Academia.eduAcademia.edu

Entrevista Com Joan Wallach Scott

2009, Estudos Feministas

Paris, 2 de fevereiro de 1998. Na França para o lançamento do seu livro La Citoyenne Paradoxale (Paris, Plon, 1998)-em inglês Only Paradoxes to Offe►), Joan Scott concede uma entrevista às antropólogas brasileiras Miriam Grossi (MG), Maria Luiza Heilborn (MLH) e Carmen Rial (CR). A idéia surgiu durante a palestra da historiadora norte-americana na École Normale Supérieur. O objetivo era uma conversa sobre a trajetória intelectual de uma pesquisadora prestigiada no Brasil e ainda relativamente desconhecida na França, apesar da intimidade com que trata a história francesa. Joan Scott, que atualmente trabalha no Centro de Altos Estudos de Princeton, é uma especialista do movimento operário do século XIX e da história do feminismo na França. Atestam Les Veniers de Carmaux Paris, Flammarion, 1982 (1974 para a edição em inglês), livro baseado em sua tese de doutorado, cuja pesquisa foi feita no sul da França e terminada no movimentado ano de 1968, e La Travailleuse, capítulo da enciclopédia Histoire des Femmes en I'Occident (PERROT, Michèle e FRAISSE, Geneviève (org.), Paris, Plon, 1992, já traduzido para o português), onde diz ter utilizado o método foucaultiano para desconstruir a noção de "trabalhadora". Ela escreveu, além desses trabalhos, Les Femmes, le Travail et la Famille (com Louise TILLY, Paris, Rivages, 1987-na edição em inglês Women, Work and Family, 1978) que é uma pesquisa comparativa entre a França e a Inglaterra; Gender and the Politics of History, livro teórico, fruto dos primeiros anos de ensino de gênero e história; e organizou, com Judith Butler, Feminists Theorise the Political (Londres, Routledge, 1992). Joan Scott chegou emocionada à Place d'italie, lugar do encontro para a entrevista: acabara de ver seu livro exposto na vitrine de uma livraria. Ela ignorava o Ponto de Vista 1 Joan Wallach Scott sucesso do artigo Gênero, uma Categoria Útil de Análise Histórica (publicado em português in: Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 16, n. 2:5-22, dez., 1990) no Brasil, um país que confessa conhecer pouco, e se mostrou agradavelmente surpresa ao saber das inúmeras citações que ele tem merecido. Apesar do inesperado, permitiu que a conversa fosse gravada em vídeo, para posterior edição ("desde que eu não me veja depois..."). O tom do depoimento é descontraído e foi realizado em francês, língua estrangeira para todas as participantes. Miriam Grossi-Gostaríamos de iniciar com uma pergunta relativa ao seu texto Gênero, uma Categoria Útil de Análise Histórica, bastante conhecido e citado no Brasil. Você ainda acredita no que disse ali sobre o gênero? Se não, qual é a sua definição atual? Joan Scott-Quando falo de gênero, quero referir-me ao discurso da diferença dos sexos. Ele não se refere apenas às idéias, mas também às instituições, às estruturas, às práticas quotidianas, como também aos rituais e a tudo que constitui as relações sociais. O discurso é um instrumento de ordenação do mundo, e mesmo não sendo anterior à organização social, ele é inseparável desta. Portanto, o gênero é a organização social da diferença sexual. Ele não reflete a realidade biológica primeira, mas ele constrói o sentido dessa realidade. A diferença sexual não é a causa originária da qual a organização social poderia derivar. Ela é antes uma estrutura social movente, que deve ser analisada nos seus diferentes contextos históricos. Este texto é um parágrafo que escrevi para a edição francesa do livro La Citoyenne Paradoxale e continuo me atendo a essa definição. Maria Luiza Heilborn-Como você reage frente à

Entrevista com Paris, 2 de fevereiro de 1998. Na França para o lançamento do seu livro La Citoyenne Paradoxale (Paris, Plon, 1998) - em inglês Only Paradoxes to Offe►), Joan Scott concede uma entrevista às antropólogas brasileiras Miriam Grossi (MG), Maria Luiza Heilborn (MLH) e Carmen Rial (CR). A idéia surgiu durante a palestra da historiadora norte-americana na École Normale Supérieur. O objetivo era uma conversa sobre a trajetória intelectual de uma pesquisadora prestigiada no Brasil e ainda relativamente desconhecida na França, apesar da intimidade com que trata a história francesa. Joan Scott, que atualmente trabalha no Centro de Altos Estudos de Princeton, é uma especialista do movimento operário do século XIX e da história do feminismo na França. Atestam Les Veniers de Carmaux Paris, Flammarion, 1982 (1974 para a edição em inglês), livro baseado em sua tese de doutorado, cuja pesquisa foi feita no sul da França e terminada no movimentado ano de 1968, e La Travailleuse, capítulo da enciclopédia Histoire des Femmes en I'Occident (PERROT, Michèle e FRAISSE, Geneviève (org.), Paris, Plon, 1992, já traduzido para o português), onde diz ter utilizado o método foucaultiano para desconstruir a noção de "trabalhadora". Ela escreveu, além desses trabalhos, Les Femmes, le Travail et la Famille (com Louise TILLY, Paris, Rivages, 1987 - na edição em inglês Women, Work and Family, 1978) que é uma pesquisa comparativa entre a França e a Inglaterra; Gender and the Politics of History, livro teórico, fruto dos primeiros anos de ensino de gênero e história; e organizou, com Judith Butler, Feminists Theorise the Political (Londres, Routledge, 1992). Joan Scott chegou emocionada à Place d'italie, lugar do encontro para a entrevista: acabara de ver seu livro exposto na vitrine de uma livraria. Ela ignorava o Ponto de Vista 1 Joan Wallach Scott sucesso do artigo Gênero, uma Categoria Útil de Análise Histórica (publicado em português in: Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 16, n. 2:5-22, dez., 1990) no Brasil, um país que confessa conhecer pouco, e se mostrou agradavelmente surpresa ao saber das inúmeras citações que ele tem merecido. Apesar do inesperado, permitiu que a conversa fosse gravada em vídeo, para posterior edição ("desde que eu não me veja depois..."). O tom do depoimento é descontraído e foi realizado em francês, língua estrangeira para todas as participantes. Miriam Grossi - Gostaríamos de iniciar com uma pergunta relativa ao seu texto Gênero, uma Categoria Útil de Análise Histórica, bastante conhecido e citado no Brasil. Você ainda acredita no que disse ali sobre o gênero? Se não, qual é a sua definição atual? Joan Scott - Quando falo de gênero, quero referir-me ao discurso da diferença dos sexos. Ele não se refere apenas às idéias, mas também às instituições, às estruturas, às práticas quotidianas, como também aos rituais e a tudo que constitui as relações sociais. O discurso é um instrumento de ordenação do mundo, e mesmo não sendo anterior à organização social, ele é inseparável desta. Portanto, o gênero é a organização social da diferença sexual. Ele não reflete a realidade biológica primeira, mas ele constrói o sentido dessa realidade. A diferença sexual não é a causa originária da qual a organização social poderia derivar. Ela é antes uma estrutura social movente, que deve ser analisada nos seus diferentes contextos históricos. Este texto é um parágrafo que escrevi para a edição francesa do livro La Citoyenne Paradoxale e continuo me atendo a essa definição. Maria Luiza Heilborn - Como você reage frente à afirmação de Bourdleu, no colóquio realizado na França por ocasião da publicação da coleção História das Mulheres no Ocidente, que considera que a história das mulheres é antes uma história da dominação masculina? Para você o gênero é um princípio geral da organização do mundo? Joan - Considero que, de um lado, isto é verdadeiro, porque a história das mulheres, enquanto grupo considerado diferente, é uma parte da história da dominação masculina. Porque são os homens que construíram as regras, que organizaram a sociedade etc.. Por outro lado, entretanto, penso que isto conduz a evitar idéias mais complexas como as da subjetividade na história, e também à possibilidade, para as mulheres, de se organizarem contra as regras e as idéias que as aprisionaram na esfera privada do século XIX em uma história à parte. Sim, poderíamos começar falando disso, da dominação masculina, mas há também uma história a ser escrita. Uma história que toma a noção de dominação, de poder desigual, que continua a analisar a atividade das mulheres entre elas, as idéias políticas das mulheres... É verdade que a estrutura social constrói as relações homens/mulheres e a idéia da mulher, mas, ao mesmo tempo, considero que a subjetividade e a criação do sujeito são algo mais complexo do que a dominação. MLH - Você acredita na idéia de uma subjetividade feminina? Joan - Sim e não. Não com relação ao essencial. Não creio que exista uma essência das mulheres, uma subjetividade feminina ligada ao corpo, à natureza, à reprodução, à maternidade. Mas acho que existe uma subjetividade criada para as mulheres, em um contexto específico da história, da cultura, da política. MLH - Você está se afastando da posição do diferencialismo à francesa? Joan - Sim. Porque eu insisto sobre a historicização da subjetividade contra aqueles e aquelas que insistem sobre a diferença das mulheres, uma diferença, ou de natureza, ou de cultura, que toma as mulheres como seres sem história. Acho que a idéia da maternidade, do corpo, não constitui necessariamente uma experiência comum. MG - Gostaríamos que você nos falasse de sua trajetória intelectual. Não se sabe, no Brasil, que você é uma especialista da história francesa. O que é que você estudou? Joan - No início, fiz história social. Comecei com os artesãos vidreiros de Carmaux. Foi a minha tese de doutorado. Passei alguns anos em Albi, uma cidade do sul da França, capital do departamento de Tarn, onde está Carmaux. Foi muito interessante. Trabalhei nos arquivos de Carmaux e de Albi. O livro foi inicialmente publicado em inglês. Depois ele foi traduzido para o francês pela Editora Flammarion. Mas depois continuei a trabalhar com o movimento operário. Posteriormente eclodiu, nos Estados Unidos, nos anos 70, o movimento para a emancipação das mulheres. Foram meus alunos que me pressionaram para preparar algo sobre esse movimento, porque não havia ainda curso algum sobre o assunto. Existiam livros, sim, mas eram difíceis de ser encontrados. Não existiam centros de estudos, de pesquisas sobre as mulheres. Mas estava tudo aí, já que o movimento feminista dos anos 20 havia publicado muita coisa sobre o trabalho das mulheres. Comecei, portanto, a estudar e a ensinar a história das mulheres etc.. Com mais razão ainda, porque eu era a primeira professora mulher do Departamento de História da universidade em que eu ensinava na época. E como os alunos me pediam cursos sobre a história das mulheres, e como eu era mulher, o chefe do Departamento me disse: "É preciso fazê-lo". Eu estava na Northwestern University, perto de Chicago. Eu tinha uma amiga, Louise Tilly, e falamos de nossas experiências e das dificuldades que nós tínhamos de achar livros para nossos cursos. Decidimos escrever um artigo juntas sobre a mulher, o trabalho e a família. Como a gente se interessava muito pelo assunto, escrevemos um segundo artigo. Depois do terceiro artigo, decidimos escrever um livro sobre a história da mulher no trabalho e no contexto da família, da maternidade etc.. Tentamos contrastar a Inglaterra e a França e falar algo, no final, sobre outros países. O livro foi publicado em 1978 e traduzido para o francês pela editora Rivages, quatro anos depois. Naquela época eu já havia mudado de universidade. Eu tinha ido para a Brown University, onde havia muitas feministas literatas que haviam estudado Foucault, Derrida, Lacan. Eu também comecei a ler esses filósofos. Começamos a discutir e eu comecei a repensar minhas idéias sobre a história e a história das mulheres. Foi nesse contexto que escrevi o artigo sobre o gênero, influenciada pela "virada lingüística" e também por minhas amigas literatas. Procurei repensar um pouco sobre como fazer a história e como fazer a história das mulheres. E foi para historicizar a categoria "mulheres" que eu desenvolvi a idéia do gênero como categoria de análise para a História. Miriam - E depois que você publicou esse livro com Louise Tilly, você publicou outro com Judith Butler? Joan - Depois desse livro com Louise Tilly publiquei Gender and the Politics of History no qual inseri o artigo sobre o gênero e outros artigos, onde procuro utilizar esse método e demonstrar como se faz história com o conceito de gênero, com uma análise mais textual, com a análise da linguagem. E depois, falando com Judith Butler (porque é sempre falando com amigas que se concebe livros), pensamos em organizar o livro Feminists Theorize the Political. Houve um momento, na história do movimento feminista nos Estados Unidos, em que as feministas insistiram sobre a divisão do trabalho entre teoria e prática, abstrato e concreto, entre teoria e história etc.. Judith Butler e eu éramos contra essa idéia, porque pensávamos (e ainda pensamos assim) que, mesmo que exista uma diferença entre teoria e prática política, não devemos dividir o campo dessa forma, porque, para pensar a política, precisamos da teoria e, para a teoria, precisamos também da experiência prática da política. Assim, procuramos fazer uma coleção de ensaios que poderiam mostrar a necessidade de pensar a teoria com a prática e a prática com a teoria, ao mesmo tempo. Feminists Theorize the Political é uma coleção de ensaios que não tinham sido publicados antes. Eu sou muito orgulhosa desse livro porque dentro dele há artigos muito importantes, que mostram com sutileza como abordar o assunto do feminismo do ponto de vista da política e da teoria ao mesmo tempo. MLH - Você tem nesse livro um artigo chamado Experience, não é? Será que você poderia nos falar sobre ele? Joan - Eu observei, naquela época, que existiam cada vez mais entre os filósofos duas idéias. De um lado, a idéia de utilizar a linguagem e de tomar os textos como textos. Do outro, a de insistir sobre a realidade da experiência e falar da experiência fora de qualquer contexto de linguagem, de mentalidade, de discurso. Esses últimos consideravam a experiência como uma espécie de verdade não suscetível de análise lingüística. Isto me chamou a atenção, porque, de modo geral são pessoas com quem tenho muito em comum. Creio, entretanto, que eles orientaram sua reflexão para a experiência como se isto fosse algo de fundador, e até mesmo algo de ontológico, do movimento político. Resolvi, portanto, escrever esse artigo para insistir na idéia de que mesmo a experiência que sentimos como algo de primário, até mesmo essa experiência, é aquela que se traduz por idéias organizadas, por conceitos culturais, conceitos que possuem, eles próprios, uma história. Foi, portanto, para historicizar e também para teorizar as experiências, que eu escrevi esse artigo. MG - Apenas um parêntesis. Suas reflexões sobre a experiência nos fazem pensar na nossa formação antropológica. Você tem um diálogo com antropólogos como Geertz a quem você agradece, em uma nota nesse artigo. Quais as suas relações com a Antropologia? Joan - Sim, é verdade. Tenho um diálogo com a Antropologia. Acho que os vínculos entre os antropólogos e os historiadores são mais importantes para historicizar a Antropologia e também para introduzir a idéia de cultura, para analisar a cultura na História. É um intercâmbio muito importante para os dois lados. MG - Mas voltemos a sua obra. Você se formou em História da França nos Estados Unidos? Joan - Sim. Formei-me no departamento de História da Wisconsin University, tendo como especialidade a história francesa do século XIX. MG - E foi assim que você chegou às feministas francesas do século XIX até o século XX? Joan - Depois do livro Gender and the Politics of History, recebi críticas, sobretudo por parte de historiadoras feministas, que diziam que eu não fazia mais História, já que eu me interessava pela teoria e pela análise dos textos. Diziam que eu havia me tornado filósofa e que eu tinha abandonado a história. Uma das críticas me atingiu muito: "Joan Scott não vai mais pesquisar nos arquivos; agora ela faz história teórica e portanto não faz mais história". Pensei então: "É preciso fazer algo de histórico, que possa ser tomado como um livro de história". Eu quis fazer as duas coisas ao mesmo tempo, um livro bastante analítico, teórico e que ao mesmo tempo fizesse história. É por isso que voltei à história da França, que aliás não havia abandonado já que no livro Gender and the Politics of History havia artigos sobre as mulheres na França e eu tinha também escrito um artigo para a História das Mulheres no Ocidente sobre a mulher trabalhadora. (Nota: essa coleção também foi traduzida para o português em uma edição portuguesa à venda no Brasil). Para esse artigo, eu parti das seguintes perguntas: Se fosse possível reescrever o livro que eu tinha publicado com Louise Tilly, na perspectiva de Foucault, o que é que eu teria feito? Como pensar o problema da mulher no trabalho, da operária, da trabalhadora de 1860/70 na França? Mas existia além disso outra razão: a de insistir sobre a História. Porque nos círculos feministas dos Estados Unidos houve sempre uma discussão entre as estratégias de igualdade e de diferença. Isto me deixou um pouco doida, porque eu achava melhor desconstruir essa oposição ao invés de trabalhar com ela. Penso que diferença e igualdade são inseparáveis da história do feminismo, pois é o paradoxo do próprio feminismo. Eu usei para título do meu livro em inglês uma citação de Olympe de Gouges, uma mulher da Revolução Francesa que em determinado momento disse: "Não posso mais continuar, porque se eu continuar as pessoas vão considerar que sou uma mulher que só tem paradoxos a apresentar e nenhum problema fácil de resolver". Quando li essa frase, pensei logo que este seria o título de meu livro, porque isto descreve o problema com o qual as feministas francesas se depararam a cada vez que elas tentaram reclamar os direitos do homem. Eu tinha escolhido esse objeto de investigação para escapar desse debate entre igualdade e diferença. E estou ainda certa que é impossível separar essas questões mesmo se as historiadoras descreveram Jeanne Deroin, uma das mulheres desse livro, como diferencialista, e Hubertine Auclert como feminista igualitária. Minha análise dos textos dessas mulheres mostra que é impossível manter esse corte igualdade/diferença. Trata-se sempre de uma questão de pedir, de reparar os direitos iguais em nome da diferença dos sexos, da diferença das mulheres. MG - Como é que esse livro foi recebido nos Estados Unidos? E na França? A recepção foi diferente? Joan - A recepção do livro foi muito menos interessante nos Estados Unidos do que aqui. Aqui as feministas criaram esse movimento pela paridade, movimento que levou o partido socialista a ter 30% de candidatas durante as últimas eleições, para cada lista eleitoral. No governo socialista atual, existe 30% de mulheres em cargos ministeriais. Logo, uma questão muito importante na França é a seguinte: É possível que as mulheres tenham e possam exercer os direitos do homem? Acho que foi o movimento pela paridade que abriu as portas da discussão sobre a questão do estatuto das mulheres na vida política. Logo que meu livro saiu aqui na França quiseram saber minha opinião a respeito da vida política francesa, sobre o estatuto político das mulheres face à República francesa, sobre a paridade etc.. Portanto, a recepção de meu livro foi muito diferente nos dois países, devido aos diferentes contextos políticos. MG - Você pretende continuar a trabalhar com a história do feminismo? Você pretende fazer história contemporânea? Joan - Vou começar como historiadora, pelo passado. Quero saber como as feministas entenderam a "mulher" nos movimentos internacionais no final do século XIX, quando os grandes movimentos internacionalistas foram organizados? Como as idéias sobre o feminismo evoluíram até hoje? Penso que há uma grande diferença entre o conceito deste objeto, a "mulher' no final do século XIX e a "mulher" sujeito dos movimentos feministas mundiais atualmente. Carmen Mal - Voltando à paridade, no seu último artigo na New Left Review, La Querelle des Femmes, você fala dessa defasagem entre as teorias feministas francesas, que são muito fortes na França, e a pequena participação política das mulheres. Como é que você explica isso? Joan - O argumento do livro La Citoyenne Paradoxale é o de que a própria idéia de cidadão, após o voto das mulheres em 1944, fundamentava-se na idéia do indivíduo neutro, abstrato, sem dimensão social ou física, mas que era ao mesmo tempo ligado ao masculino. Mesmo após o voto, a imagem do cidadão republicano era a de um homem de Estado. As mulheres podiam votar, mas somente os homens podiam dirigir o Estado e fazer política. Até as últimas eleições era assim, e sem a pressão do movimento pela paridade isto jamais teria mudado. Agora há cerca de 10 ou 12% de mulheres deputadas, enquanto que anteriormente só havia 5%, o que colocava a França como o país com o menor índice de participação política, de representação política das mulheres, na Europa. CR - Você também diz nesse artigo que estar na política não significa estar sempre "do lado bom" da política. Você chega a citar o caso da mulher que é prefeita de Vitrolles. Joan - Sim, há coisas diferentes. Se acreditamos que existe uma essência, um caráter feminino carregado por todas as mulheres, podemos acreditar que, na política, as mulheres farão coisas diferentes das que os homens fazem. Penso que não é o caso. Como os homens, as mulheres se diferenciam a respeito de questões políticas. Há esta mulher que é prefeita de Vitrolles (da Frente Nacional), houve Margaret Thatcher na Inglaterra, nos Estados Unidos existem mulheres no Congresso que pertencem ao Partido republicano, que são mulheres de extrema-direita. Mas acho que existem duas questões: a questão da representação e aquela da participação das mulheres na vida política. Acho que há duas coisas. De um lado a questão da participação política das mulheres que é uma questão simbólica pois é uma questão de participação das mulheres em qualquer partido e no governo. Do outro lado acho que quando há mais mulheres na política há mais possibilidades de que as feministas lá estejam, e possam influenciar a vida política. MG - Essa questão da paridade é bastante atual no Brasil, porque desde as últimas eleições municipais (em 1996), todos os partidos são obrigados a ter 20% de candidatas mulheres, uma lei que foi aprovada pela pressão das deputadas feministas... Joan - Acho que é uma boa idéia, mesmo que haja a necessidade de quotas. Porque assim as pessoas se habituarão a ter mulheres no mundo político. Daqui a algum tempo essas quotas talvez não sejam mais necessárias. É como a affirmative action nos Estados Unidos que, para acabar com a discriminação, mostra que é preciso preocupar-se com as categorias de pessoas que são excluídas. Aí está o paradoxo: para acabar com a discriminação, para evitar a discriminação, é preciso praticar um pouco de discriminação; e o problema é sempre o mesmo. É preciso reclamar o direito em nome de um grupo que é excluído e existe o risco de se estar essencializando esse grupo social, de se afastar um pouco a idéia de que a criação de um grupo é o produto das relações de poder. Penso que é muito complicado, mas não se pode fazer outra coisa. Não se pode permanecer com 20% ou 30%; é preciso realmente ultrapassar a idéia de que há diferenças entre mulheres e homens que produzem posições políticas diferentes. MLH - Como é que você vê o campo das teorias feministas na França e nos Estados Unidos? Como é que você o chama? Gênero? Women's Studies? Ou Teoria Feminista? Joan - É sempre uma escolha estratégica a de confessar a própria identidade. Penso que devemos sempre tornar as posições críticas. Acho que pratico a teoria feminista porque é ela que melhor descreve a posição que eu tenho como feminista, que deseja modificar as relações de poder homem/mulher. Como historiadora, me interesso muito pela teoria, e assim, a teoria feminista me parece melhor. Hoje a questão do gender é bastante discutida, pois o movimento gay e lésbico introduziu a discussão colocando que a idéia de gênero evita a discussão sobre a sexualidade. Houve, é certo, uma discussão entre Judith Butler e o movimento gay e lésbico, em uma entrevista desta com Gayle Rubin, publicada na revista Differences onde elas falaram da questão da identidade, e também da questão do feminismo e sua relação com o movimento gay e lésbico. Judith recusou a separação entre feminismo e gender studies de um lado e a queer theory e a sexualidade de outro, pois ela insistia que na história do movimento feminista a sexualidade era muito importante. Sempre houve na história do movimento feminista muitas discussões sobre a sexualidade. Ocorreu até mesmo uma grande divisão entre as mulheres que sustentam a posição da livre expressão, e mulheres como Catharine A. MacKinnon, que lutam contra a pornografia. POr isso o movimento feminista é bem mais complicado no que diz respeito à questão da sexualidade. O termo gender acabou se tornando um centro de debates e de discussão. Sou de opinião que talvez jenha chegado o momento, não de retirar o termo gênero, mas de insistir sobre a idéia de que esse termo possui uma história e, como o sugere Donna Haraway, que é preciso traçar essa história, ao invés de insistir na idéia de que se trata de uma categoria cristalizada na terminologia das ciências sociais. A meu ver, portanto, é preciso historicizar o gender. MG - Você está dizendo que talvez este seja o momento para repensar a história do gender. Como é que você vê esse campo agora? No Brasil lê-se muito a literatura americana dos campos do gender. Você acha que existem vários campos teóricos nesse momento nos Estados Unidos? Onde é que você se coloca? Joan - Se é preciso que eu me classifique, eu me classifico como uma pós-estruturalista foucaultiana que adotou o linguistic turn. Mas não gosto dessas categorias porque elas criam oposições que não se sustentam. Existem problemas para os quais é preciso encontrar soluções. Eu quero encontrar soluções trabalhando com conceitos que podem abordar os problemas, como a lingüística e o pós-estruturalismo. MG - Como é que você vê os estudos de gender na França? Aqui o termo genre é raramente empregado, mas se utiliza com freqüência a expressão "diferença sexual" ou "relações sociais de sexo" para designar o que em inglês está classificado nos gender studies. No seu artigo La Querelle des Femmes você fala de Helène Cicoux e de Luce ltigaray, que não são reconhecidas enquanto teóricas do feminismo na França. Como é que você vê o campo na França? Joan - Considero que existem conflitos e complexidades aqui que são encontrados em outros lugares. Como por exemplo no movimento da paridade, existem mulheres pró e contra, mulheres à esquerda, a favor e contra. Existe muita coisa a ser discutida pois há verdadeiros problemas de estratégias de filosofia que o movimento da paridade coloca. Não considero que seja interessante opor as feministas francesas às feministas da América do Norte. Encontrei, nos meios feministas franceses, mulheres (e às vezes até homens) que pensam o problema da mesma maneira que eu. Eu os encontrei. Existem muitas feministas na França que pensam com a teoria do discurso, que falam da linguagem, que utilizam idéias extraídas da antropologia para abordar a questão da história das mulheres. Penso que dizer "diferença de sexos" ou "diferença sexual" é muito menos importante do que colocar a questão em termos históricos. Ou seja, nos perguntar como as relações entre os sexos foram construídas em um momento histórico, por que razão, com que conceitos de relação de forças, e em que contexto político. Este é o verdadeiro problema: historicizar a idéia homem/mulher e encontrar uma forma de escrever uma verdadeira história das relações homens/ mulheres, das Idéias sobre a sexualidade etc.. O problema da idéia de gender é que algumas pesquisadoras/ pesquisadores cristalizaram o homem e a mulher em uma relação conhecida de antemão. Por exemplo, se, quando se diz gender, fala-se do homem em cima/a mulher em baixo, ou o homem no público/a mulher no privado, são as grandes generalizações que fazem perder a ressonância histórica. A diferença dos sexos é um jogo político que é, ao mesmo tempo, jogo cultural e social. Para mim, o mais importante é insistir sobre a historicidade das relações homens/mulheres, as idéias e os conceitos da diferença sexual. MLH - Se o gênero é uma organização social do sexo, qual é o lugar do corpo nessa organização social? Estou pensando no debate entre Judith Butler e Gayle Rubin. Você disse que a sexualidade é um assunto bastante importante para a teoria feminista, mas qual é o lugar do corpo? Joan - Estou de acordo com Judith Butler pois penso que o corpo tem também uma história. E portanto, toma-se o corpo para encontrar algo, para legitimar alguma coisa. Sim, nós temos um corpo, mas o uso do corpo, a idéia do corpo, o conceito do corpo, o status do corpo, isto depende do contexto social e histórico. Acho que não devemos considerar o corpo como algo biológico, dado de antemão, mas que devemos pensar o uso do corpo na retórica, nas discussões sobre a diferença dos sexos. CR - Você disse que nos Estados Unidos as teorias feministas não estão mais na moda, mas quando se entra em uma livraria lá, fica-se surpreso com tudo o que existe... Joan - Eu não quis dizer que não é mais moda, mas que é um assunto que se tornou mais complicado do que antes, quando o gênero era a bandeira das ciências sociais. O gênero se tornou demasiadamente estereotipado, o sinônimo de "mulher", por exemplo. É por essa razão que eu acho que existem problemas de definição. Existem entretanto bons usos do gender, mas, ao mesmo tempo, é preciso sempre pensar a história dos conceitos e até mesmo aquela do conceito de gênero. Porque o gender foi apropriado pelos cientistas das ciências sociais, que nem sempre são feministas.. TRADUÇÃO DE PATRICE CHARLES F. X. WUILLAUME INTp(Kiis k „si ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM "" CIÊNCIAS SOCIAIS Publicações j 1 A REVISTA`BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS (RBCS) existe desde 1986 e já se consolidou como o periódico mais importante na área de ciências sociais stricto sensu. Assinar a RBCS é estar em contato com os temas atuais e as pesquisas recentes realizadas na Antropologia, na Ciência Politica e na Sociologia por pesquisadores do país e bons autores estrangeiros. É um espaço de encontro das inovações na reflexão e no discurso das ciências sociais em que a herança dos clássicos da teoria social é desafiada pelos problemas postos à pesquisa contemporânea. A REVISTA BRASILEIRA DE INFORMAÇÃO BIBLIOGRÁFICA EM CIÊNCIAS SOCIAIS (BIB) é uma publicação semestral que já conta com 44 números que oferecem balanços criteriosos, elaborados pelos mais eminentes cientistas sociais, da bibliografia corrente sobre Antropologia, Ciência Politica e Sociologia. Resumos das teses defendidas, perfis de programas de pós-graduação e centros de pesquisa apresentados a cada edição transformam a BIB emponto de partida para a investigação e para o conhecimento das instituições voltadas para as ciências sociais. Assinatura anual da RBCS (3 edições) Nacional: R$ 30 Internacional: US$ 60 Assinatura anual do BIB (2 edições) Nacional: R$ 20 Internacional: US$ 50 Assinatura anual conjunta (RBCS e BIB) Nacional: R$ 40 Internacional: US$ 90 Envie cheque nominal à ANPOCS: Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 - Sala 116 - USP - 05508-900 - São Paulo - SP Tel. (011) 818-4664 Fax: (011) 818-5043 Nome: Endereço: Cidade: UF: Cep: