DOI: https://dx.doi.org/10.18764/2358-4319v16n1.2023.14
(De)Formação humana a partir da música: análise
conceitual à luz da teoria crítica adorniana
Cristiano Aparecido da Costa1
Eliton Perpétuo Rosa Pereira2
Apolo de Souza Sá3
RESUMO
O presente trabalho teve como objetivo compreender o conceito de
(de)formação humana a partir da música por meio do estudo da
teoria crítica adorniana. A pesquisa, de caráter bibliográfico, tomou
como foco a relação entre música, educação e sociedade. A
importância dessa pesquisa se justificou pela falta de estudos sobre
música e educação que adotam a teoria crítica, portanto, a pesquisa
visou estabelecer uma contribuição para a área e propiciar novas
pesquisas sobre a temática. A partir das análises, pôde-se observar
que a música tem grande potencial (de)formativo, podendo levar à
deformação, perda da autonomia e alienação, quando
estandardizada, mas podendo também se revelar um caminho para a
formação, permitindo a apreensão da promesse du bonheur pelo
indivíduo, não o deixando conformado ou contentado com a situação
social vigente.
Palavras-chave: música; formação humana; teoria crítica.
1
2
3
Pós-doutor em Educação. Docente do Instituto Federal de Goiás. Participa Núcleo de
Estudos em Educação, Violência, Infância, Diversidade e Arte (NEVIDA). ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-5613-708X . E-mail:
[email protected] .
Doutor em Ciências da Educação. Docente do Instituo Federal de Goiás. Participa do
Grupo Interinstitucional Goiano de Pesquisa em Educação Musical (MOUSIKÊ). ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-9181-2543
E-mail:
[email protected] .
Licenciado em Música. Mestrando em Educação pela Universidade Federal de Goiás
(UFGo). Participa do Núcleo de Estudos em Educação, Violência, Infância, Diversidade e
Arte
(NEVIDA).
ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-5289-0891
.
E-mail:
[email protected] .
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Human (de)formation through music: conceptual
analysis according to Adorno's critical theory
ABSTRACT
The present work aimed to understand the human (de)formation
through the music concept by studying Adorno's critical theory.
Bibliographical research focused on the relationship between music,
education, and society. The research's importance was justified by the
lack of studies on music and education adopting critical theory;
therefore, the research aimed to contribute to this field and promote
further research on the subject. From the analyses, it is possible to
observe that music has great (de)formative potential, leading to
deformation, loss of autonomy and alienation, when it is
standardized. Still, it can also reveal itself as a path to the formation,
allowing the individual to capture the promesse du bonheur, not
leaving him conformed or satisfied with the prevailing social situation.
Keywords: music; human formation; critical theory.
(De)Formación humana a partir de la música: análisis
conceptual a la luz de la teoría crítica adorniana
RESUMEN
Este trabajo tuvo como objetivo comprender el concepto de
(de)formación humana a partir de la música a través del estudio de la
teoría crítica de Adorno. La investigación bibliográfica se centró en la
relación entre música, educación y sociedad. La importancia de esta
investigación se justificó por la falta de estudios sobre música y
educación que adopten la teoría crítica, por lo que la investigación
tuvo como objetivo establecer un aporte al área y brindar mayor
investigación sobre el tema. De los análisis se pudo observar que la
música tiene un gran potencial (de)formativo, que puede llevar a la
deformación, pérdida de autonomía y alienación, cuando se
estandariza, pero también puede revelar un camino hacia la
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formación, permitiendo la aprehensión de la promesse du bonheur
para el individuo, no dejándolo satisfecho o conformado con la
situación social actual.
Palabras clave: música; formación humana; teoría crítica.
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa almeja analisar o conceito de (de)formação
humana a partir da música. Para isso, o trabalho adota a perspectiva
da teoria crítica frankfurtiana, compreendendo a sociedade
historicamente e observando-a sob a ótica de suas contradições. O
teórico crítico Theodor Adorno, um dos grandes nomes da Escola de
Frankfurt, foi tomado para essa análise, especialmente sua produção
teórica que relaciona educação, sociedade e música. Além disso,
foram utilizados outros autores para compreender aspectos basilares
da teoria crítica, do contexto de desenvolvimento da Escola de
Frankfurt e de algumas categorias consideradas relevantes para o
desenvolvimento do presente trabalho.
A importância dessa pesquisa está diretamente ligada à
necessidade atual de se observar a sociedade e a música de uma
perspectiva que adote a teoria crítica, tendo sua importância no
campo humanístico. Assim, o trabalho visa estabelecer uma
contribuição para a área e abrir caminhos para novas pesquisas
explorando a temática.
Esta foi uma pesquisa conceitual de recorte bibliográfico
específico e de abordagem qualitativa, buscando compreender e
relacionar conceitos e categorias. O presente texto está estruturado
em quatro partes: a primeira considera as relações entre arte, trabalho
e cultura; a segunda discute as relações entre sujeito e objeto; na
terceira, Adorno é apresentado como um autor importante para a
temática desenvolvida, justificando sua relevância para a formação
humana e sua relação com a música; por fim, a última parte trata do
desenvolvimento do conceito de (de)formação humana a partir da
música sob a perspectiva adorniana, tendo como suporte as
discussões realizadas nas partes anteriores.
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TRABALHO, ARTE E CULTURA
O indivíduo é um produto do universal e a ele deve sua
possibilidade de existência, já que o pensar é testemunho disso ao
ser uma condição universal e, consequentemente, social (ADORNO,
1995b). Assim, Adorno e Horkheimer (1947) compreendem, no
processo de socialização, a importância do trabalho para suprir as
necessidades materiais de uma comunidade.
O homem se constitui ao trabalhar e relacionar-se com outros,
na convivência com outros homens, na relação com a natureza e na
constituição de suas experiências. Ao não considerar essas questões,
o trabalho passa a ter um caráter alienante, impondo assim apenas
uma condição de sobrevivência, não permitindo que se almeje a
emancipação ou uma práxis autêntica. Em um processo como esse, o
indivíduo é tomado como objeto, não como sujeito dotado de
consciência (ADORNO; HORKHEIMER, 1947).
Além disso, Adorno e Horkheimer (1947, p. 13) ressaltam que
a ordem presente na divisão do trabalho não é natural, mas sim
“testemunho da unidade impenetrável da sociedade e da dominação”
pois, para os autores, “a dominação confere maior consistência e
força ao todo social no qual se estabelece”, de modo que “a divisão
do trabalho, em que culmina o processo social da dominação, serve
à autoconservação do todo dominado”. A dominação enxerga o
indivíduo como parte do universal, convertendo-o por meio da
execução do particular. Dessa forma, a sociedade se curva a ela
mesma pela divisão do trabalho imposta para agregar o todo.
A arte, segundo a concepção de Marx (2010), é consequência
da atividade livre e consciente do homem, sendo uma atividade vital
para o indivíduo. Isso pode ser visto na declaração de Marx que diz
que “a elaboração da natureza inorgânica é a prova do homem
enquanto um ser genérico consciente” (2010, p. 85). Nesse sentido,
arte é trabalho por seu papel na gênese na produção da consciência
humana, já que enquanto o animal cria somente na medida e carência
de sua espécie, “o homem sabe produzir segunda a medida de
qualquer espécie, e sabe considerar, por toda a parte, a medida
inerente ao objeto; o homem também forma, por isso, segundo as
leis da beleza” (MARX, 2010, p. 85).
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Assim, a arte deve ser entendida como produção humana e
não pode ser vista independentemente de sua relação com o trabalho
e a sociedade, ela é, para o homem, o caminho para conhecer a si e
ao mundo exterior. Para Zanolla (2013, p. 101) “a arte não difere do
trabalho, é ambivalente, uma possibilidade de experiência
emancipatória ou de alienação e conformismo”. Eis aqui o espaço da
possibilidade do processo (de)formativo, já que, segundo Costa, “a
música enquanto manifestação artística tem se mostrado um
poderoso instrumento, tanto para a imposição de ideologias, quanto
para processos educativos com o objetivo de se alcançar a autonomia
dos sujeitos” (2017, p. 13). Essa consciência dotada de autonomia,
derivada de um processo formativo, é necessária para compensar a
perda do indivíduo ante as forças sociais que o controlam.
Sob essa ótica, Adorno e Horkheimer (1947) observam o
esclarecimento, movimento do pensamento para livrar a humanidade
do medo e conduzir o homem a senhor: do ambiente que o cerca,
senhor de si mesmo e da natureza. Os homens buscam dominar a
natureza, mas estão apenas submetidos à sua necessidade. Nesse
sentido, o esclarecimento mal conduzido não atua para um ideal
necessariamente formativo, mas sim para a deformação.
A perspectiva do esclarecimento falhou em sua execução,
como dizem Adorno e Horkheimer (1947), o esclarecimento não
conseguiu compreender a natureza e livrar os homens dos mitos. Para
eles, a aversão à dúvida e o interesse para além do conhecimento
impediu o entendimento humano de alcançar a natureza das coisas,
levando-o ao ponto do esclarecimento mal conduzido. Isto colocou
no escuro a exigência de se refletir sobre o pensamento, fetichizandoo, considerando o exato e o caminho para a verdade. Assim, o
pensamento torna-se coisificado, sendo até ele mesmo devastado na
busca do esclarecimento.
Pode-se estabelecer que a educação para um ideal de
formação visando superar o esclarecimento mal conduzido, sob a
perspectiva de Adorno (1995a), não deve ser uma modelagem de
pessoas, tampouco uma mera transmissão de conhecimentos. O
objetivo a ser buscado é a produção de uma consciência verdadeira,
capaz aqui de ser autônoma. A necessidade disso está também
intrinsecamente conectada ao ideal de uma verdadeira democracia,
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“uma democracia com o dever de não apenas funcionar, mas operar
conforme seu conceito, demanda pessoas emancipadas. Uma
democracia efetiva só pode ser imaginada enquanto uma sociedade
de quem é emancipado” (ADORNO, 1995a, p. 140-141).
Neste sentido, a democracia não é apenas um sistema de
governo dentre outros, ela é o meio que possibilita autonomia e
necessita dela. Sua constituição deve se dar através da junção de
consciências plenamente individuais, autônomas, para assim formar
o coletivo. Entretanto, o esclarecimento atuante em nossa sociedade
capitalista demonstra uma universal guinada à barbárie, que não
valoriza ou respeita a individualidade e a autonomia do indivíduo
(ADORNO, 1995a).
Dentro da teoria adorniana, podemos compreender, como
afirma Costa (2017), que o conceito de cultura está diretamente
relacionado ao conceito de experiência, das possibilidades de
experiências presentes em uma sociedade. Jay (2008, p. 233) afirma
que Adorno “assinala que tamanha era a inter-relação entre cultura e
sociedade que a primeira nunca conseguiu transcender plenamente
as insuficiências da segunda”. Forma e ordem se conciliavam com a
dominação cega. Com isso vem-se à tona a importância do ideal a
ser alcançado na arte para a promesse du bonheur4, a arte deve
transcender as barreiras impostas pela própria sociedade, pelo capital
e pela linguagem.
Adorno e Horkheimer (1947) notaram que esse processo não
seria realizável se não houvesse uma estrutura que reforçasse o todo
a fim de naturalizá-lo para que ele se autossustentasse. Silva (2010)
explica que a novidade crítica concedida ao fetichismo é o
reconhecimento de um aparato que se constituiria durante o século
4
Promesse du bonheur ou promessa de felicidade é uma expressão francesa comumente
usada dentro do trabalho de Adorno e parte fundamental para o conceito de sua teoria
estética. Promesse não se refere ao sentido comum de compromisso, mas sim ao
potencial de algo ser boa ou melhor, como um dia que promete ser bom. Bonheur ou
felicidade, refere-se não apenas a um sentimento individual de satisfação ou de sentirse bem, aos olhos de Adorno, felicidade é a satisfação dos desejos e necessidades
somáticas espontâneas despertados por um ato de uma reflexão crítica e, dentro de
contexto em que essa satisfação plena é negada, a felicidade é reconhecer essa sensação
“aqui e agora”, antecipar um futuro ou uma realidade transfigurada (FINLAYSON, 2012).
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XX, com grande influência estadunidense, denominado como
indústria cultural.
Toda infraestrutura social se delineia rumo ao universal e toda
cultura, refém do monopólio, é idêntica em sua essência ao esqueleto
(ADORNO; HORKHEIMER, 1947). É assustador quando dirigentes não
estão mais preocupados em ocultar esse processo, já que se
fortalecem ao se confessar ao público. O cinema e o rádio não
precisam mais se apresentar como arte, eles crescem ao definir “a si
mesmos como indústrias, e as cifras publicadas dos rendimentos de
seus directores [sic] gerais suprimem toda dúvida quanto à
necessidade social de seus produtos” (ADORNO; HORKHEIMER, 1947,
p. 57).
Esta necessidade social é induzida “pela própria mercadoria,
padronizando assim as obras como pretenso resultado das
‘necessidades’ dos consumidores, por essa razão, aceito sem
resistência” (SILVA, 2010, p. 378). Adorno e Horkheimer (1947)
afirmam que a técnica e a racionalidade conquistam seu poder dentro
da sociedade devido ao círculo da manipulação e à necessidade
retroativa. A técnica se desenrola na sociedade no mesmo terreno em
que os economicamente mais fortes exercem domínio, nesse sentido,
a racionalidade técnica torna-se a própria racionalidade da
dominação. Frente a isso, Adorno ressaltou que
a arte, tanto a chamada arte clássica quanto suas
expressões mais anárquicas, sempre foi e continua
a ser uma força de protesto do humano contra a
pressão das instituições dominadoras, religiosas e
outras, ao mesmo tempo que reflete a substância
objetiva delas (ADORNO, 1945 apud JAY, 2008, p.
236).
Porém, como observava Adorno, nem tudo que se passava
por arte tinha um momento negativo. No cerne de suas críticas ao
que se caracterizava como indústria cultural, o autor acreditava que a
promesse du bonheur havia sido apagada e tudo se aproximava cada
vez mais de uma cultura afirmativa (JAY, 2008). O conceito de cultura
afirmativa para a teoria crítica refere-se à cultura conduzida pela
burguesia em sua época que segregava da civilização o mundo
mental e espiritual, tratando-os como um reino de valor
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independente e superior (JAY, 2008). Seu principal atributo era a
afirmação de um mundo universal obrigatório, sempre melhor e mais
valioso que há de ser sempre afirmado:
um mundo essencialmente diferente do mundo
factual da luta cotidiana pela vida, mas passível de
ser realizado para si mesmo por todo indivíduo, ‘de
dentro para fora’, sem nenhuma transformação da
situação de fato (JAY, 2008, p. 236, grifos do autor).
Para Adorno e Horkheimer (1947), tudo que a Indústria
cultural abusa para as suas produções, o entretenimento e os
elementos em que ela bebe já existiam muito tempo antes dela. Essa
inspiração veio de grandes obras clássicas e é adaptada para ser
entregue e consumida nos dias atuais, já que a arte imita o cotidiano.
Para eles, isso se reflete na “velha experiência do espectador de
cinema, que percebe a rua como um prolongamento do filme que
acabou de ver, porque este pretende ele próprio reproduzir
rigorosamente o mundo da percepção quotidiana, tornou-se a norma
da produção” (ADORNO; HORKHEIMER, 1947, p. 59).
No capitalismo, o lazer é a extensão do trabalho: uma válvula
de escape para fugir do processo de trabalho mecanizado e pôr-se
novamente em condições para enfrentá-lo. Dessa forma, a mesmice
permeia o sistema e a vida de forma que a máquina gire sem sair do
lugar (ADORNO; HORKHEIMER, 1947). A indústria cultural determina
o consumo e elimina o que ainda não foi experenciado, julgando isso
como um risco. Toda novidade ou surpresa é sempre familiar, mesmo
sem jamais ter ocorrido, “pois só a vitória universal do ritmo da
produção e reprodução mecânica é a garantia de que nada mudará,
de que nada surgirá que não se adapte” (ADORNO; HORKHEIMER,
1947, p. 63).
Em suma, as teses de Adorno, como demonstra Aguiar (2008),
denunciam uma relação corrompida pelo capital e pelos recursos
ideológicos que permeiam nossa sociedade. Adorno apontou “a
manipulação da produção artística contemporânea pelo capital e a
necessidade do combate aos recursos ideológicos que permitem e
‘justificam’ essa manipulação” (AGUIAR, 2008, p. 37, grifos do autor).
Aguiar (2008) explicita que, na concepção adorniana, a arte se
encontrava em um estado letárgico – já que outrora exercia funções
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culturais, religiosas e morais – e hoje encontra-se refém do capital, o
refém que o mundo capitalista soube atribuir um lugar específico no
seio da realidade social dentre as mercadorias. Nesse cenário, a
autonomia, outrora a duras penas conquistada pela arte, volta-se
contra ela mesma, sendo também levada a ser veículo ideológico do
poder social (AGUIAR, 2008). A questão é que
a sociedade vive uma ‘ilusão da totalidade’,
adquirida pela falsidade e a mentira da coisa pronta,
polida e acabada. Criou-se uma tendência do
sempre igual, reproduzindo o mesmo método de
apropriação do objeto (AGUIAR, 2008, p. 38, grifos
do autor).
Adorno se posiciona ao entendimento de que a arte deve ser
um “protesto constitutivo contra a pretensão à tonalidade do
discursivo” (ADORNO, 1970, p. 117). Nessa perspectiva, a libertação
pela arte revolucionária parece tender ao fracasso, já que a própria
concepção da arte revolucionária é um erro: a arte deve contornar
estruturas totalitárias (ADORNO, 1970).
A tese central na teoria estética adorniana é que o protesto
radical contra o poder totalitário deve residir em sua forma, não em
seu conteúdo (AGUIAR, 2008). Segundo Aguiar (2008), é necessário
quebrar formas convencionais para ter forças contra uma sociedade
gananciosa e de brutal concorrência; aqui que a arte precisa ser inútil,
uma inutilidade radical em sua forma para resistir ao poder da falsa
integração.
Então, traçadas as tramas e perspectivas, tendo
fundamentação para, mais tarde, compreender como a música pode
ser entendida em seu potencial (de)formativo tendo em vista os
aspectos da relação trabalho, arte e cultura, o estudo prosseguirá
para compreender a relação entre sujeito e objeto.
SUJEITO E OBJETO
Estabelecida a relação entre trabalho, arte e cultura com vistas
à (de)formação, podemos agora nos voltar a elementos mais
particulares, presentes nas relações do sujeito e objeto e teoria e
práxis.
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Uma das categorias desenvolvidas por Adorno (1995b) é a
reflexão sobre sujeito e objeto. Para ele, ambos se sustentam
reciprocamente, não há objeto se não houver um momento de
individualidade humana, o objeto se constitui apenas diante do
sujeito. Assim, é necessário proximidade entre sujeito e objeto, mas
sem que um elimine o outro, devem mediar-se. Isso implica que
ambos sejam necessários e que haja uma relação que caminhe para
a conciliação, uma diferenciação sem dominação.
Adorno e Horkheimer (1947) explicam que quanto mais o
homem tem sua individualidade suprimida para compor a totalidade
social, mais este torna-se refém da grande estrutura, refém da
dominação absoluta. Para evitar que nos tornemos objetos, Adorno
(1995b) pensa que o homem deve ser sujeito, um homem
transcendental, constituído de experiências, abstração do homem
vivo e verdadeiramente individual. Assim, é necessário trazer à tona a
subjetividade ao sujeito, suas intuições e impulsos não devem ser
riscados do conhecimento.
Sob esta perspectiva, Adorno (1995b) discute sobre outra
dicotomia muito recorrente, a de universal e particular. Entende-se a
necessidade de cultivar e desenvolver uma individualidade e
pensamentos particulares para constituir o indivíduo em seu
processo formativo. Em um ideal formativo, nunca se deve sacrificar
a singularidade para a observação e/ou constituição do universal,
pois este é que deve ser constituído de pluralidade, de diferentes
indivíduos. Sobre o objeto, o alvo de estudo do sujeito, a omissão da
informação de que pelo sujeito é constituído, a despersonalização do
conhecimento por um ideal objetivo, nada mais retém que uma
compreensão falseada (ADORNO, 1995b).
Eis o ponto da jornada em que se necessita compreender a
discussão desenvolvida por Adorno em torno da teoria e práxis. É
importante ressaltar que a práxis bem realizada conciliaria com
sucesso prática e teoria, em seu mais avançado grau de
conhecimento e, caso não o faça, a própria práxis deveria realizar essa
mudança (ADORNO, 1995b). Essa discussão começa desde a poesia
antiga, na problemática da tensão entre ela e a reflexão, surgindo de
uma visão errônea entre sujeito e objeto.
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Adorno (1995b) se posiciona com duras críticas aos
movimentos que vangloriam a práxis sem teoria, são pura ideologia,
uma práxis falseada. Para ele, quando a teoria se curva diante da
prática, a práxis torna-se delírio. Situa que o sujeito, sem capacidade
autônoma para refletir e observar as contradições, não pode exercer
a práxis em sua essência. “A unidade admitida de maneira forçada e
sem discussão é a imagem encobridora de uma irresistível desavença
interior (ADORNO, 1995b, p. 211).
Nessa perspectiva, os fins ideais de um homem
transcendental não podem ser alcançados desprezando-se o
caminho até lá. A humanidade não é nada sem a individualização, e
ofuscá-la é tornar o coletivo massa. Mesmo que dotado de boas
intenções, um indivíduo órfão da reflexão e da experiência é
deformado. Como enfatiza Adorno: “onde a experiência é bloqueada
ou simplesmente já não existe, a práxis é danificada e, por isso,
ansiada, desfigurada, desesperadamente supervalorizada” (1995b, p.
203-204).
Com a necessidade de um processo de formação realmente
emancipatório para suprir essas deficiências no campo da práxis, seria
necessária uma arte consciente e alinhada com esses ideais, que seja
capaz de propiciar um espaço para imaginação, humanidade e
reflexão sobre as formas sociais.
TEORIA CRÍTICA ADORNIANA E MÚSICA
Após discutir as relações sociais entre trabalho, arte e cultura
e as tramas entre sujeito e objeto; e teoria e práxis, é o momento para
situar Adorno, demonstrando seus valores e seu histórico com a
música.
Theodor Ludwig Wiesengrund-Adorno (1903-1969) foi um
teórico multívoco. Tratou sobre filosofia, sociologia, psicologia e arte.
Seu especial interesse pela arte foi cultivado desde a infância, sua mãe
fora uma bem-sucedida cantora alemã e sua irmã uma pianista,
ambas grandes influências (JAY, 2008). Após uma formação clássica
de Música, Adorno deteve-se maravilhado em Viena (Áustria). Isso o
fez perceber que Frankfurt não o poderia levar para além de uma
formação tradicional de música. Assim, mudou-se para Viena –
grande centro da inovação musical na época – em 1925, estudando
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composição com Alban Berg. Durante seus três anos de estudo,
Adorno explora diversos “aspectos da expressão musical: a história
da composição clássica, a produção recente da música de vanguarda,
a reprodução e aceitação das formas musicais e a composição e
função psicossocial da música popular” (JAY, 2008, p. 239).
Adorno retornou a Frankfurt em 1928 com impactos
significativos do estudo musical em Viena em seu desenvolvimento.
Esse desenvolvimento musical e, consequentemente, estético, aliado
a uma formação multidisciplinar, fizeram com que Adorno dedicasse
uma parcela significativa de sua energia intelectual durante toda a
vida em seus estudos sobre música (JAY, 2008). Ao falar de estética,
como afirma Jay (2008), Adorno deixou claro que se referia a algo
além de uma simples teoria da arte, ele se referia a uma certa relação
entre sujeito e objeto. Isso traz à tona sua importância para buscar
entender o conceito de formação humana e sua relação com o
contexto social em que permeiam trabalho, arte e cultura.
O pensamento adorniano integra e trabalha sob a ótica do
que chamamos de teoria crítica. Segundo Jay (2008), no coração da
teoria crítica se apresenta uma aversão aos sistemas filosóficos
fechados e a própria não poderia ser assim apresentada devido ao
seu caráter vital aberto, investigativo e inacabado. Nessa perspectiva,
o autor ressalta que Adorno preferia articular ideias em ensaios,
evitando volumes pesados, característicos da filosofia alemã. Por esta
via, Adorno também optava pelo uso do ensaio, já que, segundo
Kaãelbach (1995 apud ADORNO, 1995a), fugia de um pensamento
estático ou coisificado em sua forma, entendendo que esta se
relaciona diretamente com o conteúdo.
A teoria crítica tecia diversas críticas a outras correntes e
tradições filosóficas, caracterizando-se, desde sua gênese, pelo
confronto e crítica instigante a outros sistemas (JAY, 2008). Essa
concepção sustentava que a objetividade científica como tal não é
por si só garantia suficiente da verdade, uma vez que esta insere-se
em um contexto em que fala contra os fatos da realidade social e por
eles está oculta. Dito isto, um imenso esforço imaginativo para
transcender os limites da própria realidade imposta representam
grande parte do trabalho da teoria crítica (JAY, 2008).
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Para Horkheimer (1937 apud JAY, 2008) em seu artigo
intitulado Teoria tradicional e teoria crítica, a teoria tradicional
apontava a formulação de princípios gerais e internamente coerentes.
Seu objetivo apontava em direção do conhecimento puro e, quando
apontava para ação, buscava sempre o domínio tecnológico do
mundo, mantendo em seus estudos uma rigorosa separação entre
pensamento e ação, teoria e práxis. Já a teoria crítica, antes de tudo,
recusava-se a fetichizar o conhecimento como algo que independe
da ação ou que seja superior a ela, pois o pesquisador é considerado
parte do objeto social que estuda (JAY, 2008).
Por fim, a teoria crítica se opunha ao conhecimento puro. Por
ela era rejeitado princípios gerais e comprovações ou refutações por
meio de exemplos, entendendo que o contexto social não poderia o
ser, tendo em referência a ordem atual. Era necessário haver
contradições e negativos na realidade vigente. Essa concepção
teórica dialética, devido a isso, sempre admitiu e recebeu as
percepções geradas pela experiência pré-científica do homem, não
se reduzindo apenas às observações controladas em laboratório.
Aguiar (2008) afirma que era filiando-se com a tríplice tradição
- Kant, Hegel e Marx -, que Adorno encontrara subsídios para sua
teoria crítica, mas adotando uma roupagem mais dialética e
fragmentária. Assim, Adorno pôde, em suas obras, observar
contradições e idealizações imanentes que eram presentes na cultura
de sua época. Sua crítica buscava transcender a ordem social vigente,
buscando compreender como forma e conteúdo relacionam-se com
a realidade social. Portanto, entende-se aqui que Adorno é autor
relevante em suas análises sobre música, sociedade e cultura sob a
perspectiva de se discutir o conceito de (de)formação a partir da
música.
(DE)FORMAÇÃO HUMANA A PARTIR DA MÚSICA SOB
PERSPECTIVA ADORNIANA
A concepção de (de)formação humana situa-se dentro da
relação entre o material e o histórico. Segundo Costa (2017), sob a
perspectiva da teoria crítica, todo ato estético é constituído de um
caráter humano comum, compartilhado enquanto fruto da
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humanidade. Essas questões são mediadas pela relação sujeito e
objeto, que inclusive estão longe de um ideal romântico e idealista.
Visão esta considerada como ilusória.
Para refletir essa questão é importante ressaltar que Adorno
e Simpson (1986) aprofundam suas considerações acerca da cultura
popular estandardizada, fenômeno artístico guiado pelo lucro. A
cultura comercial musical como música popular é oposta à música
séria. No contexto da música popular, o sentido não é perdido com
uma mudança na ordem dos detalhes ou mesmo a substituição de
um deles. A compreensão da estrutura não existe na obra, o ouvinte
já possui uma expectativa da música popular já produzida. “O detalhe
é substituível; serve à sua função apenas como uma engrenagem
numa máquina” (ADORNO; SIMPSON, 1986, p. 118).
Baseando-nos na limitação da criatividade e na ênfase dos
detalhes, devemos também considerar que o mesmo ocorre quanto
à apreciação subjetiva da arte. Jay (2008) destaca que o conceito
liberal de gosto e individualidade havia sido minado pela liquidação
gradativa do sujeito autônomo da sociedade ante o esclarecimento e
a indústria cultural. Frente a esse fenômeno e essa estrutura, ele
explica que os ouvintes tinham sua capacidade autônoma de ouvir
degenerada em termos psicológicos, aqui, a regressão da audição.
Um ouvinte com suas pulsões reprimidas demonstrava, como
explica Jay (2008), um estado infantil em que o ouvinte é dócil e teme
o novo, “como crianças só pediam os pratos de que haviam gostado
no passado, o ouvinte cuja audição havia regredido só conseguia ser
receptivo a uma repetição do que já ouvira antes” (JAY, 2008, p. 248).
Nesse sentido, Adorno e Simpson (1986) destacam que não
era a complexidade, a sofisticação ou o gênero que diferenciava a
música séria da música popular. A grande diferença estava em seu
propósito. Para eles, a orientação pelo comércio conduzia o produto
a criar, alimentar e se beneficiar de um mercado já estabelecido. “A
estandardização estrutural busca reações estandardizadas”
(ADORNO; SIMPSON, 1986, p. 120). A música popular se apresenta
ante uma análise já como um gatilho para respostas totalmente
antagônicas à individualidade democrática.
Tudo isso é sustentado por aspectos sugeridos aos
consumidores até que o culmino fosse a aceitação passiva e a
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reprodução por parte do ouvinte. Isso acontece devido aos extensos
esforços de promoção pela indústria. Adorno e Simpson (1986)
esclarecem que a promoção pelo plugging, que significa literalmente
arrolhamento, visa quebrar a resistência ao musicalmente idêntico. “A
repetição confere ao hit uma importância psicológica que, de outro
modo, ele jamais poderia ter. Essa promoção é o inevitável
complemento da estandardização” (ADORNO; SIMPSON, 1986, p.
125).
Diversos artifícios são utilizados para ocultar este processo. Os
anúncios em alto volume, os jingles chamativos e as brilhantes cores
que permeiam a publicidade. Adorno e Simpson apontam que nesse
glamour reside algo “que implora à sua invisível audiência que não
deixe de experimentar certas mercadorias em tons tais que
despertem esperanças além da capacidade da mercadoria para
atendê-las” (1986, p. 128). Os padrões se originaram e se
desenvolvem num amplo processo competitivo entre produtos, assim
mesmo como se apresentam as músicas nesse contexto. Quando uma
canção tinha boa aceitação, outras composições não hesitavam em
buscar sucesso da mesma maneira que sua inspiração (ADORNO;
SIMPSON, 1986).
O resultado disso é que as pessoas há muito tempo já foram
tomadas pelos processos de estandardização na medida em que a
concentração econômica preservava isso, junto com a imunidade do
grande artista, que “jamais pode errar”, como afirmam Adorno e
Simpson (1986). Assim, o que é natural para a arte se confunde
quanto ao natural para o humano. Os autores denominam a relação
entre o processo de estandardização e essa falsa sensação de escolha,
gosto e mercado aberto como pseudo-individuação. As relações
comerciais, as produções e até mesmo o improviso sempre pisam no
solo já conhecido.
É importante ressaltar que, para Adorno e Simpson (1986), é
necessário o entendimento do sentido da arte. O reconhecimento e
consequente identificação com algo já conhecido e experenciado.
Nessa perspectiva, o ouvinte deve ansiar pelo novo, pelo significado
construído na totalidade da peça, na organização de seus elementos.
Para os autores isso foi corroído na música popular, uma perspectiva
que torna o reconhecer um fim, não um meio. A experiência do ouvir
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só pode ser autêntica se o pensar em sua construção foi autêntico. A
música produzida sob os escombros do que um dia já fora autêntico
é estandardizada, aponta para uma direção em apenas um sentido,
conduzindo o indivíduo à inércia e ao contentamento.
Em síntese, Adorno e Simpson (1986) desenvolvem que o
trajeto psicológico em que um indivíduo é enfrentado e torna-se
submisso ao produto, começa na vaga lembrança da experiência de já
ter ouvido o novo que é igual, até que ele conceba que conhece a
música ouvida e sente-se parte dela, de toda a segurança e
acolhimento provido pela comunidade que, tal como ele, também
conhece, como em shows de auditório que se utilizam de perguntas e
respostas que todos sabem. Nesse processo, o indivíduo se observa na
música ao preencher suas lacunas com improvisos, floreios através de
assobios, palmas e cenários imaginados. Por fim, o indivíduo se mostra
aturdido, transferindo a sua falsa experiência de algo bom para a
música que, logo, torna-se para ele boa.
Todo esse fenômeno de experiência condicionada, de algo prédigerido, aponta para uma experiência não-produtiva. Dá, não uma
vazão, mas uma cobertura para todas as angústias, apreensões e
monotonia presentes no exaustivo e selvagem trabalho mecanizado
exigido do trabalhador no capitalismo, assim, tolhendo qualquer
possibilidade de práxis. Adorno e Simpson (1986) ressaltam que
escapar à monotonia e evitar esforço são elementos
incompatíveis: daí a reprodução exata daquela atitude
de que se procura escapar, [...] o modo de as pessoas
trabalharem na linha de montagem da fábrica ou nas
máquinas dos escritórios lhes nega qualquer novidade
(ADORNO; SIMPSON, 1986, p. 137).
A experiência é levada pela música popular, pelo fruto da
racionalidade que a ela tudo permeia, da indústria em que trabalha ao
seu lazer. A deformação é cultivada na violência e no conformismo, “no
primeiro caso, para apelos contra a razão e a vida intelectual e cultural;
e no outro caso, favorecendo a fraqueza do eu, estimulando o
comportamento de assimilação e adaptação das massas, canalizando
os interesses ao existente” (ADORNO, 1995a, p. 20). Os produtos da
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indústria cultural satisfazem interesses objetivos, assim como demais
mercadorias da sociedade consumista, eles têm valor de uso.
A título de exemplificação desses processos, podemos tomar
como exemplo a música Admirável Gado Novo composta pelo artista
brasileiro Zé Ramalho, em 1979, momento que o Brasil vivia uma forte
repressão e censura à imprensa e arte. Antes de tudo, é importante
ressaltar que sua obra faz referência ao livro Admirável Mundo Novo,
de Aldous Huxley (1968), que apresenta numa sociedade distópica as
pessoas condicionadas por uma droga que causa contentamento e
satisfação.
Os indivíduos não possuem liberdade, individualidade e,
consequentemente, nenhuma perspectiva de emancipação. Em sua
referência, Zé Ramalho postula uma relação entre os dois contextos: o
cenário distópico do livro do Huxley e o Brasil governado sob a falsa
égide da ditadura militar. Assim, a música firma seu conceito
relacionando o povo a um rebanho de gado, que é levado pelo
pastoreio, sem questionar ou compreender os motivos que os movem,
incapazes de uma reflexão crítica.
O ouvinte não compreende a música como linguagem sui
generis e está desatento demais para refletir sobre a letra que é ouvida.
Adorno e Simpson (1986) dizem que, caso contrário, as pessoas não
tolerariam o material que se lhe impõem. É esse fenômeno que o leva
a considerar a música popular como mero cimento social. Os autores
explicam que a função da música enquanto linguagem dotada de
sentido próprio passa por processos objetivos que a tornam
receptáculos para os desejos institucionalizados dos ouvintes.
A contradição é que as grandes plateias que ouviam Admirável
Gado Novo em seus shows não compreendiam sua crítica a como tudo
se desenvolvia, caso contrário não tolerariam a estrutura social em que
estavam inseridos. Diante disso, é necessário considerar novamente os
elementos de glamourização, desenvolvidos por Adorno e Simpson
(1986), como elementos que acresciam o show para além da linguagem
musical em si, dificultando até que a censura percebesse a crítica
realizada.
Ainda resgatando as ideias trabalhadas por Adorno e Simpson
(1986), pode-se destacar que a estrutura mental em que se sustenta
a música popular é permeada de distração e desatenção. Nesse
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sentido, vale ressaltar a correlação citada anteriormente entre a
música como lazer e o trabalho na sociedade, já que esse estado de
distração e desatenção está situado dentro de um modo de produção
racionalizado e mecanizado, sendo sua contraparte não-produtiva,
que é necessária para retornar ao trabalho, um relaxamento que não
envolva esforço de concentração. Assim, Adorno estabelece que “a
indústria cultural corresponde à continuidade histórica de condições
sociais objetivas que formam a antecâmara de Auschwitz” (ADORNO,
1995b, p. 20-21).
Depois de apresentado o contexto em que a arte, a educação
e o pensamento são reféns, é necessário definir o que seria
(de)formação humana. Sob a perspectiva do humano ser constituído
como ser social pela cultura em que está inserido e que o trabalho, a
arte e a cultura estão intimamente ligadas, deve-se ter em pauta a
obra adorniana no que concerne ao estado atual da arte, seu
propósito e sua relação com os indivíduos.
O esforço da indústria cultural para conservar a função de
cimento social da música popular através da glamourização e da
pseudo-individuação conduzem o sujeito para um cativeiro, onde
não se enxerga nada além do que lhe é permitido. O sujeito torna-se
objeto para a indústria, sujeito a toda sua dominação. Segundo
Adorno (1995b, p. 191-192), “o indivíduo não está menos cativo
dentro de si que dentro da universalidade, da sociedade. Daí o
interesse em reinterpretar sua prisão como liberdade. O cativeiro
categorial da consciência individual reproduz o cativeiro real de cada
indivíduo”.
Portanto, o sujeito deformado, fruto da pseudoformação, é o
indivíduo incapaz de agir, posicionar-se, transformar e refletir, mas
incapaz de se libertar dos grilhões que lhe foram colocados pela
razão instrumental. As tensões que o sujeito necessita para sua
emancipação e consequente autonomia foram-lhe tolhidas e, este
sujeito acaba por tornar-se passivo quanto aos fenômenos que lhe
controlam, chegando a defender isso, evitando o desconforto do
novo e diferente.
Todos os processos lapidados com o decorrer do tempo
visam a conservação do status quo. A conservação de uma estrutura
social que favorece a universalidade ao custo do particular. Nesse
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percurso, o capital destrói tudo em seu caminho para que cresça.
Adorno (1995a) ressalta que isso não é acidental ou imposto, mas sim
promovido e fortificado pela própria estrutura social. Para impedir
essa mudança, outro movimento realizado foi o de romper a relação
entre objeto e sujeito vivo, entre mundo sensível e mundo intelectual.
Quando ambos os aspectos não se articulam, trabalho manual e
intelectual se perdem como aspectos independentes, característicos
da deformação.
É improvável que uma educação crítica, buscando a
emancipação, irrompa ou sobreviva a toda a violência apresentada
por esse sistema, e, dessa forma, perpetuando o processo de
corrosão. Entretanto, devemos alcançar o ideal de autonomia. Um
dos pilares para a autonomia, sob perspectiva de Adorno (1995a), é
ser capaz de reelaborar o passado. Isso quer dizer que devemos
refletir e conhecer a história, valorizando “uma experiência dialética
no sentido de ‘tornar-se experiente’, isto é, aprender pela via mediada
da elaboração do processo formativo, assumindo-se a relevância
tanto dos resultados quanto do próprio processo” (p. 23, grifos do
autor).
Nesta perspectiva, o pensamento deve ter uma postura
negativa em relação às ideias e objetos. A experiência formativa,
constituinte do indivíduo formado, seria motivada por uma postura
de resistência e contradição frente ao objeto, direcionada pelo
confronto entre a própria limitação e as contradições, tendo em vista
a lógica da não-identidade (ADORNO, 1995a).
Então, Adorno (1995a) propõe a recuperação dessa
experiência formativa, buscando superar a inexistência da
emancipação, do processo educativo apenas como a mera
transmissão da técnica, sem reflexão. Para ele, isso não corresponde
a uma necessidade intelectual, mas como meio para frear o caminho
até a barbárie.
Toda essa superestrutura social encaminha à barbárie. O
pensamento racional instrumentalizado não é capaz de trazer novas
invenções, apenas melhorias do que já aparata o capitalismo. Do
estilingue à bomba nuclear, do mapa aos Sistemas de
Posicionamento Global, da tração animal aos aviões, nada mudou os
objetivos ou nosso caminho, apenas nos acelera rumo à barbárie
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(ADORNO, 1995a). Assim, a música séria poderia se apresentar como
uma linguagem para compreender o mundo como ele o é,
promovendo a desilusão, a desmistificação do próprio
esclarecimento, permitindo assim um caminho para a realização da
promesse du bonheur e, consequentemente, evitar-se-ia a barbárie.
Portanto, pode-se compreender (de)formação pela dialética
que permeia os processos que formam e deformam. A (de)formação
se situa na relação entre sujeito e objeto, tratando sobre a capacidade
de ação e reflexão do indivíduo, sendo sobre as possibilidades e
contradições em sua emancipação e práxis. Então, a música como
fenômeno artístico e, consequentemente, trabalho humano, se
apresenta como um elemento influente nesse processo, podendo
conduzir à formação ou à deformação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio desta discussão, buscamos realizar uma análise
conceitual das possibilidades de (de)formação a partir da música. É
possível notar que Adorno e Simpson (1986) fazem observações
pertinentes sobre aspectos da capacidade (de)formativa da música.
Inicialmente discutimos sobre como trabalho, arte e cultura se
relacionam dentro da perspectiva de um indivíduo, considerando a
relação entre sujeito e objeto, que se faz através da transformação do
mundo ao seu redor. Pudemos observar os impactos do
esclarecimento conduzido pela razão pura e seu efeito na relação
entre sujeito e objeto. Posteriormente, Adorno teve suas bases
teóricas apresentadas, sendo situado como um autor da teoria crítica
muito interessado na relação entre sujeito e objeto no que tange à
música e ao conhecimento. Por fim, tratou-se sobre a música em sua
forma e conteúdo, argumentando que, quando estandardizada,
refém do capital, pode deixar de propiciar a reflexão crítica. Além
disso, conceituamos a ideia de sujeito formado e deformado sob a
perspectiva da bibliografia trabalhada.
A música pode, quando estandardizada e tratada apenas
como produto, conduzir à deformação, à perda de autonomia e
consequente alienação do indivíduo, impedindo-o de agir como
sujeito consciente. Entretanto, o mesmo fenômeno artístico pode
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possibilitar a tomada de consciência, possibilitando a apreensão da
promesse du bonheur.
Em suma, podemos dizer que os potenciais (de)formativos da
música podem ser observados diante da contradição entre sujeito e
objeto. A música, quando tratada como mercadoria de troca, conduz
ao contentamento e satisfação com a realidade, atua no campo de
lazer como a extensão do próprio trabalho, assim não propiciando
novas perspectivas, apenas reforçando a dominação imposta sob o
sujeito ao mesmo tempo em que a música espontânea e a música
séria podem propiciar reflexão e formação. Desse modo, a música é,
de acordo com a teoria crítica adorniana, um propício campo para
aspectos (de)formativos, tendo latente presença na relação entre
trabalho, arte e cultura.
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