PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
ESCOLA DE HUMANIDADES
I SEMINÁRIO LUSO-BRASILEIRO DE EDUCAÇÃO INCLUSIVA
Título do Trabalho: Educação musical a partir das pessoas surdas.
Eixo temático: A Educação Inclusiva e os processos de ensino e aprendizagem na Educação Básica
Autores: Tatiane Ribeiro Morais de Paula (Universidade de Brasília)1; Patrícia Lima Martins
Pederiva (Universidade de Brasília).
Resumo: Este trabalho tem por base uma dissertação de mestrado em andamento e por objetivo
investigar como se dá a vivência da musicalidade da pessoa surda, considerando sua cultura.
Diante da obrigatoriedade da educação musical nas escolas de educação básica, por meio da Lei de
nº 11.769 de 18 de agosto de 2008, percebemos que compreender este processo, da vivência da
musicalidade da pessoa surda, nos proporciona vislumbrar uma educação musical que permita a
participação de todos. A representação da música na sociedade contemporânea carrega em si traços
de sua concepção baseada numa série de ideias e ideais que incluem uma música para ser ouvida pelo
ouvido e não como este sendo uma das inúmeras possibilidades que o indivíduo pode percebê-la,
desta forma excluindo as pessoas surdas. Considerando o indivíduo como unidade afeto intelecto,
baseado na psicologia histórico-cultural de Vygotski, temos como fonte de pesquisa o perceber este
indivíduo em sua totalidade e, portanto, percebê-lo em inteireza e interação dos seus sentidos. Aqui
buscamos como abordagem para compreender estas possibilidades a etnografia sensorial, que
considera a interconectividade dos sentidos no indivíduo, ressaltando que não há isolamento entre
eles, mas sim uma ligação.
Palavras-chave: Educação musical; Cultura Surda; Perspectiva histórico-cultural; Musicalidade.
Introdução
Desde 2008 há a obrigatoriedade da educação musical nas escolas de educação básica em todo
o território nacional. A Lei de nº 11.769 de 18 de agosto de 2008 estabeleceu um prazo de 3 anos para
que as escolas se adaptassem a nova exigência. O que aconteceu neste intervalo de tempo? O que
podemos observar foi que a maioria das escolas não conseguiu se adaptar, cada uma por um motivo
diferente.
Chegamos ao ano de 2016 e em janeiro, com a Lei 13.278/2016, fez-se obrigatório o ensino
das artes visuais, da dança, do teatro e da música nas escolas de educação básica em todo território
nacional, tendo um período de 5 anos para sua implementação. As mesmas dúvidas que pairaram no
ambiente educacional durante a lei de 2008 retornaram, ou pelo visto, permaneceram. Então nos
perguntamos como acontecerá o ensino da educação musical para os estudantes surdos.
Antes de compreendermos como se dará este ensino, precisamos entender que os surdos são
seres de possibilidades. Precisamos desmistificar o rótulo da incapacidade, da menos valia. Se
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olharmos ao nosso redor, o universo é composto por diferenças. Nada é igual. As pessoas são
diferentes e é esta diferença que ensejamos que a sociedade apreenda.
Em seu livro “Fundamentos da Defectologia”, Vygotski relata a respeito do desenvolvimento
do indivíduo com defeito. Especificamente nesta leitura vemos seu pensamento sobre o
desenvolvimento das pessoas cegas, surdas e/ou com atraso mental. Vale ressaltar que à sua época
não havia a relação da palavra defeito ao sentido de menos valia como hoje vigora, antes era vinculada
estritamente a ver o outro como pessoa em que seu desenvolvimento ocorria de forma diferente
devido ao defeito biológico, mas que este não interferia na condição humana de ser. De igual modo
ele ainda relata a respeito da dialética do biológico e ambiente e baseados neste mesmo pensamento
realizamos nossa pesquisa.
Em seu texto, Vygotski não rotula, não classifica, não diminui, não exclui e nem segrega o
outro, antes deixa claro seu posicionamento ao defender que o desenvolvimento afetado pelo defeito
de uma criança não pode ser considerado, em relação aos seus pares, um desenvolvimento inferior,
mas sim um desenvolvimento próprio, de outro modo, à sua maneira. A compreensão do indivíduo
como ser capaz faz do defeito a força para a vida. “[...] la existencia de obstáculos es la condición
principal para el logro del objetivo” (VYGOTSKI, 1997, p. 16). Não é o defeito que limita essas
pessoas é a consequência deste defeito no ambiente social que gera um problema, uma exclusão, uma
segregação.
A existência do defeito não é a questão a ser analisada, discutida, pensada, mas sim, sua
consequência manifestada no ambiente social, uma vez que é no seio da sociedade que percebemos e
vivemos as atitudes preconceituosas frente ao defeito do outro, ao que não é normal para nós. É na
nossa conduta diária que percebemos a alteridade.
Ser surdo não é um problema, a consequência de ser surdo na sociedade é que gera um
problema para tais pessoas. A sociedade está engessada e limitada aos seus padrões, à sua
normalidade.
La sordera [...] su influencia directa sobre el desarrollo en su conjunto es
relativamente pequeña; [...] pero la mudez provocada por este defecto, la
ausência de habla humana, la impossibilidade de dominar el lenguaje,
engendran una de las complicaciones más penosas de todo el desarrollo
cultural (VYGOTSKI, 1997, p. 27).
No documentário “Sou surda e não sabia” Sandrine, filha de pais ouvintes, relata sua
descoberta enquanto indivíduo surdo somente ao frequentar uma escola, em seu desenvolvimento
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cultural. Ela percebe que as pessoas olham umas para as outras e movimentam os lábios. A princípio
ela pensa que a comunicação entre as pessoas que estão a movimentar seus lábios se dá por telepatia,
depois por balões invisíveis cheios de pensamentos onde o outro é capaz de ler esses pensamentos.
Desta observação percebe então que não consegue fazer como as outras pessoas, pois lança seus
pensamentos, mas ninguém responde. Aqui Sandrine descobre-se diferente.
O defeito torna-se um desvio social baseado nos critérios da exigente normalidade. O
indivíduo que possui o defeito não se percebe diferente do outro até que a sociedade o apresente como
tal. “Se van reestructurando todos los vínculos con las personas, todos los momentos que determinan
el lugar del hombre en el médio social, su papel y destino como participe de la vida, todas las
funciones de la existencia social” (VIGOSTKI, 1997, p. 18).
Esta é a questão, a sociedade os percebe como deficientes e eles se percebem diferentes da
sociedade e dentro dela. Para Vygotski nossa natureza vai além do nosso biológico, onde o desafio
encontrado a partir de um defeito nada mais é que a mola propulsora para o desenvolvimento do
indivíduo em toda sua capacidade. Ele mesmo diz que somos seres de possibilidades e essa expressão
de vida acontece no ambiente cultural.
“Um rótulo rígido pode condicionar a atitude do professor e, a longo prazo, desviar o
comportamento da criança para o caminho previsto” (GOULD, 2014, p. 155). Exemplo da citação
supracitada parte da fala de uma professora que leciona Artes. Ela me relata que outros colegas de
profissão afirmaram não haver necessidade de incluir os estudantes surdos nas aulas de dança, pois
os mesmos não ouviam. Por considerar suas potencialidades e verificar o interesse deles, esta
professora incluiu seus 6 estudantes surdos na atividade proposta. Se ela os excluísse, provavelmente
eles se sentiriam incapazes para, em outra oportunidade, fazerem parte de tal atividade. O rótulo os
engessaria.
No Brasil, a Lei nº 10.436, de 24 de Abril de 2002, reconheceu como legítima a Língua
Brasileira de Sinais – LIBRAS. Este é um marco para as pessoas surdas, pois a língua caracteriza
uma cultura, e desta forma evidencia a presença da diferença e não da incapacidade, porém mesmo
em meio a lutas e conquistas a pessoa surda ainda é vista como incompleta.
Quando diagnosticada, o senso comum traz uma representação de surdoaquele que não escuta- que é imediatamente assumida pela família. Ser surdo
é ser incompleto. [...] Não está em discussão o quanto ele pode ainda escutar.
[...] Não está em pauta o ser de possibilidades que está por trás, ou melhor,
para além da surdez. O rótulo está dado, a imagem é incorporada
(HAGUIARA-CERVELLINI, 2003, p. 53 e 54).
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Assim, iniciamos este trabalho que tem por objetivo: investigar como se dá a vivência da
musicalidade da pessoa surda, considerando sua cultura, compreendendo que a pessoa surda,
vista à luz da perspectiva histórico-cultural de Vygotski (2013), é uma unidade afeto - intelecto em
que a existência do defeito é um aspecto biológico e não limitador de seu desenvolvimento, sendo a
diferença, uma condição humana. Partimos também do princípio que todo ser é musical (Pederiva e
Tunes, 2013).
Desta forma acreditamos que seja possível uma educação musical para a pessoa surda e, que
essa educação deve oferecer as mesmas oportunidades de experimentação, de descoberta, em relação
ao mundo sonoro que a rodeia, que são ofertadas às pessoas ouvintes. É dentro desta perspectiva de
possibilidades e potencialidades do indivíduo que iremos perceber e aprender como acontece o
desenvolvimento da musicalidade da pessoa surda.
Problema de pesquisa
Pensar na obrigatoriedade da educação musical estabelecida nas escolas de educação básica
de todo o território nacional, desde 2008, e na necessidade de encontrar caminhos para que todos os
indivíduos façam parte deste processo, apresentamos para fins deste trabalho, o seguinte problema de
pesquisa:
Descobrir caminhos para o desenvolvimento da musicalidade do surdo a partir
deles.
Fundamentação teórica
Nossa Constituição Federal, em seu Artigo 205 afirma: “A educação, de direito de todos e
dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando
ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para a cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
Ao praticarmos este artigo vemos a possibilidade de inclusão, ou seja, do desenvolvimento integral
do indivíduo em seu contexto social. A questão agora é, como praticá-lo com as ferramentas
necessárias à educação do ser integral? A inclusão precisa ser pensada como uma educação que
respeite as diferenças.
Datada de 1994 como fruto da Conferência Mundial sobre Necessidades Educacionais
Especiais, a Declaração de Salamanca vem propor uma educação igualitária, ou seja, o acesso à
educação de pessoas portadoras de necessidades educativas especiais com a mesma igualdade de
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oportunidade das pessoas que não são portadoras de necessidades educativas especiais. Dentre seus
princípios basilares encontram-se: “As pessoas com necessidades educativas especiais devem ter
acesso às escolas comuns que deverão integrá-las numa pedagogia centralizada na criança, capaz de
atender a essas necessidades”
Hoje temos também a Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 - Lei Brasileira de Inclusão de
Pessoas com Deficiência - “destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o
exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando a sua
inclusão social e cidadania” (BRASIL, 2015, art. 1º).
Portanto, o meio escolar e a sociedade devem se abrir para as mudanças ocorridas na educação,
mas os envolvidos diretamente nesse contexto têm que se apropriar, continuamente de novos
aprendizados, de novas metodologias, para que a inclusão seja efetiva. “Incluir significa ouvir e
responder àquilo que um outro pede pela sua própria voz” (ILLICH, apud TUNES & BARTHOLO,
in TACCA, 2008, p. 147).
O discurso vigente na sociedade a respeito da inclusão das pessoas com deficiência abarca as
pessoas surdas, embora por regra geral elas prefiram ser chamadas de surdas uma vez que
O discurso científico vigente tem preconizado o uso de “deficiente auditivo”
para se referir a indivíduos que apresentam perdas auditivas [...] e, por esse
motivo, encontram-se impedidos ou dificultados de adquirir a linguagem
natural. [...] o sujeito surdo e a comunidade de surdos não aceitam ser
denominadas “deficientes auditivos”, preferindo o termo “surdo”, expressão
com a qual se identificam e que marca uma cultura própria. Essa opção
originou-se num movimento que teve início nos Estados Unidos na década de
1980. O movimento, denominado Deaf Power, lutou pela causa do surdo,
enfocando dois aspectos essenciais: o direito a uma língua própria e a
reivindicação do direito de ser tratado como “diferente”, pelo ouvinte, em vez
de “deficiente” (HAGUIARA-CERVELLINI, 2003, p. 13 e 15).
Em Vygotski (1997) a suposta limitação de uma pessoa, que para ele enquanto deficiência é
criada socialmente, serve como fonte para se buscar novas vias para o aprendizado dos indivíduos,
pois sua tese central da defectologia está baseada em que todo defeito cria estímulos de compensação.
Neste mesmo pensamento julgamos ser totalmente possível e viável a musicalidade do surdo uma vez
que ele reage à música expressando-se.
[...] Por todo o seu corpo é possível captar as vibrações das ondas sonoras.
Estas podem ser percebidas pela pele e pelos ossos. A pele é o órgão dos
sentidos mais vital. Pode-se viver sem audição, visão, olfato, paladar, mas é
impossível viver sem a pele. A pele estabelece os limites do corpo,
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propiciando sua relação com o mundo exterior. É, portanto, um meio de
comunicação fundamental com o outro. Ela funciona como um canal de
transmissão geral. Daqui se depreende que os sons possam afetar o sujeito
também por essa via. E, beneficiando-se dela, o sujeito surdo pode, então,
usufruir desse mundo sonoro e reagir a ele” (HAGUIARA - CERVELLINI,
2003, p. 79).
Pensar em uma aula de educação musical que seja inclusiva é pensar a respeito do que e como
tem sido as propostas apresentadas à pessoa surda. Das diversas possibilidades de se experimentar a
música, seja pela apreciação auditiva, seja por meio da atividade corporal, paro para refletir a respeito
desta educação musical. Na pesquisa de Griebeler e Schambeck (2014) foi apontado o fato de, durante
aulas de música, estudantes surdos serem colocados ou levados para outro ambiente uma vez que a
proposta da aula não se adequava a eles. A pergunta é: porque a proposta não se adequava a eles?
Fala-se tanto em inclusão, mas a exclusão é palpável.
Umas das questões da exclusão das pessoas surdas neste contexto de vivência de sua
musicalidade é o fato da sociedade ainda não compreender as inúmeras possibilidades de vivenciála. Cabe pensarmos que nem sempre a música foi vivida e experimentada como vemos nos dias atuais,
onde há um padrão para o belo, para o aceitável, para o normal. A música simplesmente existia e era
dado a cada pessoa experimentá-la e vivenciá-la à sua maneira.
Ainda devemos ressaltar que quando falamos de musicalidade tratamos do comportamento
humano relativo a vivência que se tem com o mundo sonoro, seja com o som, com o ritmo, com as
vibrações, sendo a música uma possibilidade desta vivência.
Como a sociedade percebe a música como algo pertencente ao universo dos ouvintes, esta
identificação reflete na vida da pessoa surda, que acaba por carregar este estigma, afastando-se da
experiência musical, não se permitindo essa vivência, sentindo-se amusicais. Pederiva e Tunes (2013)
já discorreram a respeito da suposta amusicalidade do indivíduo: “A expressão musical passa a ser
regida pela técnica. Qual seria o sentido dessa mecânica? Aos que não se ajustam, por alguma razão,
a essa engrenagem, resta o epíteto de amusicais, seres com um dote biológico a menos” (p. 77).
São tantas questões a serem desvendadas. Alguns dos relatos sobre a Helen Keller, surdocega,
explicitam como ela tinha na música uma fonte de expressão do seu ser. Ela negou todas as
expectativas contrárias ao seu desenvolvimento, expectativas depositadas em estereótipos de
incapacidade. Devemos lembrar que em momento algum foi fácil, mas a dedicação de sua professora
foi fundamental em seu desenvolvimento. Assim como Helen, inúmeras são as pessoas que nos
evidenciam que a diferença é inerente ao ser humano e que em condições iguais de oportunidade é
possível sim seu desenvolvimento.
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O que compreendemos é que o ser humano se sente capaz ou incapaz, em sua sociedade, pela
representação que esta faz dele, no caso da pessoa surda, vemos o quanto esta representação,
considerando também seu ambiente familiar, interfere em sua aceitação para o universo musical. No
seio familiar, a musicalidade da pessoa surda, sua vivência com o universo sonoro, muitas vezes é
negligenciado pelo fato do rótulo da incapacidade do ouvir, quando na verdade a vida em seu dia – a
– dia deveria contribuir para este desenvolvimento.
O mundo é carregado de música e movimento. As diversas culturas fazem uso da música o
tempo todo, durante festejos, rituais, nas expressões de alegria e tristeza, enfim, é algo próprio do
universo. As ondas do mar, os pássaros, o vento... Tudo tem som e todas estas coisas o surdo pode
ver e perceber.
Os estudos de Haguiara-Cervellini comprovaram também que se na infância a criança tem
contato com a música, a probabilidade dela se apropriar do universo musical como fonte de prazer é
grande, assim e ao nosso ver, de ter a música como uma possibilidade da vivência de sua
musicalidade.
A oportunidade dada às pessoas surdas deve ser a mesma das ouvintes. Emmanuelle nasceu
surda, tornou-se artista francesa e relatou sua história em seu livro “O grito da gaivota” – Le cri de la
mouette. Para ela era formidável o fato do seu pai ignorar a questão da surdez e compartilhar da
paixão pela música, levando-a a concertos e tocando piano com ela. Assim percebemos que a exclusão
da pessoa surda ao mundo da música, da vivência de sua musicalidade se dá, em maioria, pelo rótulo
da sociedade ao determinar o que é ou não possível para essas pessoas.
Objetivo geral
Tendo a educação musical novo enfoque, visto sua obrigatoriedade desde 2008, e a
necessidade de esclarecer para sociedade como um todo que, qualquer ser humano pode participar e
apropriar-se da música como forma de arte, apresentamos o seguinte objetivo:
Identificar e apresentar estratégias que possam contribuir para o desenvolvimento
da musicalidade do surdo.
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Metodologia
A escolha do caminho metodológico dentro de uma pesquisa é diretamente relacionada ao
objeto e objetivo de estudo, além de fortalecer com uso de instrumentos e ferramentas de coleta e
análise de dados o resultado esperado a respeito da pesquisa, evidenciando também a postura e a
relação do pesquisador no quesito de sua participação direta ou não na mesma. “[...] ao registrar o seu
percurso metodológico, você estará evidenciando a sua postura epistemológica enquanto pesquisador,
ou seja, você deixará pistas de como está concebendo a relação sujeito-objeto do conhecimento”
(GONSALVES, 2003, p.61).
Ao se perceber e desejar caminhar não do lado de fora do fenômeno investigado, ouvindo o
que os próprios participantes desejam compartilhar, e de como este processo se configura, vemos a
possibilidade de, a partir da própria cultura surda, aprender com ela, e não apenas por meio de uma
observação distanciada. Esta postura nos permite pensar numa proposta de inclusão vinda das
próprias pessoas surdas e não somente de adaptações das atividades propostas para as pessoas
ouvintes.
Espera-se que isso aconteça num elo de cumplicidade onde o respeito a todas as questões
pertinentes para as pessoas participantes da pesquisa sejam levadas em conta. Isso nos viabiliza um
olhar diferenciado propiciado pela etnografia como, a priori, a trilha que nos levará ao encontro de
compreender nossas inquietações, de nos presentear com a beleza que permanece viva em uma cultura
e que muitas vezes são negligenciadas por se observar apenas um lado da moeda.
A cultura é o ambiente/meio social o qual todos estamos inseridos e sofremos influência direta
ou indiretamente, de forma consciente ou inconsciente. “O ambiente social é a autêntica alavanca do
processo educativo” (Vygotski, 2001, p.76). Ao escolhermos como caminho metodológico a
etnografia, devemos lembrar que “[...] a etnografia não é o estudo de uma cultura, mas um estudo dos
comportamentos sociais de um grupo identificável de pessoas” (CRESWELL, 2014, p.83), portanto
desejamos compreender a relação de pessoas da cultura surda com a sua musicalidade.
Assim, pensar uma educação que respeite a experiência do ser humano é considerar em todo
o aspecto histórico – cultural deste indivíduo. Por perceber e compreender que na perspectiva de
Vygotski temos esse modo específico de pensar educação, contemplamos na etnografia, a
possibilidade do pesquisador imergir nessa cultura por meio do diálogo com esta, “O saber que não
passa pela experiência pessoal não é saber” (Vygotski, 2001, p. 76).
Dentro da etnografia encontramos a etnografia sensorial (PINK 2015) que considera os
sentidos humanos numa interconectividade e as experiências como multissensoriais. Ela nos mostra
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um caminho direcionado para unidade perceptiva do ser humano, para além do que tem sido
comumente tratado, usado e analisado nas pesquisas, ou seja, da visão fragmentada do ser humano.
“A percepção é a realização não de uma mente em um corpo, mas do organismo inteiro enquanto
percorre o seu ambiente, e que o que ele percebe não são coisas como tais, mas o que elas oferecem
para a prossecução da sua atividade” (GIBSON apud INGOLD, 2015, p. 37).
A fim de identificarmos, a partir da cultura surda, as vivências de sua musicalidade, faremos
uso de entrevistas individuais para que a fala dessas pessoas sinalizem os caminhos para compreensão
desta vivência. O objetivo da entrevista aqui utilizada será “proporcionar melhor compreensão do
problema, gerar hipóteses e fornecer elementos para a construção de instrumentos de coleta de dados”
(GIL, 2008, p.114), visto que buscamos elencar, em categorias, as vias que a pessoa surda vivencia
sua musicalidade.
Considerações finais
Para aproximação com o universo da cultura surda, realizamos um piloto durante o primeiro
semestre de 2016 que teve como objetivo, além desta aproximação, a compreensão inicial das
maneiras como a pessoa surda vivencia sua musicalidade.
Primeiramente, uma visita em uma escola de música com o intuito de encontrarmos, nesse
universo, algumas pessoas surdas. Desejávamos compreender, de modo inicial, como seria a relação
delas com sua musicalidade. Em um segundo momento, realizamos uma visita ao grupo Surdodum,
grupo brasiliense de percussão formado por integrantes surdos e ouvintes. E num terceiro momento
duas conversas, distintas, com outras duas pessoas surdas.
O projeto piloto foi a primeira aproximação com alguns participantes da pesquisa, onde
começamos a traçar as linhas das inúmeras possiblidades do ouvir para além do órgão da audição, o
ouvido, pensando o ser - humano em sua unidade, considerando o funcionamento do organismo de
modo globalizado. Aproveitamos então para levantar a questão de como eles se relacionavam com a
música. Abaixo trazemos alguns resultados do piloto realizado.
Em visita à escola de música, tomei conhecimento que haviam apenas 3 estudantes surdos
com perdas parciais e sem uso da língua de sinais. Eram oralizados. Não consegui contato com eles
porque era o dia do conselho de classe e a turma foi dispensada.
Em conversa ainda com o responsável pelas informações constatei que, como se tratava de
uma escola de música, o foco da instituição, não estava em perceber como acontece e como se dá a
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vivência musical das pessoas surdas, mas sim no aprendizado de algum instrumento específico, ou
seja, da técnica e das habilidades em cada instrumento, na execução do mesmo.
Um dos estudantes fazia bateria e os outros dois estavam na turma de musicalização infantil,
em níveis diferentes. Esses três estudantes eram atendidos também por um núcleo de inclusão com a
finalidade de conversar e verificar o aproveitamento de cada um ao longo do curso.
Saí daquele lugar decepcionada porque tinha em mente que encontraria alguns jovens ou
mesmo adultos surdos com quem pudesse conversar a respeito de sua musicalidade. Minha
expectativa era o contato direto com eles. Então, perguntei-me porque essas pessoas surdas não
procuravam uma escola de música. Seria por causa de proposta inadequada, que não considerava seus
modos singulares de vivência de suas musicalidades, ou seria por que eles não se sentem parte deste
universo sonoro? Seria por falta de oportunidade, de outros modos de se perceberem como seres
musicais que são? Seria pela ausência de um profissional de Libras? Questões estas que ainda
caminham com a gente.
Em conversa com uma pessoa surda, ela relatou-me uma experiência musical que teve ao
sentir a vibração da música quando um balão, durante uma festa, caiu em sua mão. Após este
momento ela, ainda de posse do balão, começou a dançar e aproveitar aquele momento, "ouvindo o
ambiente musical" por meio das vibrações que seu tato pode captar ao tocar o balão, por outros
caminhos perceptíveis.
Isso pode ser considerado como outras formas de vivência da musicalidade, de ouvir música,
possibilitada por essa organização global do organismo, de sua unidade de funcionamento, por meio
de outros sentidos. Isso, corrobora o uso da etnografia sensorial, que permite perceber essas
experiências como multissensoriais.
Em nova conversa, com outra pessoa surda, a sua experiência musical nos remeteu à
observação do movimento do corpo do outro, como indicativo de experiência relativa à musicalidade.
Ela relatou que sua irmã, que é ouvinte, "ligava o som" e começava a dançar, balançando o corpo.
Enquanto isso, ela observava aqueles movimentos e os copiava, assim dançando também. A mesma
coisa acontecia quando saia com amigos para ir à festas. Ela contou gostar de rock.
Nota-se aqui que a observação daqueles movimentos rítmicos e sua imitação possibilitaram a
vivência de sua musicalidade, o "ouvir” a música pela experiência do outro. Mais uma vez podemos
constatar que esta vivência foi realizada por outras vias de percepção, numa interconectividade de
sentidos, onde o corpo possibilitou uma experiência multissensorial.
A experiência e vivência musical dos surdos podem ser também experienciadas a partir do
movimento corporal, da dança, do sentir, perceber e “ouvir” com os "ouvidos" e com o movimento e
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pelo corpo do outro. Vygotski fala da importância da repetição ou reprodução de meios de conduta
na atividade do homem onde a experiência do outro também nos constitui.
É fácil compreender o enorme significado da conservação da experiência
anterior para a vida do homem, o quanto ela facilita sua adaptação ao mundo
que o cerca, ao criar e elaborar hábitos permanentes que se repetem em
condições iguais (VYGOTSKI, 2009, p. 12).
A proposta aqui apresentada vai muito além da convenção social sobre música e como
podemos vivenciá-la. Tratamos aqui das inúmeras possibilidades de se encontrar e perceber a
musicalidade na vida da pessoa surda a partir do que ela tem a dizer sobre isso.
Toca-nos, portanto, pensarmos a importância de se compreender, entender e vislumbrar a
musicalidade por outro ângulo, por uma proposta que percebe o indivíduo como ser musical, pleno
de musicalidade, partindo do princípio que a música não é percebida e vivida somente pelo ouvido e
nem que a música se restringe as partituras, notações e outras formalidades, mas que ela é vivida
diariamente de diversos modos e por diferentes vias perceptivas, na totalidade do ser, em consonância
com a realidade de que todos somos seres musicais e de possibilidades.
O que precisamos compreender é a complexidade do desenvolvimento peculiar de cada
indivíduo, considerando a diversidade humana, o meio em que vive, as experiências que vivencia,
unidos a um ambiente social educativo. Esse ambiente se refere a organização de sociedade capaz de
proporcionar e disponibilizar aos seus indivíduos todas as ferramentas necessárias para seu pleno
desenvolvimento, dentro de suas potencialidades e não de suas limitações.
Desta forma, contemplamos a possibilidade de criarmos caminhos, juntamente com as pessoas
surdas, de vivência da musicalidade, pois ainda vemos uma educação musical que visa descobrir
quais práticas pedagógicas no ensino da música facilitam a musicalização da pessoa surda, seu
desenvolvimento global e sua participação na sociedade, sem tratar da música como função educativa
e de desenvolvimento da musicalidade da pessoa.
Espera-se, desse modo, contribuir para a ampliação das experiências dessas pessoas no âmbito
da educação, e mais especificamente para a educação musical, bem como de novos referenciais que
ampliem a perspectiva teórica, filosófica e prática a respeito do tema juntamente com a possibilidade
de que sejam feitas mais pesquisas no âmbito da etnografia sensorial.
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