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revistadoiebn44p.159-172fev2007
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Pós-Tudo:banimentoeabandonono
GrandeSertão
EttoreFinazzi-Agrò*
Resumo
NoromanceGrandesertão:veredas,oencontrocom
oscatrumanosprovoca,emRiobaldo,pensamentosemquese
misturampiedadeemedo.Assuasconsideraçõeseotratamento
queelevaireservaraelesenquantoUrutu-Brancochegama
delinear,paraesses“homensdeestranhosoaspecto”,umquadro
complexoeambivalentederelaçõesdeforçaedepoder,ligando,
numaparenteparadoxo,aquela“raçadiverseadadistante”como
personagemdeZéBebelo.Ofiounindoessesdoisextremospode
seridentificadonum“estadodeexceção”que,deformaespecular,colocanamesmasituaçãodeanomia,deexterioridadeem
relaçãoàleisertaneja,tantooemblemadalógicapolíticaquanto
asvítimas-algozesdeumabiopolíticaqueoPoderincluinoseu
discursocomomesmogestocomqueasexclui.
Palavras-chave
catrumanos,ZéBebelo,exceção,biopolítica,banimento.
*professordeLiteraturadaUniversidadedeRoma-“LaSapienza”.
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Post-everything:banishmentand
abandonmentintheGrandeSertão
EttoreFinazzi-Agrò
Abstract
InthenovelGrandesertão:veredas,theencounterwith
thecatrumanosgivesRiobaldothoughtsthatblendcompassion
andfear.Hisconsiderationsandthewayhewilltreatthem,as
Urutu-Branco,outlines,tothose“menofweirdappearance”,a
complexandambivalentpictureoftherelationsofstrengthand
power,connecting,inanapparentparadox,that“distantand
diverserace”withthecharacterofZéBebelo.Thethreadjoining
thetwoextremescanbeidentifiedina“stateofexception”that,
inanmirroredimage,placesthepoliticallogicandthevictims
andagentsofpowerinthesamesituationofanomy.
Keywords
catrumanos,ZéBebelo,exception,biopolitics,banishment.
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MitallenAugensichtdieKreatur
dasOffene.NurunsereAugensind
wieumgekehrtundganzumsiegestellt
alsFallen,ringsumihrenfreienAusgang.
RainerM.Rilke,DieachteElegie
Ohomem,defato,nuncacoincidedemodoalgumcomavida
nuadohomem;nemcomavidanuadentrodelenemcom
algumoutroestadooupropriedade,nemmesmocomaunicidadedasuapessoafísica.Tãosagradoéohomem[...],quão
poucoosãoosseusestados,quãopoucooéasuavidafísica,
vulnerávelpelosoutros.Oque,comefeito,adistingueessencialmentedaqueladosanimaisedasplantas?
WalterBenjamin,ZurKritikderGewalt
Houve,eaindahá,naespéciehumanamuitos“sujeitos”quenão
sãoreconhecidoscomosujeitoserecebemomesmotratamento
doanimal[...].Aquiloquesechamaconfusamenteanimal,
entãooviventeenquantotalenadamais,nãoéumsujeitoda
leiedodireito.Aoposiçãoentrejustoeinjustonãofazalgum
sentidoquantoaele.
JacquesDerrida,Forcedeloi
Nosúltimosanos,comotodosnósbemsabemos,temos
assistidoaumaproliferaçãodescontroladadetermosprecedidos
peloprefixopós–dopós-modernoaopós-colonialismo,passando,obviamente,peladefiniçãoonicompreensivae,decerto
modo,conclusivade“pós-história”(semesquecer,evidentemente,
acategoriado“pós-trágico”quecontribuí,comoutros,para
colocarempautaemrelaçãoàmodernaculturabrasileira).Cada
umdelestem(outeve)oseuvalorhermenêuticonaépocaeem
relaçãoaoobjetoaqueé(oufoi)aplicado,mas,maisemgeral,
esseusocontundenteecoincidentedomesmoprefixolevafatalmenteanosinterrogarmossobreapróprianaturezapóstumada
nossacondiçãodeleitoreseintérpretesdefenômenosculturaise
dediscursosartísticosquehabitamamodernidadeocidental.
Paraalémouparaaquémdequalquerrevisão(muitas
vezesjusta)ounegação(àsvezesinjusta)dessascategorias
teóricasoudessasdefiniçõescríticas,pensoqueanossarelação
comotextodeJoãoGuimarãesRosa,sobretudohoje,cinqüenta
anosdepoisdapublicaçãodeCorpodebaileeGrandesertão:
veredas,deveria,necessariamente,levaremcontaocaráterinelutavelmenteposteriore,aomesmotempo,ulteriordequalquer
leituraquepretendaidentificarsignificadosocultosnointerior
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daescrita.Póstumo,nessesentido,querdizerfatalmentearbitrárioe,concomitantemente,necessário–daquelanecessidade
quevem,justamente,daprofundezaeespessuratemporalem
queseamontoamechamamanossaatençãoasoutrasinterpretações,asinúmerasvozescríticas,osmuitoscaminhospercorridosatravéseemvoltadaobrarosiana.
Chegamosdepoisdeumfim,defato:umfimambíguo,
aliás,equenãoencerraumsentido,nãodelimitaumterritório
textual,masque,istosim,define(semdefinir)aquelazona
incertaeperigosaqueseabreentreosimeonão,entreaafirmaçãoeainterrogação,entreacertezaeadúvida.Considero,
porisso,que,paracontinuarlendoanarrativarosiana,devemos
assumiranossacondiçãopóstuma,istoé,de-morarnessazona
incerta,habitaresselimiarquenãoseparanemjunta,mas
quedeixa,ameuver,balançarodiscursonumalatênciaque
nenhumade-cisãooucortepodetornaruni-formeouuní-voco
(tambémporqueeleé,comosesabe,umdiscursofreqüentementeubíquo,monológicoedialógicoaomesmotempo).
Estamos,comefeito,numdepoissemgarantias,quepermite
traçarpercursosdiferenteseatéantinômicosdentrodeuma
dimensãoqueé,tambémela,interrogativaeduvidosa–como
odemonstra,porexemplo,aausência,justamente,dapalavra
FimemGrandesertão:veredas,substituídapelalemniscata,pelo
símbolomatemáticodoinfinito,ouaporosidadedasfronteiras
discursivasetextuaisnumaestória“difícil”,“muitoruimparase
contareseouvir”,comoé“Cara-de-bronze”.
Estasituaçãodepós-tudoemquenosencontramosnão
podetodaviajustificarqualquerleitura,tratandootextodeRosa
comosefosseapenasumpalimpsestosobreoqualescreverou
rabiscaràvontade;noqualgravarsignificadosimprópriosou
atédescabidos,secundandoapreocupaçãodoleitoremvezde
definiremapearaocupaçãorealdoespaçonarrativoesignificanteporpartedoautor.Penso,nessaperspectiva,queorespeito
paraepelotexto(ouseja,etimologicamente,oolhareoser
olhadoporele)nosdeverialevaradefenderasverdadesintercaladas,a“patrulhar”oslimiares,ouseja,aquelescontornos
cinzentos,oumelhor,aquelasfrestasqueseentre-abremnodiscursodoescritor–nosdeverialevar,emsuma,avigiar(como
entêtementduguetteur,coma“teimosiadovigia”,comosugeriu,
justamente,RolandBarthes)aquelasencruzilhadasprecáriasem
queconseguimosàsvezessurpreenderenos“apoderar”deum
sentidoprovisório.Ocaráterpóstumodanossaleiturapoderiase
espelhar,assim,nanaturezamovediçaecontinuamenteulterior
daescritadeGuimarãesRosa,tornandoahermenêuticatextual
umaarticulaçãoouumprolongamento(umatravessiainconclusa,talvez)dohermetismoprópriodotexto.
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Existem,aliás,lugaresdentrodaobradoescritormineiro
queseapresentamcomoverdadeirasfendasdotecidonarrativo,
comoestóriasoudimensões“enabîme”emqueconseguimos
entrevereapanharporinstantesosentidointegraldotexto,o
seuvalorimplícitoeasuaintençãodedizeraquiloquenãopode
serditodemodoexplícitoeque,justamenteporisso,sópodeser
inter-dito,ouseja,“ditoentre”,colocadonolimiarentreadecisãoeademanda.Umdelespode,ameuver,serlocalizadono
interiordafalacambaleante,docontarerecontaremaranhado
deRiobaldo.Osinaldeatenção,oalarmeparaaimportânciado
eventocontadoédado,nocasodequeeuquerotrataraqui,pelo
próprioautor:
Rir,oqueseria.Demesmocomaspenúriasedescômodos,a
gentecareciadeacharosasesnaquelepovodesujeitos,que
viviamsóporpaciênciaderemedarcoisasquenemconheciam.Ascriaturas.
Maseunãori.Ah,daí,nãorihonestonuncamais,emminha
vida.1
Oquepodeimpedir,demododefinitivo,oriso(o“riso
honesto”,certo,masorisodesonestoéapenasodeboche;éum
esgar,umagrimace,comodiriamosfranceses,remetendopara
umasituaçãodedesassossego,degozoinquietoouperverso)?
Oquepode,enfim,tirarparasempreosorrisoeaalegria?Essa
tristezasúbitaecompleta,essamortalhadelutoedesespero
apartandoTataranadosseuscompanheiroséalgoquedesperta
anossaatençãoenosencaminhaparaumareleituraatentado
contexto,ajudando-nostalvezadescobrirofundoverdadeiro,
histórico(outalvez,pós-histórico),escondidonasdobrasda
estória,nosrecantosou,justamente,nasmargensdaficção.
Defato,aquiloqueacabadeaconteceréoaparecimento
doscatrumanos:genteinesperada,vindanãosesabedeque
lugaredequetempo,quesedeparanafrenteeàvistadobando
dejagunçoschefiadosporZéBebelo.Estamos–comonosmostrouWilliBolle2–transviadosnolabirintodossertões,onde
aviagemperdeumomentaneamenteoseualvo,eareaçãode
Riobaldopoderiaserapenasofrutodessetranstorno,dessafalta
deperspectivasqueobandointeiroestávivendo.Maselesu-
1ROSA,JoãoGuimarães.Grandesertão:veredas.15.ed.RiodeJaneiro:José
Olympio,1982.p.293.DoravanteGS:V.
2BOLLE,Willi.Grandesertão:cidades.RevistaUSP,SãoPaulo,n.24,p.80-93,
dez.-fev.1994/95.
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blinha,todavia,queasuaatitudeeoseumododereagiràquele
encontroésódele:
Bobéiaminha?Porqueoscompanheiros,indocuidandodoseuramerrãocomum,nenhumnãopunhatentoemdessasidéias.Então
erasóeu?Era.Eu,queestavamal-invocadoporaquelescatrumanosdosertão.Dofundodosertão.Osertão:osenhorsabe.3
Portanto,aposturadiantedavisãodaquelepunhadode
miseráveiséabsolutamentepessoal,apartandoRiobaldodos
outros,sobretudopelofatodeleoconsiderarlogoumsinalde
azar:“ahoratinhadeserocomeçodemuitaaflição,eupressentia”4.Eapergunta,nesteponto,ésobreosmotivosdetanta
perturbação,vistoque,afinal,Riobaldojávinhapassandopor
muitaviolênciaemuitosapertos,jávinhaassistindoacenasde
pobrezaededesamparo,eaquelepovofamintoemaltrapilho
nãoaparentava,nofundo,constituirumaexceçãotãogritante
dentrodageralmisériasertaneja.
Arespostapoderiaserdadaemváriosníveis(político,social,históricoouético),maseuachoqueaquiestamospertodo
núcleotrágicodaobra,nocentrododramaexistencialmontado
porJoãoGuimarãesRosa,ouseja,queosurgimentodaqueles
“homensdeestranhosoaspecto”(aquesepoderiaassociara
passagemsucessivapelopovoadodeSucruiú,quejáentra,
porém,noperíodode“muitaaflição”prenunciadoporeles)é
efetivamenteumaespéciedelimiarsimbólicoquedáacessoa
umadimensãoabismalouinfernal,marcadapelopacto,pelo
combatenoParedãoepelamortedeDiadorim.Sabe-se,aliás,
queRosagostavadedisseminaremsuaescritaindíciosou“préavisos”5:ummododevaguearentreostemposdanarrativa,
avançandoeregredindonumarededefatosdispostosdeforma
con-torcidaouredobrada,nasidasevoltasdodiscurso.Masa
vistadoscatrumanos,oseupuroexistir,apresenta-se-noscomo
algomaisdoqueumsimplesaviso:elessãoafronteira,extrema
ouanterioratudo,quedáenegaoacessoaumadimensão
medonhaeterrível;nasua“estúrdia”evidência,nasuaaturdida
bestialidade,elessãoaomesmotempoasvítimaseoscarrascos
3GS:V,p.295.
4GS:V,p.293-4.
5SPERBER,SuzyF.GuimarãesRosa:signoesentimento.SãoPaulo:Ática,
1982.p.119-22.
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deumdelitohorrendo,queéhistórico,ésocial,épolítico,é,
enfim,humano–“demasiadohumano”,talvez.
Defato,Riobaldojunta-os,enquantovítimas,numacompaixãoinfinita(“tanteeipenadeles,grandepena”6 ),paradepois
cultivarumasensaçãomontantedemedo,quesealastraaté
chegaraumavisãoapocalíptica:
Ederepenteaqueleshomenspodiamsermontão,montoeira,
aosmilharesmísecentosmilhentos,vinhamsedesentocando
eformando,dobrenhal,enchiamoscaminhostodos,tomavam
contadascidades.[…]Epegavamasmulheres,epuxavampara
asruas,compouconemsetinhamaisruas,nemroupinhasde
meninos,nemcasas.Eraprecisodemandartocardepressaos
sinosdasigrejas,urgênciaimplorandodeDeusosocorro.7
Opequenogrupodecatrumanossetornamultidão,na
fantasiaassustadadeTatarana,agentes,então,deumtumulto8
quenãopodesercontido,deumasubversãoinfinitaesemconfins,deumestadodeexceçãoincontrolável,espalhando-sedo
fundodosertãoatéascidades,levandoconsigoesendolevados
porumaviolênciasemnomeesemnormaquetudodestrói.Os
poucossetornamumaturbaeaturbaprovocaumturbilhão
(parausarumasugestivaimagemdeMichelSerres9 ),jogando
osujeitoeomundonumasituaçãodetotalanomia:éoMalse
expandindoemtodasasdireções–nãomaiso“redemunho”no
meiodarua,repare-se,masaperversãocompletaarrastando
tudoconsigo,ovórticeouavoragemengolindotudoedeixando
ahumanidadenumacondiçãodeintolerávelaporia,ouseja,
etimologicamente,numacondiçãoemque“nemsetinha(nãose
tem,nãoseterá…)maisruas”.
Agentesdessahipotéticaeversão,oscatrumanosestão
foradela,estãoforadequalquerconsciênciadesiedomundo,
estãoforadequalquerlinguagem,estãoforadetodaconsideraçãoéticaoupolítica–elessão,enfim,esseforaqueé,porém,
odentromaisinternoeprofundodohomem,representando,de
fato,anaturezabrutaleferina,escondida“nosocos”dosertão,
6GS:V,p.291.
7GS:V,p.295.
8AGAMBEN,Giorgio.Statodieccezione.Torino:BollatiBoringhieri,2003.p.
56,passim.
9SERRES,Michel.Genèse.Paris:Grasset,1982.p.112-13.
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numespaçoatópicoeintersticial,numtempoanteriorouposterioratodosostempos.
Ojeitodeestremecer,deles,àsvezes,eratodo,eradebanda;
masaquilosendodanaturezaconstantedocorpo,enãotemor
–pois,quandopegavamreceio,iamficandoeramaisescuros,
erespiravamcomroncadorumor,quietosali.Queaqueleshomens,eupensei:quenemmansasferas;istoé,quenocomum
tinhammedopessoaldetudonestemundo.10
Comosesabe,aobrarosianalidafreqüentementecom
essassituaçõesextremas,compersonagensocupandoaquele
lugarmedianoe“impossível”entreohumanoeodesumano,que
Heideggerdefiniu,apartirdeRilke11,como“oAberto”12 ,mas
aquiénosdito–enãoapenasrepresentado,expostonasuaassombrosaevidência(comoacontece,porexemplo,em“Meutioo
Iauaretê”)–,aquiétornadomanifestoepostoempalavrastodo
ohorroreomedoqueelessuscitam:terrordeumfundamento
recalcado,deumadiferençaquesepercebedemodoconfuso
comoomaisprópriodohomem,comoumlugararquetípicoe
infernalpeloqualtodosnóssomos,aumtempo,convocadose
repelidos(“mal-invocados”,nasugestivaexpressãodeRiobaldo).
Oquemaisdigo:convémnuncaagenteentrarnomeiodepessoasmuitodiferentesdagente.Mesmoquemaldadepróprianão
tenham,elesestãocomvidacerradanocostumedesi,osenhor
édeexternos,nosutilosenhorsofreperigos.Temmuitosrecantosdemuitapeledegente.13
Nãoporacaso,emrelaçãoaoscatrumanos,foilembradaa
imagemdosseringueirosdaAmazôniadesenhadaporEuclides
daCunha(“umhíbridodedemônioetruão,habitantesdeum
mundoperdidonopassado”14 ).TambémnoromancedeRosa,de
10GS:V,p.292.
11RILKE,RainerMaria.DuineserElegien.FrankfurtamMain:InselVerlag,1923.
p.48-53.Trad.it.:RILKE,RainerMaria.Elegieduinesi.Torino:Einaudi,1978.
12AGAMBEN,Giorgio.L’aperto:l’uomoel’animale.Torino:Bollati
Boringhieri,2002.p.60-5.
13GS:V,p.294.
14STARLING,Heloisa.LembrançasdoBrasil:teoria,política,históriaeficção
emGrandeSertão:Veredas.RiodeJaneiro:Revan;UCAM/IUPERJ,1999.
p.157,nota.
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fato,aquiloqueédescritoéumacategoriadepessoashabitando
umadimensãofronteiriçaeambígua,umterritório“àmargem
dahistória”(“nostemposantigos,deviadetersidoassim”15 ):indivíduos,então,demorandonumahistória,decertomodo,póstuma,numaespéciedefuturodopassadonoqualvigoraainda
umjogoextremoesemregras,emqueaapostaéaprópriavida
nasuabiológicanudeze/ounasuaessênciabio-política.Gente,
então,sobrevivendonumestadodemisériaabsoluta,carentes
detudoepossuindo,dentroouatrásdasuaaparênciaridícula
(“rir,oqueseria”),apenasaquelaforçatelúricaeabismal,
aquelepoder“mágico”oudemoníaco(khthónios,comodiziam
osgregos)quevemdasuanaturezaancestraletosca,doseuser
umlimiar,umamargemanômicaeinaccessívelapartirdaqual,
todavia,constitui-seumahistóriaeinstitui-seumacomunidade
–umadimensãosocial,enfim,regidapeloPoderepelaLei.
Porque,certamente,apessoaquenãotemnadaapavora
(“dehomemquenãopossuinenhumpodernenhum,osenhor
tenhamedo!”16 ).Masésónessatotaldespossessão,ésónessa
exclusãodequalquertipodeautoridadequesetornammanifestos,porparadoxo,osmecanismosqueregemasrelaçõesde
Poder,osmodosemqueaPolíticaseapodera,deformaautoritária,daexistênciaindividualnomundomoderno.Enessa
perspectiva,éinteressantenotararelaçãoprivilegiadaeaparentementeinexplicávelqueseinstituientreoscatrumanoseZé
Bebelo:umarelaçãoexclusivaeexcludente,atéopontoemque,
quandoeleédestituídodachefiadosjagunços,algunsdaquela
“raça[…]diverseadadistante”17pedemlicençaaonovochefe,
Urutu-Branco,parasairdobandoeeleconsente,raciocinando:
Aoqueaqueleshomensnãoerammeusdelei,eramdeZéBebelo.EZéBebeloeraassiminstruídoeinteligente,emsalãode
fazenda?Desisti,dado.Nãobaboseio.[…]Estúrdioéoquedigo,
nestaverdade–que,eulivrelongedeles,desaluídosqueeles
estavamcomigo;mas,euquisessecomganaepréstimodeles,
entãosómeserviameranafalsidade…Osenhormeentende?E
digoqueeleseramhomenstãodiversosdemim,tãosuportados
nascoisasdeles,que…porcontaroqueachei:quedeviadeter
pedidoaelesalembrançademuitorezarempormeudestino…18
15GS:V,p.290.
16GS:V,p.294.
17GS:V,p.294.
18GS:V,p.378.
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Osqueseafastamnãosão,naverdade,oscatrumanosdo
Pubo,masos“dosGerais,cabrasdoAlto-Urucúia.Osprimeiros
quecomZéBebelotinhamvindosurgidos”19;suanaturezaé
todaviaamesma:tambémelesrepresentamomundoarcaico,
escondidonos“ocos”dosertão,tambémeleshabitamumtempo
distante,aindaimbuídodeumsentidomágicoereligioso–tanto
assimqueelesparecemperceberamudançadeRiobaldodepois
dopacto,querendovoltaraoAlto-Urucúia,eRiobaldo,porsua
vez,suspeitaqueadefecçãodelessejaumsinalde“agouro”,
sentindoatévontadedepedir-lhesquerezemporseu“destino”.
Mascreioqueoselementossignificativossejamaqui,por
umlado,acumplicidade,arelaçãodesubmissão“legal”entre
eleseZéBebelo(“nãoerammeusdelei,eramdeZéBebelo”);e,
poroutrolado,adiferençaqueosseparadeRiobaldo(“eleseram
homenstãodiversosdemim”).Interrogararazãodestacondiçãoduplasignifica,ameuver,penetrarnaestóriaatédescobrir
aquelahistóriaqueela,negando,reafirma.Defato,desdeoinício,
éZéBebeloquetravacontatocomoscatrumanos,éelequeos
congregacomosoutrosjagunços–eissopodeparecerestranho,
vistoqueestepersonagemésempreapresentadocomooportador
deumainstânciademodernidadeedelegalidade,comooagente
daordemedoprogressonomundoarcaicodossertões.Oquetem
eleavercomosemblemasmaispatentesdoatraso,damiséria,
daignorância,damaldadeeilegalidadereinandonomundo
sertanejo?Consideroquearespostaébastantefácil,sepensarmos
quetambémele,apesardetudo,éumaespéciedefiguraliminar,
aomesmotempoforaedentrodaquelarealidadequeatravessa,
atécomoregenteoudefensordela.ComotemsublinhadoHeloisa
Starling20,paraZéBebelovaleparasempreasentençadeJoca
Ramiro:“Osenhornãoédosertão.Nãoédaterra…”21:donoda
palavrarequintadaeastuciosa,defensordaleidoEstadoedasua
Razão,ele,porém,estáforadasuapátria,foradalógicaantigado
sertão,foradomito–é,enfim,umoutsider,vistoqueasuaterra
eoseunómossãoalhures,nãoconseguindo,porisso,alcançar
nenhumdosseusobjetivos:
Defato,emmeioàsuaperambulaçãosemfim,ZéBebelofoi
semeandoruínas,porondepassava,multiplicandosempreo
19GS:V,p.375.
20STARLING,Heloisa.LembrançasdoBrasil:teoria,política,históriaeficção
emGrandeSertão:Veredas.RiodeJaneiro:Revan;UCAM/IUPERJ,1999.p.
151.
21GS:V,p.199.
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mesmogestoescorregadio,profundamenteempenhadonoesforçodeconstruçãodomodernoapenasparasedesmaterializar
emseguida,ecomoquedesvanecernapaisagem.22
Nessaperspectiva,pensoquearelaçãoprivilegiadaentreos
catrumanos,agentesimagináriosdoTumulto,produtoreshipotéticos
deCatástrofes,eeste“semeadorderuínas”podesercompreendida
apenasnaqueleforaqueosliga,naquela“plenaeadversaexterioridade”23emqueseencontram–naqueleAbertoounaquele“estado
deexceção”,finalmente,emquepermanecemsuspensos.
Defato,jánabemconhecidarespostaqueZéBebelodáà
perguntadeumdelessobreasuaprocedência,podemosleresta
duplaexclusão:
–“Oquemalnãopergunto:dondeseráqueossenhorestáservidodeestandovindo,chefecidadão,comtantosagregadose
pertences?”
–“Ei,doBrasil,amigo!”–ZéBebelocantouresposta,alta
graça.–“Vimdepartiralçadaeforo:outralei–emcadaesconso,nastoesasdestesertão…”24
Seficaclaroqueoscatrumanosnãocompartilhamo
mesmoespaço“legal”dosjagunços,tambémochefeprovisório
destesparece,comsuaresposta,colocar-seforadaleisertaneja.
Ouseja,ambososinterlocutoresficamnumasituaçãodeanomia
emrelaçãoaoterritórioque,apesardetudo,ocupam:um,vindo
dumadistânciaedumacronologiaincomparáveisemrelaçãoao
tempoeaoespaçojagunços,chegandodumadimensãoligadaà
póliseimediatamentepolítica;osseusinterlocutores,habitando
umtempoforadahistóriaeumespaçosemgeografia–aqueles
“ocosdosertão”,aquelaregiãoque“seescondeemsimesma”
(parautilizaraindaumaimagemqueEuclidestiradeJohn
Milton,aplicando-aàAmazônia 25 ).Ederesto,jáaresposta
queZéBebelotinhadadoàacusaçãodeJocaRamirodenão
22STARLING,Heloisa.LembrançasdoBrasil:teoria,política,históriaeficçãoem
GrandeSertão:Veredas.RiodeJaneiro:Revan;UCAM/IUPERJ,1999.p.156.
23Ibid.p.151.
24GS:V,p.293.
25CUNHA,Euclidesda.Umparaísoperdido:ensaios,estudosepronunciamentossobreaAmazônia.Org.porL.Tocantins.RiodeJaneiro:José
Olympio;FundaçãodeDesenvolvimentodeRecursosHumanos,daCulturae
doDesportodoGovernodoEstadodoAcre,1986.p.201.
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pertenceràterraparecebastantesignificativa:“Soudofogo?
Soudoar?Daterraéaminhoca–queagalinhacomeecata:
esgaravata!”26:tambémele,então,viveapenasno“rebuliço”(ele
veio,defato,para“rebolircomosertão”),habitanotumultoou
noturbilhãoquesemeiaruínas,guardandosempreasuaidentidadeexcepcionale,aomesmotempo,excetuada.
Sabe-se,aliás,queoestadodeexceçãoéumafigurajurídicapelaqualoPodersevaledoDireitoparaosuspenderese
tornarassim“soberano”.ComoescreveuGiorgioAgamben:
seaexceçãoéaestruturadasoberania,asoberanianãoé,
então,nemumacategoriaexclusivamentejurídica,nemuma
potênciaexternaaodireito(Schmitt),nemanormasupremado
regimentojurídico(Kelsen):elaéaestruturaorigináriaemque
odireitoserefereàvidaeaincluiemsimesmaatravésdasua
própriasuspensão.27
Eomesmoautoresclarecequeaformamaisclaraemque
estapotênciaseexprimeéobanimento:
aquelequeébanidonãoésimplesmentecolocadoforadaleie
indiferenteaela,maséabandonadoporela,istoé,éexpostoe
arriscadonolimiaremquevidaedireito,externoeinternose
confundem.28
Semquereraprofundarmuitoaanálisedestafiguraambíguaetrágicadoordenamentopolítico,possoporémchamar
aatençãoparaofatodequeZéBebelorepresenta,noromance
rosiano,umPoderexternoeestranho(“Ei,doBrasil,amigo!”)
queusaaguerraeaviolência–suspendendo,porisso,asua
“legitimidade”–paraafirmarasuasoberaniasobreum“mundo
àrevelia”.Umasoberania,aliás,quesealiacomoseuoposto
aparente,comosque,nodizerdeRiobaldo,nãopossuem“nenhumpodernenhum”,vivendonumacondiçãodeabandono
completoedetotalanomia.
Nãoporacaso,noromancesedelineiaumduplomovimentolevandoZéBebelo,“chefecidadão”,a“rebolircomosertão
comodono”,eoscatrumanos,naimaginaçãodeRiobaldo,a
26GS:V,p.199.
27AGAMBEN.Giorgio.Homosacer:ilpoteresovranoelanudavita.Torino:
Einaudi,1995.p.34.
28Ibid.,p.34.
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“tomarcontadascidades”:oencontroentreelessedá,maisuma
vez,naquelelugarbanidoeabandonado,dominadoporumalei
bandida,queéosertão–oGrandeSertãoseconfirmando,por
isso,comoespaçofronteiriçodeumalutae,aomesmotempo,de
umcompromissoabsurdoentreoDireitoeoseuoposto,entre
oPodersoberanoeavidanua(parausaraindaumaexpressão
deAgamben,lembrando,porsuavez,outradeBenjamin).Eas
marcasdessepactosão,umavezmais,asdaexploraçãomaldosadoMal,doaproveitamento“político”daquelagenteforada
históriaedasociedadeparafinsquenadatêmavercomeles:
instrumentoscegosemudosdeumaguerraquenãolhesdiz
respeito,tendocomoobjetivoahegemonianaqueleBrasilquenão
lheséPátria,naquelePaísqueélongeequeos“excetua”,istoé,
os“segurafora”(vistoqueoverboexcipiovemdeexcapio–literalmente“tomofora”–emantémoduplosentidode“recolher”e
“excluir”)nasuafaltadetudoenoseufaltaratudo.
Nessesentido,acenaemqueTataranatentajuntaroscatrumanosaobandodos“seus”jagunçoséaltamentesignificativa:
Aquelagentedepunhaquetãoaturadadetodasaspobrezas
edesgraças.Haviamdevir,junto,àmansaforça.Issoera
perversidade?Maislongedemim–queeupretendiaeraretirar
aqueles,todos,destorcidosdesuasmisérias.[…]Ah,oscatrumanosiamdeser,derefrescos.Iam,quenemonçascomedeiras!
Nãoentendiamnada,assimatarantados,comtemorouviam
minhadecisão.29
Riobaldo,opactário,querusarparaosseusfinsabrutalidadedaquelagenteesedáobscuramentecontada“perversidade”dessegestoassimilando,à“mansaforça”jagunça,a
violênciaforadequalquercontroleoulegitimidadedoscatrumanos.Mesmoassim,permanecefirmenoseupropósito,escolhendo,porém,umaperspectivadiversadadeZéBebelopara
associaraquelagente“estúrdia”aoseuintentohegemônico:não
querimpor“outralei”,masvaler-sedeles–elesqueestãofora
dequalquerDireito,banidoseabandonadospeloPoder–nasua
pessoalguerraaomundo,noseuprojeto“ilegal”deauto-afirmação,noseudesejodeglória:
Adivinheiavaliademaldadedêles:soubequeelesmerespeitavam,entendiamemmimumavisãogloriã.Nãoqueriam
tercobiças?Homenssujosdesuaspelesetrabalhos.Elesnão
arcavam,feitocriminosos?–“Omundo,meusfilhos,élonge
29GS:V,p.336.
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daqui!”–eudefini.–Sequeriamtambémvir?–perguntei.Ao
vavar:oqueeraumdizerdesseguido,conjunto,emquemalse
entendianada.Ah,essesmelhorsesabiamsemudossendo.30
Gentequenãoégente(senão,repare-se,dentroeatravés
daviolênciaqueaidentificanasuaanomiaenoseuanonimato,noseuserturba);“raçadiverseadadistante”quenãotem
palavra,oumelhor,quesónasuamudezsetornacompreensível;emblemasradicais,enfim,deumacorporeidademedonha
eturbulenta,oscatrumanossãoamão-de-obrabarataeirrisória
queoPoderincluinoseudiscurso,nomesmogestoqueosexclui.Povomiseráveleessencial,marginalizadoefundamental,
carenteefaminto,quesedispõenolimiarincertoentreRegiãoe
Nação,entreSertãoeCidade,entreoBrasileoMundo,ficando
longedessaspolaridadese,simultaneamente,presodentrodelas,
nasuaexceçãoenasuaintolerávelevidência,queostornaalvo
eagentesdeumaforçaprofundamenteinjusta,deumasoberania
absolutaesempiedade:
Aífoiqueeupenseioinfernofeiodestemundo:quenelenãose
podeveraforçacarregandonascostasajustiça,eoaltopoder
existindosóparaosbraçosdamaiorbondade.31
Lugarcontinuamenteabertododegredo,espaçodobanimentoedoabandono,pátria,finalmente,deumdireitobandido
(jagunço),emquealeivigeapenasemsuaprópriasuspensãoou
emsuaambíguacaricatura(comonojulgamentodeZéBebelo),
oGrandeSertãosequalificacomoadimensãointermediáriae
depermuta,olimiarsimbólicoerealondeoBrasileoMundose
espelhamnasuarecíprocanegação:instânciastãopróximasetão
longínquasdasquaisdecorreumPoderautoritárioqueseaplica
tãosomenteemseuausentar-se,deumaLeisemanifestando
apenascomoforçasemalvooutendocomoúnicoobjetivoasua
puraeocamanutenção.ViolênciaeAutoridade–confundidasna
críticadaGewalt(palavramantendojustamente,emalemão,esses
doissignificados)propostaporWalterBenjamin–searticulam,
porisso,numazonavaziaemedonhaemquealógicahistóricaé
revogada:territóriobaldiocolocadonosconfinsdotempoehabitadoapenasporhomensdebruçadossobreoabismohorrorosose
abrindoentreoSereoNada;porhomenspóstumoseexcetuados,
quevivem,enfim,nos“avessos”dequalquerhumanidade.
R ECEBIDOEM:DEZ.2006A PROVADOEM:JAN.2007
30GS:V,p.336.
31GS:V,p.295.
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