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O sic et non de Pedro Abelardo

O MÉTODO DIALÉTICO E O SIC ET NON DE PEDRO ABELARDO Pedro Rodolfo Fernandes da Silva Av: Gal. Rodrigo Octávio Jordão Ramos, 3.000 – Campus Universitário Instituto de Ciências Sociais e Letras – ICHL – Depto. de Filosofia Bairro: Coroado I Manaus – AM CEP: 69075-000 Tel: (92) 3305-4571 http://www.dfil.ufam.edu.br/ Email: [email protected] Possui Mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Cursou Pós-Graduação Lato Sensu (especialização) em Docência do Ensino Superior pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e em Ensino Religioso Escolar pela Faculdade Dehoniana (Taubaté/SP). Possui graduação (Licenciatura) em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). Atualmente é Professor Assistente I da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), onde também é coordenador do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP-UFAM). Tem experiência na área de Filosofia Medieval, Ética e Bioética. Resumo O presente artigo investiga o método dialético em Pedro Abelardo a partir da concepção desse pensador acerca do problema dos universais, o qual marcou toda a discussão acerca do método no século XII. Abelardo é crítico do realismo e defensor da ideia de que os universais são palavras (voces) dotadas de significação (significatio) que designam a coisa individual. Como exemplo do emprego do método dialético na análise das questões teológicas, é tomada a obra Sic et non, na qual evidencia-se a dialética como busca da verdade no discurso, examinando atentamente os significados dos termos utilizados e observando a temporalidade e a causalidade do que é dito. Palavras-chave: método, dialética, problema dos universais, Sic et non. Introdução Pedro Abelardo (0170-1142) destaca-se no período medieval por suas várias contribuições no campo da lógica, da ética, da teologia, entre outros. Em seus escritos é característico o emprego do método dialético, entendido como o tratamento lógico em ordem sistemática (ordo disciplinae). Segundo Rémusat1, toda discussão acerca do método no século XII pode ser reduzida à questão dos universais. Ela foi de fato capital naquele contexto e responsável por agitar as escolas e a sociedade da época, ocupando as mentes humanas do período de Escoto Erígena à Reforma Protestante. Assim, a depender da resposta que se apresentava a esse clássico problema, tinha-se o desenho do método de análise das diversas questões das diversas áreas. Pedro Abelardo, o peripatético do Pallet, é seguramente o maior lógico do século XII e dessa forma tornou-se também uma referência quanto ao problema dos universais naquele século. Admirado e seguido por muitos, sobretudo os clérigos que vinham a Paris tomar suas lições, foi também 1 RÉMUSAT, 1845, p. 319. condenado e perseguido por outros que tinham nesse pensador um sujeito temerário por arvorar-se a explicar os dogmas da religião à luz da razão2. Neste artigo, pretende-se apresentar os fundamentos do método dialético adotado por Pedro Abelardo no modo de tratamento do problema dos universais. Após isso, tomar-se-á a obra Sic et Non como exemplo da aplicação do método dialético na análise de questões teológicas. A Logica Ingredientibus3 e a crítica ao realismo O problema dos universais, segundo Aristóteles4, remonta ao próprio Sócrates. Na acepção platônica, o universal é entendido como a forma ou a espécie5, enquanto que na acepção aristotélica, o universal é a forma ou a substância6, de modo que somente destes é que existe ciência. Em termos lógicos, a definição de universal dada por Aristóteles, “o que, por sua natureza, pode ser predicado de muitas coisas7”, tornou-se clássica. Porfírio (ca. 232/3-304), no início de sua Isagoge8 – obra na qual comenta as categorias aristotélicas do ser – apresenta três questões quanto ao gênero e às espécies: 1) se eles subsistem ou encontram-se somente no pensamento; 2) se subsistentes, são corpóreos ou incorpóreos e 3) se são separados ou subsistem nos sensíveis e relativamente a estes. Boécio (ca. 470-525), ao traduzir e comentar a obra de Porfírio, transmitiu tais questões à posteridade, de modo que a Isagoge constitui-se numa introdução ao estudo da filosofia aristotélica. A proeminência do problema dos universais no século XII se deve a um conjunto de fatores, dentre eles pode-se mencionar as transformações socioeconômicas e políticas impulsionadas por uma época de relativa paz, o 2 É o caso da crítica de Bernardo de Claraval a Abelardo: “[...] Mas, ao jactar-se de estar apto a dar a razão de todas as coisas, empreende, contra a razão e contra a fé, dar razão das que estão acima da razão”. SAN BERNARDO, 1950, p. 997 3 No que se refere às citações dessa obra, utilizar-se-á a seguinte tradução: ABELARDO, Pedro. Lógica para principiantes. Tradução do original em latim de Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento. 2ª ed. São Paulo: UNESP, 2005a. 4 ARISTÓTELES, Metafísica, XIII, 4, 1078 b 28 5 PLATÃO, Parmênides, 132 a. 6 ARISTÓTELES, De Interpretatione, 17 a 37. 7 Idem, 7, 17 a 39. 8 PORFÍRIO, 1994, pp. 18-23. que fez acentuar a produção agrícola por meio da invenção de expedientes relativamente simples que, à época, revolucionaram a vida no campo, como “o moderno atrelamento dos animais, a coelheira dura, os tirantes, a disposição em fila e a ferragem com pregos9”. Surgiram as cidades e nestas um movimento intelectual que atraiu jovens estudantes de várias partes. Mencione-se ainda os problemas de ordem teológica, como a discussão acerca da Trindade. Roscelino, por exemplo, ao adotar a postura nominalista insistia que em Deus, como nas espécies criadas, os indivíduos é que são reais, culminando assim numa interpretação triteísta10. Desse modo, o problema dos universais parece que perpassou várias áreas da vida social e cultural do século XI ao XV. Abelardo também se deteve a tratar o problema dos universais, sobretudo na introdução da obra Logica Ingredientibus. Depois de abordar as três espécies de filosofia (especulativa, moral e racional), Abelardo glosa o início da Isagoge de Porfírio, para, ao fim da introdução, dedicar-se a responder às três questões clássicas apresentadas por Porfírio, acrescentando a essas uma quarta: [...] será que é necessário que tanto os gêneros como as espécies, enquanto são gêneros e espécies, tenham alguma coisa subordinada através da denominação ou se, destruídas as próprias coisas denominadas, então o universal poderia constar da significação da intelecção, como este nome “rosa” quando não há nenhuma das 11 rosas às quais é comum . Antes de responder às clássicas questões sobre o problema dos universais, Abelardo se depara com as posições assumidas por seus contemporâneos e as refuta, sobretudo a postura representada por seu mestre, Guilherme de Champeaux, um representante do realismo. Apesar dos matizes que a postura realista assume, podemos resumi-la dizendo que os realistas “colocam uma substância essencialmente a mesma em coisas que diferem umas das outras pelas formas; essa é a essência 9 BEUJOUAN, 1959, p. 143. Cf. GILSON, 2001, p. 290. 11 ABELARDO, 2005a, p. 51-2. 10 material dos singulares nos quais está presente, e é uma só em si mesma, sendo diferente apenas pelas formas dos seus inferiores12”. Como crítica ao realismo, afirma Abelardo que [...] se essencialmente o mesmo, embora marcado por diversas formas, existe nos singulares, é necessário que a substância que é afetada por estas formas seja a que é marcada por aquelas, de tal modo que o animal formado pela racionalidade é o animal formado pela irracionalidade e, assim, o animal racional é o animal irracional e, desse modo, os contrários estariam presentes simultaneamente no 13 mesmo . Dessa forma, a crítica de Abelardo aponta para o fato de que o realismo ignora que há entre os seres diferença e multiplicidade, e acaba por permitir a contradição nas sentenças e nos próprios seres, pois o gênero seria afetado tanto pela racionalidade quanto pela irracionalidade. A crítica de Abelardo prossegue, na Logica Ingredientibus, com relação aos matizes que o realismo pode assumir, sempre mostrando a impossibilidade de que a essência absolutamente idêntica, tomada como coisa, exista simultaneamente em seres diversos. Em síntese, a conclusão da crítica de Abelardo é de que não é possível entender os universais como coisas (res), restando somente a possibilidade de entendê-los como palavras (voces)14. Na crítica de Abelardo ao realismo pode-se vislumbrar uma tomada de posição implícita sobre a natureza das coisas, que são estritamente individuais, excluindo-se toda forma de universalidade real. O nominalismo de Abelardo e o problema da significação Abelardo não apenas propõe seu nominalismo negando que existam coisas universais. Ele também afirma que os universais são palavras - ou, mais precisamente - afirma que os universais são voces (termo usado em latim para uma palavra escrita ou falada)15. 12 ABELARDO, 2005a, p. 55. Idem, ibidem, p. 57. 14 ABELARDO, 2005a, p. 66. 15 Na Logica Nostrorum Abelardo sustenta que os universais não são voces, mas sim sermones. Cf. FUMAGALLI, 1969, p. 08. 13 Quando, na Logica Ingredientibus, Abelardo argumentou que os universais são voces, ele claramente pretendia insistir que eles não são coisas de espécie alguma. Mas, alguém poderia objetar, dizendo que as palavras (voces) em si são coisas. Para um leitor moderno, isto pode parecer um trocadilho pedante, mas para um filósofo do século XII que compartilhasse desse entendimento sobre voces, tal objeção seria motivo de preocupação. Palavra não é uma tradução completamente exata de vox. Literalmente, vox significa "voz". Após Prisciano16, gramáticos e filósofos do século XII utilizaram vox para se referir aos sons produzidos pelas cordas vocais de homens e outros animais. Esses sons podem ser sem sentido (como acontece com os sons sem sentido do balbuciar de um bebê), ou significativos. Palavras significativas (voces significativae) podem ter sua importância natural (como acontece com o latido, que indica que um cão tem raiva) ou por imposição e convenção humana: tais voces (voces significativae ad placitum) são ordinariamente significados pelo termo palavras. De acordo com Marenbon17, quando Abelardo diz que os universais são voces, ele quer dizer que são voces significativae ad placitum (palavra significativa por convenção). Isto não significa, contudo, responder à acusação de que voces são coisas. Se possui sentido ou não, uma vox é o que é produzido pela ação das cordas vocais: ele é, na definição dada por Prisciano, o ar muito fino que é golpeado. Essa questão foi objeto de inúmeras controvérsias entre os lógicos e gramáticos no início do século XII. Alguns argumentaram que voces têm ar (como Prisciano parece sugerir), e, portanto, substância. Outros, baseando-se na autoridade de Aristóteles e Boécio, encontraram meios para explicar a definição de Prisciano afirmando que voces são as medidas do ar atingido pelas cordas vocais e seriam, portanto, acidentes da categoria de quantidade. Abelardo - pelo menos no período em que escreveu a Logica Ingredientibus tratou a polêmica como uma questão meramente verbal, embora insistisse que voces remetia a uma medida de ar, e não ao próprio ar18. 16 Priscianus Caesariensis, gramático latino do século VI. MARENBON, 1997, p. 177. 18 Idem, ibidem, p. 177-8. 17 Assim, quando Abelardo fala de voces, ele obviamente quer considerálas como portadoras de significados, ou seja, o universal não se predica de muitos enquanto uma essência comum a vários, pois “não há participação em alguma realidade comum, mas somente uma participação no mesmo predicado, que não representa uma realidade diversa nas coisas19”. Essa participação no mesmo predicado atribuído a vários designa uma condição própria de cada indivíduo, denominada por Abelardo de status: “também podemos chamar de estado de homem as próprias coisas estabelecidas na natureza do homem, das quais aquele que lhes impôs a denominação concebeu a semelhança comum20”. O estado de homem, por exemplo, não designa algo diverso deste homem individual, mas sim que este é um homem. Portanto, o estado “pende para o lado das coisas e é o correlato ex parte rerum da palavra universal. Abelardo o caracteriza como um esse tale, por exemplo, esse hominem para os indivíduos humanos21”. Além de vox, Abelardo também se utilizou de sermo. O emprego e a distinção estabelecidos entre vox e sermo apontam para uma importante questão: as palavras são universais apenas porque as convenções humanas as fazem tais, ao invés de apenas sons. Sermo, por sua vez, significa "discurso". Trata-se de um termo que não era usado pelos lógicos para escrever sobre os universais e para o qual Abelardo pretende dar um novo significado técnico. Apesar de idênticos na sua essência, vox e sermo diferem na origem. Vox deve sua origem à natureza, afirma Abelardo - vox é ou um sopro de ar ou a sua medida. Sermo, por sua vez, deve sua origem à convenção humana sermo é uma palavra portadora de significado (significatio). As palavras transmitem significados porque certo grupo de sons é aceito por convenção (seguindo um ato original de imposição), como o nome dado para as coisas de uma espécie22. 19 BOEHNER & GILSON, 2000, p. 300. ABELARDO, 2005a, p. 73. 21 NASCIMENTO, 2005, p. 32, nota 5. 22 Cf. Sup. Porf. IN: MARENBON, 1997, p. 178. 20 O que Abelardo não analisa é que há algo de verdadeiro entre o que é uma entidade física e o que foi estabelecido com um significado de acordo com as convenções humanas. Embora a compreensão de Abelardo sobre os universais fosse muito influente, pelo menos por algumas décadas a sua tentativa de introduzir sermo como um termo técnico teve pouco sucesso. Quando da revisão da Theologia Sumi Boni para escrever a Theologia Christiana, Abelardo substituiu devidamente sermones por voces em uma passagem onde ele explicitamente contrastou o enunciado das palavras com a sua função de significante23. Mas, mesmo nas Glosas, Abelardo não tende a usar a palavra sermo após a sua primeira discussão sobre tal assunto. Ele prefere usar os termos mais comuns entre os lógicos, tais como vocabulum e nomem, para significar palavras impostas que comportam um sentido (em contraste com voces). Desse modo, não é de admirar, então, que aqueles que adotaram a leitura de Abelardo sobre os universais e sobre muitas outras questões, ficaram conhecidos na segunda metade do século XII não como “sermonalistas”, mas como “nominalistas”. Do exposto segue que Abelardo ao negar a existência real dos universais, postula a noção de que o universal é uma vox ou um sermo. Resta entender de que modo ocorre essa imposição de um universal a um conjunto de coisas. Certamente que não é do mesmo modo como afirmou Roscelino 24 dizendo que os universais são meros flatus vocis (sons vazios). Afirma Abelardo na Logica ingredientibus que os universais “significam pela denominação coisas verdadeiramente existentes, isto é, as mesmas que os nomes singulares e que, de modo algum, estão colocados numa opinião vazia25”. Pode-se afirmar com Boehner e Gilson que para Abelardo a “universalidade convém aos nomes enquanto estes exercem a função de expressões significativas26”, ou seja, os universais designam as coisas segundo um modo próprio de significação (significatio). 23 Cf. Theologia Sumi Boni 150: 950-3, modificada em Theologia Christiana 255: 1955-9. In: MARENBON, 1997, p. 179. 24 GILSON, 2001, p. 289. 25 ABELARDO, 2005a, p. 87. 26 BOEHNER & GILSON, 2000, p. 306. No início do século XII os lógicos tendiam a usar a palavra significatio em um sentido amplo - segundo o qual qualquer modo em que a linguagem representa um pensamento ou uma coisa é um tipo de significação. Um bom exemplo do uso que Abelardo faz da significação no sentido amplo é quando, na Dialectica, ele distingue quatro tipos principais de significação: por imposição, determinação, geração e exclusão. Com o desenvolvimento de seu pensamento lógico, Abelardo tornou-se ainda mais seguro deste ponto de vista de modo que tendeu a usar significatio no sentido mais rigoroso. Assim, tal termo foi empregado por Abelardo no sentido de que significar x (alguém ou algo) é causar um ato mental de compreensão de x em alguém ou, simplificando, causar um pensamento de x em alguém. Contra o recurso ao plano gramatical, segundo o qual cada palavra significa todas as coisas que a nomeia e a causa da qual é imposta, Abelardo sustenta um critério mais determinado e preciso de significatio. Não podemos atribuir a significatio uma função que ultrapassa esses limites: o significado de um nome é exclusivamente o que é chamado por esse nome. As respostas de Abelardo aos problemas colocados por Porfírio também possibilitam entrever a noção de indivíduo que parece ser cara a Abelardo. Com relação à primeira pergunta porfiriana – se os gêneros e as espécies subsistem, responde Abelardo que o universal “significa pela denominação coisas verdadeiramente existentes, isto é, as mesmas que os nomes singulares e que, de modo algum, estão colocados numa opinião vazia27”. Em relação à segunda questão – se os subsistentes são corporais ou incorporais – responde Abelardo que os nomes universais podem ser “corporais, isto é, separados na sua essência, e incorporais quanto à designação do nome universal, porque não os denominam separada e determinantemente, mas confusamente28”. A terceira questão porfiriana pergunta se os universais sendo incorporais, são eles separados das coisas sensíveis ou subsistentes nelas, ao que responde Abelardo que 27 28 ABELARDO, 2005a, p. 87. Idem, ibidem, p. 89. [...] os universais subsistem nos sensíveis, isto é, que significam a substância intrínseca existente na coisa sensível em virtude das formas exteriores e que, significando essa substância que subsiste em ato na coisa sensível, manifestam-na contudo, como naturalmente 29 separada da coisa sensível . Compreendendo-se incorporal e corporal como sensível e não sensível, a terceira questão remonta à segunda, de modo que o universal é sensível ou corporal enquanto voces e não sensível ou incorporal enquanto significatio. Por fim, a quarta questão colocada pelo próprio Abelardo acerca do fato de que se todas as coisas denominadas pelo nome universal fossem destruídas, poderia ainda o universal consistir apenas na significação da intelecção, ao que responde Abelardo que [...] de modo algum admitimos que haja nomes universais quando, tendo sido destruídas as suas coisas, eles já não são predicáveis de vários, porquanto nem são comuns a quaisquer coisas, como o nome da rosa, quando já não perduram mais rosas, o qual, entretanto, ainda é então significativo em virtude da intelecção, embora careça de denominação, pois, de outra sorte, não haveria a proposição: não 30 há nenhuma rosa . Uma vez expostas as respostas de Abelardo quanto ao problema dos universais, pode-se inferir que há uma ruptura entre o indivíduo e o gênero, de modo que o primeiro de fato existe empiricamente, enquanto o segundo é um nome designativo segundo um modo próprio de significação. Verifica-se que de acordo com Abelardo todas as coisas que encontramos no mundo são singulares. Assim, uma cor que vemos, ou um som que ouvimos, é também uma determinada coisa singular. Em suas obras que versam sobre lógica, Abelardo insiste na distinção entre o singular e o universal, na unidade do indivíduo e na diferença entre ambos31. Segundo Jacobi32, Abelardo reconhece que em alguns casos temos nomes próprios a nossa disposição para a nomeação de coisas singulares, como por exemplo, o nome de um determinado humano singular. Com efeito, é precisamente da função do nome próprio marcar uma coisa singular como tal. 29 ABELARDO, 2005a, p. 89-90. Abelardo, 2005a, p. 91. 31 ESTÊVÃO, 1990, p. 23. 32 JACOBI, 2004, p. 133. 30 Assim, os substantivos próprios são usados repetidas vezes - isto é, para nomear diferentes pessoas ou coisas. Mas não se deve procurar uma propriedade comum das pessoas ou coisas nomeadas, pois nesse caso, os nomes próprios representam, por assim dizer, uma multiplicidade de coisas de modo equívoco. O caso é diferente, porém, quando nomeamos as coisas singulares por meio de um termo descritivo, conjugado com um pronome demonstrativo: "essa substância", "este corpo", "este animal", "este homem", este branco, etc. Aqui entendemos não só a coisa singular, mas também algo sobre essa coisa singular, ou seja, que é uma substância, ou um corpo. Ao indicar a coisa singular, desta forma, dirigimos nossa atenção sobre ela com referência a um aspecto bem definido. A Lógica aplicada à Teologia: o Sic et Non e método dialético. O Sic et Non parece representar muito bem a intersecção entre os escritos de lógica e de teologia e por isso merece lugar à parte. Escrito provavelmente entre os anos de 1121 e 1132 e composto de 158 questões reunidas em três conjuntos (fé, sacramento, caridade) e estruturadas no estilo da disputatio, servindo de modelo para o que mais tarde serão as Sumas, o texto propõe o método dialético no estudo da teologia, enfatizando o cuidado com o entendimento das palavras, pois há momentos em que estas são usadas, por exemplo, de acordo com o público ao qual é dirigido: O que mais nos impede de chegar à comunicação é o modo inusitado de locução e muitas vezes também o significado diferente das palavras, quando a mesma é usada uma vez num sentido, outra vez noutro. Acontece que assim como uma pessoa é rica em ideias, também o é em palavras. Segundo Cícero: ‘A identidade em todas as coisas é a mãe da saciedade’, isto é, provoca fastídio. Por isso convém que num mesmo assunto as palavras variem, e que nem tudo seja apresentado com palavras vulgares e comuns, pois, como diz Santo Agostinho, certas coisas são encobertas para que não percam valor, e são tanto mais preciosas quanto com mais diligência foram investigadas e, com mais esforço, conquistadas. Seguidamente acontece também que, devido à diversidade daqueles com quem falamos, as palavras devem ser modificadas, pois sucede com frequência que o significado próprio das 33 desconhecido para alguns ou pouco usado por eles . palavras é Assim, questões como: se a fé deve se basear somente em razões humanas, ou não? Se a fé diz respeito somente às coisas invisíveis, ou não? Será que Deus tem livre arbítrio, ou não? Algo acontece contrário à vontade de Deus, ou não? Deus tudo sabe, ou não; trazem no enunciado a contradita de modo a estabelecer o confronto entre os textos, os quais Abelardo deslinda em busca de uma solução que não contradiga, necessariamente, as autoridades invocadas. Segundo Jolivet34, nessa obra, o objeto e o método dialéticos dependem mais estritamente da questão da linguagem da fé. Acrescenta ainda que esta obra está dividida em duas partes: uma compilação de textos tirados na maior parte dos ‘santos’ (Padres da Igreja) e um prólogo. Dessa forma, quando são encontradas variações ou contradições nos textos dos Santos Padres, deve-se examinar com cuidado o que poderia ser a causa dessas diferenças e considerar o tempo, as circunstâncias e as intenções do escritor. Além disso, comparando cuidadosamente os diferentes significados da mesma palavra em diferentes autoridades, chega-se facilmente à solução da dificuldade. Essa prática da oposição sistemática dos textos embora encontrasse reserva em alguns círculos restritos, tornou-se algo como a dúvida de Descartes ou as antinomias de Kant. Se Abelardo nunca publicara este escrito, ele talvez não o tivesse feito por receio de por em perigo a unidade da crença e também porque isso implicaria em perigo para si mesmo, pois se sabe que o livro era suficiente para comprometer o autor que se encontrava por essa época acusado no Concílio de Soissons, em 1121, o qual condenara por heresia a obra Theologia Summi Boni. Gilson exalta a importância histórica do Sic et non e acresce o seguinte comentário: 33 ABELARDO, 2005b, p. 116-7. Além desse texto que é uma tradução elaborada por Luís Alberto de Boni a partir de: PETER ABAILARD. Sic et Non. A Critical Edition. Chicago, 1976; utilizar-se-á a edição Ed. J.-P Migne. Paris: Migne, 1855. Sic et non. Patrologia latina. Vol. 178. 34 JOLIVET, 1994, p. 83. Essa obra reúne os testemunhos aparentemente contraditórios da Escritura e dos Padres da Igreja sobre um grande número de questões. Abelardo erige em princípio que não se devem utilizar arbitrariamente as autoridades em matéria de teologia. Quanto à intenção que determinou a composição da obra, nada permite ver nela, como por vezes se obstina a fazer, o desejo de arruinar o princípio da autoridade, opondo-se os Padres da Igreja uns aos outros. Abelardo declara expressamente, ao contrário, que reuniu essas contradições aparentes para levantar questões e suscitar nos espíritos o desejo de resolvê-las. O método do Sic et non é inteiramente incorporado à Suma teológica de Santo Tomás, em que cada questão opõe as autoridades a favor às autoridades contra, mas desenlaça essa oposição escolhendo, determinando e provando a 35 solução . Carvalho36 observa que essa obra colige mais de duas mil citações devidamente classificadas, o que suporia um trabalho em equipe e um rico acervo bibliográfico ou a utilização de um ou vários florilégios. De fato, o período em que a obra foi escrita, tomando por referência a datação proposta por Mews37, corresponde a onze anos de trabalho intercalados com a redação de outras obras, dentre as quais o Dialogus e a Historia Calamitatum, bem como a experiência como abade em São Gildas e o retorno a Paris ao monte de Santa Genoveva onde fundou escola. Nesse ínterim, Abelardo tomou contato com uma variada gama de textos e foi auxiliado por alunos que o acompanhavam – o que de algum modo explicaria a riqueza desse texto. Marenbon38 aponta nesse mesmo sentido que para a redação do Sic et non Abelardo usou, como um estudante atualmente poderia usar, um arquivo de fichas (card index) para coletar material para seus escritos sobre teologia. Assim, parece não pairar dúvidas quanto ao esforço de Abelardo em deslindar o texto sagrado e os textos dos padres à luz lógica dialética. Para Abelardo, a busca da evidência na linguagem deve estar acima da eloquência, pois pela primeira pode-se chegar à verdade enquanto que pela segunda incorre-se na incompreensão ou na compreensão distorcida dos ouvintes. Citando Agostinho39, afirma que as palavras possuem uma característica insigne: amar a verdade mais que as palavras. Portanto, as 35 GILSON, 2001, p. 342. CARVALHO, 2001, p. 26. 37 MEWS, 1986, p. 122; 131. 38 MARENBON, 2004, p. 24. 39 AGOSTINHO, Sobre a Doutrina Cristã 11; PL 34, 108. IN: DE BONI, 2005, p. 117, nota 6. 36 palavras devem ser um meio para o encontro com a verdade e não a própria verdade. O problema posto por Abelardo no prólogo centra-se na discussão sobre os cuidados necessários ao cotejar passagens da escritura entre si e passagens da escritura com os textos dos santos padres: Se, pois, algumas coisas nos Evangelhos foram corrompidas devido à ignorância dos copistas, por que admirar-se se há casos semelhantes nos escritos dos padres posteriores, que gozavam de uma autoridade muito menor? Se, pois, nos escritos dos santos, parece que algo não condiz com a verdade, então é piedoso, conforme a humildade e devido pela caridade (‘que tudo crê, tudo espera e tudo suporta’ – 1 Cor 13,7 – a fim de não supor facilmente erros naqueles a quem ama), que creiamos que esta passagem do texto não foi fielmente interpretada ou foi corrompida, ou nós não a conseguimos 40 compreender . Posto o problema, pode-se afirmar que o papel da dialética nesse trabalho de separar o joio do trigo, de deslindar o texto sagrado e os textos dos santos padres é de servir de instrumento para a busca da verdade. A dialética busca a verdade no discurso, examinando atentamente os significados dos termos utilizados e observando a temporalidade e a causalidade do que é dito, pois seguidamente acontece que aquilo que é concedido num tempo é proibido noutro e que a causa que motiva certo discurso pode não ser a causa última do discurso que se pretende verdadeiro: a caridade, pois uma “[...] coisa é mentir, outra, errar ao falar e afastar-se da verdade pelas palavras, não pela malícia41”. A primeira implica no ato da consciência que intenciona enganar, a segunda implica no descuido do emprego da palavra que se pretende verdadeira, mas que eventualmente pode enganar. Nesse ponto da análise desponta a dimensão ética do discurso: a intenção de proferir a verdade, ainda que eventualmente possa incorrer no risco de enganar ou omitir o que edifica. [...] Quem pensa que entendeu as Sagradas Escrituras ou alguma parte delas, saiba que não as entendeu se pela compreensão que tem não for levado ao duplo amor, de Deus e do próximo. Quem, porém, afirmar algo que seja útil para edificar a caridade, nem enganou maliciosamente, nem mentiu se disse algo que o leitor não 40 41 ABELARDO, 2005b, p. 119. Idem, ibidem, p. 126. julga ser a interpretação correta daquele tópico. No mentiroso existe a 42 vontade de dizer algo falso [...]. O discurso ético é, portanto, aquele que carrega a boa intenção do orador em edificar a caridade no ouvinte. Ainda que isso não seja suficiente pois há que se ter os cuidados no emprego dos termos de modo a evitar incompreensões ou equívocos - a intencionalidade é o critério último para avaliar a moralidade do discurso. O cuidado no emprego dos termos e a boa intenção do agente são os elementos fundamentais para que o discurso se aproxime maximamente da verdade. A concepção de Abelardo acerca dos universais evidencia-se na leitura dialética da escritura e dos santos padres realizada no Sic et non: a análise dos significados dos termos singulares como possibilidade da verdade do texto sagrado. A dialética como instrumento para compreensão dos mistérios da fé. Dessa forma, Abelardo inicia o estudo da teologia enquanto ciência que perscruta os mistérios divinos à luz da razão, pois é “[...] duvidando chegamos à procura, e procurando chegamos à verdade43”. A inquirição é de fato a primeira chave do conhecimento; é a questão diligente e frequentemente praticada pelos filósofos perspicazes de alta qualidade. Tal postura, porém, fez com que a filosofia de Abelardo recebesse de alguns de seus contemporâneos, o rótulo de ceticismo religioso. No entanto, tal rótulo era injusto. O espírito de investigação pode levar ao ceticismo, mas não é o ceticismo. Abelardo era um cristão e pode ter caído em erro, mas não em dúvida. Conclusão A filosofia de Pedro Abelardo, fundamentando-se na noção lógica de singularidade, caracteriza o método dialético como a busca da verdade no discurso, examinando atentamente os significados dos termos utilizados e observando a temporalidade e a causalidade do que é dito. Assim, a dialética 42 43 ABELARDO, 2005b, p. 125 Idem, ibidem, p. 129. prima pela busca da verdade no singular, realidade última de toda existência e de todo discurso. A verdade não pode ser buscada fora da singularidade, pois nesta é que se pode observar as condições reais de existência. Da mesma forma, a dialética na análise do discurso deve considerar o significado dos termos em seu contexto, fora do qual poderia assumir a universalidade e implicar em equívocos. No Sic et non Abelardo investiga em 158 questões relativas à fé, aos sacramentos e à caridade, constando de várias passagens da escritura e dos santos padres que são confrontadas porque inspiram contradição numa primeira e rápida leitura. Assim, questões como: a fé diz respeito somente às coisas invisíveis, ou não?; será que Deus tem livre arbítrio, ou não?; algo acontece contrário à vontade de Deus, ou não? Deus tudo sabe, ou não?, trazem no enunciado a contradita de modo a estabelecer o confronto entre os textos, os quais Abelardo deslinda em busca de uma solução que não contradiga, necessariamente, as autoridades invocadas. Exemplo do emprego do método dialético na discussão teológica, o Sic et non pode ser considerado como ponto de partida natural do espírito de investigação aplicado à teologia, ou seja, à tradição escrita das doutrinas cristãs. Pela inquirição e confrontação exaustiva do texto sagrado e dos textos dos Santos Padres, Abelardo não pretendia exaurir o senso do mistério destas fontes, antes, porém, pretendia aclarar e eliminar as dúvidas decorrentes de leituras e interpretações equivocadas. Abelardo foi um cristão e enquanto tal poderia cair em erro, mas não em dúvida, e se, pelo seu raciocínio, alterou a fé, nunca buscou, porém, enfraquecê-la. Referências Obras de Abelardo ABELARDO, Pedro. Lógica para principiantes. Tradução do original em latim de Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento. 2ª ed. São Paulo: UNESP, 2005a. ABELARDO, Pedro. Sic et Non. In: DE BONI, Luís Alberto. Filosofia Medieval – Textos. 2ª edição: Porto Alegre, 2005b. ABELARDS, Peter. Die Philosophischen Schriften Peter Abelards. B. Geyer. 4 vol. Münstef: 1919, 1921, 1927 e 1933. ABAELARDUS. Petrus. Petri Abaelardi Sic et non. J. P. MIGNE. Patrologiae Cursus Completus, Series latina, Tomus CLXXVIII. Parisiis, 1885, col. 13291610. 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