A RELIGIOSA E A LIBERDADE FEMININA NO
PENSAMENTO DE DIDEROT
FABIANA TAMIZARI
RESUMO
Este artigo trata da mulher no pensamento do
enciclopedista Denis Diderot (1713-1784), por
meio da análise do romance A Religiosa, escrito
em 1760 e publicado após a morte do filósofo
em 1796, no qual podemos destacar os efeitos
dos claustros sobre a constituição
psicofisiológica feminina e também discutir os
cerceamento da liberdade feminina na
sociedade francesa do século da luzes, uma
questão recorrente na obra do filósofo.
PALAVRAS-CHAVE
Iluminismo; Diderot; mulheres; religião;
sociedade.
Em 1796[1] foi publicado pela primeira vez o
romance[2] A Religiosa,[3] de Denis Diderot
(1713-1784), escrito vinte anos antes, fruto de
uma brincadeira do filósofo com um grupo de
amigos. Diderot, Grimm e um grupo ligado à
Correspondance Litteraire, saudosos da
presença do Marquês de Croismare, que
passava uma temporada no campo, decidiram
se aproveitar do interesse do nobre em um
caso de grande repercussão ocorrido há dois
anos para sensibilizá-lo e trazê-lo de volta à
capital francesa.[4] Uma jovem religiosa do
convento de Longchamp, que abraçou a vida
[1] A obra foi publicada após a morte de Diderot, tal precaução foi adotada pelo filósofo devido aos temas polêmicos apresentados por elas,
como destaca Matos: “Na verdade, o que achava é que esses textos, aos quais por vezes confiou suas teses mais ousadas, estavam por assim
dizer, acabados ‘demais’ para opinião contemporânea e deveriam, pois, ficar reservados para um público futuro” (Franklin de Matos, O
filósofo e o comediante: ensaios sobre literatura e filosofia na Ilustração, (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001) 125.
[2] Como destaca Matos, no século das Luzes, a filosofia abrangeu várias formas de expressão, buscando realizar o seu ideal de transformar
a sociedade: “(...) no século XVIII, a filosofia se acomoda não apenas ao tratado rigoroso, mas também ao diálogo, ao romance, ao conto, à
carta, ao ensaio, à peça de teatro, ao verbete de dicionário. Tal diversificação exprime a certeza de que a filosofia não deve ser uma
controvérsia entre especialistas, mas intervenção nos destinos da cidade, na vida e na felicidade dos homens” (Matos, O filósofo, 196).
[3] O romance, fruto da brincadeira de Diderot e os amigos, foi escrito em 1760, e vinte anos mais tarde o filósofo encaminhou os
manuscritos revistos a Meister, responsável pela Correspondance Littéraire, uma publicação restrita, como descreve Bénac: “Como os
jornais diários não existiam, no século XVIII, as pessoas ricas e distantes de Paris pediam a escritores que lhes mandassem ‘notícias em
mão’. Esta, a finalidade da ‘Correspondance Littéraire’, que Grimm dirigia aos duques de Deux-Ponts, de Saxe-Gotha, aos príncipes de
Hesse-Darmstadt, de Nassau-Sarrebruck, à rainha da Suécia, ao rei da Polônia e à imperatriz da Rússia. Redigiu-a de 1753 a 1773 e
frequentemente utilizou a colaboração de Diderot. A partir de 1773, confiou a ‘Correspondance Littéraire’ a Meister”. Henri Benac,
Introdução a A Religiosa (São Paulo: Círculo do Livro, 1973).
[4] Friedrich Melchior von Grimm, “Correspondance Littéraire”, in Denis Didertot, A Religiosa (São Paulo: Círculo do Livro, 1973) 06.
n.º 6 | 2019
ISSN: 2184-2388
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lhe sobreviveram.”[6] Mas durante a troca
de cartas entre os amigos e o marquês de
Croismare, Diderot[7] decidiu narrar em
forma de romance a história desta
religiosa. A princípio o seu objetivo era dar
veracidade às cartas que redigia, mas no
seu desenvolvimento a obra se
transformou em uma expressão do
pensamento filosófico diderotiano[8], se
destacando em primeiro plano o caráter
anticlerical da obra - não por acaso que
Grimm, ao definir o romance, o chamou de
“obra de utilidade geral e pública, a mais
cruel sátira já feita contra os claustros”[9].
religiosa por imposição familiar, reclamava
na justiça o direito de revogar os seus
votos. Mesmo sem conhecer pessoalmente
a jovem, o marquês decidiu defendê-la,
como relata Grimm: “[...] sem saber-lhe o
nome, sem mesmo assegurar-se da
verdade dos fatos, foi pleitear em seu favor
junto a todos os conselheiros de primeira
instância do Parlamento de Paris”[5]. Os
apelos do marquês e dos demais
defensores não causaram efeito, a jovem
perdeu o processo e foi obrigada a
continuar no convento. Diderot e os
amigos, porém, decidem trazer a jovem de
volta à cena, inventando que ela tinha
conseguido fugir do convento. Como uma
personagem escrita a várias mãos, passam
a se corresponder com o marquês como se
fossem a jovem, pedindo a ele socorro e
proteção. A brincadeira termina com a
morte da personagem, uma vez que o
marquês ofereceu toda a ajuda possível,
mas ela deveria seguir para o campo.
Assim, o objetivo de trazer o amigo de volta
à Paris tinha falhado. No retorno do
marquês a Paris, os amigos esclarecem o
ocorrido e, como detalha Grimm, o
episódio não abalou a amizade dos
envolvidos: “Depois que voltou a Paris, nós
lhe confessamos a iníqua conspiração; ele
riu-se, como podeis imaginar; e a
felicidade da pobre religiosa não fez senão
estreitar os laços de amizade entre os que
As projeções de Grimm se confirmaram, e
o romance provocou repercussões. No
século XIX, a obra foi proibida duas vezes,
em 1824, por Luís XVIII, e em 1826, por
Carlos X, e seus críticos a consideravam
obscena e anticlerical. No século XX,
resgatada por marxistas como Henri
Lefebvre, é considerada um exemplo da
dominação empreendida pela religião, além
de discutir posições sobre a temática
feminina, como a homossexualidade e a
dominação.[10] Mas mesmo após mais de
um século e meio após sua publicação as
reações contrárias também ocorrem,
quando um filme inspirando no romance é
lançado em 1966 e enfrenta um movimento
liderado pela Igreja Católica, que o
considerava uma blasfêmia, inclusive a
[5] Grimm, “Correspondance Littéraire”, 07.
[6] Grimm, “Correspondance Littéraire”, 07.
[7] Conforme pondera Wilson, responsável pela biografia do filósofo, um fato pessoal pode também ter influenciado na elaboração:
“Talvez Diderot, com os olhos banhados, estivesse soterrado pela memória de sua irmã mais nova, a freira que morreu demente num
convento de Ursulinas”. Wilson, Diderot, 433.
[8] Wilson, Diderot.
[9] Grimm,“Correspondance”, 08.
[10] Wilson, Diderot, 437.
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película chegou a ser proibida, porém o
governo francês revogou a medida e o
filme concorreu à Palma de Ouro do
Festival de Cannes daquele ano. O
interesse na obra manteve-se vivo, um
novo filme foi lançado em 2013 e o livro já
foi traduzido para mais de nove línguas,
sendo que em francês teve mais de 73
edições.[11]
DIDEROT E A
RELIGIÃO CRISTÃ
Para Diderot, a religião era responsável por
grande parte dos males devastadores da
história humana, uma vez que em nome da
supremacia das suas divindades e crenças
religiosas, os homens tratam seus
semelhantes como inimigos, como vemos
explicitado neste trecho da obra “Colóquio
com a Marechala”, na fala do personagem
Crudeli, ao que tudo indica, representante
do pensamento diderotiano no diálogo:
“Pensai que ela criou e perpetua a mais
violenta antipatia entre as nações. Não há
um só muçulmano que não imaginasse um
ato agradável a Deus e ao seu profeta,
exterminando todos os cristãos, os quais,
de seu lado, não são muito mais
tolerantes.”[12]
Neste artigo, dividiremos a nossa
apresentação em três partes. Na primeira,
fundamentaremos de forma breve a
posição anticlerical do filósofo, uma vez
que este cenário norteará as ações
desenvolvidas no romance. Na sequência,
apresentaremos os efeitos provocados pelo
isolamento do homem do convívio com os
seus pares, uma vez que o privamos da sua
condição natural, o que certamente
desequilibrará sua estrutura
psicofisiológica. Para Diderot, esses efeitos
serão maiores para o sexo feminino,
considerado pelo filósofo mais frágil, como
lemos nesta passagem do romance “[...] sou
mulher, tenho o espírito frágil, como é
próprio do meu sexo”. Na última parte,
discutiremos as vocações forçadas, tema a
partir do qual Diderot demonstra que a
mulher no seu tempo é subjugada e
dominada pelo universo masculino, tanto
na vida clerical como em sua vida social.
Para Diderot, a religião era uma farsa e
como tal deveria ser combatida por meio
do conhecimento racional.[13] O filósofo
considerava que, além de fomentar as
guerras e a discórdia entre os homens, as
religiões pouco contribuíam com o seu
desenvolvimento, pois os devotos agiam de
forma virtuosa para barganhar com a
divindade, esperando uma recompensa
futura, como a vida após a morte, como
[11] Conforme as pesquisas levantadas para a elaboração deste artigo, encontramos como edição mais antiga em português uma
edição portuguesa, de 1912. Já a primeira versão brasileira ocorreria em 1976, publicada pelo Círculo do Livro, da Editora Abril.
[12] Denis Diderot, “Colóquio com a Marechala”, in: Obras I – Filosofia e Política (São Paulo: Editora Perspectiva, 2000), 236.
[13] Esta postura diderotiana o distancia de outros dois expoentes do Iluminismo: Voltaire e Rousseau. Schmitt exemplifica essa
diferença, comparando o posicionamento de Diderot ao de Voltaire, que defendia a religião como meio de controle social: “Diderot se
opõe aos filósofos que, como Voltaire, acreditavam que o cristianismo tivera a virtude de inspirar medo no coração dos homens.”
Éric-Emmanuel Schmitt, Diderot ou la philosophie de la séduction (Paris: Albin Michel, 1997), 67. Já em relação ao pensamento do
filósofo genebrino, Piva estabelece o padrão de comparação: [...] a filosofia diderotiana se enquadra na vertente que imputava à
religião todos os sofrimentos e toda a miséria histórica da humanidade, distinguindo-se, portanto, da tendência que visava a repensar
e reformar a religião adaptando-a às novas exigências intelectuais do período, como foi o caso de Rousseau. Paulo Jonas de Lima
Piva, O Ateu Virtuoso: materialismo e moral em Diderot (São Paulo: Discurso Editorial; Fapesp, 2003), 111.
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podemos ler neste trecho dos Princípios
Filosóficos sobre a Matéria e o Movimento,
de 1770[16]: “A suposição de um ser
qualquer situado fora do universo material,
é impossível. Não se deve jamais fazer
semelhantes suposições, porque delas não
se pode jamais inferir algo.”[17] Para
Diderot, a matéria que compõe o universo
se encontra em eterno fluxo, regido pelos
conceitos de energia e de movimento.
Nesse novo contexto, conforme destaca
Lepape, não há mais uma projeção objetiva
sobre o mundo e temos, inclusive, uma
alteração na percepção do tempo. Isso leva
Diderot a definir que toda ciência, estética
e filosofia produzidas são interpretações
do mundo e não versões definitivas sobre
ele.[18] Romano acrescenta que isso ainda
não significa uma negação do
conhecimento científico:[19] “[...] Se tudo
está em fluxo (o que poderia conduzir à
impossibilidade de pensar o mundo), nem
por isso ele deixa de apresentar sucessivas
formas que podem ser conhecidas, desde
que não sejam elevadas ao estatuto de
absolutamente universais.”[20]
atesta a personagem cristã do diálogo:
“Como a questão é ganhar o céu, ou por
destreza ou pela força, cumpre levar tudo
em conta e não descuidar de nenhum
proveito. Infelizmente, em vão nos
esforçaremos, nossa aplicação será sempre
muito mesquinha em comparação ao
rendimento que esperamos.”[14] Diderot
não acreditava haver uma conexão
necessária entre virtude e prática religiosa;
acreditava que os homens poderiam ter
outros motivos para agir de forma virtuosa
e comprometida, como a inclinação natural
para a prática do bem, educação ou
experiência.[15]
Diderot se coloca radicalmente contra a
tradição metafísica de inspiração religiosa,
em especial a cristã, uma vez que esta
defendia o dualismo, que separa a alma do
corpo, além de apregoar a existência de
uma divindade que seria ao mesmo tempo
criadora e ordenadora do universo. Para o
filósofo, há apenas uma matéria que
compõe o universo, sem que exista um ser
externo ao mundo e seu criador, como
[14] Diderot, “Colóquio”, 234.
[15] Diderot, “Colóquio”, 235.
[16]Como destaca Olivier Bloch, os materialistas são naturalmente os seguidores e propagadores mais extremos da crítica
antirreligiosa do século: criticam dos preconceitos aos fatores psicológicos envolvidos na crença (ilusão, imaginação, credulidade) e
seus impostores, relacionados com os tiranos que promovem o poder. Esse tema, com base em libertina tradição, toma a forma
particular do padrão, muito antigo, dos “três” impostores (Moisés, Jesus, Maomé), que ilustra a tese da estreita relação da religião
com a política aos interesses dos poderosos e ricos. O pensamento materialista de Diderot não foi uma voz isolada no Século das
Luzes; ele fez coro com um grupo de pensadores, entre eles Meslier, La Mettrie, Helvétius, Holbach, que utilizaram a concepção
materialista para questionar a dominação religiosa nas diversas esferas do conhecimento que influenciava os valores e as crenças do
seu tempo. Ver Olivier Bloch, Le Matérialisme (Paris : Presses Universitaires de France, 1995), 68.
[17] Denis Diderot, “Princípios Filosóficos sobre a Matéria e o Movimento”, in: Obras I – Filosofia e Política (São Paulo: Editora
Perspectiva, 200), p. 251.
[18] Pierre Lepape. Diderot. Paris: Flammarion, 2000, p. 344.
[19] Roberto Romano, na obra Moral e Ciência, destaca a aproximação do pensamento diderotiano com a interpretação de Bacon
sobre o conhecimento da natureza (ver Roberto Romano, Moral e Ciência, A Monstruosidade no século XVIII (São Paulo: Senac, 2002),
55). A título de exemplo desta aproximação podemos citar o aforismo X do Novum Organum: “A natureza supera em muito, em
complexidade, os sentidos e o intelecto. Todas aquelas belas meditações e especulações humanas, todas as controvérsias são coisas
malsãs. E ninguém disso se apercebe” (Francis Bacon, Novum Organum (São Paulo: Editora Abril, 1973) 20).
[20] Romano, Moral, 54.
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discussão sobre o papel da Igreja Católica
no mundo contemporâneo, como salienta
Franklin de Mattos: “Na figura de Simonin,
ele descreve a monstruosidade oferecida
por uma instituição cujo alvo seria salvar o
corpo e a alma, mas que, diante da
primeira recusa, prende, tortura e
mata.”[23]
Para Diderot, será necessário pensar o
homem no interior de uma natureza em
que nada é permanente. Neste cenário, sua
proposta será conciliar as transformações
que caracterizam a natureza, algo que
definitivamente não é levado em conta pela
religião, pois esta exige do ser humano
uma constância e um comportamento não
condizentes com a ordem natural. No
romance A Religiosa esses aspectos ficam
explicitados nas críticas instituídas aos
claustros, que contrariam a tendência à
sociabilidade natural dos homens, tema
constante na vasta obra do autor, como
podemos ler nas palavras de Crudelli:
“Acontece às religiões, como às
constituições monásticas, as quais todas se
esmorecem com o tempo. São loucuras que
não podem manter-se contra o impulso
constante da natureza, que nos reconduz à
sua lei.”[21] Para Diderot, esse conflito
transforma o cristianismo em uma religião
impraticável, pois, além de almejar o
controle das ações das pessoas, propõe o
domínio dos seus pensamentos e das suas
intenções. Para ilustrar essa posição vamos
recorrer novamente ao porta-voz de
Diderot, que aponta de forma irônica quais
seriam os resultados da prática integral
dos princípios cristãos pelos devotos: “Sim,
senhora, se desse na veneta de vinte mil
habitantes de Paris de conformarem
estritamente sua conduta ao Sermão da
Montanha [...] E tantos loucos, que o lugartenente da polícia não saberia o que fazer,
pois nossos asilos não bastariam.”[22]
O romance também possibilita uma
Dentro deste contexto, as instituições
religiosas, principalmente as que privam os
seres humanos do convívio com a
sociedade, como os conventos e mosteiros
cristãos, ganham um destaque maior por
parte do filósofo, uma vez que provocariam
desequilíbrios psicofisiológicos
irremediáveis aos seres humanos,
principalmente às mulheres, como os
descritos no romance A Religiosa, que na
teoria materialista diderotiana eram os
seres mais frágeis.
A MULHER NA TEORIA
MATERIALISTA
DIDEROTIANA
No texto Sobre as Mulheres, de 1772,
Diderot, imbuído do espírito iluminista,
propõe uma reflexão sobre a condição
feminina: “Não basta falar das mulheres, e
falar bem delas, Senhor Thomas, fazei
ainda com que eu as veja, suspendei-as
diante de meus olhos como outros tantos
termômetros das menores vicissitudes dos
mores e dos usos.”[24]
[21] Romano, Moral, 239.
[22] Romano, Moral, 239.
[23] Matos, F. O filósofo e o comediante, p. 200.
[24] Denis Diderot, “Sobre as Mulheres”, in: Obras I – Filosofia e Política (São Paulo: Editora Perspectiva, 2000), 228.
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As mulheres foram figuras constantes não
apenas em Sobre as Mulheres, mas em toda
sua vasta obra, principalmente nos textos
que discutiam a teoria materialista, como
Sonho de D’Alembert; Continuação do
Diálogo; Isto não é um conto; Mme. De La
Carlière; A Religiosa; Colóquio com a
Marechala; e Suplemento à Viagem de
Bougainville.
Acrescenta que durante a vida adulta, do
início da menstruação à menopausa, há
uma forte influência do órgão sobre a vida
das mulheres, e compara essa atuação
uterina à de um animal em cólera, pois
“fica furioso, aperta e sufoca as outras
partes.”[28] Ao afirmar que o útero seria o
responsável pelas especificidades
femininas, Diderot estaria apoiando suas
teorias nos estudos médicos desenvolvidos
na época sobre as características que
determinavam a constituição
psicofisiológica feminina.[29] A
pesquisadora Ginette Kryssing-Berg afirma
que para tanto, Diderot valeu-se dos
estudos desenvolvidos na Escola de
Medicina de Montpellier: “Para os
professores desta escola, as mulheres
estavam sujeitas ao ‘estresse uterino’, ao
qual elas não podem resistir. Assim, o
comportamento feminino é explicado por
um desequilíbrio no corpo devido à energia
concentrada no útero.”[30] A propósito,
Gabrielle Houbre destaca que os
iluministas buscaram, por meio da ciência
médica, estabelecer um estudo da natureza
humana.
Para ele, o papel das mulheres era definido
pela natureza, que fora cruel em sua
formação psicofisiológica, tendo-as feito
seres frágeis, de vida marcada pelos ciclos
da reprodução, mais suscetíveis aos
sentimentos, com uma maior propensão ao
histerismo e ao fanatismo religioso.
Dentro desse contexto, a mulher é definida
por Diderot como um ser de paixões e
emoções comandadas pelo útero,[25] uma
vez que este define sua identidade, seus
pensamentos e experiências. Na obra
Elementos de Fisiologia, retoma a questão
e define o útero[26] como um “órgão ativo
dotado de um instinto particular.”[27]
[25] Diderot, “Sobre as Mulheres”, 223.
[26] Diderot utilizará o termo matriz para se referir ao útero na obra Elementos da Fisiologia. (Denis Diderot, Éléments de physiologie
(Paris : Honoré Champion, 2004) 229).
[27] Diderot, Éléments, 230.
[28] Diderot, Éléments, 230.
[29] Segundo Évelyne Berriot-Salvadore, encontramos duas correntes que discutiam a característica psicofisiológica feminina: uma
que argumentava que a mulher era um homem “falho”, ou seja, que a forma feminina não tinha a plenitude alcançada pela masculina,
e outra que reduzia a identidade feminina ao seu útero; ambos os discursos remetem à Antiguidade e, mesmo adotando versões
diferentes, estiveram presentes até o século XIX: “Na realidade, os fundamentos teóricos deste discurso foram postos em prática a
partir dos finais do século XVIII: tudo parece dever jogar-se entre um aristotelismo que reduz o feminino a uma incompletude e um
galenismo que o encerra na especificidade inquietante do útero. Da Idade Média ao século XIX, a medicina feminina continua
enredada nesta dialética, certamente em prejuízo de mais rápidos progressos tanto em anatomia como em biologia. Mas a
perenidade dos estereótipos e a aparente reprodução do discurso mascaram evoluções e rupturas tanto mais difíceis de analisar
quanto não seguem necessariamente a cronologia das descobertas científicas: o que muda talvez não seja tanto o conhecimento da
natureza e da função de cada sexo – o qual só será dominado no século XIX – mas, sobretudo, a maneira de pensar as suas diferenças
na ordem do mundo e da sociedade.”[2]( Évelyne Berriot-Salvadore, “O discurso da medicina e da ciência”, in: Georges Duby e
Michelle Perrot, História das Mulheres – Do Renascimento à Idade Moderna (Porto: Editora Afrontamento, 1991) 409.)
[1] Ginnete Kryssing-Berg, “A imagem da mulher em Diderot”, Revue Romane, 20 (1985), 103. Disponível em
<https://tidsskrift.dk/index.php/revue_romane/article/view/11791/22422 > captado em 20/07/2013.
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TEXTO ABERTO
Em suas palavras: “Livrando-se pouco a
pouco da influência dos antigos e da Igreja,
estes se propõem a elaborar uma ciência
médica racional fundada na observação da
anatomia e da fisiologia que permitisse
descobrir a verdade sobre a natureza
humana.”[31] Diderot, em Sobre as
Mulheres, ilustra as palavras de Houbre, ao
desenhar um quadro sobre a natureza
feminina tendo como princípio norteador a
ideia da mulher ser comandada pelo útero.
Este aspecto é salientado por Elisabeth
Badinter: “A tese de Diderot é de uma
clareza luminosa: a mulher é um ser de
paixões e emoções, comandada por seu
útero. Todo o resto deduz-se a partir
disso.”[32]
estremecer.” Piva, em O Ateu Virtuoso,
afirma que Diderot considerava a relação
das mulheres com a religião uma
manifestação histérica: “O fato de terem
paixões mais fortes do que as dos homens
torna as mulheres mais propensas ao
fanatismo religioso. No entender de
Diderot, a relação delas com a religião era
histérica, sobretudo na juventude. Quando
velhas, tornam-se beatas e até loucas.”[35]
Nas palavras do próprio Diderot: “Só uma
cabeça de mulher pode exaltar-se a ponto
de pressentir seriamente a aproximação de
um deus, de agitar-se, de descabelar-se, de
espumar, de gritar [...].”[36] Este tipo de
posicionamento reforçava a ideia de que
estaria inscrita na natureza a diferença
entre os sexos.
Para Diderot, o determinismo biológico
não só estabeleceria uma relação mais
intensa das mulheres com os sentimentos,
mas também explicaria certas doenças
consideradas, na época, exclusivas do
universo feminino, como o caso do
histerismo.[33] Nesta passagem de Sobre as
Mulheres, Diderot estabelece um paralelo
entre a intensidade dos sentidos femininos
e a doença: “Nada é mais contíguo que o
êxtase, a visão, a profecia, a revelação, a
poesia fogosa e o histerismo.”[34] Em outra
passagem, ele também reforça esta visão:
“A mulher dominada pelo histerismo
experimental tem não sei o quê de infernal
ou de celeste. Às vezes, ela me faz
Para Diderot, as desvantagens impostas
pela natureza, ou seja, pela constituição
psicofisiológica. se agravam quando as
mulheres eram privadas da liberdade.
Assim o filósofo mostra uma das faces da
dominação a que as mulheres estão
submetidas na sociedade franco-europeia
do iluminismo, a face moldada pela
moralidade religiosa. Nesse sentido, a obra
soma-se a crítica de Diderot sobre a
condição feminina desenvolvida em Sobre
as Mulheres, mas agora dando foco a como
uma instituição poderosa na sociedade de
sua época é capaz e moldar a vida
feminina.
[31] Gabrielle Houbre, “Inocência, saber, experiência e seu corpo no fim do século XVIII e começo do XX” in: Maria Izilda S. de Matos
e Rachel Soihet, O corpo feminino em debate (São Paulo: UNESP, 2003) 94.
[32] Elizabeth Badinter, O que é uma mulher? (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991) 25.
[33] No romance Joias Indiscretas Diderot já havia vinculado o histerismo às mulheres, como lemos no seguinte trecho: “- Pois sim,
vapores! – disse um petimetre - Cicogne chama-os de histéricos. É como que uma coisa que provém da região inferior.” Diderot,
Joias Indiscretas, (São Paulo: Editora Global, 1999), p. 31.
[34] Diderot, Joias, 223.
[35] Piva, O Ateu, 276.
[36] Diderot, “Sobre as Mulheres”, 221.
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tantas virgens loucas? E a espécie humana,
de tantas vítimas? Não se sentirá jamais a
necessidade de constringir as entradas
desses abismos onde as raças futuras vão
perder-se? Todas as orações de rotina que aí
se fazem valem o óbolo que a comiseração dá
a um pobre? Deus, que fez o homem sociável,
aprovará que o segreguem? Deus, que o
criou tão inconstante, tão frágil, pode
autorizar a temeridade de semelhantes
votos? Votos que ferem a inclinação geral da
natureza poderão ser alguma vez bem
observados, a não ser por criaturas
desprovidas de bom senso, em que
emurcheceram os germes das paixões, e que
alinharíamos com justa medida entre os
monstros, se nossas luzes nos permitissem
conhecer tão facilmente, e tão bem, a
estrutura do homem quanto a sua forma
exterior? [...] Onde é que a natureza,
revoltada contra uma sujeição para a qual
não foi dotada, rompe os obstáculos que se
lhe opõem, torna-se furiosa, lança a
economia animal em uma desordem para a
qual não há remédio?[39]
A NATUREZA
ENCLAUSURADA
Para Diderot, a liberdade era uma condição
inalienável do ser humano: “[...] O homem
nasceu para a sociedade; separai-o, isolaio, suas ideias desunir-se-ão, seu caráter
transfigurar-se-á, mil afeições ridículas
elevar-se-ão em seu peito; ideias
extravagantes germinar-lhe-ão no espírito,
como os espinheiros em terra
selvagem.”[37] Sendo assim, a instituição
dos claustros era um atentado contra a
natureza e provocava efeitos colaterais que
poderiam desarranjar a “frágil máquina
humana”. Como destaca Raquel de Almeida
Prado, Suzanne é submetida ao “processo
de socialização brutal, que encontra no
claustro o símbolo mais forte da submissão
do indivíduo.”[38] Em uma das passagens
mais célebres do texto encontramos a
crítica contundente de Diderot à privação
da liberdade promovida pelas religiões e
seu alerta quanto às possíveis
consequências que ela poderia ter sobre a
constituição psicofisiológica:
Diderot retomará essa mesma questão em
um trecho do diálogo entre o Capelão,
representante da moral tradicional, e Oru,
porta-voz das ideias diderotianas:
Jesus Cristo instituiu frades e freiras? A
Igreja não pode absolutamente prescindir
deles? Que necessidade tem o esposo de
[37] Diderot, “Sobre as Mulheres”, 145.
[38] Raquel de Almeida Prado, A Jornada e a Clausura (São Paulo: Ateliê Editorial, 2003), 143.
[39] Denis Diderot, A Religiosa (São Paulo: Círculo do Livro, 1973), 111.
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TEXTO ABERTO
vida reclusa: a loucura. Uma das religiosas,
pressionada pela vida enclausurada,
enlouquece e põe fim à própria vida.
Recorremos às palavras de Suzanne, que
descreve a situação: “Desgrenhada e quase
sem roupa, ela arrastava cadeias de ferro,
tinha olhos desvairados, arrancava os
cabelos, batia com os punhos no peito,
corria, uivava, lançava, a si mesma e aos
outros, às mais terríveis imprecações;
buscava uma janela por onde precipitarse.”[42]
Oru – Sabes ao menos por qual razão, sendo
homem, te condenastes livremente a não sêlo?
Capelão – Seria muito comprido e muito
difícil explicar-te.
Oru – E esse voto de esterilidade, o monge
é-lhe realmente fiel?
Capelão – Não.
Oru – Eu estava certo disso. Tendes também
monges mulheres?
Capelão – Sim.
Oru – Tão recatadas como os monges
homens?
Capelão – Mais enclausuradas, elas secam
de dor, perecem de tédio.
Oru – E a injúria feita à natureza é vingada.
Oh! Miserável país! Se tudo aí é ordenado
como o que contaste, sois mais bárbaros que
nós.[40]
No convento de Longchamp Suzanne vive os
dois extremos da vida religiosa,
representados pelas duas superioras que
dirigiam a casa em momentos distintos. A
primeira, irmã Moni, religiosa por vocação,
vivenciava os valores da piedade e da
indulgência para com as suas semelhantes,
como enfatiza a descrição que Suzanne faz
dela: “Era uma mulher consciente, e que
conhecia o coração humano, embora
ninguém a necessitasse menos; éramos
todas as suas filhas. Não via, nunca, senão as
faltas que não podia deixar de perceber, ou
cuja importância não lhe permitia fechar os
olhos.” Em um romance que pretende
demonstrar os efeitos maléficos da clausura,
a personagem da Irmã Moni parece uma
contradição; porém, sua presença se
justifica em outra passagem do texto, na
qual Suzanne, porta-voz de Diderot na obra,
defende a possibilidade de existirem
vocações verdadeiras e indica as condições
para que isso não fosse considerado um
atentado contra a liberdade:
Como podemos observar no final dos dois
trechos acima, Diderot acredita que, ao
isolarmos o homem do convívio com os
seus pares, o privamos da sua condição
natural, o que certamente desequilibrará
sua estrutura psicofisiológica. No romance
A Religiosa encontramos vários exemplos
dessas consequências no sexo feminino,
considerado por Diderot mais frágil do que
o masculino, como lemos nesta passagem
do romance: “[...] sou mulher, tenho o
espírito frágil, como é próprio do meu
sexo.”[41]
No primeiro convento, Saint-Maire,
Suzanne testemunha um dos efeitos da
[40] Denis Diderot, “Suplemento à Viagem de Bougainville”, in: Textos Escolhidos. (São Paulo: Abril Cultural, 1979), 151.
[41] Diderot, A Religiosa, 110.
[42] Diderot, A Religiosa, 40.
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06 | 2019
TEXTO ABERTO
Mas esse apoio, apesar de consolador, será
muito pouco para as duras provas que
Suzanne enfrentará nas mãos da irmã
Sainte-Christine, sucessora da irmã Moni,
que, movida por preconceitos religiosos,
faz toda sorte de maldades contra suas
subalternas, em especial contra Suzanne,
que ousara desafiar a Igreja ao pedir na
justiça civil a anulação de seus votos. No
trecho abaixo Suzanne narra o momento
em que, acusada por Sainte-Christine de
estar possuída pelas forças do mal, recebe
a punição da sua congregação:
“[...] religiosas verdadeiras senão as que
ficam aqui por seu gosto pela vida retirada,
e que aqui permaneceriam mesmo que não
vissem em torno de si grades nem
muralhas que as guardassem.”[43] Sobre a
presença deste personagem na obra,
argumenta Raquel Almeida Prado: “A
simpatia concedida à Madre Moni, no
contraste com a sua sucessora, parece uma
concessão rara, no radical anticlericarismo
de Diderot, e deve-se não ao repúdio da
tirania jesuítica, mas também a um
sentimento estético, ainda sensível a
manifestações de fervor místico.”[44]
E estendi os braços. Suas companheiras os
seguraram. Arrancaram-me o véu;
despojaram-me sem pudor. Encontram, em
meu seio, o retratinho da antiga superiora;
tomaram-no; supliquei a permissão de
beijá-lo ainda uma vez, recusaram-no.
Enfiaram-me uma camisa, tiraram-me as
meias, cobriram-me com um saco e
conduziram-me, cabeças e pés nus, através
dos corredores. Gritei, pedi socorro; o sino
soara, porém, advertindo que ninguém
aparecesse. Eu invocava o céu e caía por
terra, arrastavam-me. Quando cheguei ao
fim da escada, tinha os pés ensanguentados
e as pernas feridas, meu estado comoveria
almas de bronze. Abriram então com grossas
chaves a porta de um pequeno lugar
subterrâneo, obscuro, onde me atiraram
sobre uma esteira que a umidade começara
a apodrecer. [...] Meu primeiro movimento
foi para matar-me: levei as mãos à
Para Diderot, a vocação verdadeira era
rara, e somente mais uma personagem - a
irmã Ursula - a manifestará no romance,
apoiando Suzanne em seus momentos mais
difíceis:
Se, nos dois últimos dias de minha
retratação pública, eu não ferira os pés, fora
ela que tivera o cuidado de limpar
furtivamente os corredores, e de espalhar, à
esquerda e à direita, os cacos de vidros. Nos
dias em que estive condenada a jejuar, a pão
e água, privava-se de uma parte de sua
porção que envolvia em um guardanapo
branco e jogava dentro de minha cela.
Tiraram a sorte para a religiosa que
conduziria pela corda, e fora ela a escolhida;
teve a firmeza de procurar a superiora e
protestar que preferiria morrer a prestar-se
àquela tarefa infame e cruel.[45].
[43] Diderot, A Religiosa, 87.
[44] Prado, A Jornada, 147.
[45] Diderot, A Religiosa, 121.
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03 | 2018
TEXTO ABERTO
garganta; rasguei as vestes com os dentes;
soltei gritos terríveis; uivava como um
animal feroz; batia a cabeça contra as
paredes; cobri-me de sangue; procurava
aniquilar-me antes que as forças me
faltassem, o que não demorou acontecer.
Passei aí três dias; acreditava-me presa pelo
resto da vida.[46]
enganava-se, encontravam-se as três atrás
de mim, desfeitas em lágrimas; não haviam
ousado interromper-se, esperavam que eu
saísse, por mim mesma, do estado de
transporte e de efusão em que me viam.[47]
Em Sobre as Mulheres, Diderot relaciona
esse mesmo tipo de delírio à influência do
útero na constituição psicofisiológica
feminina e narra um caso semelhante
sobre os suplícios adotados pelas mulheres
quando adeptas da religião:
Como podemos ver, a religião aliada aos
efeitos provocados pelo cerceamento da
liberdade transformava mulheres em
carrascos capazes de impingir dor em seu
semelhante, por meio da tortura física e
psicológica, sem a manifestação de
nenhum remorso ou culpa. Segundo elas,
agiam em nome de um Deus, que exigia,
por sua vez, acima de tudo, obediência e
sacrifício.
E em nossos dias não vimos uma dessas
mulheres que representavam no suplício a
infância da Igreja, com os pés e as mãos
pregados numa cruz, o flanco trespassado
por uma lança, guardar o tom de seu papel
em meio às convulsões de dor, sob o suor
frio que escorria de seus membros, com os
olhos obscurecidos pelo véu da morte e,
dirigindo-se ao diretor desse bando de
fanáticos, dizer-lhe, não com voz sofredora:
“Meu pai, quero dormir”, mas com uma voz
infantil: “Papai, eu quero fazer
naninha?”[48]
Ainda no convento de Longchamp,
Suzanne vivencia os delírios religiosos que,
segundo Diderot, acometiam as mulheres
devido à sua constituição psicofisiológica:
Acreditava não me haver dirigido a Deus
com mais consolação e fervor, o coração
palpitava-me com violência; esqueci em um
instante tudo o que me rodeava. Não sei
quanto tempo permaneci nessa posição, nem
quanto ainda permaneceria; fui um
espetáculo bem tocante, porém, pode-se
acreditá-lo, por minha companheira e pelas
duas religiosas que me sucederam. Quando
me levantei, pensei estar sozinha;
No último convento por onde Suzanne
passa, o Saint-Eutrope de Arpajon, ela
vivencia a questão da repressão da
sexualidade nos claustros. Diderot já havia
tratado dessa questão no romance Joias
Indiscretas, em que um sultão detentor de
um anel intima vaginas a confidenciar suas
aventuras. Encontramos nessa obra o
[46] Diderot, A Religiosa, 76.
[47] Diderot, A Religiosa, 82.
[48] Diderot, “Sobre as mulheres”, 222.
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TEXTO ABERTO
seguinte trecho sobre as instituições
religiosas:
achava que eu tinha o hálito puro, dentes
alvos, lábios frescos e rubros.[50]
O sultão aproveitou a oportunidade para
conhecer algumas particularidades da vida
daquelas moças. Seu anel interrogou a joia
de uma jovem reclusa chamada Cleanta, e a
joia, pretensamente virginal, confessou dois
jardineiros, um brâmane e três cavaleiros, e
contou que evitou um escândalo graças a
um medicamento e duas sangrias. Zeferina
confessou por intermédio da sua joia, que
devia ao moço de recados do convento o
honorável título de mãe. Uma coisa, porém,
surpreendeu o sultão: que, embora estas
joias sequestradas se explicassem em termos
assaz indecentes, as virgens a quem
pertenciam ouviam-nas sem enrubescer.
Isto levou-o a conjeturar que se naqueles
retiros havia falta de exercícios, em
contrapartida havia muita especulação.[49]
Diderot descreve em A Religiosa intensas
trocas de carícias entre a madre superiora
e Suzanne, que por duas vezes as levam ao
orgasmo. A relação das duas provoca ciúme
na preterida da madre superiora, irmã
Thérèse, o que demonstra que as relações
amorosas e sexuais dentro do convento
tinham o mesmo enredo das vivenciadas no
mundo livre. No desenrolar da trama,
encontramos uma Suzanne confessando os
encontros com a madre superiora e todo o
julgamento do ponto de vista religioso
sobre o assunto. A madre superiora, em
conflito com a sua tendência sexual e
atormentada pela culpa imposta pela
religião cristã, adoece e morre, sendo
assim mais uma vítima dos tormentos
provocados pelo claustro.
É importante observar que o filósofo
apresenta uma posição ambígua sobre o
tema. Diderot não via na
homossexualidade[51] um mal em si, como
podemos atestar na obra Continuação do
Diálogo. Entretanto, especificamente em A
Religiosa, a interpreta como a
manifestação de um corpo em
desequilíbrio. Fazia parte da constituição
psicofisiológica da madre superiora uma
tendência para a volúpia que, confinada e
moldada por uma doutrina religiosa
defensora da continência e da castidade
Na obra A Religiosa, Suzanne tem relações
homossexuais com a madre superiora, que
tinha por hábito trocar benefícios por
favores sexuais:
Desde então, logo que uma religiosa cometia
alguma falta, eu intercedia por ela e tinha
certeza de obter a graça pedida mediante
qualquer favor inocente: era sempre um
beijo, ou na testa ou no pescoço, ou nos
olhos, na face, na boca, nas mãos, no colo ou
nos braços, mais frequentemente na boca,
[49] Diderot, Joias Indiscretas, 41.
[50] Diderot, A Religiosa, 142.
[51] Neste ponto, podemos acrescentar que Diderot repete um preconceito da época, que considerava os conventos locais de práticas
homossexuais, como afirma Houbre: “[...] Diderot de La religieuse [...] renova a crítica tradicional dos universos unissexuados que são
os conventos e o internato, considerados lugares de práticas homossexuais.” Houbre, “Inocência”, 100.
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TEXTO ABERTO
como valores norteadores da conduta
feminina,[52] a desequilibrou. Vejamos este
trecho do romance: “Ela não foi feita para o
estado, eis o que ocorre, cedo ou tarde,
quando nos opomos aos pendores gerais
da natureza: tal constrangimento a conduz
a afeições desregradas, tanto mais
violentas quanto são tanto mal fundadas, é
uma espécie de loucura.”[53] Roland
Desné, em sua análise sobre a relação
homossexual entre Suzanne e a madre
superiora, diz que ela completa o quadro
desenhado por Diderot dos efeitos
provocados pelo cerceamento da liberdade
nos claustros: “Os três grandes retratos
das madres superioras, a visão exaltada
(Irmã Moni), a sádica (Irmã SanteiChristine) e a lésbica (Abadessa de
Arpajon), ilustram um processo de
desumanização que varia e afeta
necessariamente a pessoa sem o seu
ambiente natural, seus pais, seus amigos e
seus concidadãos.”[54] Para Diderot, esse
quadro era marcado pelo sofrimento e
demonstrava como o afastamento da
natureza tinha efeitos devastadores sobre
a constituição psicofisiológica, vivendo-se
um estado constante de desespero e dor,
como conclui Suzanne quando descreve a
situação dos religiosos que tomam
consciência da sua situação: “[...] então se
percebe toda a profundidade dessa
miséria, se detesta a si próprio, e detestase aos outros, chora-se, geme-se, grita-se,
sente-se a aproximação do desespero.”[55]
A PERDA DA
LIBERDADE COMO
CONDIÇÃO
FEMININA
Diderot utilizou a história de Suzanne não
apenas para explorar os efeitos dos
claustros sobre a estrutura psicofisiológica
das mulheres, como já vimos
anteriormente, mas também para
demonstrar que na sociedade francesa do
seu tempo poucas jovens entravam na vida
reclusa por vontade própria. Sobre isso
Franklin de Matos, na obra O Filósofo e o
Comediante, afirma: “[...] não é por um
movimento espontâneo que a maioria das
moças entra para a vida monástica, mas
por coação, a fim de resolver questões de
honra e dinheiro que afligem certas
famílias.”[56] Essa análise diderotiana é um
diferencial em sua obra, uma vez que o
filósofo sempre buscou demonstrar a
situação de opressão vivenciada pelas
mulheres. Para ele, desde os primórdios da
história humana o sexo feminino foi
subjugado pelos interesses masculinos,
situação que relegava as mulheres a um
plano inferior na sociedade, marcando-as
pelo desprezo e rejeição. Elisabeth
Fontenay ressalta este aspecto da análise
diderotiana sobre as mulheres: “mesmo
aceitando com demasiada facilidade a ideia
[52] Piva, O Ateu, 270.
[53] Diderot, A Religiosa, 186.
[54] Roland Desné, La Religieuse (Paris : Garnier-Flammarion, 1968), 10.
[55] Diderot, A Religiosa, 186.
[56] Franklin de Matos. O Filósofo e o Comediante (Belo Horizonte: UFMG, 2001), 202.
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TEXTO ABERTO
de uma inferioridade natural da mulher,
[...] tomou abertamente, e em todos os
planos, o partido das mulheres”[57] ,
opinião esta compartilhada por Elisabeth
Badinter[58] e Paulo Jonas de Lima Piva,
que afirma: “Levando rigorosamente em
consideração a atmosfera cultural do
século XVIII, podemos dizer que Diderot
muito se solidarizou com a condição da
mulher.”[59]
odiosa da parte do outro, cuja ideia não
posso tolerar; esse homem surge sem cessar
entre nós duas, repugna-me, e o ódio que lhe
devo estende-se a ti. Minha filha, pois é
malgrado meu, tuas irmãs obtiveram da lei
o nome, que do crime te adveio; não aflijas
uma pobre mãe que expira, deixa-a descer
tranquilamente ao túmulo; que se possa
dizer, a si mesma, quando estiver na
eminência de comparecer perante o grande
juiz, que reparou a falta tanto quanto de si
dependia, que pode louvar-se porque após
sua morte não trarás novas perturbações à
casa e não reivindicarás direitos que não
tens.[62]
A personagem central do romance,
Suzanne, é exemplar dessa condição
opressiva. Fruto de uma aventura amorosa
da mãe, foi encaminhada para o
convento[60] para não partilhar da
herança que cabia às irmãs. Sua
progenitora, profundamente influenciada
pelos dogmas religiosos,[61] a via como um
pecado que, para ser redimido, deveria ser
isolado, esquecido atrás dos muros dos
conventos, como lemos em seu discurso,
em que confessa a traição e pede à filha
que se resigne com a sua situação:
Diderot também aborda o destino de filhos
frutos de adultério ao narrar o nascimento
de D’Alembert no Diálogo entre D’Alembert
e Diderot. O geômetra era filho ilegítimo do
Cavalheiro Destouches e da Marquesa de
Tencin: “[...] ei-lo nascido, exposto sobre
os degraus de Saint-Jean-Le-Rond, que lhe
deu seu nome; retirado dos Enjeitados;
aferrado à mama da boa vidraceira, Sra.
Rousseau.”[63]
E reconheço também, minha filha, que me
recordas uma traição, uma ingratidão
[57] Elisabeth de Fontenay, Diderot y el materialismo encantado (México: Fondo de Cultura Económica, 1988), 136.
[58] Badinter, O que é, 18.
[59] Piva, O Ateu, 278.
[60] Suzanne também havia sido educada no convento, tratava-se de um hábito da época que sofria modificações na sociedade
iluminista, como destaca Paulo Jonas de Lima Piva: “Assim, para conter o usufruto do corpo feminino infantil ou juvenil, para não
entreter nenhuma escapatória que não a religiosa sobre a sua finalidade matrimonial e maternal, para confiná-lo no espaço
conventual e submetê-lo a uma disciplina cronométrica que pontua, uma a uma, as posturas esperadas e convenientes, os usos da
sociedade iluminista tem o cuidado de proporcionar interstícios de liberdade que permitem às jovens apropriarem-se parcialmente,
se não do futuro de sua identidade corporal, pelo menos de certas variáveis que contribuirão para talhá-lo.” Ver Piva, O Ateu, 96.
[61] A ideia de casamentos obrigados é uma constante na obra diderotiana, como podemos ler nesta passagem de M.M. de La Carlière:
“Quem não ouviu falar da Sra. de La Carlière? Quem não ouviu falar de suas complacências sem limites para com um velho marido
ciumento, a quem a cupidez de seus pais havia sacrificado à idade de catorze anos?” DIDEROT, D. “Madame de La Carlière” in DIDEROT,
D. Obras II – Estética, Poética e Contos: Editora Perspectiva, 2000, p. 331.
[62] Diderot, A Religiosa, 53.
[63] Denis Diderot, “Diálogo entre D’Alembert e Diderot”, in: Denis Diderot, Obras I – Filosofia e Política (São Paulo: Editora
Perspectiva, 2000), 154.
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06 | 2019
TEXTO ABERTO
Nas duas situações, verificamos que as
crianças nascidas de relacionamentos
ilegítimos eram vistas como párias, que
deveriam ser isoladas. Roberto Romano
comenta que essas crianças eram
rejeitadas pela ideologia cristã, apesar
desta pregar o amor ao próximo:
Entrei nesta nova prisão [referência à sua
volta para casa após se recusar a professar
os votos], em que passei seis meses,
solicitando diariamente, inutilmente, a
graça de falar-lhe, de ver meu pai ou de lhe
escrever. Levaram-me comida, serviam-me,
uma criada acompanhava-me à missa nos
dias de guarda, e tornava a trancar-me. Eu
lia, trabalhava, chorava, às vezes cantava; e
assim é que meus dias se escoavam.
Sustentava-me um sentimento secreto: o de
que era livre, e que minha sorte, por dura
que fosse, poderia modificar-se. Mas estava
decidido que eu seria religiosa e o fui.[65]
O fato de Suzanne ser filha adulterina não
diminui a violência da monstruosidade a
que é submetida, com plena cumplicidade
materna. Como o bebê jogado para as amas
de leite, ela é expulsa de casa para ser
controlada por três “mães” de aluguel, as
madres superioras. Visto ser a ilegitimidade
algo monstruoso, na cabeça do coletivo
hipócrita dos bons cristãos ela é monstro.
[...] A caridade permanece apenas no
discurso, é negada às vítimas inocentes do
descontrole sexual.[64]
A jovem também ilustra, pela repercussão
da sua recusa, o posicionamento da
sociedade da época a tal ato: “não se
concebe nunca de que maneira pode uma
jovem de dezessete para dezoito anos levar
as coisas a tal extremo, com firmeza
incomum, os homens elogiam muito esta
qualidade, mas creio que passam bem sem
ela nas que pretendem para esposas.”[66]
Diderot também demonstra, na obra A
Religiosa, que as mulheres que se opõem à
ordem social vigente eram duramente
perseguidas. Selecionamos três passagens
que ilustram essa situação e também
citamos como ela aparece em outras obras
do autor, destacando assim a sua
perspectiva a respeito da posição de
opressão sobre o sexo feminino. A primeira
é a do momento em que Suzanne se recusa
a professar os votos e, por tal ato de
rebeldia, é mantida reclusa em sua casa
por seis meses, isolada dos demais
membros da família, que não aceitam sua
decisão e voltam a impor a vida religiosa à
jovem, como lemos no excerto abaixo:
A segunda passagem é aquela em que,
durante o processo para anular votos, sua
ousada atitude provoca duras represálias
das demais religiosas: perseguições,
torturas e falsas acusações. No relato de
Suzanne encontramos a represália da fé
cristã contra aqueles que ousavam
enfrentá-la. A religiosa, acusada de
bruxaria, sofre duras penas por sua posição
de rebeldia. Não faltam, no desenrolar da
história, cenas que demonstram como tal
ato de resistência à vida religiosa era
[64] Roberto Romano, Introdução para A Religiosa (São Paulo: Perspectiva, 2008), 35.
[65] Romano, Introdução, 47.
[66] Romano, Introdução, 51.
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TEXTO ABERTO
considerado uma afronta que deveria ser
exemplarmente punida, como lemos neste
trecho:
bairro, de casa em casa, e obrigaram-na, por
vários anos, a viver só e escondida.[68]
Já no final do romance, após conseguir
fugir do convento, Suzanne encontra a
condenação da opinião pública, que a julga
como leviana, por ter trocado a vida
religiosa pela mundana:
Duas religiosas levantaram o sudário,
apagaram os círios, e lá me deixaram,
encharcada até os ossos, da água de que me
haviam maliciosamente aspergido. Meu
hábito secou no corpo. Não tinha o que
mudar. A esta mortificação, seguiu-se outra.
A comunidade reuniu-se, olharam-me como
se olha uma réproba, minha iniciativa foi
chamada de apostasia; proibiu-se a todas as
religiosas, sob pena de desobediência, de me
falar ou acudir, de aproximar-se de mim e
até de tocar as coisas de que eu me tivesse
servido.[67]
Parece que minha evasão tornou-se pública.
Esperava-o. Uma das camaradas de
trabalho falou-me ontem a respeito,
acrescentando circunstâncias odiosas, e
reflexões desoladoras. Por felicidade, ela
estendia lençóis molhados na corda, voltada
de costas para a lâmpada; e não podia
notar-me a perturbação; entretanto, a
patroa, vendo chorar, perguntou: “Marie, o
que tem?” “Nada”, respondi. “Ora”,
continuou, “será tola assim, que vá se
apiedar de uma religiosa má, sem costumes,
sem religião, e que se embeiçou por um
monge vilão, com o qual fugiu do convento?
Deve ter compaixão de sobra. Ela precisava
apenas beber, comer, rezar a Deus e dormir;
estava bem onde estava; o que lhe faltava?
Se tivesse ido umas três ou quatro vezes ao
rio, com o tempo que anda fazendo teria se
adaptado a seu estado...” A isso retruquei
que só conhecemos bem as nossas penas;
melhor faria calando, pois ela não teria
acrescentado: “Ora, é uma libertina, que
Deus castigará...”[70]
Ele também retoma o tema no texto Isso
não é um conto. A personagem Srta. La
Chaux,[68] por não obedecer aos
protocolos sociais e seguir somente seus
instintos, entregando-se à paixão por
Gardeil, foi perseguida pela família e pela
Igreja:
Mas esqueço de uma de suas primeiras
desgraças; é a perseguição que teve de sofrer
de parte de sua família, indignada com a
afeição pública e escandalosa. Empregaram
a verdade e a mentira para dispor de sua
liberdade de uma maneira infamante. Seus
pais e os padres a perseguiram de bairro em
[67] Romano, Introdução, 93.
[68] Segundo Franklin de Matos, na situação que envolve os personagens La Chaux e Gardeil, Diderot assumiu a postura de defesa da
sua situação: “[...] na cena com Gardeil e la Chaux, o narrador, como personagem, mostra muita inquietação pela moça, toma seu
partido sem qualquer hesitação e argumenta veementemente a favor dela.” Matos, O Filósofo, 101.
[69] Denis Diderot, “Isso não é um conto” in: Denis Diderot, Obras II. (São Paulo: Editora Perspectiva, 2000), 316.
[70] Diderot, “Isso não”, p. 192.
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TEXTO ABERTO
Em uma passagem de Suplemento à viagem
de Bougainville, os personagens A e B
relatam a história de Miss Polly Baker,
moradora de uma colônia inglesa na
América do Norte, também demonstrando
o peso do julgamento da sociedade sobre a
mulher. Segundo as leis da colônia, as
mulheres que tivessem filhos ilegítimos frutos de relações extraconjugais ou da
prostituição - deveriam ser julgadas pelo
tribunal. A pena prevista para esse tipo de
crime era o pagamento de uma multa e,
caso a ré não tivesse condições de quitá-la,
eram aplicadas punições corporais em
praça pública. Miss Baker comparecia ao
tribunal pela quinta vez. Em suas palavras
encontramos algumas das exigências
morais impostas às contemporâneas de
Diderot. A primeira delas diz respeito ao
casamento: a mulher reconhecida e
valorizada na sociedade é aquela que
preserva a sua virgindade até o enlace,
resistindo às investidas masculinas. Porém,
aquelas que cedem, deixando-se seduzir,
sofrem duras consequências: são
desprezadas pela sociedade, condenadas
pela religião e tornam-se párias sociais.
Vejamos um trecho da autodefesa da
jovem:
consentimento à primeira e única
proposição que me foi feita; eu era virgem
ainda; tive a simplicidade de confiar minha
honra a um homem que não tinha honra
alguma; ele me fez meu primeiro filho e me
abandonou. Esse homem, todos vós o
conheceis; é atualmente magistrado como
vós e senta-se ao vosso lado; eu esperava
que aparecesse hoje no tribunal e
interessasse vossa piedade em meu favor,
em favor de uma infeliz que só o é por causa
dele; então eu seria incapaz de expô-lo ao
rubor da vergonha, lembrando o que se
passou entre nós. Estou errada em me
queixar hoje da injustiça das leis? A
primeira causa de meus extravios, meu
sedutor, foi elevada ao poder e às honras
pelo mesmo governo que puniu minhas
desgraças com o açoite e com a infâmia.
Responder-me-ão que transgredi os
preceitos da religião; se minha ofensa é
contra Deus, deixai-lhe o cuidado de me
punir; vós já me excluístes da comunhão da
Igreja, isso não basta? Por que, ao suplício
do inferno, que acreditais me esperar no
outro mundo, juntais o das multas e açoites?
Na sequência do diálogo, os personagens A
e B contam que a súplica de Miss Baker
surtiu efeito e que aquele que a seduzira
sentiu remorso e lhe propôs casamento,
alterando sua situação perante a
sociedade. Na fala do personagem:
“convertendo em mulher honesta aquela
que cinco anos antes convertera em
rapariga pública.”[71] O último trecho
evidencia outro ponto fundamental do
Mas é minha culpa? Eu invoco vosso
testemunho, senhores; vós me supondes
certamente com bastante bom senso para
estardes persuadidos de que preferiria a
harmonia conveniente a uma esposa, assim
como tenho a sua fecundidade. Desafio quem
quer que seja a dizer que me recusei a
aceitar essa condição. Dei meu
[71] Diderot, Suplemento, p. 147.
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TEXTO ABERTO
código moral que atingia as mulheres
naquela época: a dependência do juízo
masculino.
Retornando à Religiosa, mesmo que se
trate de uma obra de ficção e, portanto,
esteja repleta de cenas dramáticas e até
mesmo exageradas, não podemos esquecer
que o romance, segundo comentadores,
teve inspiração em fatos da vida real. O
primeiro deles foi a história da religiosa
Marguerite Delamarre, que tentou a
revogação dos seus votos e não obteve
êxito e o segundo, o fato de Diderot ter
tido uma irmã que entrou para a vida
religiosa e morreu louca. Assim, podemos
observar que se a ficção teve inspiração na
realidade, ela não deixa de demonstrar o
quanto, para as mulheres do Século das
Luzes, a liberdade ainda era um sonho e
não uma realidade de fato. Ou seja, o que
Diderot mostra em A Religiosa é uma face
da clausura feminina que se expressa de
forma mais ampla na vida social. Outro
ponto que podemos destacar, é que por
meio do retrato pintado por Diderot sobre
a condição feminina em seu tempo é que
existe uma demanda por liberdade, não
somente nos claustro, mas também que as
mulheres contestam a forma de vida a que
estão submetidas, assim ele se apresenta
como um porta voz delas, como ele
apresenta na obra Sobre as Mulheres: “Não
basta falar das mulheres, e falar bem delas,
Senhor Thomas, fazei ainda que as veja,
suspendei-as dos meus olhos com tantos
termômetros das menores vicissitudes dos
mores e costumes”.[72]
[72] Diderot, Sobre as Mulheres, p. 220
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06 | 2019
TEXTO ABERTO
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Como citar este texto: Tamizari, Fabiana, “A Religiosa e a liberdade
feminina no pensamento de Diderot”, Texto Aberto IEF 6 (2019), 1-19. DOI:
10.5281/zenodo.3479211
n.º 6 | 2019
ISSN: 2184-2388