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(De)Formação humana a partir da música

Revista Educação e Emancipação

O presente trabalho teve como objetivo compreender o conceito de (de)formação humana a partir da música por meio do estudo da teoria crítica adorniana. A pesquisa, de caráter bibliográfico, tomou como foco a relação entre música, educação e sociedade. A importância dessa pesquisa se justificou pela falta de estudos sobre música e educação que adotam a teoria crítica, portanto, a pesquisa visou estabelecer uma contribuição para a área e propiciar novas pesquisas sobre a temática. A partir das análises, pôde-se observar que a música tem grande potencial (de)formativo, podendo levar à deformação, perda da autonomia e alienação, quando estandardizada, mas podendo também se revelar um caminho para a formação, permitindo a apreensão da promesse du bonheur pelo indivíduo, não o deixando conformado ou contentado com a situação social vigente.

DOI: https://dx.doi.org/10.18764/2358-4319v16n1.2023.14 (De)Formação humana a partir da música: análise conceitual à luz da teoria crítica adorniana Cristiano Aparecido da Costa1 Eliton Perpétuo Rosa Pereira2 Apolo de Souza Sá3 RESUMO O presente trabalho teve como objetivo compreender o conceito de (de)formação humana a partir da música por meio do estudo da teoria crítica adorniana. A pesquisa, de caráter bibliográfico, tomou como foco a relação entre música, educação e sociedade. A importância dessa pesquisa se justificou pela falta de estudos sobre música e educação que adotam a teoria crítica, portanto, a pesquisa visou estabelecer uma contribuição para a área e propiciar novas pesquisas sobre a temática. A partir das análises, pôde-se observar que a música tem grande potencial (de)formativo, podendo levar à deformação, perda da autonomia e alienação, quando estandardizada, mas podendo também se revelar um caminho para a formação, permitindo a apreensão da promesse du bonheur pelo indivíduo, não o deixando conformado ou contentado com a situação social vigente. Palavras-chave: música; formação humana; teoria crítica. 1 2 3 Pós-doutor em Educação. Docente do Instituto Federal de Goiás. Participa Núcleo de Estudos em Educação, Violência, Infância, Diversidade e Arte (NEVIDA). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5613-708X . E-mail: [email protected] . Doutor em Ciências da Educação. Docente do Instituo Federal de Goiás. Participa do Grupo Interinstitucional Goiano de Pesquisa em Educação Musical (MOUSIKÊ). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9181-2543 E-mail: [email protected] . Licenciado em Música. Mestrando em Educação pela Universidade Federal de Goiás (UFGo). Participa do Núcleo de Estudos em Educação, Violência, Infância, Diversidade e Arte (NEVIDA). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5289-0891 . E-mail: [email protected] . ________________________________________________________________________________________________________________ 344 Revista Educação e Emancipação, São Luís, v. 16, n. 1, jan./abr. 2023 Human (de)formation through music: conceptual analysis according to Adorno's critical theory ABSTRACT The present work aimed to understand the human (de)formation through the music concept by studying Adorno's critical theory. Bibliographical research focused on the relationship between music, education, and society. The research's importance was justified by the lack of studies on music and education adopting critical theory; therefore, the research aimed to contribute to this field and promote further research on the subject. From the analyses, it is possible to observe that music has great (de)formative potential, leading to deformation, loss of autonomy and alienation, when it is standardized. Still, it can also reveal itself as a path to the formation, allowing the individual to capture the promesse du bonheur, not leaving him conformed or satisfied with the prevailing social situation. Keywords: music; human formation; critical theory. (De)Formación humana a partir de la música: análisis conceptual a la luz de la teoría crítica adorniana RESUMEN Este trabajo tuvo como objetivo comprender el concepto de (de)formación humana a partir de la música a través del estudio de la teoría crítica de Adorno. La investigación bibliográfica se centró en la relación entre música, educación y sociedad. La importancia de esta investigación se justificó por la falta de estudios sobre música y educación que adopten la teoría crítica, por lo que la investigación tuvo como objetivo establecer un aporte al área y brindar mayor investigación sobre el tema. De los análisis se pudo observar que la música tiene un gran potencial (de)formativo, que puede llevar a la deformación, pérdida de autonomía y alienación, cuando se estandariza, pero también puede revelar un camino hacia la ___________________________________________________________________________________________________ Revista Educação e Emancipação, São Luís, v. 16, n. 1, jan./abr. 2023 345 formación, permitiendo la aprehensión de la promesse du bonheur para el individuo, no dejándolo satisfecho o conformado con la situación social actual. Palabras clave: música; formación humana; teoría crítica. INTRODUÇÃO Esta pesquisa almeja analisar o conceito de (de)formação humana a partir da música. Para isso, o trabalho adota a perspectiva da teoria crítica frankfurtiana, compreendendo a sociedade historicamente e observando-a sob a ótica de suas contradições. O teórico crítico Theodor Adorno, um dos grandes nomes da Escola de Frankfurt, foi tomado para essa análise, especialmente sua produção teórica que relaciona educação, sociedade e música. Além disso, foram utilizados outros autores para compreender aspectos basilares da teoria crítica, do contexto de desenvolvimento da Escola de Frankfurt e de algumas categorias consideradas relevantes para o desenvolvimento do presente trabalho. A importância dessa pesquisa está diretamente ligada à necessidade atual de se observar a sociedade e a música de uma perspectiva que adote a teoria crítica, tendo sua importância no campo humanístico. Assim, o trabalho visa estabelecer uma contribuição para a área e abrir caminhos para novas pesquisas explorando a temática. Esta foi uma pesquisa conceitual de recorte bibliográfico específico e de abordagem qualitativa, buscando compreender e relacionar conceitos e categorias. O presente texto está estruturado em quatro partes: a primeira considera as relações entre arte, trabalho e cultura; a segunda discute as relações entre sujeito e objeto; na terceira, Adorno é apresentado como um autor importante para a temática desenvolvida, justificando sua relevância para a formação humana e sua relação com a música; por fim, a última parte trata do desenvolvimento do conceito de (de)formação humana a partir da música sob a perspectiva adorniana, tendo como suporte as discussões realizadas nas partes anteriores. ________________________________________________________________________________________________________________ 346 Revista Educação e Emancipação, São Luís, v. 16, n. 1, jan./abr. 2023 TRABALHO, ARTE E CULTURA O indivíduo é um produto do universal e a ele deve sua possibilidade de existência, já que o pensar é testemunho disso ao ser uma condição universal e, consequentemente, social (ADORNO, 1995b). Assim, Adorno e Horkheimer (1947) compreendem, no processo de socialização, a importância do trabalho para suprir as necessidades materiais de uma comunidade. O homem se constitui ao trabalhar e relacionar-se com outros, na convivência com outros homens, na relação com a natureza e na constituição de suas experiências. Ao não considerar essas questões, o trabalho passa a ter um caráter alienante, impondo assim apenas uma condição de sobrevivência, não permitindo que se almeje a emancipação ou uma práxis autêntica. Em um processo como esse, o indivíduo é tomado como objeto, não como sujeito dotado de consciência (ADORNO; HORKHEIMER, 1947). Além disso, Adorno e Horkheimer (1947, p. 13) ressaltam que a ordem presente na divisão do trabalho não é natural, mas sim “testemunho da unidade impenetrável da sociedade e da dominação” pois, para os autores, “a dominação confere maior consistência e força ao todo social no qual se estabelece”, de modo que “a divisão do trabalho, em que culmina o processo social da dominação, serve à autoconservação do todo dominado”. A dominação enxerga o indivíduo como parte do universal, convertendo-o por meio da execução do particular. Dessa forma, a sociedade se curva a ela mesma pela divisão do trabalho imposta para agregar o todo. A arte, segundo a concepção de Marx (2010), é consequência da atividade livre e consciente do homem, sendo uma atividade vital para o indivíduo. Isso pode ser visto na declaração de Marx que diz que “a elaboração da natureza inorgânica é a prova do homem enquanto um ser genérico consciente” (2010, p. 85). Nesse sentido, arte é trabalho por seu papel na gênese na produção da consciência humana, já que enquanto o animal cria somente na medida e carência de sua espécie, “o homem sabe produzir segunda a medida de qualquer espécie, e sabe considerar, por toda a parte, a medida inerente ao objeto; o homem também forma, por isso, segundo as leis da beleza” (MARX, 2010, p. 85). ___________________________________________________________________________________________________ Revista Educação e Emancipação, São Luís, v. 16, n. 1, jan./abr. 2023 347 Assim, a arte deve ser entendida como produção humana e não pode ser vista independentemente de sua relação com o trabalho e a sociedade, ela é, para o homem, o caminho para conhecer a si e ao mundo exterior. Para Zanolla (2013, p. 101) “a arte não difere do trabalho, é ambivalente, uma possibilidade de experiência emancipatória ou de alienação e conformismo”. Eis aqui o espaço da possibilidade do processo (de)formativo, já que, segundo Costa, “a música enquanto manifestação artística tem se mostrado um poderoso instrumento, tanto para a imposição de ideologias, quanto para processos educativos com o objetivo de se alcançar a autonomia dos sujeitos” (2017, p. 13). Essa consciência dotada de autonomia, derivada de um processo formativo, é necessária para compensar a perda do indivíduo ante as forças sociais que o controlam. Sob essa ótica, Adorno e Horkheimer (1947) observam o esclarecimento, movimento do pensamento para livrar a humanidade do medo e conduzir o homem a senhor: do ambiente que o cerca, senhor de si mesmo e da natureza. Os homens buscam dominar a natureza, mas estão apenas submetidos à sua necessidade. Nesse sentido, o esclarecimento mal conduzido não atua para um ideal necessariamente formativo, mas sim para a deformação. A perspectiva do esclarecimento falhou em sua execução, como dizem Adorno e Horkheimer (1947), o esclarecimento não conseguiu compreender a natureza e livrar os homens dos mitos. Para eles, a aversão à dúvida e o interesse para além do conhecimento impediu o entendimento humano de alcançar a natureza das coisas, levando-o ao ponto do esclarecimento mal conduzido. Isto colocou no escuro a exigência de se refletir sobre o pensamento, fetichizandoo, considerando o exato e o caminho para a verdade. Assim, o pensamento torna-se coisificado, sendo até ele mesmo devastado na busca do esclarecimento. Pode-se estabelecer que a educação para um ideal de formação visando superar o esclarecimento mal conduzido, sob a perspectiva de Adorno (1995a), não deve ser uma modelagem de pessoas, tampouco uma mera transmissão de conhecimentos. O objetivo a ser buscado é a produção de uma consciência verdadeira, capaz aqui de ser autônoma. A necessidade disso está também intrinsecamente conectada ao ideal de uma verdadeira democracia, ________________________________________________________________________________________________________________ 348 Revista Educação e Emancipação, São Luís, v. 16, n. 1, jan./abr. 2023 “uma democracia com o dever de não apenas funcionar, mas operar conforme seu conceito, demanda pessoas emancipadas. Uma democracia efetiva só pode ser imaginada enquanto uma sociedade de quem é emancipado” (ADORNO, 1995a, p. 140-141). Neste sentido, a democracia não é apenas um sistema de governo dentre outros, ela é o meio que possibilita autonomia e necessita dela. Sua constituição deve se dar através da junção de consciências plenamente individuais, autônomas, para assim formar o coletivo. Entretanto, o esclarecimento atuante em nossa sociedade capitalista demonstra uma universal guinada à barbárie, que não valoriza ou respeita a individualidade e a autonomia do indivíduo (ADORNO, 1995a). Dentro da teoria adorniana, podemos compreender, como afirma Costa (2017), que o conceito de cultura está diretamente relacionado ao conceito de experiência, das possibilidades de experiências presentes em uma sociedade. Jay (2008, p. 233) afirma que Adorno “assinala que tamanha era a inter-relação entre cultura e sociedade que a primeira nunca conseguiu transcender plenamente as insuficiências da segunda”. Forma e ordem se conciliavam com a dominação cega. Com isso vem-se à tona a importância do ideal a ser alcançado na arte para a promesse du bonheur4, a arte deve transcender as barreiras impostas pela própria sociedade, pelo capital e pela linguagem. Adorno e Horkheimer (1947) notaram que esse processo não seria realizável se não houvesse uma estrutura que reforçasse o todo a fim de naturalizá-lo para que ele se autossustentasse. Silva (2010) explica que a novidade crítica concedida ao fetichismo é o reconhecimento de um aparato que se constituiria durante o século 4 Promesse du bonheur ou promessa de felicidade é uma expressão francesa comumente usada dentro do trabalho de Adorno e parte fundamental para o conceito de sua teoria estética. Promesse não se refere ao sentido comum de compromisso, mas sim ao potencial de algo ser boa ou melhor, como um dia que promete ser bom. Bonheur ou felicidade, refere-se não apenas a um sentimento individual de satisfação ou de sentirse bem, aos olhos de Adorno, felicidade é a satisfação dos desejos e necessidades somáticas espontâneas despertados por um ato de uma reflexão crítica e, dentro de contexto em que essa satisfação plena é negada, a felicidade é reconhecer essa sensação “aqui e agora”, antecipar um futuro ou uma realidade transfigurada (FINLAYSON, 2012). ___________________________________________________________________________________________________ Revista Educação e Emancipação, São Luís, v. 16, n. 1, jan./abr. 2023 349 XX, com grande influência estadunidense, denominado como indústria cultural. Toda infraestrutura social se delineia rumo ao universal e toda cultura, refém do monopólio, é idêntica em sua essência ao esqueleto (ADORNO; HORKHEIMER, 1947). É assustador quando dirigentes não estão mais preocupados em ocultar esse processo, já que se fortalecem ao se confessar ao público. O cinema e o rádio não precisam mais se apresentar como arte, eles crescem ao definir “a si mesmos como indústrias, e as cifras publicadas dos rendimentos de seus directores [sic] gerais suprimem toda dúvida quanto à necessidade social de seus produtos” (ADORNO; HORKHEIMER, 1947, p. 57). Esta necessidade social é induzida “pela própria mercadoria, padronizando assim as obras como pretenso resultado das ‘necessidades’ dos consumidores, por essa razão, aceito sem resistência” (SILVA, 2010, p. 378). Adorno e Horkheimer (1947) afirmam que a técnica e a racionalidade conquistam seu poder dentro da sociedade devido ao círculo da manipulação e à necessidade retroativa. A técnica se desenrola na sociedade no mesmo terreno em que os economicamente mais fortes exercem domínio, nesse sentido, a racionalidade técnica torna-se a própria racionalidade da dominação. Frente a isso, Adorno ressaltou que a arte, tanto a chamada arte clássica quanto suas expressões mais anárquicas, sempre foi e continua a ser uma força de protesto do humano contra a pressão das instituições dominadoras, religiosas e outras, ao mesmo tempo que reflete a substância objetiva delas (ADORNO, 1945 apud JAY, 2008, p. 236). Porém, como observava Adorno, nem tudo que se passava por arte tinha um momento negativo. No cerne de suas críticas ao que se caracterizava como indústria cultural, o autor acreditava que a promesse du bonheur havia sido apagada e tudo se aproximava cada vez mais de uma cultura afirmativa (JAY, 2008). O conceito de cultura afirmativa para a teoria crítica refere-se à cultura conduzida pela burguesia em sua época que segregava da civilização o mundo mental e espiritual, tratando-os como um reino de valor ________________________________________________________________________________________________________________ 350 Revista Educação e Emancipação, São Luís, v. 16, n. 1, jan./abr. 2023 independente e superior (JAY, 2008). Seu principal atributo era a afirmação de um mundo universal obrigatório, sempre melhor e mais valioso que há de ser sempre afirmado: um mundo essencialmente diferente do mundo factual da luta cotidiana pela vida, mas passível de ser realizado para si mesmo por todo indivíduo, ‘de dentro para fora’, sem nenhuma transformação da situação de fato (JAY, 2008, p. 236, grifos do autor). Para Adorno e Horkheimer (1947), tudo que a Indústria cultural abusa para as suas produções, o entretenimento e os elementos em que ela bebe já existiam muito tempo antes dela. Essa inspiração veio de grandes obras clássicas e é adaptada para ser entregue e consumida nos dias atuais, já que a arte imita o cotidiano. Para eles, isso se reflete na “velha experiência do espectador de cinema, que percebe a rua como um prolongamento do filme que acabou de ver, porque este pretende ele próprio reproduzir rigorosamente o mundo da percepção quotidiana, tornou-se a norma da produção” (ADORNO; HORKHEIMER, 1947, p. 59). No capitalismo, o lazer é a extensão do trabalho: uma válvula de escape para fugir do processo de trabalho mecanizado e pôr-se novamente em condições para enfrentá-lo. Dessa forma, a mesmice permeia o sistema e a vida de forma que a máquina gire sem sair do lugar (ADORNO; HORKHEIMER, 1947). A indústria cultural determina o consumo e elimina o que ainda não foi experenciado, julgando isso como um risco. Toda novidade ou surpresa é sempre familiar, mesmo sem jamais ter ocorrido, “pois só a vitória universal do ritmo da produção e reprodução mecânica é a garantia de que nada mudará, de que nada surgirá que não se adapte” (ADORNO; HORKHEIMER, 1947, p. 63). Em suma, as teses de Adorno, como demonstra Aguiar (2008), denunciam uma relação corrompida pelo capital e pelos recursos ideológicos que permeiam nossa sociedade. Adorno apontou “a manipulação da produção artística contemporânea pelo capital e a necessidade do combate aos recursos ideológicos que permitem e ‘justificam’ essa manipulação” (AGUIAR, 2008, p. 37, grifos do autor). Aguiar (2008) explicita que, na concepção adorniana, a arte se encontrava em um estado letárgico – já que outrora exercia funções ___________________________________________________________________________________________________ Revista Educação e Emancipação, São Luís, v. 16, n. 1, jan./abr. 2023 351 culturais, religiosas e morais – e hoje encontra-se refém do capital, o refém que o mundo capitalista soube atribuir um lugar específico no seio da realidade social dentre as mercadorias. Nesse cenário, a autonomia, outrora a duras penas conquistada pela arte, volta-se contra ela mesma, sendo também levada a ser veículo ideológico do poder social (AGUIAR, 2008). A questão é que a sociedade vive uma ‘ilusão da totalidade’, adquirida pela falsidade e a mentira da coisa pronta, polida e acabada. Criou-se uma tendência do sempre igual, reproduzindo o mesmo método de apropriação do objeto (AGUIAR, 2008, p. 38, grifos do autor). Adorno se posiciona ao entendimento de que a arte deve ser um “protesto constitutivo contra a pretensão à tonalidade do discursivo” (ADORNO, 1970, p. 117). Nessa perspectiva, a libertação pela arte revolucionária parece tender ao fracasso, já que a própria concepção da arte revolucionária é um erro: a arte deve contornar estruturas totalitárias (ADORNO, 1970). A tese central na teoria estética adorniana é que o protesto radical contra o poder totalitário deve residir em sua forma, não em seu conteúdo (AGUIAR, 2008). Segundo Aguiar (2008), é necessário quebrar formas convencionais para ter forças contra uma sociedade gananciosa e de brutal concorrência; aqui que a arte precisa ser inútil, uma inutilidade radical em sua forma para resistir ao poder da falsa integração. Então, traçadas as tramas e perspectivas, tendo fundamentação para, mais tarde, compreender como a música pode ser entendida em seu potencial (de)formativo tendo em vista os aspectos da relação trabalho, arte e cultura, o estudo prosseguirá para compreender a relação entre sujeito e objeto. SUJEITO E OBJETO Estabelecida a relação entre trabalho, arte e cultura com vistas à (de)formação, podemos agora nos voltar a elementos mais particulares, presentes nas relações do sujeito e objeto e teoria e práxis. ________________________________________________________________________________________________________________ 352 Revista Educação e Emancipação, São Luís, v. 16, n. 1, jan./abr. 2023 Uma das categorias desenvolvidas por Adorno (1995b) é a reflexão sobre sujeito e objeto. Para ele, ambos se sustentam reciprocamente, não há objeto se não houver um momento de individualidade humana, o objeto se constitui apenas diante do sujeito. Assim, é necessário proximidade entre sujeito e objeto, mas sem que um elimine o outro, devem mediar-se. Isso implica que ambos sejam necessários e que haja uma relação que caminhe para a conciliação, uma diferenciação sem dominação. Adorno e Horkheimer (1947) explicam que quanto mais o homem tem sua individualidade suprimida para compor a totalidade social, mais este torna-se refém da grande estrutura, refém da dominação absoluta. Para evitar que nos tornemos objetos, Adorno (1995b) pensa que o homem deve ser sujeito, um homem transcendental, constituído de experiências, abstração do homem vivo e verdadeiramente individual. Assim, é necessário trazer à tona a subjetividade ao sujeito, suas intuições e impulsos não devem ser riscados do conhecimento. Sob esta perspectiva, Adorno (1995b) discute sobre outra dicotomia muito recorrente, a de universal e particular. Entende-se a necessidade de cultivar e desenvolver uma individualidade e pensamentos particulares para constituir o indivíduo em seu processo formativo. Em um ideal formativo, nunca se deve sacrificar a singularidade para a observação e/ou constituição do universal, pois este é que deve ser constituído de pluralidade, de diferentes indivíduos. Sobre o objeto, o alvo de estudo do sujeito, a omissão da informação de que pelo sujeito é constituído, a despersonalização do conhecimento por um ideal objetivo, nada mais retém que uma compreensão falseada (ADORNO, 1995b). Eis o ponto da jornada em que se necessita compreender a discussão desenvolvida por Adorno em torno da teoria e práxis. É importante ressaltar que a práxis bem realizada conciliaria com sucesso prática e teoria, em seu mais avançado grau de conhecimento e, caso não o faça, a própria práxis deveria realizar essa mudança (ADORNO, 1995b). Essa discussão começa desde a poesia antiga, na problemática da tensão entre ela e a reflexão, surgindo de uma visão errônea entre sujeito e objeto. ___________________________________________________________________________________________________ Revista Educação e Emancipação, São Luís, v. 16, n. 1, jan./abr. 2023 353 Adorno (1995b) se posiciona com duras críticas aos movimentos que vangloriam a práxis sem teoria, são pura ideologia, uma práxis falseada. Para ele, quando a teoria se curva diante da prática, a práxis torna-se delírio. Situa que o sujeito, sem capacidade autônoma para refletir e observar as contradições, não pode exercer a práxis em sua essência. “A unidade admitida de maneira forçada e sem discussão é a imagem encobridora de uma irresistível desavença interior (ADORNO, 1995b, p. 211). Nessa perspectiva, os fins ideais de um homem transcendental não podem ser alcançados desprezando-se o caminho até lá. A humanidade não é nada sem a individualização, e ofuscá-la é tornar o coletivo massa. Mesmo que dotado de boas intenções, um indivíduo órfão da reflexão e da experiência é deformado. Como enfatiza Adorno: “onde a experiência é bloqueada ou simplesmente já não existe, a práxis é danificada e, por isso, ansiada, desfigurada, desesperadamente supervalorizada” (1995b, p. 203-204). Com a necessidade de um processo de formação realmente emancipatório para suprir essas deficiências no campo da práxis, seria necessária uma arte consciente e alinhada com esses ideais, que seja capaz de propiciar um espaço para imaginação, humanidade e reflexão sobre as formas sociais. TEORIA CRÍTICA ADORNIANA E MÚSICA Após discutir as relações sociais entre trabalho, arte e cultura e as tramas entre sujeito e objeto; e teoria e práxis, é o momento para situar Adorno, demonstrando seus valores e seu histórico com a música. Theodor Ludwig Wiesengrund-Adorno (1903-1969) foi um teórico multívoco. Tratou sobre filosofia, sociologia, psicologia e arte. Seu especial interesse pela arte foi cultivado desde a infância, sua mãe fora uma bem-sucedida cantora alemã e sua irmã uma pianista, ambas grandes influências (JAY, 2008). Após uma formação clássica de Música, Adorno deteve-se maravilhado em Viena (Áustria). Isso o fez perceber que Frankfurt não o poderia levar para além de uma formação tradicional de música. Assim, mudou-se para Viena – grande centro da inovação musical na época – em 1925, estudando ________________________________________________________________________________________________________________ 354 Revista Educação e Emancipação, São Luís, v. 16, n. 1, jan./abr. 2023 composição com Alban Berg. Durante seus três anos de estudo, Adorno explora diversos “aspectos da expressão musical: a história da composição clássica, a produção recente da música de vanguarda, a reprodução e aceitação das formas musicais e a composição e função psicossocial da música popular” (JAY, 2008, p. 239). Adorno retornou a Frankfurt em 1928 com impactos significativos do estudo musical em Viena em seu desenvolvimento. Esse desenvolvimento musical e, consequentemente, estético, aliado a uma formação multidisciplinar, fizeram com que Adorno dedicasse uma parcela significativa de sua energia intelectual durante toda a vida em seus estudos sobre música (JAY, 2008). Ao falar de estética, como afirma Jay (2008), Adorno deixou claro que se referia a algo além de uma simples teoria da arte, ele se referia a uma certa relação entre sujeito e objeto. Isso traz à tona sua importância para buscar entender o conceito de formação humana e sua relação com o contexto social em que permeiam trabalho, arte e cultura. O pensamento adorniano integra e trabalha sob a ótica do que chamamos de teoria crítica. Segundo Jay (2008), no coração da teoria crítica se apresenta uma aversão aos sistemas filosóficos fechados e a própria não poderia ser assim apresentada devido ao seu caráter vital aberto, investigativo e inacabado. Nessa perspectiva, o autor ressalta que Adorno preferia articular ideias em ensaios, evitando volumes pesados, característicos da filosofia alemã. Por esta via, Adorno também optava pelo uso do ensaio, já que, segundo Kaãelbach (1995 apud ADORNO, 1995a), fugia de um pensamento estático ou coisificado em sua forma, entendendo que esta se relaciona diretamente com o conteúdo. A teoria crítica tecia diversas críticas a outras correntes e tradições filosóficas, caracterizando-se, desde sua gênese, pelo confronto e crítica instigante a outros sistemas (JAY, 2008). Essa concepção sustentava que a objetividade científica como tal não é por si só garantia suficiente da verdade, uma vez que esta insere-se em um contexto em que fala contra os fatos da realidade social e por eles está oculta. Dito isto, um imenso esforço imaginativo para transcender os limites da própria realidade imposta representam grande parte do trabalho da teoria crítica (JAY, 2008). ___________________________________________________________________________________________________ Revista Educação e Emancipação, São Luís, v. 16, n. 1, jan./abr. 2023 355 Para Horkheimer (1937 apud JAY, 2008) em seu artigo intitulado Teoria tradicional e teoria crítica, a teoria tradicional apontava a formulação de princípios gerais e internamente coerentes. Seu objetivo apontava em direção do conhecimento puro e, quando apontava para ação, buscava sempre o domínio tecnológico do mundo, mantendo em seus estudos uma rigorosa separação entre pensamento e ação, teoria e práxis. Já a teoria crítica, antes de tudo, recusava-se a fetichizar o conhecimento como algo que independe da ação ou que seja superior a ela, pois o pesquisador é considerado parte do objeto social que estuda (JAY, 2008). Por fim, a teoria crítica se opunha ao conhecimento puro. Por ela era rejeitado princípios gerais e comprovações ou refutações por meio de exemplos, entendendo que o contexto social não poderia o ser, tendo em referência a ordem atual. Era necessário haver contradições e negativos na realidade vigente. Essa concepção teórica dialética, devido a isso, sempre admitiu e recebeu as percepções geradas pela experiência pré-científica do homem, não se reduzindo apenas às observações controladas em laboratório. Aguiar (2008) afirma que era filiando-se com a tríplice tradição - Kant, Hegel e Marx -, que Adorno encontrara subsídios para sua teoria crítica, mas adotando uma roupagem mais dialética e fragmentária. Assim, Adorno pôde, em suas obras, observar contradições e idealizações imanentes que eram presentes na cultura de sua época. Sua crítica buscava transcender a ordem social vigente, buscando compreender como forma e conteúdo relacionam-se com a realidade social. Portanto, entende-se aqui que Adorno é autor relevante em suas análises sobre música, sociedade e cultura sob a perspectiva de se discutir o conceito de (de)formação a partir da música. (DE)FORMAÇÃO HUMANA A PARTIR DA MÚSICA SOB PERSPECTIVA ADORNIANA A concepção de (de)formação humana situa-se dentro da relação entre o material e o histórico. Segundo Costa (2017), sob a perspectiva da teoria crítica, todo ato estético é constituído de um caráter humano comum, compartilhado enquanto fruto da ________________________________________________________________________________________________________________ 356 Revista Educação e Emancipação, São Luís, v. 16, n. 1, jan./abr. 2023 humanidade. Essas questões são mediadas pela relação sujeito e objeto, que inclusive estão longe de um ideal romântico e idealista. Visão esta considerada como ilusória. Para refletir essa questão é importante ressaltar que Adorno e Simpson (1986) aprofundam suas considerações acerca da cultura popular estandardizada, fenômeno artístico guiado pelo lucro. A cultura comercial musical como música popular é oposta à música séria. No contexto da música popular, o sentido não é perdido com uma mudança na ordem dos detalhes ou mesmo a substituição de um deles. A compreensão da estrutura não existe na obra, o ouvinte já possui uma expectativa da música popular já produzida. “O detalhe é substituível; serve à sua função apenas como uma engrenagem numa máquina” (ADORNO; SIMPSON, 1986, p. 118). Baseando-nos na limitação da criatividade e na ênfase dos detalhes, devemos também considerar que o mesmo ocorre quanto à apreciação subjetiva da arte. Jay (2008) destaca que o conceito liberal de gosto e individualidade havia sido minado pela liquidação gradativa do sujeito autônomo da sociedade ante o esclarecimento e a indústria cultural. Frente a esse fenômeno e essa estrutura, ele explica que os ouvintes tinham sua capacidade autônoma de ouvir degenerada em termos psicológicos, aqui, a regressão da audição. Um ouvinte com suas pulsões reprimidas demonstrava, como explica Jay (2008), um estado infantil em que o ouvinte é dócil e teme o novo, “como crianças só pediam os pratos de que haviam gostado no passado, o ouvinte cuja audição havia regredido só conseguia ser receptivo a uma repetição do que já ouvira antes” (JAY, 2008, p. 248). Nesse sentido, Adorno e Simpson (1986) destacam que não era a complexidade, a sofisticação ou o gênero que diferenciava a música séria da música popular. A grande diferença estava em seu propósito. Para eles, a orientação pelo comércio conduzia o produto a criar, alimentar e se beneficiar de um mercado já estabelecido. “A estandardização estrutural busca reações estandardizadas” (ADORNO; SIMPSON, 1986, p. 120). A música popular se apresenta ante uma análise já como um gatilho para respostas totalmente antagônicas à individualidade democrática. Tudo isso é sustentado por aspectos sugeridos aos consumidores até que o culmino fosse a aceitação passiva e a ___________________________________________________________________________________________________ Revista Educação e Emancipação, São Luís, v. 16, n. 1, jan./abr. 2023 357 reprodução por parte do ouvinte. Isso acontece devido aos extensos esforços de promoção pela indústria. Adorno e Simpson (1986) esclarecem que a promoção pelo plugging, que significa literalmente arrolhamento, visa quebrar a resistência ao musicalmente idêntico. “A repetição confere ao hit uma importância psicológica que, de outro modo, ele jamais poderia ter. Essa promoção é o inevitável complemento da estandardização” (ADORNO; SIMPSON, 1986, p. 125). Diversos artifícios são utilizados para ocultar este processo. Os anúncios em alto volume, os jingles chamativos e as brilhantes cores que permeiam a publicidade. Adorno e Simpson apontam que nesse glamour reside algo “que implora à sua invisível audiência que não deixe de experimentar certas mercadorias em tons tais que despertem esperanças além da capacidade da mercadoria para atendê-las” (1986, p. 128). Os padrões se originaram e se desenvolvem num amplo processo competitivo entre produtos, assim mesmo como se apresentam as músicas nesse contexto. Quando uma canção tinha boa aceitação, outras composições não hesitavam em buscar sucesso da mesma maneira que sua inspiração (ADORNO; SIMPSON, 1986). O resultado disso é que as pessoas há muito tempo já foram tomadas pelos processos de estandardização na medida em que a concentração econômica preservava isso, junto com a imunidade do grande artista, que “jamais pode errar”, como afirmam Adorno e Simpson (1986). Assim, o que é natural para a arte se confunde quanto ao natural para o humano. Os autores denominam a relação entre o processo de estandardização e essa falsa sensação de escolha, gosto e mercado aberto como pseudo-individuação. As relações comerciais, as produções e até mesmo o improviso sempre pisam no solo já conhecido. É importante ressaltar que, para Adorno e Simpson (1986), é necessário o entendimento do sentido da arte. O reconhecimento e consequente identificação com algo já conhecido e experenciado. Nessa perspectiva, o ouvinte deve ansiar pelo novo, pelo significado construído na totalidade da peça, na organização de seus elementos. Para os autores isso foi corroído na música popular, uma perspectiva que torna o reconhecer um fim, não um meio. A experiência do ouvir ________________________________________________________________________________________________________________ 358 Revista Educação e Emancipação, São Luís, v. 16, n. 1, jan./abr. 2023 só pode ser autêntica se o pensar em sua construção foi autêntico. A música produzida sob os escombros do que um dia já fora autêntico é estandardizada, aponta para uma direção em apenas um sentido, conduzindo o indivíduo à inércia e ao contentamento. Em síntese, Adorno e Simpson (1986) desenvolvem que o trajeto psicológico em que um indivíduo é enfrentado e torna-se submisso ao produto, começa na vaga lembrança da experiência de já ter ouvido o novo que é igual, até que ele conceba que conhece a música ouvida e sente-se parte dela, de toda a segurança e acolhimento provido pela comunidade que, tal como ele, também conhece, como em shows de auditório que se utilizam de perguntas e respostas que todos sabem. Nesse processo, o indivíduo se observa na música ao preencher suas lacunas com improvisos, floreios através de assobios, palmas e cenários imaginados. Por fim, o indivíduo se mostra aturdido, transferindo a sua falsa experiência de algo bom para a música que, logo, torna-se para ele boa. Todo esse fenômeno de experiência condicionada, de algo prédigerido, aponta para uma experiência não-produtiva. Dá, não uma vazão, mas uma cobertura para todas as angústias, apreensões e monotonia presentes no exaustivo e selvagem trabalho mecanizado exigido do trabalhador no capitalismo, assim, tolhendo qualquer possibilidade de práxis. Adorno e Simpson (1986) ressaltam que escapar à monotonia e evitar esforço são elementos incompatíveis: daí a reprodução exata daquela atitude de que se procura escapar, [...] o modo de as pessoas trabalharem na linha de montagem da fábrica ou nas máquinas dos escritórios lhes nega qualquer novidade (ADORNO; SIMPSON, 1986, p. 137). A experiência é levada pela música popular, pelo fruto da racionalidade que a ela tudo permeia, da indústria em que trabalha ao seu lazer. A deformação é cultivada na violência e no conformismo, “no primeiro caso, para apelos contra a razão e a vida intelectual e cultural; e no outro caso, favorecendo a fraqueza do eu, estimulando o comportamento de assimilação e adaptação das massas, canalizando os interesses ao existente” (ADORNO, 1995a, p. 20). Os produtos da ___________________________________________________________________________________________________ Revista Educação e Emancipação, São Luís, v. 16, n. 1, jan./abr. 2023 359 indústria cultural satisfazem interesses objetivos, assim como demais mercadorias da sociedade consumista, eles têm valor de uso. A título de exemplificação desses processos, podemos tomar como exemplo a música Admirável Gado Novo composta pelo artista brasileiro Zé Ramalho, em 1979, momento que o Brasil vivia uma forte repressão e censura à imprensa e arte. Antes de tudo, é importante ressaltar que sua obra faz referência ao livro Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley (1968), que apresenta numa sociedade distópica as pessoas condicionadas por uma droga que causa contentamento e satisfação. Os indivíduos não possuem liberdade, individualidade e, consequentemente, nenhuma perspectiva de emancipação. Em sua referência, Zé Ramalho postula uma relação entre os dois contextos: o cenário distópico do livro do Huxley e o Brasil governado sob a falsa égide da ditadura militar. Assim, a música firma seu conceito relacionando o povo a um rebanho de gado, que é levado pelo pastoreio, sem questionar ou compreender os motivos que os movem, incapazes de uma reflexão crítica. O ouvinte não compreende a música como linguagem sui generis e está desatento demais para refletir sobre a letra que é ouvida. Adorno e Simpson (1986) dizem que, caso contrário, as pessoas não tolerariam o material que se lhe impõem. É esse fenômeno que o leva a considerar a música popular como mero cimento social. Os autores explicam que a função da música enquanto linguagem dotada de sentido próprio passa por processos objetivos que a tornam receptáculos para os desejos institucionalizados dos ouvintes. A contradição é que as grandes plateias que ouviam Admirável Gado Novo em seus shows não compreendiam sua crítica a como tudo se desenvolvia, caso contrário não tolerariam a estrutura social em que estavam inseridos. Diante disso, é necessário considerar novamente os elementos de glamourização, desenvolvidos por Adorno e Simpson (1986), como elementos que acresciam o show para além da linguagem musical em si, dificultando até que a censura percebesse a crítica realizada. Ainda resgatando as ideias trabalhadas por Adorno e Simpson (1986), pode-se destacar que a estrutura mental em que se sustenta a música popular é permeada de distração e desatenção. Nesse ________________________________________________________________________________________________________________ 360 Revista Educação e Emancipação, São Luís, v. 16, n. 1, jan./abr. 2023 sentido, vale ressaltar a correlação citada anteriormente entre a música como lazer e o trabalho na sociedade, já que esse estado de distração e desatenção está situado dentro de um modo de produção racionalizado e mecanizado, sendo sua contraparte não-produtiva, que é necessária para retornar ao trabalho, um relaxamento que não envolva esforço de concentração. Assim, Adorno estabelece que “a indústria cultural corresponde à continuidade histórica de condições sociais objetivas que formam a antecâmara de Auschwitz” (ADORNO, 1995b, p. 20-21). Depois de apresentado o contexto em que a arte, a educação e o pensamento são reféns, é necessário definir o que seria (de)formação humana. Sob a perspectiva do humano ser constituído como ser social pela cultura em que está inserido e que o trabalho, a arte e a cultura estão intimamente ligadas, deve-se ter em pauta a obra adorniana no que concerne ao estado atual da arte, seu propósito e sua relação com os indivíduos. O esforço da indústria cultural para conservar a função de cimento social da música popular através da glamourização e da pseudo-individuação conduzem o sujeito para um cativeiro, onde não se enxerga nada além do que lhe é permitido. O sujeito torna-se objeto para a indústria, sujeito a toda sua dominação. Segundo Adorno (1995b, p. 191-192), “o indivíduo não está menos cativo dentro de si que dentro da universalidade, da sociedade. Daí o interesse em reinterpretar sua prisão como liberdade. O cativeiro categorial da consciência individual reproduz o cativeiro real de cada indivíduo”. Portanto, o sujeito deformado, fruto da pseudoformação, é o indivíduo incapaz de agir, posicionar-se, transformar e refletir, mas incapaz de se libertar dos grilhões que lhe foram colocados pela razão instrumental. As tensões que o sujeito necessita para sua emancipação e consequente autonomia foram-lhe tolhidas e, este sujeito acaba por tornar-se passivo quanto aos fenômenos que lhe controlam, chegando a defender isso, evitando o desconforto do novo e diferente. Todos os processos lapidados com o decorrer do tempo visam a conservação do status quo. A conservação de uma estrutura social que favorece a universalidade ao custo do particular. Nesse ___________________________________________________________________________________________________ Revista Educação e Emancipação, São Luís, v. 16, n. 1, jan./abr. 2023 361 percurso, o capital destrói tudo em seu caminho para que cresça. Adorno (1995a) ressalta que isso não é acidental ou imposto, mas sim promovido e fortificado pela própria estrutura social. Para impedir essa mudança, outro movimento realizado foi o de romper a relação entre objeto e sujeito vivo, entre mundo sensível e mundo intelectual. Quando ambos os aspectos não se articulam, trabalho manual e intelectual se perdem como aspectos independentes, característicos da deformação. É improvável que uma educação crítica, buscando a emancipação, irrompa ou sobreviva a toda a violência apresentada por esse sistema, e, dessa forma, perpetuando o processo de corrosão. Entretanto, devemos alcançar o ideal de autonomia. Um dos pilares para a autonomia, sob perspectiva de Adorno (1995a), é ser capaz de reelaborar o passado. Isso quer dizer que devemos refletir e conhecer a história, valorizando “uma experiência dialética no sentido de ‘tornar-se experiente’, isto é, aprender pela via mediada da elaboração do processo formativo, assumindo-se a relevância tanto dos resultados quanto do próprio processo” (p. 23, grifos do autor). Nesta perspectiva, o pensamento deve ter uma postura negativa em relação às ideias e objetos. A experiência formativa, constituinte do indivíduo formado, seria motivada por uma postura de resistência e contradição frente ao objeto, direcionada pelo confronto entre a própria limitação e as contradições, tendo em vista a lógica da não-identidade (ADORNO, 1995a). Então, Adorno (1995a) propõe a recuperação dessa experiência formativa, buscando superar a inexistência da emancipação, do processo educativo apenas como a mera transmissão da técnica, sem reflexão. Para ele, isso não corresponde a uma necessidade intelectual, mas como meio para frear o caminho até a barbárie. Toda essa superestrutura social encaminha à barbárie. O pensamento racional instrumentalizado não é capaz de trazer novas invenções, apenas melhorias do que já aparata o capitalismo. Do estilingue à bomba nuclear, do mapa aos Sistemas de Posicionamento Global, da tração animal aos aviões, nada mudou os objetivos ou nosso caminho, apenas nos acelera rumo à barbárie ________________________________________________________________________________________________________________ 362 Revista Educação e Emancipação, São Luís, v. 16, n. 1, jan./abr. 2023 (ADORNO, 1995a). Assim, a música séria poderia se apresentar como uma linguagem para compreender o mundo como ele o é, promovendo a desilusão, a desmistificação do próprio esclarecimento, permitindo assim um caminho para a realização da promesse du bonheur e, consequentemente, evitar-se-ia a barbárie. Portanto, pode-se compreender (de)formação pela dialética que permeia os processos que formam e deformam. A (de)formação se situa na relação entre sujeito e objeto, tratando sobre a capacidade de ação e reflexão do indivíduo, sendo sobre as possibilidades e contradições em sua emancipação e práxis. Então, a música como fenômeno artístico e, consequentemente, trabalho humano, se apresenta como um elemento influente nesse processo, podendo conduzir à formação ou à deformação. CONSIDERAÇÕES FINAIS Por meio desta discussão, buscamos realizar uma análise conceitual das possibilidades de (de)formação a partir da música. É possível notar que Adorno e Simpson (1986) fazem observações pertinentes sobre aspectos da capacidade (de)formativa da música. Inicialmente discutimos sobre como trabalho, arte e cultura se relacionam dentro da perspectiva de um indivíduo, considerando a relação entre sujeito e objeto, que se faz através da transformação do mundo ao seu redor. Pudemos observar os impactos do esclarecimento conduzido pela razão pura e seu efeito na relação entre sujeito e objeto. Posteriormente, Adorno teve suas bases teóricas apresentadas, sendo situado como um autor da teoria crítica muito interessado na relação entre sujeito e objeto no que tange à música e ao conhecimento. Por fim, tratou-se sobre a música em sua forma e conteúdo, argumentando que, quando estandardizada, refém do capital, pode deixar de propiciar a reflexão crítica. Além disso, conceituamos a ideia de sujeito formado e deformado sob a perspectiva da bibliografia trabalhada. A música pode, quando estandardizada e tratada apenas como produto, conduzir à deformação, à perda de autonomia e consequente alienação do indivíduo, impedindo-o de agir como sujeito consciente. Entretanto, o mesmo fenômeno artístico pode ___________________________________________________________________________________________________ Revista Educação e Emancipação, São Luís, v. 16, n. 1, jan./abr. 2023 363 possibilitar a tomada de consciência, possibilitando a apreensão da promesse du bonheur. Em suma, podemos dizer que os potenciais (de)formativos da música podem ser observados diante da contradição entre sujeito e objeto. A música, quando tratada como mercadoria de troca, conduz ao contentamento e satisfação com a realidade, atua no campo de lazer como a extensão do próprio trabalho, assim não propiciando novas perspectivas, apenas reforçando a dominação imposta sob o sujeito ao mesmo tempo em que a música espontânea e a música séria podem propiciar reflexão e formação. Desse modo, a música é, de acordo com a teoria crítica adorniana, um propício campo para aspectos (de)formativos, tendo latente presença na relação entre trabalho, arte e cultura. Referências ADORNO, T. Teoria estética. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1970. ADORNO, T. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995a. ADORNO, T. Palavras e sinais. Tradução de Maria Helena Ruschel. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995b. ADORNO, T.; SIMPSON, G.: Sobre música popular. Trad. de Flávio R. Kothe. 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