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UM DETALHE, UMA HISTÓRIA: A ETIQUETA DE DOIS LIVREIROS
NA PROVÍNCIA DA BAHIA, POGETTI E DOIS MUNDOS
Resumo: A partir de estudo feito na Biblioteca do Monsenhor Manoel Aquino
Barbosa, o artigo apresenta uma discussão teórica acerca das marcas de
proveniência e contexto das marcas de posse e circulação. Esta visa a expor
algumas propostas epistemológicas sobre esses conceitos por vezes tratados de
forma difusa. Nesse contexto, expõe as potencialidades de pesquisa que vão
além do conteúdo das obras - o que coloca em julgamento a perigosa ideia de
obsolescência meramente baseada no texto dos livros. Para tal, pelo método da
observação e coleta de amostragem, usa como exemplo as etiquetas de duas
livrarias/editoras que existiram e tiveram grande circulação na cidade de
Salvador. O resultado aponta para algo que teóricos da área de Bibliografia
Material mencionaram há décadas, o livro como objeto é muito mais que texto,
o caráter informacional dele é muito superior ao que se supõem. Por essa razão,
nas considerações finais não poder-se-ia deixar de questionar o que tem sido
perdido em bibliotecas que ainda jazem silentes, ou pior, foram destruídas pelo
apagamento criminoso do descarte maciço, sem critério plausível.
Vanilda Salignac de Souza Mazonni
Doutora em Letras e Linguistica
Memória & Arte
orcid 0000-0003-4792-633X
[email protected]
Fabiano Cataldo de Azevedo
Doutor em História
UFBA
orcid 0000-0003-2772-6621
[email protected]
Alicia Duhá Lose
Doutora em Letras e Linguistica
UFBA
orcid 0000-0002-9114-3298
[email protected]
Palavras-chave: Etiquetas de livreiros; Marcas de Circulação; Marcas de
Proveniência.
A detail, a story: The labels of two booksellers in the Province of Bahia:
Pogetti and Dois Mundos
Abstract: Based on a study made in the Library of Monsenhor Manoel Aquino Barbosa, the article
presents a theoretical discussion about marks of provenance and context of ownership and circulating
marks. This aims to expose some epistemological proposals about these concepts sometimes treated in
a diffuse way. In this context it exposes the research potentialities that go beyond the content of the
works - which puts on trial the dangerous idea of obsolescence merely based on the text of the books.
To this end, by the method of observation and sampling, it uses as an example the labels of two
bookstores/publishers that existed and had great circulation in the city of Salvador. The result points to
something that theorists around Material Bibliography have mentioned for decades, the book as an
object is much more than text, its informational character is much higher than what is supposed. For this
reason, in the final considerations one could not fail to question what has been lost in libraries that still
lie silent or worse have been destroyed by the criminal erasure of massive discarding.
Keywords: Booksellers labels; Circulating marks; Provenance.
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1 INTRODUÇÃO
A Europa conta a história da criação da tipografia a partir do século XV, por volta de
1430, através de Gutenberg, ourives na cidade de Mainz, Mogúncia, que preconizou uma
oportunidade de trabalho com a impressão de textos produzidos mecanicamente, em
substituição aos manuscritos. Seu principal papel foi criar os tipos móveis em metal, a prensa
mecânica, e com isso agilizou o trabalho do impressor. Os chineses já praticavam a impressão
no século XI, mas era em blocos de madeira (MCKITTERICK, 2003).
No Brasil, no entanto, a tipografia, oficialmente, só chegou em 1808, século XIX, quase
400 anos depois da invenção europeia, com a assinatura do decreto de 13 de maio, que criou a
Imprensa Régia (Fig. 1), mais tarde conhecida como Typographia Nacional. Antes dessa
criação, todas as impressões demandadas a partir do Brasil, tinham que, obrigatoriamente,
passar pelas licenças e autorizações régias e eclesiásticas portuguesas, além de serem
produzidas na Europa.
Figura 1. Decreto de criação da Imprensa Régia
Fonte: BN Digital
DECRETO
Tendo-me constado, que os Prelos, que se achão nesta | Capital, erão os destinados
para a Secretaria de Estado dos | Negocios Estrangeiros, e da Guerra; e Attendendo á
ne- | cessidade, que há da Officina de impressão nestes Meus | Estados: Sou servido,
que a Caza, onde elles se estabele- | cêrão, sirva interinamente de Impressão Régia,
onde se | imprimão exclusivamente toda a Legislação, e Papeis Di- | plomaticos, que
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emanarem de qualquer Repartiçaõ do | Meu Real Serviço; e se possão imprimir todas,
e quaes- | quer outras Obras; ficando inteiramente pertencendo o | seu governo, e
administração á mesma Secretaria. Dom | Rodrigo de Souza Coutinho, do Meu
Conselho de Estado, | Ministro, e Secretario dos Negocios Estrangeiros, | e da Guerra
o tenha assim entendido, e procurara dar ao | emprego da Officina a maior extensão,
e lhe dará todas | as Instrucções e Ordens necessarias, e participará a este
respeito a todas as Estações o que mais convier ao Meu | Real Serviço. Palacio do Rio
de Janeiro em treze de Maio | de mil oitocentos e oito.
Com a Rubrica do PRINCIPE REGENTE N.S.
Regist.
Na Impressão Regia
Todavia, Martins (2002) comentou que o que sabemos acerca da introdução da imprensa
no Brasil é muito confuso: a primeira pode ter sido uma instalada pelos holandeses entre 1634
e 1640, em Pernambuco, de propriedade de Brée; ou pode ter sido uma que existia no Colégio
dos Jesuítas, no Rio de Janeiro, por volta de 1724, pois foram descobertos impressos da própria
instituição entre os livros da biblioteca; também pode ter sido uma que existiu na Academia
dos Seletos, do Rio de Janeiro, no século XVIII (1752?), mas que sobreviveu pouquíssimo
tempo porque foi descoberta, proibida e caçada. Entretanto, todas essas referências podem ser
meras especulações.
O mais provável é que o primeiro impressor no Brasil, antes mesmo da chegada da
Família Real portuguesa, tenha sido o luso Antônio Isidoro da Fonseca, que em 1747 instalou
no Rio de Janeiro uma pequena tipografia. Todavia, sua iniciativa teve fim em 6 de julho
daquele mesmo ano, quando veio uma ordem de Portugal, através de uma Carta Régia, “[...]
prohibindo que no Brasil se imprimissem livros, obras ou papeis alguns avulsos, sob pena de
serem os infractores enviados presos para o Reino [...]” (BELLO, 1908, p. 14).
Com a descoberta das incursões de Isidoro, foi mandado fechar a tipografia, retido o
maquinário, que deveria ser enviado para Portugal, e que o infrator fosse preso, levado para o
Reino sob a ordem do Conselho Ultramarino, o qual alegava que, para imprimir, o tipógrafo
deveria ter as licenças necessárias. Se em Portugal não havia grande comércio tipográfico,
imagine-se no Brasil. Certamente, geraria prejuízo autorizar uma tipografia na Colônia, além
de ser muito difícil o controle da censura em um país de tamanha vastidão. Em 1750, houve
nova tentativa de criação da oficina tipográfica, entretanto, o pedido de Antônio Isidoro foi
negado – ele desistiu (BORBA DE MORAES, 1979). Não mais se teve notícia do tipógrafo.
Na obra Documentos históricos do Brasil, Mary del Piore (2016, p. 35) levanta a
questão: “Mas por que foi preciso a vinda da família real para se imprimir livros no Brasil?
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Adiante, a própria historiadora responde: “o controle sobre a circulação de ideias, as
proposições sobre a fé e os bons costumes era constante”. Isto significa dizer que, embora não
houvesse tipografias no Brasil, os livros circulavam livremente, por mais que o reino português
controlasse a leitura em suas colônias.
A presença da Família Real portuguesa no Brasil aguçou a percepção de que a criação
de uma tipografia autorizada só tinha vantagens: além de poder censurar de perto todos os
escritos, também permitia imprimir papéis públicos e legislações com exclusividade,
impedindo possíveis levantes políticos.
Para Martins (2002), é possível que o maquinário para instalação de uma tipografia no
Brasil já tivesse sido adquirido por D. João VI, mas tivesse ficado em Lisboa devido ao peso
dos caixotes. O maquinário tipográfico, então, só teria chegado na mesma nau (Medusa) que
trouxe a Real Biblioteca. Contudo, há controvérsia, pois para isso ocorrer eles teriam que ter
desfeito a Imprensa Régia, que também ficou em Lisboa. Bragança (2010, p. 39) comenta que,
na verdade, essa tipografia era do Conde da Barca:
[...] uma das primeiras providências foi criar a Impressão Régia do Rio de
Janeiro, utilizando a tipografia que o anterior ocupante da pasta, seu desafeto,
António de Araújo de Azevedo, futuro conde da Barca, havia trazido na nau
Meduza, junto com sua imensa biblioteca e sua coleção de história natural.
Borba de Moraes (1979) afirmou que a tipografia completa (adquirida na Inglaterra pelo
Conde da Barca) não chegou a ser usada em Lisboa, e veio no porão de uma nau, portanto, não
seria, de fato, a Imprensa Régia lusa. A necessidade dessa tipografia vir imediatamente para o
Brasil era de que com a chegada da Família Real portuguesa havia a urgência de publicar os
atos do governo, inclusive o ato administrativo oficial para que a própria tipografia pudesse
existir e pudessem ser atribuídas as funções.
A primeira tipografia brasileira, inicialmente, foi chamada de Impressão Régia, tinha
caráter público, tendo como seu principal objetivo ser uma Imprensa Oficial e publicar atos
oficiais. No entanto, por ser a única no Brasil, cabia-lhe imprimir também qualquer obra que
fosse devidamente autorizada. O primeiro texto nela impresso foi a notícia de que no Brasil o
Príncipe Regente inaugurou uma tipografia, tendo a nota circulado por toda a Europa porque a
compra das máquinas havia sido feita na Inglaterra e custado aos cofres públicos £100,00.
Embora a criação da tipografia tenha sido dada como tardia, e esse impresso seja considerado
inócuo e medíocre, a Relação dos despachos publicados na corte pelo expediente da Secretaria
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de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, no faustissimo dia dos anos de sua Alteza
Real o Principe Regente Nosso Senhor e de todos os mais, que se tem expedido pela mesma
Secretaria desde a feliz chegada de Sua Alteza Real aos Estados do Brasil até o dito dia, em
13 de maio de 1808 (data da inauguração da imprensa no Brasil) é praticamente o nosso
incunábulo.
Em 24 de junho de 1808, à Junta Diretória (José Bernardes de Castro, José as Silva
Lisboa – Visconde de Cairu – Mariano José Pereira da Fonseca – Marquês de Maricá – Silvestre
Pinheiro Ferreira, Manuel Ferreira de Araújo Guimarães e o Cônego Francisco Vieira Goulart)
coube a censura prévia com a incumbência de examinar e fiscalizar tudo que fosse impresso e
publicado para que não tivesse relação contrária à religião, ao governo e aos bons costumes.
Em 27 de setembro do mesmo ano, saíram os nomes dos censores: Frei Antônio de Arrabida,
Padre João Manzoni, Luiz José de Carvalho e Mello e José da Silva Lisboa.
Em 1811, D. João VI autorizou a implementação de outra tipografia em solo brasileiro,
na cidade de Salvador. Essa segunda tipografia, além de concorrer com a imprensa oficial,
oferecia preços mais baixos. Finalmente, em 1821, a Imprensa Régia perdeu a exclusividade e
o Rio de Janeiro passou a receber as oficinas tipográficas particulares.
2 A TIPOGRAFIA E AS MARCAS DE PROVENIÊNCIA
Como mais um dos desdobramentos de um projeto iniciado em Salvador no ano de
20111, esse artigo trata de um tipo específico de marca de proveniência: as etiquetas de livrarias.
Para gerar uma contextualização sobre onde esse elemento se insere, buscou-se problematizar
conceitos que orbitam o assunto focal e apresentar outros exemplos. Como acertadamente disse
Machado (2003, p. 13), “em sua humildade, as etiquetas mantêm viva a lembrança de livrarias
desaparecidas, retratam aspectos curiosos do processo de comercialização do livro”. Essa marca
ainda desvenda “práticas comerciais, hábitos sociais, técnicas promocionais muitas vezes
rudimentares, e até a receptividade ou resistência a conquistas tecnológicas”.
1
Trata-se do Projeto Um louvor a Nossa Senhora: Inventário do acervo da Biblioteca da Igreja de Nossa Senhora
da Conceição da Praia, financiado pelo Governo do Estado da Bahia, através da Secretaria de Cultura, Fundo de
Cultura da Bahia. Sobre esse trabalho, ver: MAZZONI, Vanilda Salignac; LOSE, Alícia Duhá; SILVA, Jorge
Augusto Alves da (Org.). Um acervo raro: O inventário da Biblioteca Monsenhor Manoel de Aquino Barbosa.
Salvador: Edições São Bento; EGBA, 2013.
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Restringindo o campo deste texto, considera-se que a pesquisa foi feita em uma coleção
bibliográfica que pertenceu a um indivíduo (Monsenhor Manoel de Aquino Barbosa) que
passou por um processo de doação para uma instituição (Irmandade do SS. Sacramento e Nossa
Senhora da Conceição da Praia).
Como falar sobre preservação em acervos retrospectivos, em uma sociedade cada vez
mais imersa na embriaguez da vida agitada e tumultuosa que condena e nos deixa aturdidos?
No turbilhão da vida moderna, ficam-se perdidos frente ao futurismo e a celebração da
tecnologia moderna, levando um estado também de acrítico namoro com as máquinas
(BERMAN, 1986).
Inseridos nessa “modernidade líquida” (BAUMAN, 2001), do descartável, do
substituível, do que pode ser reposto, já há muitas bibliotecas com coleções históricas que
precisam justificar suas existências quase diariamente.
Assmann (2011, p. 317) afirma:
[...] grande é a força da memória que reside no interior dos locais’, esses
podem ‘tornar-se sujeitos portadores da recordação e possivelmente dotados
de uma memória que ultrapassa amplamente a memória dos seres humanos.
Mutatis mutandis, é possível transpor essa mesma reflexão para os livros como objetos
carregados de marcas que relatam sua trajetória. À vista disso, devido à sua presença
transgeracional, determinados exemplares também se tornam sujeitos que carregam em si os
últimos lastros de uma memória coletiva.
Esse tipo de pesquisa amplia a percepção da biblioteca como um lugar que resulta da
justaposição e interação entre indivíduos, memórias e histórias (LE GOFF, 1984). Isto ocorre,
sobretudo, porque, em um livro, a informação vai muito além do texto impresso, as marcas de
proveniência e propriedade corporificam práticas sociais que enquadram o mundo de alguém,
criadas no passado e remanescentes da cumplicidade das pessoas no presente (HAWLEY,
2016).
De uma forma geral, a pesquisa histórica, seja em biblioteca ou em arquivo, promove a
preservação em uma proporção de larga escala. Fala-se muito que uma biblioteca particular
pessoal não é um mero somatório de livros (BESSONE, 1999), mas o mesmo acontece nas
bibliotecas de instituições. Há que considerar que em ambas, por haver intenções, projetos de
leitura (ZAID, 1999), assim como acontece com os arquivos, forjam suas coleções selecionando
o que desejam guardar, o que deve ser lembrado. Opera-se aí, também, um processo de escrita
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de si (GOMES, 2004), que registra histórias individuais e de instituições. Eis a complexidade,
a força e o poder latente de uma biblioteca.
Existe uma sinergia entre os livros, bibliotecas como espaços físicos e individuais
(ASSMANN, 2011). São rastros de gerações de uma família ou de um grupo de profissionais,
sócios etc. Em ambas, porém, com o passar do tempo, estabelecem-se laços identitários, ou
seja, pela relação de simbiose, pelas escolhas, ocorre o que se chama de “forma reconhecível”
(DOUGLAS, 1986; AZEVEDO, 2011). Assim, a instituição ou um indivíduo e sua família
passam a ter na biblioteca um elemento que os identifica, que evoca suas memórias.
“Se a memória é ‘geradora’ de identidade, no sentido que participa de sua construção
[...] (CANDAU, 2018, p. 19)”, não raramente, pelas marcas de proveniência e propriedade,
residem nessas coleções os últimos ou únicos elementos que evocam – seja pela oralidade, seja
documentada – memórias coletivas (2006) que simplesmente podem desaparecer.
Os resultados dessas trajetórias estão por aí, em inúmeras coleções, e muitas esperando
ser estudadas. Algumas, porém, não terão tal ventura, ou seja, serão dispersas por vendas,
descartes ou por serem deixadas para morrer pela falta de preservação, pesquisa, acesso etc.
Os livros usados nos contam histórias! Mas não são histórias produzidas por
determinado autor, são histórias que, ao longo do tempo, ele, o exemplar, foi adquirindo,
histórias que revelam sua proveniência. Histórias que os individualizam.
As marcas de proveniência podem ser consideradas como fonte documental para tanto
compreender a história de um indivíduo quanto de uma instituição. São capazes de revelar a
vida social dos exemplares (STALLYBRASS, 2016), pois carregam em si marcas de estruturas
sociais, conflitos, afetos etc.
Se a fundamentação teórica se alicerçou nos estudos sobre marcas de proveniência, a
metodologia buscou na Bibliografia Material (GASKELL, 1999; GOMÉZ, 2010; GARCIA
AGUILAR, 2011) seu principal instrumento de trabalho justamente para endossar a percepção
de que, como fonte, documento e informação, o livro vai além do texto. O resultado do
colacionamento (STOKES, 1981; FARIA; PERICÃO, 2008), a análise material2 feita de capa
a capa, poderá ser apreciado pela identificação e descrição das etiquetas.
2
Cabe um brevíssimo comentário sobre essa palavra. Não é incomum o uso de análise e descrição bibliológica
como sinônimo de análise e descrição material ou bibliográfica. Esse uso equivocado possivelmente acontece
porque Bibliografia Material, assim como Bibliologia, é conceituada como “ciência dos livros”. Pericão e Faria
são ainda mais precisas, pois, ao definir “Bibliografia”, indicam que se trata de “área do conhecimento, parte da
bibliologia que estuda as técnicas de identificação e descrição de documentos e a ordenação dessas descrições [...].
Ramo da bibliologia que se ocupa dos repertórios dos livros” (2008, p. 95). Ainda com as mesmas autoras,
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Esse uso da Bibliografia Material deve também estar atrelado à História do Livro, pois
será necessário compreender o contexto e forma de produção do livro impresso.
Ao longo desses 10 anos, essa pesquisa não revelou apenas os gostos e hábitos de leitura
do Monsenhor Manoel de Aquino Barbosa, mas traços de suas práticas de aquisição de livros.
Trata-se de mais um exemplo que ajuda a endossar o argumento que, em um acervo
bibliográfico, a relação patrimonial pode estar no livro, além do texto que contém. As
proveniências reificadas desta forma podem até existir independentemente de um objeto
(FEIGENBAUM, 2012).
A compreensão do livro como objeto (AZEVEDO; LOUREIRO, 2019), advinda
metodologicamente da Bibliografia Material, sugere que, por exemplo, no descarte de uma
biblioteca ou de coleções, a análise do item seja considerada como parte do procedimento.
Essa pesquisa deflagra e exemplifica o que pode ser perdido na dispersão de uma
biblioteca, o que se perde quando não se considera o item, o livro, como objeto. Por essa razão,
independentemente do tipo de biblioteca para realizar tal análise, é necessário considerar o
acervo pelo menos em três níveis (Fig. 2), desse modo, parte-se do todo, ou seja, da coleção até
identificar o item:
bibliologia é definida como “ciência do livro; ciência da comunicação escrita; arte de discorrer sobre os livros e
de falar deles com pertinência, tanto no que respeita à sua temática, como à sua história [...]”. (PERICÃO; FARIA,
2008, p. 99). Nota-se aí que não há nenhuma indicação a uma ação. Isso, sem considerar, principalmente, o fator
linguístico. Ver também: HOUAISS, Antônio. Elementos de bibliologia. Rio de Janeiro: INL, 1967, 2v; GRACIA,
Manuel José Pedraza. Bibliología (ciencia del libro) y ciencias de la documentación. Scire, 11, 1, en.-jun. 2005, p.
24-46. Disponível em: https://www.ibersid.eu/ojs/index.php/scire/article/view/1506. Acesso em: 02 maio 2021.
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Figura 2. Análise do acervo em 3 níveis.
Fonte: AZEVEDO, 2016
Essa percepção é importante e pode ser vital para a salvaguarda de últimos vestígios
identitários, seja de uma instituição, seja de uma sociedade específica. A análise do item pode
revelar que a relação de aderência patrimonial3 não está mais no autor ou no assunto do livro,
mas nas marcas de proveniência.
No contexto atual, com tantas bibliotecas sem investimentos devido à falsa ideia de que
tudo está digitalizado, Pearson (2020; 2021) sugeriu uma reflexão que conduz a um
questionamento. Ora, se o valor dos livros reside apenas nos textos, com o crescimento da
digitalização e com as facilidades de acesso online, eles poderão ser varridos. Porém, o valor
central dos livros e seu lugar no patrimônio cultural residem também nas histórias dos
exemplares.
A respeito das informações que um livro pode apresentar, independentemente do texto
impresso, Stoddard (1985), dentro contexto da materialidade, diz que o livro impresso possui
marcas editoriais/tipográficas e marcas de uso/circulação. A compreensão da primeira categoria
é mais simples, pois representa, por exemplo, o número de cadernos, o tipo (ou a letra) usado,
o volume de ilustrações, assinatura ou rubricado do editor4, características que são comuns a
todos os exemplares de uma determinada edição.
A segunda categoria já traz alguma complexidade. A partir do que indica Stoddard
(1985), pode-se desdobrar essa análise e propor (Fig. 3), aliando a base teórica com a pesquisa
Essa ideia é construída a partir de “[...] mais o fato de que um patrimônio não depende apenas da vontade e
decisão políticas de uma agência de Estado. Nem depende exclusivamente de uma atividade consciente e
deliberada de indivíduos ou grupos. Os objetos que compõem um patrimônio precisam encontrar ‘ressonância’
junto a seu público”. GONÇALVES, José Reginaldo. Ressonância, Materialidade e Subjetividade: as culturas
como patrimônios. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 11, n. 23, 2005. Disponível em:
https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-71832005000100002#tx03. Acesso em: 14 maio
2021.
4
Neste caso, um grupo de exemplares da mesma edição estará numerado e/ou rubricado pelo editor e/ou autor.
Não se deve confundir com dedicatória.
3
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e observação, que marcas de uso/circulação podem ser agrupadas junto a marcas de
propriedade/posse, ambas sob a categoria de marcas de proveniência 5/procedência, como
demonstrado a seguir.
“The term provenance has French roots and dates back to the Enlightenment era. A growing concern with the
biographies of works of art can be observed in France throughout the eighteenth century. No wonder, since this
interest fits in with the principles of the Enlightenment era, which were to describe, order, and classify all things,
and to get to the bottom of their origins. Driven by a rapidly-growing secondary art market, new literary genres
emerged to service the expanding circle of art connoisseurs: the auction catalog, the catalogue raisonné, and the
gallery catalog. Art dealers – above all Pierre-Jean Mariette, Edmé-François Gersaint, Pierre Remy, and Jean
Baptiste Pierre Lebrun – were in the avant-garde of the new awareness of the importance of provenance”.
HUEMER, Christian. The provenance of provenance. In: MILOSCH, Jane; PEARCE, Nick (Ed.). Collecting and
provenance: a multidisciplinary approach. London: Rowman & Littlefield, 2019. p. 4 [Ebook].
5
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Figura 3. Esquema baseado em Stoddard (1985)
Fonte: os autores.
Se as marcas editoriais/tipográficas representam as características de manufatura de uma
edição, as marcas de proveniência/procedência, como elementos incorporados ao livro após a
publicação, constituem evidências de uso e/ou função de um exemplar. A separação entre
marcas de uso/circulação e marcas de propriedade/posse justifica-se porque há marcas que
deliberadamente são inseridas com intenção de informar “pertence a” (CAMPOS, 2015). Desse
modo, tal marca identifica o possuidor (FARIA; PERICÃO, 2008).
As marcas de proveniência6, que podem ser encontradas em livros manuscritos ou
impressos, constituem qualquer informação que atesta o itinerário de um livro (CURWEN;
JONSSON, 2006), registram posses anteriores de indivíduos ou instituições (PEARSON,
2019), ou seja, evidenciam a transmissão de propriedade ou a circulação (FARIA; PERICÃO,
2008). Também são formadas por indícios que representam práticas de leitura ou uso do próprio
documento (SALAZAR, 2019).
Grimsted (2019), no capítulo “Twice plundered, and still far from home: tracing nazilooted books in Minsk and Moscow”, traz mais um importante exemplo de como as marcas de
proveniência servem de pistas para a reconstrução de acervos. Elas não são apenas pistas, mas
evidências únicas quando não se tem outra fonte, como um arquivo, por exemplo. Nos casos
narrados por Grimsted (2019), apenas as marcas de proveniência foram provas suficientes para
que mais de três milhões de livros retornassem aos seus lugares de origem.
6
A partir daqui serão usadas apenas “marcas de proveniência” e “marcas de propriedade”.
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Com as marcas de proveniência, esses livros adquirem mais um elemento do caráter
simbólico que lhe é peculiar. Recentemente, em lote de livros que foi leiloado pela Christie’s o
que estava em destaque era Russian books with imperial provenance7.
Christian Huemer (2019) considera que a proveniência não apenas chancela, mas
confere uma espécie de autenticidade e confiança. Curioso pensar na inversão, se, em um
momento, livro e biblioteca podem atribuir autoridade, ou status a alguém ou alguma
instituição; em outro momento, o cenário se inverte.
Existem vários tipos de marcas de proveniência (incluindo aqui as marcas de posse). Na
tentativa de colaborar com o processo de identificação, propõem-se os exemplos a seguir:
Exemplo A:
1) Qual o material/como é feito/a tipologia? – um papel impresso e colado ao livro;
2) Qual a categoria no conjunto de marcas de proveniência? – uma etiqueta;
3) Qual a finalidade? – pode ser registrar quem produziu/comercializou determinado
exemplar (como no caso tratado neste capítulo) ou a propriedade de uma biblioteca
pessoal ou institucional ou documentar um procedimento etc.
O que é? Do que é feito? O que significa? Por que existe? São apenas algumas propostas
de indagações que podem ajudar o pesquisador na interpretação da informação advinda de
determinada marca. As respostas são múltiplas na mesma proporção da diversidade de grupos
e subgrupos.
Exemplo B:
1) Qual o material/como é feito/a tipologia? – um papel impresso e colado ao livro;
2) Qual a categoria no conjunto de marcas de proveniência? – um ex-libris impresso8;
3) Qual a finalidade? – registrar a propriedade de uma biblioteca pessoal ou institucional.
Esse caso representa um tipo de marca de proveniência que, fundamentalmente, por sua
categoria, “nasceu” para documentar a posse de alguém. O ex-libris é dividido em manuscrito
(BEZERRA, 2006; BARRANCO, 2017, PEARSON, 2019), quando o próprio nome é colocado
no livro; impresso, que se subdivide em dois grupos – gravado, confeccionado em algum
7
Confere: https://www.finebooksmagazine.com/news/russian-books-imperial-provenance-christies. Acesso em: 4
maio 2021.
8
Considera-se aqui apenas o caso dos impressos em papel. Quando impresso sobre couro, por exemplo, não há
uma distinção em língua portuguesa, já em francês chamam de ex-libris sur cuir. Ver:
http://bibliopat.fr/sites/default/files/provenances/referentiel_2.html#23. Acesso em: 22 maio 2021.
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processo de gravação, por exemplo, xilogravura ou metal; e tipográfico, caracterizado por
conter apenas letras, ou tipos.
O ex-libris impresso tipográfico9 normalmente possui apenas o nome do possuidor,
pessoa física ou jurídica. Por vezes, também é composto pela fórmula “ex-libris”, é uma
etiqueta, um rótulo. Em vista disso, Pearson (1998; 2019) inclui essa categoria no grupo de
Book labels e não Bookplates – uma etiqueta impressa com algum tipo de ilustração. A
diferença estaria também no tipo de prensa utilizada, na primeira é usada a letterpress – só
letras; na segunda, o processo foi pela rolling press – específica para gravuras (PEARSON,
2019). A propósito de ex-libris impressos, Monsenhor Aquino (Fig. 3) traz, como é
característico desse tipo de marca, uma simbólica que o identifica.
Figura 3. Ex-libris do Monsenhor Aquino
Fonte: BMMAB / Memória & Arte.
O ex-libris do Monsenhor traz a imagem do Oratório da Cruz do Pascoal, um
monumento do Centro Histórico de Salvador, erguido em 1743, por Pascoal Marques de
Almeida, um lisboeta morador do local, devoto de Nossa Senhora do Pilar. Seu gradil foi
colocado em 1874, e em 1938 foi tombado pelo SPHAN, hoje IPHAN, por ter sido o primeiro
monumento da Cidade, sob o número 122-T-1938, Livro do Tombo Belas Artes, sob
inscrição nº 135, de 17/06/1938. O oratório tem uma base de forma quadrada, o qual sustenta
uma coluna de alvenaria, revestida de azulejos azuis e brancos de origem portuguesa. É
9
Ver exemplos em: https://webs.ucm.es/BUCM/foa/54151.php. Acesso em: 22 maio 2021. Ver menções em:
CASAMAYOR, Manuel Montreal. De libros y ex libris: libro con ex libris del Marqués de Lede. Emblemata, 16,
p. 351-384, 2010. Disponível em: https://ifc.dpz.es/recursos/publicaciones/30/55/16monreal.pdf. Acesso em: 22
maio 2021. Ver também: https://webs.ucm.es/BUCM/foa/54151.php.
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propriedade da Prefeitura Municipal do Salvador, tem 7m de altura; sobre o topo há um nicho
de quatro faces, uma delas fechada e três com vidro transparente, inspirado nas torres sineiras
das igrejas baianas do início do Século XVIII, onde está exposta a imagem de N. S. do Pilar.
Acima dele há uma cruz metálica com esplendor. Esse ex-libris data de 1945, cujo autor só se
consegue reconhecer na assinatura do seu primeiro nome: Alberto (IPHAN, 2011).
Ex-libris impresso e dedicatórias manuscritas são as marcas de proveniência mais
estudadas e exibem uma complexidade igualmente grande. No caso dos ex-libris, não se deve
confundir com super-libris10, que é uma gravação com elementos heráldicos e/ou com nome
e/ou iniciais que remetem uma pessoa física ou jurídica e que normalmente estará na lombada
e/ou nas pranchas superior ou inferior da encadernação.
Pearson (2019), ao analisar os bookplates, ex-libris impresso, também apresenta dois
exemplos impressos sobre couro. Ainda nesse último caso, a diferença, porém, com o superlibris está no fato de que, assim como impresso em papel, é uma peça avulsa colocada na parte
interna do livro (tradicionalmente na folha de guarda) e também porque possui alguma fórmula
que indicará “da biblioteca de”.
Deve-se evitar estabelecer inferências sobre a proveniência a partir da análise isolada
de uma determinada marca. Por exemplo, inscrição ou anotação manuscrita é um uso de forma
genérica de manifestação de um ex-libris manuscrito11. Como dito anteriormente, essa categoria
de marca, frequentemente, é usada para registrar a posse de um livro.
Entretanto, localizar um exemplar com o nome, por assinatura ou rubrica, de uma pessoa
não significa necessariamente que é uma indicação de propriedade. Poderia ser, simplesmente,
a indicação de que o item veio da biblioteca de determinado indivíduo, ou seja, o registro seria
de proveniência e não de posse12. Portanto, na descrição caberia mencionar apenas “anotação
manuscrita” ou algo do gênero – obviamente mediante padronização prévia.
Em Portugal, padronizou-se o termo usado “super-libros”. Ver FARIA; PERICÃO, 2008, p. 683. Antes, porém,
era possível encontrar outro modo, como no exemplo: SOARES, E.; NAVARRO, A. G. Super libris portugueses
raros. Lisboa: Archivo Nacional de Ex-Libris, 1928. Também existe o uso de “superexlibris”. Ver:
https://catalogue.bnf.fr/ark:/12148/cb135655577. Acesso em: 22 maio 2021. A variante “superlibris”, sem hífen,
é citada por: BARRANCO, Felícitas González. A belonging mark: handwritten ex libris. International Journal of
Library and Information
Science,
vol.
9(6),
p.
54-57,
jul.
2017.
Disponível em:
https://academicjournals.org/journal/IJLIS/article-full-text-pdf/2BE70D165204. Acesso em: 22 maio 2021.
11
Para
exemplos
de
ex
libris
manuscritos,
ver:
https://ad-provenienz.epics.ethz.ch/index.jspx?com.canto.cumulus.web.ErrorID=SessionIsExpired#1621780169880_9.
12
Não se deve confundir com o “ex dono” que, via de regra, só será identificado como tal se essa fórmula aparecer,
seja manuscrita, seja impressa. Trata-se de uma categoria que registra a doação, a transferência de propriedade de
uma biblioteca e/ou um exemplar. Ela podia ser feita pelo doador, seus familiares ou pela instituição que recebia.
10
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Uma das exceções pode ser encontrada se houver a fórmula “ex-libris” ou alguma outra
indicação13 que aponte para essa direção, pois no contexto da história do livro, do uso desse
tipo de marca, era o próprio dono que realizava o ato de escrever dessa forma.
Ao contrário do “ex-dono”, que a literatura comenta que, para ser categorizado como
tal, a fórmula precisa estar presente (SALAZAR; RODRIGUEZ, 2019). Nada obsta, por
exemplo, de classificar como “ex-libris manuscrito” a marca que determinada pessoa
deliberadamente usa para registrar aos poucos sua coleção particular.
Por isso, é importante cercar-se de documentos que possam revelar “qualquer sinal ou
pista presente no livro ou às vezes até fora permitindo rastrear sua procedência” (BIBLIOPAT).
Como exemplos, os livros de tombo, recebidos de compra e venda de livros, recortes de jornais,
correspondências etc. Além desses, outros exemplares com a mesma marca podem também
ajudar a cruzar informações a fim de certificar-se dos dados.
As marcas da proveniência mudaram ao longo dos séculos, e elas também podem ser
múltiplas considerando o grupo social na qual circulou, como, por exemplo, um convento ou
uma determinada corte. Por essa razão, é tão importante que seu estudo seja feito considerando
a história do livro e a cultura política de diferentes épocas.
O trabalho de identificação de marcas de proveniência deve ser muito criterioso,
necessita considerar o contexto que determinado elemento foi utilizado. Existem etiquetas
impressas que podem documentar a doação de uma biblioteca e/ou de uma coleção. Sem a
intenção de questionar uma prática administrativa, essa categoria encontra-se, por vezes,
nomeada “ex-libris atribuído”, com a função de registrar a transferência de posse de uma
coleção cujo proprietário não tinha o hábito de marcar seus livros.
Outro caso que deve ser mencionado é o dos carimbos (úmido ou seco) que usam a
fórmula “ex-libris”14. Ao se referir à tipologia, não é incomum que seja classificada como “exlibris”. Propõe-se, porém, fazer as perguntas anteriormente apontadas. Não obstante a função
de registrar a posse, é preciso considerar a natureza da marca. Da mesma maneira, carimbos de
Ver: MARTIN, Alexis. Études sur les ex-dono et dedicaces autographes. Paris: J. Baur, Libraire, 1877. Disponível
em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k130469m.image. Acesso em: 22 maio 2021.
13
Barranco descreve 8 fórmulas diferentes usadas nos ex-libris manuscritos. Ver: BARRANCO, Felícitas
González. A belonging mark: Handwritten ex libris. International Journal of Library and Information Science,
9(6), 54-57, 2017. Disponível em: https://academicjournals.org/journal/IJLIS/article-abstract/2BE70D165204.
Acesso em: 23 maio 2021. Ver também: https://www.cerl.org/resources/provenance/can_you_help.
14
Ver exemplo em: https://ad-provenienz.e-pics.ethz.ch/index.jspx?locale=en#1621716680358_21
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fac-símiles de assinaturas. Seja lá qual inscrição ou formato tiver, a tipologia não muda, será
um carimbo úmido ou seco.
A respeito desses dois casos, o repositório de marcas de proveniência da biblioteca do
Instituto Federal Suíço de Tecnologia (Eidgenössische Technische Hochschule), em Zurique,
para as marcas que registram doação agrupam sob um termo genérico chamado: Donor's exlibris15 que se divide em Donor's bookplate (com impressos); Stamped donor's ex-libris (com
carimbos úmidos e secos) e Handwritten donor's ex-libris (com manuscritos).
Essas diferenças também acontecem com outras tipologias, o que, sem dúvida nenhuma,
reforça a necessidade de mais pesquisas sobre o tema e desenvolvimento de vocabulário
controlado. Textos como esses são um ponto de discussão e não um ponto referencial.
3 UMA TYPOGRAPHIA, UM ACERVO E A ETIQUETA EDITORIAL NA BAHIA
Salvador no século XIX era um caldeirão cultural: ainda chamado genericamente de
cidade da Bahia por ser a capital e principal cidade da Província da Bahia, só iria começar a se
livrar deste epíteto em 1889, quando ocorreu a Proclamação da República. A partir daí, a cidade
passa a assumir, cada vez mais, o nome que sempre foi seu, desde a sua fundação – Cidade do
Salvador.
A cidade da Bahia tinha um traçado bastante limitado, sendo dividida em apenas duas
partes – a cidade alta e a cidade baixa, com poucas ruas, todas estreitas, imundas, nas quais se
distribuíam armazéns de secos e molhados, trapiches, vendedores de rua, sobrados altos e
muitas igrejas. Todavia, a cidade começou a passar por transformações precisas em seu desenho
urbano a partir de 1811, com uma imensa vontade, necessidade e interesse de ser reconhecida
como uma cidade florescente: foi inaugurado o Passeio Público, aos moldes dos existentes em
Lisboa e no Rio de Janeiro – um ponto de encontro da elite burguesa – que, embora fosse um
espaço público, era tratado de maneira privada, gradeado e fechado; foi criada a Praça do
Comércio, visando a fortalecer a classe mercantil; foi inaugurado o Teatro São João, onde mais
tarde Castro Alves e Carlos Gomes se apresentaram e onde também foram recebidos Dom
Pedro II e Ruy Barbosa para palestras e debates políticos; inaugurou-se a primeira Biblioteca
15
Confere os exemplos em: https://ad-provenienz.epics.ethz.ch/index.jspx?com.canto.cumulus.web.ErrorID=SessionIsExpired#1621784138461_36.
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Pública do Brasil e a mais antiga da América Latina (SILVA, 2005). Ainda estavam em alta as
Aulas Régias; o Lyceu de Artes e Ofícios; e a famosa Escola de Cirurgia da Bahia – atualmente
Faculdade de Medicina – o grande orgulho da Cidade, criada em 18 de fevereiro de 1808, por
decreto de Dom João VI ao chegar ao Brasil.
Homem visionário, o português Manoel Antonio da Silva Serva viu que a Cidade tinha
potencial, principalmente com a inauguração de uma biblioteca pública, na avidez de leitura e
estudos por parte dos alunos de Medicina e dos professores, em geral. Enxergou uma
oportunidade de ampliar seus negócios: acrescentar os serviços de uma tipografia à sua loja,
pois o cenário era propício e lucrativo.
Embora tenha sido o introdutor da primeira tipografia particular autorizada pelo
Imperador no Brasil, Silva Serva não foi o primeiro empresário a solicitar licença para instalar
uma tipografia na Bahia. Alexandre José Vieira de Lemos já havia requerido em 4 de outubro
de 1810 a dita autorização, que foi dada em 10 de novembro daquele ano. Lemos afirmou em
requerimento que mandou vir de Londres uma imprensa. Segundo Ipanema e Ipanema (2010),
a partir desta autorização não se teve mais nenhuma notícia de Lemos, não se podendo afirmar
o que houve a partir daí – teria ele desistido da empreitada devido aos altos custos? faleceu? ou
teria tido receio da concorrência de Silva Serva? Não sabemos, apenas uma certeza de que, à
época, perdemos a oportunidade de ter esta que seria a segunda tipografia do Brasil. Mas, para
sorte dos brasileiros e dos baianos, quatro meses depois o requerimento de Silva Serva foi
também autorizado e o português que morava em Salvador instalou efetivamente a sua
tipografia.
Manuel Antônio da Silva Serva nasceu em 1761, em Vila Real de Trás-os-Montes,
Portugal, e faleceu em 3 de agosto de 1819, no Rio de Janeiro, Brasil. Segundo Silva (2005),
em abril de 1795, Silva Serva requereu licença para viajar ao Brasil porque tinha negócios na
Bahia, foi e ficou. O luso era descrito como um homem alto, moreno, gordo e barbudo. Foi
casado com Dona Maria Rosa da Conceição Serva, com quem teve sete filhos: Ana (17981800), Delfina (batizada em 19 de abril de 1801), Manoel Antonio da Silva Serva (1803-1846),
Ana (batizada em 13 de julho de 1806), José Antonio da Silva Serva (1808-1878), Ana (batizada
em 4 de junho de 1810-1813).
O português Silva Serva vislumbrou mais um nicho de negócio rentável: com o sucesso
de venda de livros de impressões alheias (que foram muito importantes para os alunos da
Faculdade de Medicina), imaginou que uma tipografia, além de imprimir as teses daqueles
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estudantes, poderia publicar suas próprias produções. A ideia de ser proprietário de uma
tipografia já era seu desejo desde 1809, quando esteve em Portugal e na Inglaterra sondando
preços de material e contratação de futuros tipógrafos.
Silva Serva solicitou autorização para abertura do empreendimento tipográfico em 18
de dezembro de 1810, e somente recebeu licença em 5 de fevereiro de 1811, tornando-se, assim,
o fundador da primeira tipografia particular do país no período imperial – Typographia Silva
Serva, que contou com o apoio do Conde dos Arcos.
Silva Serva já estava estabelecido em Salvador desde 1797, quando era proprietário de
um bazar, Loja da Gazeta, que vendia artigos diversos – lustres, móveis, peças sacras, vidros
da Bohemia. Na cidade também instalou a sua tipografia, mas ciente de que nenhum
comerciante poderia viver na Bahia apenas com a venda de livros, uma vez que havia poucos
compradores ou pelos menos não o suficiente para sustentar uma empresa, manteve
concomitantes os dois negócios. Sua loja e sua tipografia funcionavam em um lugar chamado
Morgado de Santa Bárbara, uma construção espaçosa do século XVII, no Comércio, próximo
à Praça da Inglaterra, onde ele também residia com a família (TAVARES, 2013).
Os prelos e tipos foram comprados em Lisboa, e para que seu pedido fosse aceito, Silva
Serva se propôs a imprimir “quaisquer livros ou papeis de nova composição, e a respeito dos
quais se não tenha concedido algum privilégio exclusivo para a sua impressão e venda”
(IPANEMA; IPANEMA, 2010, p. 46), anunciando o nome de seu empreendimento –
Typographia Silva Serva.
Mesmo sendo um negociante de respeito, o português radicado na Bahia enfrentou
alguns problemas iniciais enquanto empresário do ramo da publicação. Era uma regra geral da
imprensa não poder publicar livros quando os mesmos já tivessem obtido concessão de
Privilégio ao primeiro editor. A medida era utilizada em toda a Europa e visava a proteger os
próprios editores de cópias de suas produções.
No Brasil não foi diferente, Silva Serva também teve que obedecer a esses princípios
éticos, entretanto, sua tipografia reimprimiu dois livros: Tratado de comercio e navegação e
Tratado de amizade e aliança entre Portugal e a Grã-Bretanha, ambos publicados em 1810
pela Impressão Régia do Rio de Janeiro, que já possuía o Privilégio. Como era de se esperar,
houve protestos da empresa carioca.
Em 1811, tornou a publicar sem autorização os seguintes livros: Observações sobre a
franqueza da indústria e estabelecimento de fábricas no Brazil e Observações sobre a
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prosperidade do Estado pelos liberaes princípios da nova legislação do Brazil, ambos de
autoria de José da Silva Lisboa. Silva Serva, no entanto, alegou que esses livros não possuíam
Privilégio, o que ficou comprovado (MORAES, 1979).
A primeira publicação da tipografia baiana, em 13 de maio de 1811, foi o jornal Idade
d’Ouro do Brazil, que ficou mais conhecido como Gazeta da Bahia (por causa do nome da sua
loja). Entretanto, os planos econômicos de alto faturamento de Serva não vingaram. Segundo
afirma Moraes (1979), no ano de 1811 a Typographia Silva Serva levou aos prelos 17
publicações; em 1812, foram 24 títulos, mas de 1813 a 1816 a produção teria ficado entre seis
e oito livros anuais, causando prejuízo que apenas pode ser suportado porque Silva Serva
continuou com sua loja de vendas de produtos variados e impressão de folhetos. Silva (2005),
entretanto, apresenta melhores prospectivas: Silva Serva teria publicado entre 1811 e 1819, 127
obras.
Silva Serva chegou a solicitar ao governo um subsídio para inaugurar uma fábrica de
papel objetivando diminuir os custos de impressão, e por consequência aumentar seus lucros,
pois além de atender à sua própria tipografia, poderia servir a todo o Brasil. O pedido, porém,
foi negado em 1813.
Devido à dificuldade em encontrar mão de obra especializada para a sua tipografia, Silva
Serva colocou anúncios no jornal convidando jovens entre 12 e 15 anos, que soubessem ler com
perfeição, escrever e contar, que fossem espertos e desembaraçados, e que desejassem aprender
o ofício tipográfico. Tavares (2013, p. 61) afirma que “A tipografia de Silva Serva foi a primeira
escola de Artes Gráficas da Bahia”. Provavelmente, o tipógrafo já vislumbrava /ampliação de
seus negócios, pois teria chegado a ter 10 meninos aprendizes em sua oficina (SILVA, 2005).
Vale lembrar que Silva Serva sabia que não possuía concorrente no Brasil, assim, o sucesso de
sua nova empreitada de fazer imprimir livros no país e não apenas vender os comprados do
exterior era esperado pelo luso.
Graças a um auxílio financeiro solicitado ao governo e recebido em 1815 no valor de
quatro contos de réis, ao final de 1816, a Typographia Silva Serva publicou 20 obras.
Em 4 de junho de 1819, Silva Serva anunciou em seu jornal a sociedade com José
Teixeira de Carvalho, e a empresa passou a se chamar “Serva, e Carvalho”. Meses depois, Silva
Serva faleceu subitamente em uma viagem ao Rio de Janeiro e lá foi enterrado. Sua esposa,
Dona Maria Rosa da Conceição Serva, herdou a sua parte da empresa que teve novamente o
nome alterado. A agora chamada “Typographia da Viuva Serva, e Carvalho”, funcionou de
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1819 a 1827. A tipografia sonhada por Silva Serva mudou de nome várias vezes, embora
continuasse pertencendo à esposa. Com a morte dessa e dos filhos herdeiros, teve fim uma das
maiores empresas de impressão do país, dando espaço para tantas outras surgirem na Bahia no
século XIX.
A tipografia de Silva Serva não deu conta de atender à demanda crescente da população
da Província da Bahia, e estudantes e professores reclamavam de que a maioria das escolas não
tinha os chamados “utensílios indispensáveis” ao bom andamento do ensino – os livros,
principalmente para as meninas (NUNES, 2008). Havia escolas em que o material didático não
era atualizado há 50 anos. Jornais e livros eram, basicamente, as únicas formas de disseminar
o conhecimento, pois os primeiros divulgavam os segundos, além de anunciarem outros tantos
produtos comerciais.
Portanto, se jornais e livros eram os meios de divulgação de vários serviços, é notória a
importância da inauguração de outras tipografias na Bahia do século XIX na esteira do caminho
aberto por Silva Serva. A vida cultural nos centros urbanos do estado mudava radicalmente: a
população se familiariza com os periódicos, jornais, gazetas e livros; bibliotecas particulares
eram criadas e ampliadas, o Gabinete Português de Leitura é fundado, tudo em um contexto no
qual as livrarias que se tornaram tipografias, que vendiam livros importados ou imprimiam seus
próprios títulos foram importantíssimas. O livro e a leitura mudaram a vida cultural da cidade,
não apenas em relação ao hábito de ler, mas ao fato de esses livros aqui vendidos ou produzidos
terem trazido informações que auxiliaram uma elite cultural a se tornar mais politizado e a
conhecer outras culturas. Embora a Bahia já tivesse perdido o prestígio de Capital da Colônia
desde 1763, a tipografia entre nós fez toda diferença. Ter sido o primeiro lugar no país a sediar
uma tão necessária instituição, como foi a Typografia de Silva Serva, foi de um valor
imensurável para Bahia, uma vez que tornamos a ser vistos pelo Brasil.
Após a fundação da Typographia Silva Serva, outras vieram ao seu encalço se
estabelecendo também em Salvador, e pesquisas podem comprovar isso. Um breve
levantamento no acervo da Biblioteca Monsenhor Manoel de Aquino Barbosa (BMMAB),
pertencente à Irmandade do Santíssimo Sacramento e de Nossa Senhora da Conceição da Praia,
situada no interior da Basílica de Nossa Senhora da Conceição da Praia, na cidade do Salvador,
Bahia, foram encontradas obras produzidas por 32 tipografias entre os anos 1811 e 1950 (um
recorte temporal de 139 anos, portanto). Além da Typographia de Silva Serva, há obras da
Imprensa Oficial do Estado, Imprensa Vitória, O Imparcial, Catilina, Tipografia Dois Mundos,
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Officinas Graphicas D’A Luva, Editora Cruzeiro, Duas Américas, Mensageiro da Fé, Nova Era,
Graphica da Escola de Aprendizes Artífices, Typ. de Antonio Olavo da França Guerra,
Typographia Imperial e Nacional, Typ. de J. A. Portella e C.a, Cia Editora e Graphica da Bahia,
Gráfica Manú, Escola Typograhica Salesiana, Typographia Bahiana, Tipografia Beneditina,
Riex, Typographia Social, Litho-Typ. e Enc. Wilche Picard &, Typ. do Pharol, Typographia
Americana, Imprensa Economica, Typographia do Diario da Bahia, Imprensa Popular, LithoTyp. e Encardenação de Reis & C., Litho-Typographia de João Gonçalves Tourinho,
Typographia Santa Rosa, Typographia do Commercio e Progresso. Todas essas tipografias
produziram um total de 183 volumes constantes do acervo da biblioteca da Irmandade.
Nesse levantamento e estudo foi possível perceber que a memória tipográfica baiana
ainda carece de muitas pesquisas e investigações, pois são muitas lacunas, muitas histórias
perdidas.
Mesmo diante de diversas dificuldades para encontrar informações sobre os nomes que
constavam em uma lista feita a partir do levantamento inicial no citado acervo, é possível
mencionar pelo menos 14 empresas tipográficas em pleno funcionamento no século XIX,
todavia, algumas, com bem pouca coisa informada. E ficou evidenciado que a força motriz foi
mesmo a Typographia Silva Serva, a qual abriu caminho para tantas outras.
Muitas tipografias citadas anteriormente foram efêmeras, embora tivessem exercido o
papel esperado pelos leitores – proporcionaram-lhes o prazer inenarrável da leitura, de ter em
mão com maior rapidez o objeto mais almejado daqueles últimos séculos no Brasil – o livro.
Falar sobre tipógrafo e tipografias é estudar o livro em sua materialidade, pois um não
existe sem o outro, e envolve uma complexidade de discussões, como: produção, autoria,
divulgação, autorizações, diagramação, ilustração, o aparecimento das brochuras substituindo
as encadernações tradicionais das antigas tipografias, quase levando ao consequente fim dos
belíssimos livros em capa dura; o fim do ensino técnico na área com o término das oficinas
tipográficas – a exemplo do Colégio Salesiano –; o fim da linotipia; a evolução do papel; as
variadas fontes; a marca d’água; a marca (etiqueta) do tipógrafo; o tamanho do livro para
facilitar o acesso e a leitura fora do âmbito convencional, como as bibliotecas e salas de leitura;
as feiras de venda de livros antigos e usados; a mudança do perfil do leitor; os revisores; as
práticas de leituras que se fazem através do livro; o destino de acervos etc. É um emaranhado
tão grande de assuntos e temáticas e um terreno tão pouco explorado que está longe de se
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encerrarem as discussões sobre a história do livro e das tipografias, em especial porque há
muitas lacunas ainda não desvendadas e preenchidas nesse emaranhado.
Assim, temos que concordar com Calmon (2005, p. 7):
Luís Guilherme tem razão: urge escrever a história da imprensa baiana. Por
que urge? Em primeiro lugar, porque alguns dos atores ainda estão vivos,
podem depor, contar as transformações que testemunharam, sua própria
experiência, ainda que restrita, esta, às últimas décadas.
Urge, também, porque as fontes de pesquisa, cujo exame poderia levar ao
exato conhecimento dos fatos, essas fontes estão secando ou mesmo,
desaparecendo, a exemplo do que acontece com as coleções de jornais antigos,
existentes em alguns poucos arquivos, as quais, por falta de elementares
cuidados de conservação, vão ficando sem condições de consulta.
Bastante interessante foi encontrarmos dados de tipografias a partir das etiquetas
presentes nas encadernações de diversas obras da referida Biblioteca Monsenhor Manoel
Aquino Barbosa. Machado (2003, p. 17) nos chama atenção para a presença delas nas
publicações:
[...] havia uma distinção fundamental entre a marca dos tipógrafos e a dos
livreiros. Aquela era inseparável do livreiro, impressa em suas páginas. Os
livreiros, pela peculiaridade de seu negócio, mandavam imprimir as suas
marcas avulsas, colando-as nas obras por eles comercializadas. Nascia assim
a etiqueta de livraria, que chegaria com plena saúde ao século XXI.
De fato, a existência das etiquetas em alguns livros forneceu um mínimo de informação
para continuarmos as buscas. Em muitas delas estavam presentes endereço, telefone, nome do
proprietário, o que vendiam, que serviços que prestavam, entre outros. Isto significa que a
etiqueta dos livreiros foi um meio importantíssimo que muito serviu para contar um minúsculo
pedaço da história de uma livraria. Em geral, a etiqueta do encadernador ou do livreiro é um
pedaço de papel impresso, colado ao suporte (normalmente no interior da capa), com
informações simples ou detalhadas acerca da empresa. Foi uma forma que aqueles que
trabalhavam com o universo dos livros encontraram para divulgarem seu trabalho, suas
instituições, seus serviços; uma simples e eficaz publicidade.
Machado (2003) nos lembrou de que a Província da Bahia, no início do século XIX,
depois da Corte, era a única cidade a ter um ambiente cultural dinâmico; e que as duas livrarias
existentes em 1821 eram pobres e cobravam um absurdo pelos livros, mas não citou seus nomes.
Uma lástima.
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Ainda segundo Machado (2003, p. 21), “a primeira loja a colar etiquetas em livros – foi
a do livreiro e encadernador baiano Antonio José Coimbra”, no final da década de 1820. Moraes
(1998, p. 96) descreve a etiqueta como “enorme, gravada em madeira com desenho popular”.
É um belíssimo exemplar de etiqueta (Fig. 4), em um papel de formato retangular, com uma
cercadura que se finaliza com um anjo coroado, segurando uma folha cobrindo a palavra Bahia,
escrita na última linha de quatro no total. No dizer de Moraes, “excelente encadernador e
excelente dourador, um artista baiano”.
Figura 4. Etiqueta de Antonio José Coimbra
Fonte: MACHADO, 2003.
Dos 32 impressores baianos identificados entre as obras de 1811 e 1850 no acervo da
BMMAB, muitos encontramos informações, outros quase nada e outros nada, além de um nome
e endereço. O nosso árduo trabalho foi fazer uma “arqueologia” desta biblioteca. Assim,
optamos por organizar esses dados a partir de quatro classificações – 1. Aquelas das quais não
encontramos informações, a não ser o nome; 2. Aquelas das quais conseguimos descobrir
apenas o endereço porque constava da folha de rosto das publicações; 3. Aquelas que
descobrimos onde funcionava, quem era o proprietário ou quem imprimia por eles; e 4. Aquelas
das quais conseguimos levantar toda a trajetória do início ao fim de suas atividades em
Salvador.
Da primeira classificação encontramos 9 tipografias/editoras que fecharam,
concluindo suas atividades e suas histórias e não deixando vestígio. Dessas, parece não existir
sequer o “fio de Ariadne” para ajudar a reconstruir a trajetória, localizar informações sobre o
endereço de funcionamento, data da fundação, data do encerramento das atividades, nome do
fundador, proprietário, herdeiros, motivo que levou ao fechamento da empresa. Nada,
absolutamente nada, além do registro delas no acervo da BMMAB. Infelizmente, a
responsabilidade desse apagamento está na prática constante do esquecimento sobre nossa
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memória cultural e patrimonial. É possível atribuir a isso o resultado de que, sobre algumas das
tipografias, só tenhamos o nome e o antigo endereço. Dessas, quase todas caíram no
esquecimento (se não fossem as próprias publicações, o esquecimento seria total). No caso
dessa primeira classificação, na qual estão incluídos 29 volumes, o critério que usamos para
citá-las foi colocar o título e o ano da publicação.
Da segunda classificação, encontramos 5 tipografias identificados em um em um total
de seis volumes. Dessas conseguimos saber o local em que funcionavam porque constava na
folha de rosto; de resto, absolutamente nada, temos apenas os títulos dos livros publicados por
elas que encontrados na BMMAB.
Da terceira classificação, encontramos 11 outros empreendimentos identificados em
um total de 49 volumes. Deles conseguimos um pouco mais além do endereço, e relacionavase a algum proprietário de jornal ou revista que, ao solicitar seu registro, avisava quem era a
casa publicadora, e assim fomos levantando alguns dados sobre a existência daquela tipografia.
E as parcas informações foram encontradas através de várias pesquisas e leituras esparsas, entre
elas o livro Estabelecimentos de Oficinas de Impressão 1833-192716, organizado por Luís
Guilherme Pontes Tavares. São breves conhecimentos acerca de autorizações ou mudança de
endereço.
Da quarta classificação, foram encontradas 7 histórias completas, conseguidas a partir
dos acervos particulares ou de livros já publicados sobre o tema, nos auxiliando a provar que a
nossa pesquisa sobre tipografias em Salvador entre 1811 e 1950 não teve sua trajetória formada
apenas de grandes dificuldades, mas também de momentos felizes. Desses 7 empreendimentos
encontramos 99 volumes na BMMAB
4 TYPOGRAPHIA POGETTI/ CATILINA E DOIS MUNDOS: SUAS MARCAS
Da terceira classificação, temos o exemplo da Typographia Dois Mundos, da qual
embora os herdeiros estejam vivos e a tipografia ainda exista apenas como encadernadora, não
foi possível conseguir mais nenhuma outra informação. Soubemos apenas que foi fundada em
1882 e funcionava na Rua Conselheiro Saraiva, nº 35; possuía o que havia de mais moderno
16
Segundo Tavares, esse livro integra o acervo do Arquivo Histórico Municipal de Salvador, cuja localização é o
número 44, possui 98 folhas, tamanho 215mmx315mm, encadernado em capa dura, de curvim verde com as bordas
em curvim vinho, com douração na lombada.
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maquinário para uma officina typographica – “machinismos americanos, francezes e alemães”,
conforme consta na etiqueta de circulação. Também conseguimos a informação de que
Leonidas Silva e Wood E. Finley comunicaram que em 27 de junho de 1891 a Typographia dos
Dois Mundos imprimiu o periódico A Palavra. No acervo da BMMAB foram encontradas três
publicações desta tipografia: COSTA, F. de Macedo. Lutas e victorias, de F. de Macedo Costa,
1916; O livro, a pátria e a fé, de Padre Luiz Gonzaga Cabral, 1918; e Cochilos de um sonhador,
de Basilio Cathalá Castro, 1941.
Como já informado, muitas das informações sobre Dois Mundos conseguimos pelas
etiquetas encontradas em outros livros encadernados por eles ou nos chamados “Livros em
Branco”, muito utilizados para atas e contabilidade. E nos impressiona a variedade de tamanho,
cores, formato, desenhos e informações utilizados por eles nas suas etiquetas (Fig. 5, 6, 7, 8, 9,
10, 11)
Figura 5
Figura 6
Figura 7 - Livraria Carlos
Poggetti
Fonte: BMMAB / Memória e Arte
Fonte: BMMAB / Memória e Arte
Fonte: BMMAB / Memória e
Arte
Figura 8 - Livraria Carlos
Figura 9 - Livraria Catilina
Figura 10 - Livraria
Poggetti de Catilina & C.
& C.
Catilina & C
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Fonte: BMMAB / Memória e Arte
Fonte: BMMAB / Memória e Arte
Fonte: BMMAB / Memória e
Arte
Figura 11
Fonte: MACHADO, 2003
A segunda tipografia selecionada para este artigo pertence à quarta categoria, aquela em
que a sua história foi levantada quase que na íntegra, e é muito interessante porque, ao que
parece, mudou de proprietário várias vezes e conseguiu se manter no mercado durante mais de
100 anos – a Typographia de Carlos Poggetti (Fig. 12).
O fim da era tipográfica da Família Serva (com a falência das tentativas de novas
empresas pelos herdeiros e a morte da viúva) criou uma lacuna na produção editorial particular
na cidade do Salvador ao final do Brasil Império. Sem o propósito inicial de preencher esse
espaço, em 2 de fevereiro de 1835, Carlos Poggetti fundou uma livraria (considerada a mais
antiga registrada no Brasil), provavelmente com seu próprio nome, pois não há referência
acerca de outra designação. Em 20 de março de 1849, Pogetti solicitou a abertura de “huma
Typographia no 3º andar da caza nº 21 á rua do Commercio” (NEHIB, 2009, p. 17), ampliando
o negócio da venda para a impressão de livros; e em 12 de agosto daquele mesmo ano, “Carlos
Pogetti comunicou ter mudado a sua Typographia da caza nº 21 á rua nova do Commercio p.ª
a casa nº 32 á rua do Julião, Freguezia do Pilar” (NEHIB, 2009, p. 18).
Segundo Machado (2003, p. 24),
A primeira livraria digna desse nome a se instalar na cidade foi a de Carlos
Poggetti, fundada em 1835, à rua Nova do Comércio, nº 21. Em pouco tempo,
o estabelecimento se tornou o local de reunião preferido pelos intelectuais,
resistindo á crescente concorrência nas décadas seguintes.
Oficialmente, Poggetti só inicia a impressão em 1850, pois o primeiro livro com o nome
da empresa “Typographia de Carlos Poggetti” é o Codigo Commercial do Imperio do Brasil,
uma de suas mais famosas impressões. Mais tarde, a empresa de Pogetti se torna uma das
tipografias mais procuradas pelos alunos da Faculdade de Medicina da Bahia para publicação
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das teses de graduação. Todavia, a empresa não vivia da impressão e sim do comércio varejista,
como era comum às editoras e tipografias no Brasil.
Machado (2003) informa que Poggetti foi campeão das famosas etiquetas, pois através
delas ele divulgava os artigos que vendia. Informa ainda que o impressor ficou à frente dos
negócios por quase 25 anos, falecendo no início de 1860.
Não é possível, a partir da morte de Poggetti, saber com quem ficou a livraria/tipografia,
se foi vendida, se herdeiros continuaram o negócio ou se já havia feito sociedade com alguém,
mas em 1862, embora já se pudesse contar na capital da Província com 7 livrarias, a Livraria
de Carlos Poggetti ainda era um espaço atraente, frequentado por jovens escritores românticos,
incluindo-se aí o poeta Castro Alves, que se reunia com os amigos, com bastante frequência.
Em 1864, a direção passou a ser de Serra Teriga, não sabemos dizer se foi um novo
sócio ou se possivelmente foi apenas continuação da anterior, e em 1865, na folha de rosto de
várias teses da Faculdade de Medicina, aparece o nome de Typographia Pogetti de Tourinho e
Cia, situada à Rua Corpo Santo, 47, também não temos certeza do motivo de mudar de nome
novamente. No ano de 1877, Xavier Catilina assumiu o controle do negócio (ao que parece era
o novo proprietário, pois tirou o nome Poggetti), passando a se chamar Livraria Catilina (Figs.
13, 14, 15). Nos anos 1880, aparecia em anúncios da Gazeta da Bahia como Livraria de
Catelina & C., situada à Rua do Conselheiro Dantas, Comércio (ROSA; BARROS, 2002).
(Figs. 16, 17 e 18).
Ao final dos anos 1890, em Salvador já existiam 10 livrarias, revitalizando o negócio
editorial, entre elas a Catilina, que já havia se transformado em uma livraria-editora. No começo
do século 20, era administrada por Romualdo dos Santos, época em que estava instalada na
Rua Santos Dumont, nº 6, também no Comércio, e foi quando alcançou maior fama (Fig. 19),
publicando as obras de Ruy Barbosa, Carneiro Ribeiro, Coelho Netto, Xavier Marques e Castro
Alves. Segundo Hallewell (1985), a impressão de suas publicações era feita na Europa.
Provavelmente, Romualdo dos Santos foi o último proprietário e por questões de estratégia de
marketing manteve o mesmo nome pelo qual a tipografia / livraria ficou famosa, embora
sempre imprimisse seu nome acompanhando o da empresa – Livraria Catilina de Romualdo
dos Santos.
A Livraria e Editora Catilina encerrou suas atividades em 1960 (praticamente 100 anos
após a morte de seu fundador, Carlos Poggetti), tornando-se, à época, a mais antiga em
funcionamento no Brasil – Livraria Catilina –, que conseguiu sobreviver inacreditáveis 125
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anos. No acervo da BMMAB, foram encontrados quatro livros da editora Catilina: Réplica às
críticas do Dr. Candido de Figueiredo sobre a monografia da crase, de Francellino de
Andrade, 1913; Por mares e terras: leituras geográficas, de Bernardino José de Souza, 1913;
Serões Grammaticaes, de Ernesto Carneiro Ribeiro, 1919; Recepção do Padre Manoel de
Aquino Barbosa, Academia de Letras da Bahia, 1940.
Da mesma forma que a variação de etiqueta da tipografia Dois Mundos nos permitiu
acompanhar sua trajetória, a tipografia de Carlos Poggetti (e mais tarde Catilina) nos
enriqueceu mais ainda com sua variedade de etiquetas: tamanhos, cores, informações, tipos,
desenhos, desde Carlos Poggetti até Romualdo Santos.
Figura 12. Livraria Carlos Poggetti
Figura 13. Livraria de Catilina
Fonte: MACHADO, 2003
Fonte: BMMAB / Memória e Arte
Figura 14. Livraria de Catilina
Figura 15. Livraria de Catilina
Fonte: MACHADO, 2003
Fonte: MACHADO, 2003
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Figura 16. Livraria de Catilina
Figura 17. Livraria de Catilina
Fonte: MACHADO, 2003
Fonte: BMMAB / Memória e Arte
Figura 19. Livraria de Catilina
Fonte: BMMAB / Memória e Arte
5 E A HISTÓRIA CONTINUA...
Esses dois proprietários começaram um ofício que no Brasil já existia desde o século
XVIII: o dos encadernadores, que atuavam no interior das bibliotecas dos conventos,
principalmente o dos padres da Companhia de Jesus, a exemplo do jesuíta Antônio da Costa.
Posteriormente, tanto Poggetti quanto a Dois Mundos espalharam seus serviços tornando-se
também impressores porque vislumbraram um novo mercado: o público leitor e a sua imensa
“vontade de comprar e ler livros”, aquele objeto tão difícil no Brasil nos séculos anteriores.
Na Bahia, tivemos a sorte de ter como morador um português visionário, Antonio da
Silva Serva, que, embora com interesse meramente mercantilista, nos trouxe uma tipografia e
nos colocou próximos da Corte no que diz respeito à formação cultural, não apenas em relação
aos nossos leitores, mas à oportunidade gerada para nossos autores. O livro foi barateado,
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disponibilizado e nos permitiu deixar um legado – a importante formação de público leitor
através da venda para escolas e universidade.
Silva Serva foi o caminho mais fácil para otimizarmos o contato com o livro. E a partir
dele a mágica aconteceu: foram muitas tipografias criadas em Salvador para suprir essa enorme
necessidade que tínhamos de ler sobre tudo, pois, antes da chegada da tipografia entre nós,
vivíamos a mesma perseguição, proibição, censura e aplicação de penas que se fazia em
Portugal para quem ousasse ler sem autorização: o castigo da transgressão estendia-se por todas
as colônias portuguesas.
A preservação de livros precisa ser encarada no âmbito do Patrimônio Bibliográfico.
Isso incute uma imensa responsabilidade em decisões apressadas que corroboram para
dispersão de um acervo que não é de interesse apenas para determinada instituição, mas de
interesse social.
As marcas de proveniência como indícios podem ajudar a construir uma trajetória
quando nos faltam outros tipos de documentos ou em complemento a esses. No exemplo que
discutido neste trabalho, as etiquetas dos livreiros funcionaram como essas migalhas
(GINZBURG, 1995) pelas quais foi possível reunir e cruzar dados para a composição de parte
da história da produção e circulação de livros na cidade do Salvador entre o final do século XIX
e início do XX.
A história é sempre um bom mote para iniciarmos uma produção escrita, e quando essa
história representa uma memória coletiva é muito melhor. Acompanhar a trajetória dessas duas
tipografias baianas através de suas etiquetas, que são marcas fortes, mostrar o quanto elas foram
importantes para suscitar e promover a intensa vida cultural no século XIX, é ajudar a remontar
a história dos primeiros tipógrafos e discutir o papel deles na formação cultural da Cidade do
Salvador.
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