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Gladius Dei": um caso peculiar de ironia

1994, Cadernos De Pesquisa

o conto "Gladius Dei", de Thomas Mann, é aqui estudado a partirdeduas perspectivas sucessivas de acesso: inicialmente referido ao horizonte da tematização tradicional da ironia retórica, recebe, num segundo momento, tratamento distinto, onde a ironia nele presente coincide com uma acepção superior da arte, conexa à cidade que a enseja. Daí deriva sua peculiaridade, aludida no titulo do estudo.

"GLADIUS DEI": UM CASO PECULIAR DE mONIA Olímpio José' Pimenta Neto' Para Lélia Resumo o conto "Gladius Dei", de Thomas Mann, é aqui estudado a partirdeduas perspectivas sucessivas de acesso: inicialmente referido ao horizonte da tematização tradicional da ironia retórica, recebe, num segundo momento, tratamento distinto, onde a ironia nele presente coincide com uma acepção superior da arte, conexa à cidade que a enseja. Daí deriva sua peculiaridade, aludida no titulo do estudo. A reflexão acerca da ironia literária, em uma de suas vertentes mais tradicionais, adota como referência teórica principal a noção de incongruência, Suscintamente, podemos entendê-Ia como o desajuste entre o sentido imediato e textuaI de uma expressão e algum outro sentido latente ou velado possível para a mesma passagem. A . divergência entre uma intenção suposta e aquilo que está dito pode resultar, para um leitor atento ou bem informado, em um convite ao risól. Vale lembrar que o ponto em questão é bastante controvertido, além de compreender inúmeros desdobramentos e nuances sobre os quais, no âmbito deste estudo, cabe apenas uma ligeira menção. A detenninação precisa de qualquer sentido depende de variáveis complexas, queabrangem desde os contextos onde se dá uma enunciação e sua recepção, a constituição formal docódigo linguístico aí mobilizado, • Mestre emFilosofia pela FAFICHlUFMG. Doutorando em Literatura Comparada pela FALElUFMG. 7 tI;.' iJ até a já citada intenção investida no texto - dado altamente volátil 2 . Sem ignorar esta advertência trabalharemos deirúcio coma ironia na acepção proposta, isto é, como um fenômeno vinculado a um certo intervalo na ordem dos significados de um texto. Comefeito, a partir de uma possibilidade direta de abordagem, o conto de Mann se apresenta para nós com uma feição dividida. Lemos nele,sob tal perspectiva, a história de um combate entre wna encarnação juvenil do fervor religioso e moral e o espírito pennissivo e prosaico de uma comunidade motivada por interesses prioritariamente comerciais. Diante desse quadro, somos instados a nos alinhar a um dos dois partidos em disputa, tendo por critério de adesão a pergwrta: qual, dentre eles, é o adversário maisrisível? Figura caricatural, primeiro de uma extensa lista de representantes do obscurantismo na obra de Mann3, o Jerônirno protagonista da história, aparece como "uma sombra passando em frente ao sol, wna lembrança de horas tristes atravessando a alma'". A descrição de seustrajes, sua fisionomia e seusmodos instaura um brusco contraste no interior da atmosfera que dominava até então o conto. Este é, até o fim, seu traço distintivo: trata-se de um tipo esquisito com wna atitude absurda face à mentalidade hegemôníca na cidade. Esse nível preliminar de constatações é superado à medida em que a história avança. Chegaremos a conhecer Jerônimo em proftmdidade por um caso singular, quase anedótico. A exuberante vida artística e comercial da cidade produziu um quadro - wna Madonna cuja cópia está em exposição pública. Chegando diante da vitrina, Jerônimo se transtorna, incapaz de assenhorar-se da sensualidade despertada pela contemplação da pintura. Esse apelo veiculado por impulsos recusados e rejeitados pelo personagem empresta um sentido bastante conflituoso a suas exigências dirigidas ao dono da loja: "Vim pedir-lhe que retire o quanto antes da vitrina aquele quadro", O quanto antes em relação ao público, talvez, mas também em relação a ele, que após ver tal Madonna passoutrês noites semdormir, Por indignação de sua alma, alega o narrador. Alma esta, aliás, quepretende, pela espada e pejofogo, apagar e suprimir as "paixões de nossa carnenoieota". Nossa, diz ele, referindo-se a quem? Talvez à da personagem e à daquela que serviu de modelo para a pintura, figura de renome na cidade, capaz - ela apenas - de suscitar uma grande vertigem envolvendo fogo, espadas, carne, etc. O mal estar do asceta é dirigido contra tudo o que ele não consegue assimilar. Entrevemos assim, no seu desafio à arte, uma 8 questão pessoal. O primeiro nível de leitura se completa: o partido está tomado contra esse sujeito fraco, ignorante a seu próprio respeito. Um impotente, que se traveste da onipotência divina. para amaldiçoar a alegre cidade. Responsáveis em grande parte pelo espetáculo continuo que aviva a Munique do conto, os burgueses seriam os beneficiários diretos dessa rejeição a seu adversário,à qual nós leitores somos conduzidos. Mas essa vitória fácil deve ser ponderada com cautela: a ironia de Mann tem, pelomenos, dois gumes. As "pessoas de formação humanística, versadas em artes e ciências" que povoam a narrativa - estudantes, caixeiros, turistas, pintores, logistas - não parecem perceber exatamente a dimensão e o eventual valorestéticos dos objetos de queeles dispõem para o consumo. Todos estão mergulhados em atividades tributárias da arte, "participam respeitosamente de sua prosperidade", ouvem e repetem os conceitos que circulam a respeito dela. Observemos, com Mann, essa gente mais de perto. "Miram com curiosidade igual as paredes das casas à direita e à esquerda"; indignam-se seriamente "com a possibilidade de queimar uma reprodução de sessenta marcos II , falam lide Donatello ou de Mino de La Fisole, num tom de quem houvesse recebido pessoalmente a autorização de lhes reproduzir as obras". Nessas palavras transparece com mais nitidez o seu caráter. Não soa razoável esta indiferença em relação à variedade de estilos que compõe o conjunto arquitetônico de uma bela cidade. Há aí mais voracidade que gosto. Por outro lado, é de um redutivismo um tanto exagerado que o valor de mercado de um quadro bastepara sua avaliação integral. Afinal: toda essa intimidade com a arte suscita um bocado de desconfiança. E novamente, é no episódio da loja de arte que os contornos dos personagens ficam melhor delineados. O primeiro a confrontar Jerônimo foi um que "havendo escrito em horas vagas um opúsculo sobre o movimento artístico moderno, estava bem preparado para sustentar' uma discussão erudita". Esse diletante vaidoso conclui sua argumentação a respeito do quadro oferecendo como critério para apreciação do seu valor: "0 Estado acaba de comprá-lo". Muito elucidativo do que está em jogo para ele. O segundo a confrontar Jerônimo é menos sutil. Convocado por seu chefe, entra em cena "uma coisa massuda e esmagadora, um fenômeno robusto e e:nonne" que empurra "vagarosa e irresistivelmente" o asceta para fora da loja. 9 1 1 Qualquer simpatia alimentada pelo leitor quanto à mentalidade que anima estes tipos - pelo menos no que concerne à arte - fica assim circunstanciada. Se um acordo com a posição de Jerônimo é insustentável, tampouco a companhia denegociantes posando de amantes das artes parece conveniente ou desejável. Opera-se com isso wna reviravolta que conclui um segundo nível de leitura. Importa marcar, contudo, que não está interditada a opção por qualquer dos lados envolvidos no enredo, uma vez que é possível buscar amparopara tal opção - ou ainda, decisão - no sentido literal de todos os trechos citados. Alguém inspirado pela mentalidade mercantil do dono da loja de arte se reconhecerá nas posições deste, rindo das pretensões daquele rapaz feroz. Que, por sua vez, é capaz de proporcionar àqueles que encontram sua identidade nwnaligação austera coma transcedência, a chanceabsoluta de rir por último quando do advento do "Gladius Dei". O que volta à baila, portanto, é a indagação aludida no começo. Será possível precisar um sentido último através do qual a ironia de Mann evidencie a quem serve? O encaminhamento desta questão implica um reajuste de enfoque. Are agora consideramos o objeto visado - vale reiterar: a ironia tomada em geral - nos limites de sua tematização tradicional., numa abordagem que aponta sempre para uma discrepância na correspondência entre um dito e os sentidos imediato e mediato que ele pode sugerir. O trânsito truncado que vai, por exemplo, de um conceito àquilo que ele designa num dado momento é uma oportw1idade comum para a ação do ironista, vale dizer: trata-se de um certo pragmatismo onde, por meio do riso, desqualifica-se a autoridade do interlocutor. As conclusões produzidas anteriormente, porém, parecem afastar o conto de Mano de wna apropriação sob esse registro. Mesmo ressalvando a chance de wnaleitura engajada de "Gladius Dei" - ou seja, uma leitura que reconheça aí um sentido estável e final, uma "moral da história" - julgamos mais proveitoso pensar o caso diferentemente. Pois parece-nos que a grandeza da ironia aqui em jogo ultrapassa qualquer parcialidade. Numa análise extrema, acrescentamos: o que é próprio de tal ironia é a equanimidade e a harmonia. Nwna palavra: o distanciamento. Num ensaio sobre II A arte do romance", posterior ao conto em trinta e seteanos, Mano escreve o seguinte: 10 Não é a ironia o oposto da objetividade? Não é ela uma atitude altamente subjetiva, o ingrediente de um libertinismo romântico que se opõe a toda calma clássica e ao realismo? Isto é correto. A ironia pode ter esse significado. Mas emprego esta palavra aqui num sentido mais amplo e maior do que lhe confere o subjetivismo romântico. E um sentido quase monstruoso em sua serenidade: o sentido da própria arte, uma afirmativa universal, que justamente como tal é também uma negativa universal; um olhar evidente e alegre abrangendo o todo, precisamente o olhar da arte, querdizer, o olhar da mais alta liberdade, da calma e de um realismo não turvado por qualquer moralismo'. Esta passagem comporta várias lições a propósito dos aspectos fundamentais da reflexão emcurso. Se há um sentido último investido na ironia pelo autor, trata-se de um sentido paradoxal, na medida em que não assegura qualquer certeza fixa sobre si mesmo. O "olhar da mais alta liberdade", pelo qual ele é veiculado, não admite compromissos senão consigo mesmo. Os personagens do conto podem ser captados a partir das perspectivas mais variadas e divergentes: o domínio a que pertencem, a arte, não determina ou encerra qualquer injunção necessária a seu respeito. Ao dizermos "Jerônimo obscurantista" ou "burgueses levianos" destacamos de umfundo narrativo homogêneo aquilo que nos cabe. Mas, a história é aberta, infinita e sem verdades canônicas. Desse ponto de vistapodemos conceber a medida da alegria ditada pela arte de Mann: os personagens de "Gladius.Dei" são equivalentes entre si e o único triunfo visível é o da cidade, plano tão gigantesco quanto o da narrativa. Ambas, arte e cidade, são territórios sem margens fixas, espaço de "disseminação transnacional da cultura'", O escritor e critico galês Raymond Williams, num alentado estudo sobre a evolução histórica das relações entre o campo e a cidade, formula, de modo bastante interessante, o que pensamos ser o núcleo da atitude cosmopolita. "De fato", diz ele, "essa sensação de ilimitadas possibilidades, de encontro e movimento, é um fator permanente do sentimento quemeinspiram as cidades'". Ao postularmos o predicado cosmopolita para a literatura de Mann - sobre o que a breve narrativa estudada é um caso exemplar temos em mente essas palavras. A razão principal para isto é mais ou menos óbvia: a Munique descrita pelo autor não se reduz a wn cenário 11 r'.,.,.- °r" f ; ou pano de fundo estático contra o qual se projeta a cala por ele criada. Ao contrário, a cidade é condição necessária para o desenvolvimento dos acontecimElltos narrados. Sem ela, não só os protagonistas do conto estudado perderiam qualquer densidade, como as possibilidades referidas por Williams estariam dissolvidas. E mesmo que a cidade não seja presença freqüente na prosa de Mann, seu valor metafórico é constante: fonte e plano de realizações sem limite. A afirmativa universal da arte coordena-se de modo estrito com estametáfora. Dispomos das cidades: selecionamos e arranjamos a partir delas novos enredos cuja narração é ummodo privilegiado de celebração da vida.8 II A arte floresce, a arte reina, a arte estende sobre a cidade o seu cetro rodeado de rosas, e sorri I! : dessa feliz associação se alimenta, triunfante, a irOlÚa deMann. Notas 1. Ver a esse respeito, por exemplo. o capítulo "ls it ironic"? ln: BOOTH, ~ Wayne. A rhetoric ofirony. Chicago: The University of Chicago Press, 1974. 2. Ver a esse respeito: MARl, Hugo. Os lugares do sentido. Belo Horizonte: NAPqI FALE I UFMG, 1991. 3. Podemos mencionar, entreoutros, Nafta de A montanha môgica e o mágico de Mário e o mágico. O próprio. Girolamo Savonarola, inclusive protagoniza a novela Fiorenza, detidamente estudada no capítulo "The embarassed muse" ln: HELLER, Erich. The ironic German. London: Secker anel Warburg, 1958. 4. Esta e as demais citações do conto estudado foram extraídas de MANN, Thomas, Gladius Dei. ln: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda e RONAI, Paulo. Mar de histórias: antologia do conto mundial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. Vol. 8. S. MANN, Thomas. Ensaios (SeI. AnatoI RosenfeId). São Paulo: Perspectiva, 1988. 6. BHABHA, Homi. Dissemination: time, narrative, and lhe margins of lhe modem nation. ln: Nation andnarration. London: Routledge, 1990. 7. WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 8. Uma belíssima apresentação disso sob a forma da poética visual é o a1bum gráfico de EISNER, WilI: New rork, a grande cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1989. '! f. ", ti, 12