Entrevista com
Paris, 2 de fevereiro de 1998. Na França para o
lançamento do seu livro La Citoyenne Paradoxale (Paris,
Plon, 1998) - em inglês Only Paradoxes to Offe►), Joan
Scott concede uma entrevista às antropólogas brasileiras Miriam Grossi (MG), Maria Luiza Heilborn (MLH) e
Carmen Rial (CR). A idéia surgiu durante a palestra da
historiadora norte-americana na École Normale Supérieur.
O objetivo era uma conversa sobre a trajetória intelectual de uma pesquisadora prestigiada no Brasil e ainda
relativamente desconhecida na França, apesar da
intimidade com que trata a história francesa. Joan
Scott, que atualmente trabalha no Centro de Altos
Estudos de Princeton, é uma especialista do movimento
operário do século XIX e da história do feminismo na
França. Atestam Les Veniers de Carmaux Paris, Flammarion,
1982 (1974 para a edição em inglês), livro baseado em
sua tese de doutorado, cuja pesquisa foi feita no sul da
França e terminada no movimentado ano de 1968, e La
Travailleuse, capítulo da enciclopédia Histoire des
Femmes en I'Occident (PERROT, Michèle e FRAISSE,
Geneviève (org.), Paris, Plon, 1992, já traduzido para o
português), onde diz ter utilizado o método foucaultiano
para desconstruir a noção de "trabalhadora". Ela
escreveu, além desses trabalhos, Les Femmes, le Travail
et la Famille (com Louise TILLY, Paris, Rivages, 1987 - na
edição em inglês Women, Work and Family, 1978) que é
uma pesquisa comparativa entre a França e a Inglaterra; Gender and the Politics of History, livro teórico, fruto
dos primeiros anos de ensino de gênero e história; e
organizou, com Judith Butler, Feminists Theorise the
Political (Londres, Routledge, 1992).
Joan Scott chegou emocionada à Place d'italie,
lugar do encontro para a entrevista: acabara de ver
seu livro exposto na vitrine de uma livraria. Ela ignorava o
Ponto de Vista 1
Joan Wallach Scott
sucesso do artigo Gênero, uma Categoria Útil de Análise
Histórica (publicado em português in: Educação e
Realidade, Porto Alegre, v. 16, n. 2:5-22, dez., 1990) no
Brasil, um país que confessa conhecer pouco, e se
mostrou agradavelmente surpresa ao saber das inúmeras citações que ele tem merecido. Apesar do inesperado, permitiu que a conversa fosse gravada em vídeo,
para posterior edição ("desde que eu não me veja
depois..."). O tom do depoimento é descontraído e foi
realizado em francês, língua estrangeira para todas as
participantes.
Miriam Grossi - Gostaríamos de iniciar com uma
pergunta relativa ao seu texto Gênero, uma Categoria
Útil de Análise Histórica, bastante conhecido e citado no
Brasil. Você ainda acredita no que disse ali sobre o
gênero? Se não, qual é a sua definição atual?
Joan Scott - Quando falo de gênero, quero referir-me ao discurso da diferença dos sexos. Ele não se
refere apenas às idéias, mas também às instituições, às
estruturas, às práticas quotidianas, como também aos
rituais e a tudo que constitui as relações sociais. O
discurso é um instrumento de ordenação do mundo, e
mesmo não sendo anterior à organização social, ele é
inseparável desta. Portanto, o gênero é a organização
social da diferença sexual. Ele não reflete a realidade
biológica primeira, mas ele constrói o sentido dessa
realidade. A diferença sexual não é a causa originária
da qual a organização social poderia derivar. Ela é
antes uma estrutura social movente, que deve ser
analisada nos seus diferentes contextos históricos. Este
texto é um parágrafo que escrevi para a edição francesa do livro La Citoyenne Paradoxale e continuo me
atendo a essa definição.
Maria Luiza Heilborn - Como você reage frente à
afirmação de Bourdleu, no colóquio realizado na França
por ocasião da publicação da coleção História das
Mulheres no Ocidente, que considera que a história das
mulheres é antes uma história da dominação masculina? Para você o gênero é um princípio geral da organização do mundo?
Joan - Considero que, de um lado, isto é verdadeiro, porque a história das mulheres, enquanto grupo
considerado diferente, é uma parte da história da
dominação masculina. Porque são os homens que
construíram as regras, que organizaram a sociedade
etc.. Por outro lado, entretanto, penso que isto conduz a
evitar idéias mais complexas como as da subjetividade
na história, e também à possibilidade, para as mulheres,
de se organizarem contra as regras e as idéias que as
aprisionaram na esfera privada do século XIX em uma
história à parte. Sim, poderíamos começar falando disso,
da dominação masculina, mas há também uma história
a ser escrita. Uma história que toma a noção de dominação, de poder desigual, que continua a analisar a
atividade das mulheres entre elas, as idéias políticas das
mulheres... É verdade que a estrutura social constrói as
relações homens/mulheres e a idéia da mulher, mas, ao
mesmo tempo, considero que a subjetividade e a criação
do sujeito são algo mais complexo do que a dominação.
MLH - Você acredita na idéia de uma subjetividade feminina?
Joan - Sim e não. Não com relação ao essencial.
Não creio que exista uma essência das mulheres, uma
subjetividade feminina ligada ao corpo, à natureza, à
reprodução, à maternidade. Mas acho que existe uma
subjetividade criada para as mulheres, em um contexto
específico da história, da cultura, da política.
MLH - Você está se afastando da posição do
diferencialismo à francesa?
Joan - Sim. Porque eu insisto sobre a historicização da subjetividade contra aqueles e aquelas que
insistem sobre a diferença das mulheres, uma diferença,
ou de natureza, ou de cultura, que toma as mulheres
como seres sem história. Acho que a idéia da maternidade, do corpo, não constitui necessariamente uma
experiência comum.
MG - Gostaríamos que você nos falasse de sua
trajetória intelectual. Não se sabe, no Brasil, que você é
uma especialista da história francesa. O que é que você
estudou?
Joan - No início, fiz história social. Comecei com
os artesãos vidreiros de Carmaux. Foi a minha tese de
doutorado. Passei alguns anos em Albi, uma cidade do
sul da França, capital do departamento de Tarn, onde
está Carmaux. Foi muito interessante. Trabalhei nos
arquivos de Carmaux e de Albi. O livro foi inicialmente
publicado em inglês. Depois ele foi traduzido para o
francês pela Editora Flammarion. Mas depois continuei a
trabalhar com o movimento operário. Posteriormente
eclodiu, nos Estados Unidos, nos anos 70, o movimento
para a emancipação das mulheres. Foram meus alunos
que me pressionaram para preparar algo sobre esse
movimento, porque não havia ainda curso algum sobre
o assunto. Existiam livros, sim, mas eram difíceis de ser
encontrados. Não existiam centros de estudos, de
pesquisas sobre as mulheres. Mas estava tudo aí, já que
o movimento feminista dos anos 20 havia publicado
muita coisa sobre o trabalho das mulheres. Comecei,
portanto, a estudar e a ensinar a história das mulheres
etc.. Com mais razão ainda, porque eu era a primeira
professora mulher do Departamento de História da
universidade em que eu ensinava na época. E como os
alunos me pediam cursos sobre a história das mulheres,
e como eu era mulher, o chefe do Departamento me
disse: "É preciso fazê-lo". Eu estava na Northwestern
University, perto de Chicago. Eu tinha uma amiga, Louise
Tilly, e falamos de nossas experiências e das dificuldades
que nós tínhamos de achar livros para nossos cursos.
Decidimos escrever um artigo juntas sobre a mulher, o
trabalho e a família. Como a gente se interessava muito
pelo assunto, escrevemos um segundo artigo. Depois do
terceiro artigo, decidimos escrever um livro sobre a
história da mulher no trabalho e no contexto da família,
da maternidade etc.. Tentamos contrastar a Inglaterra
e a França e falar algo, no final, sobre outros países. O
livro foi publicado em 1978 e traduzido para o francês
pela editora Rivages, quatro anos depois. Naquela
época eu já havia mudado de universidade. Eu tinha
ido para a Brown University, onde havia muitas feministas literatas que haviam estudado Foucault, Derrida,
Lacan. Eu também comecei a ler esses filósofos. Começamos a discutir e eu comecei a repensar minhas idéias
sobre a história e a história das mulheres. Foi nesse
contexto que escrevi o artigo sobre o gênero, influenciada pela "virada lingüística" e também por minhas
amigas literatas. Procurei repensar um pouco sobre
como fazer a história e como fazer a história das mulheres. E foi para historicizar a categoria "mulheres" que eu
desenvolvi a idéia do gênero como categoria de
análise para a História.
Miriam - E depois que você publicou esse livro
com Louise Tilly, você publicou outro com Judith Butler?
Joan - Depois desse livro com Louise Tilly publiquei
Gender and the Politics of History no qual inseri o artigo
sobre o gênero e outros artigos, onde procuro utilizar
esse método e demonstrar como se faz história com o
conceito de gênero, com uma análise mais textual,
com a análise da linguagem. E depois, falando com
Judith Butler (porque é sempre falando com amigas que
se concebe livros), pensamos em organizar o livro
Feminists Theorize the Political. Houve um momento, na
história do movimento feminista nos Estados Unidos, em
que as feministas insistiram sobre a divisão do trabalho
entre teoria e prática, abstrato e concreto, entre teoria
e história etc.. Judith Butler e eu éramos contra essa
idéia, porque pensávamos (e ainda pensamos assim)
que, mesmo que exista uma diferença entre teoria e
prática política, não devemos dividir o campo dessa
forma, porque, para pensar a política, precisamos da
teoria e, para a teoria, precisamos também da experiência prática da política. Assim, procuramos fazer uma
coleção de ensaios que poderiam mostrar a necessidade de pensar a teoria com a prática e a prática com a
teoria, ao mesmo tempo. Feminists Theorize the Political
é uma coleção de ensaios que não tinham sido publicados antes. Eu sou muito orgulhosa desse livro porque
dentro dele há artigos muito importantes, que mostram
com sutileza como abordar o assunto do feminismo do
ponto de vista da política e da teoria ao mesmo tempo.
MLH - Você tem nesse livro um artigo chamado
Experience, não é? Será que você poderia nos falar
sobre ele?
Joan - Eu observei, naquela época, que existiam
cada vez mais entre os filósofos duas idéias. De um lado,
a idéia de utilizar a linguagem e de tomar os textos
como textos. Do outro, a de insistir sobre a realidade da
experiência e falar da experiência fora de qualquer
contexto de linguagem, de mentalidade, de discurso.
Esses últimos consideravam a experiência como uma
espécie de verdade não suscetível de análise lingüística. Isto me chamou a atenção, porque, de modo geral
são pessoas com quem tenho muito em comum. Creio,
entretanto, que eles orientaram sua reflexão para a
experiência como se isto fosse algo de fundador, e até
mesmo algo de ontológico, do movimento político.
Resolvi, portanto, escrever esse artigo para insistir na
idéia de que mesmo a experiência que sentimos como
algo de primário, até mesmo essa experiência, é aquela
que se traduz por idéias organizadas, por conceitos
culturais, conceitos que possuem, eles próprios, uma
história. Foi, portanto, para historicizar e também para
teorizar as experiências, que eu escrevi esse artigo.
MG - Apenas um parêntesis. Suas reflexões sobre
a experiência nos fazem pensar na nossa formação
antropológica. Você tem um diálogo com antropólogos
como Geertz a quem você agradece, em uma nota
nesse artigo. Quais as suas relações com a Antropologia?
Joan - Sim, é verdade. Tenho um diálogo com a
Antropologia. Acho que os vínculos entre os antropólogos
e os historiadores são mais importantes para historicizar a
Antropologia e também para introduzir a idéia de
cultura, para analisar a cultura na História. É um intercâmbio muito importante para os dois lados.
MG - Mas voltemos a sua obra. Você se formou
em História da França nos Estados Unidos?
Joan - Sim. Formei-me no departamento de
História da Wisconsin University, tendo como especialidade a história francesa do século XIX.
MG - E foi assim que você chegou às feministas
francesas do século XIX até o século XX?
Joan - Depois do livro Gender and the Politics of
History, recebi críticas, sobretudo por parte de historiadoras feministas, que diziam que eu não fazia mais
História, já que eu me interessava pela teoria e pela
análise dos textos. Diziam que eu havia me tornado
filósofa e que eu tinha abandonado a história. Uma das
críticas me atingiu muito: "Joan Scott não vai mais
pesquisar nos arquivos; agora ela faz história teórica e
portanto não faz mais história". Pensei então: "É preciso
fazer algo de histórico, que possa ser tomado como um
livro de história". Eu quis fazer as duas coisas ao mesmo
tempo, um livro bastante analítico, teórico e que ao
mesmo tempo fizesse história. É por isso que voltei à
história da França, que aliás não havia abandonado já
que no livro Gender and the Politics of History havia
artigos sobre as mulheres na França e eu tinha também
escrito um artigo para a História das Mulheres no Ocidente sobre a mulher trabalhadora. (Nota: essa coleção
também foi traduzida para o português em uma edição
portuguesa à venda no Brasil).
Para esse artigo, eu parti das seguintes perguntas:
Se fosse possível reescrever o livro que eu tinha publicado com Louise Tilly, na perspectiva de Foucault, o que é
que eu teria feito? Como pensar o problema da mulher
no trabalho, da operária, da trabalhadora de 1860/70
na França? Mas existia além disso outra razão: a de
insistir sobre a História. Porque nos círculos feministas dos
Estados Unidos houve sempre uma discussão entre as
estratégias de igualdade e de diferença. Isto me deixou
um pouco doida, porque eu achava melhor desconstruir
essa oposição ao invés de trabalhar com ela. Penso que
diferença e igualdade são inseparáveis da história do
feminismo, pois é o paradoxo do próprio feminismo. Eu
usei para título do meu livro em inglês uma citação de
Olympe de Gouges, uma mulher da Revolução Francesa que em determinado momento disse: "Não posso
mais continuar, porque se eu continuar as pessoas vão
considerar que sou uma mulher que só tem paradoxos a
apresentar e nenhum problema fácil de resolver".
Quando li essa frase, pensei logo que este seria o título
de meu livro, porque isto descreve o problema com o
qual as feministas francesas se depararam a cada vez
que elas tentaram reclamar os direitos do homem. Eu
tinha escolhido esse objeto de investigação para
escapar desse debate entre igualdade e diferença. E
estou ainda certa que é impossível separar essas questões mesmo se as historiadoras descreveram Jeanne
Deroin, uma das mulheres desse livro, como diferencialista, e Hubertine Auclert como feminista igualitária.
Minha análise dos textos dessas mulheres mostra que é
impossível manter esse corte igualdade/diferença.
Trata-se sempre de uma questão de pedir, de reparar os
direitos iguais em nome da diferença dos sexos, da
diferença das mulheres.
MG - Como é que esse livro foi recebido nos
Estados Unidos? E na França? A recepção foi diferente?
Joan - A recepção do livro foi muito menos
interessante nos Estados Unidos do que aqui. Aqui as
feministas criaram esse movimento pela paridade,
movimento que levou o partido socialista a ter 30% de
candidatas durante as últimas eleições, para cada lista
eleitoral. No governo socialista atual, existe 30% de
mulheres em cargos ministeriais. Logo, uma questão
muito importante na França é a seguinte: É possível que
as mulheres tenham e possam exercer os direitos do
homem? Acho que foi o movimento pela paridade que
abriu as portas da discussão sobre a questão do estatuto das mulheres na vida política. Logo que meu livro saiu
aqui na França quiseram saber minha opinião a respeito
da vida política francesa, sobre o estatuto político das
mulheres face à República francesa, sobre a paridade
etc.. Portanto, a recepção de meu livro foi muito
diferente nos dois países, devido aos diferentes contextos políticos.
MG - Você pretende continuar a trabalhar com a
história do feminismo? Você pretende fazer história
contemporânea?
Joan - Vou começar como historiadora, pelo
passado. Quero saber como as feministas entenderam a
"mulher" nos movimentos internacionais no final do
século XIX, quando os grandes movimentos internacionalistas foram organizados? Como as idéias sobre o
feminismo evoluíram até hoje? Penso que há uma
grande diferença entre o conceito deste objeto, a
"mulher' no final do século XIX e a "mulher" sujeito dos
movimentos feministas mundiais atualmente.
Carmen Mal - Voltando à paridade, no seu último
artigo na New Left Review, La Querelle des Femmes,
você fala dessa defasagem entre as teorias feministas
francesas, que são muito fortes na França, e a pequena
participação política das mulheres. Como é que você
explica isso?
Joan - O argumento do livro La Citoyenne Paradoxale
é o de que a própria idéia de cidadão, após o voto das
mulheres em 1944, fundamentava-se na idéia do
indivíduo neutro, abstrato, sem dimensão social ou física,
mas que era ao mesmo tempo ligado ao masculino.
Mesmo após o voto, a imagem do cidadão republicano
era a de um homem de Estado. As mulheres podiam
votar, mas somente os homens podiam dirigir o Estado e
fazer política. Até as últimas eleições era assim, e sem a
pressão do movimento pela paridade isto jamais teria
mudado. Agora há cerca de 10 ou 12% de mulheres
deputadas, enquanto que anteriormente só havia 5%, o
que colocava a França como o país com o menor
índice de participação política, de representação
política das mulheres, na Europa.
CR - Você também diz nesse artigo que estar na
política não significa estar sempre "do lado bom" da
política. Você chega a citar o caso da mulher que é
prefeita de Vitrolles.
Joan - Sim, há coisas diferentes. Se acreditamos
que existe uma essência, um caráter feminino carregado por todas as mulheres, podemos acreditar que, na
política, as mulheres farão coisas diferentes das que os
homens fazem. Penso que não é o caso. Como os
homens, as mulheres se diferenciam a respeito de
questões políticas. Há esta mulher que é prefeita de
Vitrolles (da Frente Nacional), houve Margaret Thatcher
na Inglaterra, nos Estados Unidos existem mulheres no
Congresso que pertencem ao Partido republicano, que
são mulheres de extrema-direita. Mas acho que existem
duas questões: a questão da representação e aquela
da participação das mulheres na vida política. Acho
que há duas coisas. De um lado a questão da participação política das mulheres que é uma questão
simbólica pois é uma questão de participação das
mulheres em qualquer partido e no governo. Do outro
lado acho que quando há mais mulheres na política há
mais possibilidades de que as feministas lá estejam, e
possam influenciar a vida política.
MG - Essa questão da paridade é bastante atual
no Brasil, porque desde as últimas eleições municipais
(em 1996), todos os partidos são obrigados a ter 20% de
candidatas mulheres, uma lei que foi aprovada pela
pressão das deputadas feministas...
Joan - Acho que é uma boa idéia, mesmo que
haja a necessidade de quotas. Porque assim as pessoas
se habituarão a ter mulheres no mundo político. Daqui a
algum tempo essas quotas talvez não sejam mais
necessárias. É como a affirmative action nos Estados
Unidos que, para acabar com a discriminação, mostra
que é preciso preocupar-se com as categorias de
pessoas que são excluídas. Aí está o paradoxo: para
acabar com a discriminação, para evitar a discriminação, é preciso praticar um pouco de discriminação; e o
problema é sempre o mesmo. É preciso reclamar o
direito em nome de um grupo que é excluído e existe o
risco de se estar essencializando esse grupo social, de se
afastar um pouco a idéia de que a criação de um
grupo é o produto das relações de poder. Penso que é
muito complicado, mas não se pode fazer outra coisa.
Não se pode permanecer com 20% ou 30%; é preciso
realmente ultrapassar a idéia de que há diferenças
entre mulheres e homens que produzem posições
políticas diferentes.
MLH - Como é que você vê o campo das teorias
feministas na França e nos Estados Unidos? Como é que
você o chama? Gênero? Women's Studies? Ou Teoria
Feminista?
Joan - É sempre uma escolha estratégica a de
confessar a própria identidade. Penso que devemos
sempre tornar as posições críticas. Acho que pratico a
teoria feminista porque é ela que melhor descreve a
posição que eu tenho como feminista, que deseja
modificar as relações de poder homem/mulher. Como
historiadora, me interesso muito pela teoria, e assim, a
teoria feminista me parece melhor.
Hoje a questão do gender é bastante discutida,
pois o movimento gay e lésbico introduziu a discussão
colocando que a idéia de gênero evita a discussão
sobre a sexualidade. Houve, é certo, uma discussão
entre Judith Butler e o movimento gay e lésbico, em
uma entrevista desta com Gayle Rubin, publicada na
revista Differences onde elas falaram da questão da
identidade, e também da questão do feminismo e sua
relação com o movimento gay e lésbico. Judith recusou
a separação entre feminismo e gender studies de um
lado e a queer theory e a sexualidade de outro, pois ela
insistia que na história do movimento feminista a sexualidade era muito importante. Sempre houve na história
do movimento feminista muitas discussões sobre a
sexualidade. Ocorreu até mesmo uma grande divisão
entre as mulheres que sustentam a posição da livre
expressão, e mulheres como Catharine A. MacKinnon,
que lutam contra a pornografia. POr isso o movimento
feminista é bem mais complicado no que diz respeito à
questão da sexualidade. O termo gender acabou se
tornando um centro de debates e de discussão. Sou de
opinião que talvez jenha chegado o momento, não de
retirar o termo gênero, mas de insistir sobre a idéia de
que esse termo possui uma história e, como o sugere
Donna Haraway, que é preciso traçar essa história, ao
invés de insistir na idéia de que se trata de uma categoria cristalizada na terminologia das ciências sociais. A
meu ver, portanto, é preciso historicizar o gender.
MG - Você está dizendo que talvez este seja o
momento para repensar a história do gender. Como é
que você vê esse campo agora? No Brasil lê-se muito a
literatura americana dos campos do gender. Você
acha que existem vários campos teóricos nesse momento nos Estados Unidos? Onde é que você se coloca?
Joan - Se é preciso que eu me classifique, eu me
classifico como uma pós-estruturalista foucaultiana que
adotou o linguistic turn. Mas não gosto dessas categorias porque elas criam oposições que não se sustentam.
Existem problemas para os quais é preciso encontrar
soluções. Eu quero encontrar soluções trabalhando com
conceitos que podem abordar os problemas, como a
lingüística e o pós-estruturalismo.
MG - Como é que você vê os estudos de gender
na França? Aqui o termo genre é raramente empregado, mas se utiliza com freqüência a expressão "diferença sexual" ou "relações sociais de sexo" para designar o
que em inglês está classificado nos gender studies. No
seu artigo La Querelle des Femmes você fala de Helène
Cicoux e de Luce ltigaray, que não são reconhecidas
enquanto teóricas do feminismo na França. Como é
que você vê o campo na França?
Joan - Considero que existem conflitos e complexidades aqui que são encontrados em outros lugares.
Como por exemplo no movimento da paridade, existem
mulheres pró e contra, mulheres à esquerda, a favor e
contra. Existe muita coisa a ser discutida pois há verdadeiros problemas de estratégias de filosofia que o
movimento da paridade coloca.
Não considero que seja interessante opor as
feministas francesas às feministas da América do Norte.
Encontrei, nos meios feministas franceses, mulheres (e às
vezes até homens) que pensam o problema da mesma
maneira que eu. Eu os encontrei. Existem muitas feministas na França que pensam com a teoria do discurso,
que falam da linguagem, que utilizam idéias extraídas
da antropologia para abordar a questão da história das
mulheres. Penso que dizer "diferença de sexos" ou
"diferença sexual" é muito menos importante do que
colocar a questão em termos históricos. Ou seja, nos
perguntar como as relações entre os sexos foram
construídas em um momento histórico, por que razão,
com que conceitos de relação de forças, e em que
contexto político. Este é o verdadeiro problema: historicizar a idéia homem/mulher e encontrar uma forma de
escrever uma verdadeira história das relações homens/
mulheres, das Idéias sobre a sexualidade etc.. O problema da idéia de gender é que algumas pesquisadoras/
pesquisadores cristalizaram o homem e a mulher em
uma relação conhecida de antemão. Por exemplo, se,
quando se diz gender, fala-se do homem em cima/a
mulher em baixo, ou o homem no público/a mulher no
privado, são as grandes generalizações que fazem
perder a ressonância histórica. A diferença dos sexos é
um jogo político que é, ao mesmo tempo, jogo cultural
e social. Para mim, o mais importante é insistir sobre a
historicidade das relações homens/mulheres, as idéias e
os conceitos da diferença sexual.
MLH - Se o gênero é uma organização social do
sexo, qual é o lugar do corpo nessa organização social?
Estou pensando no debate entre Judith Butler e Gayle
Rubin. Você disse que a sexualidade é um assunto
bastante importante para a teoria feminista, mas qual é
o lugar do corpo?
Joan - Estou de acordo com Judith Butler pois
penso que o corpo tem também uma história. E portanto, toma-se o corpo para encontrar algo, para legitimar
alguma coisa. Sim, nós temos um corpo, mas o uso do
corpo, a idéia do corpo, o conceito do corpo, o status
do corpo, isto depende do contexto social e histórico.
Acho que não devemos considerar o corpo como algo
biológico, dado de antemão, mas que devemos pensar
o uso do corpo na retórica, nas discussões sobre a
diferença dos sexos.
CR - Você disse que nos Estados Unidos as teorias
feministas não estão mais na moda, mas quando se
entra em uma livraria lá, fica-se surpreso com tudo o
que existe...
Joan - Eu não quis dizer que não é mais moda,
mas que é um assunto que se tornou mais complicado
do que antes, quando o gênero era a bandeira das
ciências sociais. O gênero se tornou demasiadamente
estereotipado, o sinônimo de "mulher", por exemplo. É
por essa razão que eu acho que existem problemas de
definição. Existem entretanto bons usos do gender, mas,
ao mesmo tempo, é preciso sempre pensar a história
dos conceitos e até mesmo aquela do conceito de
gênero. Porque o gender foi apropriado pelos cientistas
das ciências sociais, que nem sempre são feministas..
TRADUÇÃO DE PATRICE CHARLES F. X. WUILLAUME
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