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Educação musical a partir das pessoas surdas

Resumo: Este trabalho tem por base uma dissertação de mestrado em andamento e por objetivo investigar como se dá a vivência da musicalidade da pessoa surda, considerando sua cultura. Diante da obrigatoriedade da educação musical nas escolas de educação básica, por meio da Lei de nº 11.769 de 18 de agosto de 2008, percebemos que compreender este processo, da vivência da musicalidade da pessoa surda, nos proporciona vislumbrar uma educação musical que permita a participação de todos. A representação da música na sociedade contemporânea carrega em si traços de sua concepção baseada numa série de ideias e ideais que incluem uma música para ser ouvida pelo ouvido e não como este sendo uma das inúmeras possibilidades que o indivíduo pode percebê-la, desta forma excluindo as pessoas surdas. Considerando o indivíduo como unidade afeto intelecto, baseado na psicologia histórico-cultural de Vygotski, temos como fonte de pesquisa o perceber este indivíduo em sua totalidade e, portanto, percebê-lo em inteireza e interação dos seus sentidos. Aqui buscamos como abordagem para compreender estas possibilidades a etnografia sensorial, que considera a interconectividade dos sentidos no indivíduo, ressaltando que não há isolamento entre eles, mas sim uma ligação.

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL ESCOLA DE HUMANIDADES I SEMINÁRIO LUSO-BRASILEIRO DE EDUCAÇÃO INCLUSIVA Título do Trabalho: Educação musical a partir das pessoas surdas. Eixo temático: A Educação Inclusiva e os processos de ensino e aprendizagem na Educação Básica Autores: Tatiane Ribeiro Morais de Paula (Universidade de Brasília)1; Patrícia Lima Martins Pederiva (Universidade de Brasília). Resumo: Este trabalho tem por base uma dissertação de mestrado em andamento e por objetivo investigar como se dá a vivência da musicalidade da pessoa surda, considerando sua cultura. Diante da obrigatoriedade da educação musical nas escolas de educação básica, por meio da Lei de nº 11.769 de 18 de agosto de 2008, percebemos que compreender este processo, da vivência da musicalidade da pessoa surda, nos proporciona vislumbrar uma educação musical que permita a participação de todos. A representação da música na sociedade contemporânea carrega em si traços de sua concepção baseada numa série de ideias e ideais que incluem uma música para ser ouvida pelo ouvido e não como este sendo uma das inúmeras possibilidades que o indivíduo pode percebê-la, desta forma excluindo as pessoas surdas. Considerando o indivíduo como unidade afeto intelecto, baseado na psicologia histórico-cultural de Vygotski, temos como fonte de pesquisa o perceber este indivíduo em sua totalidade e, portanto, percebê-lo em inteireza e interação dos seus sentidos. Aqui buscamos como abordagem para compreender estas possibilidades a etnografia sensorial, que considera a interconectividade dos sentidos no indivíduo, ressaltando que não há isolamento entre eles, mas sim uma ligação. Palavras-chave: Educação musical; Cultura Surda; Perspectiva histórico-cultural; Musicalidade. Introdução Desde 2008 há a obrigatoriedade da educação musical nas escolas de educação básica em todo o território nacional. A Lei de nº 11.769 de 18 de agosto de 2008 estabeleceu um prazo de 3 anos para que as escolas se adaptassem a nova exigência. O que aconteceu neste intervalo de tempo? O que podemos observar foi que a maioria das escolas não conseguiu se adaptar, cada uma por um motivo diferente. Chegamos ao ano de 2016 e em janeiro, com a Lei 13.278/2016, fez-se obrigatório o ensino das artes visuais, da dança, do teatro e da música nas escolas de educação básica em todo território nacional, tendo um período de 5 anos para sua implementação. As mesmas dúvidas que pairaram no ambiente educacional durante a lei de 2008 retornaram, ou pelo visto, permaneceram. Então nos perguntamos como acontecerá o ensino da educação musical para os estudantes surdos. Antes de compreendermos como se dará este ensino, precisamos entender que os surdos são seres de possibilidades. Precisamos desmistificar o rótulo da incapacidade, da menos valia. Se 1 [email protected] PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL ESCOLA DE HUMANIDADES I SEMINÁRIO LUSO-BRASILEIRO DE EDUCAÇÃO INCLUSIVA olharmos ao nosso redor, o universo é composto por diferenças. Nada é igual. As pessoas são diferentes e é esta diferença que ensejamos que a sociedade apreenda. Em seu livro “Fundamentos da Defectologia”, Vygotski relata a respeito do desenvolvimento do indivíduo com defeito. Especificamente nesta leitura vemos seu pensamento sobre o desenvolvimento das pessoas cegas, surdas e/ou com atraso mental. Vale ressaltar que à sua época não havia a relação da palavra defeito ao sentido de menos valia como hoje vigora, antes era vinculada estritamente a ver o outro como pessoa em que seu desenvolvimento ocorria de forma diferente devido ao defeito biológico, mas que este não interferia na condição humana de ser. De igual modo ele ainda relata a respeito da dialética do biológico e ambiente e baseados neste mesmo pensamento realizamos nossa pesquisa. Em seu texto, Vygotski não rotula, não classifica, não diminui, não exclui e nem segrega o outro, antes deixa claro seu posicionamento ao defender que o desenvolvimento afetado pelo defeito de uma criança não pode ser considerado, em relação aos seus pares, um desenvolvimento inferior, mas sim um desenvolvimento próprio, de outro modo, à sua maneira. A compreensão do indivíduo como ser capaz faz do defeito a força para a vida. “[...] la existencia de obstáculos es la condición principal para el logro del objetivo” (VYGOTSKI, 1997, p. 16). Não é o defeito que limita essas pessoas é a consequência deste defeito no ambiente social que gera um problema, uma exclusão, uma segregação. A existência do defeito não é a questão a ser analisada, discutida, pensada, mas sim, sua consequência manifestada no ambiente social, uma vez que é no seio da sociedade que percebemos e vivemos as atitudes preconceituosas frente ao defeito do outro, ao que não é normal para nós. É na nossa conduta diária que percebemos a alteridade. Ser surdo não é um problema, a consequência de ser surdo na sociedade é que gera um problema para tais pessoas. A sociedade está engessada e limitada aos seus padrões, à sua normalidade. La sordera [...] su influencia directa sobre el desarrollo en su conjunto es relativamente pequeña; [...] pero la mudez provocada por este defecto, la ausência de habla humana, la impossibilidade de dominar el lenguaje, engendran una de las complicaciones más penosas de todo el desarrollo cultural (VYGOTSKI, 1997, p. 27). No documentário “Sou surda e não sabia” Sandrine, filha de pais ouvintes, relata sua descoberta enquanto indivíduo surdo somente ao frequentar uma escola, em seu desenvolvimento PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL ESCOLA DE HUMANIDADES I SEMINÁRIO LUSO-BRASILEIRO DE EDUCAÇÃO INCLUSIVA cultural. Ela percebe que as pessoas olham umas para as outras e movimentam os lábios. A princípio ela pensa que a comunicação entre as pessoas que estão a movimentar seus lábios se dá por telepatia, depois por balões invisíveis cheios de pensamentos onde o outro é capaz de ler esses pensamentos. Desta observação percebe então que não consegue fazer como as outras pessoas, pois lança seus pensamentos, mas ninguém responde. Aqui Sandrine descobre-se diferente. O defeito torna-se um desvio social baseado nos critérios da exigente normalidade. O indivíduo que possui o defeito não se percebe diferente do outro até que a sociedade o apresente como tal. “Se van reestructurando todos los vínculos con las personas, todos los momentos que determinan el lugar del hombre en el médio social, su papel y destino como participe de la vida, todas las funciones de la existencia social” (VIGOSTKI, 1997, p. 18). Esta é a questão, a sociedade os percebe como deficientes e eles se percebem diferentes da sociedade e dentro dela. Para Vygotski nossa natureza vai além do nosso biológico, onde o desafio encontrado a partir de um defeito nada mais é que a mola propulsora para o desenvolvimento do indivíduo em toda sua capacidade. Ele mesmo diz que somos seres de possibilidades e essa expressão de vida acontece no ambiente cultural. “Um rótulo rígido pode condicionar a atitude do professor e, a longo prazo, desviar o comportamento da criança para o caminho previsto” (GOULD, 2014, p. 155). Exemplo da citação supracitada parte da fala de uma professora que leciona Artes. Ela me relata que outros colegas de profissão afirmaram não haver necessidade de incluir os estudantes surdos nas aulas de dança, pois os mesmos não ouviam. Por considerar suas potencialidades e verificar o interesse deles, esta professora incluiu seus 6 estudantes surdos na atividade proposta. Se ela os excluísse, provavelmente eles se sentiriam incapazes para, em outra oportunidade, fazerem parte de tal atividade. O rótulo os engessaria. No Brasil, a Lei nº 10.436, de 24 de Abril de 2002, reconheceu como legítima a Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS. Este é um marco para as pessoas surdas, pois a língua caracteriza uma cultura, e desta forma evidencia a presença da diferença e não da incapacidade, porém mesmo em meio a lutas e conquistas a pessoa surda ainda é vista como incompleta. Quando diagnosticada, o senso comum traz uma representação de surdoaquele que não escuta- que é imediatamente assumida pela família. Ser surdo é ser incompleto. [...] Não está em discussão o quanto ele pode ainda escutar. [...] Não está em pauta o ser de possibilidades que está por trás, ou melhor, para além da surdez. O rótulo está dado, a imagem é incorporada (HAGUIARA-CERVELLINI, 2003, p. 53 e 54). PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL ESCOLA DE HUMANIDADES I SEMINÁRIO LUSO-BRASILEIRO DE EDUCAÇÃO INCLUSIVA Assim, iniciamos este trabalho que tem por objetivo: investigar como se dá a vivência da musicalidade da pessoa surda, considerando sua cultura, compreendendo que a pessoa surda, vista à luz da perspectiva histórico-cultural de Vygotski (2013), é uma unidade afeto - intelecto em que a existência do defeito é um aspecto biológico e não limitador de seu desenvolvimento, sendo a diferença, uma condição humana. Partimos também do princípio que todo ser é musical (Pederiva e Tunes, 2013). Desta forma acreditamos que seja possível uma educação musical para a pessoa surda e, que essa educação deve oferecer as mesmas oportunidades de experimentação, de descoberta, em relação ao mundo sonoro que a rodeia, que são ofertadas às pessoas ouvintes. É dentro desta perspectiva de possibilidades e potencialidades do indivíduo que iremos perceber e aprender como acontece o desenvolvimento da musicalidade da pessoa surda. Problema de pesquisa Pensar na obrigatoriedade da educação musical estabelecida nas escolas de educação básica de todo o território nacional, desde 2008, e na necessidade de encontrar caminhos para que todos os indivíduos façam parte deste processo, apresentamos para fins deste trabalho, o seguinte problema de pesquisa:  Descobrir caminhos para o desenvolvimento da musicalidade do surdo a partir deles. Fundamentação teórica Nossa Constituição Federal, em seu Artigo 205 afirma: “A educação, de direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para a cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Ao praticarmos este artigo vemos a possibilidade de inclusão, ou seja, do desenvolvimento integral do indivíduo em seu contexto social. A questão agora é, como praticá-lo com as ferramentas necessárias à educação do ser integral? A inclusão precisa ser pensada como uma educação que respeite as diferenças. Datada de 1994 como fruto da Conferência Mundial sobre Necessidades Educacionais Especiais, a Declaração de Salamanca vem propor uma educação igualitária, ou seja, o acesso à educação de pessoas portadoras de necessidades educativas especiais com a mesma igualdade de PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL ESCOLA DE HUMANIDADES I SEMINÁRIO LUSO-BRASILEIRO DE EDUCAÇÃO INCLUSIVA oportunidade das pessoas que não são portadoras de necessidades educativas especiais. Dentre seus princípios basilares encontram-se: “As pessoas com necessidades educativas especiais devem ter acesso às escolas comuns que deverão integrá-las numa pedagogia centralizada na criança, capaz de atender a essas necessidades” Hoje temos também a Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 - Lei Brasileira de Inclusão de Pessoas com Deficiência - “destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando a sua inclusão social e cidadania” (BRASIL, 2015, art. 1º). Portanto, o meio escolar e a sociedade devem se abrir para as mudanças ocorridas na educação, mas os envolvidos diretamente nesse contexto têm que se apropriar, continuamente de novos aprendizados, de novas metodologias, para que a inclusão seja efetiva. “Incluir significa ouvir e responder àquilo que um outro pede pela sua própria voz” (ILLICH, apud TUNES & BARTHOLO, in TACCA, 2008, p. 147). O discurso vigente na sociedade a respeito da inclusão das pessoas com deficiência abarca as pessoas surdas, embora por regra geral elas prefiram ser chamadas de surdas uma vez que O discurso científico vigente tem preconizado o uso de “deficiente auditivo” para se referir a indivíduos que apresentam perdas auditivas [...] e, por esse motivo, encontram-se impedidos ou dificultados de adquirir a linguagem natural. [...] o sujeito surdo e a comunidade de surdos não aceitam ser denominadas “deficientes auditivos”, preferindo o termo “surdo”, expressão com a qual se identificam e que marca uma cultura própria. Essa opção originou-se num movimento que teve início nos Estados Unidos na década de 1980. O movimento, denominado Deaf Power, lutou pela causa do surdo, enfocando dois aspectos essenciais: o direito a uma língua própria e a reivindicação do direito de ser tratado como “diferente”, pelo ouvinte, em vez de “deficiente” (HAGUIARA-CERVELLINI, 2003, p. 13 e 15). Em Vygotski (1997) a suposta limitação de uma pessoa, que para ele enquanto deficiência é criada socialmente, serve como fonte para se buscar novas vias para o aprendizado dos indivíduos, pois sua tese central da defectologia está baseada em que todo defeito cria estímulos de compensação. Neste mesmo pensamento julgamos ser totalmente possível e viável a musicalidade do surdo uma vez que ele reage à música expressando-se. [...] Por todo o seu corpo é possível captar as vibrações das ondas sonoras. Estas podem ser percebidas pela pele e pelos ossos. A pele é o órgão dos sentidos mais vital. Pode-se viver sem audição, visão, olfato, paladar, mas é impossível viver sem a pele. A pele estabelece os limites do corpo, PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL ESCOLA DE HUMANIDADES I SEMINÁRIO LUSO-BRASILEIRO DE EDUCAÇÃO INCLUSIVA propiciando sua relação com o mundo exterior. É, portanto, um meio de comunicação fundamental com o outro. Ela funciona como um canal de transmissão geral. Daqui se depreende que os sons possam afetar o sujeito também por essa via. E, beneficiando-se dela, o sujeito surdo pode, então, usufruir desse mundo sonoro e reagir a ele” (HAGUIARA - CERVELLINI, 2003, p. 79). Pensar em uma aula de educação musical que seja inclusiva é pensar a respeito do que e como tem sido as propostas apresentadas à pessoa surda. Das diversas possibilidades de se experimentar a música, seja pela apreciação auditiva, seja por meio da atividade corporal, paro para refletir a respeito desta educação musical. Na pesquisa de Griebeler e Schambeck (2014) foi apontado o fato de, durante aulas de música, estudantes surdos serem colocados ou levados para outro ambiente uma vez que a proposta da aula não se adequava a eles. A pergunta é: porque a proposta não se adequava a eles? Fala-se tanto em inclusão, mas a exclusão é palpável. Umas das questões da exclusão das pessoas surdas neste contexto de vivência de sua musicalidade é o fato da sociedade ainda não compreender as inúmeras possibilidades de vivenciála. Cabe pensarmos que nem sempre a música foi vivida e experimentada como vemos nos dias atuais, onde há um padrão para o belo, para o aceitável, para o normal. A música simplesmente existia e era dado a cada pessoa experimentá-la e vivenciá-la à sua maneira. Ainda devemos ressaltar que quando falamos de musicalidade tratamos do comportamento humano relativo a vivência que se tem com o mundo sonoro, seja com o som, com o ritmo, com as vibrações, sendo a música uma possibilidade desta vivência. Como a sociedade percebe a música como algo pertencente ao universo dos ouvintes, esta identificação reflete na vida da pessoa surda, que acaba por carregar este estigma, afastando-se da experiência musical, não se permitindo essa vivência, sentindo-se amusicais. Pederiva e Tunes (2013) já discorreram a respeito da suposta amusicalidade do indivíduo: “A expressão musical passa a ser regida pela técnica. Qual seria o sentido dessa mecânica? Aos que não se ajustam, por alguma razão, a essa engrenagem, resta o epíteto de amusicais, seres com um dote biológico a menos” (p. 77). São tantas questões a serem desvendadas. Alguns dos relatos sobre a Helen Keller, surdocega, explicitam como ela tinha na música uma fonte de expressão do seu ser. Ela negou todas as expectativas contrárias ao seu desenvolvimento, expectativas depositadas em estereótipos de incapacidade. Devemos lembrar que em momento algum foi fácil, mas a dedicação de sua professora foi fundamental em seu desenvolvimento. Assim como Helen, inúmeras são as pessoas que nos evidenciam que a diferença é inerente ao ser humano e que em condições iguais de oportunidade é possível sim seu desenvolvimento. PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL ESCOLA DE HUMANIDADES I SEMINÁRIO LUSO-BRASILEIRO DE EDUCAÇÃO INCLUSIVA O que compreendemos é que o ser humano se sente capaz ou incapaz, em sua sociedade, pela representação que esta faz dele, no caso da pessoa surda, vemos o quanto esta representação, considerando também seu ambiente familiar, interfere em sua aceitação para o universo musical. No seio familiar, a musicalidade da pessoa surda, sua vivência com o universo sonoro, muitas vezes é negligenciado pelo fato do rótulo da incapacidade do ouvir, quando na verdade a vida em seu dia – a – dia deveria contribuir para este desenvolvimento. O mundo é carregado de música e movimento. As diversas culturas fazem uso da música o tempo todo, durante festejos, rituais, nas expressões de alegria e tristeza, enfim, é algo próprio do universo. As ondas do mar, os pássaros, o vento... Tudo tem som e todas estas coisas o surdo pode ver e perceber. Os estudos de Haguiara-Cervellini comprovaram também que se na infância a criança tem contato com a música, a probabilidade dela se apropriar do universo musical como fonte de prazer é grande, assim e ao nosso ver, de ter a música como uma possibilidade da vivência de sua musicalidade. A oportunidade dada às pessoas surdas deve ser a mesma das ouvintes. Emmanuelle nasceu surda, tornou-se artista francesa e relatou sua história em seu livro “O grito da gaivota” – Le cri de la mouette. Para ela era formidável o fato do seu pai ignorar a questão da surdez e compartilhar da paixão pela música, levando-a a concertos e tocando piano com ela. Assim percebemos que a exclusão da pessoa surda ao mundo da música, da vivência de sua musicalidade se dá, em maioria, pelo rótulo da sociedade ao determinar o que é ou não possível para essas pessoas. Objetivo geral Tendo a educação musical novo enfoque, visto sua obrigatoriedade desde 2008, e a necessidade de esclarecer para sociedade como um todo que, qualquer ser humano pode participar e apropriar-se da música como forma de arte, apresentamos o seguinte objetivo:  Identificar e apresentar estratégias que possam contribuir para o desenvolvimento da musicalidade do surdo. PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL ESCOLA DE HUMANIDADES I SEMINÁRIO LUSO-BRASILEIRO DE EDUCAÇÃO INCLUSIVA Metodologia A escolha do caminho metodológico dentro de uma pesquisa é diretamente relacionada ao objeto e objetivo de estudo, além de fortalecer com uso de instrumentos e ferramentas de coleta e análise de dados o resultado esperado a respeito da pesquisa, evidenciando também a postura e a relação do pesquisador no quesito de sua participação direta ou não na mesma. “[...] ao registrar o seu percurso metodológico, você estará evidenciando a sua postura epistemológica enquanto pesquisador, ou seja, você deixará pistas de como está concebendo a relação sujeito-objeto do conhecimento” (GONSALVES, 2003, p.61). Ao se perceber e desejar caminhar não do lado de fora do fenômeno investigado, ouvindo o que os próprios participantes desejam compartilhar, e de como este processo se configura, vemos a possibilidade de, a partir da própria cultura surda, aprender com ela, e não apenas por meio de uma observação distanciada. Esta postura nos permite pensar numa proposta de inclusão vinda das próprias pessoas surdas e não somente de adaptações das atividades propostas para as pessoas ouvintes. Espera-se que isso aconteça num elo de cumplicidade onde o respeito a todas as questões pertinentes para as pessoas participantes da pesquisa sejam levadas em conta. Isso nos viabiliza um olhar diferenciado propiciado pela etnografia como, a priori, a trilha que nos levará ao encontro de compreender nossas inquietações, de nos presentear com a beleza que permanece viva em uma cultura e que muitas vezes são negligenciadas por se observar apenas um lado da moeda. A cultura é o ambiente/meio social o qual todos estamos inseridos e sofremos influência direta ou indiretamente, de forma consciente ou inconsciente. “O ambiente social é a autêntica alavanca do processo educativo” (Vygotski, 2001, p.76). Ao escolhermos como caminho metodológico a etnografia, devemos lembrar que “[...] a etnografia não é o estudo de uma cultura, mas um estudo dos comportamentos sociais de um grupo identificável de pessoas” (CRESWELL, 2014, p.83), portanto desejamos compreender a relação de pessoas da cultura surda com a sua musicalidade. Assim, pensar uma educação que respeite a experiência do ser humano é considerar em todo o aspecto histórico – cultural deste indivíduo. Por perceber e compreender que na perspectiva de Vygotski temos esse modo específico de pensar educação, contemplamos na etnografia, a possibilidade do pesquisador imergir nessa cultura por meio do diálogo com esta, “O saber que não passa pela experiência pessoal não é saber” (Vygotski, 2001, p. 76). Dentro da etnografia encontramos a etnografia sensorial (PINK 2015) que considera os sentidos humanos numa interconectividade e as experiências como multissensoriais. Ela nos mostra PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL ESCOLA DE HUMANIDADES I SEMINÁRIO LUSO-BRASILEIRO DE EDUCAÇÃO INCLUSIVA um caminho direcionado para unidade perceptiva do ser humano, para além do que tem sido comumente tratado, usado e analisado nas pesquisas, ou seja, da visão fragmentada do ser humano. “A percepção é a realização não de uma mente em um corpo, mas do organismo inteiro enquanto percorre o seu ambiente, e que o que ele percebe não são coisas como tais, mas o que elas oferecem para a prossecução da sua atividade” (GIBSON apud INGOLD, 2015, p. 37). A fim de identificarmos, a partir da cultura surda, as vivências de sua musicalidade, faremos uso de entrevistas individuais para que a fala dessas pessoas sinalizem os caminhos para compreensão desta vivência. O objetivo da entrevista aqui utilizada será “proporcionar melhor compreensão do problema, gerar hipóteses e fornecer elementos para a construção de instrumentos de coleta de dados” (GIL, 2008, p.114), visto que buscamos elencar, em categorias, as vias que a pessoa surda vivencia sua musicalidade. Considerações finais Para aproximação com o universo da cultura surda, realizamos um piloto durante o primeiro semestre de 2016 que teve como objetivo, além desta aproximação, a compreensão inicial das maneiras como a pessoa surda vivencia sua musicalidade. Primeiramente, uma visita em uma escola de música com o intuito de encontrarmos, nesse universo, algumas pessoas surdas. Desejávamos compreender, de modo inicial, como seria a relação delas com sua musicalidade. Em um segundo momento, realizamos uma visita ao grupo Surdodum, grupo brasiliense de percussão formado por integrantes surdos e ouvintes. E num terceiro momento duas conversas, distintas, com outras duas pessoas surdas. O projeto piloto foi a primeira aproximação com alguns participantes da pesquisa, onde começamos a traçar as linhas das inúmeras possiblidades do ouvir para além do órgão da audição, o ouvido, pensando o ser - humano em sua unidade, considerando o funcionamento do organismo de modo globalizado. Aproveitamos então para levantar a questão de como eles se relacionavam com a música. Abaixo trazemos alguns resultados do piloto realizado. Em visita à escola de música, tomei conhecimento que haviam apenas 3 estudantes surdos com perdas parciais e sem uso da língua de sinais. Eram oralizados. Não consegui contato com eles porque era o dia do conselho de classe e a turma foi dispensada. Em conversa ainda com o responsável pelas informações constatei que, como se tratava de uma escola de música, o foco da instituição, não estava em perceber como acontece e como se dá a PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL ESCOLA DE HUMANIDADES I SEMINÁRIO LUSO-BRASILEIRO DE EDUCAÇÃO INCLUSIVA vivência musical das pessoas surdas, mas sim no aprendizado de algum instrumento específico, ou seja, da técnica e das habilidades em cada instrumento, na execução do mesmo. Um dos estudantes fazia bateria e os outros dois estavam na turma de musicalização infantil, em níveis diferentes. Esses três estudantes eram atendidos também por um núcleo de inclusão com a finalidade de conversar e verificar o aproveitamento de cada um ao longo do curso. Saí daquele lugar decepcionada porque tinha em mente que encontraria alguns jovens ou mesmo adultos surdos com quem pudesse conversar a respeito de sua musicalidade. Minha expectativa era o contato direto com eles. Então, perguntei-me porque essas pessoas surdas não procuravam uma escola de música. Seria por causa de proposta inadequada, que não considerava seus modos singulares de vivência de suas musicalidades, ou seria por que eles não se sentem parte deste universo sonoro? Seria por falta de oportunidade, de outros modos de se perceberem como seres musicais que são? Seria pela ausência de um profissional de Libras? Questões estas que ainda caminham com a gente. Em conversa com uma pessoa surda, ela relatou-me uma experiência musical que teve ao sentir a vibração da música quando um balão, durante uma festa, caiu em sua mão. Após este momento ela, ainda de posse do balão, começou a dançar e aproveitar aquele momento, "ouvindo o ambiente musical" por meio das vibrações que seu tato pode captar ao tocar o balão, por outros caminhos perceptíveis. Isso pode ser considerado como outras formas de vivência da musicalidade, de ouvir música, possibilitada por essa organização global do organismo, de sua unidade de funcionamento, por meio de outros sentidos. Isso, corrobora o uso da etnografia sensorial, que permite perceber essas experiências como multissensoriais. Em nova conversa, com outra pessoa surda, a sua experiência musical nos remeteu à observação do movimento do corpo do outro, como indicativo de experiência relativa à musicalidade. Ela relatou que sua irmã, que é ouvinte, "ligava o som" e começava a dançar, balançando o corpo. Enquanto isso, ela observava aqueles movimentos e os copiava, assim dançando também. A mesma coisa acontecia quando saia com amigos para ir à festas. Ela contou gostar de rock. Nota-se aqui que a observação daqueles movimentos rítmicos e sua imitação possibilitaram a vivência de sua musicalidade, o "ouvir” a música pela experiência do outro. Mais uma vez podemos constatar que esta vivência foi realizada por outras vias de percepção, numa interconectividade de sentidos, onde o corpo possibilitou uma experiência multissensorial. A experiência e vivência musical dos surdos podem ser também experienciadas a partir do movimento corporal, da dança, do sentir, perceber e “ouvir” com os "ouvidos" e com o movimento e PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL ESCOLA DE HUMANIDADES I SEMINÁRIO LUSO-BRASILEIRO DE EDUCAÇÃO INCLUSIVA pelo corpo do outro. Vygotski fala da importância da repetição ou reprodução de meios de conduta na atividade do homem onde a experiência do outro também nos constitui. É fácil compreender o enorme significado da conservação da experiência anterior para a vida do homem, o quanto ela facilita sua adaptação ao mundo que o cerca, ao criar e elaborar hábitos permanentes que se repetem em condições iguais (VYGOTSKI, 2009, p. 12). A proposta aqui apresentada vai muito além da convenção social sobre música e como podemos vivenciá-la. Tratamos aqui das inúmeras possibilidades de se encontrar e perceber a musicalidade na vida da pessoa surda a partir do que ela tem a dizer sobre isso. Toca-nos, portanto, pensarmos a importância de se compreender, entender e vislumbrar a musicalidade por outro ângulo, por uma proposta que percebe o indivíduo como ser musical, pleno de musicalidade, partindo do princípio que a música não é percebida e vivida somente pelo ouvido e nem que a música se restringe as partituras, notações e outras formalidades, mas que ela é vivida diariamente de diversos modos e por diferentes vias perceptivas, na totalidade do ser, em consonância com a realidade de que todos somos seres musicais e de possibilidades. O que precisamos compreender é a complexidade do desenvolvimento peculiar de cada indivíduo, considerando a diversidade humana, o meio em que vive, as experiências que vivencia, unidos a um ambiente social educativo. Esse ambiente se refere a organização de sociedade capaz de proporcionar e disponibilizar aos seus indivíduos todas as ferramentas necessárias para seu pleno desenvolvimento, dentro de suas potencialidades e não de suas limitações. Desta forma, contemplamos a possibilidade de criarmos caminhos, juntamente com as pessoas surdas, de vivência da musicalidade, pois ainda vemos uma educação musical que visa descobrir quais práticas pedagógicas no ensino da música facilitam a musicalização da pessoa surda, seu desenvolvimento global e sua participação na sociedade, sem tratar da música como função educativa e de desenvolvimento da musicalidade da pessoa. Espera-se, desse modo, contribuir para a ampliação das experiências dessas pessoas no âmbito da educação, e mais especificamente para a educação musical, bem como de novos referenciais que ampliem a perspectiva teórica, filosófica e prática a respeito do tema juntamente com a possibilidade de que sejam feitas mais pesquisas no âmbito da etnografia sensorial. PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL ESCOLA DE HUMANIDADES I SEMINÁRIO LUSO-BRASILEIRO DE EDUCAÇÃO INCLUSIVA Referências BRASIL . Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm> Acesso em: 22 set. 2015. _____________. Congresso Nacional. Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência. 18 de junho de 2015. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20152018/2015/Lei/L13146.htm. Acesso em: 03 mar. 2017. CRESWELL, John W. 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