosso país, o multifacetado, Brasil.
Outro mérito da obra recai sobre a integração de diferentes perspectivas teóricas e conceituais. Ao considerar a multiplicidade deformas e expressões que a arte brasileira pode encarnar, explora-se, por
diferentes prismas, a singularidade de cada forma artística e as interações entre elas.
A pluralidade de questões levantadas reflete a complexidade do
cenário cultural brasileiro, permeado por nuances políticas, econômicas e sociais. Ao buscar uma compreensão abrangente dessas dimensões, cada texto convida aqueles que os leem a participarem ativamente desse diálogo, enriquecendo nossa compreensão coletiva.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
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Imerso na concepção de diversidade da arte e nas múltiplas abordagens contempladas pelas Ciências Humanas e Sociais, a obra que
apresento está estruturada em seis capítulos que oferecem perspectivas variadas sobre o cenário do artístico brasileiro, explorando seus
espaços, formas e contextos dentro da sociedade e cultura nacional.
Na busca pela compreensão das narrativas, tempos e memórias, o
historiador Márcio de Araújo Pontes aborda no texto “Tesouros vivos
da cultura cearense e suas narrativas” os mestres e mestras da cultura
tradicional popular cearense. Esses indivíduos, devidamente nomeados e diplomados, assumem um papel fundamental como guardiões
e transmissores do Tesouro Vivo da Cultura Cearense. A investigação
se propõe a analisar as práticas culturais e as nuances das permanências, repetições, inovações e negociações que permeiam a construção
de conceitos por esses sujeitos. Ao mergulhar nesse universo, desvela-se camadas profundas da identidade cultural cearense, abordando a
riqueza dessas tradições vivas.
Nesse contexto, a valorização dos mestres e mestras da cultura
tradicional popular preserva o patrimônio imaterial e enriquece a
compreensão da dinâmica cultural do Ceará. Ao reconhecer e estudar
as práticas desses representantes do Tesouro Vivo da Cultura Cearense, pode-se apreciar a riqueza das manifestações culturais e compreender as interações entre tradição e contemporaneidade que moldam a
identidade cultural dessa região.
A historiadora Bárbara Pinheiro Baptista, no texto ‘”Sob o signo
da paixão”: Desconstruindo Ana C.”, empreende esforços em uma
análise biográfica detalhada da trajetória de Ana Cristina Cesar, considerando o contexto político e social que permeava a vida da escritora e
mostrando as relações entre História, Literatura e Biografia. O estudo
é um convite a conhecer, de maneira panorâmica, suas redes de sociabilidades e sua associação à vanguarda cultural da época. Ao examinar
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os elementos apresentados, observa-se que, embora existam particularidades distintas na escrita de Ana C., ela compartilha sensibilidades
comuns à sua geração, destacando-se tematizações do cotidiano e expressão de descontentamento característicos da juventude em relação
à repressão política vigente. Contudo, é evidente que sua produção
poética possui uma especificidade marcante.
A poesia de Ana C. e dos poetas marginais da época caracterizava-se por um mergulho reflexivo. Assim, a mentalidade da poesia
marginal refletia-se na inclusão de temáticas questionadoras. Os escritos de Ana Cristina e sua biografia contribuíram para a construção
de uma narrativa poética que transcendia os limites convencionais e
desafiava as normas sociais da época.
A historiadora Carla Miucci Ferraresi de Barros e o historiador
Danton Oliveira Normandia apresentam no capítulo “Dos festivais
de cinema ao Festival Curta (C)errado: diálogos e provocações do
cenário audiovisual contemporâneo”, uma análise das construções e
trajetórias históricas dos festivais de cinema, explorando os diálogos e
provocações que esses eventos instigam. Além disso, reflexões sobre as
produções audiovisuais influenciadas por esses festivais em diferentes
contextos ao longo dos últimos anos também entram em foco.
O enfoque específico dado ao Festival Curta (C)errado serve
como exemplo ilustrativo das transformações e adaptações em curso
no cenário do audiovisual brasileiro durante os últimos anos da presente década. A escolha desse festival como objeto mostra a possibilidade de compreensão das nuances e mudanças que impactam os eventos culturais, a produção e recepção do cinema contemporâneo e seu
papel de agente catalisador de transformações na arte brasileira e por
via da expressão cinematográfica.
O capítulo “Metamorfoses, Êxitos e Controvérsias do Fora do
Eixo nos primeiros anos (2005–2013)”, de autoria do sociólogo e co-
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municólogo Thiago Meneses Alves, investiga o movimento Fora do
Eixo em um período marcado pela sua iniciativa focalizada no fortalecimento da música independente brasileira e transformação em uma
plataforma de mobilização política em rede. Ao longo dessa trajetória,
são examinadas tanto as principais ações bem-sucedidas quanto as problemáticas enfrentadas, utilizando como referência analítica o contexto econômico, social, político e tecnológico, onde o papel das tecnologias digitais de informação e comunicação é destacado como central.
O estudo tem em vista destacar os êxitos e desafios enfrentados
pelo Fora do Eixo, não deixando de fora uma compreensão de suas
escolhas estratégicas e como se entrelaçaram com as transformações
sociotecnológicas. Ao considerar os impactos dessas ações no cenário
político e cultural brasileiro, o capítulo oferece uma análise das dinâmicas que moldaram a trajetória do movimento, ressaltando seu papel
multifacetado no contexto contemporâneo.
O capítulo de autoria do historiador Messias Araujo Cardozo e
do psicólogo e historiador Diego Stéfano Araujo Souza, intitulado
“Arte, ciência e trópico em Gilberto Freyre (1962)” destaca a importância de explorar a relação entre arte, ciência e trópico por meio da
obra de Gilberto Freyre, objetivando abordar entendimentos teóricos
em uma produção intelectual. Freyre, um renomado pensador pernambucano, deixou uma produção multifacetada que desafia leitores
e estudiosos do pensamento social do Brasil.
Embora diversos temas tenham sido abordados por Freyre, a
questão das artes emerge como um aspecto relativamente pouco estudado pelos pesquisadores dedicados à compreensão de sua obra e
é nesse vácuo que o presente texto se insere. A abordagem de Freyre,
permeada por ambiguidades e nuances, oferece uma perspectiva única
que pode enriquecer a compreensão da interação entre arte, ciência e
o contexto social, político e cultural brasileiro.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
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Finalizando o livro, apresento pelo olhar das relações entre História, Música e Imprensa o capítulo ““Você tem que ir à luta”: música,
indústria fonográfica e sociedade brasileira na entrevista de Ivan Lins
para o Jornal Inovação (1978)”. No texto, propõe-se, a partir da entrevista conduzida com Ivan Lins no final de 1978 pelo Jornal Inovação,
examinar as dinâmicas da música e da indústria fonográfica brasileira
durante a década de 1970. Esse escopo permite uma análise das interações entre arte e jornalismo nesse período específico, oferecendo uma
perspectiva sobre o pensamento de Ivan Lins e dos participantes da
entrevista, veiculados nas páginas do periódico piauiense.
Nesse sentido, as análises visam lançar luz sobre a relação entre o
artista, a sociedade e a cultura por meio da imprensa, explorar o papel
dos veículos de comunicação na construção e disseminação de ideias
culturais e sociais no contexto em que governos militares comandavam o país.
A pluralidade de questões exploradas no decorrer de todos os
capítulos destaca as dimensões culturais, políticas, econômicas e sociais presentes na arte. Assim, as abordagens que compõem o livro
transcendem fronteiras isoladas, unindo análises de diferentes áreas
do conhecimento para oferecer uma visão abrangente sobre o uso das
obras de arte, trajetórias artísticas, trabalho artístico e cenários culturais no Brasil.
Gustavo Silva de Moura
(Organizador)
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
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CApítulo 1
Tesouros vivos da cultura cearense e
suas narrativas
Márcio de Araújo Pontes
O reconhecimento
Investigamos narrativas, tempos e memórias, tomando como referência os mestres e mestras da cultura tradicional1 popular cearense,
assim nomeados e diplomados, para perceber permanências, repetições, inovações e negociações relacionadas a construção de conceitos
praticados por esses sujeitos que representam o Tesouro Vivo da Cultura Cearense.
A partir de agosto de 2003, por meio de lei específica, a administração pública, através da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará,
passou a registrar em livro próprio, sob a nomenclatura de Mestre da
Cultura Tradicional Popular Cearense, sujeitos selecionados por edital, que praticavam os mais variados ofícios ligados aos fazeres culturais, como representantes do patrimônio imaterial2 do Estado.
1 Se relaciona à tradição. Consideramos tradicional a transmissão oral de costumes,
comportamentos, hábitos, crenças, memórias e outras heranças que foram adquiridas e mantidas
ao longo dos anos, como parte de um conjunto de fazeres passados de geração a geração e que
tem um caráter repetitivo, porém, não estático. A tradição é dinâmica e atenta as necessidades do
tempo presente.
2 O artigo 2° da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (Unesco, 2003)
entende por patrimônio cultural imaterial: práticas, representações, expressões, conhecimentos
e técnicas – junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são
associados – que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como
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Com a reformulação da lei, em 2006, os mestres e mestras diplomados passaram a ser considerados Tesouros Vivos da Cultura Cearense, sendo esta uma nova nomenclatura sob a qual passaram a se
enquadram.
Para concorrer ao título, os inscritos e inscritas devem residir no
Estado do Ceará a mais de vinte anos, terem comprovada participação em atividades culturais nesse mesmo período e estarem aptos a
transmitir seus conhecimentos ou técnicas a aprendizes. Estes, entre
outros critérios, fazem parte dos requisitos para concorrer a titulação
de mestre ou mestra da cultura cearense.
Quem se candidata e consegue aprovação garante registro no livro dos mestres da cultura tradicional popular, tem direito a um diploma e um auxílio vitalício pago mensalmente pelo Estado, no valor
de um salário mínimo. Em contrapartida, deve transmitir seus conhecimentos e discutir suas práticas com seus alunos e aprendizes através
de programas e projetos de ensino e aprendizagem propostos pela secretaria da cultura.
Para participar de ações educacionais, os tesouros vivos receberam, a partir de 2016, o Título de Notório Saber em Cultura Popular outorgado pela Uece, que permite lecionar em escolas de ensino
fundamental, médio e superior, dando aulas espetáculos, realizando
oficinas, cursos ou mesmo disciplinas.
Conduziremos a narrativa tentando compreender o que é ser
mestre e mestra da cultura cearense, a partir da fala dos próprios sujeitos e em meio a todo o contexto que comprime e expande essa comparte integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite
de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de
seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de
identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural
e à criatividade humana.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
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preensão, pluralizando e sinalizando conceitos diversos, capazes de
levar a um mergulho nas tradições orais e suas implicações na vida das
pessoas que delas experimentam.
O conceito de mestre ou mestra
Mestre Piauí3 relatou o orgulho que sentiu em ser reconhecido:
“Depois que recebi esse diploma, a gente é mais visto, tem mais ‘aquele poder’. Muita gente crê no que a gente diz. [...] Depois do diploma,
em todo canto que a gente passa o povo fala com a gente, tem a novidade dos grupos que a gente faz parte.”(Freitas; Furtado, 2017, p. 52)
Melhorou a autoestima, e como relatou em outro momento,
adora entrevistas e se considera representante vivo da cultura popular,
sentindo-se responsável pela continuidade da manifestação que pratica.
O mestre Getúlio Colares4, foi um colecionador de títulos, como
destacou:
Recebi o diploma de operário-padrão da cidade de Canindé. Fui homenageado duas vezes: 1979 e 1980. Passei a ser Patrimônio Histórico
da Basílica de São Francisco e, hoje, sou Mestre da Cultura Popular do
povo do Ceará e do Brasil todinho através da visita de romeiros. Os romeiros ficam apaixonados pelo meu trabalho, adorando a São Francisco
e o sineiro. [...] Eu sou o mestre da cultura da função religiosa... os afetos
religiosos. Eu me sinto muito feliz porque sou o mestre da cultura da
igreja, né?! É uma função religiosa. Eu recebi esse diploma de Mestre
3 Antônio Batista da Silva – Mestre em Boi de Reisado, diplomado em 16 de maio de 2005,
residiu em Quixeramobim – Região do Sertão Cent Tesouros vivos da cultura cearense e suas
narrativas ral, nascido em 15 de setembro de 1939 e falecido em 18 de março de 2019.
4 Getúlio Colares Pereira – Mestre Sineiro, diplomado em 24 de setembro de 2007, residiu em
Canindé – Região do Sertão de Canindé, nascido em 23 de março de 1929 e falecido em 18 de
março de 2021.
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foi das mãos do ex-Governador Cid Gomes. E o Governador Camilo
convidou todos os mestres da cultura para assistir a posse dele. Todos
os mestres se reuniram e foram assistir (Freitas;Furtado, 2017, p. 186).
O mestre dedicou 77 anos da sua vida à profissão de sineiro da Basílica de São Francisco das Chagas, em Canindé. Faleceu aos 91 anos
como vítima da Covid-19, que contraiu pela segunda vez. De uma
simpatia sem tamanho, fez questão de deixar o recado: “E não tem
outra pessoa sineiro no mundo, reconhecido. Só existe eu! Abaixo de
Deus e de São Francisco, só existe eu!” (Freitas; Furtado, 2017, p. 186)
Para além da titulação e dos valores financeiros que recebem, percebemos a satisfação dos mestres e mestras com o reconhecimento de
familiares e da comunidade na qual estão inseridos. Esse sentimento se
reflete nas suas narrativas e estimula cada um deles a dar continuidade
as práticas transmitidas por meio da tradição oral.
Outras narrativas reforçam a ideia de que o mestre é um ser único que se destaca por ser diferente, como foi o caso da mestra Dina5,
que desafiou os espaços praticados por homens, em um ambiente extremamente machista e se destacou, inspirando as práticas de outras
mulheres vaqueiras.
Apesar do preconceito, seguiu firme em suas práticas. Quando
era criticada e os vaqueiros diziam que lugar de mulher era em casa,
cuidando dos afazeres domésticos e dos filhos, de imediato respondia:
“lugar de mulher é onde ela se sente bem. Eu me sinto bem aqui e
não vou sair daqui.” (Cunha, 2017, p. 78) A mestra seguiu quebrando
barreiras e se posicionando como vaqueira e aboiadora6.
5 Dina Maria Martins Lima – Mestra Vaqueira e Aboiadora, diplomada em 16 de maio de 2005,
reside em Canindé – Região do Sertão de Canindé, nascida em 21 de agosto de 1954.
6 Aquela que aboia e conduz o gado pelas pastagens com um canto grave e sem palavras, típico
da Região Nordeste do Brasil.
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O apoio recebido por familiares e amigos, ajudou a mestra a superar dificuldades e adentrar ao universo do vaqueiro como mulher. Ela
destacou suas percepções:
Ser Mestra é eu fazer o meu trabalho com o amor, com o carinho que
eu tenho pelos nossos vaqueiros, pelas fazendas, pelos animais. É estar
ao lado dos nossos companheiros vaqueiros, participando das aberturas das vaquejadas, quando me chamam, e da Missa de vaqueiros. É
mostrar o meu trabalho para as crianças nas escolas para repassar a cultura para aquelas crianças que não sabem o que é a cultura do vaqueiro.
Aqui em Canindé, tem a Casa do Conto, que eu presto serviço voluntário. E através dela eu vou falar nas escolas. Cada vez mais, está sendo
difícil ensinar a cultura, sobre a vida do campo. Tem muitas crianças
que não conhecem, tá cada vez mais se distanciando. Então, na escola,
eu conto como foi a minha vida no campo. Repasso o que eu sei, como
Mestra. O aboio, através do aboio. A luta a fazer com os animais, com
a natureza, e ainda tem o verso. Através de verso, eu repasso o que eu
vivi na fazenda, e as crianças gostam muito quando eu canto assim: Eu
só quero bem a gado / porque gado me quer bem / quando eu chamo o
gado urra / quando eu grito o gado vem. Eu não troco o amor de gado
/ pelo amor de ninguém / Ôhôhoooo (Freitas;Furtado, 2017, p. 101).
Essas múltiplas narrativas fazem parte da história dos mestres e
mestras da cultura, que contam suas histórias de maneira diferenciada, inclusive quebrando regras que se relacionam a organização social
de seu tempo, como foi o caso da mestra Dina, que se apropriou de
um ofício praticado e dominado pelos homens
Mestra Margarida Guerreira7 montou um grupo Guerreiro8 de
mulheres, valorizando o papel feminino em suas práticas e reforçando
o argumento de que o mestre e a mestra são anteriores as titulações e
7 Maria Margarida da Conceição – Mestra em Guerreiro, diplomada em 4 de maio de 2004,
reside em Juazeiro do Norte – Região do Cariri, nascida em 21 de junho de 1935.
8 Guerreiro – Folguedo natalino, resultante da junção entre Reisado, Chegança e Pastoril, que
recebeu o título de patrimônio imaterial do estado Alagoas.
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têm a capacidade de criar e recriar seus fazeres. Para ela, “ser mestre
é quem sabe, é quem o povo gosta. Ser mestre é o pessoal gostar e
achar bonita as peças. E hoje o povo é quem diz: a Mestra Margarida!
Botaram esse nome e eu aceitei como Mestra. E ainda depois recebi o
diploma de mestra do Crato.” (Freitas; Furtado, 2017, p. 370).
Esse discurso se fez presente na narrativa de outros tesouros vivos, que antes da titulação outorgada pelo governo estadual, eram
reconhecidos como mestres e mestras em suas comunidades. Esses
sujeitos já haviam conquistado o respeitado dos membros de seu grupo e se destacavam por sua inventividade e capacidade de se colocar
como referência, ocupando um papel de destaque independente do
reconhecimento de suas práticas culturais como patrimônio imaterial.
O mestre de Banda Cabaçal9, Expedito Caboco10, registrou: “eu
sou o Mestre Expedito, ninguém queira duvidar, tenho 64 anos de
cultura popular, sou do Juazeiro do Norte, de padre Cícero Romão
e fui classificado pelo Governo do Estado, um mestre de tradição.”
(Cunha, 2017, p. 201).
Apresentou-se em verso, evidenciando a cidade que reside e o título outorgado pelo poder público estadual, dando uma mostra de
criatividade e destacando a rima dos versos de improviso que são trabalhados também por outros tesouros vivos da cultura cearense.
Para mestre Gil Chagas11, escultor e luthier12 de rabecas, “O mestre da cultura é uma autoridade do Estado. O mestre da cultura além
9 Banda composta por um par de pífaros, zabumba, caixa e pratos.
10 Expedito Antônio do Nascimento – Mestre em Banda Cabaçal, diplomado em 26 de fevereiro
de 2019, reside em Juazeiro do Norte – Região do Cariri, nascido em 24 de novembro de 1949.
11 Francisco Gildamir de Sousa Chagas – Mestre Escultor e Luthier, diplomado em 26 de
fevereiro de 2019, reside em Aurora – Região do Cariri, nascido em 18 de março de 1958.
12 Profissional que faz ou repara instrumentos que são de cordas e tem caixa de ressonância,
sendo a rabeca um instrumento de arco semelhante ao violino, porém, com uma construção mais
rústica.
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de ser uma autoridade na cidade, ele é um patrimônio cultural na cidade e no Estado. Um patrimônio cultural tem que ser respeitado.”
(Cunha, 2017, p. 221).
Após seu reconhecimento institucional, teve um aumento na
comercialização de rabecas e atribuiu ao título que recebeu, pois é
comum as pessoas quererem adquirir peças confeccionadas artesanalmente pelos mestres e mestras da cultura cearense que se tornaram
referência em seu ofício.
Mestre Rainha Almeida13, sintetizou: “Quando você passa a ser
mestre você é de todo mundo. [...] Eu fui diplomado como o personagem rainha do Maracatu Cearense e a partir de então, eu pertenço a
todos os Maracatus.” (Cunha, 2017, p. 287).
Esse sentimento de representatividade coloca o mestre como
principal guardião do conjunto de práticas que referenciam o maracatu cearense, destacando que ele tem consciência do seu papel e da
importância de suas práticas.
O Mestre mateiro, Zé Carneiro14, reforçou a narrativa de mestre
Rainha Almeida, quando relatou: “A função do mestre da cultura é
divulgar nossa cultura, é divulgar o Ceará para o Brasil e pro mundo.
Eu não sou só mestre do Pacoti, sou mestre do Ceará todo.” (Cunha,
2017, p. 306).
Mais uma narrativa que evidencia a ideia de representatividade,
que dimensiona o alcance das práticas dos mestres e mestras dentro de
um espaço que evidencia seu modo de fazer e torna seu ofício conhecido e valorizado.
13 José Maria de Paula Almeida – Mestre em Maracatu, diplomado em 15 de maio de
2018, reside em Maracanaú – Região Metropolitana de Fortaleza, nascido em 8 de
novembro de 1953.
14 José Alves Carneiro – Mestre Mateiro, diplomado em 15 de maio de 2018, reside em Pacoti –
Região do Maciço de Baturité, nascido em 1 de novembro de 1963
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
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O mestre mateiro esclareceu o que faz em seu ofício: “mateiro
é aquele que tem uma sensibilidade com a natureza. A função dele
é trabalhar pela natureza e auxiliar o ser humano da cidade grande
para ele poder sentir a natureza e aprender a contemplar ela.” (Cunha,
2017, p. 302).
Zé Carneiro evidenciou o respeito pela natureza e o auxílio que
presta as pessoas da zona urbana, sendo que o passeio pelas matas
pode ser perigoso, exigindo preparo. Daí a importância do trabalho
que ele exerce, destacando que através dele o ofício de mateiro passou
a ser conhecido e muitas pessoas o procuram para liderar passeios e
acompanhar estudos e incursões pelas matas. O mestre apontou que:
A minha universidade não foi acadêmica, foi mato. Os meus livros é
a natureza, eu leio a natureza. Não sou muito de tá lendo livro, mas
eu acompanho a natureza, vejo a natureza como grande aprendizado. É
uma universidade que leva para o resto da vida. Aqui não tem um diploma, não tem uma chancela, mas você vai aprendendo no dia a dia. Cada
dia é uma coisa diferente, é como você tá na universidade, todo dia você
tem uma experiência nova, você tem vários experimentos. [...] Quando
você chega na natureza, sempre tem uma coisa diferente, sempre você é
surpreendido. Quando se quer interagir com ela e ter essa conexão. Nós
temos esse oásis que é a natureza. Se o homem aprender a respeitar a
natureza, ele vai aprender a respeitar o seu vizinho, se tornar aliado dele,
como tem que ser aliado da natureza. (Cunha, 2017, p. 302-303).
Descreveu sua relação com os estudos, que segundo ele, é permanente e está sempre apresentando novos desafios e possibilidades
de aprendizado, trazendo também esses ensinamentos para sua vida
pessoal e a relação com outras pessoas.
Diante das inúmeras narrativas apresentadas, o mestre ou mestra
da cultura pode facilmente, ser confundido com papel de autor, aquele que será lembrado como guardião da memória da manifestação cul-
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
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tural ou ofício que representa. Mesmo que essa autoria seja atribuída
a gerações anteriores, cabe a ele esse papel, sem o qual as ações culturais sob sua tutela não existiriam.
Muito embora possamos defender outra ideia de autor, o nome
e a imagem do sujeito reconhecido como tesouro vivo da cultura cearense é o que provavelmente permanecerá quando a prática por ele
manifestada for lembrada por gerações futuras. Essa é uma construção tendenciosa, do ponto de vista que coloca de lado os demais praticantes, que são igualmente responsáveis pela guarda e repasse dos
conhecimentos que giram em torno da mesma ação cultural a qual os
diplomados estão inseridos.
O conceito de cultura
O termo cultura, se pluraliza quando investigamos as narrativas
e as práticas dos diversos espaços ocupados pelos mestres e mestras da
cultura, que se utilizaram da tradição oral como base para os conhecimentos adquiridos e para a transmissão de seus fazeres culturais.
Os múltiplos olhares sobre as percepções dos tesouros vivos da
cultura cearense vão construindo formas diferentes de esclarecer conceitos. Se pedirmos a um pesquisador acadêmico, um líder comunitário, um praticante religioso, um político ou um gestor cultural para
definirem cultura, provavelmente teremos pontos de vista diferenciados, que irão convergir ou divergir em alguns pontos, porém, não nos
cabe julgar quem está certo ou errado, apenas oferecer algumas ideias
para que o leitor possa construir seu próprio conceito, ampliando suas
percepções a partir do olhar desses sujeitos que vivenciaram, e ainda
vivenciam, experiências relacionadas aos fazeres culturais.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
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Em meio às narrativas investigadas, surgiram várias tentativas de
conceituar cultura, destacando as diferenças e semelhanças nas quais
construímos nossa subjetividade, partindo das vivências desses sujeitos e das tentativas realizadas por diversos teóricos.
A titulação de mestre da cultura tradicional popular cearense
carrega consigo vários adjetivos que apontam múltiplos caminhos e
perspectivas conceituais. São adjetivos que trazem uma série de implicações que versam sobre os mais variados pontos de vista. Na tentativa de não tornar a leitura teórica, propomos algumas referências
para que possamos refletir mais sobre o conceito de cultura a partir
das narrativas dos tesouros vivos.
Ao nos depararmos com o termo mestre ou mestra da cultura, é
necessário compreender que o conceito de cultura não é estático, nem
polido, nem se encontra pronto e acabado. É um conceito em movimento, que se transforma, se degrada, se renova, sem que para isso se
estabilize enquanto conceito.
Gilberto Velho reforçou essa ideia quando afirmou que “A cultura não é, em nenhum momento, uma entidade acabada, mais sim uma
linguagem permanentemente acionada e modificada por pessoas que
não só desempenham ‘papéis’ específicos mas que tem experiências
existenciais particulares.” (Velho, 2013, p. 45)
Para a mestra Ana Noberto15:
Cultura é vida! Pra mim tudo é cultura: eu falar, eu andar, é a minha
casa do jeito que eu faço, do jeito que eu fico, eu falar com filho, é meu
jeito de vestir, é uma colher que eu boto na boca. [...] É a minha saúde,
é a minha música que canto, tudo é cultura. Aquilo que me faz bem,
que faz bem a você, tá na cultura. E muita gente não conhece a cultura.
Vive a cultura e não conhece. (Freitas; Furtado, 2017, p. 48).
15 Ana Maria da Conceição – Mestra em Drama, diplomada em 22 de outubro de 2008, reside
em Tianguá – Região Norte, nascida em 26 de julho de 1956.
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22
A narrativa leva à compreensão de que, para ela, a cultura faz parte de um aprendizado dinâmico constituido em torno de uma junção
de comportamentos que agregam experiências de vida, atitudes, valores, crenças, linguagem, além das relações que o próprio indivíduo
estabelece com os espaços praticados.
O conjunto de costumes transmitidos oralmente constitui os grupos sociais que se diferenciam pela forma com que lidam com todas as
informações recebidas. Nesse processo de interação, a comunicação e a
imitação se colocam como fundamentais na manutenção das práticas,
da mesma forma que a observação e o intercâmbio entre grupos possibilita mudanças, inovações e inserções de outros modos de fazer.
Para o mestre da cultura indígena Cacique16 João Venâncio17, a
cultura está relacionada às danças e rituais praticados por seus ancestrais, onde o mais importante é relacionar esses fazeres aos seus significados, para que os mais jovens percebam o que diferencia uma prática
de outra e o que elas representam para os grupos que dela fazem uso,
como destacou: “a gente ensina os meninos os rituais sagrados, a dança, o porquê está dançando, o que significa. Porque nós temos várias
formas de cultura.” (Freitas; Furtado, 2017, p. 161).
Como liderança indígena dos tremembés, nutre a preocupação em
ativar a memória coletiva de seus liderados, fazendo uso da tradição oral
como forma de dar continuidade aos saberes e experiências de seu povo.
Para Cacique João Venâncio, “o papel da gente hoje, como liderança, é passar tudo que a gente aprendeu com os antepassados. Para
a nossa juventude, para nossa criançada. Para que eles possam se criar
16 O cacique é uma espécie de “chefe” político da tribo, responsável por organizar e cuidar de
questões referentes aos índios, como o modo de vida, os rituais e até mesmo punições.
17 Francisco Marques do Nascimento – Mestre em Cultura Indígena (Povo Tremembé),
diplomado em 22 de outubro de 2008, reside em Itarema – Região do Litoral Oeste, nascido em
30 de janeiro de 1955
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
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sabendo a história, sabendo a cultura que eles tinham, qual é a origem
deles, a quem é que eles pertencem.” (Freitas; Furtado, 2017, p. 161)
A preocupação e o zelo pela memória dos antepassados fazem
parte da inquietação de outros tesouros vivos que seguem o mesmo
percurso, evidenciando a importância da tradição oral, enquanto
meio de socialização de saberes, para que seus ofícios possam ser experimentados em outros momentos e por novas gerações.
Mestra Zulene Galdino18 também apontou sua definição: “E eu
ensino a cultura. Que é brincar Maneiro-pau, Lapinha, grupo Cintura Fina, o Xaxado, o Bumba Meu Boi, as Quadrilhas.” (Freitas; Furtado, 2017, p. 455).
Em outro momento, acrescentou a função inventiva, que não se
resume somente em reproduzir memórias do passado, como foi o caso
da criação da mãe do Judas: “...quando é na Semana Santa, eu ainda
faço o Judas, a mãe do judas, que é para as crianças brincar. Porque, em
todo canto tem o Judas. Mas o Judas é homem, e eu nunca vi filho sem
ter mãe. Aí eu faço a mãe do Judas.” (Freitas; Furtado, 2017, p. 455).
É recorrente na fala dos praticantes da cultura cearense afirmarem que suas práticas fazem parte da tradição repassada de geração a
geração por meio da tradição oral. No livro A invenção das tradições,
(Hobsbawn; Ranger, 1997) os autores evidenciaram situações que
permitem pensar sobre a legitimidade da utilização da palavra tradição em face de seu processo de invenção, percebendo que quanto mais
distante for o mergulho temporal do historiador, maiores as possibilidades de compreender a origem inventiva de seu foco de estudo.
Durval Muniz (2006, p. 76) destacou que “a busca das verdadeiras raízes regionais, no campo da cultura, leva a necessidade de
18 Zulene Galdino Sousa – Mestra em Pastoril, Dança do Coco e Maneiro-pau, diplomada em 30
de maio de 2006, reside em Crato – Região do Cariri, nascida em 2 de março de 1949.
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inventar uma tradição. Inventando tradições tenta-se estabelecer um
equilíbrio entre a nova ordem e a anterior.” Uma invenção estará sempre carregada de intenções, de signos e representações simbólicas que
supostamente se ligam a um passado distante, mas em alguns casos
fazem parte de um passado recente, construído e reconstruído para
dimensionar uma tradição inventada e reinventada, que reorienta a
utilização de símbolos, signos e representações.
Mestra Cacique Pequena19 definiu: “A gente sabe muito bem o
que é cultura: planta é cultura, plantação de mandioca é cultura, colha de caju é cultura, plantação de legume é cultura, colher algodão é
cultura. Pesca é cultura.” (Freitas; Furtado, 2017, p. 338).
Para ela, a cultura está ligada ao ato de cultivar a terra e mesmo de
realizar a pesca, mas não é só isso, é também um processo de adaptação ao espaço praticado, em que os fazeres acumulados vão ganhando
novos contornos.
Ampliou a discussão: “Agora, é cultura de vários tipos. Cultura
da mesinha, cultura da farinha, cultura de trabalhar de enxada, a cultura da mandioca, a cultura de fazer colar, a cultura de pescar. Tirar
mel de abelha. [...] Fazer esteira de junco é uma cultura! Fazer cama de
cipó é uma cultura.” (Freitas; Furtado, 2017, p. 338).
Segue para os fazeres ligados ao cotidiano de sua comunidade e
complementou com a prática do mocororó: “Apanhar caju, fazer mocororó, mocororó é uma cultura que é a bebida do índio. Mocororó
do caju azedo. Tudo isso é cultura. Se eu for dizer as culturas que nós
temos, um dia é pouco para se contar a história da cultura que tem o
povo Jenipapo-Kanindé.” (Freitas; Furtado, 2017, p. 338).
19 Maria de Lourdes da Conceição Alves – Mestra em Cultura Indígena (Povo JenipapoKanindé), Dança do Coco e Maneiro-pau, diplomada em 23 de outubro de 2015, reside em
Aquiraz – Região do Litoral Leste, nascida em 25 de março de 1945.
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Essas percepções ajudam a revisitar os variados conceitos e formas de evidenciar as memórias, experiências e vivências, que muitas
vezes ficam de lado em meio aos discursos acadêmicos. São narrativas
que levam a compreensão de como os sujeitos praticantes de manifestações culturais definem seus fazeres.
Seguimos essa dinâmica de conceituação que colocou a cultura
em movimento para que se apresentasse através das narrativas dos
mestres e mestras a fim de compreendermos a definição como construção circulante que se reinventa na tradição oral. Refletir sobre essa
enérgica edificação nos faz repensar sobre nossos conceitos e possibilita novos olhares sobre a cultura e suas percepções.
Mestre Aldenir20 defendeu que “a cultura é aquilo que sai de dentro da alma da gente. O Reisado, isso que a gente faz, a gente faz com
muito amor. Pelo menos eu faço com muito amor.” (Freitas; Furtado,
2017, p. 228).
Essa narrativa foi recorrente entre os mestres e mestras da cultura,
que mantêm a memória de seus antepassados, demonstrando amor e
carinho pelos fazeres relacionados a suas ações culturais, ressaltando o
anseio que carregam em deixar seu legado para os aprendizes para que
suas práticas tenham continuidade.
Histórias e memórias
Para compreendermos Michel de Certeau (2012, p. 55-85), em A
Beleza do Morto, tomamos com referência a narrativa de mestra Ana
Noberto:
20 José Aldenir Aguiar – Mestre em Reisado, Dança do Coco e Maneiro-pau, diplomado em 4
de maio de 2004, reside em Crato (Distrito de Bela Vista) – Região do Cariri, nascido em 20 de
agosto de 1933.
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Hoje, eu vejo o drama lá em baixo. Vejo ele morto. Pra começar, a juventude de hoje num conhece um drama. [...] e muitas vezes a gente
pensa assim... fazer, pra fazer um resgate, né! resgatar, né! a cultura. [...]
Se a gente fizesse, né! Só que ninguém tem mais aquela energia que a
gente tinha. Pra começar, como é que nós vamos dançar se requebrando numa música que é pra se requebrar? [...] Eu acho que era das coisa,
das belezas que hoje as comunidade perderam. Muitas coisas, muitas
cultura que as pessoa tinha, perderam. Que o drama é uma coisa muito
bonita, mas se perdeu. (Conceição, 2005).
Três anos antes de ser diplomada, apresentou uma narrativa pessimista, que se pautou na falta de interesse das jovens e nas limitações
físicas das mais velhas, apontando um caminho que nos levou a compreender que o drama praticado por ela e seu grupo estava destinado a
uma perca irreversível, sem possibilidades de retorno.
Esse fato foi narrado em 2005, quando realizamos pesquisas para
fins de conclusão de uma monografia, que gerou o título de especialista
em arte educação e a publicação do livro O drama em si (Pontes, 2011).
Em 2008, após o reconhecimento como mestra da cultura popular cearense, Ana Noberto, apresentou outro discurso e apontou novos caminhos para suas práticas, inclusive trouxe ao palco as dramistas
idosas da comunidade de Tucuns.
As referidas dramistas vivenciaram a cultura de dramas nas décadas de 1970/80 e abandonaram quando casaram, por conta do machismo dos maridos que não permitiram que suas esposas se mostrassem diante de um público em que outros homens estariam presentes.
Essas senhoras, agora com idade superior a 50 anos, retomaram
suas atividades e passaram a experimentar outros espaços e contextos,
bem diferentes daqueles que faziam parte de sua infância e adolescência.
Apesar do longo período longe dos fazeres dramistas, as letras
das cantigas, os passos das danças, a performance e as indumentárias
das personagens, despertaram memórias e se apresentaram através das
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lembrança das praticantes, que no calor dos acontecimentos criaram
um grupo de dramistas mirins, porém, com o avançar da idade as meninas passaram a ter vergonha de se apresentar e foram aos poucos
abandonando os ensaios. Otimista, Ana Noberto destacou: “uma semente foi plantada, nós só não pode é obrigar elas gostar, por que o
tempo delas é outro.” (Conceição, 2005)
A mestra apontou para a questão de que para sobreviver ao tempo é necessário que a manifestação faça sentido para as praticantes, do
contrário se torna difícil a permanência.
Luce Giard, no prefácio do livro A Cultura no Plural, colocou
que toda cultura, na perspectiva de Certeau, “requer uma atividade,
um modo de apropriação, uma adoção e uma transformação” (Certeau, 2012, p. 10). Quando esses pontos entram em concordância,
dificilmente encontraremos uma prática cultural morta, desde que, a
comunidade a tome para si como referência para dar continuidade a
suas ações.
Para Certeau, é necessário que as práticas sociais tenham significado diante daqueles que as executam, de outro modo, teremos uma
cultura praticada para cumprir outras finalidades.
Ana Noberto apresentou a trajetória das dramistas de sua comunidade:
A gente brincou até 20 anos de idade. Casei com 19 anos, com 20 tive
o primeiro filho, aí pronto. As outras também se casaram e se acabou o
drama. Morreu o drama na comunidade. E aí depois de vinte anos que
a gente tinha parado teve uma pessoa que era da prefeitura [Márcio
Pontes], professores que foram fazer faculdade e sentiram a necessidade de resgatar uma cultura. Começaram a pesquisar e vieram. Foram
no Poço de Areia, foram no Cipó, vieram aqui no Tucuns. Quando
chegaram no Tucuns, encontraram a gente, que tinha a cultura, mas
tava morta! As outras pessoas na comunidade nem conheciam mais, as
pessoas novas nem conheciam mais, nem sabiam nem o que era mais.
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Aí veio o Márcio, a Vânia, a Amparo, aí nós resgatamos junto com eles.
[...] Todas nós sabíamos das músicas. Todas já tinham brincado quando eram novas. Perguntaram pra gente quem era de nós que queria fazer parte do grupo, botar o nome pra ser a mestra. A mestra tinha de
viajar, tinha de ir buscar as coisas, tinha que trabalhar. As meninas do
grupo disseram que eu tinha mais condição, que eu já trabalhava na comunidade, eu trabalhava na igreja, eu não tinha vergonha de falar com
ninguém! Podia vim o Papa, podia vim o Bispo, o prefeito, podia vim o
Governador... Colocaram meu nome. Se fosse aprovado, era eu. Então
foi aprovado e ainda estamos aqui. E nós temos esse grupo resistente.
(Freitas; Furtado, 2017, p. 44-45).
Retomando as ações, agora mães, avós e até bisavós, as dramistas
passaram a se reunir quase semanalmente, na sede da comunidade em
que residem, para a prática dos dramas como atividades de lazer. É o
momento em que cantam, dançam e se divertem contando histórias,
revisitando memórias e reencontrando as novas trajetórias dos dramas.
Alguns maridos machistas de décadas anteriores até participam
dos encontros e já não exercem mais o poder patriarcal de antes, tendo
em vista, mudanças de valores morais que atualmente no Brasil, nesse
início do século XXI, dão mais liberdade a mulher, que a cada dia
amplia seus espaços de atuação.
Os fatos apresentados nos fazem perceber a dinâmica das manifestações culturais e como as tradições orais e os mecanismos da memória estão presentes, necessitando de um gatilho para reacender as
chamas que por hora estavam quase sendo apagadas.
Apesar dos esforços empreendidos por diversos pesquisadores e
estudiosos, não se chegou a um consenso sobre o conceito de cultura
e suas aplicações, sendo que as reflexões foram cunhadas por meio de
disputas de poder, nos campos políticos e teóricos, que não conseguiram delimitar sua área de compreensão, não dando conta de fechar
essa categoria de estudos em uma caixa lacrada para que não se pudesse mais questionar sobre suas diversas possibilidades.
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Mestre Pedro Balaieiro21 relatou com orgulho que depois que recebeu o título e teve espaço na mídia, suas peças passaram a ter maior
procura. Assim destacou: “Eu, vendendo na feira, fui convidado pelo
gerente do hotel Remanso de Guaramiranga para vender o meu trabalho lá. Quando eu dei fé, eu saí na revista de turismo. Eu e o Chico
Anysio. Aí, a coisa melhorou.” (Freitas; Furtado, 2017, p. 399).
Acrescentou, ainda, o fato de ter tido espaço em uma revista de
grande circulação, que lhe rendeu muitos trabalhos: “Melhorou mais
ainda quando eu saí na revista Cláudia, porque a Central de Artesanato me convidou para eu levar o meu trabalho lá.” (Freitas; Furtado,
2017, p. 399).
As vivências de Pedro Balaieiro alimentaram o orgulho em ser
reconhecido e assediado pela mídia, tornando-o conhecido e ampliando suas possibilidades de trabalho para além da cidade que ele residia.
Mestra Ana Noberto, contou que depois da titulação recebeu visita de pesquisadores, jornalistas, convites para entrevistas, apresentações, gravações das músicas, já apareceu em jornais, revistas e em várias
gravações expostas na internet.
Acrescentou: “Nossa comunidade, o nome dela é Tucuns, é a última comunidade do nosso município. Então a nossa comunidade,
ela é vista através desse grupo, dessas pessoas que muita gente não dá
valor, né?! Ela é vista!” (Freitas; Furtado, 2017, p. 48).
Mostrou a importância que a comunidade adquiriu em seu município, e mesmo dentro do Estado do Ceará, por meio do seu reconhecimento como tesouro vivo da cultura cearense e das apresentações realizadas por seu grupo.
21 Pedro Alves da Silva – Mestre em Artesanato em Cipó Imbé, Dança do Coco e Maneiro-pau,
diplomado em 30 de maio de 2006, reside em Guaramiranga – Região do Maciço de Baturité, nascido
em 26 de dezembro de 1926, falecido em 7 de julho de 2022.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
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Observamos que a titulação impactou no dia a dia dos mestres
e mestras, modificando a rotina dos mesmos, que agora tem que se
adequar ao tempo e as práticas de novos espaços para atender as demandas advindas do reconhecimento.
Mestre Vicente Chagas22 contribuiu com seu posicionamento:
Me orgulho do meu trabalho porque sou mestre da cultura e sou conhecido do mundo. E saio de casa, me ajunto mais os mestres, a gente
debate os trabalhos da gente. Conversa com um, conversa com outro.
Aí eu me sinto feliz por causa disso. Gosto de ser mestre, não vivo mais
preso só num lugar. Porque, no tempo que eu não era mestre, eu não
saia nem de casa, quase. Hoje eu sou mestre e me reúno com os outros
mestres dos outros lugares, e a gente faz aqueles debates, e isso tornou a
minha vida mais animada do que era. É isso aí, eu me orgulho é disso,
de ser mestre da cultura por causa disso. [...] Tem gente que, às vezes,
vem pesquisar trabalho meu, de escola. [...] Hoje em dia, precisando de
mim, eu estando aqui em casa... me chamando em qualquer canto...
venha me buscar que eu vou. [...] E eu ainda acho que a brincadeira
do boi vai continuar Sabe por quê? Porque, se um dia eu falto, com
minhas brincadeiras... tem muito trabalho meu gravado aí. (Freitas;
Furtado, 2017, p. 439-442).
Revelou o sentimento de orgulho e felicidade que também conduz a fala da maioria dos diplomados, que assim como ele, estão sempre realizando alguma atividade ligada à titulação e isso de certa forma
fortalece o sentimento de pertencimento a um grupo seleto de praticantes de cultura que se disponibilizam a realizar gravações, entrevistas e outras ações, sem preocupação com a parte financeira, pois a
maioria dessas participações não geram renda para eles, mesmo assim,
estão disponíveis a contribuir e relatar suas histórias.
Essas ações vão também alimentando um acervo que vai compondo a história desses mestres e mestras. Nas pesquisas que fizemos
22 Vicente Chagas Gondim – Mestre em Reisado de Caretas e Bumba Meu Boi, diplomado em
24 de setembro de 2007, reside em Guaramiranga – Região do Maciço de Baturité, nascido em
2 de julho de 1937.
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é recorrente encontrar registro em jornais, revistas, trabalhos acadêmicos, documentários e uma série de gravações que circulam em redes
sociais, sites, blogs, entre outros meios de divulgação.
Os registros feitos pelos meios de comunicação reforçam lembranças, memórias e atestam parte do trabalho praticado pelos tesouros vivos da cultura cearense, do mesmo modo que amplia a divulgação de seus modos de fazer, que são particulares e carregam consigo
uma série de implicações que nos permitem diferenciar grupos que
fazem parte da mesma manifestação cultural, porém, apresentam peculiaridades incomuns que os tornam únicos em seu modo de fazer.
Podemos citar como exemplo o Reisado ou Folia de Reis, que
em tese é uma manifestação popular que celebra o nascimento do menino Jesus e recorda a visita dos três Reis Magos a Belém. Esse grupo
dançante inicia suas atividades no Natal e encerra dia 6 de janeiro, encontrando na cultura cearense uma variedade de práticas, entre elas:
Boi de Reisado; Reisado de Caretas; Bumba Meu Boi; Reisado de Espadas; Reisado de Couro; Guerreiro; Reisado de Congo; entre outras
variações que não alcançamos na pesquisa.
É a mesma manifestação cultural realizada de formas diferentes,
que só podem ser compreendidas por meio da observação do modo de
fazer de cada grupo e indivíduo. Nesse sentido, os registros audiovisuais facilitam essas percepções, que de outra forma só seriam possíveis
através do contato direto com o trabalho de cada grupo.
Essas aproximações e distanciamentos é o que possibilita concluir
que cada praticante é único no seu fazer e nos seus aportes conceituais,
sendo necessário conhecer as especificidades de cada um para poder
compreender suas práticas em meio ao contexto de seu tempo, sendo
que cada geração se enquadra nas percepções conceituais de seu tempo,
de acordo com as narrativas que circulam por meio da tradição oral.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
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Conclusão
Concluímos que o conceito de cultura popular se tornou controverso, escorregadio, polêmico e recheado de pensamentos ora consensuais, ora conflitantes, cabendo a cada um de nós extrair nossas
próprias ideias e reflexões, para que dessa forma possamos criar nossa
subjetividade e nos deter aos argumentos que norteiam individualmente nossas experiências relacionadas as manifestações culturais e
seus conceitos.
O que dá significado e sentido as práticas culturais são as vivências que encontram suporte na tradição oral e sustentam a memória e
a identidade daqueles que se relacionam com os espaços em que esses
fazeres se desenvolvem.
Trabalhar conceitos e subjetividades é um desafio para os historiadores no campo da cultura, pois não existem fazeres melhores ou
piores, o que existem são fazeres diferentes, cada um com características próprias. Se você entrevista dez brincantes de reisado da mesma região e pergunta qual a Folia de Reis que melhor representa a tradição
regional, cada um deles vai contar sua história e atribuir a si essa representação. As motivações serão variadas, mas certamente recorrerão ao
tempo e aos antepassados para posicionar seus fazeres como os mais
representativos.
Em meio às tentativas conceituais relacionadas ao campo cultural, estão os mestres e mestras da cultura cearense, que apesar dos seus
fazeres passarem por todo esse processo de reflexões, carregam consigo uma forma própria de compreender tudo isso, objetivando levar
adiante aquilo que os movimenta e os faz se sentirem vivos.
Como se diz, os outros que corram atrás de seus arcabouços teóricos que deem conta de suas práticas. Aos diplomados e não diploma-
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dos o que importa é seguir adiante por meio da tradição oral, seguindo
seus instintos e conceitos relacionados as experiências que carregam
ao longo de suas vivências.
Os adjetivos que norteiam a nomenclatura Mestre da Cultura
Tradicional Popular Cearense são complexos e carregam implicações
que não permitem enquadrar os tesouros vivos em um aporte teórico
bem definido.
Os mestres e mestras são anteriores a essas discussões e se posicionam como sujeitos que têm como objetivo dar continuidade ao ofício
que dedicaram parte de suas vidas, destacando que sua relação com
as práticas culturais independem das discussões teóricas que tanto
preocupam os acadêmicos, porém, mostraram que tem seus próprios
conceitos e sua forma de ver a aplicação dos mesmos no seu cotidiano,
levando em conta suas experiências e as crendices que são passadas de
uma geração a outra por meio da tradição oral.
Para além dos conceitos, devemos pensar a relação desses sujeitos
com as mudanças que acompanharam esse assédio aos tesouros vivos
da cultura cearense. As experimentações, antes restritas a seu espaço
de convívio, agora ganham holofotes e já não passam despercebidas.
Após a titulação, a escala de relações se amplia e novas formas
de convívio também. Pesquisadores, jornalistas, escritores e um sem
número de curiosos querem conhecer os tesouros vivos e suas histórias, sendo que eles tem que se acostumar com o fato de repeti-las por
várias vezes.
Os próprios conceitos apresentados se modificam, diante dos diversos pontos de vista que se constroem em torno dos fazeres dos mestres e mestras da cultura, e com o estreitamento dos laços que separam
a oralidade e a escrita.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
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Como se diz no popular, são “ossos do ofício”23 que acompanham o reconhecimento dos diplomados e de certo modo amplificam
a circulação de informações, colocando os tesouros vivos em evidência
e considerando a relação temporal como algo imemorial, pertencente
a uma temporalidade anterior, que possuindo origens milenares, fogem ao domínio dos sujeitos que narram.
Assim como os folcloristas, os curiosos querem sempre saber a
origem dos feitos dos mestres e mestras, que não conseguem narrar
além do que vivenciaram e vivenciam. Difícil precisar de onde vem e
quais os limites das práticas de um sujeito que carrega o título de tesouro vivo da cultura cearense. O certo é que todas elas vão de algum
modo se adequando as necessidades de seu tempo e seguindo o fluxo
que permite novas formas de se reinventar para se fazer presente.
Referências
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2012.
CONCEIÇÃO, Ana Maria da. [mestra Ana Noberto] Entrevista concedida
[jan. 2005] ao pesquisador Márcio Pontes. Arquivo digital.
CUNHA, Paula Silveira. Mestres da cultura cearense: a tradução das tradições.
Fortaleza: Instituto União, de Arte Educação e Culturas Populares, 2017.
23 Antigamente, para deixar as folhas de papel-ofício branquinhas, os fabricantes usavam pó
de tutano, substância que existe no interior dos ossos do corpo e tem propriedades alvejantes.
Precisava-se extrair uma grande quantidade desse material para conseguir o branqueamento do
papel. Era um processo lento e exaustivo, que ninguém gostaria de fazer, mas havia quem fizesse
porque era parte do trabalho. De acordo com o folclorista Câmara Cascudo (1898-1986), foi daí
que surgiu a expressão que remete a algo desagradável inerente a uma tarefa ou profissão.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
35
FREITAS, Dora; FURTADO, Sílvia. Livro dos mestres – o legado dos mestres:
cultura e tradição popular no Ceará. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara,
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HOBSBAWM, Eric & RANGER, Terence. A invenção das tradições. Tradução: Cavalcante, 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1997.
PONTES, Márcio de Araújo. O drama em si: histórias e memórias de mulheres
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VELHO, Gilberto.(org) Um antropólogo na cidade: ensaios de antropologia urbana. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
36
CApítulo 2
“Sob o signo da paixão”:
desconstruindo Ana C.
Bárbara Pinheiro Baptista
Introdução
Ana Cristina Cesar foi uma poeta, ensaísta, tradutora e professora carioca, nascida em 1952, filha do sociólogo Waldo Aranha Lenz
Cesar, um dos fundadores da editora Paz e Terra. Licenciou-se em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro em 1975
e realizou seu mestrado na Escola de Comunicação da UFRJ, culminando na publicação do livro Literatura não é documento (1980), no
qual elabora um levantamento de documentários sobre movimentos
literários e escritores do Brasil. Cesar se envolve também com crítica e
tradução literárias, sendo descoberta pela professora Clara Alvim na
PUC-RIO. Colaborou com publicações pertencentes à chamada imprensa alternativa como o jornal Opinião, participando também da
criação do jornal Beijo. Viveu, portanto, em meio a setores intelectualizados da classe média carioca da zona sul, que em sua grande parte constituíam a movimentação contracultural do contexto referido.
Em 1975, Heloísa Buarque de Hollanda, àquela época sua professora
e posteriormente orientadora de mestrado, a incluiu na antologia 26
poetas hoje, lançada em 197624.
24 A obra buscava difundir a produção dos representantes da geração daquele período,
principalmente dos escritores residentes no Rio de Janeiro, sendo responsável por consagrar
tempos depois os jovens poetas reunidos no livro
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
37
Em 1971, ingressou no curso de Letras Português/Literaturas
da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, licenciando-se
em 1975, aos 23 anos. A experiência na universidade foi fundamental para a definição dos contornos de seu projeto literário, não apenas
pelas leituras e aprendizados, mas pelos contatos estabelecidos com
professores e colegas integrantes de um grupo que rascunhava uma
nova poesia, aos poucos conhecida como “marginal”. Na PUC-RJ
Ana Cristina foi aluna de Affonso Romano de Santana, Cacaso, Cecília Londres, Clara Alvim, Luiz da Costa Lima, Silviano Santiago, Vilma Areas. Alunos e professores discutiam literatura, política, faziam
grupos de estudos, publicavam textos no Opinião, Movimento, Beijo,
dentre outros. As correspondências de Ana Cristina datadas de 1976
revelam uma intensa participação nesses grupos.
Em meio a essa vida dedicada aos estudos literários, à docência
de literatura e de inglês, e ao jornalismo cultural, Ana conviveu com
colegas e professores que estavam profundamente integrados aos movimentos e à feitura da nova poesia que surgia, aos poucos, e que foi
intitulada de “poesia mimeógrafo” ou “marginal”25 . Desde 1973, Ana
começou a travar relações com um grupo maior de colegas e poetas,
expandindo-as para além do cotidiano na PUC. Um dos motivos dessa maior integração de Ana Cristina foi seu namoro com Luis Olavo
Fontes, um jovem extremamente popular e que transitava entre os estudantes do curso de Letras e de Comunicação da PUC e da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em cuja fazenda os poetas se reuniam
para discutir literatura, produzir seus livros e coleções como a Vida de
Artista.
25É importante ressaltar que a marginalidade diz respeito à posição ocupada por esses
escritores no circuito literário, sujeitos que buscavam modos alternativos de fazer e
distribuir sua poesia, não tendo relação com a sua condição socioeconômica.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
38
A dita geração mimeógrafo foi caracterizada por estar atenta aos
acontecimentos de seu tempo e por fazer um esforço em repensar o
fazer poético, tratando de temas da modernidade e da política, mas
também abordando fatos insólitos do cotidiano. Ainda que se utilizasse de uma linguagem coloquial e o humor estivesse presente em diversas poesias, a produção desses poetas também traduzia os anseios e
angústias de uma geração que vivenciou a implantação do AI-5 e, por
consequência, não pôde mais relatar suas histórias devido ao intenso
rigor da censura. Frequentemente, os poetas marginais faziam críticas
à noção canônica de poesia (Hollanda, 2007, p. 45) e à exigência de
um leitor bem preparado para o entendimento dos textos.
A geração mimeógrafo é classificada pelos pesquisadores como
um novo movimento, do qual o tropicalismo teria sido o marco inicial. A crise intelectual vivenciada pelas gerações do período, marcada
pelas desilusões com os ideais de esquerda, a limitada participação política e o consequente desbunde dos anos 70 influenciou diretamente
o conteúdo de suas produções. A reação coletiva a esse contexto de
múltiplas frustrações levou à disseminação da contracultura adotada
inicialmente pelo tropicalismo, culminando em um afastamento de
referenciais teóricos enquanto parâmetros. Nesse sentido, o coloquial
é marginal na medida em que retrata o cotidiano dessa geração reprimida e sufocada pela conjuntura. A poesia de Ana Cristina Cesar, por
sua vez, retrata memórias desse momento histórico de um modo menos explícito em relação aos seus contemporâneos, ainda que trate em
seus poemas do medo e da repressão que fizeram parte dos anos de
chumbo.
Cesar residia no Rio de Janeiro na época de maior movimentação
cultural, embora não tenha sido tão ativa nos protestos editoriais em
termos de publicação e distribuição independentes. Conforme aponta Hollanda (1992), a escrita poética desta geração passa a dar maior
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
39
importância à história, afastando-se da rigidez de normas literárias e
opondo-se a regimes estabelecidos, sejam eles políticos ou literários. A
poesia marginal destoava dos padrões de criação e veiculação predominantes até então, consolidando seu espaço pelas margens do sistema,
tendo como horizonte o desenvolvimento de modos alternativos de
expressão. Ana Cristina César, contudo, se diferencia nesses aspectos,
possuindo um estilo próprio de escrita, fortemente influenciado pela
leitura de escritores consagrados e de sua experiência com a crítica e a
tradução de obras.
O cenário cultural e político brasileiro nos anos
de ditadura civil-militar
Tendo iniciado no começo de abril do ano de 1964, a ditadura civil-militar se estabeleceu no Brasil a partir de um golpe aplicado por grupos pertencentes às Forças Armadas e contando com
amplo apoio da sociedade civil, assim como setores pertencentes
a associações industriais, grupos financeiros, proprietários de terra e indivíduos ligados à Igreja. Um traço marcante desse período
da história nacional foi a construção da noção de um inimigo que
deveria ser combatido por meio de constante vigilância, cerceando as liberdades individuais ao criar uma atmosfera de medo no
imaginário popular.
O Estado se consolidava na medida em que se disseminava um
padrão de comportamento a ser seguido buscando embasamento em
símbolos de coesão social. O aprofundamento da opressão do período
ditatorial ocorre a partir de 1968, quando se estabelece o Ato Institucional Número Cinco, AI-5, acirrando os processos de militarização e
centralização das instituições do Estado. Nesse momento, a imprensa
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
40
e alguns intelectuais do espectro liberal passam a criticar a violência e
a censura cometidas pelo regime vigente.
O projeto político (Duarte, 2017, p. 19) se firma e o poder encontra legitimidade na prática cotidiana. Em oposição às medidas repressivas de censura, artistas e intelectuais desenvolveram uma variedade
de respostas às controvérsias que a sociedade brasileira apresentava à
época. Nesse sentido, a censura funda maneiras distintas de hierarquizar e classificar o discurso dominante. As leis censórias possuíam forte
conteúdo moral e político, se solidificando a partir de referências assentadas no pensamento católico e de uma perspectiva repressora para
se justificarem. Cabe evidenciar o papel fundamental da Doutrina de
Segurança Nacional para a tentativa de estrangulamento de quaisquer
distinções ideológicas, políticas e culturais em relação ao governo.
Nessa perspectiva, era necessário combater condutas específicas, que
se destacassem da ordenação familiar e dos papéis de gêneros entendidos como ideais.
O cenário era marcado pela reconfiguração das relações de gênero e identidades convencionais, ocorrendo rupturas consideráveis. A modernização da sociedade ocorre de forma mais expressiva
entre as décdas de sessenta e oitenta, rompendo com as referências
de família tradicional aceitas até então. Acontecimentos como a difusão da pílula anticoncepcional e a entrada de mulheres no mercado de trabalho exerceram influência decisiva nas mudanças comport mentais que vinham se dando, com o apoio dos movimentos
contestatórios. Um desses movimentos foi o feminismo, trazendo o
questionamento das referências tradicinais de masculinidade e feminilidade, causando uma reviravolta completa dos valores morais hegemônicos e possibilitando a elaboração de novas maneiras de agir, ser e
estar no mundo.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
41
Outro aspecto digno de nota consiste na atitude dos jovens, que
teve centralidade na resistência ao regime ditatorial, tanto em grupos
clandestinos como na luta armada. Tiveram papel primordial na criação de novas possibilidades criativas, no âmbito do cinema, da música,
do teatro e das artes plásticas, meios que deram a eles oportunidades
de se expressarem criticamente sobre a conjuntura na qual viviam. As
movimentações a nível mundial em 1968 ajudaram na ampliação dessas transformações. A postura contracultural se traduzia em costumes
relacionados à sexualidade, aos relacionamentos tradicionais, ao uso
de drogas e às práticas hedonistas, que incentivavam a preponderância
do individual em detrimento de valores coletivistas.
Sendo a roupagem brasileira do movimento de contracultura
mundial, a cultura marginal teria possibilitado aos artistas do país a
criação de novas linguagens estéticas para responder à conjuntura repressiva, bem como à criação de novas sensibilidades ao recorrerem ao
humor e ao coloquial em seus escritos.
No que diz respeito à relação entre a cultura e a política no período, é possível destacar uma espécie de estrutura de sentimento26 da
brasilidade revolucinária a partir da década de sessenta. Mobilizando
o conceito do sociólogo Raymond Williams, é possível compreender
como as particularidades da cultura nacional naquele período são
mobilizadas para a transformação da cultura geral, como elementos
contra-hegemônicos. Tal estrutura de sentimento teria sido compartilhada por diversos intelectuais e artistas no Brasil, culminando em um
florescimento cultural e político na sociedade, caracterizado por seu
aspecto romântico-revolucionário:
26 Nesse sentido, cabe ressaltar a centralidade do conceito de “estrutura de sentimento” proposta
por Raymond Williams. A partir desta concepção, entendemos como indivíduos e grupos sociais
articulam suas experiências em determinado contexto histórico em relação às temporalidades
anteriores.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
42
(...) os movimentos sociais insurgentes, o novo sindicalismo, as
Comunidades Eclesiais de Base da Igreja informadas pela Teologia da
Libertação, a luta contra a ditadura nos seus estertores, o surto da imprensa alternativa, o fim do AI-5 e da censura, a Anistia, a vitória da
revolução na Nicarágua em 1979 e outros fatores criavam em setores
artísticos e intelectuais – identificados ou não com os primórdios do
PT – a sensação de continuidade em relação à antiga estrutura de sentimento (Ridenti, 2005, p. 102).
Nesse sentido, eram apreciadas as ações que estavam voltadas
para transformar a História. Afinado com o panorama cultural e político internacional, essa estrutura abarcava em si aspectos contraditórios: conviviam elementos que faziam referência às raízes brasileiras
e à modernidade, ao nacional e ao estrangeiro. Na medida em que a
sociedade brasileira ia se transformando, os artistas e intelectuais que
faziam oposição ao regime, foram modificando a sua postura.
A geração mimeógrafo e o contexto repressivo do
Brasil nos anos de chumbo
Segundo Glauco Mattoso (1982), o termo “marginal” seria utilizado para caracterizar a produção de artistas alternativos e independentes, que possuíam certa autonomia em relação à imprensa tradicional, tendo em vista que tais trabalhos contestavam o sistema vigente27. Em relação ao fator cultural dessa qualificação, cabe salientar
o teor contracultural da postura de questionamento assumida pelos
poetas marginais em seus escritos. Já no que tange à marginalização
comercial, destaca-se o desconhecimento dos integrantes desse movimento por parte do público, tendo veiculado e produzido seus livros
27 O autor situa a emergência desse novo fazer poético a partir do movimento tropicalista, sendo
considerado marginal devido a aspectos de ordem comercial, estética, cultural e política.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
43
de maneira artesanal, à parte do mercado editorial. A inovação estética
trazida pela geração mimeógrafo (Hollanda, 1980, p.10. consiste na
prática de linguagens entendidas como pouco “literárias”, empenhando-se em experimentalismos de vanguarda. O engajamento político
(ainda que na maior parte das vezes implícito) e o conteúdo panfletário de certos poemas contribuem para o caráter “marginal” da vertente
mencionada.
No auge da repressão e da censura desencadeadas pela ditadura que
vigorava, nasce o jornal O Pasquim, abrindo caminho para publicações
da imprensa alternativa como Opinião, Movimento, Versus, somente
para citar alguns exemplos. Ao comparamos a poesia marginal com outras correntes literárias daquele período, podemos ressaltar como singularidade a sua completa heterogeneidade tanto em sua teoria como
em sua prática, posto que não existe um trabalho que contenha um
posicionamento comum aos seus componentes. Em contrapartida, o
descompromisso com uma noção clara do que é poesia e a despreocupação com parâmetros estéticos previamente estabelecidos é marca
característica dos autores marginais. Enfrentando dificuldades no âmbito editorial, as novas gerações de poetas são desestimuladas devido à
falta de revistas e suplementos literários, somada à falta de estímulo de
organizações oficiais, o que prejudica a construção de um movimento
literário. mais ativo.
Em oposição à metodologia empregada por Carlos Alberto Messeder Pereira, Heloísa Buarque de Hollanda, em artigo também publicado no Jornal do Brasil, pensa a poesia marginal a partir de sua
construção textual, enquanto Messeder analisa as práticas e comportamentos de seus integrantes. Ele investiga os caminhos percorridos
pelos escritores marginais, partindo da premissa de que só é possível
entender a poesia marginal a partir do entendimento de suas relações.
Assim, é necessário conhecer os espaços em que esses poetas intervêm
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
44
até o processo de construção e comercialização das obras, refletindo a
respeito do modo como o público-leitor e o poeta dialogam28.
A poesia passa a ser a vanguarda das artes em momentos de intensa efervescência política e social, como em 1922, com o projeto
modernista em um cenário de efervescência política. É possível citar
também o projeto concreto relativo às décadas de cinquenta e sessenta, inserido em uma atmosfera desenvolvimentista. Tais projetos
tinham em comum o intento de dar ao Brasil uma dimensão contemporânea. O fenômeno da poesia marginal pode ser percebido como
um prosseguimento de correntes literárias de vanguarda como a semana de arte moderna de 22 e o movimento tropicalista29. É necessário
frisar a controvérsia em torno do termo “marginal” e a sua utilização
nesse contexto. Enquanto a vanguarda, dispondo de certo grau de
embasamento teórico não poderia ser intitulada como “marginal”, a
obra dos poetas que escreviam de modo coloquial seria enquadrada
nessa categoria. Cabe o questionamento em torno do uso dessa forma
de linguagem como mero artifício estético, podendo ser aplicado por
escritores de qualquer época.
Heloísa Buarque de Hollanda indica, também, que após o agravamento da repressão, a impossibilidade de um debate público envolvendo a população possibilitou que o campo cultural passasse a ter
importância crucial como expressão do descontentamento frente à
situação política, tornando-se um foco de resistência. O combate às
manifestações políticas da esquerda obriga os artistas a dissimularem
seus discursos carregados de viés político através de uma estética mais
palatável. No entanto, a expressão poética de caráter panfletário so28 HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Bandeiras da imaginação antropológica. O Jornal do
Brasil, v. 13, 1980.
29 A comparação pode ser feita na medida em que se constata a procura por uma cultura brasileira
e a crítica ao intelectualismo elitista da poesia produzida até então.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
45
mente pode ser considerada marginal quando está inserida em uma
fase de maior repressão, pois as linguagens e temáticas que ela abarca
não são necessariamente inovadoras.
Podemos entender a postura comportamental alternativa e a contestação política como um fenômeno singular, que deve sua existência
ao tropicalismo.4 A aproximação com o movimento tropicalista pode
ser feita quando analisamos a recepção de ambos os movimentos pela
crítica. De maneira semelhante a qual Caetano Veloso, Gilberto Gil e
outros músicos da época foram considerados alienados e traidores da
população, os poetas marginais foram descritos como desconectados
da realidade política e social daquela temporalidade por seu modo de
agir “desbundado”. É legítimo relacionarmos as ações dos poetas marginais ao estilo comportamental dos efeitos do movimento hippie dos
Estados Unidos nos anos sessenta.
Outra correlação possível consiste na influência da literatura
underground estadunidense, também constituída por valores contraculturais. Ainda que herde da contracultura a sua veia rebelde e questionadora, algumas temáticas e abordagens da poesia marginal não são
necessariamente compatíveis com ela. A manifestação da marginalização da produção poética desses escritores pode ser percebida pelo termo “lixeratura” utilizado para designar a fragilidade de sua produção
gráfica, classificada como “suja”, entre outros adjetivos negativos. Em
razão de seu baixo orçamento e produção caseira, as obras dos autores
marginais circulavam em meios alternativos, independentes das editoras
e livrarias30. Portanto, localizavam-se à margem do mercado editorial31.”
30 São dignas de destaque revistas de pequeno porte, publicações e jornais com conteúdo poético
e artístico, que surgem nos anos setenta como oposição à ditatura que se impunha: Argumento,
Escrita e Anima são algumas delas. Iniciativas de grupos que eram ativos culturalmente,
compostas por artistas e poetas em sua maioria, tais publicações não tiveram muitas tiragens.
31Entendendo o movimento tropicalista como um fenômeno que buscou fundir elementos da
cultura nacional a inovações estéticas Cf. BRITO, Antônio Carlos de. Tropicalismo: sua estética,
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
46
Embora suas obras sejam rejeitadas pelo tom crítico, os poetas marginais, via de regra, também não desejavam o prestígio da
fama e o reconhecimento do público. Era interessante que eles tivessem autonomia para criar e divulgar as suas produções nos
circuitos paralelos de comercialização. As edições eram planejadas
e criadas com a cooperação e participação dos próprios autores nas
diversas etapas de produção. Ocorreu nesse momento uma desierarquização do espaço da poesia, visto que os consumidores desse novo
gênero não se limitavam aos antigos apreciadores. Em um contexto
marcado pelo autoritarismo da ditadura civil-militar, a poesia marginal estabelece um sólido vínculo entre o público e a produção poética. Pode-se ressaltar como características principais deste novo fazer
poético: a recusa de uma literatura marcadamente classicizante e a
subversão de padrões literários hegemônicos. As categorias de “poeta”
e “artista” não eram idealizadas pelos escritores marginais, tendo em
vista que eram denominações que conferiam notoriedade diante da
crítica especializada.
Desse modo, é possível constatar um esforço em se desvencilhar
da posição da figura cristalizada do artista (Pereira, 1981, p. 70) que
se encontra em um patamar acima dos outros indivíduos. Se for possível verificar um objetivo que reunia os poetas marginais, pode- se
destacar o intento de criação de um lugar poético de resistência cultural e contestação às normas institucionalizadas do sistema ditatorial
corrente à época. A lírica da poesia marginal abarcava tanto conteúdos autobiográficos como a memória social do autoritarismo, tendo
em vista que diante da censura e da impossibilidade de um discurso
político direto, houve significativa mudança da contestação política
para o âmbito da criação cultural enquanto espaço de resistência. A
sua história. Revista vozes, v. 66, n. 9, 1972
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
47
rejeição às tradições da literatura brasileira e aos cânones e o afastamento em relação aos meios oficiais de publicação aproximavam a
produção dos poetas marginais. A produção de Ana estava inserida
nessa lógica: seus três primeiros livros Cenas de Abril, Correspondência Completa e Luvas de Pelica são edições artesanais feitas pela autora.
O seu primeiro livro publicado por uma editora foi A teus pés de 1982,
pela editora Brasiliense. Entretanto, ainda que essa literatura estivesse à margem do campo literário, a presença de mulheres era inferior
quando comparada à masculina, atestando as barreiras encontradas
para a legitimação da escrita feminina. Masé Lemos mostra que uma
das razões que levaram Cesar a estabelecer uma maior aproximação
com os poetas marginais foi o seu namoro com Luis Olavo Fontes,
que já circulava entre os grupos de escritores e universitários de letras
e comunicação da PUC e UFRJ. Fontes frequentava as reuniões nas
quais os poetas confeccionavam seus livros e discutiam sobre assuntos
literários. Ele observa que havia nítida distinção entre homens e mulheres durante tais reuniões e que Ana Cristina era uma das poucas
mulheres entre eles, sendo a única assumidamente poeta num ambiente ainda machista, o qual Ana Cristina caracteriza como repleto
de exibicionismos.
A poesia marginal destoava dos padrões de criação e veiculação
predominantes até então, consolidando seu espaço pelas margens do
sistema, tendo como horizonte o desenvolvimento de modos alternativos de expressão. Ana Cristina César, contudo, se diferencia nesses
aspectos, possuindo um estilo próprio de escrita, fortemente influenciado pela leitura de escritores consagrados e de sua experiência com
a crítica e a tradução de obras de autoras como Katherine Mansfield e
Emily Dickinson. Nesse sentido, Ana Cristina está associada à vertente marginal da poesia pelos elementos característicos presentes em sua
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
48
produção poética, na qual trata de temáticas pessoais e referentes à sua
rotina, mas também se posiciona contrária ao regime vigente:
No Brasil da década de 1970, em que se insere a produção poética de
Ana Cristina Cesar, em meio aos anos da ditadura militar e da recrudescência das formas de repressão política e artística, Ana Cristina,
mesmo não refletindo diretamente sobre isso, abre sua lírica, como
poucos, para a articulação entre lirismo, existência e experiência histórico-social. Os anos 1970 representam um momento de frustração,
mas, paradoxalmente e talvez por esse motivo, revelam intenso
questionamento e arrefecimento de posições, por um lado, e, por outro, florescimento cultural e defesa de pontos de vista revolucionários,
marcando – tanto na arte quanto na sociedade – a ambigüidade da
concepção (pós-)moderna (Pietrani, 2009, p. 169).
A poesia desta geração manifestava a experiência coletiva do trauma
causado pelo cerceamento das liberdades individuais, principalmente no que diz respeito à expressão, em decorrência da censura experimentada pelo país naqueles tempos. Ana Cristina defende, em artigo
publicado pelo jornal Opinião em 1977, que as dinâmicas de produção dos poetas marginais, como a criação de cooperativas e propostas
de distribuição alternativas ampliou o círculo de potenciais leitores e
proporcionou uma maior participação do poeta no processo de elaboração da obra, já que ele está presente nos processos de construção
gráfica, impressão etc.
A produção de Ana diferenciava-se, portanto, pela constante interpelação de quem a lia, colocando o leitor na posição de seu interlocutor (por isso o amor às cartas), ao passo que fazia confidências sem,
no entanto, entregar inteiramente o que tinha intenção de dizer. Ana
Cristina Cesar e os poetas marginais tinham como marca característica
uma tendência a fazer uma espécie de mergulho reflexivo, apostando
no questionamento de certezas pré-concebidas ao invés de embarcar
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
49
em projetos coletivos já consolidados. A poesia de Cesar tem verdadeiro fascínio pela prática da correspondência, da escrita de diários, bem
como a fusão de ambos em seus escritos:
Agora percebo por que a grande obsessão com a carta, que é na verdade
obsessão com o interlocutor preciso e o horror do “leitor ninguém” de
que fala Cabral. A grande questão é escrever para quem? Ora, a carta resolve este problema. Cada texto se torna uma Correspondência
Completa, de onde se estende o desejo das correspondências completas
entre nós, entre linhas, clé total (CESAR, 2013, p. 415).
Como pontos de contato entre a poesia da escritora e de seus
contemporâneos cariocas, podemos associar à referência ao efêmero e banal do cotidiano, à linguagem descontraída e o afastamento de uma postura sisuda das vanguardas daquele momento.
Texto em primeira pessoa, por diversas vezes realizando um procedimento que lembra o corte e costura ao incorporar registros diários
aparentemente insólitos ao longo do texto. Percebe-se na sua escrita a tentativa de exprimir aquilo que não é possível de dizer. Ana
destacava-se não só pela sua produção poética sofisticada e de qualidade, mas também pela dedicação acadêmica e ideológica, frente à
conjuntura política experienciada pelos brasileiros em fins da década
de setenta:
Esse pontapé foi colocá-la numa antologia de poesia marginal, que era
um tipo de poesia que se fazia na época, muito ligada à contracultura, uma coisa muito leve, muito performática, ligada ao rock n’roll, as
apresentações evidenciavam isso muito. Sempre tinha aqueles saraus
– na época não chamava sarau, mas chamava “artimanha” e os poetas
se apresentavam sempre com uma banda do lado, então era uma coisa
muito jovem, muito contracultural mesmo... E a Ana Cristina, que eu
botei nessa antologia, ela não era nada disso. Eu botei porque o texto
dela era bom e eu achei que ela era... eu não sei porque que eu botei,
mas ela virou uma poeta marginal por conta da companhia, e é mui-
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
50
to interessante porque essa convivência dela (não fui eu que liguei ela,
aos marginais, evidentemente, mas... era a geração dela, ela era muito
geracional, apesar de ela ter uma cultura inglesa muito forte por via
da família, apesar de ela ter uma coisa com a literatura muito erudita, muito cuidadosa, ela lia muito e fazia uma certa diferença com os
companheiros... eu, que era mais velha, e que tava muito ligada àquelas pessoas, muito ligada àquela turma, eu via que ela se dava muito
bem, ela (acho isso tão interessante)... ela pertencia sim àquele grupo:
ela namorava sim alguns poetas, ela ia passar fim de semana lá na fazenda do Lui, onde todos iam, ela discutia o trabalho dela com essas
pessoas, mas ela era muito diferente dessas pessoas. Então criou-se uma
ambiguidade em relação à carreira da Ana, logo no lançamento, que
eu acho muito interessante, porque ela era realmente as duas coisas: ela
era contracultural sim; ela era uma roqueira sim, mas ao mesmo tempo
ela era uma Billie Holiday. Ela tinha uma coisa de passado, uma coisa
de outra cultura que vinha, o que fez dela uma figura tão especial, que
chama tanta atenção.32
Deste modo, torna-se relevante salientar o papel fundamental
exercido pelas coletâneas no sentido de reunir manifestações poéticas
e literárias, divulgando certos nomes que acabam por se tornar as vozes mais emblemáticas da década de 1970.
Considerações Finais
No presente trabalho buscou-se empreender uma síntese biográfica da trajetória de Ana Cristina Cesar, levando em consideração o
contexto político e social em que a escritora estava inserida, mapeando, ai da que de forma panorâmica, suas redes de sociabilidades e sua
associação à vanguarda cultural da época. Tendo em vista os elementos
apresentados, podemos constatar que, embora existam peculiaridades
na escrita da autora, ela compartilha de certas sensibilidades comuns ao
32Cf.HOLLANDA, H. B. Bate papo a propósito dos 60 anos de nascimento de Ana Cristina
Cesar. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=mpE3v_wJJUk. Acesso em: 20 de
março de 2022.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
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grupo da geração mimeógrafo como a tematização do cotidiano e a expressão de descontentamento com a repressão política da época. Todavia, fica claro que há uma especificidade da produção de Ana C. no que
diz respeito à constante interpelação ao seu leitor, ao tom confessional
de sua poética, que deixa entrever vestígios de sua intimidade, embora sem se revelar por completo. Percebe-se na sua escrita a tentativa
de exprimir aquilo que não é possível de dizer. Ana Cristina Cesar e
os poetas marginais tinham como marca característica uma tendência
a fazer uma espécie de mergulho reflexivo, apostando no questionamento de certezas pré-concebidas ao invés de embarcar em projetos
coletivos já consolidados. A poesia marginal que se consolidava naquele momento propunha uma mentalidade mais democrática no
que diz respeito à inclusão, ao incluir em seu conteúdo temáticas
questionadoras a respeito dos modelos que moldavam as relações de
gênero e sexualidade àquela época. E os escritos de Ana Cristina, nesse
sentido, abarcavam algumas dessas características.
Referências
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Paulo: Companhia das Letras, 2013.
DUARTE, Ana Rita Fonteles. Dizer é poder: escritos sobre a censura e comportamento no Brasil autoritário (1964-1985). Fortaleza: Imprensa Universitária,
2017
HOLLANDA, Heloísa Buarque de; GONÇALVES, Marcos Augusto. PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. Poesia jovem anos 70, v. 70, 1980.
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e
desbunde: 1960/70. Rio de Janeiro: Rocco, 1992
HOLLANDA, Heloísa Buarque de; PEREIRA, Carlos Alberto M. Org.. 26
Poetas hoje. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2007.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
52
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Bate papo a propósito dos 60 anos de nascimento de Ana Cristina Cesar. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=mpE3v_wJJUk. Acesso em: 20 de março de 2022.
LEMOS, Masé. Desentranhando ‘Lui’. Cronópios, Literatura Contemporânea
Brasileira, 2010. Disponível em: http://www.cronopios.com.br/site/artigos.
asp?id=4494. Acesso em: 19 nov. 2010.
MATTOSO, Glauco. O que é poesia marginal. Brasiliense, 1982
PEREIRA, C. A. M. Retrato de época: poesia marginal anos 70. Rio de Janeiro:
FUNARTE, 1981.
PIETRANI, Anélia. Experiência do limite: Ana Cristina César e Sylvia Plath:
entre escritos e vividos. Niterói: EdUFF, 2009.
RIDENTI, Marcelo. Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960. Tempo social, v.
17, n. 1, p. 81-110, 2005.
WILLIAMS, Raymond. Cultura e materialismo. São Paulo: Ed. da Unesp,
2011.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
53
CApítulo 3
Dos festivais de cinema ao Festival
Curta (C)errado: diálogos e provocações
do cenário audiovisual contemporâneo
Carla Miucci Ferraresi de Barros
Danton Oliveira Normandia
Capítulo 3
Introdução
As produções audiovisuais e o próprio cinema constituem uma
destacada relação com a sociedade e seus interesses, interpretações e
projeções da realidade. Nos últimos tempos, essa relação entre cinema
e História se tornou uma das principais fontes de problematização sobre a construção, através do filme e sua articulação entre as palavras,
imagens, sons e movimentos –, de diferentes narrativas e perspectivas
sobre a realidade, constituindo uma diversidade de pontos de vista,
ideologias e contextos (Kornis, 1992; Menezes, 1996; Rosenstone,
1998).
No entanto, considera-se a projeção de um filme – o que envolve
desde a sua produção à recepção por parte de um público – como uma
experiência social que não reproduz a realidade e, sim, se desenvolve
a partir dela em uma linguagem própria e inserida em um determinado momento histórico. Assim, a partir de Marc Ferro (1976; 1977), o
filme constitui, simultaneamente, um agente da história e um documento para a análise das sociedades que revela as crenças, as intenções
e o imaginário do homem (Ferro, 1976, P. 199; Ferro, 1977, p. 11-12).
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
54
Sob esses parâmetros, a criação e consolidação de festivais de cinema se tornou um espaço que investiga e aprofunda esse impacto
das produções audiovisuais e do cinema em diferentes sociedades e
realidades ao longo, sobretudo, dos séculos XX e XXI. Trata-se de um
evento que explora diferentes temáticas, formatos e expressões artísticas do âmbito cinematográfico, como também, articula momentos
que integram os profissionais do audiovisual com o seu público, tornando-se uma experiência cultural que procura engajar ambos participantes.
Desse modo, o presente artigo busca analisar as construções e as
trajetórias históricas dos festivais de cinema, assim como refletir sobre
os diálogos e provocações desses eventos e as respectivas produções
audiovisuais veiculadas e influenciadas sob diferentes conjunturas nos
últimos anos. Como esse objetivo, o enfoque em torno do Festival
Curta (C)errado é um movimento de exemplificação acerca das transformações e adaptações em curso para o audiovisual, principalmente
brasileiro, nesse período.
Os festivais de cinema: perspectivas e trajetórias
Ao se analisar a história do cinema e seu circuito de produção e
exibição, os festivais de cinema não são eventos recentes. Estruturam-se a partir de muitas transformações ao longo do tempo e a partir de
distintas realidades políticas, culturais e socioeconômicas que impactam o cenário audiovisual. Entre dificuldades e facilidades, os festivais
mantiveram e ampliaram sua presença e relevância entre os estudos e
as pesquisas sobre cinema desde o século XX aos dias atuais.
Em primeiro lugar, ressalta-se que é difícil caracterizar, de forma
unívoca, os festivais de cinema, considerando a diversidade de fun-
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
55
ções, formatos e estilos que envolvem a criação desses eventos. Diante
disso, Aida Vallejo (2014), a partir de Marijke De Valcke (2007), enfatiza que os festivais de cinema, enquanto redes e circuitos, tornam-se locais de passagem obrigatória para cineastas, produtores, atores
e até mesmo para diferentes públicos, visto que são eventos plurais e
relevantes para a produção, difusão e consumo de filmes (De Valcke,
2007 apud Vallejo, 2014, p. 21-22). Além disso, também são espaços
representativos e interconectados por atos, relações e rituais simbólicos, hierárquicos e de poder que indicam o panorama cultural e cinematográfico do momento.
Nesse sentido, Tetê Mattos e Antonio Leal (2009) complementam que a integração realizada pelos festivais de cinema, como mostras
periódicas e regulares, demonstra uma preocupação na promoção,
manifestação e disponibilização de produtos audiovisuais que ultrapasse a mera exibição de um filme (Mattos; Leal, 2009, p. 14). Assim,
evidenciam a capacidade desses eventos de incentivar a realização de
debates e formações sobre as políticas, tecnologias e metodologias
vinculadas ao audiovisual. Contudo, os autores ressaltam também a
importância da exibição dos filmes que, a partir da flexibilidade, da
estrutura e do formato desses festivais, “(...) geram um estimulante
processo de inclusão” (Mattos; Leal, 2009, p. 13) de lugares periféricos e de pessoas com pouco contato com o cinema.
Para além desse processo, os festivais de cinema, para Marcelo
Ikeda (2022), são influenciados e influenciam a realidade política,
social, cultural e econômica – desde uma especificidade local à uma
conjuntura global. Em razão disso, o autor reforça que, para além do
campo artístico ou estético, os festivais “(...) podem funcionar como
pontos de atenção para questões sociopolíticas que transcendem o
campo cinematográfico” (Ikeda, 2022, p. 186). Um exemplo disso se
dá na própria seleção das produções audiovisuais – a serem exibidas
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
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durante os eventos – que passam a ter essa preocupação para com o
mundo ao seu redor.
Ademais, uma gama de sentidos contrastantes percorre o entendimento e os estudos acerca dos festivais de cinema. Em primeiro lugar, conforme Ikeda (2022), há uma visão tradicionalista em relação
aos festivais que os caracterizam como espaços ou redutos destinados
aos cinéfilos (Ikeda, 2022, p. 185). Em concordância, Vallejo (2014)
ressalta que, a partir da constatação de festivais cada vez mais especializados e com temáticas específicas, existe um movimento, no cenário
audiovisual contemporâneo, de se produzir filmes direcionados ou
voltados exclusivamente para esses festivais (Vallejo, 2014, p. 16).
Sobre esse ponto, Cindy Hing Yuk (2011) e Joseph Palis (2015),
trazidos por Ikeda (2022), corroboram essa análise em torno dos festivais de cinema na atualidade. Para esses autores, os festivais fazem
parte ou estão inseridos no processo de globalização. Dessa forma,
contribuem tanto para formação quanto para consolidação de uma
estética global padronizada, construindo, por exemplo, um “mercado
de filmes artísticos” (Hing Yuk, 2011; Palis, 2015 apud Ikeda, 2022,
p. 188). Assim, apesar de existir um interesse e até um propósito de se
diferenciar da indústria cinematográfica hollywoodiana, alguns desses
festivais estão mantendo e reforçando uma lógica mercadológica no
cenário audiovisual.
Por outro lado, Eveline Stella de Araujo e Sabrina Demozzi (2021),
a partir dos trabalhos de Adriano Medeiros da Rocha e Emmanuelle
Dias Vaccarini (2015) e Stephanie Dennison (2019), detalham que os
festivais de cinema se tornaram uma “(...) contrapartida à ocupação
das salas de cinema comerciais pela indústria cultural, que pensa o filme como entretenimento” (Rocha; Vaccarini, 2015; Dennison, 2019
apud Araujo; Demozzi, 2021, p. 176). Uma realidade que impulsiona
esses festivais como “(...) espaços democráticos de produção artística”
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57
(Araujo; Demozzi, 2021, p. 177), ampliando uma diversidade de filmes e suas respectivas formas, expressões e visualidades.
Em aproximação a essa perspectiva, Aida Vallejo e Tânia Leão
(2021), destacam a relação dos festivais de cinema com os “cinemas
periféricos”. A partir da relevância e do protagonismo que esses eventos audiovisuais detiveram em parâmetros internacionais, elas revelam
que “(...) especialistas em cinematografias de diferentes regiões geopolíticas não-hegemônicas encontraram, nos festivais, um espaço fundamental para compreender (e aceder a) os seus objetos de estudos”
(Vallejo; Leão, 2021, p. 82). Assim, estende-se a democratização e a
inclusão desses festivais também em termos de oportunidades acadêmicas nessas últimas décadas do século XX e XXI.
Em relação aos estudos em torno dos festivais de cinema, um outro ponto a ser destacado são as classificações e periodizações que se
incorporam pelo caráter multidimensional e interdisciplinar atrelado
a esses eventos. De acordo com Vallejo (2014), a partir de De Valck
(2012), existem 4 divisões temporais dos festivais: a primeira fase entre
os anos de 1932 a 1968; a segunda fase entre os anos de 1968 a 1980; a
terceira fase entre os anos de 1980 a 2000; e, por último, a quarta fase
que se inicia no ano 2000 e permanece ativa na atualidade (De Valck,
2012 apud Vallejo, 2014, p. 26).
A última fase mencionada é o período correspondente aos objetivos e interesses deste texto. Ao relacionarmos o século XXI com os
festivais de cinema, temos, em simultaneidade, momentos de saturação ou crise, e de adaptações, transformações e inovações. Um cenário
que advém, principalmente, de fatores conjunturais que assolam realidades globais e/ou nacionais, desembocando, principalmente, em
questões políticas e econômicas – mas, também, em fato mais recente,
em circunstâncias sanitárias.
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Ao voltar para a realidade brasileira, essa periodização faz sentido. Os primeiros e mais longevos festivais de cinema nacionais, como
recorda Ikeda (2022)33, são oriundos da década de 1950, 1960 e 1970,
o que pode se associar as duas primeiras etapas classificadas acima. Enquanto que, de acordo com Izabel de Fátima Cruz, Juliana Muylaert
Mager e Tetê Mattos (2021), a consolidação dos festivais no país se
deu a partir da década de 1990, remontando as terceira e quarta etapas
supracitadas. Trata-se de um momento especial, visto que, conforme essas autoras, exibe-se um incentivo, desde leis de financiamento
cultural à associações de classe, para a organização desses eventos no
país34. Além disso, intensifica-se também estudos, debates e trabalhos
acadêmicos sistemáticos sobre os festivais de cinema nesse período em
diante (Melo; Mager; MattoS, 2021, p. 12).
Durante a década de 2000, especificando a última e quarta fase
da classificação dos festivais de cinema, é expresso por Ikeda (2022),
a partir de Tetê Mattos (2013), “(...) um cenário de diversificação da
natureza dos festivais de cinema no Brasil”(Mattos, 2013 apud Ikeda,
2022, p. 195). Assim, destaca-se o impacto do meio digital para a construção dos festivais e na produção de filmes, atualizando os olhares e
subjetividades imersos no ambiente e na comunidade cinematográfica do país. Um bom exemplo disso se dá pelo interesse “(...) sobre as
questões identitárias (...) quanto à participação de filmes produzidos
por negros, mulheres, indígenas, e corpos trans, queer e cuir, entre
outros grupos identitários” (Ikeda, 2022, p. 198).
33 O autor retrata o Festival Internacional de Cinema do Brasil (1954), Festival de
Brasília (1965), Festival de Gramado (1973), a Mostra Internacional de Cinema de São
Paulo (1977) e o Festival do Rio (1985) (IKEDA, 2022, p. 193-194).
34 Nesse ponto, Ikeda (2022) menciona a Lei Rouanet (Lei 8.313/91) e o Fórum dos
Festivais - criado no ano 2000 (IKEDA, 2022, p. 194).
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Em vista dessa realidade, Mattos (2013) traz uma classificação
temática que se insere tanto na realidade nacional quanto estrangeira ao se estudar os festivais de cinema. Para a autora, existem quatro
importantes categorias que influenciam as atuais produções audiovisuais: Festivais de Estética – que privilegia as diferentes formas e experimentos artísticos; Festivais de Política – que prioriza as questões públicas, causas coletivas ou bandeiras de militância política; Festivais de
Mercado – que se preocupa com a comercialização ou com o mercado
cinematográfico; e Festivais de Região – que destaca a estruturação de
eventos e filmes de produções locais ou de um determinado estado do
país (Mattos, 2013, p. 123).
Desse modo, compreende-se uma diversidade de definições, periodizações e classificações ao se estudar os festivais de cinema em suas
características, expectativas e reverberações. Desde o reduto de cinéfilos ao espaço democrático e inclusivo para cinemas periféricos, esses
festivais acompanham, entre permanências e rupturas, as transformações do cenário cinematográfico que impactam na seleção, exibição
e discussão das produções audiovisuais entre os agentes envolvidos e
presentes na construção e consolidação de diferentes temáticas para
esses eventos nos dias atuais.
Festivais de cinema na pandemia da covid-19
A incidência da pandemia global da covid-19 transformou e direcionou uma diversidade de atividades, relações e eventos presenciais
para o ambiente virtual/digital, diante da necessidade de se promover
o isolamento social como medida sanitária a partir do ano de 2020.
Sob essa realidade, a produção de festivais de cinema foi também impactada e desafiada por essa transição – desde a adaptação para novos
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formatos de exibição às mudanças quanto ao acesso e engajamento de
antigos e novos públicos.
De acordo com Vallejo e Leão (2021), as organizações e produtoras dos festivais de cinema realizaram uma série de testes para se adequar ao cenário de pandemia:
(...) desde o cancelamento inicial dos eventos, a sua recalendarização, a
celebração presencial com medidas especiais adaptada aos protocolos
de segurança (como a redução da taxa de ocupação das salas, o uso de
máscaras, o estabelecimento de distâncias mínimas entre as pessoas,
etc.), até a decisão de oferecer uma programação exclusivamente online, em regime híbrido (online e presencial), ou apenas presencial. (Vallejo; Leão, 2021, p. 80).
Em relação à migração para o formato online, Araujo e Demozzi
(2021) reforçam as mudanças para o modo de se fazer e estruturar os
festivais de cinema a partir dessa opção. De acordo com as autoras, os
organizadores passaram a ter novas demandas e entendimentos ligados à comunicação e às tecnologias digitais, desde as exibições em lives
às parcerias com plataformas de streaming e de redes sociais (Araujo;
Demozzi, 2021, p. 179-180), como o YouTube, Facebook, Instagram,
Vimeo e outros exemplos desse segmento.
Mas para além desse ponto, essas autoras também apontam que
essa transição para uma cultura virtual trouxe alternativas e transformações aos festivais de cinema em tempos de pandemia global. Desse modo, a adaptação realizada tanto reconfigurou as relações sociais
envolvidas com esses eventos audiovisuais quanto recriou, a partir de
novos procedimentos e técnicas, a experiência de exibição e recepção
dos filmes nesse período (Araujo; Demozzi, 2021, p. 183-184).
Em vista disso, ainda partindo das considerações de Araujo e Demozzi (2021), compreende-se que a transposição dos festivais de cinema do presencial ao virtual fornece uma lógica de consumo que se
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baseia, para as autoras, em uma programação algorítmica de gostos e
preferências – o que é comum nas plataformas de streaming existentes
e populares no cotidiano. Assim, o sentido desses festivais é deslocado
para o interesse do espectador que passa a ter o controle sobre a escolha do que se assistir e, conjuntamente, do que se assimilou acerca do
conteúdo assistido. Em suma,
A participação, portanto, não é somente assistir ao filme, mas comentar sobre os filmes nas redes sociais, escolher receber avisos no e-mail,
compartilhar as preferências nas diversas plataformas e participar ativamente da promoção do festival ou mostra, a partir desse viés de criação e inteligência coletiva (Araujo; Demozzi, 2021, p. 186).
Por essa razão, essas autoras complementam que a realização de
festivais de cinema online também acompanha uma tentativa de inclusão digital e cultural. Abre-se a possibilidade de uma pessoa participar e assistir filmes de um festival sem sair da sua casa e, ainda, utilizando os seus próprios aparelhos eletrônicos. Em tese, o formato virtual
pressupõe e direciona uma facilitação às barreiras geográficas e econômicas que afastam uma parcela do público dos eventos presenciais.
No entanto, essa oportunidade de ampliar e diversificar o público dos festivais de cinema através da migração para o ambiente virtual
esbarrou em um problema: a desigualdade digital. Do público aos organizadores e produtores, foi reconhecido que as condições materiais
e de conectividade, por exemplo, não eram as mesmas. Em um cenário
ideal, com igualdade de condições, era necessário prever, também, as
recorrentes falhas e desconexões durante a exibição e interação com
a programação dos festivais nesse modelo. Dessa maneira, apesar das
qualidades projetadas, os prejuízos também devem ser apresentados
– ainda mais no Brasil, conforme o IBGE (2020), em que um a cada
quatro brasileiros não tinham acesso à internet (Freire, 2020).
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
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Além disso, conforme Vallejo e Leão (2021), após um período de
entusiasmo inicial com os festivais de cinema virtuais, enquanto uma
novidade para o âmbito audiovisual, houve uma gradativa diminuição
de seu apelo e uma constatação da importância de se realizar eventos
audiovisuais presenciais. Para as autoras, os festivais virtuais, em suas
propostas e experiências acopladas em telas digitais, não superaram e
ainda se mostraram menos festivos e eficazes em relação aos seus antecessores (Vallejo; Leão, 2021, p. 81).
Assim, na medida em que se buscou, em um período de pandemia global, a integração aos festivais de cinema a partir de eventos,
relações e atividades virtuais, o resultado esperado não se concretizou
conforme as expectativas. A possibilidade de ampliar e diversificar os
espectadores – e sua participação partindo dos seus interesses – esbarrou em uma realidade que constatou, na prática, tanto a segregação
quanto o desinteresse por esse formato experimentado. Mas que não
significa que não tenha sido um completo fracasso e o processo de
hibridização desses festivais, mesclando o online e o presencial, é um
exemplo recente e permanente disso.
A história do Festival Curta (C)errado: projeto,
edições e futuro
O Festival Curta (C)errado35 é um projeto idealizado pela docente dos cursos de pós-graduação e graduação do Instituto de História
da Universidade Federal de Uberlândia (INHIS-UFU), Dra. Carla
35 As informações em relação ao festival em destaque neste artigo podem ser encontradas
no site oficial, disponível em: <https://www.festivalcurtacerrado.com.br/>. Acesso
em: 14 out. 2023.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
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Miucci36, e conta com a colaboração da docente Dra. Mônica Campo37, do mesmo Instituto. O evento bianual ocorre a cada dois anos
na cidade de Uberlândia-MG, com a programação em cartaz no Museu de Arte de Uberlândia (MunA). Até o presente momento, o festival contou com três edições nos anos de 2017, 2019 e 2021 – e com a
quarta edição prevista para outubro de 2023.
Trata-se de um festival que objetiva o fomento, a promoção e a
visibilidade de produções audiovisuais, com a especificidade de curtas-metragens, com reflexões que tratam e caracterizam o campo das
relações de gênero, cinema, memória, subjetividades e visualidades.
Assim, viabiliza uma perspectiva de análise sobre a historicidade das
enunciações e das representações dos afetos através das imagens, num
esforço de ampliação do horizonte de pesquisa das complexas (re)configuraçaões dos afetos que marcam profundamente as dimensões política, cultural e social no Brasil da atualidade.
Por ser um projeto de extensão da UFU, visa proporcionar, entre
a urgência e a necessidade, um diálogo entre os resultados de trabalhos,
reflexões e debates presentes no ambiente acadêmico com a sociedade.
Desse modo, o intuito do festival é alcançar as pessoas que estão além
dos muros da universidade, mediando questões e temas de relevância
política, social e cultural, como também, auxiliando no estabelecimento de parâmetros para ações concretas na realidade nacional.
36 Carla Miucci Ferraresi de Barros é doutora em História pela Universidade de São
Paulo (USP) e docente da graduação e do programa de pós-graduação do Instituto de
História (INHIS) da Universidade Federal de Uberlândia-MG (UFU). Pesquisadora
dos campos do cinema, das relações de gênero e das visualidades.
37 Mônica Brincalepe Campo é doutora em História pela Universidade de Campinas
(UNICAMP) e docente da graduação e do programa de pós-graduação Instituto
de História (INHIS) e do mestrado profissional em Tecnologias, Comunicação e
Educação da Faculdade de Educação (FACED) da Universidade Federal de UberlândiaMG (UFU). Pesquisadora dos campos do cinema, memórias, subjetividades e das
visualidades.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
64
As primeiras edições do Festival Curta (C)errado foram realizadas em formato presencial, contemplando curtas-metragens produzidos por diferentes diretores, companhias e produtoras e em uma
diversidade de cidades e estados do Brasil, tendo também exemplares oriundos de países estrangeiros. Nesses primeiros lançamentos,
o festival articulou uma proximidade quanto ao tema escolhido e a
estrutura organizacional para a exibição das produções audiovisuais
selecionadas.
A primeira edição, ocorrida em 2017 e intitulada de “Gênero e
Sexualidades”, tratou das relações de gênero, sexualidades e suas intersecções com as questões da violência contra a mulher, homofobia,
feminicídio, transfobia, diversidade sexual, transgeneridade, masculinidades, raça, direitos humanos e reprodutivos. Já a segunda edição,
ocorrida em 2019 e intitulada de “Corpos vulneráveis e vidas precárias”, tratou da precarização das vidas e da vulnerabilidade de corpos
em nossa sociedade, evidenciando também os preconceitos e potencializando reflexões interdisciplinares que tocam em temas problematizados na primeira edição.
Em contexto de pandemia da covid-19 no Brasil, o Festival Curta (C)errado, assim como tantos outros eventos e atividades culturais
e, principalmente, audiovisuais, realizou mudanças para se adequar
ao formato online ou remoto. No entanto, apesar dessa adaptação, o
projeto não somente continuou, como também aumentou o número
de inscrições de curtas-metragens de diferentes localidades do país, o
que, inclusive, reforçou o caráter nacional e a relevância do festival em
tempos difíceis para o audiovisual brasileiro.
Nesse sentido, a terceira edição, ocorrida em 2021, cujo título foi
“O medo nosso de cada dia”, teve como temática um dos principais
e corriqueiros estados emocionais em contexto pandêmico: o medo
e seus arrebatamentos que perturbam e amedrontam a alma e o cor-
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
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po humano, apresentando diferentes e sensíveis olhares, abordagens e
enunciações. Assim, buscou-se, a partir deste tema, o medo entendido
tanto em sua dimensão de afeto quanto em seu modo de percepção do
mundo atual e suas respectivas problemáticas éticas, políticas, sociais,
científicas e culturais.
Em preparativos para uma nova edição do Festival Curta (C)errado programada para este ano, o cenário de pós-pandemia influenciou
a organização do evento tanto para a permanência do formato online/
remoto da terceira edição quanto para o retorno do modelo presencial
das primeiras edições. Dessa forma, a prometida hibridização do festival simboliza a trajetória histórica perpassada pelo projeto nos últimos
anos.
A quarta edição, a ser realizada no final de 2023, é intitulada
“Antropocenas: entre o fim do mundo e futuros possíveis”. Um tema
definido com o intuito de dialogar com as crises que as sociedades capitalistas ocidentais enfrentam na contemporaneidade. Baseado em
valores que fundamentam a modernidade, como a racionalidade, o
progresso e o desenvolvimento sem limites, essas sociedades se encontram em meio a profundos conflitos ideológicos e políticos, como
também, de emergente estado de escassez, sobretudo do ponto de
vista climático e ecológico, afetando os campos do trabalho, do desejo,
da linguagem e da subjetividade humana no presente e em projeções
de um futuro próximo.
Diante desse histórico de edições, o Festival Curta (C)errado se
relaciona com as atuais discussões em torno dos festivais de cinema –
desde as periodizações às categorias classificadas por pesquisadores do
tema. Por conta de sua recente organização e das temáticas escolhidas
para a seleção e exibição dos curtas-metragens, o Festival Curta (C)
errado pode ser associado, por exemplo, com a quarta e última fase dos
festivais de cinema, conforme De Valck (2007, 2012).
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
66
Por outro lado, ao se refletir acerca das categorias temáticas classificadas por Tetê Mattos (2013), o Festival Curta (C)errado não se
projeta em um único nicho. Dentre as últimas e a iminente quarta
edição, o festival pode ser associado sob o ponto de vista estético, político e também de região. Mas, se for necessário escolher uma destas,
o Festival Curta (C)errado transparece, desde o princípio, seu caráter
e compromisso político – das questões de gênero e sexualidades, do
medo em um cenário de pandemia às crises vigentes nas atuais sociedades capitalistas. Além disso, presume-se, por fim, o que o festival
não se encaixa: os festivais de mercado e sua respectiva preocupação
com a comercialização do audiovisual.
Com esse legado em construção, estimam-se diferentes e plurais
manifestações e produções, do âmbito político ao cultural e artístico, discutindo e problematizando, de forma mais geral ou específica,
as transformações ocorridas e em ocorrência no país antes, durante e
depois da pandemia da covid-19. Nesse sentido, o Festival Curta (C)
errado se formaliza, a partir do cinema, como uma das muitas enunciações possíveis das diferentes conjunturas e transformações processadas no Brasil – e no mundo – dos últimos anos.
Considerações finais
Ao historicizar a trajetória dos festivais de cinema e suas intensas
transformações nas últimas décadas, a influência de novas demandas,
interesses e necessidades – desde formatos alternativos aos temas antes invisibilizados ou pouco mencionados – reforçou a importância
e a relevância desses eventos como possibilidades de se compreender,
com muitos diálogos e reflexões, um mundo em permanente (des)
construção.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
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Nesse cenário, a análise presente neste texto destaca, principalmente, a conturbada realidade impregnada por uma pandemia global
que intensificou (re)estruturações e (des)continuidades nas atividades
cotidianas de diferentes sociedades nos últimos anos. A realização de
festivais de cinema e a produção audiovisual foi uma das muitas experiências impactadas por esse período. Mas que, gradativamente, se
adaptou a partir de novas tendências, sendo o exemplo mais emblemático a migração para o formato online e suas especificidades virtuais e
digitais para o audiovisual.
Com o enfraquecimento e o fim do momento pandêmico em
escala também global, os festivais de cinema não apagaram as iniciativas potencializadas em período de pandemia para se retomar, integralmente, os formatos e características anteriores. As adaptações
experimentadas foram somadas ao retorno das atividades presenciais,
promovendo a hibridização dos festivais como uma solução que contempla, entre qualidades e dificuldades, os dois modelos.
Diante dessas constatações, o exemplo do Festival Curta (C)errado foi assertivo para elucidar as mudanças e projeções dos festivais de
cinema na contemporaneidade, inserindo também a realidade do audiovisual brasileiro nesse período de transformações e possibilidades
vivenciados pelo segmento em tempos recentes. Além de exaltar um
projeto que sintetiza os objetivos dos festivais e de suas produções: a
integração e inclusão sociocultural e política das pessoas.
Afinal, as sociedades atuais, como destacado por Araujo e Demozzi (2021), a partir de Machado Pais (2010), são consideradas “ocularcêntricas”, em que a imagem desempenha, em meio às diversidades,
uma função tanto epistêmica quanto simbólica acerca da realidade
(Machado Pais, 2010, apud Araujo; Demozzi, 2021, p. 179). Em razão disso, ser visto e ver o outro se tornaram ações importantes e inevitáveis para se sobreviver em um mundo cada vez mais dinâmico e
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
68
conectado. Assim, os processos de transição ou migração e, agora, de
convivência e interdependência entre os modelos online, híbrido e
presencial manifestam o intuito de se manter em obstinada visibilidade, comunicação e reconhecimento.
Por fim, é preciso salientar que a realização dos festivais de cinema e o fomento à cultura, sobretudo no Brasil dos últimos anos, não é
uma tarefa fácil e muito menos sem desafios. Trata-se de um setor que
conviveu com constantes ataques e sucateamentos, principalmente,
durante o último governo – encerrado em 2022 no país. Desse modo,
a continuidade desses eventos, mesmo sob transformações e desestímulos, expressa a defesa e a resistência em prol do audiovisual e sua
capacidade de promover debates e instigar a curiosidade sobre a realidade vigente e futura.
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Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
71
CApítulo 4
Metamorfoses, êxitos e controvérsias
do Fora do Eixo nos primeiros anos
(2005-2013)
Thiago Meneses Alves
Capítulo
4
Introdução
É substancial a bibliografia científica existente sobre o Fora do
Eixo (FdE), um dos mais influentes e controversos movimentos sociais do Brasil neste início de século XXI. Nesta literatura, caracterizada por diferentes enfoques e perspectivas teórico-metodológicas38, a
diversidade de conclusões é uma tônica. Estas podem variar do elogio
e celebração às críticas severas. Tal fato mostra o caráter paradoxal e a
dificuldade de apreensão deste objeto. Estas pesquisas ora perspectivam o FdE como um movimento de resistência contra-hegemônico
que utiliza novas estratégias organizacionais (Barcellos; Dellagnello,
2014). Ora um movimento baseado na “autopromoção, espetacularização do seu protagonismo e a informalidade nas relações de trabalho” (Fonseca, 2017, p. 334), marcado pela violência simbólica entre
os membros (Fonseca, 2015).
381 Alguns dos exemplos mais notórios nesta bibliografia, que demonstram esta diversidade
de abordagens, são: a Teoria Política do Discurso para a análise de organizações contrahegemônicas (Barcellos; Dellagnelo, 2014); a etnografia, no âmbito da Antropologia Social, para
analisar a ressignificação da vida íntima a partir do trabalho coletivo (Irrisarri, 2015); a interface
Comunicação e História Cultural para a análise das práticas de violência simbólica empregadas
(Fonseca, 2015), da autopromoção superdimensionada e informalidade nas relações trabalhistas
(Fonseca, 2017).
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
72
Sem pôr em causa categoricamente uma ou outra destas conclusões, o texto busca uma síntese crítica da primeira fase do FdE (20052013), analisando êxitos e controvérsias, antes da reformulação que
daria origem ao seu desdobramento mais conhecido atualmente, o
Narrativas Independentes Jornalismo e Ação, ou simplesmente Mídia
Ninja. Para isso, propõe uma reavaliação, com o olhar distanciado no
tempo, das principais modificações (morfológicas, estratégicas e discursivas) que compreenderam a passagem de um ativismo focado na
música independente para um movimento social de feições mais amplas, cujo objetivo passou a ser a disputa por narrativas e imaginários
em vários âmbitos artísticos, culturais e políticos.
Para a empreitada que segue, foi adotado o seguinte percurso:
uma breve contextualização do FdE no recorte de análise (20052013), sublinhando a passagem de uma articulação de quatro coletivos musicais que compuseram inicialmente o movimento para uma
plataforma de ação política baseada no midiativismo; a avaliação dos
principais êxitos, assim como dos pontos controversos, do FdE neste
período; a síntese crítica da atuação do FdE no Brasil neste início de
século XXI.
Fora do Eixo: do circuito musical à plataforma de
ação política em rede (2005-2013)
O FdE surgiu em 2005 a partir da articulação de quatro coletivos
culturais de Cuiabá (MT)39, Uberlândia (MG), Londrina (PR) e Rio
Branco (AC). O intuito inicial era a estruturação de um mercado de
392 Dos coletivos fundadores, é inegável o protagonismo do Espaço Cubo, surgido em 2002 em
Cuiabá. Esta importância decorre, entre outros fatores, pela gestação de tecnologias sociais que
marcaram a atuação do FdE (o Cubo Card, por exemplo) e pelos nomes do núcleo duro do FdE
oriundos do coletivo como Lenissa Lenza e Pablo Capilé.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
73
música independente no Brasil. Inicialmente, estas estratégias foram
amparadas no seguinte tripé: a circulação de artistas pelo território
brasileiro, composto já por um notável conjunto de festivais de música
independente espalhados fora do eixo Rio-São Paulo, mas ainda pouco
articulados; o intercâmbio de tecnologias sociais entre os festivais, com
possibilidades de replicação destas estratégias nos variados territórios
em que o FdE chegava; o escoamento dos produtos gerados nestes contextos “periféricos”, privilegiando a nova rota que vinha sendo criada
neste processo.
As principais ações do FdE neste período, fundamentais na consolidação da sua “marca” no panorama cultural brasileiro, foram (Savazoni, 2014): a criação do Grito Rock, festival que ocorre no período
próximo ao carnaval e que chegou a reunir mais de 100 eventos no
Brasil e no exterior; o protagonismo na criação da Associação Brasileira de Festivais Independentes (Abrafin) em 2005; o lançamento da
plataforma digital Toque no Brasil, utilizada para a divulgação e inscrição dos artistas nos eventos do FdE; a criação de moedas sociais,
cujo exemplo mais conhecido foi o Cubo Card.
Não tardou para que houvesse uma expansão territorial rápida.
Dos quatro coletivos que iniciaram os trabalhos em 2005, o FdE alcançou em meados de 2011 a expressiva marca de 106, distribuídos em
quase todas as unidades federativas e em alguns países da América Latina. A entrada definitiva no “eixo” do país ocorreu também no ano
de 2011, com a fundação da Casa Fora do Eixo São Paulo (CAFE-SP)
(Alves, 2013). Neste processo, o FdE passou a incluir outras pautas
para além das questões musicais, o que culminaria na formatação de
uma rede de cultura.
Naquela altura, o FdE passou a apresentar a seguinte configuração: 1) frentes temáticas (música, software livre, clube de cinema,
partido da cultura, letras, palco, nós ambiente, poéticas visuais); 2)
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
74
frentes produtoras (intercâmbio, distro, agência, tecnoarte); 3) frentes mediadoras (banco, universidade, multimídia, partido). As frentes temáticas representavam as linguagens artísticas (música, clube de
cinema, letras, poéticas visuais, palco) e políticas (software livre, partido da cultura, nós ambiente) que passaram a compor o FdE após a
escolha por dialogar com outros segmentos sociais além da música independente. As frentes produtoras estavam responsáveis por colocar
em prática o trabalho projetado pelas frentes temáticas. Já as frentes
mediadoras eram as responsáveis por elaborar formas de sistematização, mapeamento, pesquisa e sustentabilidade da rede.
A transição de um circuito musical para uma rede de cultura
ocorreu a partir dos diálogos com outros movimentos, frentes e linguagens artísticas e políticas. O próprio fomento de um segmento
como a música independente, que ganhava contornos cada vez mais
expressivos naquela altura, incentivava o diálogo com outras frentes
do movimento cultural: questões referentes à sustentabilidade, às tecnologias para produção e circulação das obras, às políticas culturais,
etc. Nestes diálogos, crescia a percepção de que era necessário expandir o raio de atuação das atividades.
A rápida expansão do FdE não estava ligada somente à chegada a
novos territórios a partir das demandas da música independente. Mas,
sobretudo, à percepção de que o grosso das necessidades e reivindicações de diversos segmentos organizados da sociedade possuíam vários
pontos em comum. É neste sentido que a articulação com outros segmentos sociais, com reivindicações semelhantes, maximizada pelo uso
das tecnologias digitais e baseada num trabalho cooperativo, começa a
ser vista como central.
A partir de 2011, o FdE começa a dar sinais de uma nova modificação substancial baseada numa politização ainda maior das ações. Al-
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
75
guns dos eventos marcantes nesta passagem foram (Savazoni, 2014):
a criação do Mobiliza Cultura, articulação de grupos de oposição à
Ana de Holanda, considerada desmobilizadora de pontos importantes do período Gilberto Gil/Juca Ferreira; a realização da Marcha da
Liberdade, em São Paulo, enquanto reação à violência da polícia na
manifestação pacífica da Marcha da Maconha; oposição à candidatura
de Celso Russomano à prefeitura de São Paulo em 2012 a partir do
evento #ExisteAmoremSP. Estas ações abriram caminho para a adoção mais incisiva do midiativismo como principal estratégia de atuação do FdE, possibilitando a passagem de uma “rede de coletivos de
produção cultural” para uma “plataforma de articulação política em
rede” (Savazoni, 2014). A efetivação desta passagem se daria em 2013
a partir da cobertura dos protestos em diversas cidades brasileiras pela
Mídia Ninja.
Ações exitosas do Fora do Eixo
A Visibilidade da música independente brasileira via apropriação das
tecnologias digitais
A apropriação das tecnologias digitais é um procedimento fundamental na viabilização de várias iniciativas de segmentos musicais
independentes neste início de século XXI no Brasil (Alves, 2018).
Este tipo de processo significa mais autonomia do usuário no manuseio e mesmo na modificação do artefato tecnológico (Albagli; Maciel,
2011). Além de possibilitar o preenchimento de uma importante lacuna até então – a produção e divulgação de registros fonográficos de
qualidade –, a apropriação das tecnologias digitais foi fundamental
também no incremento das conexões entre contextos culturais his-
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
76
toricamente marginalizados no Brasil nos primeiros anos do século
XXI.
Uma das principais façanhas do FdE no início das suas atividades
foi, em parceria com a Associação Brasileira de Festivais Independentes (Abrafin), promover a unificação de uma série de eventos musicais
que desenvolviam atividades importantíssimas nos respectivos contextos locais de produção cultural a partir da troca de informações mediadas pelos então novos dispositivos tecnológicos. No final de 2011,
esta rota contava com 44 festivais distribuídos em todas as regiões do
país (Alves, 2013). Algo nunca antes visto no cenário da música independente brasileira até então.
O êxito, no final dos anos 2000, do grupo Macaco Bong no cenário nacional, cujos membros eram ligados intimamente ao FdE, é
um dos acontecimentos mais emblemáticos deste período. Oriunda de Cuiabá (MT), a banda figurou em importantes programações
culturais40, travou parcerias com cânones da cultura nacional como
Gilberto Gil41 e alcançou o posto de melhor lançamento da música
brasileira em 200842. A forma como o grupo trabalhava a sua carreira,
explícita no título do álbum Artista igual pedreiro, era clara: o artista
não apenas cria a obra, mas coloca a “mão na massa”, participando da
produção-executiva, divulgação e militância em prol da música independente. Nesta altura, vários outros nomes deste segmento conseguiram destaque na crítica musical, muitos deles ligados ao FdE.
Essas movimentações contribuíram para alçar a produção independente brasileira a um novo status, indo ao encontro das previsões
403 Os principais festivais independentes do Circuito da Abrafin, do SESC, assim como abertura
para artistas importantes como o System of a Down em 2011.
414 O Macaco Bong, em 2011, acompanhou Gilberto Gil no espetáculo Futurível.
425 Na clássica lista da revista Rolling Stone, que naquele ano contou com nomes importantes da
música brasileira como Ney Matogrosso, Marcos Valle, Tom Zé e Gilberto Gil.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
77
mais otimistas sobre as potencialidades da Internet no fomento de iniciativas culturais fora da programação mainstream, bastante comuns
naquela altura. Contudo, e assim será discutido mais à frente, o modus operandi utilizado pelo FdE neste processo foi marcado por vários
questionamentos.
A organização em rede
Algumas das principais características das redes são: intensidade
dos fluxos – de informações, pessoas, mercadorias; conexidade, ou seja,
a propriedade de conectar instâncias, pessoas, etc. Estes “lugares” de
conexões são os nós das redes. Ao mesmo tempo em que conectam,
promovendo diálogo e solidariedade, as redes são também excludentes,
na medida em que os organismos e mecanismos de gestão das mesmas
não são neutros. Em outras palavras, mecanismos de discriminação
também marcam as redes: “[...] nunca lidamos com uma rede máxima,
definida pela totalidade de relações mais diretas, mas a rede resultante
da manifestação das coações técnicas, econômicas, políticas e sociais”
(Dias, 1995, p. 148).
Apreender este caráter paradoxal das redes é fundamental para
examinar o funcionamento do FdE. Afinal, o movimento foi, por um
lado, importante na conexão de iniciativas artísticas, políticas e culturais, historicamente marginalizadas no contexto do Brasil. Por outro
lado, foi acusado diversas vezes de boicotar opositores – quem não
partilhasse não apenas dos seus valores, mas também dos modus operandi empregados.
Do ponto de vista dos êxitos, o FdE reuniu uma diversidade de
segmentos (músicos, ativistas ambientais, cineastas, professores universitários, políticos, atores, entre outros) num esquema muito afina-
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
78
do ao de movimentos sociais contra-hegemônicos. Além da organização em rede, viabilizada pela apropriação das tecnologias digitais, estes
movimentos têm como outra característica fundamental a articulação
entre coletividades bastante distintas. Esta articulação das “diferenças”
é substancialmente diversa de formas clássicas de representação no capitalismo industrial, organizadas, sobretudo, em torno da classe social
(proletariado) ou identidade regional ou nacional.
No caso do FdE, essa articulação de segmentos sociais pôde ser
verificada na diversidade das suas frentes de trabalho. A escolha por
extravasar o âmbito específico da música independente, passando a
dialogar com outros segmentos sociais, mostra o (re)conhecimento
destas dinâmicas sociopolíticas. A percepção de que as formas de se
organizar enquanto movimento contra hegemônico, assim como as
pautas que animam tais ações, tornam-se mais expandidas e complexas. Esta postura, afinada com as políticas públicas culturais progressistas adotadas na altura pelo Ministério da Cultura, explica em grande parte o rápido crescimento do FdE nos seus primeiros anos.
As ações conjuntas com outras redes
“A rede é o elemento específico que convoca os novos sujeitos e
torna ativa a cooperação; poderíamos dizer que ela atualiza a virtualidade produtiva constituída pela sociedade. Mas a rede [...] é na realidade uma rede de redes” (Cocco; Silva; Galvão, 2003, p. 10). Ou
seja: redes, tendencialmente se conectam com outras redes. Este tipo
de organização possibilita o compartilhamento em fluxo contínuo de
informações, permitindo uma cooperação mais efetiva.
O reconhecimento da importância não apenas de se organizar,
mas, também, se conectar com outras redes, foi levado a cabo pelo
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
79
FdE. No final dos anos 2000, o movimento compôs o projeto Cultura
de Red. A iniciativa, ocorrida no âmbito de vinte países ibero-americanos, tinha o objetivo de promover a integração de redes artísticas, culturais e de conhecimentos. As redes que integraram o projeto eram:
Comissão Nacional dos Pontos de Cultura, Cultura Senda, Cultura
e Integración, Festival Cena Contemporânea, Circuito Fora do Eixo,
Rede Sudamericana de Danza. A conexão e diálogo com outras redes
foi certamente elemento central para a expansão do FdE para além do
contexto brasileiro.
A proposição de novas formas de ensino e aprendizagem
Muito se tem discutido nos últimos anos sobre alternativas aos
modos estabelecidos de ensino formal em todos os níveis. Nestes debates, um tópico de destaque são as críticas ao sistema escolar tradicional (Bentes, 2012), historicamente, parte de um modelo mais amplo
de gerenciamento social amparado em estruturas disciplinares (César,
2004).
No âmbito dos questionamentos sobre a estrutura disciplinar da
escola tradicional são propostos novos modos de produzir e divulgar
saberes. Afinada com essas pautas, o FdE, por meio da frente mediadora Universidade Fora do Eixo, começou a desenvolver no final dos
anos 2000 um programa de formação a partir dos conhecimentos produzidos e compartilhados pela rede. Estes agentes buscavam, mais especificamente, replicar e sofisticar as suas tecnologias sociais a partir
de uma série de atividades formativas: colunas, vivências, imersões,
com um corpo docente formado por membros orgânicos e convidados externos, num modelo de aprendizagem substancialmente diverso daquele verificado na Escola ou Universidade tradicionais.
A crítica posta em prática com estas ações era voltada ao modelo
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
80
tradicional de ensino pouco afinado com as potencialidades oferecidas pelo ambiente digital, verificado nas divisões disciplinares estanques, verticalização, burocratização e pouco inclusivo. Nas palavras de
um dos membros mais ativos do FdE, “Vistas como espaços de “encarceramento” (...), é difícil não posicionar a Escola tradicional no mesmo paradigma disciplinar que regia fábricas-hospitais-prisões (como
apontou Michel Foucault)” (Bentes, 2012).
O FdE, através destas ações, sugeriu modelos de formação baseados no compartilhamento de conhecimento mais efetivo entre os
agentes, algo que, em última análise, tocou em questões sensíveis sobre os modos tradicionais de ensino. Porém, e conforme argumentado
adiante, isso não significou horizontalidade na rede, uma vez que estas
e outras iniciativas conviveram paralelamente com fortes mecanismos
de verticalização e mesmo de exclusão.
O Reconhecimento da subjetividade que emerge das novas formas de
trabalho e cooperação
As fronteiras pouco definidas atualmente entre tempo de trabalho e a própria vida cotidiana trazem instabilidade, uma vez que tornam menos claras as noções de labor, descanso, ócio ou lazer. O que o
capital traveste de pagamento por produtividade ou flexibilidade dos
horários, não raramente são eufemismos para expropriação e ataque
aos direitos adquiridos historicamente pelos trabalhadores.
No caso do mundo do trabalho, há, por um lado, aumento das
jornadas e precarização dos vínculos empregatícios. Por outro lado, a
passagem de uma lógica de trabalho “disciplinado”, tão bem exemplificado pela linha de montagem da grande fábrica capitalista, para uma
lógica que exige cada vez mais cooperação e subjetividade do trabalha-
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
81
dor, pode também configurar um celeiro de estratégias que, fundamentalmente, vão de encontro às lógicas do próprio capital (Cocco,
2001).
O modo de organização das atividades, assim como as estratégias
discursivas que convenceram agentes de procedências diversas a investirem suas forças de trabalho na rede, mostra como a cúpula do FdE
assimilou bem as transformações mais recentes no mundo do trabalho.
Neste sentido, segundo membros do FdE, o movimento teria conseguido subverter a precariedade e fragmentação dos coletivos em uma
consolidada rede cultural, entre outras razões, por promover “experiências de vidas compartilhadas e espaços de convivência comunitárias
(com caixas coletivos e um novo comunitarismo)” (Bentes, 2012).
Em suma, foi o reconhecimento destas novas dinâmicas decorrentes das transformações no mundo do trabalho que possibilitou
ao FdE reunir um conjunto alargado de agentes, dos mais variados
matizes sociais, sob o seu guarda-chuva conceitual. Agentes que se
identificaram com um trabalho coletivo, militante, que se alinhava às
dinâmicas contemporâneas de cooperação e solidariedade dos movimentos sociais mais recentes. Porém, e conforme discutido a seguir,
esta mesma forma de organização do trabalho foi uma das principais
problemáticas apontadas pelos críticos do FdE.
As principais críticas ao Fora do Eixo
Precarização do mercado musical independente
Uma das principais críticas ao FdE desde os primórdios do movimento diz respeito à precarização do mercado musical independente
brasileiro. Dentre as várias discussões públicas a respeito deste ponCultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
82
to, a iniciada pelo músico João Parahyba, em 2010, foi uma das que
teve mais repercussão. O artista publicou um manifesto em tópico da
Rede Música Brasil, posteriormente divulgado no website Scream &
Yell, com mais de 500 comentários.
Cinco problemáticas principais emergiram nestas discussões
(Quines, 2011): 1) a remuneração dos músicos (baixas ou mesmo inexistentes); 2) a exclusão de artistas opositores do circuito de festivais
da Abrafin; 3) repetição excessiva de nomes nas escalações dos festivais; 4) preponderância do ativismo empreendedor sobre a qualidade
estética; 5) o papel secundário atribuído ao músico nas discussões e
ações adotadas.
No tocante aos baixos ou inexistentes cachês (ponto 1), as críticas questionavam um argumento que se tornou recorrente em vários
eventos organizados pelo FdE, muitos dos quais, com parte dos recursos de editais públicos: os festivais deveriam ser encarados como
“vitrine” pelos artistas, mais do que fonte de renda. Assim, ainda que
em muitas ocasiões não recebessem o valor do cachê pelos concertos,
seria a oportunidade para os artistas promoverem o trabalho junto
ao público e aos jornalistas mais especializados, formarem parcerias,
travarem contatos, atualizarem conhecimentos (existiam muitas atividades de formação nos festivais para público, gestores e artistas),
viabilizarem turnês nas localidades do evento e vender merchandising
(camisas, CDs etc.).
Outra crítica recorrente dizia respeito à exclusão, do circuito de
festivais da Abrafin, dos artistas que não aceitassem o modelo empregado pela entidade (ponto 2). Houve mesmo uma analogia com o
modelo do “jabá” das rádios - execução das músicas via pagamento.
O recurso que deveria ser investido, no caso, seria o próprio concerto
dos artistas. Esta lógica teria contribuído para a repetição de muitos
nomes nas escalações do circuito de festivais (ponto 3). Assim como
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
83
teria suscitado o questionamento sobre o que pesaria mais nestas escalações: a qualidade estética do artista ou a capacidade de se adaptar ao
novo modelo proposto – que pressupunha principalmente o ativismo
empreendedor em torno da causa da música independente (ponto 4).
Por último, havia um sentimento forte entre vários músicos de um
enfraquecimento da categoria neste novo tipo de ativismo, sobretudo
quando comparados aos produtores de festivais e gestores de espaços
culturais (Ponto 5).
Estes tópicos ainda hoje pautam discussões no mercado musical
independente. Não é possível reproduzi-los com a devida profundidade no âmbito restrito deste texto. O que importa sublinhar, a partir
da fala dos artistas, promotores e gestores culturais que participaram
deste debate, é: o FdE marcou o mercado musical independente brasileiro com práticas paradoxais – ora consideradas catalisadoras, ora
predatórias, deste mercado.
Informalidade e hierarquia nas relações de trabalho
Um dos fatores mais controversos na atuação do FdE é a informalidade nas relações de trabalho (Fonseca, 2017). Por um lado, este tipo
de arranjo favoreceu à cooperação na rede, uma vez que o trabalho é
pautado na confiança mútua dos membros, que compartilham valores
e objetivos culturais e políticos. Por outro lado, há um extenso conjunto de lógicas nestas dinâmicas interpessoais que colocaram em causa
um pressuposto discursivo importante do FdE: o da horizontalidade.
No FdE, não havia relações de trabalho no sentido formal – carteira assinada, férias remuneradas, etc. O que normatizava o trabalho,
possibilitando o alto índice de produtividade, eram as relações de
amizade, afeto, afinidades políticas e senso de pertencimento à rede
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
84
(Fonseca, 2015). O paradoxo deste modelo é que, por um lado, há
cooperação orgânica, em moldes e valores substancialmente diversos
do mundo do trabalho convencional, com resultados notórios, vide
as inúmeras ações bem-sucedidas do FdE. Por outro lado, há um perigoso contraponto a conquistas históricas dos trabalhadores – período
de repouso entre turnos, adicional noturno, férias remuneradas, etc.,
acirrando a precarização do trabalho neste tipo de ambiente.
Além da precarização, a hierarquia em diversos níveis foi outra
característica marcante deste arranjo: pesos diferenciados no poder de
deliberação dos membros, proporcionais ao tempo e força de trabalho
colocados à disposição do FdE; tendência de perpetuação de algumas
figuras-chave neste ranking de influência; relações assimétricas entre
os coletivos (um ponto de articulação regional, via de regra, delegava
diretrizes a serem cumpridas pelos coletivos menores). Estas relações
hierárquicas foram verificadas também em episódios de repressão aos
dissidentes, apelidados de “papo reto” e “choque pesadelo” (Fonseca,
2015).
Imposição de pautas em fóruns e manifestações
A imposição das próprias pautas em fóruns, encontros e manifestações destinadas a deliberar diretrizes para os movimentos sociais
é outra crítica marcante feita ao FdE no período analisado. Dois dos
casos mais famosos na altura foram a Marcha da Liberdade, realizada
em maio de 2011 em São Paulo, e o III Fórum de Mídias Livres, realizado em janeiro de 2012 em Porto Alegre.
A Marcha da Liberdade foi um protesto proposto pelo FdE contra a dura repressão policial sofrida pelos manifestantes que participaram da marcha pela legalização da maconha naquela altura. Segundo
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
85
os críticos, o FdE e seus aliados (Casa da Cultura Digital e membros
do grupo de discussões Mobiliza Cultura) teriam modificado o teor
do levante. A princípio, este, que deveria girar em torno da repressão,
acabou por tomar um formato genérico (liberdade), que pouco tocaria no ponto que motivou o segundo levante: a truculência policial.
Segundo a crítica do Coletivo Passa Palavra, essa teria sido “a maneira
encontrada para neutralizar politicamente a marcha” (Passa Palavra,
2011). Para os críticos, a questão principal – a repressão do Estado –
foi esvaziada em um discurso genérico que não trataria com a devida
profundida a problemática.
No caso do Fórum de Mídias Livres, a crítica mais incisiva foi
feita pela Rede Universidade Nômade a partir do texto “O Comum
e a exploração 2.0”. Para estes agentes, o calendário, composição das
mesas e as pautas do evento teriam sido estabelecidos à revelia pelo
FdE e alguns grupos parceiros, sem a devida apresentação preliminar
aos ativistas. A maquiagem de um consenso, verificada na convergência “de cima para baixo”, estratégia típica da burocracia estatal ou dos
partidos políticos, teria sido a tônica neste caso (Uninômade, 2012).
Em suma: para os críticos, uma vez que diluiu o conteúdo político de uma grande manifestação (no caso da Marcha da Liberdade)
e formatou a programação de um grande evento (no caso do Fórum
de Mídia Livre), o FdE, mais do que promover o diálogo com outros
movimentos sociais, teria utilizado tais eventos para expandir a sua influência no cenário cultural e político brasileiro.
Utilização da máquina estatal para fins próprios
As críticas que apontam a utilização da máquina estatal pelo FdE
para fins próprios podem ser resumidas em dois pontos principais: a
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
86
captação de recursos via editais de financiamento; o lobby via frente temática PCult (Partido da Cultura), parte importante do organograma
do FdE na altura.
Sobre o primeiro ponto, o questionamento principal é o fato de
as principais fontes de recursos do FdE serem públicas. Os críticos sublinhavam a postura contraditória do FdE em renegar certos arranjos
típicos do século XX como o trabalho formal e assalariado ao mesmo
tempo em que buscavam convictamente o Estado para o financiamento das empreitadas culturais a partir dos editais de financiamento
cultural (Passa Palavra, 2011).
Além das críticas com relação à captação de recursos via editais,
há aquelas também que apontam a participação na política partidária
via PCult. Para os críticos, mais do que um movimento suprapartidário destinado a discutir questões referentes à cultura, esta frente configurou uma ferramenta para apoiar candidatos que tivessem em seus
programas pontos de interesse do FdE.
Fortalecimento da marca “Fora do Eixo” a partir da exploração do trabalho dos coletivos
Para os críticos mais severos, o problema principal do FdE estaria na utilização do mesmo tipo de estratégia dos principais modelos
de negócios das megacorporações do ambiente digital. Mais do que
produzir – conteúdos, produtos, etc., - a cúpula do FdE teria se especializado na captura do produto do trabalho disperso de pequenas e
médias iniciativas do setor cultural. Foi novamente o grupo Universidade Nômade quem dissecou esta hipótese. Para estes agentes, o que a
cúpula do FdE teria promovido no movimento de expansão, que conectava coletivos distribuídos nos mais diversos contextos territoriais
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
87
brasileiros, era a valorização da sua própria marca. Em outras palavras,
o FdE, mais do que contribuir com os coletivos, angariava os louros do
capital social e simbólico produzidos nestas conexões.
Assim como as grandes corporações que hoje dominam o ambiente digital, o FdE teria se especializado em usufruir da cooperação, antes difusa, dos coletivos. Este fenômeno, aliado às disputas
por protagonismo no panorama cultural brasileiro, fez com que, não
raramente, o FdE associasse “(...) sua marca de forma indiscriminada a eventos de parceiros ao ponto de inflacionar a própria atuação”
(Fonseca, 2017). Neste processo, o FdE, de tabela, criava tensões e aumentava as críticas de agentes e instâncias que se sentiram injustiçados
nestes relacionamentos.
O consenso que permitiu a atuação articulada entre coletivos
foi viabilizado, entre outras estratégias, pela construção do discurso
do pós-rancor. Termo utilizado inicialmente no Congresso Nacional
Fora do Eixo de 2010, foi muito movimentado na altura para definir
um segmento do ativismo social mais pragmático, propositivo, pronto para a ação – em contraste ao ativismo mais tradicional, cuja predisposição à reclamação e ao ressentimento, em suma, ao rancor, seria
mais forte (Sanches, 2011; Youssef, 2011).
Num resumo esquemático, a crítica da Universidade Nômade é
a seguinte: o FdE configurou um mecanismo complexo especializado
na incorporação de outras redes de agentes (mais do que num efetivo
diálogo); estas incorporações consistiam no fortalecimento da própria
marca (mais do que no compartilhamento efetivo de recursos, saberes
e experiências); um dos principais pontos para a articulação do consenso entre os coletivos foi a formulação do discurso pós-rancor; no
fim, mais do que um movimento social contra hegemônico, o FdE era
um grupo de gestores de redes com estratégias similares a das princi-
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
88
pais instâncias hegemônicas do capitalismo contemporâneo: captura
dos frutos do trabalho difuso de instâncias pouco articuladas.
Conclusões
A análise do FdE nos primeiros anos de sua existência permitiu
identificar um movimento social complexo e, por isso mesmo, de difícil apreensão. Quer pelo organograma em constante transformação,
quer pelas estratégias utilizadas, cujas controvérsias entre os pares da
militância cultural e política configuraram uma das principais marcas.
Passados alguns anos, analisar este movimento superando a tendência
polarizadora que se instalou em alguns debates públicos é ainda necessário.
Em linhas gerais, as ambiguidades podem ser resumidas no fato
de que o FdE, desde o surgimento, adotou práticas que mostraram
o reconhecimento das tendências de um novo regime social, político, econômico e tecnológico. Não é por acaso que o movimento logo
extravasaria as ações restritas à música independente e passaria a dialogar com outros segmentos sociais, organizando-se como uma rede
de atuação política a partir do uso intenso das tecnologias digitais. Ao
mesmo tempo, várias estratégias questionáveis marcaram essa expansão: precarização do mercado musical; informalidade e verticalização
nas relações de trabalho; imposição das próprias prerrogativas em fóruns de movimentos sociais; utilização da máquina estatal para fins
próprios; valorização da própria marca a partir da captura do capital
social, cultural e simbólico dos coletivos da rede.
No seu desenvolvimento, o FdE ajudou a difundir pautas importantíssimas no contexto nacional: morfologia em rede, novos modos
de organização do trabalho e de produção, sistematização e a difusão
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
89
mais democrática dos conhecimentos. O convencimento e mobilização desta força de trabalho, antes presente em núcleos de atuação limitados territorialmente e pouco conectados (os coletivos), deveu-se
à proposta que reconheceu as oportunidades e dilemas de um novo
quadro macroestrutural. A articulação nestes termos foi importante
– e deve ainda ser vista como estratégia fundamental de mobilização
de movimentos sociais.
Todavia, o FdE, enquanto rede que se destacou no cenário cultural brasileiro, trouxe à tona uma tendência deste tipo de organização:
o fato de que as redes configuram, também, mecanismos de exclusão
(Dias, 1995). A força motriz que conecta o que está de acordo com as
prerrogativas da cúpula da rede é a mesma que marginaliza o dissenso.
A aversão ao contraditório foi verificada quer nas intrincadas relações
de poder interpessoais e entre os coletivos, em contraste à apregoada horizontalidade. Mas também nas respostas evasivas às principais
críticas que vinham de outros movimentos, sobretudo após os incidentes de 2013, quando antigos membros deram uma série de depoimentos que desvelava os complexos mecanismos de exercício de poder
dentro do FdE.
Ainda que em termos gerais os questionamentos ao FdE sejam
necessários, é verdadeira também a necessidade de reapreciação de
algumas críticas no intuito de evitar avaliações generalistas e/ou linchamentos virtuais. No tocante aos pontos analisados neste trabalho,
dois são particularmente importantes: as disputas políticas envolvendo o PCult e o fortalecimento da marca “Fora do Eixo” a partir do
valor cognitivo produzido pelos coletivos filiados à rede.
No tocante ao PCult, é correta a crítica que aponta a utilização do
capital simbólico acumulado por toda a rede na captação de recursos
via editais públicos. Foi fundamental, neste processo, o mecanismo de
autopromoção exagerada e superdimensionamento das próprias realiCultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
90
zações (Fonseca, 2017). Assim como o lobby e adulação a certas figuras
públicas – políticas ou não – em troca de apoio à rede, mecanismo
comum nestas negociações e apelidados pelos próprios membros do
FdE de Egocard (Fonseca, 2015).
Porém, a crítica ao partidarismo e à adulação a personalidades em
troca de reconhecimento não pode tomar um teor de oposição purista que condene os necessários diálogos e negociações com a política
institucionalizada. Afinal, as disputas e conflitos em nome de projetos
específicos configuram aspecto fundamental das democracias. E algo
intrínseco a qualquer campo social relativamente sedimentado e especializado (Bourdieu, 2003). Portanto, mais do que pôr em causa a disputa de um projeto político, conforme verificado em algumas críticas
mais ácidas, as análises devem focar os termos em que estas batalhas
são travadas.
Tampouco é desprovida de fundamento a crítica sobre a captura
do capital simbólico produzido pelos coletivos (Uninômade, 2012).
Contudo, é importante não perder de vista a via de mão dupla deste
tipo de conexão, onde o balanço das perdas e ganhos para os envolvidos é muito mais complexo do que uma crítica generalista faz supor.
Seria muito pouco provável que o FdE adquirisse as dimensões alcançadas apenas promovendo exploração. Se, para um determinado coletivo, a parceria poderia significar sobretudo a captura do valor simbólico do seu evento por parte do FdE, para outro, localizado numa área
que não é contemplada pelas rotas de circulação de artistas, a chegada
de uma tecnologia social como o Grito Rock era estratégica para o
fortalecimento da cena local.
As Jornadas de Junho de 2013 marcaram uma virada na vida
política e social brasileira, propiciando a emergência de novos atores
e instâncias “[...] que levaram a um aumento da conflitualidade no
espaço público e a um questionamento dos códigos, sujeitos e ações
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
91
tradicionais que primaram no país durante as últimas duas décadas”
(Bringel; Pleyers, 2015, p. 4). Não por um acaso, há, nesta altura, mudanças significativas nas estratégias do FdE, que passa a atuar principalmente a partir do midiativismo. Neste movimento estratégico, o
FdE passa a divulgar a maior parte das suas ações sob o selo Narrativas
Independentes Jornalismo e Ação (Mídia Ninja). Isso, por um lado,
confirma o desgaste da “marca” Fora do Eixo perante os movimentos
sociais e a opinião pública. Ao mesmo tempo, reforça a hipótese do
conhecimento aprofundado que estes agentes possuem das dinâmicas sociais, econômicas, políticas e tecnológicas da sociedade brasileira
contemporânea.
Por fim, argumenta-se sobre a necessidade de continuação de pesquisas sobre o FdE e/ou Mídia Ninja – independente da forma que se
denomine atualmente. Afinal, os desdobramentos do FdE, com suas
várias transformações, êxitos e contradições fornecem importantes
pistas não apenas dos movimentos sociais contemporâneos no país.
Mas, de modo mais amplo, das pautas que animam os debates e lutas
no seio da sociedade brasileira neste início de século XXI.
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Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
95
CApítulo 5
Arte, ciência e trópico em
Gilberto Freyre (1962)
Messias Araujo Cardozo
Diego Stéfano Araujo Souza
Capítulo 5
Introdução
As aproximações entre os campos da Arte e da Ciência social
são fundamentais para uma compreensão problematizadora e mais
aprofundada das expressões artísticas na cultura. As artes fazem parte
da cultura e refletem aspectos da subjetividade humana e da vida social,
por isso, os sentidos sociais e a capacidade de intervenção em debates
públicos das criações estéticas, tornam-se cada vez mais visitados por
sociólogos, antropólogos e historiadores. As produções artísticas nos
trópicos são um objeto de estudo valioso para o entendimento das
culturas e sociedades que vivem nesta região.
O presente artigo tem como objetivo apresentar a relação entre
arte, ciência e trópico a partir da obra de Gilberto Freyre (1900-1987).
Obra multifacetada, repleta de ambiguidades, aspectos positivos
e negativos, pioneirismos e adaptações. A produção intelectual de
Freyre intriga leitores e estudiosos do pensamento social brasileiro.
Vários temas foram abordados pelo autor, dentre eles, a temática das
artes não foi ausente, embora ainda um aspecto pouco estudado pelos
que se dedicaram pesquisar sobre a obra do sociólogo pernambucano.
Dos vários livros que o autor escreveu, interessa particularmente
no presente trabalho, o livro Arte, ciência e trópico publicado no ano
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
96
de 1962, pela editora Martins. O texto é uma coletânea de ensaios
que versaram sobre temas ligados a uma sociologia da arte aplicada ao
estudo das artes simbióticas lusotropicais.
A partir disso, neste trabalho questionamos: o que seriam as artes
simbióticas de que falava Freyre? O que a lusotropicalidade freyriana
diz sobre as expressões artísticas? Que efeitos o colonialismo produziu
na arte lusotropical?
A sociologia da arte é um campo de estudo que explora a intrincada
relação entre arte e sociedade a partir de experiências culturais em um
dado local e tempo. Como disciplina de humanidades, investiga os
contextos, culturas e histórias que moldaram a produção, o consumo
e a interpretação artística. Ao examinar a dinâmica social em torno da
arte, essa disciplina procura desvendar a complexa teia de influências
artísticas no mundo da arte e da sociedade em geral.
A arte é parte integrante das civilizações, servindo como um
poderoso meio de expressão subjetiva e representação social. De
antigas pinturas rupestres a instalações contemporâneas, a arte reflete
as ideias, valores e aspirações de diferentes sociedades ao longo da
história. No entanto, a sociologia da arte vai além da mera apreciação
estética e investiga os processos sociais subjacentes que dão origem à
criação artística. Um dos aspectos-chave da sociologia da arte é seu
foco nas instituições e estruturas sociais que interferem na produção
artística. Os artistas não existem isoladamente; eles são influenciados
pelos contextos culturais, econômicos e políticos em que vivem e
trabalham.
Ao examinar esses contextos, os sociólogos da arte podem
lançar luz sobre os fatores que influenciam as escolhas, estilos e temas
artísticos. Além disso, a sociologia da arte investiga a dinâmica social
do consumo e interpretação da arte. Os sociólogos da arte analisam
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
97
como diferentes grupos sociais se envolvem com a arte, como suas
origens e identidades moldam suas interpretações e como a arte pode
reforçar e desafiar as normas sociais e estruturas de poder existentes.
Eles também exploram o papel da arte na construção de identidades
coletivas, promovendo a coesão social e promovendo a mudança
social.
A sociologia da arte é um campo interdisciplinar que se baseia
em teorias e métodos da sociologia, antropologia, estudos culturais e
história da arte. Pesquisadores neste campo empregam uma variedade
de métodos de pesquisa qualitativos e quantitativos, incluindo
entrevistas, observação participante, análise de conteúdo e análise
estatística, para explorar a relação multifacetada entre arte e sociedade.
Para Nathalie Heinich (2008, p. 62) “Não é de espantar, que a
sociologia da arte, tendo-se tornado um campo próprio da sociologia,
tenha, ela também, se emancipado da velha tutela da estética e da
história da arte, para caminhar por si mesma.”
O escritor brasileiro Gilberto Freyre, conhecido por seu trabalho
inovador em antropologia social, contribuiu muito para esse discurso.
As reflexões de Freyre sobre a sociologia da arte oferecem perspectivas
únicas, especialmente quando se examina o contexto brasileiro. Uma
das questões centrais levantadas por Freyre é como a arte reflete na
dinâmica social. Ele enfatiza a importância de entender o contexto
cultural e histórico de uma sociedade para compreender plenamente
suas expressões artísticas. Freyre argumentava que a arte não é criada
isoladamente, mas é profundamente influenciada pelas estruturas
sociais, raciais e econômicas de uma determinada comunidade.
Além disso, Freyre explorou o conceito de sincretismo na arte
brasileira. O sincretismo refere-se à mistura de diferentes elementos
culturais, muitas vezes resultando em uma paisagem artística única e
diversificada. Freyre acreditava que a história da colonização do Brasil
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
98
e a subsequente mistura de culturas indígenas, africanas e europeias
influenciaram profundamente sua arte. Esta fusão de diversas
influências culturais deu origem a uma rica tapeçaria de expressões
artísticas que refletem o complexo tecido social do país.
Outra questão instigante levantada por Freyre é o papel da arte em
desafiar as normas sociais e promover a mudança social. Ele argumenta
que a arte tem o poder de desafiar as estruturas de poder existentes
e trazer a transformação social. Ao retratar grupos marginalizados,
abordar as injustiças sociais e questionar as normas estabelecidas, a
arte pode servir como um catalisador para o progresso social.
As reflexões de Gilberto Freyre sobre a sociologia da arte fornecem
informações valiosas sobre a paisagem artística brasileira. Ao explorar
a relação entre arte e sociedade, compreendendo a influência do
sincretismo e reconhecendo o poder transformador da arte, Freyre nos
encoraja a ver a arte como um reflexo da sociedade e um catalisador
para a mudança social. Suas ideias continuam a moldar o campo da
sociologia da arte, inspirando estudiosos e artistas a aprofundar as
intrincadas conexões entre arte e sociedade.
Nesse sentido, nossa investigação busca apresentar e
problematizar as reflexões de Freyre sobre as artes no interior do
que o sociólogo denominou de “complexo luso-tropical de cultura”.
As artes “simbióticas” desse complexo eram uma dimensão da vida
social muito importante para Freyre. As artes luso-tropicais eram
um objeto de estudo distinto no interior de uma tropicologia, uma
ciência do trópico que Freyre buscou sistematizar por meio de cursos
e publicações.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
99
Tropicologia, uma possível ciência do trópico
Para Gilberto Freyre os trópicos eram um lócus de desequilíbrio, excessos e irregularidades. Eram o paraíso e o inferno. A tropicologia,
portanto, com vistas a superar o suposto inacabamento do Brasil, deveria combinar elementos exógenos da ciência europeia com a natureza
tropical (Leal, 2014, p. 279).
Em 1953 ao publicar um livro intitulado Um brasileiro em terras
portuguesas (Freyre, 1953) Freyre utilizou pela primeira vez o conceito
(Luso) Tropicologia. Considero essa obra um marco importante no
sentido da evolução teórica de suas ideias em torno do homem situado
nos trópicos, assim como da sua proposta de uma possível ciência
dos trópicos expressa de maneira categórica. No caso, o livro citado
trazia no subtítulo: introdução a uma possível luso-tropicologia. Duas
décadas antes, sustento que a partir de 1933 com a publicação de
Casa-grande & senzala, a Tropicologia já estava prefigurada na forma
de uma narrativa sobre a colonização lusa na América e os impactos
dessa experiência histórica na formação social do Brasil e do mundo
que o português plástico criou como a “primeira civilização moderna
nos trópicos”.
Os trópicos poderiam ser objeto de uma ciência social?
Freyre acreditava que sim. É possível perceber um movimento, no
interior da sua obra, nesse sentido. Do lusotropicalismo para uma
lusotropicologia, passando por uma hispanotropicologia, ambas no
interior de uma Tropicologia Geral. É pertinente indicar que as bases
teórico-conceptuais da Tropicologia Geral se confundiram com as
bases do pensamento freyriano como um todo (Vila Nova, 2000).
Sociologia genética, ecletismo metodológico, ecologia, critério de área,
democracia étnica, mestiçagem racial-cultural, heterodoxia teórica.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
100
Dessas bases, o que fica a impressão, é a forma como que sempre em
movimento do olhar de Freyre sobre o trópico.
De uma maneira ousada, poderíamos problematizar: A
Tropicologia seria uma espécie de visão em paralaxe dos trópicos?
“A definição padrão de paralaxe é: deslocamento aparente de um
objeto (mudança de sua posição em relação ao fundo) causado pela
mudança do ponto de observação que permite nova linha de visão”.
Partindo da definição de paralaxe proposta por Slavoj Žižek (2008, p.
32), seria possível considerar a tropicologia de Freyre como uma visão
em paralaxe dos trópicos? Os múltiplos olhares que Freyre lançou
sobre os trópicos, captando divergências complementares, bem
poderia se encaixar nessa definição, é o que pensou Eduardo Portela
(Portela apud Freyre, 2015). É possível que tal problematização pode
incomodar e até provocar no leitor um certo estranhamento, de
modo tal problemática pode ser lida como um disparate, afinal, é uma
tentativa de pensar uma quase teoria social a partir de um conceito –
que vem da Física – agenciado por um filósofo da Eslovênia.
Espaço da instabilidade, do perigo, dos rios caudalosos e inimigos,
do clima hostil, do sol escaldante, dos animais peçonhentos caindo
nas pessoas, enfim, todo um conjunto de “[...] formas perniciosas de
vida vegetal e animal, inimigas de toda cultura agrícola organizada e
de todo trabalho regular sistemático” (Freyre, 2006, p. 78). Foi dentro
e por dentro de condições de todo adversas a uma civilização que os
portugueses criaram uma civilização. Trópico: território ao sul da
civilização, longe da sociedade, morada de aborígenes sem religião,
regido pelo signo do pecado antropofágico, constituído de uma diversa
geografia, mas destituído de História. Nesse território desafiador, os
portugueses formaram a primeira civilização moderna.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
101
A arte lusotropical e sua importância para uma
tropicologia
Uma Tropicologia não poderia deixar de investigar o campo das
artes, a estética tropical, as manifestações artísticas, tanto as plásticas
como as cênicas, não excluindo as literárias. Os cursos sobre Arte,
ciência e trópico, que foram ministrados por Gilberto Freyre, primeiro
no Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, depois no Instituto
de Arte Contemporânea de São Paulo em 1959, foram publicados em
forma de livro em 1962. Os ensaios ilustram a importância da estética
para a Tropicologia. O subtítulo do livro: “sugestões em torno de
objetivos e métodos da sociologia da arte e de sua aplicação a situações
hispano-tropicais, em geral, e brasileiras, em particular” é significativo
dessa dimensão da vida social, que é a estética, de sua importância para
a possível ciência de Freyre.
No primeiro capítulo “Arte, ciência social e sociedade”, Freyre
argumenta:
Inicio, na Universidade do Recife, um curso de tentativa de Introdução à Sociologia da Arte aplicada a situações luso-tropicais num tom
que não é o dos sociólogos que se prezam de ser intransigentemente
científicos. Mas não me parece de todo impróprio dos sociólogos assumirem atitudes das chamadas construtivamente críticas, diante de
certos problemas de sua época e do seu meio, merecedores de estudos
sociológicos (Freyre, 1962, p. 26).
É interessante abordar mais essa questão da dimensão estética
e sua importância para a Tropicologia, sobretudo no que ela tinha,
segundo o seu criador, de inusual e de incomum na forma de abordar
essa mesma dimensão, que seria a sugestão de uma “estética mestiça”
(Pereira apud Cardão; Castelo, 2015, p. 82), situada no complexo
luso-tropical. Estudando os estilos artísticos a partir das influências do
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
102
contexto geográfico-cultural dos trópicos, seria possível analisar essa
estética mestiça e sua arte “simbiótica”.
Nos trópicos existe uma estética de tipo tropical, uma
tropicalidade estaria presente no campo das artes. Essa tropicalidade
merecia um estudo sociológico das artes aplicadas a situações hispanotropicais de ecologia e de cultura. No livro “Arte, ciência e trópico” de
1962, Freyre insistiu que a força sociológica das artes une os indivíduos,
enriquecendo e aumentando a apreciação da vida, integrando-o num
sistema de cultura.
Para um estudo da estética tropical, principalmente das artes
plásticas, era necessário usar de um critério a um tempo “analítico”
e “orgânico”. O analítico, teria como foco as questões de ordem
mais subjetiva das produções estéticas, considerando o estudo da
preponderância da escolha de certas cores, o estilo particular, as
referências, o traço específico, a estrutura interna do quadro, sua
linguagem singular. Esse critério analítico deveria ser aplicado
simultaneamente com o critério orgânico, cujo foco seria a relação da
produção artística com o meio, da relação arte e sociedade, precisando
de maneira sociológica e antropológica, sem dispensar o estudo da
filosofia e da história da arte, o lugar e a função da arte nos trópicos.
O estudo da estética tropical, rastreando os elementos de
tropicalidade presentes nas várias obras de arte regionais no interior
do complexo ibero-tropical, implicaria na consideração da arte como
exteriorização da cultura, no sentido de perceber as influências e
condicionantes sócio-culturais e ecológicas do trópico. Influências e
condicionamentos, não elementos determinantes. No interior de uma
Tropicologia, era fundamental que a dimensão estética, das expressões
artísticas fosse objeto de estudo, de modo que
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
103
Dentro dessa Tropicologia é natural, que para nós brasileiros, tenham
particular interesse os estudos do conjunto de problemas comuns às
populações e áreas do complexo por alguns de nós denominado luso-tropical, de civilização, que aliás é parte de um complexo maior: o
hispano-tropical. Problemas de Sociologia da Arte como o da casa, o
do vestuário, o do móvel, o do transporte, o do penteado artístico ou
estético são dos que deverão atrair a atenção dos pesquisadores (Freyre,
1962, p. 86).
Partindo do princípio básico de que “não há arte no vácuo”
(Freyre, 1962, p. 33), que toda produção artística guardaria alguma
relação com seu contexto ecológico-cultural – que implicava na escolha
de determinados tipos de cores por exemplo, de determinados temas
recorrentes, de específicos estilos de pintura que seriam subjetivos em
certa medida influenciados ou condicionados pelo meio ecológico e
de cultura do artista, além do tempo histórico e seus modelos estéticos
em vigor ou sendo questionados por vanguardas – que deveriam ser
considerados numa análise tropicológica, interessada nas formas de
arte ao lado das formas sociais comuns aos vários grupos, no caso de
Freyre, dos vários grupos e subgrupos sociais não ligados diretamente
a produção artística que constituíam a comunidade luso-tropical.
Importava mais especificamente para uma tropicologia, um estudo
interdisciplinar da arte simbólica luso-tropical.
Essa arte simbólica, materialização de uma “estética mestiça”,
englobava as artes plásticas, a música, a literatura e a escultura situadas
no complexo luso-tropical.43 Dessa última, as esculturas sacras
43 “Na abordagem ao fenômeno artístico propriamente dito, Gilberto Freyre procurava
comprovar uma reciprocidade existente entre os modelos artísticos e as formas sociais,
situando-as no âmbito daquilo que define como complexo luso-tropical de civilização,
afirmando a performatividade das manifestações artísticas enquanto elementos de
consolidação social e identidade cultural” (Pereira apud Cardão; Castelo, 2015, p. 8283).
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
104
mereciam estudo especial.44 Freyre considerava essas suas reflexões
como uma:
[...] modesta contribuição para o desenvolvimento quanto possível de científico, por um lado, de uma Tropicologia, ainda em ordenação (e dentro
da qual se venha a admitir como subciência, uma Hispano ou uma Luso-tropicologia), por outro lado, de uma Sociologia da Arte aplicada a espaços e tempos tropicais, não deixam de ser animados por uma mensagem
quase política (Freyre, 1962, p. 12, destaques do original).
Essa contribuição modesta poderia ajudar a desenvolver um
campo de investigação cujo significado ultrapassaria o do estritamente
intelectual. Essa mensagem “quase” política era valorizar o tropicalismo
presente no campo da estética, da arquitetura, do vestuário, que não
tinham nada de “exótico” ou “pitoresco”, nem muito menos primitivo
ou arcaico. Em relação ao elemento do “primitivismo” e sua suposta
inferioridade no campo da estética, Freyre enfatizou que os trabalhos
inovadores do pintor espanhol Pablo Picasso (1891-1973), só foram
possíveis devido ao fato de que o pintor teria se inteirado de estudos
antropológicos e sociológicos em torno das artes primitivas da África.
É interessante essa referência a Picasso por parte de Freyre, que via em
sua obra (incluindo, naturalmente sua possível ciência do trópico)
muitos traços realistas, impressionistas, expressionistas e até cubistas
que o levaram a “arrojos ibéricos” de método, assim como Picasso.
No livro “Vida, forma e cor”, publicado também em 1962, é
possível identificar a importância que Freyre dava ao tema da estética
para a tropicologia. A partir da noção de que a arte é uma criação em
44 “[...] a arte luso-tropical das imagens do Cristo, da Virgem, de santos – porque
através dessa arte me parece ser possível um estudo de tendências psicológicas e de
acomodações ecológicas já realizadas entre sociedades luso-tropicais, que nos permita
desenvolver uma arte do trajo do homem civilizado no trópico: arte útil, sem deixar de
ser arte” (Freyre, 1962, p. 78).
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
105
espaço, compreendendo o espaço em suas dimensões tanto físicas
como sociais, noção essa que coincidiria com o critério regional de
análise, as expressões estéticas marcadas pela tropicalidade, poderiam
ser compreendidas a partir da análise dos estímulos ou influências de
fatores de ordem cultural (esses condicionados pela ecologia tropical)
somados aos aspectos subjetivos do artista.
A interpretação das produções estéticas, das artes hispano e
luso tropicais, era fundamental para uma tropicologia interessada
em não apenas descrever ou classificar essas produções artísticas a
partir de conceitos e teorias, segundo Freyre, “exógenas” – Freyre
criticou a questão da importação de conceitos criados por intelectuais
estrangeiros para análise do universo cultural dos trópicos – que
seriam insuficientes. A ideia era compreender o processo de criação
estética como um processo simbiótico, uma simbiose artista-trópico.
Uma tropicologia deveria considerar o domínio da estética pelo
que essa dimensão da vida social tinha de significativo e simbólico. As
artes significavam o mundo tropical e suas produções nos campos da
arquitetura, da pintura e da escultura, por exemplo, seriam simbólicas
do complexo de cultura que estão inseridas. Ao conferir significado ao
complexo de cultura luso-tropical, os elementos de “primitivismo” ou
“nativismo”, presentes não apenas nas artes plásticas como também
na literatura – o que levou muitos críticos estrangeiros e até nacionais,
segundo Freyre, a taxar a arte lusotropical como uma arte “menor”
se comparada a europeia – deveriam ser ressaltados como positivos e
característicos da tropicalidade que marcaria uma identidade artística
do complexo de cultura luso-tropical.
Essa identidade artística seria marcada pelo aspecto “simbiótico”,
ou seja, as artes no “mundo que o português criou” (um conjunto
de espaços que se espalharam por três continentes). Essa simbiose
das artes que compõem uma estética mestiça seria fruto da tendência
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
106
portuguesa a “contemporização” e a “transigir” com a diferença.
No interior de um complexo luso-tropical de cultura as artes seriam
atravessadas por uma lusotropicalidade.
Essa lusotropicalidade representava uma forma de abordagem
das artes dos trópicos que era atravessada pela multidisciplinaridade,
apesar do autor situar sua abordagem ao campo da sociologia da
arte. Para Freyre, os valores estéticos dos trópicos seriam marcados
pelo hibridismo assim como a sociedade lusotropical. Expressões
estéticas com cores fortes, o sol, o azul e o verde, cores que simbolizam
uma tropicalidade presente na pintura, formariam um conjunto de
trabalhos artísticos que poderiam ser lidos por uma ciência do trópico
que fosse sensível a essas expressões. o valor dessas expressões de
arte simbiótica tropical ultrapassaria o sentido estético em si. Sobre
isso, importa ressaltar que o potencial das artes para a promoção
da mudança social foi enfatizado pelo sociólogo: “E fora a religião,
nenhuma fôrça se apresenta mais capaz dessa atividade criadora e até
transfiguradora, do que a arte” (Freyre, 1962, p. 33). Embora essa
transfiguração e potência não seja explicada pelo autor.
Nesse sentido, é interessante que os impactos do colonialismo
lusitano no campo das artes teriam sido muito positivos para Freyre.
Uma estética mestiça, híbrida e colorida, comporia uma paisagem
artística que representava as tendências democráticas e “plásticas” do
português colonizador. Para Freyre, as formas de arte correspondem
às formas sociais características da civilização tropical produzida pelo
colonialismo português (Freyre, 1962, p. 48).
Em linhas gerais, essas formas sociais apresentariam um caráter
harmonioso do ponto de vista étnico-racial. É importante mencionar
que essa leitura da harmonia racial, que tornou possível uma sociedade
híbrida e mestiça em termos culturais, é profundamente problemática.
Essas reflexões de Freyre sobre a arte se inseriram no quadro mais
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
107
geral de enunciação do discurso do lusotropicalismo, que era a um só
tempo uma leitura teórica do colonialismo português e uma ideologia
política que serviu aos interesses do salazarismo em seu esforço de
manter a dominação lusa em regiões do continente africano (Castelo,
1998).
Considerações finais
As artes são uma dimensão da vida social muito significativa. O
estudo sociológico das produções estéticas é um campo recente. No
Brasil, Freyre se colocou como um dos pioneiros da sociologia da arte,
tratando do tema das artes simbióticas presentes no interior de uma
“estética mestiça”, compreensível quando considerado o contexto
do complexo cultural luso-tropical que lhe conferia importante
significação sociológica e antropológicaO ensaio teve como objetivo
apresentar uma leitura das artes a partir de um clássico do pensamento
social brasileiro. As reflexões sobre o campo da estética, por parte de
Gilberto Freyre, ainda é um tema pouco explorado pelos estudiosos
da obra de Freyre assim como pela historiografia. A pesquisa buscou
aproximar o campo da arte com o pensamento social brasileiro a partir
de um livro de Freyre tomado como um documento histórico, repleto
de intencionalidades, ambiguidades e inserido num dado contexto
histórico.
Em um primeiro momento, nossa investigação tratou das
múltiplas possibilidades analíticas do campo da sociologia da arte,
de modo que as reflexões realizadas pelo sociólogo pernambucano
sobre a relação entre arte e sociedade são apenas uma forma bem
particular de praticar sociologia da arte. Num segundo momento do
texto, foi nossa intenção trabalhar a relação entre uma tropicologia,
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
108
uma ciência social de base interdisciplinar sobre o trópico, e o campo
das artes, indicando a importância dos fenômenos estéticos para uma
tropicologia aplicada ao estudo das artes simbióticas do complexo
luso-tropical de cultura.
Num terceiro momento, concentrando nosso estudo sobre
o livro “Arte, ciência e trópico”, foi nossa intenção apresentar a
leitura de Freyre sobre as artes simbióticas presentes no mundo lusotropical. Importa mencionar as abordagens “analíticas” e “orgânicas”
as quais respectivamente correspondiam a formas de análise mais
concentradas na subjetividade do artista e do seu contexto social mais
amplo – incluindo geografia e a cultura em geral – seriam ferramentas
metodológicas importantes que Freyre apresentou.
É possível concluir que as artes, as ciências sociais e os trópicos
em Freyre se articulavam a uma perspectiva de análise fundada numa
teorização mais geral. Essa teorização era um esforço do sociólogo em
construir uma tropicologia. Cumpre dizer que o campo da sociologia
da arte no Brasil, naquele momento histórico em que Freyre realizou
suas reflexões, estava se constituindo em algumas universidades, de
modo que os seus cursos sobre o tema nas cidades de Recife e de São
Paulo tem alguma coisa de pioneiro.
Referências
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FREYRE, Gilberto. Um brasileiro em Terras Portuguesas: Introdução a uma
possível luso-tropicologia, acompanhada de conferências e discursos proferidos
em Portugal e em terras lusitanas e ex-lusitanas da Ásia, da África e do Atlântico. Ed. José Olympio, 1953. Vol. 36 (Coleção Documentos Brasileiros).
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
109
FREYRE, Gilberto. O luso e o trópico. Ed. Lisboa: Comissão Executiva do V
Centenário da Morte do Infante D. Henrique, 1961a.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob
o regime da economia patriarcal. 51 ed. São Paulo: Global Editora, 2006.
FREYRE, Gilberto. Homem, cultura e trópico. Ed. Recife: Imprensa Universitária da Universidade Federal de Pernambuco, 1962a.
FREYRE, Gilberto. Arte, ciência e trópico. Ed. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1962b.
HEINICH, Nathalie. A sociologia da arte. Tradução de Maria Ângela Caselatto
e revisão técnica de Augusto Capella. Bauru, SP: Edusc, 2008.
LEAL, Natacha Simei. Nome aos bois (Zebus e zebuzeiros em uma pecuária brasileira de elite). Tese (Doutorado em Antropologia Social). Universidade de São
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PEREIRA, Teresa Matos. “Discurso Estético e Criação Artística em Arte, Ciência e o Trópico: Conceitos, Práticas e Contiguidades” In: CARDÃO, Marcos;
CASTELO, Cláudia. (Orgs.). Gilberto Freyre: Novas Leituras do Outro Lado
do Atlântico. Ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2015. p.
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PORTELA, Eduardo. “Gilberto Freyre, múltiplas parcerias.” In: FREYRE,
Gilberto. Interpretação do Brasil: Aspectos da formação social brasileira como
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2015.
VILA NOVA, Sebastião. “Gilberto Freyre: bases teórico-conceptuais do seu
pensamento, especialmente da Tropicologia.” In: MOREIRA, Adriano; VENÂNCIO, José Carlos. (Org.). Luso-tropicalismo uma teoria social em questão.
Ed. Lisboa: Vega, 2000.
ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. Ed. São Paulo: Boitempo, 2008.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
110
CApítul 6
“Você tem que ir à luta”: música,
indústria fonográfica e sociedade
brasileira na entrevista de Ivan Lins para
o Jornal Inovação (1978)
Gustavo Silva de Moura
Introdução
Considerando que a imprensa é uma importante fonte para o
entendimento dos processos históricos ocorridos no Piauí, este trabalho45 lança um olhar sobre conteúdos do Jornal Inovação, um relevante veículo comunicacional que circulou com periodicidade no litoral
piauiense nas décadas de 1970 e 1980. O Jornal Inovação iniciou suas
atividades em 1977 com a proposta de estabelecer, por meio de seus
escritos, novos modos comportamentais e de conduta na região. Seu
corpo editorial era composto por jovens, oriundos, principalmente,
de círculos sociais, políticos e/ou intelectuais abastados da região.
45 Texto publicado originalmente sob o título “Aí coloco a coisa da seguinte forma”: música e
sociedade brasileira na entrevista de Ivan Lins para o Jornal Inovação (1978). Revista Piauiense
de História Social e do Trabalho, ano v. n. 08-09, p. 20-34, 2019. A versão apresentada aqui,
como capítulo de livro, é uma revisão ampliada, resultado das pesquisas em andamento no
doutorado em História do Brasil da Universidade Federal do Piauí - PPGHB/UFPI, financiado
pela FAPEPI por meio de bolsa de doutorado concedida pelo Edital FAPEPI nº 05/2021 ao
projeto “Detonar nas paradas musicais do litoral”: Percursos da música rock no litoral do Piauí
nas décadas de 1980/90, orientado pela Profª Drª. Claudia Cristina da Silva Fontineles, e das
atividades desenvolvidas no Núcleo de Estudos em Sociedade, Imprensa e Literatura Piauiense
- NESILPI/UESPI.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
111
Dessa forma, garantia-se acesso a ambientes vinculados às letras e
à política no Estado, oferecendo ao leitor uma variedade de questões
que visavam evidenciar um aspecto do litoral piauiense não retratado
na imprensa tradicional então disponível nas bancas. Para legitimar
suas ideias e promover sua proposta de mudança, eram selecionadas
matérias e notícias de impacto e circulação nacional, sempre com o
objetivo de reforçar e traduzir sua busca por transformação social e
cultural, bem como incentivar a participação ativa da sociedade diante
dos dilemas do período (Mascarenhas, 2009, p. 14, 112).
Assim, o objetivo do texto é, a partir da entrevista de Ivan Lins
publicada no final do ano de 1978 e nas primeiras edições de 1979,
verificar as dinâmicas da música e da indústria fonográfica brasileira
na década de 1970. Diante disso, a análise subsequente proporcionará, também em nível local, um entendimento mais aprofundado das
interações entre arte e jornalismo naquela época, refletindo sobre o
pensamento de Ivan Lins e dos envolvidos na entrevista, exposto nas
páginas do Jornal Inovação. Através desta investigação, espera-se oferecer uma perspectiva sobre a dinâmica entre o artista, a sociedade e a
cultura através da imprensa, bem como explorar o papel dos veículos
de comunicação na construção e propagação de ideias culturais e sociais daquele momento histórico.
Jornal Inovação: “Um jornal sem cronista social”
O Jornal Inovação, ativo em Parnaíba entre as décadas de 1970
e 1980, se apresentou como mais do que um simples veículo de informação. Sua natureza, conforme iluminado pelo historiador Fábio
Mascarenhas (2009, p. 17), era um influente instrumento ideológico e
político na região. O periódico estava firmemente ancorado em práti-
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
112
cas políticas e possuía uma base discursiva e ideológica bem delineada.
Seus conteúdos eram projetados não só para informar, mas também
para moldar a percepção e opiniões de seus leitores, justificando e legitimando sua proposta.
Esse caráter propositivo e intencional do Jornal Inovação fica
ainda mais evidente ao considerarmos sua estratégia de difusão. O
impresso não se contentava em apenas alcançar os leitores; havia um
esforço deliberado para criar uma vasta rede informativa que permeasse Parnaíba e o litoral piauiense. Esta rede tinha propósitos bem além
da simples disseminação de notícias. Buscava-se estabelecer uma ação
pedagógica inovadora, objetivando educar os leitores e levá-los a uma
compreensão profunda de sua identidade política e valores.
Tal estratégia não era meramente educacional, mas tinha um fim
transformacional em vista. O jornal aspirava que, através de suas publicações, poderia introduzir e sedimentar discussões no seio da sociedade. Mais do que informar, o Jornal Inovação desejava conquistar
uma parcela significativa da população, transformando leitores passivos em defensores ativos de suas propostas e ideais.
Em consonância com Mascarenhas (2009), a historiadora Claudia Fontineles e o historiador Sergio Mendes (2022, p. 214-215) oferece uma visão complexa do papel desempenhado pelo Jornal Inovação em Parnaíba. Para eles, o periódico era um veículo que buscava
ativamente influenciar e moldar sua audiência, particularmente a juventude, guiando-a em direção a um ideal cultural e comportamental
percebido como mais adequado e progressista. Essa postura, embora
bem-intencionada, pode levantar questões sobre autonomia, diversidade de perspectivas e a relação entre a mídia e seu público.
Segundo Fontineles e Mendes (2022), destaca-se a percepção dos
articulistas do Jornal Inovação acerca da situação sociocultural de Parnaíba. Havia uma evidente preocupação com o que consideravam um
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
113
“baixo nível cultural e comportamental” da sociedade, particularmente da juventude. Isso sugere que o periódico não se limitava a observar
e reportar eventos; ele também adotava uma postura crítica e avaliativa em relação aos acontecimentos e peculiaridades da sociedade parnaibana.
Nesse sentido, considerando a estratégia de abordagem do jornal,
de cunho pedagógico e orientador, em cada edição, os articulistas enfatizavam a necessidade de direcionamento específico para a melhoria
da postura e conduta da juventude local. Não se tratava meramente
de relatar fatos, mas de moldar e orientar a percepção e o comportamento social e cultural. O meio sugerido para alcançar esse direcionamento era a criação de um “partido juvenil”, indicando que a desejada
transformação comportamental possuía raízes tanto culturais quanto
políticas.
Uma análise mais aprofundada da linguagem e das propostas do
Jornal Inovação pode revelar certo grau de paternalismo. Em diversas
ocasiões, o jornal ditava o que deveria ser ouvido ou lido, buscando
combater a “mentalidade medieval” dos parnaibanos. Essa abordagem, denominada “jornalismo de prescrição comportamental”, sugere uma vertente jornalística que vai além da simples informação, possuindo a intenção clara de guiar, instruir e, em algum grau, reformar
sua audiência. (Fontineles; Mendes, 2022)
A juventude desempenhava um papel fundamental nas mudanças sociais da cidade, tornando-se o eixo central das preocupações do
jornal. O periódico acreditava que os jovens eram cruciais na construção das transformações sociais, que surgiriam a partir de suas experiências com as manifestações culturais e sociais (Mascarenhas, 2009, p.
37-38, 40-42).
O historiador Sérgio Mendes (2012, p. 66) destaca a posição social do corpo editorial como uma característica marcante. Eram jovens
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
114
oriundos da classe média-alta, que tiveram acesso a uma educação de
qualidade para os padrões da época. Essa formação influenciava diretamente a estrutura e a abordagem das matérias publicadas.
Originalmente concebido como veículo da juventude do Movimento Democrático Brasileiro - MDB no litoral piauiense46, região
crucial eleitoralmente e berço de nomes proeminentes da política local, o Jornal Inovação refletia uma visão específica de cultura. Seu editorial inaugural evidenciava uma predileção pela cultura formal, situando-a em bibliotecas e centros culturais de elevado padrão com apoio
de entidades filantrópicas e do poder público. Em contraste, bares de
esquina, “boites” e conversas desprovidas de conteúdo cultural eram
consideradas inferiores. 47
Com uma periodicidade que variava entre mensal e quinzenal e
uma pluralidade de temas, reflexo do contexto e do modo de produção adotado em sua redação, o jornal destinava espaços significativos
em suas páginas à música e às artes. Em sua maioria, esses assuntos
eram abordados com foco no âmbito local, embora também houvesse
menções a artistas de fora das fronteiras piauienses.
A historiadora Tânia de Luca (2008, p. 132) ao tratar dos periódicos como fontes históricas, destaca a importância de se considerar não
somente o conteúdo, mas também o contexto em que foram produzidos. Ao afirmar que se deve “Historicizar a fonte”, Luca ressalta que
qualquer documento, publicação ou registro deve ser interpretado
dentro de seu contexto temporal, social, técnico e político.
46 O Movimento Democrático Brasileiro (MDB) foi um partido político brasileiro fundado
em 1966. Ele acolheu membros de partidos opositores ao governo que foram extintos pelo Ato
Institucional n°2. O MDB fazia oposição ao partido governista Aliança Renovadora Nacional
(ARENA).
47 Cf: Editorial. INOVAÇÃO E A ALA JOVEM DO MDB In: Jornal Inovação.
Parnaíba. dezembro/1977, p. 1.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
115
Ao correlacionar essa ideia apresentada por Luca (2008) com o
Jornal Inovação, torna-se claro que a análise desse periódico não deve
se limitar apenas ao que está escrito em suas páginas. Deve-se entender
porque certos temas foram abordados e outros omitidos, quem eram
seus redatores, quais eram as tecnologias de impressão disponíveis na
época e como esses fatores influenciaram o conteúdo final do jornal.
As “condições técnicas de produção vigentes” mencionadas por
Luca (2008) podem se referir, no caso do Jornal Inovação, ao tipo de
impressão utilizada (No momento da publicação da entrevista de Ivan
Lins, ele era mimeógrafo. Posteriormente, na década de 1980, passou
a ser produzido em offset), ao acesso a fontes de informação (No momento da entrevista de Ivan Lins, existiam correspondentes de Teresina, PI, Fortaleza, CE, e Brasília, DF) ou à formação jornalística da
equipe editorial (Majoritariamente formada por jovens universitários
e indivíduos que transitavam em outros veículos de comunicação da
cidade), por exemplo. Tudo isso influencia o produto final e pode fornecer pistas sobre as limitações e intenções do jornal.
Ademais, ao mencionar a “averiguação, dentre tudo que se dispunha, do que foi escolhido e por quê” (Luca, 2008), somos lembrados de que o Jornal Inovação, assim como qualquer outro meio de
comunicação, estava inserido em um processo seletivo de notícias e
temas. As decisões editoriais não apenas refletiam a relevância dos
eventos, mas também os valores, preocupações e objetivos da equipe
editorial. Dessa forma, se o periódico optou por priorizar certos temas
em detrimento de outros, isso sugere um esforço deliberado para enfatizar determinados aspectos da cultura e da política em contraposição
a outras influências.
Em edições da década de 1970, que traziam matérias voltadas à
crítica musical, os textos eram assinados por personagens que também
colaboravam com outros periódicos. Um exemplo é Geraldo Brito,
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
116
conhecido como Balula, que, no mesmo período, tinha uma coluna
dedicada ao mesmo tema no jornal Folha do Litoral48. Isso indica a
circulação de colaboradores entre os jornais ativos na mídia do litoral piauiense e destaca quem era reconhecido pela classe jornalística
como apto a discorrer sobre determinados assuntos. Em sua maioria,
os jovens eram vistos como qualificados para opinar sobre cenários
artísticos e as novas tendências do setor, sobretudo quando a pauta
era música.
Ao falar da importância de Geraldo Brito na música popular teresinense, o historiador Fernando Muratori Costa (2019, p. 184) revela
o papel central e emblemático do artista no cenário musical e cultural
abordado. Geraldo Brito é destacado não somente por sua contribuição pioneira, mas também pelo valor simbólico que assumiu dentro
de uma comunidade específica, a Música Popular Piauiense - MPP.
Inicialmente, o fato de Geraldo Brito ser identificado como um
“pioneiro” estabelece sua importância inicial e inovadora no cenário.
No entanto, Costa (2019) vai além, ilustrando a estatura quase mítica
que o músico alcançou, sendo referenciado como uma “referência intelectual e musical” e, ainda mais intensamente, como o “guru” - um
termo que carrega consigo uma reverência e uma noção de liderança
espiritual ou orientadora.
48 A coluna de Geraldo Brito no jornal Folha do Litoral chamava-se “Artedaços” e ocupava um
espaço anteriormente conquistado pela coluna “As Transas (Pop Tops)”, de autoria do jovem
jornalista J. França, que teve veiculação até o ano de 1975. Os registros disponíveis no acervo do
NESILPI referentes ao periódico Folha do Litoral indicam o início da circulação da “Artedaços”
em outubro de 1978, sendo que Geraldo Brito teve sua primeira colaboração no Folha do Litoral
encontrada no referido ano, com um texto sobre Ivan Lins em 07/09/1978. Mais informações
sobre a relação da música com a imprensa de Parnaíba podem ser encontradas em: MOURA,
Gustavo Silva de. “Acham que somos alienados”: O rock na imprensa do litoral do Piauí nos anos
1970-80. 2019. 147f. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de São Paulo, Programa de
Pós-Graduação em História, 2019.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
117
O interessante aqui é a dualidade na construção dessa imagem de
GeraLdo Brito. Por um lado, existe uma “representação de si” que ele
possivelmente ajudou a moldar. Por outro, a maneira como ele é percebido e venerado pelos seus “companheiros de pioneirismo” sugere
que sua influência e importância foram coletivamente reconhecidas e
reforçadas. Este não é apenas o legado de um indivíduo, mas um legado
construído e solidificado por uma comunidade. (Costa, 2019)
Além disso, a referência à “memória compartilhada” entre os integrantes do grupo MPP é crucial. Fernando Muratori Costa (2019)
destaca que a identidade de um grupo não é formada apenas por ações
individuais ou liderança, mas também por memórias e experiências
coletivas. A imagem de Geraldo Brito, neste contexto (década de 1980
em Teresina), não é apenas a de um líder ou pioneiro, mas também a
de um ponto de conexão, um símbolo unificador que alimenta e fortalece a identidade coletiva do grupo.
Dentre as contribuições de Balula para o Jornal Inovação, destaca-se, na edição de outubro de 1978, uma análise do cenário musical
brasileiro com base nos festivais transmitidos pela TV, avaliando os artistas que emergiram desses eventos49. Os músicos citados pelo jovem
crítico sobressaíam-se pela relação entre política, música e indústria
fonográfica. Adicionalmente, Balula fez uma previsão intrigante —
que não se concretizou —, sugerindo que o próximo grande nome da
MPB emergiria do Piauí. A partir disso, nota-se que, mesmo quando
abordando temas de escopo nacional, havia uma tendência regionalista permeando as discussões.
Devido ao seu profundo conhecimento sobre música popular
brasileira, evidenciado em textos das mídias regionais e estadual, Balula foi escolhido para representar o Jornal Inovação em colaboração
49 Balula. NOVOS RUMOS DA MPB. In: Jornal Inovação. Parnaíba. outubro/1978, p. 11.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
118
com outros participantes50 em uma extensa entrevista concedida por
Ivan Lins51. Essa oportunidade ocorreu quando o artista se apresentou no final de 1978 na cidade de Teresina, capital do Piauí.
“Ai coloco a coisa da seguinte forma”: a entrevista
de Ivan Lins para o Jornal Inovação
Durante a década de 1970, seguindo a tendência do surgimento de novos artistas brasileiros, Ivan Lins emergiu no cenário musical através de circuitos universitários e festivais. Rapidamente, ele se
integrou à nova geração da música brasileira da época, tornando-se
uma peça-chave na expansão do setor voltado ao consumo jovem pela
indústria fonográfica. Em 1978, Ivan Lins já era um artista amplamente reconhecido, figurando entre os mais vendidos no início daquela
década e inserindo-se no movimento denominado “Moderna MPB”,
que renovou os quadros artísticos e estéticos da música da década anterior.
Durante o período de intensa repressão no Brasil – marcado por
governos militares entre os anos de 1964 e 1985 -, a Música Popular Brasileira (MPB) demonstrou notável resiliência. Alguns artistas,
como Elis Regina, buscaram reconhecimento internacional, enquan50 Na primeira parte da entrevista, Balula é apresentado como principal mediador do diálogo
entre Ivan Lins e o Jornal Inovação, mas nas seções subsequentes, menciona-se apenas o nome
do periódico. No entanto, ao final da entrevista, uma nota esclarece que outras pessoas também
participaram. São elas: Godim, Paulo Batista e Viriato Campelo.
51 Ivan Guimarães Lins (1945 - ) nasceu no Rio de Janeiro. Filho de militar, suas principais
influências musicais são o jazz, bossa nova e soul, tendo o piano como seu principal instrumento,
o qual toca desde os 18 anos. Iniciou sua carreira musical em festivais no final dos anos 1960.
Lança trabalhos fonográficos desde 1971 e já foi premiado com quatro Grammy Latinos (2005:
Álbum do Ano e Melhor Álbum de Música Popular Brasileira; 2009: Melhor Álbum de Música
Popular Brasileira; 2015: Melhor Álbum de Música Popular Brasileira). Mais informações podem
ser encontradas em: https://ivanlins.com.br (Acessado em: 20 nov. 2023).
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
119
to outros, como Milton Nascimento e Gal Costa, optaram por fortalecer seus laços com o público jovem e universitário no Brasil.
Em meio a essa atmosfera de censura, o circuito universitário desempenhou um papel crucial na promoção da cultura e resistência à
opressão. Expandido e revitalizado a música durante a fase de maior
repressão, esse circuito universitário, embora caracterizado por baixa
capitalização, tornou-se um santuário para a expressão artística, garantindo a sobrevivência profissional de muitos cantores. (Napolitano,
2010, p. 270).
Segundo o historiador Marcos Napolitano (2010), o Movimento
Artístico Universitário (MAU) surgiu como uma iniciativa importante desse período, lançando talentos como Ivan Lins e Luiz Gonzaga
Jr52. Esses movimentos e espaços comunitários e institucionais destacaram a importância do apoio à arte em tempos de crise política. Tal
apoio foi vital para criar e manter uma cena musical viva e resistente à
repressão e à censura.
No entanto, para Naponitano (2010) com o tempo, houve uma
interação evidente entre resistência artística e comercialização. Parte
do movimento universitário foi eventualmente cooptada pela indústria televisiva, movimento exemplificado pelo programa “Som Livre
52 Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior (1945 - 1991), mais conhecido como Gonzaguinha, foi
cantor, compositor e violonista. Filho do cantor, compositor e sanfoneiro Luiz Gonzaga (19121989) e da cantora, compositora e dançarina Odaléia Guedes dos Santos (1925-1948). Aos dois
anos, perdeu a mãe, vítima de tuberculose, e passou a ser criado por seus padrinhos de batismo,
Leopoldina de Castro Xavier e Henrique Xavier Pinheiro (de apelido Baiano do Violão), com
quem aprendeu a tocar o instrumento. Estreou na carreira artística em 1968, participando do
Festival Universitário de Música Popular da TV Tupi, que venceu no ano seguinte com a canção
“O Trem”. Ao lado de César Costa Filho (1944-2022), Ivan Lins (1945 - ) e Aldir Blanc (19462020), integrou o Movimento Artístico Universitário (MAU). Entre 1973 e 1991, lançou 16
álbuns autorais. Mais informações podem ser encontradas em: https://enciclopedia.itaucultural.
org.br/pessoa21884/gonzaguinha (Acessado em: 20 nov. 2023).
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
120
Exportação” da TV Globo. Embora esta incorporação oferecesse uma
plataforma maior para os artistas, também levantava questões sobre
a potencial diluição da mensagem original e do propósito da arte em
um ambiente comercial.
Marcos Napolitano (2010, p, 69) oferece um olhar interessante
sobre a relação entre a Moderna Música Popular Brasileira (MPB) e a
televisão na década de 1960. Primeiramente, é notável que, apesar das
críticas frequentemente levantadas contra a televisão, especialmente
por artistas e intelectuais engajados, até o final de 1966 a Moderna
MPB viu neste meio uma plataforma valiosa para sua afirmação. Em
um período marcado por profundas transformações sociais e culturais, a televisão desempenhou um papel paradoxal: por um lado, era
vista como um veículo de massificação cultural, mas, por outro, tornou-se um espaço vital para a difusão e consolidação da MPB.
O sucesso de “O Fino da Bossa” demonstra claramente que a
MPB tinha um apelo que ia muito além do circuito universitário, tradicionalmente associado à resistência e ao engajamento político-cultural. O fato de o programa ser líder de audiência em um horário noturno “familiar” indica que a MPB estava alcançando uma audiência
muito mais diversificada, composta por várias faixas etárias.
Dentre os sucessos de Ivan Lins no mercado fonográfico brasileiro da década de 1970, está seu primeiro disco intitulado “Agora”,
lançado pela Polydor53 em 1971, que alcançou o 44° lugar na lista dos
mais vendidos do Brasil, produzida pelo NOPEM54. Esse feito se re53 A gravadora Polydor, estabeleceu-se como uma das principais gravadoras no cenário musical
brasileiro, especialmente durante os anos 1960 e 1970. No Brasil, a Polydor foi responsável por
lançar álbuns de grandes nomes da música brasileira, abrangendo uma variedade de gêneros,
desde a bossa nova até o rock. Artistas icônicos, como Os Mutantes e Tim Maia.
54 Nelson Oliveira Pesquisas de Mercado –NOPEM. Para mais informações sobre essas listas
e o Nopem, ver: VICENTE, Eduardo. SEGMENTAÇÃO E CONSUMO: A Produção
Fonográfica Brasileira 1965/1999. ArtCultura, Uberlândia, v. 10, n. 16, p. 99-117, jan-jun, 2008.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
121
petiria em 1979 com o disco “A Noite”, que chegou ao 48º lugar, lançado pela EMI; e doze anos depois, com o 31° lugar da coletânea “Ivan
Lins 20 Anos”, lançada pela gravadora Som Livre. 55
A publicação de entrevistas nas páginas do Jornal Inovação era
uma prática comum. No entanto, frequentemente surgiam sob os
questionamentos dos entrevistadores figuras da política piauiense,
majoritariamente ligadas ao MDB. O objetivo dessas entrevistas era
divulgar as movimentações do cenário político e questionar ações,
proporcionando a essas personalidades a oportunidade de promoverem seus nomes e projetos. Nas edições que contêm a entrevista de
Ivan Lins, também se destaca a presença de uma entrevista com Chagas Rodrigues.56
A entrevista com Ivan Lins para o Jornal Inovação, devido à sua
extensa duração, foi publicada em três partes, entre as edições de dezembro de 1978 e março de 1979. Distribuiu-se em três páginas na
edição nº 13 de dezembro de 1978, duas páginas na edição nº 15 de janeiro de 1979 e duas páginas e meia na edição n° 16 de março de 1979,
totalizando sete páginas e meia em uma média geral de vinte páginas
por edição do periódico.57
55
Dados
disponíveis
em:
https://www.academia.edu/28651800/Listagens_
Nopem_1965_1999.pdf (Acessado em: 20/11/2023)
56 Sobre Chagas Rodrigues Ver: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-
biografico/francisco-das-chagas-caldas-rodrigues (Acessado em: 20 set. 2023)
57 Fazendo parte do acervo do Núcleo de Pesquisa em Cidade, Memória e Patrimônio NUPECIMP/ UESPI-Parnaíba, o Jornal Inovação foi catalogado no projeto “Levantamento
e catalogação de fontes históricas em acervos públicos e privados da cidade de Parnaíba-PI”
aprovado no Edital PIBEU/PREXUESPI nº 014/2019 e que tem como docente responsável o
Prof. Dr. Felipe Ribeiro, professor do curso de História da UESPI, campus Alexandre Alves de
Oliveira em Parnaíba-PI. Disponível na plataforma Mundos do Trabalho Piauí e pode ser acessado
pelo link: https://drive.google.com/drive/folders/1RhvwAsj6qayJ7LHmvp1g7EphreQ6pYVb
(Último acesso em 22 nov. 2023).
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
122
Em sua primeira parte, Balula já inicia com questionamentos
relacionados à construção das letras das canções e às parcerias musicais de Ivan Lins, mostrando com isso um conhecimento da crítica
musical nacional. O entrevistador referencia um artigo do jornalista
Mauricio Kubrusly58 que cita o artista.59 A circulação de ideias relacionadas à música no Piauí na década de 1970 estava ancorada na grande
imprensa, baseando-se, em muitos casos, em opiniões difundidas por
grandes jornais de circulação nacional, nos quais se encontrava, por
exemplo, Kubrusly.
Em sua primeira resposta, discute-se a importância e o papel do
artista com seu público:
Então de uma época para cá 64 pra cá, quando comecei a tranzar60 com
o Victor Martins e também a partir do momento que passei a dar importância à letra, ou seja, comecei a me ver como interprete também e
que comecei a levar a sério, a me assumir como cantor também, a partir
do momento que eu entrava no palco e dizia as coisas com as pessoas eu
tinha de saber o que estava dizendo e era muito importante as palavras
que saíam da minha boca, mesmo que fossem escritas por outras pessoas, mas era como se eu estivesse dizendo pras pessoas. É tanto que eles
estão lá, sentados, me vendo mandar um negócio, um recado, abrindo
a cova, dizendo coisas, então você tem que assumir tudo que sai da
58 Maurício Kubrusly (1945- ) iniciou sua carreira em meados dos anos 1960 e trabalhou
no Jornal do Brasil (RJ); Jornal da Tarde (SP); Rádio Excelsior FM (SP) e TV Cultura (SP).
Idealizou e dirigiu, durante dez anos (1978-1988), a revista SomTrês, a primeira revista brasileira
voltada para música. Trabalhou como repórter na Rede Globo (1985-2019), onde, além de suas
matérias especiais para o Fantástico, cobriu eventos importantes para a emissora, como Copa do
Mundo, Jogos Olímpicos e cerimônias do Oscar. Kubrusly entrevistou grandes nomes da música
brasileira e internacional, e participou da cobertura de importantes festivais de música, como
as edições do Rock in Rio em 1985, 1991 e 2001, e as edições do Hollywood Rock em 1993
e 1994. Mais informações podem ser encontradas em: https://memoriaglobo.globo.com/perfil/
mauricio-kubrusly/noticia/mauricio-kubrusly.ghtml (Acessado em: 20 nov. 2023)
59 Balula não cita qual artigo ou veículo de imprensa onde se encontra.
60 O termo “tranzar” usado por Ivan Lins é uma gíria típica dos anos 1970, denota uma parceria
ou colaboração entre indivíduos.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
123
tua boca porque naquilo ali você não pode mentir. (...). No começo da
carreira eu era mais músico, então não dava muita bola pra letra. Meu
negócio era fazer harmonia, melodia, ritmo, arranjo, essas coisas todas,
mais a parte musical. Não dava muita bola pra letra. E hoje sei, entendo
muito bem, compreendo muito bem e vejo realmente a importância
que a letra tem.61
Neste excerto da entrevista com Ivan Lins, apresenta-se um
artista em profunda introspecção sobre sua evolução musical e pessoal
no contexto turbulento da ditadura militar no Brasil. Este período,
começando em 1964, foi marcado por uma repressão intensa, o que fez
com que muitos artistas recorressem à metáfora e outros dispositivos
líricos para comunicar suas mensagens sem atrair a atenção indesejada
das autoridades.
O fato de Ivan Lins mencionar especificamente 1964, o início do
regime militar, e sua colaboração subsequente com Victor Martins,
indica uma virada em sua abordagem artística. A evolução de sua
relação com a letra musical reflete não apenas um amadurecimento
pessoal, mas também uma resposta às circunstâncias sociopolíticas.
Ele expressa uma mudança de prioridade: de um foco quase exclusivo
na musicalidade para uma apreciação profunda das letras e do poder
das palavras.
O processo de reconhecimento de si mesmo como intérprete e
cantor representa uma internalização da responsabilidade artística.
Ele reconhece a potência do palco como um espaço de comunicação
direta e a necessidade de ser autêntico, de “não mentir”, ressaltando o
compromisso do artista com a verdade, mesmo em tempos difíceis.
61 Balula. ENTREVISTA: Ivan Lins (Parte 01). In: Jornal Inovação. Parnaíba. dezembro/1978,
p. 15.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
124
O contraste entre sua postura inicial, focada quase exclusivamente
na musicalidade, e sua postura posterior, reconhecendo a importância
das letras, ilustra uma transformação. Isso não apenas reflete o
crescimento individual de Ivan Lins, mas também o papel crítico da
música no Brasil durante um período de repressão e resistência.
Ivan Lins argumenta que o fundamental em uma letra de
música é ela ser dita de uma “maneira mais simples e nova possível”,
apresentando-se de maneira mais direta aos ouvintes. Esta perspectiva
de Ivan Lins está alinhada com a do sociólogo Waldenyr Caldas (2005,
p. 204-205), que defende que o discurso empregado na música deve se
adequar aos contextos de cada período, com o objetivo de refletir uma
leitura sociopolítica do país.
Ivan Lins destaca qual é o papel social da letra de uma canção,
demonstrando consciência sobre o papel formador de opinião de um
artista e músico. Ao falar das canções de amor, expõe sua percepção
sobre como temas cotidianos são incorporados às músicas na
sociedade.
Acho que falar de amor é muito justo. É um sentimento como os outros. Só
que hoje em dia você tem que pensar até que ponto o amor tem um envolvimento social. O que é que provoca, entendeu? Até relacionamento entre
duas pessoas. De repente você se separa da tua mulher porque você tem
problemas diversos. Você chega em casa sempre invocado, porque o patrão
te dá um cacete, então você desabafa em cima da mulher. Ela apanha,
você gosta dela, mas sabe... Hoje em dia temos que analizar (sic) por um
prisma muito mais amplo, sabe? Por um prisma muito mais aberto, não
se justificar num fato isolado. Então, o amor hoje em dia, o relacionamento entre homem e mulher, ele tem um fundamento, ele tem uma ligação.
O comportamento do homem dentro da sociedade que ele vive.62
62 Balula. ENTREVISTA: Ivan Lins (Parte 01). In: Jornal Inovação. Parnaíba. dezembro/1978,
p. 16.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
125
Neste fragmento da primeira parte da entrevista de 1978 com
Ivan Lins, percebe-se um aprofundamento reflexivo sobre a temática do amor na sociedade contemporânea da época. A menção inicial
sobre o “falar de amor” não apenas legitima o amor como tópico universalmente relevante, mas também insinua que a expressão deste sentimento na música ou qualquer forma de arte pode ser influenciada
pelo contexto social.
Ivan Lins articula em sua fala que o amor, embora essencialmente pessoal, está entrelaçado com aspectos mais amplos da experiência
humana. Ele destaca como os problemas socioeconômicos podem afetar o âmbito pessoal, usando o exemplo de um homem que desconta
as frustrações do trabalho na esposa - um reflexo das complexidades da
sociedade brasileira dos anos 1970. Esta análise do artista sugere que
o amor não está isolado, mas está profundamente entrelaçado com a
realidade social, política e econômica.
A conclusão da resposta de Ivan Lins sugere que o entendimento
moderno do amor, especialmente entre homem e mulher, precisa ser
visto através de um “prisma muito mais amplo”. Ele argumenta pela
necessidade de uma compreensão holística, considerando o comportamento do indivíduo no contexto da sociedade em que está inserido.
Diferente do título que encabeçava a primeira parte da entrevista, “O artista, o cantor e compositor. Uma das significantes figuras
da música popular brasileira. De Teresina exclusivo para o Jornal Inovação”, onde havia menções ao artista e à música, na segunda parte,
publicada em janeiro de 1979, lê-se: “Numa grande reflexão sobre o
momento social que vive o país, idéias (sic) gerais e políticas. Prosseguimos publicando a entrevista exclusiva para Inovação - concedida
por ocasião do seu show nos dias de hoje - em Teresina”. 63
63 Balula. ENTREVISTA: Ivan Lins (Parte 02). In: Jornal Inovação. Parnaíba. janeiro/1979, p. 15.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
126
Ao seguir as temáticas abordadas anteriormente, o foco recai sobre a comodidade política das classes brasileiras. Ivan Lins faz uma
autocrítica, expressando sua visão sobre a falta de consciência de classe dos artistas na sociedade brasileira daquele período. Outro aspecto
notável é o debate acerca da necessidade de líderes políticos capazes de
retirar a população dessa comodidade. São citados Zero (Edén Pastora)64 da Nicarágua, Che Guevara65 e Fidel Castro66 de Cuba. Como
exemplo brasileiro, menciona-se Lula67. Estes personagens são vistos
64 Edén Atanacio Pastora Gómez (1937 – 2020) foi um político e guerrilheiro nicaraguense. Nos
anos que antecederam a queda do regime de Anastasio Somoza Debayle, Pastora liderou a milícia
Frente Sul. Recebeu o apelido de Comandante Cero (“Comandante Zero” em português) e foi o
estrategista e executor da tomada do Palácio Nacional em Manágua, em 22 de agosto de 1978. Seu
grupo foi o primeiro a ser denominado “sandinista”. Após o triunfo da Revolução Sandinista,
foi-lhe atribuído o título honorário de Comandante Guerrilheiro e a patente de Comandante
da Brigada no emergente Exército Popular Sandinista (EPS). Atuou por um período como ViceMinistro da Defesa e Chefe Nacional das Milícias Populares Sandinistas (MPS). Na década de
1980, por discordâncias, rompeu relações com o governo da Revolução Sandinista e se autoexilou,
indo morar na Costa Rica. Posteriormente, voltou à Nicarágua e concorreu às eleições de 2006,
nas quais saiu derrotado.
65 Ernesto “Che” Guevara (1928-1967) foi um revolucionário marxista argentino e médico
de formação que teve um papel fundamental na Revolução Cubana, ao lado de Fidel Castro.
Tornou-se um símbolo da luta contra a injustiça e buscou impulsionar revoluções em outros
países, como o Congo e a Bolívia. Foi em território boliviano que ele acabou sendo capturado e
executado, em 1967.
66 Fidel Castro (1926-2016) foi um líder revolucionário cubano que governou Cuba como
primeiro-ministro de 1959 a 1976 e, posteriormente, como presidente de 1976 a 2008. Castro
liderou o movimento que derrubou o regime de Fulgencio Batista em 1959 e estabeleceu um
governo de moldes comunista na ilha. Durante seu longo mandato, ele desafiou a influência dos
Estados Unidos na América Latina, enfrentando várias tentativas de desestabilização e embargos
econômicos.
67 Luiz Inácio Lula da Silva, mais conhecido como Lula (1945 - ), é um político brasileiro
atualmente em seu terceiro mandato como presidente do Brasil, tendo governado anteriormente
de 2003 a 2006 e de 2007 a 2011, e reassumindo o cargo em 2023. Originário de uma família
humilde do Nordeste brasileiro, Lula iniciou sua carreira como operário metalúrgico e líder
sindical em São Bernardo do Campo, ganhando destaque nas greves no final da década de 1970,
período da ditadura militar no Brasil. Como um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores
(PT) em 1980, sua trajetória política o conduziu à presidência, onde implementou políticas de
combate à pobreza e ampliou a presença do Brasil no cenário internacional.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
127
como modelos capazes de impulsionar projetos político-sociais que
resultem em mudanças benéficas para as futuras gerações.
Também presente na segunda parte da entrevista estão Paulo Batista e Balula como entrevistadores e as primeiras intervenções de Lucinha Lins68, atriz e cantora de 25 anos, que acompanhava as apresentações de Ivan Lins como cantora e percussionista e era, à época, esposa do músico. As diferentes falas ampliam a perspectiva da entrevista
sobre a sociedade, refletindo a visão de uma mulher inserida no meio
artístico brasileiro. Lucinha Lins evidencia como as mudanças em sua
vida revelaram as discrepâncias ideológicas entre as classes sociais no
Brasil. Ela acrescenta ao debate, pois se baseia em suas experiências
como alguém que transitou pelas classes mais abastadas do país e que
também fez parte de um meio com menor poder econômico.
Proveniente de uma família abastada, Lucinha Lins declara: “São
pessoas iguais a mim. De criação, de berço, de tudo, de dinheiro, sabe?
E é tão diferente, é uma barbaridade”69. Ao abordar esse tema, os participantes da entrevista procuram evidenciar a desigualdade social e
a visão idealizada de alguns setores abastados, como, por exemplo, as
concepções relacionadas ao meio artístico. Lucinha Lins comenta durante a entrevista que suas amigas acreditam que ser casada com um
artista implica uma vida de status e excentricidades.
Nessa discussão abordada na segunda parte da entrevista, buscou-se colocar em pauta questões que resultam na apatia social e no
68 Lucinha Lins (1953 - ) é uma atriz e cantora brasileira. Começou sua carreira como cantora em
festivais de música, mas alcançou projeção nacional com o sucesso da canção “Purpurina”, nos
anos 1980. A transição para a televisão aconteceu rapidamente, e Lucinha consolidou-se como
atriz, atuando em diversas novelas e programas de grande sucesso na TV brasileira. Ao longo dos
anos, ela manteve uma carreira versátil, alternando entre a música, a televisão e o teatro, onde
também teve performances aclamadas. Lucinha Lins é reconhecida tanto por sua voz marcante
quanto por sua habilidade cênica.
69 Balula. ENTREVISTA: Ivan Lins. (Parte 02). In: Jornal Inovação. Parnaíba. janeiro/1979,
p. 16.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
128
desconhecimento da realidade nas classes mais abastadas do país.
Como principal fator desse problema, destaca-se a desigualdade social. Dois dados são apresentados: Balula menciona o regional: “Por
exemplo em Teresina 1% da população é que tem 51% da renda”, sendo complementado por Ivan Lins com o nacional: “No Brasil, só 5%
tem 80%. E cada vez um menor número de pessoas concentra essa renda”.70
A concentração de renda no Brasil, especialmente intensificada durante o período do chamado “milagre econômico” entre 1968
e 1973, reflete as complexidades das políticas econômicas da época e
suas interações com a geopolítica global. Este “milagre”, que na realidade foi caracterizado por significativas aberturas ao capitalismo
internacional, particularmente sob influência dos Estados Unidos,
não beneficiou igualmente todos os estratos da sociedade brasileira. O
historiador Mario Danieli Neto (2017, p. 59), em sua análise, aponta
para o aproveitamento das capacidades ociosas da indústria local e a
expansão do sistema de crédito como catalisadores desse crescimento
robusto. No entanto, tal crescimento não se traduziu necessariamente
em distribuição equitativa de riqueza ou benefícios sociais mais amplos.
Paralelamente, a indústria internacional da música encontrou
no Brasil um ambiente propício para sua expansão. A efervescência
cultural brasileira, combinada com o influxo de capital e a influência estrangeira, possibilitou que grandes gravadoras internacionais se
consolidassem no país. No entanto, enquanto essas empresas prosperavam, muitos artistas locais lutavam para manter a autenticidade e
resistir à homogeneização imposta pelo mercado global.
70 Balula. ENTREVISTA: Ivan Lins. (Parte 02). In: Jornal Inovação. Parnaíba. janeiro/1979,
p. 16.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
129
Na terceira e última parte da entrevista, as falas foram distribuídas entre Ivan Lins, Lucinha Lins e Inovação, sem uma identificação
clara dos entrevistadores. No entanto, no início de cada segmento divulgado, atribuía-se a realização do trabalho a Balula, como creditado
abaixo do título: “ENTREVISTA: Ivan Lins”. Os diálogos iniciais
recaem novamente sobre temas de profundo teor político, mantendo a lógica das seções anteriores. Neles, é mencionado o processo de
Rangel contra Darcy Ribeiro71, e há uma sugestão polêmica de que
este último deveria ser “pendurado pelo saco” e encontrar o mesmo
destino de Mussolini72. No entanto, percebe-se um esforço por parte
dos entrevistadores do Jornal Inovação em direcionar as declarações
de Ivan Lins para assuntos relacionados ao seu show em Teresina e ao
universo musical.
Conforme Ivan Lins, além do aparato visual que seu show proporcionava, o objetivo principal era despertar sentimentos de reação,
encorajamento e vitalidade em seu público. Lucinha Lins descreve o
espetáculo da seguinte maneira:
O que acontece no show atual do Ivan - NOS DIAS DE HOJE- como
o próprio título já diz, é um show que começa do zero e começa a subir lentamente, ele é muito gradativo. Ele termina a primeira parte (...)
com quadras de roda que faz o povo cantar e que é uma crítica muito
grande já. Então vem de porradinha em porradinha, lentamente. Ele
entra na segunda parte com “mãos de Afeto” que já é uma parada, uma
71 Mais informações podem ser encontradas em: https://terrasindigenas.org.br/pt-br/
noticia/165702 (Acessado em: 21 nov. 2023).
72 Benito Mussolini (1883-1945) foi um político e líder italiano que fundou o fascismo e
governou a Itália como ditador por quase duas décadas, começando em 1922. Após a Segunda
Guerra Mundial, com a derrota da Itália e a invasão dos Aliados, Mussolini tentou fugir para a
Suíça com sua amante, Clara Petacci. No entanto, ambos foram capturados por partisans italianos
em 27 de abril de 1945, e executados no dia seguinte. Seus corpos foram levados a Milão, onde
foram pendurados de cabeça para baixo em uma estação de gasolina, expondo-os publicamente
como um símbolo do fim do fascismo na Itália.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
130
pedrada. Tá violentíssimo. A penúltima música é “Cartomante” (...)
Cartomante é uma música que levanta (...)73
Lucinha Lins apresenta uma análise detalhada do show de Ivan
Lins, destacando o ritmo progressivo e a construção cuidadosa da performance. A referência a “NOS DIAS DE HOJE”, título do show,
sugere uma reflexão sobre a contemporaneidade e os desafios atuais. O
show é descrito como começando “do zero”, o que indica uma abordagem minimalista ou simples no início, que se intensifica gradualmente.
A menção a canção “Quadras de Rodas”, presente no disco de
1977, intitulado “Somos Todos Iguais Nesta Noite”, mostra a fase
tradicional da canção popular brasileira em Ivan Lins, buscando nela
o envolvimento do público e uma reconexão com as raízes culturais,
mas também se apresenta como um meio para crítica social. A letra de
“Quadra de Rodas” diz o seguinte
Passarinho cantou/ De dentro de uma gaiola/ Cantaria melhor/ Se
fosse do lado de fora/ Passarinho cantou/ De dentro de uma gaiola/
Cantaria melhor/ Se fosse do lado de fora/ Passarinho cantou/ De dentro de uma gaiola/ Cantaria melhor/ Se fosse do lado de fora/ Passarinho cantou/ De dentro de uma gaiola/ Cantaria melhor/ Se fosse do
lado de fora/ O Marinheiro acordou/ E tinha que se espantar/ Alguém
levantou mais cedo/ E roubou o céu e o mar/ O Marinheiro acordou/
E tinha que se espantar/ Alguém levantou mais cedo/ E roubou o céu
e o mar/ O Marinheiro acordou/ E tinha que se espantar/ Alguém levantou mais cedo/ E roubou o céu e o mar/ O Marinheiro acordou/ E
tinha que se espantar/ Alguém levantou mais cedo/ E roubou o céu e o
mar/ Meu amor não sabia/ Por que nunca amanhecia/ Meu amor não
sabia/ Por que nunca amanhecia/ É que existia um vigia/ Na porta de
cada dia/ Existia um vigia/ Na porta de cada dia/ Meu amor não sabia/
73 Balula. ENTREVISTA: Ivan Lins. (Parte 03). In: Jornal Inovação. Parnaíba. março/1979, p.
13. Trechos suprimidos no original
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
131
Por que nunca amanhecia/ Meu amor não sabia/ Por que nunca amanhecia/ É que existia um vigia/ Na porta de cada dia/ Existia um vigia/
Na porta de cada dia/ Meu amor não sabia/ Por que nunca amanhecia/ Meu amor não sabia/ Por que nunca amanhecia/ Existia um vigia/
Na porta de cada dia/ Existia um vigia/ Na porta de cada dia/ Muita
gente chamou/ Urubu de meu louro/ Pelo que vejo agora/ Vai chamar
de novo/ Muita gente chamou/ Urubu de meu louro/ Pelo que vejo
agora/ Vai chamar de novo/ Muita água rolou/ Nos olhos do povo/
Pelo que vejo agora/ Vai rolar de novo/ Muita água rolou/ Nos olhos
do povo/ Pelo que vejo agora/ Vai rolar de novo/ Muita água rolou/
Nos olhos do povo/ Pelo que vejo agora/ Vai rolar de novo/ Muita água
rolou/ Nos olhos do povo/ Pelo que vejo agora/ Vai rolar de novo.74
A canção de Ivan Lins, apresentada acima, mergulha profundamente na reflexão sobre a condição humana e os desafios da sociedade
brasileira na década de 1970. A imagem do passarinho cantando de
dentro de uma gaiola pode ser entendida como uma abordagem ao
tema relacionado à opressão e falta de liberdade, insinuando como as
circunstâncias daquele momento limitavam a expressão do espírito
humano e, consequentemente, a arte e a música. A surpresa do marinheiro ao descobrir que o céu e o mar foram “roubados” pode ser
interpretada como uma representação da desorientação sentida quando as liberdades individuais foram retiradas das vidas dos brasileiros
naquele período, aludindo a situações políticas e sociais onde direitos
eram usurpados.
O trecho sobre o “amor” que não percebe a razão pela qual o
dia nunca nasce destaca as barreiras e impedimentos que obstruem a
verdade, simbolizados pelo “vigia na porta de cada dia”. A menção ao
ditado popular que menciona chamar um urubu de “meu louro” evi74 Esta e outras músicas de Ivan Lins mencionadas neste artigo estão disponíveis na plataforma
Spotify. As transcrições das letras foram feitas diante das suas audições. Os links para as canções
podem ser encontrados em: https://ivanlins.com.br/discografia. (Acessado em: 22/11/2023).
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
132
dencia as percepções distorcidas que parte da sociedade teve ao apoiar
a ditadura militar iniciada em 1964. Ademais, a expressão “muita água
rolou nos olhos do povo” evoca imagens do sofrimento popular, e a
sugestão de que esses desafios possam se repetir no futuro adicionam
um tom sombrio à composição, contrastando com o ritmo alegre da
melodia. No conjunto, “Quadra de Rodas” é uma poderosa representação da incessante busca por liberdade, verdade e compreensão diante dos desafios da vida, reforçada pela estrutura repetitiva adotada por
Ivan Lins.
Em “Quadra de Rodas”, mencionado por Lucinha Lins, percebe-se a essência do show apresentado em Teresina no ano de 1978. A
evolução do espetáculo de Ivan Lins é descrita em termos quase tangíveis - “porradinha em porradinha” e “uma pedrada” - evidenciando
os crescentes impactos emocionais e políticos que resonavam na audiência. As músicas “Mãos de Afeto”75, do mesmo álbum de “Quadra
de Rodas”, e “Cartomante”76, lançada em 1978 no disco homônimo
75 Preparei minhas mãos de afeto/ Pra esse rapaz encantado/ Pra esse rapaz namorado/ O mais
belo capataz/ De todos Os cafezais/ O mais belo vaqueiro/ De todos Os cerrados/ O mais belo
vaqueiro/ De todos os cerrados/ Eu tinha um ombro de algodão/ Pra ajeitar seu sono/ Eu tinha
uma água morna/ Pra lavar o seu suor/ E o meu corpo um fogueira/ Pra esquentar seu frio/ E
minha barriga livre/ Pra gerar seu filho/ Pra gerar seu filho/ Pra gerar seu filho/ Preparei minhas
mãos de afeto/ Pra esse rapaz encantado/ Pra esse rapaz namorado/ Que partiu pra nunca mais/
Traído nos cafezais/ E os seus olhos roubaram/ O Verde dos cerrados/ E os meus olhos lavaram/
Todos os meus pecados/ Pecados
76 Nos dias de hoje é bom que se proteja/ Ofereça a face pra quem quer que seja/ Nos dias de
hoje, esteja tranquilo/ Haja o que houver pense nos seus filhos/ Não ande nos bares/ Esqueça
os amigos/ Não pare nas praças/ Não corra perigo/ Não fale do medo que temos da vida/ Não
ponha o dedo/ Na nossa ferida/ Nos dias de hoje/ Não dê um motivo/ Porque na verdade/ Eu
te quero vivo/ Tenha paciência/ Deus está contigo/ Deus está conosco até o pescoço/ Já está
escrito/ Já está previsto/ Por todas as videntes/ Pelas cartomantes/ Tá tudo nas cartas/ Em todas
as estrelas/ No jogo dos búzios e nas profecias/ Cai o rei de espadas/ Cai o rei de ouros/ Cai o rei
de paus/ Cai, não fica nada!/ Cai o rei de espadas/ Cai o rei de ouros/ Cai o rei de paus/ Cai, não
fica nada/ Cai o rei de espadas/ Cai o rei de ouros/ Cai o rei de paus/ Cai, não fica nada/ Cai o rei
de espadas/ Cai o rei de ouros/ Cai o rei de paus/ Cai, não fica nada/ Cai o rei de espadas/ Cai o
rei de ouros/ Cai o rei de paus/ Cai, não fica nada/ Cai o rei de espadas/ Cai o rei de ouros/ Cai
o rei de paus/ Cai, não fica nada.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
133
do artista, são destacadas como peças centrais do set list em Teresina.
A primeira traz melancolia, enquanto a segunda carrega esperança, revelando uma intenção calculada de evocar emoções intensas em um
ápice criado para profundidade e impacto. Assim, o show oferece não
apenas entretenimento, mas também momentos de reflexão e engajamento.
O historiador Marcos Napolitano (2014, p. 107) destaca que,
por volta de 1976, a MPB consolidou sua vocação oposicionista ao regime militar, impulsionada pelo abrandamento da censura em setores
da cultura. O período dos últimos anos da década de 1970 introduziu
na cultura novos modelos de organização de produção. Isso englobava a canção engajada de esquerda centrada na MPB. Para a indústria
fonográfica, a aceitação de letras críticas por parte dos consumidores
representava a melhor estratégia de lucro a médio e longo prazo (Napolitano, 2011, p. 161).
Ao considerar o cenário fonográfico brasileiro, é importante
destacar que, na década de 1970, houve um crescimento do mercado
no Brasil, alcançando números ainda mais expressivos na década de
1980 (Vicente; De Marchi, 2014, p. 17-27). A despeito da crescente
relevância musical no território nacional, essa expansão do consumo
foi viabilizada pelas bases internacionais da indústria fonográfica. Isso
posicionou o Brasil da década de 1970 entre os principais consumidores do que era produzido nos EUA e na Europa.
Segundo o sociólogo Renato Ortiz (2001, p. 113), as décadas de
1960 e 1970 representam o período em que o Brasil vivenciou a consolidação do mercado de bens simbólicos, com desenvolvimento em
diversos setores da indústria cultural brasileira. Entre esses setores, o
mercado fonográfico se destacou especialmente, registrando um aumento no faturamento nos seis primeiros anos da década de 1970 de
cerca de 1375% (Ortiz, 2001, p. 127).
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
134
Nesse sentido, na terceira parte da entrevista com Ivan Lins, encontram-se também importantes reflexões e questionamentos acerca
da indústria fonográfica brasileira. O texto revela as percepções dos
músicos ativos no mercado durante a década de 1970 em relação à
sociedade e política nacional. O tema torna-se central na entrevista
quando são feitas indagações sobre a relação de Ivan Lins com o compositor Vítor Martins77.
O funcionamento da indústria fonográfica é exemplificado na
conversa, especialmente quando se aborda a causa da demissão de Vítor Martins da gravadora RCA78. Foi nesta gravadora que Ivan Lins
lançou “Modo Livre” em 1974 e “Chama Acesa” em 1975. A relação
entre Ivan Lins e Vítor Martins79, bem como os motivos da mudança
para a RCA, são abordados na entrevista da seguinte forma:
Bom, ele me levou prá RCA Víctor. Ele sabia o meu problema na Fonogram. Fiquei lá 2 meses, 2 meses depois ele chegou a fazer o “Abre Alas”
e foi despedido da RCA Víctor. Descobriu mutreta (...) Descobriu que
77 Vítor Martins (1944 - ) é um compositor brasileiro que se notabilizou, principalmente,
por sua parceria com Ivan Lins, iniciada com a canção “Abre alas”, gravada no LP
“Modo Livre” de 1974. Outros artistas brasileiros renomados também interpretaram
suas músicas, entre eles, Elis Regina, Wilson Simonal e Erasmo Carlos. Uma lista
das músicas compostas por Vítor Martins e seus intérpretes pode ser encontrada em:
https://www.immub.org/compositor/4029/?order_by=ano&order=asc. (Acessado
em: 22 nov. 2023).
78 A gravadora RCA (Radio Corporation of America), também conhecida como RCA
Victor, teve uma presença significativa no Brasil, especialmente durante o século XX. Fundada
originalmente nos Estados Unidos no início do século XX como parte da Radio Corporation of
America, a RCA Victor desembarcou no Brasil na década de 1920 e rapidamente se estabeleceu
como uma das principais gravadoras do país. Ao longo das décadas, foi responsável por lançar
e consolidar carreiras de grandes nomes da música brasileira, abrangendo gêneros que iam do
samba ao rock. Em 1988, a RCA foi adquirida globalmente pela BMG, transformando-se, no
Brasil, em BMG Ariola Discos até sua fusão com a Sony Music no início dos anos 2000.
79 Mais informações sobre a parceria entre os dois artistas podem ser encontradas em:
https://jornal.usp.br/cultura/parceria-entre-ivan-lins-e-vitor-martins-rendeu-mais-de100-musicas/ (Acessado em: 22 nov. /2023).
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
135
saiu um disco de Carnaval da RCA com doze músicas e ele trabalhava
na Editôra (sic) da RCA, era representante do Rio, a matriz era em São
Paulo.
De repente começa a pintar uns cheques - 80 mil, 100 mil.. do disco de
Carnaval. Ele ficou curioso e foi saber o que houve, foi mexer. Aí descobriu o seguinte: descobriu que o disco de Carnaval era uma mutreta
que eles faziam com a SICAM80; então os compositores das músicas de
Carnaval desse disco eram todos Diretores da SICAM, entenderam?
Músicas que nunca tocaram.81
Essa saída, segundo Ivan Lins, ocorreu devido à descoberta de
irregularidades internas que prejudicavam os artistas e beneficiavam
os empresários do ramo fonográfico. Diante disso, surgiu na entrevista, por parte do Jornal Inovação, um questionamento sobre o direito
autoral, ao qual Ivan Lins respondeu da seguinte forma:
(...) O Govêrno (sic) é realmente de uma incompetência a toda prova,
nessa área, né? São medrosos porque, hoje existe aquele jogo de influências por econômico, então, o próprio Franco Montoro é amicíssimo
(sic), é ligado ao pessoal da SICAM lá, entende. Então os caras chegam
lá... Senador!... Dinheiro corre solto, Coronel. Você vai mexer com esses caras? Não dá. Outro sem-vergonha, pilantra, é o Roberto Marinho. Você vai tentar conseguir tentar as coisas com ele, não dá. (...) Um
dos caras que está na fôlha de pagamento dele é o Armando Falcão,
o outro é Nascimento e Silva, dois Ministros do Govêrno (sic), você
vai mexer com uns caras desses? Você vai conseguir dobrar esses caras?
Nunca... As rádios têm que pagar tanto. O Roberto liga para o Falcão
e diz: olha, corta essa aí da rapaziada. Eles cortam no ato (...) O Víctor
(sic) é um cara que passou por esse tipo de problemas, é um cara muito
coerente, um cara muito sofrido, de uma lucidez espantosa, o cara é um
monstro. Um cara que me ensinou muita coisa boa.82
80 Sociedade Independente de Compositores e Autores Musicais.
81 Balula. ENTREVISTA: Ivan Lins (Part 03). In: Jornal Inovação. Parnaíba.
março/1979, p. 14-15. Trecho suprimido no original.
82
Balula. ENTREVISTA: Ivan Lins (Parte 03). In: Jornal Inovação. Parnaíba.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
136
Além de ser um artista de renome nacional, Ivan Lins teve uma
participação ativa na década de 1970 nas lutas por direitos autorais
para os músicos brasileiros. Ele foi membro fundador da Sociedade
Musical Brasileira - Sombras, ao lado do compositor Vitor Martins e
de outros artistas renomados da MPB e da bossa nova.83
O compositor Vitor Martins já havia destacado, em 1972, diante
do ministro Jarbas Passarinho84, a urgência de alterar os padrões de
arrecadação existentes, durante uma das diversas comissões que
discutiam o direito autoral nos gabinetes ministeriais da época.
Posteriormente, a Sombras, defendendo critérios mais justos para a
arrecadação e distribuição, teve discussões com o ministro Ney Braga
85
no começo de 1975, envolvendo outros compositores ligados à
organização recém-fundada e membros do Ministério da Educação.
Esses diálogos possivelmente influenciaram o governo a estabelecer
o Conselho Nacional de Direito Autoral (CNDA) em setembro
de 1975, logo após quase dois anos da promulgação da Lei 5.98886
(Morelli, 2009, p. 151).
março/1979, p. 14.
83 A Sombras foi fundada em 1975 a partir de questionamentos de nomes como
Caetano Veloso, Gilberto Gil e Ivan Lins, que se indagavam sobre os tratamentos que a
Sociedade Independente de Compositores e Autores Musicais - SICAM dava aos valores
de direitos autorais dos artistas (Morelli, 2009, p. 150). Diferente de uma sociedade
voltada para arrecadação ou distribuição de direitos autorais, o foco da Sombras estava
na defesa dos artistas diante da sociedade arrecadadora, distribuidores e Estado. Além
disso, ela propunha a promoção da música nacional (Morelli, 2009, p. 144).
84 Mais informações sobre Jarbas Passarinho ver: https://www18.fgv.br/CPDOC/
acervo/dicionarios/verbete-biografico/jarbas-goncalves-passarinho (Acessado em: 20
nov. 2023)
85 Mais informações sobre Ney Braga ver: https://www18.fgv.br/CPDOC/acervo/dicionarios/
verbete-biografico/nei-amintas-de-barros-braga (Acessado em: 20 nov. 2023)
86 O texto da referida lei pode ser encontrado em: https://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/L5988.htm (Acessado em: 20 nov. 2023)
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
137
Na entrevista de Ivan Lins ao Jornal Inovação, é possível
identificar nuances sobre o funcionamento das comunicações e,
consequentemente, da indústria fonográfica nacional durante o
período da ditadura brasileira estabelecida na década de 1960. Devido
a essa estrutura, atitudes como as de Vítor Martins poderiam gerar
represálias. Isso ocorre porque, dentro do setor fonográfico, havia
empresas que simpatizavam e se beneficiavam do regime militar.
Não existem informações sobre quais fontes Ivan Lins utilizou
para fundamentar tais afirmações. No entanto, é importante
considerar o conhecimento de um artista que estava imerso nesse
contexto e que já tinha, naquela época, experiência no ramo musical.
De acordo com Ivan Lins, figuras como Roberto Marinho87, à época
chefe da Rede Globo, influenciavam o que era transmitido nas mídias,
recorrendo a pagamentos informais a ministros do governo militar.
Ainda segundo o músico, as preferências e opiniões desse empresário
eram cruciais para determinar no meio midiático a permanência ou
exclusão de um artista.
No final da década de 1970, uma das principais gravadoras
brasileiras estava associada ao grupo Globo de Comunicação, sendo
denominada Gravadora Sigla. Isso evidencia sua influência em diversos
setores, desde a imprensa escrita, passando pelo rádio e televisão, até
alcançando o ramo fonográfico. Esse crescimento da Gravadora Sigla
ocorreu, em grande medida, devido à inter-relação entre música e
televisão estabelecida pelas Organizações Globo (Morelli, 2009, p. 9091).
87 Mais informações sobre Roberto Marinho ver: https://www18.fgv.br/CPDOC/
acervo/dicionarios/verbete-biografico/marinho-roberto (Acessado em: 20 nov. 2023)
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
138
Considerações finais
Portanto, com as discussões abordadas ao longo deste trabalho,
fica evidente a consciência de Ivan Lins sobre seu papel crítico no
ambiente social, cultural e político como músico, uma percepção
também partilhada por outros expoentes do cenário brasileiro.
Na entrevista veiculada pelo Jornal Inovação, temas como política
e sociedade se entrelaçaram ao universo musical, refletindo as
inquietações que permeiam a construção de uma obra e sua recepção
por um público que busca transformar sua perspectiva.
Durante o diálogo, aspectos da indústria fonográfica brasileira
foram revelados, desvendando como os processos midiáticos eram
moldados e as lógicas de monopolização e cooptação propiciadas
pelo capitalismo funcionavam, direcionando o consumo musical no
país. Ao analisar as críticas proferidas por Ivan Lins, tornam-se claras
as estratégias e tensões experimentadas por artistas que atingiam
notoriedade no cenário musical brasileiro.
Além da perspectiva do artista entrevistado, a presença de uma
entrevista de cunho político-cultural nas páginas do Jornal Inovação
reforça os objetivos perseguidos pela publicação desde seus primórdios.
Nesse sentido, apresentar a música como instrumento de mudança
social pode sinalizar determinadas referências para o público leitor do
periódico.
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Sobre o organizador
Gustavo Silva de Moura. Historiador com registro profissional
0000014/PI. Mestre em História (História e Historiografia) pela Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal
de São Paulo – EFLCH/UNIFESP (2019); Especialista em História
do Brasil (UCAM, 2015) e Música e Artes (Faveni, 2021), Graduado em História (Licenciatura) pela Universidade Estadual do Piauí
– UESPI (2014), atualmente Doutorando em História do Brasil da
Universidade Federal do Piauí. Pesquisador do Núcleo de Estudos em
Sociedade, Imprensa e Literatura Piauiense (UESPI/CNPQ), atuando na linha de pesquisa “História, Sociedade e Imprensa piauiense”.
Pesquisa sobre os seguintes temas: História da Música no Piauí, Rock
Brasileiro, Rock e Imprensa, Indústria fonográfica brasileira e Historiografia do Rock.
Cultura, Arte e Sociedade: Múltiplas perspectivas no Brasil
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Sobre os autores e autoras
Bárbara Pinheiro Baptista. Mestre em História pelo Programa
de Pós-Graduação em História da UFRRJ e membro do HISTOR Núcleo de Pesquisas sobre Teoria da História e História da Historiografia. Licenciada em História pela UFRRJ. Atua como educadora na
Escola Alemã Corcovado e na Rede Emancipa de Educação Popular.
Carla Miucci Ferraresi de Barros. Professora Associada dos
Programas de Pós-Graduação e Graduação do Instituto de História
da Universidade Federal de Uberlândia - INHIS/UFU com ênfase
nas áreas de História e Cultura, Cinema e História, Gênero e Sexualidades. Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo
(2007), Bacharel em História (1997) e em Ciências Sociais (1999) pela
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo. Vencedora do prêmio Jabuti de Literatura em 2008, na
categoria Livro Didático e Paradidático. Coordenadora do festival audiovisual Curta (C)errado. Coordenadora do grupo de estudo Colonialidade do olhar: visualidades, subjetividades e interseccionalidades
do PPGHI/UFU.
Danton Oliveira Normandia. Graduado em História pelo Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia - INHIS/
UFU com ênfase nas áreas de História Política e História da América
Contemporânea. Foi bolsista, via Fundação de Amparo à Pesquisa em
Minas Gerais - FAPEMIG - no projeto em torno da 3° edição do festival audiovisual Curta (C)errado: "o medo nosso de cada dia" (2021).
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Diego Stéfano Araujo Souza. É Bacharel em Psicologia pela
Universidade Federal do Piauí (UFPI/UFDPar), Especialista em História Social da Cultura (UFPI). Possui graduação em História pela
Universidade Estadual do Piauí (UESPI). Iniciou seus estudos em
História a partir da filosofia de Adorno, concluiu curso com trabalho sobre história da infância e sexualidade com atravessamentos pela
indústria cultural dos programas infantis. Em Psicologia estudou
temas voltados à sexualidade e educação, com pesquisa de ICV que
exploraram a cartografia das práticas discursivas e sociais de pessoas
transexuais nas redes sociais, trabalhando conceitos de vigilância distribuída, visibilidade e produção de subjetividade. Concluiu curso
de Psicologia estudando o uso de temas sexuais em práticas políticas
da extrema-direita brasileira e sua relação com aspectos educacionais.
Atualmente tem se interessado pelos estudos antirracistas de crítica às
necropolíticas contra população negra no Brasil, a partir dos campos
educacionais e processos psicossociais que se dão no cruzamento de
contexto da saúde mental e do racismo histórico.
Márcio de Araújo Pontes. Doutorando em História do Brasil pela Universidade Federal do Piauí (2021), Mestre em História do
Brasil pela Universidade Federal do Piauí (2015), Graduação em História pela Universidade Metropolitana de Santos (2016). Atualmente
é professor da Faculdade Ieducare / FIED - Tianguá dos cursos de
Sistemas de Informação e Engenharia Agrícola e Ambiental, professor
da educação básica por meio da Secretaria Municipal de Educação de
Tianguá e coordenador de ações pedagógicas da Associação Cultural de Amigos da Arte. Email:
[email protected]. link lattes:
http://lattes.cnpq.br/9837593435099439.
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Messias Araujo Cardozo. Doutorando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS/2021-2024). Mestre em História Social pela Universidade Federal do Maranhão (Bolsa
CAPES, UFMA/2018-20). Possui Graduação em História pela Universidade Estadual do Piauí (2016). Foi Bolsista do PIBID/CAPES
(UESPI 2014-2016). Tem experiência na área de História, com ênfase
em teoria da história, história social das ideias, história intelectual e do
discurso sociológico e historiográfico brasileiro. Atualmente desenvolve pesquisa de doutorado sobre Gilberto Freyre e a Tropicologia. Um
livro publicado: Exercícios do fazer História: ensaios teóricos & historiográficos.. 1. ed. Teresina-PI e São Luís-MA.: Editora Cancioneiro;
EDUFMA, 2021. v. 1. 176 p. Quatro capítulos de livro publicados.
Thiago Meneses Alves. Professor Adjunto - A1 do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Piauí - DCIES/
UFPI, onde atua como docente na graduação em Ciências Sociais e
no Programa de Pós-Graduação em Sociologia – PPGS/UFPI, ambos
sediados no Centro de Ciências Humanas e Letras, Campus Ministro
Petrônio Portela - CCHL/UFPI/Teresina. Doutor em Sociologia pela
Universidade do Porto - UPorto (2017); Mestre em Comunicação e
Cultura pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio
de Janeiro - ECO/UFRJ (2013) e graduado em Comunicação Social/
habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal do Piauí - UFPI
(2008). Possui trabalhos centrados sobretudo na abordagem da música popular e inseridos nos domínios da Comunicação e da Sociologia.
Possui experiência no mercado de comunicação do Piauí, tendo atuado nas áreas de webjornalismo, assessoria de imprensa e radiojornalismo. Atuou também no movimento cultural do Piauí, nomeadamente
no âmbito da circulação e promoção de novos artistas (música) naquele estado (2012-2013).
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